Vôo panorâmico da “aventura antropológica” Juarez Tadeu de Paula Xavier* Introdução A Antropologia é a ciência que estuda o homem, no sentido lato da expressão (gênero humano). Em sua feição científica, ela surge na segunda metade do século XIX, na esteira do desenvolvimento das Ciências Sociais. Desde então, constituiu um amplo leque de paradigmas – metodologias de abordagem, de pesquisa e de interpretação – que formam as chamadas Teorias Antropológicas Clássicas – as pioneiras – e as Contemporâneas (ou Modernas), que estudam e interpretam as dimensões biológicas, culturais e sociais do ser humano. A Antropologia (anthropos, pessoa/homem; logos, razão) é a ciência centrada no ser humano e em suas realizações tangíveis e intangíveis – material e imaterial –, no espaço histórico e no eixo do tempo, focada no estudo do homem e nos seus feitos sociais e culturais. O estudo do multiverso – universo material e universo imaterial – do homem atribuiu à Antropologia três aspectos fundamentais para o seu campo de pesquisa e estudo: o estudo do homem na qualidade de elemento integrante de grupos organizados, organizações e formas coletivas de ação social; o estudo da totalidade do homem como um ser histórico, com suas crenças, usos e costumes, filosofia, linguagem e representações; e o estudo do conhecimento psicossomático do homem e de sua evolução. Segundo Laplantine, “só pode ser considerada como antropológica uma abordagem integrativa que objetive levar em consideração as múltiplas dimensões do ser humano em sociedade” (1988, p. 16). A Antropologia é o estudo do homem por inteiro, em todas as sociedades, em todas as suas dimensões e épocas. * Doutor e Mestre pelo Programa de Pós-Graduação e Integração da América Latina da Universidade de São Paulo (PROLAM/USP) – linha de pesquisa Comunicação e Cultura. Líder do grupo de pesquisa “Laboratório de Observação de Mídias Radicais”, credenciado no CNPq. Pesquisador do universo cultural afro-descendente. Jornalista e professor universitário. 10 | Teorias Antropológicas Campos de estudo da Antropologia Como ciência, a Antropologia tem dois braços de estudos: a Antropologia Física (Biológica) e a Antropologia Cultural. A Antropologia Física estuda a natureza do homem, suas origens e evolução, estrutura anatômica, processos fisiológicos e características raciais, antigas e modernas. Divide-se em: ::: Paleontologia Humana (palaios, antigo; onto, ser; logos, estudo) ou Paleoantropologia – estuda a origem da evolução humana dos primatas ao homem moderno. As fases da evolução humana são: ::: Australopithecus (austral, sul; pithecus, macaco) – das espécies Africanus, Robustus, Anamensis, Afarensis, Boisel ::: Homo habilis ::: Homo erectus ::: Homo sapiens primitivo ::: Homo sapiens ::: Homo sapiens sapiens ::: Somatologia (somato, corpo humano; logos, estudo) – estuda as variedades humanas (tipos sangüíneos, metabolismo, adaptação); ::: Raciologia (raça, etnia; logos, estudo) – estuda a história racial do homem, suas misturas e características físicas; ::: Antropometria (anthropos, homem; metria, medida) – estuda as medidas do corpo humano (crânio e ossos). A Antropologia Cultural é o campo mais amplo dos estudos antropológicos. Ela estuda as culturas humanas no tempo e no espaço, seus desdobramentos, suas formas de construções simbólicas e suas representações. Seu campo de pesquisa se divide em: ::: Arqueologia (archaîos, antigo; logos, estudo) – ramo que estuda as culturas remotas, subdividida em Arqueologia Clássica, que estuda as antigas civilizações letradas (Egito, Grécia, Mesopotâmia), e Antropologia Arqueológica, que estuda os primórdios da cultura das populações extintas (Paleolítico – de 500 000 a 10 000 anos –, Mesolítico – 12 000 a 10 000 anos – e Neolítico – 10 000 anos)1. ::: Etnografia (éthnos, povos; graphein, escrever) – ramo da ciência da cultura que descreve as sociedades humanas. ::: Etnologia (éthnos, povos; logos, estudo) – ramo da ciência da cultura em que os pesquisadores utilizam os dados coletados pelos etnógrafos. ::: Lingüística – ramo que estuda a diversidade da língua humana (ciência da linguagem). 1 Paleolítico (Idade da Pedra Lascada – antiga); Mesolítico (Idade da Pedra “Média” – período intermediário); Neolítico (Idade da Pedra Polida nova). Vôo panorâmico da “aventura antropológica” | 11 ::: Folclore – ramo que estuda as manifestações espontâneas da cultura de grupos urbanos e rurais, conjunto das tradições, conhecimentos, crenças, lendas de um povo, expressos em seus hábitos e costumes cotidianos. ::: Antropologia Social – ramo que estuda os processos culturais e sociais de uma sociedade ou instituição. ::: Cultura e Personalidade – ramo que estuda as inter-relações entre a cultura e as personalidades. Pólos de estudo da Antropologia Como ciência que estuda o ser humano e suas produções materiais e imateriais, nos aspectos físicos e culturais, a Antropologia debruça-se sobre cinco pólos principais de estudos: ::: Antropologia Biológica – é o estudo das variações das características físicas e biológicas do homem, nos eixos de espaço e tempo, as relações morfológicas e o meio (geológico, geográfico e social) e a evolução dessas particularidades. Essa parte da Antropologia, longe de consistir apenas no estudo das formas de crânios, mensurações do esqueleto, tamanho, peso, cor da pele, anatomia comparada das raças e dos sexos, interessa-se em especial – desde os anos 1950 – pela genética das populações, que permite discernir o que diz respeito ao inato e ao adquirido. (LAPLANTINE, 1988, p. 17) ::: Antropologia Pré-Histórica – é o estudo do homem através dos vestígios materiais enterrados no solo (ossos e marcas humanas). “O especialista em pré-história recolhe, pessoalmente, objetos do solo. Ele realiza um trabalho de campo, como o realizado na Antropologia Social na qual se beneficia de depoimentos vivos” (LAPLANTINE, 1988, p. 18). ::: Antropologia Lingüística – é o estudo da diversidade das línguas humanas em três aspectos: ::: etnolingüísticas (como os homens pensam e vivem) – estudo dos textos escritos e orais; ::: etnociência (como os homens interpretam seu próprio saber e saber-fazer). ::: Antropologia Psicológica – é o estudo dos processos e do funcionamento do psiquismo humano; estuda a mente e os processos mentais e sociais do ser humano em sociedade. ::: Antropologia Social e Cultural (ou Etnografia) – é o estudo do modo de produção econômica, das formas de produção técnica, da organização social e da cultura, dos sistemas de conhecimento de sua difusão, do sistema de parentesco, da língua, das formas de produção artística, da psicologia social, das crenças e da religião. Teorias Antropológicas As Teorias Antropológicas – Clássicas e Contemporâneas (Modernas) – construíram seus legados científicos a partir da segunda metade do século XIX. Elas sucederam-se na linha do tempo, ampliaram 12 | Teorias Antropológicas e consolidaram paradigmas fundamentais – modelos e formas de abordagens, estudos e observações – para a interpretação dos modos de vida – biológico, social e cultural – do homem. Nessa faixa de tempo, as teorias convergiam e coincidiram em diversos aspectos metodológicos e conceituais, divergiam e se afastaram em diversos outros pontos e juntaram-se em aspectos pontuais. A consolidação da disciplina experimentou arranjos conceituais, contradições teóricas, revisões e ampliações de abordagens e interpretações, como as demais disciplinas das Ciências Sociais (Sociologia, História, Filosofia e Línguas). Os principais centros de elaboração teórica e conceitual – Inglaterra, França, Estados Unidos, Alemanha – ampliaram as possibilidades de estudos e interpretações das produções, históricas e contemporâneas dos diversos grupos humanos (isolados ou em conjunto), em todos os continentes (Europa, América, África, Ásia e Oceania), e em grupos sociais com grandes diversidades culturais e organizativas. Em conseqüência desse processo, produziu-se um amplo painel com as várias manifestações humanas, pontilhadas pela diversidade nas formas de saber, saber-fazer e ser da humanidade. Esse processo não se deu de forma linear e reta. As várias “escolas ”retomavam, ampliavam, revisavam e “reinventavam” novas formas do olhar antropológico, abordagens e interpretações. Na arquitetura geral das teorias, entretanto, elas podem ser alinhadas, de forma geral, na seguinte linha do tempo, a partir do século XVI: 1. Literatura “etnográfica” da diversidade e alteridade cultural; 2. Evolucionismo Social; 3. Difusionismo; 4. Escola Sociológica Francesa; 5. Funcionalismo Britânico; 6. Culturalismo Norte-Americano; 7. Estruturalismo; 8. Antropologia Interpretativa; 9. Antropologia Pós-Moderna ou Crítica. Para efeitos didáticos, essa linha é adotada como “modelo teórico” de apresentação dos paradigmas das escolas, que formam as Teorias Antropológicas, sem, entretanto, caracterizá-la como uma “forma congelada”, como uma linha reta. Articulação do olhar “etnográfico” Como ciência, a Antropologia é filha do século XIX. Porém, antes dessa fase, registram-se várias iniciativas de crônicas “etnográficas” feitas por viajantes, guerreiros, religiosos, exploradores, desde a antigüidade clássica. Na Grécia antiga, as crônicas de Heródoto (século V a.C. – 485 [?]-420) registram suas observações sobre os costumes, comportamentos, hábitos e usos, produção material e representação imaterial dos povos visitados pelo pensador grego. Mas a produção dos viajantes do século XVI, com as descobertas de novos povos e “mundos”, trouxe a temática da alteridade e diversidade humanas para o palco central das narrativas, nos primórdios e início da reflexão antropológica. Vôo panorâmico da “aventura antropológica” | 13 As cartas, crônicas e relatos comerciais dos viajantes pintam painéis da diversidade humana em vários pontos do mundo. Missionários, militares e, acima de tudo, os administradores descrevem os povos e suas produções, com variados graus de precisão. Registram-se as qualidades da terra, sua fauna e flora; a topografia (descrição minuciosa de uma localidade) das costas e do interior; o sistema de parentesco e as formas de organização política, econômica, cultural e religiosa dos “povos do novo mundo”. A Carta de Pero Vaz de Caminha (1450-1500) – escritor português que exerceu a função de escrivão da armada do navegador Pedro Álvares Cabral (1467 [1468]- 1520 [1526]) –, que narra a chegada dos portugueses ao Brasil, é um modelo típico desses rudimentos do discurso etnográfico. Datada de 1500, do Porto Seguro da Ilha de Vera Cruz, sexta-feira, “primeiro dia de maio”, a carta descreve o impacto que a nova paisagem humana causou aos navegadores portugueses, quando eles fizeram o primeiro contato com os habitantes locais: A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem-feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam de cobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto. Ambos traziam os beiços de baixo furados e metidos neles seus ossos brancos e verdadeiros, de comprimento duma mão travessa, da grossura dum fuso de algodão, agudos na ponta como um furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita como roque de xadrez, ali encaixado de tal sorte que não os molesta, nem os estorva no falar, no comer ou no beber. (CAMINHA, 1500) Pero Vaz de Caminha descreve a topografia da costa brasileira, a fauna e as riquezas da natureza, os modos e costumes dos habitantes locais, suas formas de organização social, cultural e religiosa e suas relações com os navegadores. A riqueza de detalhes, a precisão das descrições, o esquadrinhamento da localidade conferem ao relato status etnográfico que permitiu, mais tarde, a ocupação de amplas faixas de terra no novo território. Antropologia Evolucionista Social No início da jornada da Antropologia como ciência, predominou a Teoria do Evolucionismo Social. O declínio das explicações teológicas sobre o homem e a natureza, pressuposto do Iluminismo2, tonificou a procura pelas explicações científicas. A principal característica da Teoria Evolucionista é a sistematização do conhecimento das sociedades “primitivas”, de primeira origem, dos primeiros tempos. Eram tidas como estágios inferiores do desenvolvimento alcançado pelas sociedades “civilizadas”, avançadas nos planos técnico, social e científico: todas as formas de organização das condições materiais e culturais dos homens passariam, necessariamente, dos estágios primitivos aos civilizados. Os teóricos do Evolucionismo formularam o conceito de unidade psíquica do homem, em estágios diferentes, entre os “primitivos” e os “civilizados”: os grupos étnicos das diversas áreas geográficas do planeta faziam parte da grande família humana, mas se encontravam em fases distintas de evolução e desenvolvimento. Segundo Laplantine, 3 o Evolucionismo encontrará sua formulação mais sistemática e mais elaborada na obra de Morgan e particularmente em ancient society (sociedade antiga), que se tornará o documento de referência para a imensa maioria dos antropó- 2 Movimento surgido na França do século XVII que defendia o domínio da razão sobre a visão teocêntrica, religiosa, que dominava a Europa. Segundo os filósofos iluministas, essa forma de pensamento tinha o propósito de iluminar as trevas em que se encontrava a sociedade. 3 Morgan, Lewis H. La Société Archaïque. Paris: Anthropos, 1971. 14 | Teorias Antropológicas 4 logos do final do século 19, bem como na lei de Haeckel . [...] a ontogênese reproduz a filogênese: ou seja, o indivíduo atravessa as mesmas fases que a história das espécies. [...] Disso decorre a identificação [...] dos povos primitivos aos vestígios da infância da humanidade. (LAPLANTINE, 1988, p. 65-66) Morgan conceituou três estágios de evolução da humanidade: ::: selvageria; ::: barbárie; ::: civilização. Na base dessa teoria, floreceu e etnocentrismo5 (predominância civilizatória de um grupo humano em relação a outro). No caso específico, da civilização européia em relação às demais. Antropologia Difusionista A Teoria da Antropologia Difusionista reage ao etnocentrismo da Teoria da Antropologia Evolucionista Social. Ela procura compreender a natureza das culturas de cada povo, da origem a sua extensão, de um grupo humano para outro. A corrente explica o desenvolvimento cultural pelo processo de difusão de aspectos culturais, formas culturais, de uma cultura para outra. Os diversos povos tomam de empréstimo aspectos culturais fundamentais de outros e os adaptam às suas particularidades, o que provoca a evolução da cultura e explica a diversidade das manifestações culturais. Os grupos humanos distintos absorvem “aspectos culturais” de um outro grupo, como uma tendência humana. Os antropólogos difusionistas substituem o termo raça pelo cultural e se dividem em três escolas teóricas: a inglesa, a alemão-austríaca e a norte-americana. Na escola alemã destacaram-se os antropólogos Fritz Graebner, Friedrich Ratzel, Léo Frobénius, Wilhelm Schmidt; na escola inglesa, Elliot Smith, J. Perry e W. R. R. Rivers. A escola inglesa ficou conhecida pelo nome de hiperdifusionista pelo fato de alguns dos seus teóricos levantarem a hipótese de que todas as invenções do homem têm origem na civilização egípcia. Na escola norte-americana o destaque é o antropólogo Franz Boas (1848-1942) Seus elementos básicos são a reconstituição histórica – do passado e do presente –, e o intenso trabalho de campo, com a coleta sistemática de dados primários, de dados colhidos em primeira mão. Um dos principais teóricos do Difusionismo foi o geógrafo e etnólogo alemão Friedrich Ratzel (1844-1904), “pai do conceito espaço vital”. Antropologia da Escola Sociológica Francesa A Escola Sociológica Francesa, ainda em parte submersa do universo cultural do século XIX, apresenta duas características fundamentais que contribuem para a consolidação da ciência antropológica: a definição dos fenômenos sociais como objetos de investigação socioantropológica, e o “salto quân4 Ernest Heinrich Philipp August Haeckel (1834-1919), naturalista alemão. 5 Conceito que considera as normas e valores – sociais e culturais – da própria sociedade ou cultura como base de avaliação e “julgamento” de todas as demais culturas e sociedades. Vôo panorâmico da “aventura antropológica” | 15 tico”, a grande contribuição, a definição das regras do método sociológico de investigação. As obras de Durkheim6 e , mais tarde, as obras de Marcel Mauss7 são decisivas para a elaboração dessas características conceituais. No campo da Escola Sociológica Francesa, em relação ao aspecto metódico, diz Laplantine: É preciso apreendê-lo totalmente [o fenômeno social], isto é, de fora como uma “coisa”, mas também de dentro como uma realidade vivida. É preciso compreendê-lo alternadamente tal como o percebe o observador estrangeiro (o etnólogo), mas também tal como os atores sociais vivem. [...] o que caracteriza o modo de conhecimento próprio das ciências do homem é que o observador-sujeito, para compreender seu objeto, esforça-se para viver nele mesmo a experiência deste, o que só é possível porque esse objeto é, tanto quanto ele, sujeito. (LAPLANTINE,1988, p. 91) Antropologia Funcionalista Com os dois pés fincados no século XX, a Antropologia Funcionalista inaugura uma nova fase de observação do olhar antropológico (intenso trabalho de campo), com a adoção da observação participante, quando o pesquisador submerge no oceano cultural da população estudada; desenvolve o modelo etnográfico clássico, a monografia, e estuda, de forma sistematizada e global, os conhecimentos de uma dada cultura. Há assim uma ruptura epistemológica, uma ruptura na forma de construir o conhecimento, no campo da ciência antropológica, quando o pesquisador procura conhecer as sutilezas e particularidades da cultura que ele se propõe a compreender, a estudar. Essa escola dá ênfase ao estudo das instituições, formas de organizações sociais e culturais e das suas funções para a manutenção do conjunto cultural, da totalidade da cultura de um determinado povo. Polonês radicado na Inglaterra, Bronislaw Malinowski (1884-1942) foi um dos principais protagonistas da Escola Funcionalista. Malinowski encontra-se entre os precursores do trabalho de campo, fora dos gabinetes, no fazer antropológico. Ele radicalizou no conceito de compreensão por dentro de uma cultura observada; rompeu com a especulação distante e instaurou a observação participante – quando o antropólogo olha de perto a cultura estudada –; ele tira seu modelo de estudo (o funcionalismo) das ciências naturais, como a Biologia, e estuda o homem nas dimensões social, psicológica e biológica. Sua obra Os Argonautas do Pacífico Ocidental, de 1922, é considerada o primeiro grande estudo etnográfico de peso. Antropologia Culturalista Norte-Americana A Escola Antropológica Norte-Americana pesquisa, de modo especial, a identificação dos patterns of culture (padrões culturais). Ela procura as normatizações do desenvolvimento das culturas. Franz Boas (1858-1942) foi o principal expoente dessa escola. A exemplo de Malinowski, Boas desenvolveu um intenso trabalho de campo. O antropólogo se detinha no detalhe dos detalhes, para fazer uma transcrição meticulosa da realidade. 6 Émile Durkheim (1858-1917), um dos fundadores da Sociologia moderna. Durkheim, E. As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Martin Claret, 2001. 7 Marcel Mauss (1872-1950), sociólogo e antropólogo francês. Mauss, M. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Edusp, 1974. 16 | Teorias Antropológicas Essa escola defende que as culturas, de maneira geral, são diversas, mas têm características comuns, padrões culturais. Esses padrões são resultados do agrupamento de complexos culturais. O padrão é uma norma regularizadora que estabelece os valores de aceitação e rejeição, dentro de uma determinada cultura. Diz Ruth Benedict (1989, p. 60), uma das principais expoentes dessa escola, que: esta elaboração da cultura num padrão coerente não se pode ignorar como se fosse um pormenor sem importância. O conjunto, como a ciência está a afirmar insistentemente em muitos campos, não é apenas a soma de todas as suas partes, mas o resultado de um único arranjo e única inter-relação das partes, de que resultou uma nova identidade [...]. O Culturalismo Norte-Americano exerceu influência no campo das Ciências Sociais do Brasil. Gilberto Freire (1990-1987), autor de Casa Grande e Senzala, foi discípulo de Franz Boas e parte considerável de sua abordagem da cultura brasileira teve como inspiração as teorias desenvolvidas pelo pesquisador alemão, radicado nos Estados Unidos. Antropologia Estruturalista O antropólogo francês Claude Lévi-Strauss foi um dos principais articuladores da Escola Atropológica Estruturalista. Na década de 1940, Lévi-Strauss pesquisou os princípios da organização da mente humana. Seu objetivo foi estudar as regras estruturantes das culturas presentes na mente humana. Nessa linha de pesquisa, o antropólogo francês percorreu os caminhos das teorias do parentesco, da lógica do mito, das chamadas classificações primitivas e da relação natureza versus cultura. Para Lévi-Strauss, o Estruturalismo concebe a existência de um certo número de materiais culturais sempre idênticos, como as “cartas de baralho” e o “caleidoscópio” – duas de suas metáforas preferidas – que podem ser classificadas como invariantes. As diferentes possibilidades de combinações dessas invariantes são ilimitadas. Elas constituem “leis universais que regem as atividades inconscientes do espírito” (LÉVI-STRAUSS in LAPLANTINE, 1988, p. 138). Em um caleidoscópio, a combinação de elementos idênticos sempre dá novos resultados. Mas é porque a história dos historiadores está presente nele – nem que seja na sucessão de chocalhadas que provocam as reorganizações da estrutura – e as chances para que reapareça duas vezes o mesmo arranjo são praticamente nulas. (LÉVI-STRAUSS apud LAPLANTINE, 1988, p. 138) Antropologia Interpretativa No meado da década de 1960, o antropólogo norte-americano Clifford Geertz (1926-2006) desenvolveu a Teoria da Antropologia Interpretativa. Geertz problematiza o estudo antropológico ao propor uma “leitura da leitura que os ‘nativos’ fazem de suas próprias culturas”. Ele passa a discutir o papel político e ideológico da Antropologia e de sua escrita sobre os diversos povos. O autor passa a estudar a cultura como hierarquia de significados (rede de significados tecida pelos antropólogos) e a busca por uma descrição densa, intensa, do universo cultural dos povos. Em Chicago [anos 1960] – àquela altura eu começara a lecionar e agitar – teve início e começou a se difundir um movimento mais geral [...]. Alguns, lá e em outros centros, batizaram esse desenvolvimento, ao mesmo tempo teórico e metodológico, de “antropologia simbólica”. Mas eu, encarando tudo isso como empreendimento essencialmente her- Vôo panorâmico da “aventura antropológica” | 17 menêutico, um esclarecimento e definição, e não como uma metáfrase ou decodificação, e pouco à vontade com as misteriosas e cabalísticas implicações de “símbolo”, preferi ”antropologia interpretativa”. (GEERTZ, 2001, p. 27) Antropologia Pós-Moderna ou Crítica Nos anos 1980, autores como James Clifford, Georges Marcus, Michel Fischer, Richard Price e Michel Taussig desenvolveram a Teoria da Antropologia Pós-Moderna (Crítica). A observação crítica desses antropólogos centrava-se nos recursos retóricos presentes no modelo textual das etnografias contemporâneas. Eles propõem uma mudança profunda na relação do observador com o observado, pedra de toque do estudo antropológico. Os autores propõem a relativização da autoridade do antropólogo, e de seu discurso; eles politizam a relação do antropólogo com a população observada. Essa escola considera a cultura como um processo polissêmico (plural, múltiplo), com diversas possibilidades de interpretação. Dessa forma, a etnografia é uma representação polifônica – em várias direções – da polissemia cultural, instrumento da crítica cultural: a cultura não tem compreensões únicas, unilaterais, unívocas e lineares. Antropologias Na atualidade, as narrativas antropológicas focam suas observações em aspectos centrais das sociedades contemporâneas, nos feitos e representações da vida moderna: Antropologia Urbana, Antropologia Política, Antropologia Visual, Antropologia Multirracial, entre outras abordagens possíveis. Antropologia Urbana A Antropologia Urbana estuda a dinâmica urbana da sociedade atual: ::: sua forma de organização, a distribuição populacional, formas de organização da ocupação urbana, a cidade, as práticas culturais na cidade, a cidade e sua história – a vida cotidiana, moradia e a vizinhança; ::: práticas de lazer – o tempo sagrado; ::: apropriação do espaço por grupos diferenciados – os cenários, os atores; ::: imagens da cidade – representações do espaço urbano. Antropologia Política A Antropologia Política estuda a natureza e as formas das organizações políticas, desde as sociedades antigas até as atuais; os processos de formação dos sistemas políticos; as formas de ritualização 18 | Teorias Antropológicas do poder político; a história e perspectivas dos sistemas políticos (realeza, poder divino, o colonialismo); as relações do poder com o sistema simbólico (poder, cultura, sistema de comunicação social). Antropologia Visual A Antropologia Visual visa ao estudo da produção de imagens e de suas implicações culturais na sociedade contemporânea: linguagens, meios de comunicação visual (fotografia, vídeo, televisão, cinema), informação visual urbana (outdoor, pichação, muralismo) e as mídias radicais urbanas. Antropologia das Sociedades Multirraciais A Antropologia das Sociedades Multirraciais estuda aspectos teóricos e empíricos das relações sociais inter-raciais numa dada sociedade: a construção social multirracial, pluralidade biológica e cultural; tolerância e diversidade; racismo e cidadania; conflitos e confrontos raciais; raça (etnia, cultura, civilizações, etnocentrismo, preconceito, racismo e discriminações); multiculturalismo; integracionismo; ações afirmativas; globalização e identidades. Considerações finais As Teorias Antropológicas sucederam-se na linha do tempo, desde meados do século XIX, e multiplicaram as possibilidades de compreensão integral do homem, e suas produções materiais e culturais. Elas se constituíram em paradigmas – formas de abordagem metodológicas e epistemológicas – e em um movimento contínuo formularam teses, antíteses e sínteses teóricas e conceituais para a compreensão da natureza do ser humano. Esse movimento global deu-se em razão da complexidade da natureza humana e permite ao antropólogo contemporâneo compreender o passado, estudar o presente e imaginar o futuro. Texto complementar Relaxe. Somos todos mestiços E isso só traz vantagens, afirma o cientista que é o maior estudioso das diásporas humanas (DORIA, 2007) Vôo panorâmico da “aventura antropológica” | 19 O antropólogo Darcy Ribeiro não viveu para saber, mas a premiada ginasta Daiane dos Santos parece personagem saída de seus livros: mestiça, uma brasileira ideal daquelas definidas antes de Darcy por Gilberto Freyre, por Sérgio Buarque de Holanda, é caso de estudo. Nos números coletados de seu DNA pelo professor mineiro Sérgio Danilo Pena a pedido da BBC Brasil, deu que Daiane é 40,8% européia, 39,7% africana, 19,6% ameríndia. A antropologia brasileira estudou por muitos anos esta mistura de povos até chegar à famosa conclusão de Darcy – “ser mestiço é que é bom” – mas é só de pouco tempo para cá que as ciências biológicas vêm dizer em detalhes exatamente como ela se dá. O estudo da origem genética dos povos começou nos anos 1950, na Europa, realizado por um jovem médico italiano criado nos anos do fascismo. Luigi Luca Cavalli-Sforza, entrevistado pelo Aliás, não apenas inventou uma disciplina científica. Aos 85 anos, ele é um dos mais importantes e prolíficos cientistas vivos. Um estudioso nos moldes renascentistas, no sentido de que busca informação aproximando áreas de conhecimento que não costumam se encontrar. Por exemplo: antropologia, genética e matemática. Com amplo domínio das três disciplinas, após um estudo coletando amostras genéticas de povos em todo o mundo, Cavalli-Sforza pôde traçar a história daquilo que batizou “a grande diáspora humana”. Nascemos, o Homo sapiens, na África Oriental. Por mais de metade da existência humana, permanecemos lá – e aí nos aventuramos para longe. Do Oriente Médio fomos para a Rússia; de lá, uma parte foi para a Ásia e outro grupo, mais tarde, para a Europa. Da Ásia, outro ramo seguiu para a América. Assim, em algumas dezenas de milhares de anos, fomos lentamente ganhando novos traços. Olhos puxados aqui, pele esbranquiçada ali, pernas mais longas, torsos mais fortes. O próprio europeu já é mestiço – dois terços asiático, um terço africano. As técnicas do professor Cavalli-Sforza, aplicadas no Brasil, revelam aquilo que ainda nos causa surpresa: mestiço não tem cara. Se parecemos brancos ou negros ou mulatos, índios ou não, esta aparência não diz o que somos. “O Brasil teve a boa sorte de não ver o racismo”, diz o velho cientista genovês. “Esta é uma herança dos portugueses”, completa, ecoando Darcy. Sim, ser mestiço é bom. A mistura melhora o povo – dá aquilo que os geneticistas chamam de “vigor híbrido”. 1. Ser mestiço é que é bom, como dizia Darcy Ribeiro? Talvez seja surpreendente para algumas pessoas que a aparência física, como cor da pele, não sejam bons indícios da herança genética. Os brasileiros estão certamente entre os povos mais misturados do planeta, embora não sejam os únicos. A diferença é que nenhum dos outros grupos mestiços forma um povo tão vasto. O Brasil teve a boa sorte de não ver o racismo prosperando, como costuma acontecer noutros cantos. Isso provavelmente vem de uma herança portuguesa, povo que já demonstrava predisposição pela mistura racial desde os tempos de suas primeiras colônias, na África. O estudo de nossas origens genéticas apenas confirma o que já estava claro para bons observadores: a mistura entre povos e a produção daquilo que nós geneticistas chamamos de híbridos não traz qualquer desvantagem do ponto de vista genético. Até melhora, traz uma vantagem naquilo que chamamos de “vigor híbrido”. 2. Ainda é possível dizer que existem raças humanas? As diferenças entre povos de locais geográficos distintos são claramente visíveis, caso de cor da pele e tamanho e formato das partes do corpo. Estas características refletem adaptações ao clima local que surgiram após a espécie humana se originar na África Oriental, há relativamente pouco tempo (não mais que 100 ou 150 mil anos, período bastante curto na escala evolutiva) e, naturalmente, após deixar a África, há coisa de 50 ou 60 20 | Teorias Antropológicas mil anos. De qualquer forma, essas diferenças são triviais em todos os aspectos essenciais. A grande maioria das diferenças genéticas se encontram entre um indivíduo e outro, jamais entre um povo e outro. Falando em números, mais de 90% das diferenças genéticas se dão entre duas pessoas de um mesmo povo. Apenas 10% da variação se dá entre, digamos, europeus e asiáticos, entre africanos e americanos nativos. Isso acontece porque a nossa é uma espécie muito jovem e ainda não houve tempo evolutivo para nos diferenciarmos. Quer dizer: não existem raças distintas entre os homens. 3. A idéia de etnia ainda serve para explicar algo a nosso respeito? A utilidade do conceito de “etnia” depende de sua definição. Para mim, diferenças étnicas são as diferenças entre os povos, tanto genéticas quanto culturais. As distinções culturais são compostas pelo que aprendemos na sociedade em que somos criados. É natural que tenhamos dificuldades na hora de entender se um comportamento particular é determinado genética ou culturalmente. Por exemplo: o comportamento criminoso é determinado pelos nossos genes ou pela nossa cultura? Está claro que em grande parte o que determina é a cultura. Mas é difícil excluir de todo a tendência inata em alguns casos raros. É aí que o conceito de “etnia” nos ajuda. Ele nos permite deixar para lá a questão de se algo é cultural ou genético, principalmente nos casos em que a ciência não tem ainda a capacidade de definir. 4. Que outras pistas a genética pode oferecer a respeito de nossa história humana? Em geral, os lingüistas têm uma profunda dificuldade de alcançar um consenso em uma das questões mais importantes de sua disciplina, que é a de se a linguagem surgiu uma única vez, ou se teve múltiplas origens. Isso acontece porque a maioria desses especialistas não tem interesse em estudar línguas de forma comparada. Como geneticista, estou convencido de que houve uma única origem para todas as línguas faladas atualmente. Todos os humanos vivos descendem daquele grupo relativamente pequeno que viveu na África Oriental há 100 mil anos. Esta tribo cresceu numericamente e se expandiu pelo resto do mundo, da África para o Oriente Médio, então para a Ásia e Europa. Por definição, tribos falam a mesma língua, e a linguagem, por conta de seu gigantesco potencial de comunicação, há de ter sido uma força importante sem a qual a grande migração que levou o homem a todos os cantos do planeta não teria sido possível. Todos temos a mesma capacidade intelectual de adquirir esta técnica de comunicação que é a língua. Ela, junto com nossa capacidade de inventar novas máquinas, são as características que nos diferenciam dos outros animais. Embora, sempre é bom lembrar, esta é uma questão de graus. Animais também se comunicam e inventam ferramentas. A diferença na habilidade é que é tremenda. 5. O estudo das origens dos povos pode auxiliar na resolução de conflitos políticos? Nas questões de terra, como os embates entre judeus e palestinos, não adianta saber quem estava lá primeiro. A propriedade de terras tem origem histórica, a maior parte das propriedades foi adquirida de forma violenta em guerras e, mesmo em tempos de paz, não é raro que propriedades sejam conquistadas por meios desonestos. No caso dos bascos, o problema sequer é de quem chegou primeiro. Eles são um povo muito, muito antigo. Sua língua pertence à família de línguas que se espalhou por todo o mundo antes das ondas migratórias que trouxeram as línguas faladas atualmente na Europa. Ainda há idiomas “primos” do basco que sobrevivem em muitos lugares, como no Cáucaso, na China e até mesmo entre grupos de índios americanos. Em geral, as sociedades humanas tentam desenvolver meios para minimizar os conflitos, mas ainda temos muito a caminhar até chegarmos a um acordo que leve à paz e à justiça social que desejamos. Vôo panorâmico da “aventura antropológica” | 21 Atividades 1. Na Antropologia, o treinamento do olhar é um dos exercícios mais importantes da observação participante – trabalho de campo. Saber olhar e discernir a anatomia, as formas e as cores dos objetos e sujeitos é a ante-sala da etnografia. Desenvolva uma pesquisa bibliográfica tendo como foco principal o conceito de etnografia e de observação participante. Após a pesquisa procure identificar os principais elementos culturais da sua cidade. Faça um pequeno relatório com as seguintes observações: a) Os pioneiros da cidade. b) A principal atividade econômica. 22 | Teorias Antropológicas c) Os principais recursos naturais da região. 2. A Antropologia é o estudo das manifestações materiais e imateriais de um povo. As manifestações culturais permitem conhecer melhor os costumes, hábitos, crenças e valores de um povo. Na sua região, procure identificar: a) Qual é a principal manifestação cultural da região? Vôo panorâmico da “aventura antropológica” b) Quais são as principais características? c) Como você define a participação da comunidade nessa manifestação? | 23 24 3. | Teorias Antropológicas Que teoria inaugura a Antropologia como ciência, em que época isso ocorre, qual sua principal característica e que conceito de homem foi formulado por ela?