Calendário de 2006

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Solecismo: inadequação ou vício de linguagem?
Não somente em textos literários (romance, conto, crônica, novela), mas
também em textos jornalísticos (jornal, revista, televisão), é muito frequente
lermos e ouvirmos alguns vícios de linguagem, tais como a ambiguidade
(duplo sentido), a redundância (pleonasmo vicioso), o cacófato (formação de
palavras obscenas) e o solecismo, entre outros. Trataremos especificamente
do solecismo, que consiste em qualquer desvio que se comete contra a
sintaxe, podendo ser: de concordância (nominal e verbal), de regência
(nominal e verbal) e de colocação pronominal. Como o assunto é muito vasto
e a sintaxe possui bastantes regras, abordaremos o solecismo apenas com
alguns casos específicos, quer sejam mais usados, quer tragam mais
dificuldades para as pessoas que desconhecem a norma padrão da língua
portuguesa.
Tomando por base o escritor Paulo Coelho, um dos autores mais traduzidos
atualmente, citaremos alguns exemplos extraídos do seu romance O
Alquimista, um dos mais lidos pelos adolescentes e que, provavelmente,
será transformado em filme.
a) “Achou que o horizonte estava um pouco mais baixo, porque em cima do
deserto haviam centenas de estrelas.” (p. 142)
Nesse pensamento, nota-se que o verbo haver (no sentido de existir) é
impessoal, portanto, numa oração sem sujeito, só poderia ser usado no
singular, ocorrendo um solecismo de concordância.
b) “As poucas pessoas preferem casar suas filhas com pipoqueiros do que
com pastores.” (p. 49)
É constante essa inadequação (muito usada na linguagem oral) do verbo
preferir, que é transitivo direto e indireto, e rege a preposição a (... preferem
casar suas filhas com pipoqueiros a casá-las com pastores.), ocorrendo,
assim, um solecismo de regência.
c) “... e que lhe acordasse e dissesse que o rapaz a estava esperando.” (p.
189)
Novamente uma incorreção de morfossintaxe, pois o verbo acordar é
transitivo direto e o autor deveria empregar o pronome pessoal oblíquo a (=
ela) e não o lhe.
E o romance continua com dezenas de inadequações, o que nos leva a
pensar que, propositadamente, o acadêmico Paulo Coelho as empregou,
pois essa é a linguagem que os jovens entendem e falam no dia a dia. Os
adolescentes se identificam com a linguagem do livro, e o romance torna-se
um best-seller, uma vez que não há mais do que 50% de novidades para o
leitor.
Resta a dúvida: será que as traduções do romance mantêm essas
inadequações?
Na tira de Calvin, o autor empregou três vícios de linguagem:
No primeiro quadrinho, em “... a Susie está batendo na porta”, há uma
inadequação de regência verbal, uma vez que o verbo bater rege a
preposição a: “... a Susie está batendo à porta”, configurando um solecismo
de regência. No terceiro quadrinho, novamente a fala de Calvin “Mas eu
poderia subir no telhado...” traz uma outra inadequação de regência verbal,
posto que o verbo subir rege a preposição a: “Mas eu poderia subir ao
telhado...”, configurando outro solecismo de regência.
Finalmente, no quarto quadrinho, a fala do pai apresenta uma redundância
(ou pleonasmo vicioso) em “... se eu tivesse feito isso há alguns anos atrás”,
com a repetição de há e atrás, ambos indicando tempo decorrido. Vale
ressaltar que as histórias em quadrinhos, normalmente, trazem exemplos de
linguagem popular, não apenas na fala de crianças como também na de
adultos, com a intenção de se identificar mais com o leitor que também usa
essa linguagem coloquial.
MAIS ALGUNS CASOS
1) O pronome indefinido adjetivo bastantes concorda em número com o
substantivo a que se refere (erros). O mesmo pronome pluralizado pode
aparecer posposto ao substantivo: “O delegado já possui provas bastantes
para incriminar o réu” (= muitas provas).
2) Os dois numerais fracionários adjetivos concordam em gênero e número
com o substantivo: o primeiro concorda com dia (masculino singular), e o
segundo, com o substantivo implícito hora (feminino singular).
Meio é invariável quando funciona como advérbio de intensidade,
modificando um adjetivo. É nesse ponto que muitos se enganam, dizendo,
por exemplo, que “a mulher estava meia aborrecida”, quando o correto é
meio aborrecida. Devemos dizer também “A porta do carro se encontra meio
aberta”, “A mãe ficou meio preocupada”. Na língua atual, portanto, meio
(advérbio) deve manter-se invariável.
3) A flexão do adjetivo composto só ocorre com o último elemento, ficando o
primeiro invariável. Temos o mesmo procedimento com três adjetivos: Tratase de reuniões sino-nipo-germânicas.
Os três exemplos acima são casos de solecismo de concordância.
No Brasil, é uma questão de cortesia responder “muito obrigado” a alguém
que tenha feito um favor, uma amabilidade. Entre as diversas acepções,
obrigado quer dizer “agradecido, grato, reconhecido”. Sendo um adjetivo
biforme, ele possui as flexões de gênero e de número: em qualquer situação,
o homem diz sempre “obrigado”, e a mulher, “obrigada”. Exemplificando:
Joana saiu e nem disse obrigada; as irmãs, sim, disseram muito obrigadas.
4) Os verbos impessoais (unipessoais) são empregados na terceira pessoa
do singular. Um dos casos é o verbo haver no sentido de existir, ocorrer,
acontecer, ou tempo decorrido. A impessoalidade passa para o verbo
auxiliar. Com o verbo existir, regular,ocorre a concordância com o sujeito:
Devem existir outros novos projetos.
5) O pronome apassivador se é empregado com os verbos transitivos; estes
concordam normalmente em número e pessoa com o sujeito. Forma-se a
passiva pronominal (ou sintética). Se passarmos para a passiva analítica,
obteremos: Móveis usados são comprados.
O mesmo desvio apareceu assim: “As soluções que se adota para as
questões cotidianas levam isso em consideração?” (Folha Educação,
ago/set-99) = As soluções são adotadas.
6) O se como índice de indeterminação do sujeito traz sempre o verbo na
terceira pessoa do singular, formando, assim, o sujeito indeterminado (não
se pode determinar quem precisa de secretárias). Temos, dessa forma, mais
três casos de solecismo de concordância.
Temos, dessa forma, mais três casos de solecismo de concordância.
Leia o que um colunista escreveu num jornal: “Mas quando chegou os anos
80, o compositor Cazuza compôs a música ‘Ideologia’, já expressando o fim
dos movimentos culturais e o avanço do individualismo”. Não resta dúvida de
que o verbo chegar concorda em número e pessoa com o sujeito “os anos
80”, obtendo-se: “Mas quando chegaram os anos 80...”.
7) O verbo assistir é polissêmico. No sentido de ver, presenciar é transitivo
indireto e rege a preposição a. Assim como o aspirar, o visar, esse verbo não
aceita o pronome oblíquo lhe. “— Você assistiu ao jogo?” “— Sim, assisti a
ele.”
8) A regência dos verbos perdoar, pagar e agradecer depende do
complemento verbal: se for “coisa”, funciona como objeto direto, sem
preposição (a ofensa); se for “pessoa”, funciona como objeto indireto, e rege
preposição a.
Nunca é demais lembrar a oração do padre-nosso (ou pai-nosso), que é
perfeita, e traz as duas regências do verbo perdoar: “... perdoai-nos as
nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido...”
(objeto direto = as nossas ofensas [coisa]; objeto indireto = nos e a quem
[pessoas]).
9) No prefixo pre- já existe a ideia de anterioridade; daí não haver
propriedade o uso de modificadores tais como mais, mil vezes, muito mais,
antes, milhões de vezes, etc. O verbo preferir é transitivo direto e indireto e
rege a preposição a.
Nos três casos acima ocorrem, portanto, exemplos de solecismo de
regência.
Décio Freitas escreveu: “Preferiu a escravidão à morte, e é por essa razão
que, permanecendo com vida, vive como escravo”. Um jornal trouxe mais
esta: “Prefiro elogiar os que trabalham do que ficar nominando os políticos
que usam a hipocrisia como praxe para governar”. (= a ficar nominando).
10) Os advérbios, os pronomes e as conjunções subordinativas atraem o
pronome proclítico (antes do verbo); por isso o advérbio de tempo já atrai a
próclise.
No Conto de Escola, Machado de Assis, nosso melhor escritor realista,
empregou reiteradamente a apossínclise: “Para que me não fugisse, ia-a
apalpando,...”; “Quando, porém, cheguei à esquina, já o não vi”. Portanto,
podemos usar, corretamente, um pronome pessoal oblíquo antes ou depois
do advérbio não, apenas: “Ela ainda me não disse a verdade.” ou “Ela ainda
não me disse a verdade”.
11) Na linguagem escrita, nunca se começa frase com pronome oblíquo;
essa é uma característica da linguagem falada e dos poemas modernos, em
que se emprega a linguagem coloquial.
12) Nunca ocorre ênclise ao particípio. Se a oração iniciar-se por verbo
auxiliar mais um verbo no particípio, só podemos empregar a ênclise ao
auxiliar.
Temos, assim, três casos de solecismo de colocação pronominal.
EXEMPLOS À NOSSA VOLTA
Uma agência bancária fez a seguinte publicidade:
Prestígio é quando a pessoa que te atende também entende você.
Saber quem você é, entender o seu momento de vida, oferecer o benefício
que você precisa.
Porque só é perfeito para nós quando é perfeito para você.
Assim como em outras publicidades, em que a mensagem está centrada no
receptor (tu/você), percebe-se claramente o predomínio da função conativa
(ou apelativa) da linguagem. Além da falta de uniformidade de tratamento
(te/você), nota-se uma inadequação na regência do verbo precisar, que é
transitivo indireto e rege a preposição de: “... oferecer o benefício de que
você precisa”, brindando o leitor com um solecismo de regência.
Se alguém escrever: “A gente não respondemos o questionário porque não
recebemo- lo a tempo”, estará cometendo três solecismos: de concordância
(A gente não respondeu..., ou Nós não respondemos...); de regência
(respondeu ao questionário), pois o verbo responder é transitivo indireto e
rege preposição a; e de colocação (porque não o recebemos... ou porque o
não recebemos...), uma vez que o advérbio não atrai o pronome antes da
forma verbal.
Enfim, todas as mídias trazem casos frequentes de solecismos. Quer se
trate de uma inadequação, quer seja vício de linguagem, é fundamental que
as pessoas aprendam a norma padrão culta da língua portuguesa, visando a
falar e a escrever com clareza, objetividade e, sobretudo, com correção.
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