A escola contemporânea e a educação para a sustentabilidade: um estudo comparativo de visões de pais e professores no brasil ELIZABETH TUNES ELISÂNGELA MOREIRA PERACI MESA 16 1. Introdução A escolarização acentuada que se observa atualmente é um sintoma radical de uma sociedade que transforma necessidades em mercadorias, conforme aponta Illich (1973). Um forte indicador disso é a idéia de que quanto maior for o tempo de escolarização, melhores os resultados, mesmo que não haja aprendizagem, mas desde que se obtenham graus, diplomas ou certificados. A escola é instituição fundamental na manutenção das ideologias do consumo e do progresso e propagadora do mito de que o aprendizado só pode ser realizado na escola, valorizando mais a instrução e os métodos de quantificação do que a aprendizagem. Sendo o currículo uma mercadoria, por uma tendência típica do mercado, a escola procura aumentar incessantemente a sua “venda”. Diante dessa pauta, no presente trabalho, examinase qual é, na atualidade, a extensão sócio-cultural do processo de escolarização, quais são suas particularidades e como se manifesta em diferentes realidades, por meio da comparação de visões de professores e pais de realidades sociais distintas da cidade de Brasília, Brasil, com vistas a compreender o papel que atribuem à escola. 2. Sobre a infância e o desenvolvimento infantil A infância é um princípio e um fato social, antes que um fenômeno natural. Pode ser entendida como uma descrição de um nível de realização simbólica. A falta de alfabetização, do conceito de educação e do conceito de vergonha, este no sentido de que há fatos da vida adulta que não devem ser compartilhados com as crianças, seriam as razões pelas quais o conceito de infância não teria existido no mundo medieval (Postman, 1999, p. 56). Vale, aqui, lembrar que, no mundo grego, ainda que de modo incipiente, e no mundo romano antigo, pairava um sentimento de infância e, tanto em um quanto em outro, valorizava-se a escola. Com a queda do império romano, houve uma restrição ao uso do alfabeto e o processo de alfabetização deixa de ser socializado, passando a ser corporativo (corporação de escribas). O desaparecimento da alfabetização socializada é, assim, um correlato histórico importante do processo de desaparecimento do sentimento de infância, que têm lugar na Idade Média. O mundo medieval, portanto, desconhecia qualquer concepção de desenvolvimento infantil, de pré-requisitos de aprendizagem seqüencial, de escolarização como preparação para o mundo adulto (Postman, 1999). “A civilização medieval tinha esquecido a paidéia dos antigos e ainda não sabia nada sobre educação moderna” (Ariès, 1962). Com a criação e valorização do Homem Letrado, na modernidade, começa-se a assistir ao surgimento da idéia de criança, agora, separada do adulto porque não sabia ler nem escrever. É a escola, então, uma das condições importantes que possibilita o fato de a criança não mais ser vista como adulto em miniatura, mas como um adulto em formação. Tornada a infância uma categoria social e intelectual, via escola, forjam-se os seus estágios de desenvolvimento. Inventada a criança como classe de pessoas e inventados, via escolarização, o processo e a estrutura do seu desenvolvimento, passa-se a acreditar que as práticas educativas em geral, e não apenas as escolares, existem como tal para dar conta do ser naturalmente criança e não o contrário: o ser socialmente criança define-se pela ambiência social que o adulto lhe oferece, isto é, pelas práticas sociais de educação, historicamente e culturalmente condicionadas, que o mundo adulto impõe, tomandose a si próprio como parâmetro de conclusão de desenvolvimento. O processo de 2 desenvolvimento, então, é descrito, teoricamente, como hierárquico, linear, progressivo, quantitativo, uniforme (invariante), natural e, por tudo isso, previsível. Mas a variação é um fato real que não se pode deixar de levar em consideração; algumas crianças impõem resistência ao que se supõe ser naturalmente definido. Surge, então, o conceito de patologia do desenvolvimento, que se coloca em oposição àquilo que seria a norma, ao padrão “naturalmente” esperado. É essa a visão naturalizada do desenvolvimento a que prevalece até os dias de hoje. Uma visão de desenvolvimento antagônica a esta é inspirada na teoria históricocultural de Vygotsky (1993; 2000). Para ele, o desenvolvimento psicológico tem um caráter não-hierárquico, não linear e não progressivo. É um processo qualitativo de transformações e metamorfoses, que não segue sempre uma mesma direção; é, fundamentalmente, diversificado e enraizado nas condições da vida social e tem um caráter histórico-cultural. Daí porque apresenta resistências à possibilidade de previsão e descarta o conceito ad-hoc de patologia. Segundo a primeira visão, o desenvolvimento infantil segue um curso que é naturalmente dado pelo simples fato de a criança pertencer a uma espécie biologicamente definida, o Homo sapiens sapiens. Ao ambiente social cabe apenas uma função de expansão daquelas funções biologicamente dadas. Há uma espécie de programação natural que, se presentes determinadas condições ambientais, é desencadeada. Daí porque essa visão admite a idéia de uniformização e hierarquia. Concebe-se o desenvolvimento psicológico da criança como um processo que tem um curso pré-definido, que ocorre em etapas que se sucedem hierarquicamente. Ele seria equivalente ao desenvolvimento biológico, o crescimento, por exemplo. O ambiente teria apenas a função de expandir aquilo que já está pré-determinado. Já para a visão histórico-cultural, a cultura humana imporia uma transformação, uma metamorfose, daquilo que é biológico em algo de outra ordem. Ainda que a base do desenvolvimento da conduta humana seja biológica, a vida social humana criaria condições que provocariam uma tremenda modificação no seu psiquismo. As condições históricas simpráxicas como o aparecimento da linguagem, o uso de instrumentos e a divisão social do trabalho constituiriam o cenário possibilitador de transformação de um psiquismo natural, elementar, característico de todos os outros animais em um psiquismo de caráter cultural, condicionado pelas condições históricas forjadas na vida social concreta. Esse enraizamento do psiquismo humano na cultura subtrai-lhe a universalidade, conferindo-lhe um caráter histórico e uma variabilidade ímpar, de modo que muito pouco se pode afirmar sobre sua progressão e, portanto, menos ainda, sobre sua seqüenciação. Embora bastante imbricado nas idéias de desenvolvimento, o tema infância contém algumas especificidades que valem realçar. Elas dizem respeito à maneira como o lugar social da criança, os tipos de relação adulto-criança e de criançacriança aparecem na configuração dos modos sociais de conhecimento. A literatura científica aponta pelo menos três momentos importantes na evolução do conceito de infância. Um momento, que poderíamos denominar de clássico, corresponderia à concepção de infância vigente, por exemplo, entre os romanos. Os gregos prenunciaram a idéia de infância e os romanos, tomando-lhes emprestada a noção de escolarização, superaram aquela idéia incipiente, adicionando-lhes ingredientes que permitem nela se identificarem as raízes da noção moderna de infância. Foram os romanos que primeiro estabeleceram uma conexão entre a criança em crescimento e a noção de vergonha, isto é, um ser que dever ser protegido dos segredos dos adultos (Postman, 1999). Um segundo momento é próprio da Idade Média, em que o conceito ou sentimento de infância se fez ausente e a 3 criança era concebida como um adulto em miniatura (Ariès, 1981). Isto é, ela teria todas as possibilidades e funções adultas de forma diminutas e ainda não expandidas. O terceiro momento, a modernidade, traria consigo um conceito, propriamente dito, de infância e de criança. Esta passa a ter um estatuto social diferente do adulto, é apartada deste, mas por ele orientada, guiada e protegida. A criança, então, passa a ser vista não como um adulto em miniatura, mas como um adulto em formação, um rascunho do adulto, conforme as palavras de Boto (2002), que acrescenta que a representação moderna de criança é “bastante comprometida com a idéia da insuficiência ou do caráter incompleto da condição infantil em relação a seu almejado ponto de chegada: o ser adulto. A criança é percebida pelo que lhe falta, pelas carências que apenas a maturação da idade e da educação poderiam suprir. Frágil na constituição física, na conduta pública e na moralidade, a criança é um ser que deverá ser regulado, adestrado, normalizado para o convívio social” (p. 17). Há quem aponte que, na contemporaneidade, estaríamos retornando a um estágio anterior em que o conceito ou sentimento de infância não se fazia presente. Estaria havendo, progressivamente, uma indiferenciação de criança e adulto, o que corresponderia a uma espécie de retrocesso histórico ao momento correspondente à Idade Média (Postman, 1999). Os indícios que dão suporte a essa hipótese seriam o aumento assustador das taxas de crimes graves cometidos por menores de 15 anos, a similaridade crescente entre o vestuário infantil e o adulto, o desaparecimento das crianças nas ruas, brincando, e sua movimentação crescente em jogos altamente organizados e comandados por adultos, de modo profissional. Mas, a evidência maior seria o fato de a história da infância ter se tornado uma indústria importante entre os especialistas (Postman, 1999). A preocupação súbita em registrar a história da infância seria, em si mesma, um sinal do declínio da infância. Essa hipótese do desaparecimento da infância e, por conseguinte, da pedagogia, é bastante instigante e, certamente, suportada por teorias do desenvolvimento infantil que adotam uma perspectiva naturalista. Todavia, há alguns fatos da teoria do desenvolvimento infantil histórico-cultural que a enfraquecem. Conforme aponta El’Konin (1972), um dos grandes equívocos das teorias naturalistas ou evolucionistas do desenvolvimento infantil é o fato de tratarem a criança como um indivíduo isolado que se encontra num habitat apenas circundante, a sociedade. Além disso, e por isso mesmo, o desenvolvimento psíquico é visto meramente como um processo de adaptação a esse habitat. A sociedade, por sua vez, é vista como contendo dois elementos desarticulados entre si, o mundo das coisas e o mundo dos adultos. Como conseqüência, há o desenvolvimento de dois conjuntos fundamentalmente distintos de mecanismos adaptativos: um ao mundo das coisas e outro ao mundo dos adultos. Segundo ele, essa seria uma das razões que esclarecem o porquê têm-se, basicamente, dois tipos díspares de teorias do desenvolvimento: as que se referem aos processos adaptativos da criança ao mundo das coisas (a teoria de Piaget, por exemplo) e as que tratam de tais processos em relação ao mundo dos adultos (a teoria de Freud, por exemplo). Visto sob essa ótica, o desenvolvimento da criança se daria, estruturalmente, em dois processos que correm paralelamente: um de cunho afetivo-emocional e outro, intelectual ou cognitivo. As dificuldades de ordem lógica e epistemológica que as formulações paralelistas trazem são inúmeras (a esse respeito, ver, especialmente, Yaroschevski, 1983), mas, por ora, basta salientar a impossibilidade que se tem de entender como dois processos que ocorrem de forma paralela, isto é, sem interatuarem, podem referir-se ao desenvolvimento psíquico de um mesmo ser. 4 A proposta histórico-cultural para o desenvolvimento infantil articula os dois mundos. Partindo da idéia que o homem é um ser de relação e que a psicologia estuda o comportamento do homem social (ver Tunes e Bartholo, 2004), pode-se dizer que não há, para a criança, um mundo das coisas em si mesmas como admitido na teoria de Piaget, mas um mundo dos objetos sociais. Ou seja, o sentido e o significado das coisas mundanas pode existir para o homem se, e somente se, se constituírem numa relação social. Logo, não haveria dois processos paralelos, e tampouco seriam de caráter adaptativo, no desenvolvimento infantil, mas sim, um processo unificado de constituição de sentidos e significados das coisas do mundo, numa relação social. Essa afirmação torna-se tão mais válida quando se pensa que não há, no mundo humano, qualquer objeto que não seja social. Uma árvore ou uma pedra já são um objeto social pelo simples fato de serem ambas nomeadas. Qualquer objeto do mundo é apresentado ao homem por um outro homem e, portanto, logo na origem, já é impregnado de alteridade. O interesse da criança caminha, assim, do outro social para o objeto, num processo que pode ser resumido como se segue. Após o nascimento, o bebê vive um longo período de dependência e intimidade plenas com o adulto que dele cuida. Há uma predisposição ao contato com o outro que é, inclusive, o que garante a sua sobrevivência. Os objetos que se encontram ao seu redor interessam-lhe muito pouco se é que, de fato, exerçam sobre ele alguma atração. É o outro que cuida dele a quem dirige grande parte de seus esforços de atenção. É, assim, esse adulto quem irá propiciar a transição da atenção do bebê para os objetos. Em outras palavras, o interesse do bebê pelo adulto é naturalmente dado, mas o seu interesse pelos objetos à sua volta é socialmente constituído, sendo, portanto, a participação das pessoas que cuidam dele primordial para desencadear o processo de transição de sua atenção a elas em direção aos objetos (a esse respeito, ver Tunes e Tunes, 2001). Dito dessa forma, fica claro que a criança interessa-se pelo que o adulto faz e pelos objetos com que este se relaciona. Desenvolvida dessa maneira a esfera de suas necessidades-motivação pelo mundo das coisas, em seguida, passa-se ao momento em que se desenvolve a esfera da proficiência no uso dos objetos e instrumentos sociais. Assim, as mudanças a que Postman (1999) atribui um valor indiciário do desaparecimento da infância podem não significar exatamente isso, mas sim, que estão acontecendo mudanças importantes nos interesses e atividades adultas. Essas, pelo que se disse, tenderão a ser, especularmente, seguidas pelas crianças. Se os adultos não realizam atividades na rua, por que iriam as crianças fazê-lo? Essa é uma diferença, aliás, muito importante entre tempos passados e tempos atuais. A mimese do vestuário explica-se da mesma forma. As pessoas cuja infância se passou em meados do século passado – e isso é também falado por Ariès (1981) – com certeza, lembram-se do quanto os meninos, que usavam calças curtas, esperavam, ansiosamente, o momento em que passariam a usar calças compridas, como os homens adultos. Assim, a interpretação de Postman (1999) precisa ser examinada com cuidado, pois, uma suposta indiferenciação adulto-criança que acredita estar começando a se fazer sentir pode não corresponder estritamente à visão de criança que se manifestava na Idade Média e tampouco que esteja desaparecendo o sentimento de infância. É possível que se trate, na verdade, da emergência de uma nova concepção de criança, diferente da modernidade (adulto em formação), mas não a indiferenciação atribuída tipicamente à Idade Média. De fato, resultados de uma pesquisa realizada no Brasil, no âmbito da Pastoral da Criança, (Tunes, Silva, Mamede e Thiessen, 2004) não apontam como verdadeira a 5 hipótese de Postman. O que se verificou nas comunidades estudadas foi a idéia de distinção e não de indiferenciação adulto-criança, o que demonstra que há o reconhecimento de um lugar social próprio da infância que é diferente do adulto. Isto é, verificou-se que os adultos admitem que a criança tem necessidades que lhes são peculiares e que investem e se envolvem em atividades que lhes são próprias, requerem para si cuidados e atenção diferentes daqueles que são dispensados a pessoas de outras faixas etárias. No cotidiano das famílias, foram claramente identificados o estatuto social diferenciado da criança e também os sentimentos dos adultos em relação a ela. Esse reconhecimento foi constatado em todos os grupos da pesquisa e isso, por si só, já indica que há alguma concepção de infância e não a indistinção da Idade Média. A separação adulto-criança é também atestada quando se examinam os tipos de relação adulto-criança a que se referiram as participantes do estudo referido. Quando a criança engajava-se em atividades que lhes são próprias – brincar, por exemplo – os adultos, especialmente as mães, demonstravam orientar-se de duas maneiras: ou participando das atividades com as crianças, sem impor-lhes restrições adultas, ou permanecendo aparentemente alheios, sem interferir, mas vigilantes e atentos para protegê-las no caso da sinalização de algum perigo ou ameaça. A maioria das participantes demonstrou essa atitude. Há, ainda, aquelas atividades que se encontram nas bordas das duas faixas etárias – passear, por exemplo – e que as mães afirmaram que costumam realizar com os filhos. Essas, contudo, não parecem predominar em relação às demais. Se fosse assim, estaria sendo atestado o processo de desaparecimento da infância e da infantilização do adulto, como quer Postman (1999), com o retorno às idéias da Idade Média, quando crianças e adultos participavam praticamente em pé de igualdade da imensa maioria das atividades da vida social. Mas, seria possível pensar que o desaparecimento do sentimento de infância estivesse em curso não por um processo de infantilização do adulto, mas por uma precocidade da criança em relação à vida adulta, imposta, segundo Postman (1999), de maneira intensa pelos meios de comunicação, especialmente a televisão. Entretanto, quanto ao envolvimento das crianças em atividades adultas, o que se notou na pesquisa citada é até mesmo uma exacerbação nas restrições a essa possibilidade. Portanto, há, ainda, algum segredo dos adultos para com as crianças. Assim, o que os dados daquele trabalho mostram é que os tipos de relação adultocriança apontam também com certa força para a idéia de que há alguma concepção de criança, pelo menos naqueles grupos pesquisados. Retomando, então, o fio da meada, se há uma distinção entre criança e adulto, qual será a concepção de criança que vigora nos diversos segmentos sociais? A concepção de criança como um adulto em formação, para Postman (1999) e Ariès (1978), liga-se bastante à interferência da escola nas práticas de educação familiar. Postman chega a atribuir à necessidade de letramento uma das condições de emergência do sentimento de infância. Para ele, antes, era considerada criança a pessoa que não falava e, depois, há uma extensão da infância para incluir as pessoas que ainda não dominavam a leitura e a escrita. Nesse sentido, a invenção da prensa por Gutenberg teria um papel decisivo por criar e difundir a necessidade do domínio da leitura e escrita. Assim, seria considerada criança a pessoa que não dominaria essas ferramentas culturais. Daí porque a criança seria um adulto em formação; alguém que está sendo preparado para o domínio de tais instrumentos. A proficiência em relação a eles é, então, o critério definidor de que a idade adulta foi atingida. 6 A idéia de que a criança é um adulto em formação impõe a visão de que ela é um sujeito de carências; alguém que é definido pelo que lhe falta e não pelo que verdadeiramente é. Por isso, é preciso que seja sempre tutelada até que atinja os níveis de proficiência que caracterizarão seu novo estatuto social. Entretanto, podese pensar na possibilidade de que à idéia de infância inaugurada com a modernidade sobreponham-se outras, no desenrolar da história social. De fato, na pesquisa mencionada (Tunes, Silva, Mamede e Thiessen, 2004), em algumas comunidades, verificou-se que a criança é definida pelo que é. Algo que parece aproximar-se da idéia de pessoa moral, conforme acepção definida em Lalande (1999, p.812): “Ser individual, enquanto possui as características que lhe permitem participar da sociedade intelectual e moral dos espíritos: consciência de si, razão, quer dizer, capacidade de discernir o verdadeiro e o falso, o bem e o mal, capacidade de determinar por motivos pelos quais se possa justificar o valor perante outros seres razoáveis”. Essa acepção é usada pelos grupos referidos no sentido de: “Diz-se que um ser é uma pessoa: 10.: Quando realiza o grau mínimo de discernimento moral que permite julgá-lo como responsável pelo que faz, estabelecer uma diferença entre os seus atos e os efeitos de uma força mecânica ou reações de um animal puramente instintivo e impulsivo” (Lalande, 1999, p. 813). A atribuição da autonomia com responsabilidade como sentido do desenvolvimento traduz essa idéia. Então, para os grupos mencionados, à pessoa é conferido o estatuto de adulto não pelo grau de proficiência que atinge no mundo das coisas, mas pelo grau de autonomia, no sentido moral, com que é capaz de responsabilizar-se pela vida e pelos outros, pelo grau de autonomia atingido no mundo das pessoas. Desse modo, a dimensão ética a que se sobrepõe o conceito de infância indica um sentimento de infância que não pode se caracterizar por uma perspectiva futurista de educação, aquela que afirma que é criança quem ainda não é adulto pelo grau de proficiência que demonstra em relação às ferramentas culturais. Nesse caso, desenvolvimento significaria progressão em relação a essa proficiência. Em oposição a essa idéia, o que se constatou foi o reconhecimento de que a criança já demonstra uma característica adulta quando atua com responsabilidade em relação à vida e ao outro. A perspectiva teleológica do desenvolvimento se desfaz: importa o que a pessoa demonstra, no momento em que age. Daí porque não se está autorizado a afirmar que há consenso absoluto na sociedade acerca de uma idade definida a priori que indique a entrada no mundo adulto. Sendo assim, não haveria etapas padronizadas de desenvolvimento: isso dependeria da educação que se oferece. É o primado da ética, traduzido na educação pelo exemplo, pelo que se vive, cotidianamente, nas relações dos adultos com a criança. A criança, desde bem pequena, já seria plena de condições de demonstrar-se adulta, quando encontra, na sua relação com adultos, a condição de possibilidade de uma opção ética. Há ainda um outro ponto. Se a necessidade de letramento foi uma das condições históricas para a emergência do sentimento moderno de infância, o desaparecimento deste deveria, de algum modo, ligar-se ao enfraquecimento daquela necessidade. Contudo, o que está acontecendo parece ser exatamente o contrário: a escola torna-se cada vez mais central e importante na vida contemporânea, conforme ilustram os resultados que obtivemos em uma pesquisa que realizamos em algumas escolas da cidade de Brasília, DF, Brasil. Para a coleta de dados, foram formados três grupos de discussão com agentes educacionais (professores, pedagogos e orientadores educacionais) e três de pais de alunos na faixa etária de 7 a 11 anos de idade, de escolas públicas da periferia da cidade e de escolas particulares. Os participantes compõem, assim, dois grupos sócio-economicamente distintos. 7 3. A centralidade da escola na vida contemporânea e sua vinculação ao mercado de trabalho Os resultados obtidos permitiram verificar que, nas visões dos participantes (agentes educacionais e pais) sobre a escola contemporânea, independentemente do extrato sócio-econômico a que pertencem, destacaram-se os seguintes pontos: o anacronismo da escola; suas funções de segregação, padronização e afirmação das carências da criança; sua regulação pelo mercado, e a responsabilidade pela educação moral e ética da criança. Ao se interpretar o modo como os pais percebem a atuação da escola, verificou-se que, para eles, a escola está atrasada em seus métodos e não acompanha as exigências do mercado de trabalho. De um lado, afirmam que as disciplinas básicas exigidas nos currículos escolares já não são mais suficientes para atender às demandas do mercado. De outro, sinalizam que a escola está alienada do dia-a-dia da criança, devido ao anacronismo de seus métodos. Os agentes educacionais, por sua vez, entendem que as condições econômicas, burocráticas e de infra-estrutura seriam as responsáveis pelo anacronismo da escola. Do mesmo modo que os pais, indicaram que o ensino oferecido pela escola não atende ao que é exigido pelo mercado de trabalho, especialmente pela falta de recursos didáticos e de computadores necessários para esse ajuste. Ambos os grupos de participantes, portanto, filiam a escola ao mercado de trabalho, permitindo inferir que, para eles, a criança deve ser preparada, profissionalmente, na escola, desde pequena. Entendem, pois que o mercado profissional deve ser o marco regulador do funcionamento da escola. Segundo os pais, a escola é responsável por separar a criança da sociedade. Afirmam também que a escola tem função segregadora: do mesmo modo que a sociedade divide-se em pobres e ricos, a instituição escolar permite a separação das pessoas em possuidoras e não possuidoras de diploma. Ainda, acreditam que ela tem uma função padronizadora, ao renunciar ao trabalho com as diferenças individuais, criando, assim, duas classes de alunos: os que estão na média e os que estão fora dela. Diferentemente dos pais, os agentes educacionais afirmam trabalhar respeitando a diversidade de cada criança. Ao mesmo tempo, contudo, admitem que, em casos de problemas de aprendizagem ou de comportamento, a causa encontra-se no próprio aluno ou nos seus pais. Para eles, devido à inserção das mães no mercado de trabalho, a alfabetização já não é a única função da escola, que é forçada a assumir a responsabilidade pela educação moral e ética da criança. Ao contrário disso, os pais afirmam que essa formação da criança deve ser dada em casa, cabendo à escola, nesse ponto, apenas uma função auxiliar. Mas, segundo percebem, essa parceria não tem ocorrido, pois os professores, com seus exemplos e atitudes contrárias às da família, colaboram para a deseducação de seus filhos. Embora haja diferenças em pontos de vista de pais e de agentes educacionais, os resultados mostraram que há um ponto central de convergência entre os dois grupos de participantes. Ambos compartilham a idéia moderna hegemônica de criança como um adulto em formação. Além disso, restringem um pouco essa idéia ao equivaler o ser criança ao ser aluno, isto é, um adulto em contínua formação escolar, que é profissionalmente preparado, desde pequeno, para o mercado de trabalho. Isso confere à escola uma centralidade importante no espaço de vida da infância- 8 adolescência-juventude, dando força à vinculação da escola ao mercado de trabalho, numa perspectiva mercantilizada do processo de escolarização. Essa vinculação cria e mantém a função segregadora e padronizadora da escola, o que, a nosso ver, distancia-se da idéia de educação para a sustentabilidade, uma vez que esta, necessariamente, aponta para a conservação da diversidade de formas de vida e de culturas. 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