Solecismo: inadequação ou vício de linguagem? Não somente em textos literários (romance, conto, crônica, novela), mas também em textos jornalísticos (jornal, revista, televisão), é muito frequente lermos e ouvirmos alguns vícios de linguagem, tais como a ambiguidade (duplo sentido), a redundância (pleonasmo vicioso), o cacófato (formação de palavras obscenas) e o solecismo, entre outros. Trataremos especificamente do solecismo, que consiste em qualquer desvio que se comete contra a sintaxe, podendo ser: de concordância (nominal e verbal), de regência (nominal e verbal) e de colocação pronominal. Como o assunto é muito vasto e a sintaxe possui bastantes regras, abordaremos o solecismo apenas com alguns casos específicos, quer sejam mais usados, quer tragam mais dificuldades para as pessoas que desconhecem a norma padrão da língua portuguesa. Tomando por base o escritor Paulo Coelho, um dos autores mais traduzidos atualmente, citaremos alguns exemplos extraídos do seu romance O Alquimista, um dos mais lidos pelos adolescentes e que, provavelmente, será transformado em filme. a) “Achou que o horizonte estava um pouco mais baixo, porque em cima do deserto haviam centenas de estrelas.” (p. 142) Nesse pensamento, nota-se que o verbo haver (no sentido de existir) é impessoal, portanto, numa oração sem sujeito, só poderia ser usado no singular, ocorrendo um solecismo de concordância. b) “As poucas pessoas preferem casar suas filhas com pipoqueiros do que com pastores.” (p. 49) É constante essa inadequação (muito usada na linguagem oral) do verbo preferir, que é transitivo direto e indireto, e rege a preposição a (... preferem casar suas filhas com pipoqueiros a casá-las com pastores.), ocorrendo, assim, um solecismo de regência. c) “... e que lhe acordasse e dissesse que o rapaz a estava esperando.” (p. 189) Novamente uma incorreção de morfossintaxe, pois o verbo acordar é transitivo direto e o autor deveria empregar o pronome pessoal oblíquo a (= ela) e não o lhe. E o romance continua com dezenas de inadequações, o que nos leva a pensar que, propositadamente, o acadêmico Paulo Coelho as empregou, pois essa é a linguagem que os jovens entendem e falam no dia a dia. Os adolescentes se identificam com a linguagem do livro, e o romance torna-se um best-seller, uma vez que não há mais do que 50% de novidades para o leitor. Resta a dúvida: será que as traduções do romance mantêm essas inadequações? Na tira de Calvin, o autor empregou três vícios de linguagem: No primeiro quadrinho, em “... a Susie está batendo na porta”, há uma inadequação de regência verbal, uma vez que o verbo bater rege a preposição a: “... a Susie está batendo à porta”, configurando um solecismo de regência. No terceiro quadrinho, novamente a fala de Calvin “Mas eu poderia subir no telhado...” traz uma outra inadequação de regência verbal, posto que o verbo subir rege a preposição a: “Mas eu poderia subir ao telhado...”, configurando outro solecismo de regência. Finalmente, no quarto quadrinho, a fala do pai apresenta uma redundância (ou pleonasmo vicioso) em “... se eu tivesse feito isso há alguns anos atrás”, com a repetição de há e atrás, ambos indicando tempo decorrido. Vale ressaltar que as histórias em quadrinhos, normalmente, trazem exemplos de linguagem popular, não apenas na fala de crianças como também na de adultos, com a intenção de se identificar mais com o leitor que também usa essa linguagem coloquial. MAIS ALGUNS CASOS 1) O pronome indefinido adjetivo bastantes concorda em número com o substantivo a que se refere (erros). O mesmo pronome pluralizado pode aparecer posposto ao substantivo: “O delegado já possui provas bastantes para incriminar o réu” (= muitas provas). 2) Os dois numerais fracionários adjetivos concordam em gênero e número com o substantivo: o primeiro concorda com dia (masculino singular), e o segundo, com o substantivo implícito hora (feminino singular). Meio é invariável quando funciona como advérbio de intensidade, modificando um adjetivo. É nesse ponto que muitos se enganam, dizendo, por exemplo, que “a mulher estava meia aborrecida”, quando o correto é meio aborrecida. Devemos dizer também “A porta do carro se encontra meio aberta”, “A mãe ficou meio preocupada”. Na língua atual, portanto, meio (advérbio) deve manter-se invariável. 3) A flexão do adjetivo composto só ocorre com o último elemento, ficando o primeiro invariável. Temos o mesmo procedimento com três adjetivos: Tratase de reuniões sino-nipo-germânicas. Os três exemplos acima são casos de solecismo de concordância. No Brasil, é uma questão de cortesia responder “muito obrigado” a alguém que tenha feito um favor, uma amabilidade. Entre as diversas acepções, obrigado quer dizer “agradecido, grato, reconhecido”. Sendo um adjetivo biforme, ele possui as flexões de gênero e de número: em qualquer situação, o homem diz sempre “obrigado”, e a mulher, “obrigada”. Exemplificando: Joana saiu e nem disse obrigada; as irmãs, sim, disseram muito obrigadas. 4) Os verbos impessoais (unipessoais) são empregados na terceira pessoa do singular. Um dos casos é o verbo haver no sentido de existir, ocorrer, acontecer, ou tempo decorrido. A impessoalidade passa para o verbo auxiliar. Com o verbo existir, regular,ocorre a concordância com o sujeito: Devem existir outros novos projetos. 5) O pronome apassivador se é empregado com os verbos transitivos; estes concordam normalmente em número e pessoa com o sujeito. Forma-se a passiva pronominal (ou sintética). Se passarmos para a passiva analítica, obteremos: Móveis usados são comprados. O mesmo desvio apareceu assim: “As soluções que se adota para as questões cotidianas levam isso em consideração?” (Folha Educação, ago/set-99) = As soluções são adotadas. 6) O se como índice de indeterminação do sujeito traz sempre o verbo na terceira pessoa do singular, formando, assim, o sujeito indeterminado (não se pode determinar quem precisa de secretárias). Temos, dessa forma, mais três casos de solecismo de concordância. Temos, dessa forma, mais três casos de solecismo de concordância. Leia o que um colunista escreveu num jornal: “Mas quando chegou os anos 80, o compositor Cazuza compôs a música ‘Ideologia’, já expressando o fim dos movimentos culturais e o avanço do individualismo”. Não resta dúvida de que o verbo chegar concorda em número e pessoa com o sujeito “os anos 80”, obtendo-se: “Mas quando chegaram os anos 80...”. 7) O verbo assistir é polissêmico. No sentido de ver, presenciar é transitivo indireto e rege a preposição a. Assim como o aspirar, o visar, esse verbo não aceita o pronome oblíquo lhe. “— Você assistiu ao jogo?” “— Sim, assisti a ele.” 8) A regência dos verbos perdoar, pagar e agradecer depende do complemento verbal: se for “coisa”, funciona como objeto direto, sem preposição (a ofensa); se for “pessoa”, funciona como objeto indireto, e rege preposição a. Nunca é demais lembrar a oração do padre-nosso (ou pai-nosso), que é perfeita, e traz as duas regências do verbo perdoar: “... perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido...” (objeto direto = as nossas ofensas [coisa]; objeto indireto = nos e a quem [pessoas]). 9) No prefixo pre- já existe a ideia de anterioridade; daí não haver propriedade o uso de modificadores tais como mais, mil vezes, muito mais, antes, milhões de vezes, etc. O verbo preferir é transitivo direto e indireto e rege a preposição a. Nos três casos acima ocorrem, portanto, exemplos de solecismo de regência. Décio Freitas escreveu: “Preferiu a escravidão à morte, e é por essa razão que, permanecendo com vida, vive como escravo”. Um jornal trouxe mais esta: “Prefiro elogiar os que trabalham do que ficar nominando os políticos que usam a hipocrisia como praxe para governar”. (= a ficar nominando). 10) Os advérbios, os pronomes e as conjunções subordinativas atraem o pronome proclítico (antes do verbo); por isso o advérbio de tempo já atrai a próclise. No Conto de Escola, Machado de Assis, nosso melhor escritor realista, empregou reiteradamente a apossínclise: “Para que me não fugisse, ia-a apalpando,...”; “Quando, porém, cheguei à esquina, já o não vi”. Portanto, podemos usar, corretamente, um pronome pessoal oblíquo antes ou depois do advérbio não, apenas: “Ela ainda me não disse a verdade.” ou “Ela ainda não me disse a verdade”. 11) Na linguagem escrita, nunca se começa frase com pronome oblíquo; essa é uma característica da linguagem falada e dos poemas modernos, em que se emprega a linguagem coloquial. 12) Nunca ocorre ênclise ao particípio. Se a oração iniciar-se por verbo auxiliar mais um verbo no particípio, só podemos empregar a ênclise ao auxiliar. Temos, assim, três casos de solecismo de colocação pronominal. EXEMPLOS À NOSSA VOLTA Uma agência bancária fez a seguinte publicidade: Prestígio é quando a pessoa que te atende também entende você. Saber quem você é, entender o seu momento de vida, oferecer o benefício que você precisa. Porque só é perfeito para nós quando é perfeito para você. Assim como em outras publicidades, em que a mensagem está centrada no receptor (tu/você), percebe-se claramente o predomínio da função conativa (ou apelativa) da linguagem. Além da falta de uniformidade de tratamento (te/você), nota-se uma inadequação na regência do verbo precisar, que é transitivo indireto e rege a preposição de: “... oferecer o benefício de que você precisa”, brindando o leitor com um solecismo de regência. Se alguém escrever: “A gente não respondemos o questionário porque não recebemo- lo a tempo”, estará cometendo três solecismos: de concordância (A gente não respondeu..., ou Nós não respondemos...); de regência (respondeu ao questionário), pois o verbo responder é transitivo indireto e rege preposição a; e de colocação (porque não o recebemos... ou porque o não recebemos...), uma vez que o advérbio não atrai o pronome antes da forma verbal. Enfim, todas as mídias trazem casos frequentes de solecismos. Quer se trate de uma inadequação, quer seja vício de linguagem, é fundamental que as pessoas aprendam a norma padrão culta da língua portuguesa, visando a falar e a escrever com clareza, objetividade e, sobretudo, com correção.