O Hospital Militar de Matto Grosso na Guerra do Paraguai

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Anais Eletrônicos do X Encontro Internacional da ANPHLAC
São Paulo – 2012
ISBN 978-85-66056-00-6
O Hospital Militar de Matto Grosso na Guerra do Paraguai: Doenças, dietas e
tratamentos
Ana Paula Squinelo1
Em novembro de 1864 o governante paraguaio Francisco Solano López ordenou o
aprisionamento do vapor brasileiro Marquês de Olinda que navegava pelo rio Paraguai rumo à
província de Mato Grosso, o que simbolicamente significou o início de uma guerra entre o
país guarani e o império brasileiro: a Guerra do Paraguai.
Seguido do aprisionamento do Marquês de Olinda, Solano López ocupou a então
longínqua e desprotegida província de Mato Grosso. Essa ação se efetivou por duas frentes:
uma fluvial e uma terrestre. A investida terrestre ocupou rapidamente o sul de Mato Grosso
chegando próximo a Cuiabá. Esta ocupação por tropas paraguaias se manteve entre os anos de
1865 e 1867 e levou o governo Imperial a reagir e formar seu Corpo de Voluntários da Pátria
para expulsar as tropas guaranis e defender seu território. A formação deste Corpo de
Voluntários trouxe para o Mato Grosso soldados de diferenciadas regiões do império: Minas
Gerais, São Paulo e Goiás são alguns dos exemplos. Esse corpo de Voluntariado sofreu
inúmeras adversidades em sua trajetória e foi em terras mato-grossenses que enfrentaram
inúmeras privações, provações e dificuldades.
Carente de infraestrutura desde sua formação esse Voluntariado esteve sujeito à
inexperiência dos comandantes, falta de conhecimento geográfico, falta de armamentos
bélicos, falta de víveres e, por consequência, por inúmeras vezes esteve sujeito a doenças e
epidemias, que por vezes “matavam” mais que o próprio conflito.
O registro do número significativo de doenças que acometeram esses protagonistas do
conflito platino é a documentação produzida pelo Hospital Militar de Matto Grosso entre os
anos de 1860 a 1870.
O Hospital Militar de Cuiabá foi criado “[...] pelo bando de 19.1.1809”2, e durante a
Guerra do Paraguai, sobretudo no período de ocupação paraguaia do solo mato-grossense que
corresponde aos anos de 1864-1867, o Hospital Militar de Matto Grosso funcionou com duas
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Enfermarias: a de Cirurgia e a de Medicina. Também foi responsável pelo atendimento dos
partícipes do conflito dos seguintes Corpos do Exército: Batalhão de Artilharia a pé n. 2;
Batalhão de Voluntários da Pátria; Corpos da Guarda Nacional Destacados; Corpos da
Artilharia da Província; Corpos de Caçadores a Cavallo n. 1; Corpo de Imperiaes
Marinheiros; e Batalhão de Infantaria n. 19.
Atendeu ainda os enfermos oriundos do Arsenal de Guerra e da Marinha de Mato
Grosso; Operários do Arsenal de Guerra; Operários da Fábrica de Pólvora; Companhia de
Artífices; Companhia de Aprendizes de Menores do Arsenal de Guerra; e Companhia de
Aprendizes de Menores do Arsenal da Marinha. Também prestou socorro aos Excluídos e
Sentenciados, assim como, aos membros da tripulação dos Vapores: Jaurú, Cuiabá, Alpha e
Corumbá.
Havia o controle diário do movimento ocorrido no Hospital Militar de Matto Grosso,
que era feito por um Escrivão e pelo qual se controlava o número de doentes que entravam e
saíam, fossem curados ou mortos.
Parte dessa documentação hospitalar compõe o Acervo do Hospital Militar de Matto
Grosso.3 Este acervo sobrevivente por dois séculos é composto por: Papeletas Médicas (que
seria o Prontuário Médico pelo qual se acompanhava a “marcha da moléstia” do paciente),
Documentos de Baixa (documento que encaminhava o doente de seu Corpo para o Hospital
Militar, por vezes registrava-se no verso o Inventário e o Vencimento do doente),
Documentos de Alta (documento que atestava a alta do paciente – consta a doença pela qual
foi internado), Mappa de Enfermos (documento que controlava diariamente as “entradas” e
“saídas” dos enfermos do Hospital), Mappa Geral das Dietas dos Enfermos (documento em
que constam os alimentos a serem adicionados à dieta dos pacientes), Mappa Diario da
Enfermaria (documento que controlava as “entradas” e “saídas” da Enfermaria) e o Mappa
Diario de Movimento Sanitario (documento que registrava diariamente a quantidade de
pacientes que foram “curados” e que “morreram”) referente a uma década. Porém, o que me
interessa para esta reflexão é o período de 1864-1867.
Ressalto que são mais de 4.100 documentos, entretanto essa documentação já sofreu a
ação do tempo e muitos documentos encontram-se quebradiços, danificados, amarelados, com
fungos, com marcas de traças, o que prejudica a compreensão do todo. Não é uma
documentação sequencial, pois não foram preservados todos os documentos de todos os
meses de cada ano, mas permite ao pesquisador atento e meticuloso o entendimento das
questões aqui propostas.
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Durante o período da ocupação paraguaia, o Hospital Militar de Matto Grosso atendeu
os combatentes acometidos por diferenciadas doenças e é através dessa documentação que me
proponho a traçar uma História Social da Saúde, apontando quais as moléstias abatiam os
contingentes, quais as dietas e tratamentos eram prescritos, assim como, averiguar quais
Corpos marcharam para defender o Império brasileiro da ocupação paraguaia, as patentes dos
combatentes, idade e naturalidade.
A maioria dessas Papeletas Médicas foram preenchidas e assinadas pelo Dr.
Dormevil José dos Santos Malhado, 1º Médico Interino, responsável pela Enfermaria de
Cirurgia e que acompanhava a rotina dos doentes, diagnosticava e prescrevia o tratamento. A
Enfermaria de Medicina era acompanhada pelo Dr. José Adolpho --- (?), no entanto, as
Papeletas da Enfermaria de Medicina são em menor número.
Após analisar as Papeletas Médicas do ano de 1864 relacionadas aos meses de janeiro
a outubro, aponto os seguintes dados:
Das doenças registradas, os casos de Úlcera foram em maior número, seguidos
respectivamente por Reumatismo e Cancros Venéreos; as Contusões por Castigo também são
encontradas nas Papeletas do ano de 1864, assim como dos anos seguintes, o que demonstra
que os castigos eram uma prática comum no Exército brasileiro.
As doenças venéreas como Bubão, Blenorrhagia, Úlcera Syphylitica e Gonorhea
também constam nas Papeletas Médicas entre os anos de 1864 e 1870 e, embora essas
doenças atinjam todas as patentes do Exército, seu número é mais expressivo entre as baixas
patentes, como os soldados.
Já no ano de 1864 são registrados dois casos de Varíola que deram entrada para
atendimento no Hospital Militar: um em 09 de setembro, outro em 12 de setembro, ambos os
casos de Marinheiros do Corpo de Imperiaes Marinheiros.
Os casos de Úlcera eram tratados com Limonada Cítrica, Limonada Sulfúrica, Cerato
Simples, Pomada de Iodureto, Solução de Citrato de Magnésia, Nitrato de Prata, Banhos e
Cozimento de Salsa Adoçada; para Reumatismo eram prescritos Óleo de Rícino, Iodureto de
Potássio; nos casos dos Cancros Venéreos, o enfermo era medicado com Pomada de Nitrato
de Prata; para as Contusões por Castigo, eram indicadas tintura de arnica e gengibre, e infusão
de arnica.
Do ano de 1865 restaram mais de 500 Papeletas Médicas compreendendo os meses de
janeiro a dezembro, portanto, o único ano em que é possível se ter uma noção mais detalhada
sobre o cotidiano do Hospital.
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No ano de 1865 foram atendidos enfermos de todos os Corpos do Exército em atuação
na Província de Mato Grosso, assim como Menores do Arsenal de Guerra e da Marinha, e
tripulantes do Vapor Alpha, Jauru, Cuiabá e Corumbá.
Doentes de diferenciadas patentes e de diversas Províncias do Império, como Bahia,
Rio de Janeiro, Pernambuco, Santa Catarina, Maranhão, Minhas Gerais, Rio Grande do Sul,
Paraná, Ceará, Goiás e Pará deram entrada no Hospital de Militar de Matto Grosso.
A Hepatite seguida das Febres Intermitentes foram as causas da maioria das
internações ocorridas no ano de 1865. Nas Papeletas Médicas se encontra o registro de
Hepatite Chronica, Hepatite Intermitente, Gastro Hepatite, Hepatite Aguda.
Ao doente diagnosticado com Hepatite era prescrito: ventosas, sanguessugas, banhos,
pílula e uma dieta específica composta por assado, ovos, sopa, canja, mate, biscoitos, café frio
e marmelada.
Para as Febres Intermitentes que se fizerem presentes em toda a campanha contra o
Paraguai era receitado: Sulfato de Magnésia, Ácido Sulfúrico, Pílulas de Iodoreto, Limonada
de Tamarindo, Banho Geral, Água Antiperiodica e Infusão de Sabugueiro.
As Papeletas Médicas do ano de 1866 correspondem aos meses de fevereiro a junho e
a Hepatite novamente foi a doença que predominou, seguida da Bronchite, Hypoemia e
Rheumatismo. A Hepatite seguiu o mesmo tratamento apontado nas Papeletas de 1865; já
para Hypoemia e Rheumatismo foram prescritos Pílulas de Iodureto de Ferro com Cicuta; e a
Bronquite era tratada com Infusão de Sabugueiro, Tintura de Acenito e Bálsamo.
Vale citar que os dados contidos nas Papeletas Médicas do ano de 1866 permitem
apontar que o maior número de enfermos que deram baixa no Hospital Militar de Matto
Grosso foram de Soldados, seguidos pelos Menores do Arsenal de Guerra, da Esquadra e do
Cabo.
Em relação ao ano de 1867, a documentação médica pode ser dividida em duas: 1) 47
(quarenta e sete) Papeletas Médicas referentes aos casos de Varíola; e, 2) 205 (duzentas e
cinco) Papeletas Médicas que se referem a outras moléstias.
As quarenta e sete Papeletas Médicas referentes a Varíola representam os casos dos
Menores do Arsenal de Guerra que foram atendidos no Hospital Militar de Matto Grosso;
estes eram Menores Aprendizes entre 09 (nove) e 15 (quinze anos), oriundos da província de
Mato Grosso e deram entrada sobretudo no mês de setembro de 1867.
Cabe destacar que o ano de 1867 foi marcado por uma grande epidemia de Varíola e a
documentação demonstra que os Menores Aprendizes do Arsenal de Guerra não foram
poupados da moléstia.
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O ciclo da doença variava e os registros apontam que o menor ficava internado na
enfermaria em média por 15 dias. Nesse período, recebia visitas diárias do médico
responsável, que prescrevia o tratamento a ser seguido e a dieta adequada ao paciente.
O paciente acometido pela Varíola sofria de febres altas e quando essa abaixava
apareciam erupções avermelhadas que se manifestavam na garganta, boca, rosto e se
espalhavam pelo corpo inteiro. Essas erupções evoluíam e se transformavam em Pústulas que
eram bolhas cheias de pus e causavam coceira e dor intensas ao enfermo.
O tratamento prescrito não incluía remédios alopáticos. As terapêuticas eram
prescritas e aplicadas utilizando-se muitas vezes de elementos oriundos da flora do cerrado.
Para a varíola, a terapêutica prescrita se repete em todas as Papeletas Médicas. Ao paciente
era indicado: Infusão de Sabugueiro; Tintura de Rícino; Banho Canforado; Gargarejo; Infusão
de Flores de Laranjeira; Cataplasma de Linhaça; e Limonada Sulfúrica.
Após o tratamento, esses menores aprendizes recebiam alta e prescrevia-se de 15 a 20
dias de convalescência.
As Papeletas Médicas que servem como subsídio a estes apontamentos referem-se ao
mês de maio de 1867 e me permitem apontar que nesse período deram entrada na Enfermaria
do Hospital Militar em maior número os combatentes do Batalhão d´Artilharia a Pé n. 2 (44),
juntamente com o Corpo Destacado da Guarda Nacional (44), seguidos pelo Batalhão de
Voluntários da Pátria (21).
Das 205 Papeletas Médicas analisadas, pude averiguar a idade dos combatentes que
está entre 20 a 29 anos, jovens naturais das Províncias de Pernambuco, Mato Grosso, Bahia,
Minas Gerais, Ceará e um caso registrado de procedência de Assunção.
No mês de maio de 1867, a maioria dos pacientes deu entrada com Hepatite associada
a Febres Intermitentes. Entretanto, houve outras doenças relacionadas nas Papeletas Médicas:
Rheumatismo; Bubão; Pleurodinia; Hérnia; Cancros Venereos; Mordidura de Cobra; Ferida;
Alterações na Garganta; Contusão por Castigo; Pequeno Ferimento; Embaraço Gástrico;
Embaraço Intestinal; Úlcera Syphilitica; Torcicollo; Odontologia; e Torção de Pé.
Interessante destacar que nesse período as doenças “eram as mais democráticas
possíveis” e atingiam as pessoas sem distinção de classe ou patente. Em função das péssimas
condições sanitárias, da má alimentação e da total falta de infraestrutura todos estavam
sujeitos a serem acometidos por alguma doença, seja em um grau primário ou uma doença de
caráter mais grave.
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Naquele mês de maio de 1867, passaram pela Enfermaria do Hospital Militar:
Comandantes; 1º Sargento; 2º Sargento; Soldado; Anspeçada; Músico; Marinheiro; Foguista;
Carvoeiro; 2º Cadete; Furriel; Esquadra; Menor; Alferes; Operário; Cabo; e Carvoeiro.
Triste apontar que até o presente momento, a partir de toda a documentação analisada,
aquele que estava mais sujeito às doenças sem sombra de dúvidas é o Soldado. Em maior
número, vivendo em péssimas condições sanitárias, se alimentando mal e sofrendo de várias
moléstias, foi o primeiro a ser acometido pelas doenças.
Assim como a varíola, as outras doenças também eram tratadas a partir de
medicamentos extraído da flora. Para a Hepatite era prescrito Pílulas Frank, Banho Geral,
Pílulas de Calmelan, Extrato de Cicuta e Sal Catartico; as Febres comuns no período eram
tratadas com Óleo de Rícino, Sulfato de Quinino, Limonada Sulfúrica, Cerne Tartarisado e
Sebo de Rim de Carneiro; para o Rheumatismo Muscular era indicado Infusão de Flores de
Sabugueiro, Iodeto de Potássio, Banho de Sulfureto de Potássio e ainda Óleo de Rícino; para
as Contusões por Castigo era prescrito Bálsamo Catálico e Arnica.
Ainda sobre as Papeletas Médicas do ano de 1867, estas são sequenciais entre os
meses de fevereiro e maio, mas depois infelizmente as fichas se perderam e restaram apenas
algumas Papeletas que registram casos de Varíola, excetuando-se os casos dos Menores do
Arsenal de Guerra.
As Papeletas apontam sete casos de Varíola, sendo um ocorrido em agosto, quatro em
setembro e dois em outubro de 1867. Registro que todos os casos foram tratados com a
mesma terapêutica: a Infusão de Sabugueiro.
Em relação aos dados referentes às Papeletas Médicas entre os anos de 1868 e 1870,
ainda estou procedendo a análise documental, o que tem sido uma grande e estimulante tarefa.
Nesse sentido, traçar uma História Social da Saúde ou História da Ciência/Medicina
durante o século XIX e, em particular, a Guerra do Paraguai constitui um desafio para o
pesquisador.
Por ser uma temática ainda pouco explorada, o historiador enfrenta, sem dúvida,
problemas relacionados às fontes, por exemplo.
Portanto, o que apresentei aqui são resultados preliminares tendo em vista a pesquisa
encontrar-se em seu estágio inicial. Espero, no decorrer da mesma e ao explorar a
documentação em toda sua complexidade, diversidade e possibilidades, apresentar resultados
mais elaborados sobre a História Social da Saúde relacionada à Guerra do Paraguai.
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1
Doutora em História Social, Universidade de São Paulo (2006); Pesquisadora no Núcleo de
Documentação e Informação Histórica Regional (NDHIR/UFMT).
2
SANTOS FILHO, Lycurgo de Castro. História geral da Medicina Brasileira. v. 2. São Paulo:
Hucitec; Editora da Universidade de São Paulo, 1991, p. 594.
3
Acervo do Hospital Militar de Matto Grosso. Núcleo de Documentação e Informação Histórica
Regional (NDHIR). Universidade Federal de Mato Grosso/Cuiabá.
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