[Filosofia, preconceito e Filosofia, preconceito e linguagem linguagem]

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cavernas e princípios da ciência mais moderna e
progressista; preconceitos de todas as fases históricas
passadas, grosseiramente localistas, e intuições de uma
futura filosofia que será própria do gênero humano
mundialmente unificado. Criticar a própria concepção de
mundo, portanto, significa torná-la unitária e coerente e
elevá-la até o ponto atingido pelo pensamento mundial
mais elevado. Significa, portanto, criticar também a
própria filosofia até hoje existente, na medida em que ela
deixou estratificações consolidadas na filosofia popular. O
início da elaboração crítica é a consciência daquilo que
somos realmente, isto é, um “conhece-te a ti mesmo”
como produto do processo histórico até hoje
desenvolvido, que deixou em ti uma infinidade de traços
recebidos sem benefício no inventário. Deve-se fazer,
inicialmente, este inventário.
1.1 - A filosofia como atividade social.
[Filosofia, preconceito e
linguagem]
linguagem]
Deve-se discutir o preconceito, muito difundido, de que a
filosofia seja algo muito difícil pelo fato de ser a atividade
intelectual própria de uma de uma determinada categoria
de cientistas especializados ou de filósofos profissionais e
sistemáticos.
Deve-se,
portanto,
demonstrar
preliminarmente, que todos os homens são “filósofos”,
definindo os limites e as características desta “filosofia
espontânea” peculiar a “todo o mundo”, isto é, da
filosofia que está contida:
1) na própria linguagem, que é um conjunto de noções e
de conceitos determinados e não, simplesmente, de
palavras gramaticamente vazias de conteúdo;
NOTA II. Não se pode separar a filosofia da História da
Filosofia, nem a cultura da História da Cultura. No
sentido mais imediato e determinado, não podemos ser
filósofos – isto é, ter uma concepção do mundo
criticamente coerente – sem a consciência da nossa
historicidade, da fase de desenvolvimento por ela
representada e do fato de que ela está em contradição
com outras concepções ou com elementos de outras
concepções. A própria concepção do mundo responde a
determinados problemas colocados pela realidade, que
são bem determinados e “originais” em sua atualidade.
Como é possível pensar o presente, e o presente bem
determinado, com um pensamento elaborado por
problemas de um passado bastante remoto e superado?
Se isto ocorre, nós somos “anacrônicos” em face da época
em que vivemos, nós somos fosseis e não seres modernos.
Ou, pelo menos, somos “compostos” bizarramente. E
ocorre, de fato, que grupos sociais que, em determinados
aspectos, exprimem a mais desenvolvida modernidade, em
outros manifestam-se atrasados com relação à sua
própria posição social, sendo, portanto, incapazes de
completa autonomia histórica.
2) no senso comum e no bom-senso;
3) na religião popular e, conseqüentemente, em todo o
sistema de crenças, superstições, opiniões, modos de ver e
de agir que se manifestam naquilo que se conhece
geralmente por “folclore”.
Após demonstrar que todos são filósofos, ainda que a seu
modo, inconscientemente (porque, inclusive, na mais
simples manifestação de uma atividade intelectual
qualquer, na “linguagem”, está contida uma determinada
concepção de mundo), passemos ao segundo momento,
ao momento da crítica e da consciência, ou seja, ao
seguinte problema: – é preferível “pensar” sem disto ter
consciência crítica, isto é, “participar” de uma concepção
de mundo “imposta” mecanicamente pelo ambiente
exterior, ou seja, por um dos grupos sociais nos quais
todos estão automaticamente envolvidos desde sua
entrada no mundo consciente (e que pode ser a própria
aldeia ou a província, pode se originar na paróquia e na
“atividade intelectual” do vigário ou do velho patriarca,
cuja “sabedoria” dita leis, na mulher que herdou a
sabedoria das bruxas ou no pequeno intelectual
avinagrado pela própria estupidez e pela impotência para
a ação) ou é preferível elaborar a própria concepção do
mundo de uma maneira crítica e consciente e, portanto,
em ligação com este trabalho do próprio cérebro, escolher
a própria esfera de atividade, participar ativamente na
produção da história do mundo, ser o guia de si mesmo e
não aceitar do exterior, passiva e servilmente, a marca da
própria personalidade?
NOTA III. Se é verdade que toda linguagem contém os
elementos de uma concepção do mundo e de uma cultura,
será igualmente verdade que, a partir da linguagem de
cada um, é possível julgar da maior ou menor
complexidade da sua concepção do mundo. Quem fala
somente o dialeto e compreende a língua nacional em
graus diversos, participa necessariamente de uma intuição
do mundo mais ou menos restrita e provinciana,
fossilizada, anacrônica em relação às grandes correntes de
pensamento que dominam a história mundial. Seus
interesses serão restritos, mais ou menos corporativos ou
economicistas, não universais. Se nem sempre é possível
aprender outras línguas estrangeiras a fim de colocar-se
em contato com vidas culturais diversas, deve-se pelo
menos conhecer bem a língua nacional. Uma grande
cultura pode traduzir-se na língua de outra grande
cultura, isto é, uma grande língua nacional historicamente
rica e complexa pode traduzir qualquer outra grande
cultura, ou seja, ser uma expressão mundial. Mas, com
um dialeto, não é possível fazer a mesma coisa.
NOTA I. Pela própria concepção de mundo, pertencemos
sempre a um determinado grupo, precisamente o de todos
os elementos sociais que partilham de um mesmo modo
de pensar e agir. Somos conformistas de algum
conformismo, somos sempre homens-massa ou homenscoletivos. O problema é o seguinte: qual é o tipo histórico
do conformismo e do homem-massa do qual fazemos
parte? Quando a concepção do mundo não é crítica e
coerente, mas ocasional e desagregada, pertencemos
simultaneamente a uma multiplicidade de homens-massa,
nossa própria personalidade é composta de uma maneira
bizarra: nela se encontram elementos dos homens das
NOTA IV. Criar uma nova cultura não significa apenas
fazer individualmente descobertas “originais”; significa
1
também, e sobretudo, difundir criticamente verdades já
descobertas, “socializá-las, por assim dizer; transformálas, portanto, em base de ações vitais, em elemento de
coordenação e de ordem intelectual e moral.
Idade Média; o problema de saber-se qual é o original, se
o espírito se a natureza, este problema revestia para a
Igreja a seguinte forma aguda: o mundo foi criado por
Deus, ou existe de toda a eternidade?
Fonte: GRAMSCI, Antonio. Concepção Dialética da
História [fragmento].
Segundo a resposta que dessem a esta pergunta, os
filósofos dividiam-se em dois grandes campos. Os que
afirmavam o caráter primordial do espírito em relação à
natureza e admitiam, portanto, em última instância, uma
criação do mundo, de uma ou de outra forma (e para
muitos filósofos, como para Hegel, por exemplo, a gênese
é bastante mais complicado e inverossímil que na religião
cristã), firmavam o campo do idealismo. Os outros, que
viam a natureza como o elemento primordial, pertencem
às diferentes escolas do materialismo.
--------------------------------------------------------1.2 – A questão fundamental da filosofia.
[Idealismo, Materialismo e
Dialética
As expressões idealismo e materialismo não tiveram, de
início, outro significado, e aqui jamais as empregaremos
com outro sentido.
A grande questão fundamental de toda filosofia, em
particular da filosofia moderna, é a da relação entre o
pensamento e o ser. Desde os remotíssimos tempos em
que o homem, mergulhado na mais completa ignorância
sobre seu próprio organismo, e excitado pelas aparições
que sobrevinham em seus sonhos, chegou à idéia de que
seus pensamentos e suas sensações não eram funções de
seu corpo - e sim de uma alma especial que morava nesse
corpo e o abandonava na hora da morte; desde essa
época, o homem teve forçosamente que refletir sobre as
relações dessa alma com o mundo exterior. Se, no
momento da morte, ela se separava do corpo e continuava
a existir, não havia razão alguma para atribuir-lhe
também uma morte separada. Surgiu assim a idéia da
imortalidade da alma: uma idéia que, nessa época de
desenvolvimento, não aparecia absolutamente como um
consolo, mas como uma fatalidade contra a qual nada se
podia fazer, e não raro, como entre os gregos, como uma
verdadeira desgraça. Não foi a necessidade religiosa de
um conforto moral, mas a perplexidade decorrente de
uma ignorância generalizada, o fato de não se saber, após
a morte do corpo, o que fazer com a alma - já que se
admitira sua existência - que levou, em geral, à fábula
enfadonha da imortalidade do homem. Por caminhos
muito semelhantes, através da personificação das
potências naturais, surgiram também os primeiros deuses
que, em seguida, com o desenvolvimento da religião,
passaram a tomar cada vez mais um aspecto extraterreno,
até que, finalmente, por um processo natural de
abstração, quase diríamos de destilação, que se produz no
curso do progresso espiritual, desses numerosos deuses
mais ou menos circunscritos, e cujos campos de ação se
limitavam mutuamente, brotou na mente dos homens a
idéia de um Deus único e exclusivo, próprio das religiões
monoteístas.
O problema da relação entre o pensamento e o ser, entre o
espírito e a natureza, o problema de toda a filosofia, tem
assim, tanto quanto a religião, suas raízes na ignorância e
nas concepções limitadas do período do selvagismo. Não
pôde, entretanto, apresentar-se com toda a nitidez, nem
pôde adquirir sua inteira significação, senão depois que a
sociedade européia despertou do prolongado sono
hibernal da Idade Média cristã. O problema da situação
do pensamento em relação ao ser, problema que, aliás,
teve também grande importância entre os escolásticos da
Fonte: ENGELS, Friedrich. Ludwig Feuerbach e o fim da
filosofia clássica alemã [fragmento]
--------------------------------------------------------1.3 – A Dialética.
[Dialética]
ialética]
O socialismo moderno é, em primeiro lugar, por seu
conteúdo, fruto do reflexo na inteligência, de um lado dos
antagonismos de classe que imperam na moderna
sociedade entre possuidores e despossuídos, capitalistas e
operários assalariados, e, de outro lado, da anarquia que
reina na produção. Por sua forma teórica, porém, o
socialismo começa apresentando-se como uma
continuação, mais desenvolvida e mais conseqüente, dos
princípios proclamados pelos grandes pensadores
franceses do século XVIII. Como toda nova teoria, o
socialismo, embora tivesse suas raízes nos fatos materiais
econômicos, teve de ligar-se, ao nascer, às Idéias
existentes.
Os grandes homens que, na França, iluminaram os
cérebros para a revolução que se havia de desencadear,
adotaram uma atitude resolutamente revolucionária. Não
reconheciam autoridade exterior de nenhuma espécie. A
religião, a concepção da natureza, a sociedade, a ordem
estatal: tudo eles submetiam à crítica mais impiedosa;
tudo quanto existia devia justificar os títulos de sua
existência ante o foro da razão, ou renunciar a continuar
existindo. A tudo se aplicava como rasoura única a razão
pensante. Era a época em que, segundo Hegel, "o mundo
girava sobre a cabeça" (1), primeiro no sentido de que a
cabeça humana e os princípios estabelecidos por sua
especulação reclamavam o direito de ser acatados como
base de todos os atos humanos e toda relação social, e
logo também, no sentido mais amplo de que a realidade
que não se ajustava a essas conclusões se via subvertida,
de fato, desde os alicerces até à cumieira. Todas as formas
anteriores de sociedade e de Estado, todas as leis
tradicionais, foram atiradas no monturo como irracionais;
até então o mundo se deixara governar por puros
2
preconceitos; todo o passado não merecia senão
comiseração e desprezo, Só agora despontava a aurora, o
reino da razão; daqui por diante a superstição, a injustiça,
o privilégio e a opressão seriam substituídos pela verdade
eterna, pela eterna justiça, pela igualdade baseada na
natureza e pelos direitos Inalienáveis do homem.
crítico, à comparação e, consequentemente, a divisão em
classes, ordens e espécies. Por isso, os rudimentos das
ciências naturais exatas não foram desenvolvidos senão a
partir dos gregos do período alexandrino (6) e, mais tarde,
na Idade Média, pelos árabes; a ciência autêntica da
natureza data semente da segunda metade do século XV
e, desde então, não fez senão progredir a ritmo acelerado.
A análise da natureza em suas diversas partes, a
classificação dos diversos processos e objetos naturais em
determinadas categorias, a pesquisa interna dos corpos
orgânicos segundo sua diversa estrutura anatômica,
foram outras tantas condições fundamentais a que
obedeceram os gigantescos progressos realizados, durante
os últimos quatrocentos anos, no conhecimento científico
da natureza. Esses métodos de Investigação, porém, nos
transmitiu, ao lado disso, o hábito de enfocar as coisas e
os processos da natureza isoladamente, subtraídos à
concatenação do grande todo; portanto, não em sua
dinâmica, mas estaticamente; não como substancialmente
variáveis, mas como consistências fixas; não em sua vida,
mas em sua morte. Por Isso, esse método de observação,
ao transplantar-se, com Bacon e Locke, das ciências
naturais para a filosofia, determinou a estreiteza
específica característica dos últimos séculos: o método
metafísico de especulação.
(...)
Entretanto, junto à filosofia francesa do século XVIII, e
por trás dela, surgira a moderna filosofia alemã, cujo
ponto culminante foi Hegel. O principal mérito dessa
filosofia é a restauração da dialética, como forma
suprema do pensamento. Os antigos filósofos gregos
eram todos dialéticos inatos, espontâneos, e a cabeça
mais universal de todos eles - Aristóteles - chegara já a
estudar as formas mais substanciais do pensamento
dialético. Em troca, a nova filosofia, embora tendo um ou
outro brilhante defensor da dialética (como por exemplo,
Descartes e Spinoza) caía cada vez mais, sob a influência
principalmente dos ingleses, na chamada maneira
metafísica de pensar, que também dominou quase
totalmente entre os franceses do século XVIII, ao menos
em suas obras especificamente filosóficas. Fora do campo
estritamente filosófico, eles criaram também obras-primas
de dialética; como prova, basta citar O Sobrinho de
Rameau, de Diderot, e o estudo de Rousseau sôbre a
origem da desigualdade entre os homens. Resumiremos
aqui, sucintamente, os traços mais essenciais de ambos os
métodos discursivos.
Para o metafísico, as coisas e suas Imagens no
pensamento, os conceitos, são objetos de Investigação
Isolados, fixos, rígidos, focalizados um após o outro, de
per si, como algo dado e perene. Pensa só em antíteses,
sem meio-termo possível; para ele, das duas uma: sim,
sim; não, não; o que for além disso, sobra. Para ele, uma
coisa existe ou não existe; um objeto não pode ser ao
mesmo tempo o que é e outro diferente. O positivo e o
negativo se excluem em absoluto. A causa e o efeito
revestem também, a seus olhos, a forma de uma rígida
antítese. À primeira vista, esse método discursivo parecenos extremamente razoável, porque é o do chamado senão
comum. Mas o próprio senso comum - personagem multo
respeitável dentro de casa, entre quatro paredes - vive
peripécias verdadeiramente maravilhosas quando se
aventura pelos caminhos amplos da investigação; e o
método metafísico de pensar, pois muito justificado e até
necessário que seja em muitas zonas do pensamento, mais
ou menos extensas segundo a natureza do objeto de que
se trate, tropeça sempre, cedo ou tarde, com uma barreira,
ultrapassada a qual converte-se num método unilateral,
limitado, abstrato, e se perde em Insolúveis contradições,
pois, absorvido pelos objetos concretos, não consegue
perceber sua concatenação; preocupado com sua
existência, não atenta em sua origem nem em sua
caducidade; obcecado pelas árvores, não consegue ver o
bosque. Na realidade de cada dia, sabemos, por exemplo,
e podemos dizer com toda certeza se um animal existe ou
não; porém, pesquisando mais detidamente, verificamos
que às vezes o problema se complica consideravelmente,
como sabem muito bem os juristas, que tanto e tão
inutilmente têm-se atormentado por descobrir um limite
racional a partir do qual deva a morte do filho no ventre
materno ser considerada um assassinato; nem é fácil
tampouco determinar rigidamente o momento da morte,
uma vez que a fisiologia demonstrou que a morte não é
Quando nos detemos a pensar sobre a natureza, ou sobre
a história humana, ou sobre nossa própria atividade
espiritual,. deparamo-nos, em primeiro plano, com a
imagem de uma trama infinita de concatenações e
Influências recíprocas, em que nada permanece o que era,
nem como e onde era, mas tudo se move e se transforma,
nasce e morre. Vemos, pois, antes de tudo, a imagem de
conjunto, na qual os detalhes passam ainda mais ou
menos para o segundo plano; fixamo-nos mais no
movimento, nas transições, na concatenação, do que no
que se move, se transforma e se concatena Essa
concepção do mundo, primitiva, ingênua, mas
essencialmente exata, é a dos filósofos gregos antigos, e
aparece claramente expressa pela primeira vez em
Heráclito: tudo é e não é, pois tudo flui, tudo se acha
sujeito a um processo constante de transformação, de
Incessante nascimento e caducidade. Mas essa
concepção, por mais exatamente que reflita o caráter geral
do quadro que nos é oferecido pelos fenômenos, não
basta para explicar os elementos isolados que formam
esse quadro total; sem conhecê-los a Imagem geral não
adquirirá tampouco um sentido claro. Para penetrar
nesses detalhes temos de despregá-los do seu tronco
histórico ou natural e Investigá-los separadamente, cada
qual por si, em seu caráter, causas e efeitos especiais, etc.
Tal é a missão primordial das ciências naturais e da
história, ramos de investigação que os gregos clássicos
situavam, por motivos muito justificados, num plano
puramente secundário, pois primariamente deviam
dedicar-se a acumular os materiais científicos necessários.
Enquanto não se reúne uma certa quantidade de materiais
naturais e históricos não se pode proceder ao exame
3
um fenômeno repentino, instantâneo, mas um processo
muito longo. Do mesmo modo, todo ser orgânico é, a
qualquer instante, ele mesmo e outro; a todo Instante,
assimila matérias absorvidas do exterior e elimina outras
do seu interior; a todo instante, morrem certas células e
nascem outras em seu organismo; e no transcurso de um
período mais ou menos demorado a matéria de que é
formado renova-se totalmente, e novos átomos de
matérias vêm ocupar o lugar dos antigos, por onde todo o
seu ser orgânico é, ao mesmo tempo, o que é e outro
diferente. Da mesma maneira, observando as coisas
detidamente, verificamos que os dois polos de uma
antítese, o positivo e o negativo, são tão inseparáveis
quanto antitéticos um do outro e que, apesar de todo o
seu antagonismo, se penetram reciprocamente; e vemos
que a causa e o efeito são representações que somente
regem, como tais, em sua aplicação ao caso concreto, mas
que, examinando o caso concreto em sua concatenação
com a imagem total do universo, se juntam e se diluem na
idéia de uma trama universal de ações e reações, em que
as causas e os efeitos mudam constantemente de lugar e
em que o que agora ou aqui é efeito adquire em seguida
ou ali o caráter de causa, e vice-versa.
iniciou sua carreira de filósofo dissolvendo o sistema solar
estável de Newton e sua duração eterna - depois de
recebido o primeiro impulso - num processo histórico: no
nascimento do Sol e de todos os planetas a partir de uma
massa nebulosa em rotação. Dai, deduziu que essa origem
implicava também, necessariamente, a morte futura do
sistema solar. Meio século depois sua teoria foi
confirmada matematicamente por Laplace e, ao fim de
outro meio século, o espectroscópio veio demonstrar a
existência no espaço daquelas massas igneas de gás, em
diferente grau de condensação.
A filosofia alemã moderna encontrou sua culminância no
sistema de Hegel, em que pela primeira vez - e aí está seu
grande mérito - se concebe todo o mundo da natureza, da
história e do espírito como um processo, isto é, em
constante movimento, mudança, transformação e
desenvolvimento, tentando além disso ressaltar a intima
conexão que preside esse processo de movimento e
desenvolvimento. Contemplada desse ponto de vista, a
história da humanidade já. não aparecia como um caos
inóspito de violências absurdas, todas igualmente
condenáveis diante do foro da razão filosófica hoje já
madura, e boas para serem esquecidas quanto antes, mas
como o processo de desenvolvimento da própria
humanidade, que cabia agora ao pensamento
acompanhar em suas etapas graduais e através de todos
os desvios, e demonstrar a existência de leis internas que
orientam tudo aquilo que à primeira vista poderia parecer
obra do acaso cego.
Nenhum desses fenômenos e métodos discursivos se
encaixa no quadro das especulações metafísicas. Ao
contrário, para a dialética, que focaliza as coisas e suas
Imagens conceituais substancialmente em suas conexões,
em sua concatenação, em sua dinâmica, em seu processo
de nascimento e caducidade, fenômenos como os
expostos não são mais que outras tantas confirmações de
seu modo genuíno de proceder. A natureza é a pedra de
toque da dialética, e as modernas ciências naturais nos
oferecem para essa prova um acervo de dados
extraordinariamente copiosos e enriquecido cada dia que
passa, demonstrando com Isso que a natureza se move,
em última instância, pelos caminhos dialéticos e não pelas
veredas metafísicas, que não se move na eterna
monotonia de um ciclo constantemente repetido, mas
percorre uma verdadeira história. Aqui é necessário citar
Darwin, em primeiro lugar, quem, com sua prova de que
toda a natureza orgânica existente, plantas e animais, e
entre eles, como é lógico, o homem, é o produto de um
processo de desenvolvimento de milhões de anos,
assestou na concepção metafísica da natureza o mais rude
golpe. Até hoje, porém, os naturalistas que souberam
pensar dialeticamente podem ser contados com os dedos,
e esse conflito entre os resultados descobertos e o método
discursivo tradicional põe a nu a Ilimitada confusão que
reina presentemente na teoria das ciências naturais e que
constitui o desespero de mestres e discípulos, de autores e
leitores.
Não importava que o sistema de Hegel não resolvesse o
problema que se propunha. Seu mérito, que marca época.
consistiu em tê-lo proposto. Não em vão, trata-se de um
problema que nenhum homem sozinho pôde resolver. E
embora fosse Hegel, como Saint-Simon, a cabeça mais
universal. de seu tempo, seu horizonte achava-se
circunscrito, em primeiro lugar, pela limitação inevitável
de seus próprios conhecimentos e, em segundo lugar,
pelos conhecimentos e concepções de sua época,
limitados também em extensão e profundidade. Deve-se
acrescentar a isso uma terceira circunstância. Hegel era
idealista; isto é, para ele as Idéias de sua cabeça não eram
imagens mais ou menos abstratas dos objetos ou
fenômenos da realidade, mas essas coisas e seu
desenvolvimento se lhe afiguravam, ao contrário, como
projeções realizadas da "Idéia", que já existia, não se sabe
como, antes de existir o mundo. Assim, foi tudo posto de
cabeça para baixo, e a concatenação real do universal
apresentava-se completamente às avessas. E por mais
exatas e mesmo geniais que fossem várias das conexões
concretas concebidas por Hegel, era inevitável, pelos
motivos que acabamos de apontar, que muitos dos seus
detalhes tivessem um caráter amaneirado, artificial,
construído; em uma palavra, falso. O sistema de Hegel foi
um aborto gigantesco, mas o último de seu gênero. De
fato, continuava sofrendo de uma contradição interna
incurável; pois, enquanto de um lado partia como
pressuposto inicial da concepção histórica, segundo a
qual a história humana é um processo de desenvolvimento
que não pode, por sua natureza, encontrar o arremate
intelectual na descoberta disso que chamam verdade
Somente seguindo o caminho da dialética, não perdendo
jamais de vista as inumeráveis ações e reações gerais do
devenir e do perecer, das mudanças de avanço e
retrocesso, chegamos a uma concepção exata do universo,
do seu desenvolvimento e do desenvolvimento da
humanidade, assim como da imagem projetada por esse
desenvolvimento nas cabeças dos homens. E foi esse, com
efeito, o sentido em que começou a trabalhar, desde o
primeiro momento, a moderna filosofia alemã. Kant
4
absoluta, de outro lado nos é apresentado exatamente
como a soma e a síntese dessa verdade absoluta. Um
sistema universal e definitivamente plasmado do
conhecimento da natureza e da história é incompatível
com as leis fundamentais do pensamento dialético - que
não exclui, mas longe disso implica que o conhecimento
sistemático do mundo exterior em sua totalidade possa
progredir gigantescamente de geração em geração.
mais imperfeita que fosse. Mas a velha concepção
idealista da história, que ainda não havia sido removida,
não conhecia lutas de classes baseadas em interesses
materiais, nem conhecia interesses materiais de qualquer
espécie; para ela a produção, bem como todas as relações
econômicas, só existiam acessoriamente, como um
elemento secundário dentro da "história cultural". Os
novos fatos obrigaram à revisão de toda a história
anterior, e então se viu que, com exceção do Estado
primitivo, toda a história anterior era a história das lutas
de classes, e que essas classes sociais em luta entre si eram
em todas as épocas fruto das relações de produção e de
troca, isto é, das relações econômicas de sua época; que a
estrutura econômica da sociedade em cada época da
história constitui, portanto, a base real cujas propriedades
explicam, em última análise, toda a superestrutura
Integrada pelas instituições jurídicas e políticas, assim
como pela ideologia religiosa, filosófica, etc., de cada
período histórico. Hegel libertara da metafísica a
concepção da história, tornando-a dialética; mas sua
interpretação da história era essencialmente idealista.
Agora, o idealismo fora despejado do seu último reduto: a
concepção da história -, substituída por uma concepção
materialista da história, com o que se abria o caminho
para explicar a consciência do homem por sua existência,
e não esta por sua consciência, que era até então o
tradicional.
A consciência da total inversão em que incorria o
Idealismo alemão levou necessariamente ao materialismo;
mas não, veja-se bem, àquele materialismo puramente
metafísico e exclusivamente mecânico do século XVIII.
Em oposição à simples repulsa, ingenuamente
revolucionária, de toda a história anterior, o materialismo
moderno vê na história o processo de desenvolvimento da
humanidade, cujas leis dinâmicas é missão sua descobrir.
Contrariamente à idéia da natureza que imperava entre os
franceses do século XVIII, assim como em Hegel, em que
esta era concebida como um todo permanente e
invariável, que se movia dentro de ciclos estreitos, com
corpos celestes eternos, tal como Newton os representava,
e com espécies invariáveis de seres orgânicos, como
ensinara Linneu, o materialismo moderno resume e
compendia os novos progressos das ciências naturais,
segundo os quais a natureza tem também sua história no
tempo, e os mundos, assim como as espécies orgânicas
que em condições propícias os habitam, nascem e
morrem, e os ciclos, no grau em que são admissíveis,
revestem dimensões infinitamente mais grandiosas. Tanto
em um como em outro caso, o materialismo moderno é
substancialmente dialético e já não precisa de uma
filosofia superior às demais ciências. Desde o momento
em que cada ciência tem que prestar contas da posição
que ocupa no quadro universal das coisas e do
conhecimento dessas coisas, já não há margem para uma
ciência especialmente consagrada ao estudo das
concatenações universais. Da filosofia anterior, com
existência própria, só permanece de pé a teoria do pensar
e de suas leis: a lógica formal e a dialética. O demais se
dissolve na ciência positiva da natureza e da história.
Desse modo o socialismo já não aparecia como a
descoberta casual de tal ou qual intelecto genial, mas
como o produto necessário da luta entre as duas classes
formadas historicamente: o proletariado e a burguesia.
Sua missão já não era elaborar um sistema o mais perfeito
possível da sociedade, mas investigar o processo histórico
econômico de que, forçosamente, tinham que brotar essas
classes e seu conflito, descobrindo os meios para a
solução desse conflito na situação econômica assim
criada. Mas o socialismo tradicional era incompatível com
essa nova concepção materialista da história, tanto
quanto a concepção da natureza do materialismo francês
não podia ajustar-se à dialética e às novas ciências
naturais. Com efeito, o socialismo anterior criticava o
modo de produção capitalista existente e suas
conseqüências, mas não conseguia explicá-lo nem podia,
portanto, destruí-lo ideologicamente; nada mais lhe
restava senão repudiá-lo, pura o simplesmente, como
mau. Quanto mais violentamente clamava contra a
exploração da classe operária, inseparável desse modo de
produção, menos estava em condições de indicar
claramente em que consistia e como nascia essa
exploração. Mas do que se tratava era, por um lado, de
expor esse modo capitalista de produção em suas
conexões históricas e como necessário para uma
determinada época da história, demonstrando com isso
também a necessidade de sua queda e, por outro lado, pôr
a nu o seu caráter interno, ainda oculto. Isso se tornou
evidente com a descoberta da mais-valia. Descoberta que
veio revelar que o regime capitalista de produção e a
exploração do operário, que dele se deriva, tinham por
forma fundamental a apropriação de trabalho não pago;
que o capitalista, mesmo quando compra a força de
trabalho de seu operário por todo o seu valor, por todo o
No entanto, enquanto que essa revolução na concepção
da natureza só se pôde impor na medida em que a
pesquisa fornecia à ciência os materiais positivos
correspondentes, já há muito tempo se haviam revelado
certos fatos históricos que imprimiram uma reviravolta
decisiva no modo de focalizar a história. Em 1831, estala
em Lyon a primeira insurreição operária, e de 1838 a 1842
atinge o auge o primeiro movimento operário nacional: o
dos cartistas ingleses. A luta de classes entre o
proletariado e a burguesia passou a ocupar o primeiro
plano da história dos países europeus mais avançados, ao
mesmo ritmo em que se desenvolvia neles, de uni lado, a
grande indústria, e de outro lado, a dominação política
recém-conquistada da burguesia. Os fatos refutavam cada
vez mais rotundamente as doutrinas burguesas da
identidade de interesses entre o capital e o trabalho e da
harmonia universal e o bem-estar geral das nações, como
fruto da livre concorrência. Não havia como passar por
alto esses fatos, nem era tampouco possível ignorar o
socialismo francês e inglês, expressão teórica sua, por
5
valor que representa como mercadoria no mercado, dela
retira sempre mais valor do que lhe custa e que essa maisvalia é, em última análise, a soma de valor de onde
provém a massa cada vez maior do capital acumulado em
mãos das classes possuidoras. O processo da produção
capitalista e o da produção de capital estavam assim
explicados.
governamental - como um "sistema tributário
determinando", exemplo citado por ele mesmo.
Entretanto, o que é necessário demonstra-se também, em
última instância, como racional. Assim, aplicada ao
Estado prussiano da época, a tese hegeliana permite uma
única interpretação: este Estado é racional, corresponde à
razão, na medida em que é necessário; se, no entanto, nos
parece mal, e continua existindo, apesar disso, a má
qualidade do governo justifica-se e explica-se pela má
qualidade correspondente de seus súditos. Os prussianos
da época tinham o governo que mereciam.
Essas duas grandes descobertas - a concepção
materialista da história e a revelação do segredo da
produção capitalista através da mais-valia - nós as
devemos a Karl Marx. Graças a elas o materialismo
converte-se em uma ciência, que só nos resta desenvolver
em todos os seus detalhes e concatenações.
Contudo, segundo Hegel, a realidade não constitui
absolutamente um atributo que, em todas as
circunstâncias e em todas as épocas, seja inerente a um
determinado estado de coisas político ou social. Ao
contrário. A república romana era real, mas o império
romano que a suplantou também o era. Em 1789, a
monarquia francesa se havia tornado tão irreal, isto é, tão
destituída de toda a necessidade, tão irracional, que teve
de ser varrida pela grande Revolução, de que Hegel falava
sempre com o maior entusiasmo. Aqui pois o irreal era a
monarquia e o real era a revolução. E assim, no processo
de desenvolvimento, tudo que antes era real se transforma
em irreal, perde sua necessidade, seu direito de existir, seu
caráter racional; à realidade que agoniza sucede uma
realidade nova e vital; pacificamente, se o que caduca é
bastante razoável para desaparecer sem luta; pela força,
se se rebela contra essa necessidade. A tese de Hegel
transforma-se assim, pela própria dialética hegeliana, em
seu contrário; tudo que é real, nos domínios da história
humana, converte-se em irracional, com o correr do
tempo; já o é, portanto, por seu próprio destino, leva
previamente, em si mesmo, o germe do irracional, e tudo
que é racional na cabeça do homem está destinado a ser
real um dia, por mais que ainda se choque hoje com a
aparente realidade existente. A tese de que tudo que é real
é racional se resolve, segundo todas as regras do método
de pensamento de Hegel, nesta outra: tudo o que existe
merece perecer.
Fonte: ENGELS, Friedrich. Do Socialismos Utópico ao
Socialismo Científico [fragmento]
--------------------------------------------------------1.4 – Hegel e Feurbach.
[Hegel e Feuerbach]
Feuerbach]
Tanto quanto na França do século XVIII, a revolução
filosófica foi na Alemanha do século XIX o prelúdio do
desmoronamento político. Mas quanta diferença entre
uma e outra! Os franceses em luta aberta contra toda a
ciência oficial, contra a Igreja e, não raro, mesmo contra o
Estado; suas obras impressas fora das fronteiras, na
Holanda ou na Inglaterra, e , além disso, os autores, com
muita freqüência, iam dar com os costados na Bastilha.
Os alemães, ao contrário, eram professores em cujas
mãos o Estado colocava a educação da juventude; suas
obras, livros de texto consagrados; e o sistema que
coroava todo o processo de desenvolvimento - o sistema
de Hegel - era inclusive elevado, em certa medida, ao nível
de filosofia oficial do Estado monárquico prussiano!
Como poderia a revolução esconder-se por trás desses
professores, por trás de suas palavras pedantemente
obscuras e de suas frases longas e aborrecidas? Pois não
eram precisamente os liberais, considerados então os
verdadeiros representantes da revolução, os inimigos mais
encarniçados desta filosofia que trazia confusão às
consciências? O que, entretanto, não puderam ver nem o
governo nem os liberais, viu-o pelo menos um homem, já
em 1833, que aliás se chamava Henrich Heine. (2)
E nisso, precisamente, residia a significação real e o
caráter revolucionário da filosofia hegeliana (à qual nos
limitaremos aqui, como coroamento de todo o movimento
filosófico iniciado com Kant): ela acabou, para sempre,
com o caráter definitivo de todos os resultados do
pensamento e da ação do homem. Em Hegel, a verdade
que a filosofia procurava conhecer já não era uma coleção
de teses dogmáticas fixas que, uma vez descobertas,
bastaria guardar de memória; agora a verdade residia no
próprio processo do conhecimento, através do longo
desenvolvimento histórico da ciência, que sobe, dos
degraus inferiores, até os mais elevados do conhecimento,
sem, porém, alcançar jamais, com o desenvolvimento de
uma pretensa verdade absoluta, um nível em que já não se
possa continuar avançando, em que nada mais reste
senão cruzar os braços e contemplar a verdade absoluta
conquistada. E isso não se passava apenas no terreno da
filosofia, mas nos demais ramos do conhecimento e no
domínio da atividade prática. Da mesma forma que o
conhecimento, também a história nunca poderá encontrar
seu coroamento definitivo num estágio ideal e perfeito da
Exemplifiquemos. Nunca houve uma tese filosófica que
atraísse tanto o reconhecimento de governos míopes e a
cólera de liberais, não menos curtos de visão, como a
famosa tese de Hegel: "Tudo o que é real é racional; e
tudo o que é racional é real". Não era, concretamente, a
santificação de tudo que existe, a bênção filosófica dada
ao despotismo, ao Estado policial, à justiça de gabinete, à
censura? Assim acreditavam, realmente, Frederico
Guilherme III e seus súditos. Para Hegel, porém, o que
existe está longe de ser real pelo simples fato de existir.
Em sua doutrina, o atributo da realidade corresponde
apenas ao que, além de existir, é necessário; "em seu
desdobramento, a realidade revela-se como necessidade".
Eis porque Hegel não considera, absolutamente, como
real, pelo simples fato de ser imposta, qualquer medida
6
humanidade; uma sociedade perfeita, um "Estado"
perfeito, são coisas que só podem existir na imaginação.
Pelo contrário, todas as etapas históricas que se sucedem
nada mais são que outras tantas fases transitórias no
processo de desenvolvimento infinito da sociedade
humana, do inferior para o superior. Todas as fases são
necessárias, e, portanto, legítimas para a época e as
condições que as originam; uma vez, porém, que surgem
condições novas e superiores, amadurecidas pouco a
pouco em seu próprio seio, elas caducam e perdem sua
razão de ser e devem ceder o lugar a uma etapa mais alta,
a qual, por sua vez, também terá um dia de envelhecer e
perecer. Da mesma forma que, através da grande
indústria, da livre concorrência e do mercado mundial, a
burguesia liquida na prática todas as instituições estáveis,
consagradas por uma venerável antigüidade, esta filosofia
dialética põe fim a todas as idéias de uma verdade
absoluta e definitiva, e a um conseqüente estágio absoluto
da humanidade. Diante dela, nada é definitivo, absoluto,
sagrado; ela faz ressaltar o que há de transitório em tudo
que existe; e só deixa de pé o processo ininterrupto do vira-ser e do perecer, uma ascensão infinita do inferior ao
superior, cujo mero reflexo no cérebro pensante é esta
própria filosofia. É verdade que ela tem também seu
aspecto conservador quando reconhece a legitimidade de
determinadas formas sociais e de conhecimento, para sua
época e sob suas circunstâncias; mas não vai além disso.
O conservantismo desta concepção é relativo; seu caráter
revolucionário é absoluto, e a única coisa absoluta que ela
deixa de pé.
recobrar seu ser no espírito, ou seja, no pensamento e na
história. Entretanto, só há um meio para essa volta ao
ponto de partida no momento em que se chega ao fim de
sua filosofia: é supor que a história chega a seu ponto
final no momento em que a humanidade toma
consciência dessa mesma idéia absoluta e proclama que
essa consciência se adquire através da filosofia hegeliana.
Com isso, porém, proclama-se como verdade absoluta
todo o conteúdo dogmático do sistema de Hegel - o que
está em contradição com seu método dialético que se
opõe a todo dogmatismo. Assim, o lado revolucionário da
doutrina de Hegel morre asfixiado pelo seu lado
conservador. E o que dizemos do conhecimento filosófico
é, também, aplicável à prática histórica. A humanidade,
que na pessoa de Hegel foi capaz de descobrir a idéia
absoluta, deve também na prática ser capaz de implantar
essa idéia absoluta na realidade. As exigências políticas
práticas que a idéia absoluta coloca para seus
contemporâneos não devem, portanto, ser demasiado
surpreendentes. É assim que, no final da Filosofia do
Direito, constata-se que a idéia absoluta devia tomar
forma naquela monarquia representativa que Frederico
Guilherme III prometera a seus súditos tão tenazmente e
tão em vão, isto é, uma dominação das classes
possuidoras, em forma indireta, limitada e moderada,
adaptada às condições pequeno-burguesas, da Alemanha
de então; demonstrando-se, ainda, de passagem, por via
especulativa, a necessidade da aristocracia.
Como se vê, as necessidades internas do sistema
conseguem explicar como, de um método de pensamento
absolutamente revolucionário, pode decorrer uma
conclusão política extremamente dócil. Aliás, a forma
específica dessa conclusão provém de que Hegel era um
alemão e, como seu contemporâneo Goethe, guardava seu
lado de filisteu. Hegel e Goethe eram verdadeiros
Júpiteres olímpicos, cada um em seu domínio, mas nunca
chegaram a livrar-se inteiramente do que tinham de
filisteus alemães.
É desnecessário discutir, aqui, se este ponto-de-vista está
plenamente de acordo com o atual estado das ciências
naturais que prevêem um fim possível à própria Terra e
fim quase certo à sua habitabilidade; isto é, que conferem
à história da humanidade não apenas um ramo
ascendente, como também um descendente. De qualquer
forma, estamos ainda bastante longe do ápice de onde a
história da sociedade começará a declinar e não podemos
exigir tampouco que a filosofia hegeliana se preocupe com
um problema que as ciências naturais de sua época não
tinham colocado na ordem do dia.
Tudo isso não impedia, porém, o sistema hegeliano de
abarcar um campo incomparavelmente mais vasto que o
de todos os que o haviam precedido, e de desenvolver,
nesse domínio, uma riqueza de pensamento que causa
assombro, ainda hoje. Fenomenologia do Espírito (que
poderíamos chamar um paralelo da embriologia e da
paleontologia do espírito: o desenvolvimento da
consciência individual concebido, através de suas
diferentes etapas, como a reprodução abreviada das bases
por que, historicamente, passa a consciência do homem).
Lógica, Filosofia da Natureza, Filosofia do Espírito,
também investigada em suas diversas subcategorias
históricas: Filosofia da História, do Direito, da Religião,
História da Filosofia, Estética, etc - em todos esses
variados domínios da história, Hegel esforçou-se por
descobrir e demonstrar a existência de um fio condutor do
desenvolvimento. E como não era apenas um gênio
criador, mas possuía também uma erudição
enciclopédica, suas investigações marcam época em todos
os terrenos. É bem verdade que, em conseqüência das
necessidades do "sistema" , ele se vê obrigado, com muita
freqüência, a recorrer a construções arbitrárias que, ainda
O que se pode, entretanto, dizer é que a argumentação
que acabamos de apresentar não se encontra
desenvolvida, em Hegel, com a mesma nitidez. Ela
decorre, necessariamente, de seu método, mas o autor
jamais a deduziu com a mesma clareza. E, isto, pela
simples razão de que Hegel se via premido pela
necessidade de construir um sistema, e um sistema
filosófico, de acordo com as exigências tradicionais, deve
ser coroado com uma espécie qualquer de verdade
absoluta. Daí porque, embora Hegel insista,
particularmente em sua Lógica, em que essa verdade
absoluta nada mais é que o mesmo processo lógico (e por
sua vez histórico), é obrigado a por um ponto final nesse
processo, já que, necessariamente, tinha que chegar a um
fim, fosse qual fosse, com o seu sistema. Na Lógica, pode
fazer novamente desse fim um ponto de partida, pois ali o
ponto final, a idéia absoluta - que só tem de absoluto o
fato de que ele nada sabe dizer sobre ela - se "exterioriza",
isto é, transforma-se na natureza, para mais tarde
7
hoje, fazem com que se esgoelem os pigmeus que o
atacam. Essas construções constituem, porém, apenas os
limites e os andaimes da sua obra: se não nos detemos,
além do necessário, diante delas, e se penetrarmos mais
profundamente no grandioso edifício, deparamos com
tesouros incontáveis que ainda hoje conservam intacto o
seu valor. O "sistema" representa, precisamente, o que é
efêmero em todos os filósofos, e o é, justamente, porque
brota de uma perene necessidade do espírito humano: a
necessidade de superar todas as contradições. Superadas,
porém, essas contradições de uma vez e para sempre,
teremos chegado à chamada verdade absoluta: a história
universal está terminada, e, não obstante, deve continuar
existindo, embora nada mais tenha a fazer; o que
representa, como se vê, uma nova e insolúvel contradição.
Logo que descobrirmos - e afinal de contas ninguém mais
do que Hegel nos ajudou a descobri-lo - que, assim
colocada, a tarefa da filosofia se reduz a pretender que um
filósofo isolado realize aquilo que somente a humanidade
em seu conjunto poderá realizar, em seu desenvolvimento
progressivo - assim que descobrirmos isso a filosofia, no
sentido tradicional da palavra, chega a seu fim. Já não
interessa a "verdade absoluta", inatingível por êste
caminho e inacessível ao único indivíduo, e o que se
procura são as verdades relativas, adquiridas através das
ciências positivas e da generalização de seus resultados
por meio do pensamento dialético. A filosofia, em seu
conjunto, termina com Hegel; por um lado, porque em
seu sistema se resume, da maneira mais grandiosa, todo o
desenvolvimento filosófico; por outro lado, porque este
filósofo nos indica, ainda que inconscientemente, a saída
dêsse labirinto dos sistemas para o conhecimento positivo
e real do mundo.
razão, seu sistema lhe havia custado um "mais duro
trabalho mental" que seu método. A cisão da escola
hegeliana foi tornando-se, no fim da década de 30, cada
vez mais patente. A ala esquerda, os chamados jovens
hegelianos, abandonava pouco a pouco, na luta contra os
ortodoxos pietistas e os reacionários feudais, aquela
atitude filosófico-distinta de retraimento diante das
questões candentes da atualidade, que valera até então às
suas doutrinas a tolerância e inclusive a proteção do
Estado. E quando em 1840 a beataria ortodoxa e a reação
feudal-absolutista subiram ao trono, com Frederico
Guilherme IV, já não havia mais remédio senão definir-se
abertamente por um ou outro partido. A luta continuava a
ser travada com armas filosóficas, mas já não se lutava
por objetivos filosóficos abstratos; agora, tratava-se
diretamente de acabar com a religião tradicional e com o
Estado existente. E se nos Anais Alemães (3) os objetivos
práticos finais apareciam ainda, de preferência, sob uma
roupagem filosófica, na Gazeta Renana de 1842 a escola
dos jovens hegelianos já se revelava nitidamente como a
filosofia da burguesia radical que lutava para abrir
caminho e que utilizava a máscara filosófica apenas para
enganar a censura.
No entanto, a política era nessa época matéria muito
espinhosa; daí porque a luta principal fosse dirigida
contra a religião; essa luta, contudo, era também
indiretamente uma luta política, particularmente depois de
1840. Strauss havia dado o primeiro impulso em 1835,
com a sua Vida de Jesus. Mais tarde Bruno Bauer
levantou-se contra a teoria da formação dos mitos
evangélicos, desenvolvida nessa obra, e demonstrou que
uma série de relatos do Evangelho tinham sido fabricados
por seus próprios autores. A luta entre essas duas
correntes desencadeou-se, sob o disfarce filosófico de
uma luta entre a "consciência" e a "substância". Tratava-se
de saber se as lendas evangélicas dos milagres tinham
nascido dos mitos criados espontaneamente e pela
tradição, no seio da comunidade religiosa - ou se haviam
sido, simplesmente, fabricados pelos evangelistas. A
polêmica avolumou-se, até converter-se num outro
problema: quem define, como potência decisiva, o rumo
da história universal é a "substância" ou a "consciência"?
Finalmente, apareceu Stirner, o profeta do anarquismo
moderno - pois o próprio Bakunin muito lhe deve - e
coroou a "consciência" soberana com a ajuda de seu
"único" soberano. (4)
É fácil compreender a enorme ressonância que o sistema
de Hegel deveria ter numa atmosfera impregnada de
filosofia, como a da Alemanha. Foi uma marcha triunfal
que durou decênios inteiros e que não terminou sequer
com a morte de Hegel. Muito ao contrário, foi
precisamente de 1830 a 1840 que a "hegelomania" reinou
da maneira mais absoluta, contaminando inclusive, em
maior ou menor medida, seus próprios adversários. Foi
precisamente nessa época que as idéias de Hegel
penetraram em maior número, consciente ou
inconscientemente, nas mais variadas ciências e também
fermentou na literatura popular e na imprensa diária, de
que o "espírito culto" vulgar se alimenta ideologicamente.
Esse triunfo total nada mais era, porém, que o prelúdio de
uma luta intestina.
Não insistiremos sobre esse aspecto do processo de
decomposição da escola hegeliana. O importante é que a
grande maioria dos jovens hegelianos mais combativos,
levados pela necessidade prática de lutar contra a religião
positiva, tiveram que se voltar para o materialismo anglofrancês. E, ao chegar aqui, viram-se envoltos num conflito
com o sistema de sua escola. Para o materialismo, a única
realidade é a natureza: no sistema hegeliano, porém, esta
é apenas a "exteriorização" da Idéia absoluta, algo assim
como uma degradação da idéia: em todos os casos, o
pensamento e seu produto, a idéia, são aqui o elemento
primário e a natureza , o derivado, o que só pode existir
graças à condescendência da Idéia. E, bem ou mal, davam
voltas e mais voltas em torno dessa contradição.
O conjunto da doutrina de Hegel dava bastante margem,
como vimos, a que nela se abrigassem as mais diversas
idéias partidárias práticas. E na Alemanha teórica daquela
época duas coisas, sobretudo, revestiam-se de caráter
prático: a religião e a política. Quem fizesse finca-pé no
sistema de Hegel podia ser bastante conservador em
qualquer desses domínios; aquele que considerasse
essencial o método dialético podia figurar, tanto no plano
religioso como no político, na oposição extrema. No
conjunto, Hegel parecia pessoalmente inclinar-se mais
para o lado conservador, apesar das explosões de cólera
revolucionária bastante freqüentes em sua obra. Não sem
8
Foi então que apareceu A Essência do Cristianismo (5),
de Feuerbach. De repente, essa obra pulverizou a
contradição criada ao restaurar o materialismo em seu
trono. A natureza existe independentemente de toda
filosofia, ela constitui a base sobre a qual os homens
cresceram e se desenvolveram, como produtos da
natureza que são; nada existe fora da natureza e dos
homens; e os entes superiores, criados por nossa
imaginação religiosa, nada mais são que outros tantos
reflexos fantásticos de nossa própria essência. Quebrarase o encantamento: o "sistema" salva em pedaços e era
posto de lado - e a contradição ficava resolvida, pois
existia apenas na imaginação. Só tendo vivido, em si
mesmo, a força libertadora desse livro, é que se pode
imaginá-la. O entusiasmo foi geral - e momentaneamente
todos nós nos transformamos em "feuerbachianos". Com
que entusiasmo Marx saudou a nova concepção e até que
ponto se deixou influenciar por ela - apesar de todas as
suas reservas críticas - pode ser visto em A Sagrada
Família (6).
1.5 – Crítica dialética do materialismo e do
idealismo
[Superação do Materialismo e
do Idealismo]
Para explicar de maneira mais concreta o problema da
relação entre ideologia e prática social ou prática política,
a contribuição do método dialético, ou da filosofia da
práxis de Marx, nesse terreno, é interessante confrontá-lo
com as formas dominantes de pensamento de sua época.
Existe uma primeira corrente de pensamento muito
importante, que vem dos enciclopedistas. Para essa
concepção, as idéias, as ideologias, as concepções do
mundo, são produto das circunstâncias sociais em que
vivem os homens. São as circunstâncias materiais que
produzem a consciência, as idéias ou as ideologias.
Considerando a época histórica em que aparece este
materialismo mecânico, este materialismo vulgar, a época
do medo de produção feudal e da monarquia absoluta,
esses pensadores enciclopedistas são opostos ordem
estabelecida. Eles criticam esta ordem e apontam para a
necessidade de modificação das condições sociais, das
circunstâncias materiais, porque consideram que é nas
circunstâncias materiais existentes que se produz o
obscurantismo, o fanatismo, as ideologias feudais,
reacionárias.
Os próprios defeitos do livro contribuíram para seu
sucesso momentâneo. O estilo ameno, e mesmo
empolado em certos trechos, assegurou-lhe um público
maior e constituiu incontestavelmente um alívio, após
tantos anos de hegelomania abstrata e abstrusa. O mesmo
pode dizer-se da exagerada exaltação do amor,
desculpável ainda que não justificável, depois de tanto e
tão insuportável domínio do "pensamento puro". Não
devemos, porém, esquecer que foi precisamente a essas
duas debilidades de Feuerbach que se ligou o "verdadeiro
socialismo" que, a partir de 1844, passou a propagar-se
como uma praga por toda a Alemanha "culta"; que
substituía o conhecimento científico pela frase literária e a
emancipação do proletariado, através da transformação
econômica da produção, pela libertação da humanidade
por meio do "amor"; e que, em resumo, se perdia nessa
literatura repugnante e nessa exacerbação amorosa cujo
protótipo á Karl Gruen.
Os preconceitos, os dogmas e a ignorância – sobretudo a
ignorância do povo que não sabe ler, nem escrever, nem
tem consciência social, além de ter fanatismo religioso –
tudo isso não é visto como culpa dos indivíduos, dos
camponeses, dos pobres. É visto como resultado das
circunstâncias materiais.
Esta filosofia materialista das luzes, que precedeu à
Revolução Francesa, tem indiscutivelmente um aspecto
revolucionário, um aspecto crítico e, em certa medida, um
aspecto utópico, de negação ao sistema feudal, da ordem
estabelecida, das condições feudais da sociedade francesa
da época.
Outra coisa que tampouco se deve esquecer é que, se a
escola hegeliana tinha sido desfeita, a filosofia de Hegel
não tinha sido ainda criticamente superada. Strauss tinha
tomado um aspecto dela, Bauer outro, voltando-os um
contra o outro. Feuerbach quebrou o sistema e o pôs
simplesmente de lado. Para liquidar uma filosofia não
basta, porém, proclamar pura e simplesmente que ela é
falsa. E não se podia eliminar uma obra tão gigantesca
como a filosofia de Hegel, que exercera tão vasta
influência sobre o desenvolvimento espiritual da Nação,
pelo simples fato de fazer caso omisso dela. Era
necessário "superá-la", de acordo com seus próprios
postulados - isto é: destruindo criticamente sua forma
mas conservando o novo conteúdo adquirido por ela.
Veremos adiante como isso se fez.
No entanto, no sistema ideológico de pensamento deste
materialismo da filosofia das luzes, deste materialismo
enciclopédico do século XVIII, cujos principais
representantes foram Diderot, D'Holbach, D'Alembert, as
circunstâncias materiais produzem e reproduzem
constantemente o obscurantismo, o fanatismo, a
ignorância e a questão está em como sair desse circulo
vicioso, desse mecanismo. A palavra mecanismo aí está
carregada de todo o seu peso: a máquina que produz e
reproduz sempre o mesmo fenômeno.
Para romper este mecanismo das circunstâncias materiais
que produzem constantemente o obscurantismo e a
ignorância do povo, a única solução vista pelos
enciclopedistas seria encontrar uma figura excepcional,
que esteja acima da sociedade, acima das circunstâncias,
que escape desse mecanismo e que tenha força suficiente
para poder transformar as forças materiais, quebrar o
mecanismo, a máquina das circunstâncias e criar um novo
Nesse ínterim, veio a revolução de 1848 e pôs de lado toda
a filosofia, com a mesma desenvoltura com que
Feuerbach pusera de lado seu Hegel. E, com isso, o
próprio Feuerbach passou a segundo plano.
Fonte: ENGELS, Friedrich. Ludwig Feuerbach e o Fim da
Filosofia Clássica Alemã [fragmento]
9
sistema, novas circunstâncias materiais, nas quais se
produzirão as luzes, o conhecimento, o saber, o
pensamento racional e a educação Mas, para isso, essa
personagem excepcional deverá ter um poder
extraordinário para poder, de cima para baixo, quebrar,
romper o mecanismo das circunstâncias.
A idéia desses primeiros comunistas e, em particular, de
Buonarroti, que foi de certa forma o ideólogo de toda essa
corrente, era de que os déspotas esclarecidos não existiam.
Eles achavam que todos os monarcas deveriam ser
derrubados por revolução violenta, por uma revolução
social. Mas quem iria fazer essa revolução? Não poderia
ser o povo, o proletariado, os pobres, porque estavam
condenadas à cegueira, ao fanatismo, à ignorância, ao
obscurantismo, e não iriam entender quais eram seus
interesses, não por culpa deles, mas das circunstâncias em
que viviam, que lhes impediam o acesso à educação, ao
conhecimento, as luzes. Então, apenas uma pequena
minoria, uma elite de homens esclarecidos, é que iria
realizar esta transformação revolucionária, derrubar a
monarquia, derrubar o poder das classes dominantes e
estabelecer uma ditadura revolucionária, que seria
composta deste pequeno número de homens esclarecidos,
dessa elite de homens sábios, conhecedores das
necessidades do povo, e que iria destruir o antigo sistema
e estabelecer novas condições, novas circunstâncias
materiais.
Os enciclopedistas pensavam encontrar este indivíduo
excepcional em alguns monarcas europeus que eram
inteligentes, cultos, se interessavam pela filosofia,
inclusive pela filosofia da luzes. Estes personagens são
conhecidos na história do século XVIII como déspotas
esclarecidos: o rei Frederico II da Prússia e a rainha
Catarina I da Rússia eram alguns deles. Seriam esses
déspotas esclarecidos que teriam a grandiosa tarefa de
romper com as circunstancias e criar novas, que
produziriam educação, conhecimento, luzes.
Na verdade, as coisas não se passaram assim. Os tais
déspotas esclarecidos eram muito mais déspotas que
esclarecidos e não modificaram, ou modificaram muito
pouco aquelas circunstâncias. Abriram algumas escolas,
produziram alguns livros, mas não mudaram nada de
essencial.
Estes pequenos grupos dos quais Auguste Blanqui era o
mais conhecido, fizeram várias tentativas para tomar o
poder, todas obviamente fracassadas, posto que
inevitavelmente eram enfrentamentos minoritários, de
pequenas organizações secretas contra n poder do
exército das classes dominantes.
O problema é que esse materialismo vulgar, mecânico,
metafísico ou pré-dialético continuou exercendo influência
muito grande, bem além do século XVIII, da filosofia das
luzes. Vamos encontrar sua presença inclusive nos
primeiros socialistas ou comunistas do século XIX. O
exemplo clássico é o famoso socialista utópico inales
Robert Owen, que escreve que a tarefa do socialismo é a
supressão das influências perniciosas que rodeiam a
humanidade, mediante a criação de combinações
totalmente novas de circunstâncias exteriores, e que o
personagem que vai realizar essa tarefa é o déspota
esclarecido. Owen então se dirige ao rei da França, ao rei
da Inglaterra e ao czar da Rússia e, mesmo, a uma
reunião de todos os reis da Europa – a chamada Santa
Aliança, em que todos eles se uniam para tentar lutar
contra Napoleão – para a qual Owen manda um relatório
propondo a essa coleção de monarcas ultra-reacionários,
ultra-obscurantistas, proclamar o socialismo como
solução para o problema da pobreza, da ignorância, do
atraso, etc. Podemos dizer que esta atitude foi muito
ingênua da parte de Owen, mas ela resulta, de maneira
muito lógica, deste tipo de materialismo metafísico, a
ponto de não se limitar a Owen, mas todos os socialistas
utópicos vão assumir atitudes semelhantes, seja SaintSimon, seja Fourier, todos eles estão na busca daquele
salvador supremo, do grande homem, do grande monarca
que irá destruir as influências perniciosas e estabelecer
novas circunstancias favoráveis às luzes, ao socialismo ou
ao que seja.
Deste modo, temos uma forma de compreensão, de
analise da relação entre idéias ou ideologias e prática
política, que é a concepção do materialismo vulgar, para o
qual as idéias, as concepções, as doutrinas, as formas de
pensamento e as ideologias resultam das circunstâncias
materiais e, portanto, é necessária uma força que venha de
fora, de algum lugar exterior, uma figura ou um conjunto
de figuras excepcionais para transformar a sociedade.
Oposta a essa forma de materialismo, outra escola de
pensamento é o idealismo, cuja forma clássica se encontra
no neo-hegelianismo. Não se trata do idealismo de Hegel,
que era conservador, ou conformista, se trata de um
idealismo revolucionário, de um idealismo crítico, dos
discípulos de esquerda de Hegel, entre os quais se
encontram Bruno Bauer, Max Stirner. Moses Hess.
Os neo-hegelianos de esquerda partiam exatamente da
hipótese contrária dos materialistas. Para eles, o
importante era o espírito e a luta para mudar a sociedade,
era uma luta espiritual, uma luta crítica. Por Isso, Marx os
chamava ironicamente de críticos críticos. Eles
acreditavam que criticando as idéias erradas,
transformando a consciência ou a ideologia, ou o
pensamento dos homens, transformariam a sociedade.
Portanto, se criticassem o dogmatismo, a intolerância
religiosa, as idéias monarquistas, anti-republicanas,
antidemocráticas, ou as idéias egoístas, da propriedade
privada, chegariam a uma sociedade diferente, de
liberdade, igualdade, tolerância, democracia, ou mesmo
ao socialismo, ou ainda, ao comunismo, posto que Moses
Hess era um pensador comunista.
Os primeiros comunistas revolucionários, que aparecem
no século XIX, já têm uma concepção um pouco diferente,
mas ainda herdeira dessa filosofia materialista. Eles são
discípulos de Babeuf e de Buonarroti, organizadores da
Conspiração dos Iguais, na época da Revolução
Francesas e o mais conhecido deles é Auguste Blanqui,
famoso revolucionário francês do século XIX
Esta concepção da relação entre ideologia (ou utopia) e
prática social parte então do pólo oposto, parte da idéia
10
de que a alavanca para o transformação social é o
pensamento. São as idéias, as ideologias, as
representações, ou melhor, a crítica às representações
equivocadas, a crítica ideológica das ideologias, a crítica
filosófica das filosofias, a critica anti-religiosa das
religiões, é que iriam transformar as estruturas
econômicas, sociais e políticas. A transformação da
sociedade se faria através da transformarão da
mentalidade ou da consciência do indivíduo. Ou do
sujeito da ação social.
Até aqui é uma critica ao materialismo vulgar. “A
coincidência entre a modificação das circunstancias e a
automodificação só pode ser entendida racionalmente
como práxis revolucionária”. Isto quer dizer que não se
trata de esperar milagrosamente que um indivíduo, ou um
grupo de indivíduos supostamente situados fora da
sociedade, transformem as circunstâncias. Também não
se trata de acreditar ingenuamente que a pregação moral
ou a crítica filosófica possam transformar a sociedade. O
que se faz necessário é uma ação revolucionária, uma
prática revolucionária, na qual irão se transformar,
simultaneamente, as circunstâncias, as condições sociais,
as estruturas, o Estado, a sociedade, a economia e os
próprios indivíduos, autores da ação.
O dilema clássico essencial da filosofia pré-marxista foi o
dilema entre modificar primeiro as circunstâncias para,
como conseqüência, transformar a consciência ou
modificar primeiro a consciência, o sujeito e suas
ideologias, para depois transformar a sociedade. Este era
um dilema entre o materialismo vulgar e o idealismo
moral. Entre uma concepção objetivista da sociedade e
uma concepção subjetiva.
Através dessa formulação, Marx conseguiu superar
dialeticamente tanto o materialismo francês do século
XVIII, quanto o idealismo alemão, neo-hegeliano; além
disso deu fundamento filosófico, teórico-metodológico à
sua teoria revolucionária, que é a teoria da autoemancipação do proletariado, ou da auto-emancipação
dos oprimidos, num sentido mais amplo. Em outras
palavras, ele defende que é só na autolibertação, na sua
própria ação enquanto sujeito revolucionário, na sua
própria práxis enquanto autor de sua libertação, que se dá
a emancipação objetiva e subjetiva do homem, que se dá a
destruição da opressão enquanto estrutura, e a
transformação da consciência, das idéias, das
representações e das ideologias. É no processo de autoemancipação revolucionária que se dá a auto-educação da
classe revolucionária, através de sua própria experiência
prática.
Georg Lukács, em seu livro História e Consciência de
Classe, tem uma boa fórmula para resumir esse dilema.
Lukács diz que, nesse tipo de enfrentamento, vemos o
dilema da impotência porque, na realidade, esses dois
modelos de pensamento são incapazes de produzir uma
ação social real, são impotentes para transformar a
sociedade. É o dilema da impotência de, por um lado, o
fatalismo das leis puras e; por outro lado, o moralismo
das puras intenções.
O pensamento de Marx veio trazer uma maneira nova de
entender ou tentar enfrentar esse tipo de questão: a
relação entre as idéias e a ação ou a prática social. O
primeiro texto em que Marx enfrenta esta questão foram
as “Teses sobre Feuerbach" escritas em 1845 e,
curiosamente, não destinado à publicação. Eram notas
que ele fazia em um caderno, uma agenda de endereços, e
que só foram encontradas muito mais tarde por Engels,
entre os papéis que ele deixou depois de sua morte. Engels
resolveu publicá-las e escreveu uma introdução dizendo:
"Estas notas sobre Feuerbach representam o germe genial
de uma nova concepção de mundo". Portanto, é nessas
notas que se encontra, pela primeira vez, um resumo do
que viria a ser a nova concepção de mundo trazida por
Marx, que podemos chamar de materialismo histórico,
dialética materialista, filosofia da práxis, dialética
revolucionária, etc.
Fonte: LOWY, Michael. Ideologias e Ciência Social
[fragmento]
----------------------------------------------------1.6 – A filosofia da Práxis
Teses sobre Feuerbach
Karl Marx
1ª Tese:
A principal insuficiência de todo o materialismo até aos
nossos dias - o de Feuerbach incluído - é que as coisas
[der Gegenstand], a realidade, o mundo sensível são
tomados apenas sobre a forma do objecto [des Objekts]
ou da contemplação [Anschauung]; mas não como
atividade sensível humana, práxis, não subjectivamente.
Por isso aconteceu que o lado activo foi desenvolvido, em
oposição ao materialismo, pelo idealismo - mas apenas
abstractamente, pois que o idealismo naturalmente não
conhece a actividade sensível, real, como tal. Feuerbach
quer objectos [Objekte] sensíveis realmente distintos dos
objectos do pensamento; mas não toma a própria
actividade
humana
como
atividade
objectiva
[gegenständliche Tätigkeit]. Ele considera, por isso, na
Essência do Cristianismo, apenas a atitude teórica como a
genuinamente humana, ao passo que a práxis é tomada e
fixada apenas na sua forma de manifestação sórdida e
São apenas onze teses, mas não cabe ao espaço deste
estudo analisá-las (porque isso demandaria pelo menos
um ano para que se fizesse uma análise relativamente
detalhada), só vamos tomar aquela mais relacionada a
questão que estamos vendo o dilema entre o materialismo
mecânico e o idealismo neo-hegeliano. É a tese número 3
sobre Feuerbach, que diz o seguinte:
"A teoria materialista segundo a qual os homens são
produto de circunstancias e da educação esquece que as
circunstâncias se transformam precisamente pelos
homens e que o próprio educador precisa ser educado.
Esta concepção, esta teoria materialista conduz pois,
necessariamente, à divisão da saciedade em duas partes,
uma das quais está por cima da outra”.
11
judaica. Não compreende, por isso, o significado da
actividade "revolucionária", de crítica prática.
como generalidade interior, muda, que liga apenas
naturalmente os muitos indivíduos.
2ª tese:
A questão de saber se ao pensamento humano pertence a
verdade objectiva não é uma questão da teoria, mas uma
questão prática. É na práxis que o ser humano tem de
comprovar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o
carácter terreno do seu pensamento. A disputa sobre a
realidade ou não realidade de um pensamento que se isola
da práxis é uma questão puramente escolástica.
7ª Tese
Feuerbach não vê, por isso, que o próprio "sentimento
religioso" é um produto social e que o indivíduo abstrato
que analisa pertence na realidade a uma determinada
forma de sociedade.
8ª Tese
A vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios
que seduzem a teoria para o misticismo encontram a sua
solução racional na práxis humana e no compreender
desta práxis.
3ª Tese:
A doutrina materialista de que os seres humanos são
produtos das circunstâncias e da educação, [de que] seres
humanos transformados são, portanto, produtos de
outras circunstâncias e de uma educação mudada,
esquece que as circunstâncias são transformadas
precisamente pelos seres humanos e que o educador tem
ele próprio de ser educado. Ela acaba, por isso,
necessariamente, por separar a sociedade em duas partes,
uma das quais fica elevada acima da sociedade (por
exemplo, em Robert Owen). A coincidência do mudar das
circunstâncias e da atividade humana só pode ser tomada
e racionalmente entendida como práxiss revolucionante.
9ª Tese
O máximo que o materialismo contemplativo [der
anschauende Materialismus] consegue, isto é, o
materialismo que não compreende o mundo sensível
como atividade prática, é a visão [Anschauung] dos
indivíduos isolados na "sociedade civil".
10ª Tese
O ponto de vista do antigo materialismo é a sociedade
"civil"; o ponto de vista do novo [materialismo é] a
sociedade humana, ou a humanidade socializada.
4ª Tese
Feuerbach parte do fato da auto-alienação religiosa, da
duplicação do mundo no mundo religioso, representado, e
num real. O seu trabalho consiste em resolver o mundo
religioso na sua base mundana. Ele perde de vista que
depois de completado este trabalho ainda fica por fazer o
principal. É que o fato de esta base mundana se destacar
de si própria e se fixar, um reino autônomo, nas nuvens,
só se pode explicar precisamente pela autodivisão e pelo
contradizer-se a si mesma desta base mundana. É esta
mesma, portanto, que tem de ser primeiramente entendida
na sua contradição e depois praticamente revolucionada
por meio da eliminação da contradição. Portanto, depois
de, por exemplo a família terrena estar descoberta como o
segredo da sagrada família, é a primeira que tem, então,
de ser ela mesma teoricamente criticada e praticamente
revolucionada.
11ª tese
Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de
maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo.
Fonte: MARX, Karl. Teses sobre Feuerbach.
A transformação do mundo ou
as Onze teses de Marx sobre
Feuerbach
O pensamento para frente já há muito está na ordem do
dia e pode ser ouvido. Só os covardes procuram sempre
desconversar, e os mentirosos mantêm-se num plano
geral. Só eles escondem-se em roupas folgadas ou
pedantes, procuram estar sempre em outro lugar que não
aquele em que são flagrados. Porém, nem é possível
definir suficientemente o verdadeiro, mesmo quando ou
justamente quando a coisa ainda está tomando forma
diante dos olhos. Graças a esse faro para o essencial, já
com a idade de dezenove anos, Marx foi capaz de
produzir, na carta ao seu pai que se conservou, teses
fundamentais em formulações precisas. Esse tipo busca
de início entrar no âmago da questão, nunca desperdiça
tempo com o inútil, descarta-o assim que o reconhece
como tal. Assim, em tudo o que contempla largamente,
em tudo o que pondera longamente, e que se acrescenta
ao que tem, ele é capaz de, a cada momento, estar
novamente em forma, intervindo e realçando. O que dessa
forma pode ser compreendido mostra suas ênfases ao
caminhar. Com estas e nestas aguça-se a tração para
5ª Tese:
Feuerbach, não contente com o pensamento abstrato,
apela ao conhecimento sensível [sinnliche Anschauung];
mas, não toma o mundo sensível como atividade humana
sensível prática.
6ª Tese
Feuerbach resolve a essência religiosa na essência
humana. Mas, a essência humana não é uma abstração
inerente a cada indivíduo. Na sua realidade ela é o
conjunto das relações sociais, Feuerbach, que não entra
na crítica desta essência real, é, por isso, obrigado: 1. a
abstrair do processo histórico e fixar o sentimento
[Gemüt] religioso por si e a pressupor um indivíduo
abstratamente - isoladamente - humano; 2. nele, por isso,
a essência humana só pode ser tomada como "espécie",
12
diante, para que lhe sejam proveitosas até mesmo
possíveis digressões. Todavia, também esse indicativo, na
sua seqüência, nem sempre pode ser vislumbrado tão
rapidamente quanto pode ser citado em sua concisão.
Pois a concisão significativa é coerente, razão pela qual
oferece menos facilidade no que se refere a encontrar
rapidamente uma formulação bem-acabada.
do Estado, sim, já da organização social, que determina a
forma do Estado ─ como reconhece a Crítica da filosofia
do Estado de Hegel (1841-1843). A diferenciação que
Hegel faz entre sociedade burguesa e Estado, apontada
por Marx, já continha mais consciência econômica do que
possuíam seus epígonos, inclusive os feuerbachianos. O
distanciamento de Feuerbach ocorreu com todo o respeito
e primeiramente apenas como uma correção ou até mera
complementação; contudo, a perspectiva social,
totalmente nova, está clara desde o início. Assim, no dia
13 de março de 1843, Marx escreve para Ruge: “Os
aforismos de Feuerbach apenas num ponto não me
parecem corretos, ou seja, pelo fato de ele apontar demais
para a natureza e muito pouco para a política. Esta,
porém, é o único pacto que levaria a atual filosofia a
tornar-se uma verdade” (MEGA I, ½, p. 308). Os
Manuscritos econômico-filosóficos, de 1844, ainda
contêm uma significativa louvação de Feuerbach, ainda
que como contraposição às lucubrações de Bruno Bauer;
os Manuscritos louvam, assim, dentre os feitos de
Feuerbach, sobretudo a “fundação do materialismo
autêntico e da ciência real, quando Feuerbach torna a
relação ‘do homem com o homem’ igualmente o princípio
básico da teoria” (MEGA I, 3, S. 152). Todavia, os
Manuscritos econômico-filosóficos já ultrapassaram
Feuerbach muito mais do que dizem. Neles, a relação “do
homem com o homem” não permanece uma relação
antropológico-abstrata de cunho geral, como em
Feuerbach; ao contrário, a crítica da alienação humana
em relação a si mesma (transposta da religião para o
Estado) já penetra aí no cerne econômico do processo de
alienação. Isso ocorre não por último nas passagens
extraordinárias sobre a fenomenologia de Hegel, em que é
caracterizado o papel do trabalho na formação da história
e em que a obra de Hegel é interpretada quanto a esse
aspecto. Ao mesmo tempo, porém, os Manuscritos
econômico-filosóficos criticam essa obra porque ela
concebe a atividade laboral humana apenas como
atividade intelectual e não material. A passagem para a
economia política, portanto, afastando-se do homem
genérico de Feuerbach, acontece na primeira obra
empreendida em conjunto com Engels, em A sagrada
família, igualmente em 1844. Os Manuscritos
econômicos-filosóficos já continham a seguinte tese: “O
próprio trabalhador é um capital, uma mercadoria” (loc.
cit., p. 103), nada sobrando, portanto, da existência
humana segundo Feuerbach, a não ser a sua negação no
capitalismo; A sagrada família registrou o próprio
capitalismo como fonte dessa alienação mais forte e
definitiva. No lugar do homem genérico de Feuerbach,
com sua naturalidade abstrata e invariável, surgiu então
um conjunto historicamente alternante de relações sociais
e sobretudo antagônico quanto à classe social. A
alienação, entretanto, englobava as duas: tanto a classe
dos exploradores quanto a dos explorados, principalmente
no capitalismo, que é a forma mais intensa dessa autoalienação, dessa objetificação. “Porém”, consta em A
sagrada família, “a primeira classe sente-se bem e
afirmada nessa alienação de si mesma, está ciente de que
a alienação é seu próprio poder e possui dentro dela a
aparência de uma existência humana; a segunda sente-se
A época da composição
Assim, o entendimento tem de comprovar-se
constantemente frente a frases desse tipo. Em nenhuma
parte se pode fazer isso de modo mais renovador do que
na coleção compacta de instruções extremamente
compactas, conhecidas como as Onze teses sobre
Feuerbach. Marx as redigiu em abril de 1845 em Bruxelas,
muito provavelmente no embalo dos estudos
preparatórios para a Ideologia alemã. As Teses só foram
publicadas em 1888 por Engels, como anexo do seu
Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã. Ao
fazê-lo, Engels ocasionalmente deu aguns leves retoques
estilísticos no texto apenas rascunhado por Marx,
obviamente sem a menor modificação do conteúdo. Na
observação introdutória ao seu Ludwig Feuerbach, Engels
escreve o seguinte sobre as Teses: “Trata-se de notas para
posterior elaboração, registradas rapidamente, em
absoluto destinadas à impressão, mas inestimáveis como
o primeiro documento em que foi depositado o germe
genial da nova visão de mundo”. Feuerbach havia
conclamado a retornar das puras idéias à contemplação
sensorial, do espírito ao homem, incluindo a natureza
como a sua base. Como se sabe, essa rejeição tão
“humanista” quanto “naturalista” de Hegel (tendo o
homem como idéia central, a natureza como prius em vez
do espírito) teve uma influência muito forte sobre o jovem
Marx. A essência do cristianismo, publicado por
Feuerbach em 1841, as suas Teses provisórias sobre a
reforma da filosofia, de 1842, os seus Princípios da
filosofia do futuro, de 1843, tiveram um efeito tanto mais
libertador porque nem a escola dos hegelianos de
esquerda conseguiu se libertar de Hegel, antes não foi
além de uma mera crítica intra-hegeliana ao mestre do
idealismo.
“O
entusiasmo”,
diz
Engels
restrospectivamente no Ludwig Feuerbach, cerca de
cinqüenta anos depois, “foi geral: momentaneamente
todos nós éramos feuerbachianos. Com que entusiasmo
Marx saudou a nova concepção, e o quanto ele foi
influenciado por ela ─, pode ser verificado na leitura de A
sagrada família” (Ludwig Feuerbach, Diez, 1946, p. 14). A
juventude alemã de então acreditava estar finalmente
vendo, em vez de céu, terra, humana, imanente.
Entretanto, Marx livrou-se bem depressa dessa visão
imanente demasiado vaga da vida humana. Sua atividade
na Rheinischen Zeitung [Gazeta Renana] trouxe-lhe
contatos muito mais estreitos com questões políticas e
econômicas do que tiveram os hegelianos de esquerda e
também os feuerbachianos. Justamente esse contato fez
com que Marx passasse da crítica da religião, à qual
Feuerbach havia se limitado, de modo crescente à crítica
13
destruída na alienação, vislumbra nela a sua impotência e
a realidade de uma existência inumana” (MEGA I, 3, p.
206). Isto comprovou, enfim, que a produção e o modo de
troca respectivos, classistas e causadores da divisão do
trabalho, em grau extremo os capitalistas, são as fontes da
alienação. No mais tardar, a partir de 1843, Marx tornouse materialista; A sagrada família deu à luz, em 1844, a
concepção materialista da história, e com ela o socialismo
científico. E as Onze teses, surgidas entre A sagrada
família de 1844/1845 e a Ideologia alemã de 1845/46,
representam assim a despedida expressa de Feuerbach,
juntamente com a tomada de posse de uma herança
extremamente original. A experiência empírico-política do
período renana somada a Feuerbach deixaram Marx
imune contra o “espírito” e mais “espírito” da escola dos
hegelianos de esquerda. A posição assumida a partir do
proletariado fez com que Marx se tornasse causalmente
concreto, ou seja, verdadeiramente (a partir de um
fundamento) humanista.
existentes, sobretudo socialmente ativos, com relações
reais entre si e com a natureza, materialismo e história
teriam divergido constantemente, apesar de toda a
“antropologia”. Mas nesse ponto Feuerbach continua
sempre relevante para Marx, tanto como passagem
quanto como o único filósofo contemporâneo com o qual
uma controvérsia é possível, esclarecedora e frutífera.
Assim, as idéias fundamentais, às quais Marx reage
criticamente, as quais ele ultrapassa produtivamente,
constam basicamente no escrito principal de Feuerbach
intitulado A essência do cristianismo, de 1841. Além
disso, entram em cogitação as Teses provisórias sobre a
reforma da filosofia, escritas por Feuerbach em 1842, e os
Princípios da filosofia do futuro, de 1843. Os escritos
anteriores do filósofo dificilmente terão tido alguma
importância para Marx, já que, pelo menos até 1839,
Feuerbach nada tinha de original, por estar
demasiadamente sob a influência de Hegel. Somente a
partir de então, Feuerbach aplicou à religião o conceito
hegeliano da auto-alienação. Somente a partir de então, o
antigo hegeliano disse que sua primeira idéia teria sido
Deus, a segunda, a razão, sua terceira e última seria o
homem. Isto quer dizer: assim como a filosofia hegeliana
da razão superara a fé da Igreja, assim a filosofia
colocaria agora o ser humano (incluindo a natureza como
sua base) no lugar de Hegel. Não obstante tudo isso,
Feuerbach não conseguiu encontrar o caminho até a
realidade; ele jogou fora justamente o mais importante em
Hegel, o método dialético-histórico. As Onze teses foram
as primeiras a indicar o caminho do mero antihegelianismo para a realidade passível de transformação,
do materialismo da etapa para o da linha de frente.
Obviamente a despedida em questão aqui não representa
uma ruptura completa. As relações com Feuerbach
perpassam grande parte da obra de Marx, também após a
despedida representada pelas Onze teses. O que está mais
próximo da terra que ficou para trás, já por razões
temporais, é a Ideologia alemã, que vem imediatamente
após as Teses. Diversas versões críticas das Teses
retornam nela, sendo que, no entanto, há uma diferença
muito grande entre a crítica a Feuerbach e a liquidação
impiedosa dos falsos epígonos de Hegel. Feuerbach ainda
fazia parte da ideologia burguesa; por isso, a controvérsia
com as encarnações decadentes aparentemente radicais
originadas dele, como Bruno Bauer e Stirner,
necessariamente atingia também a ele na Ideologia alemã.
Porém, de tal maneira que o próprio filósofo em parte
ainda fornecia o punho da arma conseqüente com que
Marx investia contra ele. Mas sobretudo contra os
hegelianos de esquerda. Em conformidade com isso, a
Ideologia alemã inicia fundamentalmente com o nome de
Feuerbach e, tomando como ponto de partida a sua
crítica da religião, critica a “superação” meramente intraidealista do idealismo. “A nenhum desses filósofos
ocorreu perguntar pela relação entre a filosofia alemã e a
realidade alemã, pela relação entre a sua crítica e o seu
próprio contexto material” (MEGA I, 5, p. 10). Contudo,
Marx enfatiza, por outro lado, a “grande preeminência [de
Feuerbach] frente aos materialista ‘puros’, no fato de
reconhecer que também o homem é um ‘objeto sensorial
[sinnlicher Gegenstand]’”. De fato, o referido
reconhecimento caracteriza, justamente dessa forma, a
importância de Feuerbach para a formação do marxismo,
assim como a crítica ao seu homem abstrato, aistórico,
aponta
o
aspecto
não-feuerbachiano,
sim,
antifeuerbachiano do próprio marxismo já desenvolvido.
O reconhecimento diz o seguinte: sem considerar o
homem igualmente como um “objeto sensorial” teria sido
muito mais difícil elaborar no nível materialista o humano
como raiz de todas as coisas sociais. O materialismo
antropológico de Feuerbach designa assim a transição
possível facilitada do materialismo meramente mecânico
para o histórico. A crítica diz o seguinte: sem a
concretização do humano nos homens realmente
A questão do agrupamento
Uma questão antiga e nova ao mesmo tempo é a de como
as Teses devem ser agrupadas. Pois assim como estão,
destinadas ao entendimento próprio, e não para serem
impressas, elas apresentam diversos pontos de interseção.
Também trazem o mesmo conteúdo em outra parte, nem
sempre permitem discernir a razão do ordenamento e da
seqüência. Em vista disso, exigências didáticas deram
origem a diversas tentativas de reordenar as Teses
conforme seus traços comuns e de classificá-las assim em
grupos. Nesse caso, procura-se às vezes manter a
seqüência numérica, como se as Onze teses pudessem ser
subsumidas uma após a outra, na seqüência em que
aparecem. Esse agrupamento fiel à numeração tem, por
exemplo, o seguinte aspecto: as teses 1, 2 e 3 encontramse sob “Unidade de teoria e práxis no pensamento”, as
teses 4 e 5 sob “Compreensão da realidade em
contradições”, as teses 6, 7, 8 e 9 sob “A própria realidade
em contradições”, as tese 10 e 11 sob “Lugar e tarefa do
materialismo dialético na sociedade”. Esta é uma
ordenação por cifras; como há muitas outras desse tipo e
de conteúdo bem distinto uma das outras, resulta que,
neste caso, o mero valor numérico significa muito pouco.
Cada uma dessas ordenações, por um lado, valoriza
demasiadamente a seqüência, fazendo com que esteja
14
gravada por toda a eternidade, como a Lei das Doze
Tábuas ou nos Dez mandamentos; por outro lado, trata-a
de modo simplório e formalista, como se fosse uma série
de selos. A numeração, no entanto, não é sistemática, e
Marx é o que menos tem necessidade desse tipo de
compensação. Por isso, deve-se agrupar filosófica e não
aritmeticamente, isto é, a seqüência das teses é
unicamente a de seus temas e conteúdos. Tanto quanto se
pode enxergar, ainda não existe nenhum comentário às
Onze teses; porém somente com ele, como resultado da
própria causa comum, evidencia-se igualmente a
coerência que continua a produzir-se, tanto a sua
concisão quanto a sua profundidade. Surge, então, em
primeiro lugar, o grupo epistemológico, referente à
contemplação e atividade (teses 5, 1 e 3); em segundo
lugar, o grupo histórico-antropológico, referente à autoalienação, sua causa real e o verdadeiro materialismo
(teses 4, 6, 7, 9 e 10); em terceiro lugar, o grupo
sintetizador ou grupo teoria-práxis, referente a
comprovação e validação (teses 2 e 8). Por último, segue a
tese mais importante, a senha, na qual os espíritos não só
se dividem definitivamente, mas com cuja utilização eles
deixam de ser meros espíritos (tese 11). O grupo
epistemológico é apropriadamente aberto com a tese 5, o
grupo histórico-antropológico, com a tese 4; pois essas
teses designam as duas teorias fundamentais de
Feuerbach, que Marx reconhece relativamente, e as quais
ele ultrapassa nas demais teses dos respectivos grupos. A
teoria assumida na tese 5 é a da rejeição do pensamento
abstrato, na tese 4, a da rejeição da alienação humana. E,
em conformidade com o primeiro traço básico da dialética
materialista, cuja imagem anuncia-se aqui, há entre as
teses individuais dentro do rerspectivo grupo um
movimento livre e complementar das vozes; assim como
entre os próprios grupos ocorre uma interação constante,
um todo único e coerente.
velhas circunstâncias com uma actividade completamente
mudada, o que permite a distorção especulativa de fazer
da história posterior o objectivo da anterior, por exemplo,
colocar como subjacente ao descobrimento da América o
objectivo de proporcionar a eclosão da Revolução
Francesa; deste modo, a história recebe então os seus
objectivos à parte, e torna-se uma "pessoa a par de outras
pessoas" (como sejam: "Consciência de Si, Crítica,
Único", etc.), enquanto aquilo que se designa com as
palavras "Determinação", "Finalidade", "Germe", "Ideia"
da história anterior mais não é do que uma abstracção
formada a partir da história posterior, uma abstracção a
partir da influência activa que a história anterior exerce
sobre a posterior.
Quanto mais se expandem, no curso deste
desenvolvimento, os diversos círculos que actuam uns
sobre os outros, quanto mais o isolamento original de
cada nacionalidade é aniquilado pelo modo de produção e
o intercâmbio já formados e pela divisão do trabalho entre
as diferentes nações assim naturalmente produzida por
eles, tanto mais a história se torna história mundial, pelo
que, por exemplo, quando em Inglaterra é inventada uma
máquina que deixa sem pão inúmeros operários na Índia e
na China e transforma profundamente toda a forma de
existência destes impérios, este invento torna-se um facto
histórico-mundial; e o açúcar e o café provaram a sua
importância mundial no século XIX pelo facto de a falta
destes produtos, provocada pelo Sistema Continental
Napoleónico [N15] ter levado os Alemães [21] à revolta
contra Napoleão e se ter assim tornado a base real das
guerras gloriosas de libertação de 1813. Daqui decorre
que esta transformação da história em história mundial
não é, de modo nenhum, um mero acto abstracto da
"Consciência de Si", do Espírito do mundo ou de qualquer
outro espectro metafísico, mas um acto totalmente
material, demonstrável empiricamente, um acto cuja
prova é fornecida por cada indivíduo no seu dia-a-dia, ao
comer, ao beber e ao vestir-se.
[BLOCH, Ernst. O princípio esperança [fragmento]
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Na história até aos nossos dias é, sem dúvida, igualmente
um facto empírico que cada um dos indivíduos, à medida
que a actividade se alarga à escala histórico-mundial, fica
cada vez mais escravizado sob um poder que lhe é
estranho (cuja pressão eles imaginaram como chicana do
chamado Espírito do mundo, etc.), um poder que se
tornou cada vez mais desmedido e que em última
instância se legitima como o mercado mundial. Mas, do
mesmo modo, está empiricamente provado que pelo
derrubamento do estado de coisas vigente na sociedade
por meio da revolução comunista (da qual mais adiante
falaremos) e da abolição da propriedade privada que
àquela é idêntica, este poder tão misterioso para os
teóricos alemães será dissolvido, e então será realizada a
libertação de cada um dos indivíduos na medida em que a
história se transforma completamente em história
mundial (49). Depois do que atrás ficou dito, torna-se
claro que a verdadeira riqueza espiritual do indivíduo
depende completamente da riqueza das suas relações
reais. Só deste modo os diferentes indivíduos são
libertados das várias barreiras nacionais e locais,
colocados em relação prática com a produção (também
1.7 – Existência e Consciência Social
[Conclusões da concepção
concepção
materialista da história:
continuidade do processo
histórico, transformação da
história em história mundial, a
necessidade de uma revolução
comunista]
[20] A história não é senão a sucessão das diversas
gerações, cada uma das quais explora os materiais,
capitais, forças de produção que lhe são legados por todas
as que a precederam, e que por isso continua, portanto,
por um lado, em circunstâncias completamente mudadas,
a actividade transmitida, e por outro lado modifica as
15
com a espiritual) de todo o mundo e colocados em
condições de adquirir a capacidade de fruição para toda
esta variada produção da Terra inteira (as criações dos
homens). A dependência integral, esta forma natural da
cooperação histórico-mundial dos indivíduos, é
transformada [22] por esta revolução comunista no
controlo e domínio consciente destes poderes que,
gerados da acção dos homens uns sobre os outros, até
aqui se lhes têm imposto e os têm dominado como
poderes completamente estranhos. Ora, esta visão pode,
de novo, ser concebida de modo idealista-especulativo, ou
seja, de modo fantástico como "autogeração da espécie"
(a "sociedade como sujeito"), e deste modo a série
consecutiva de indivíduos em conexão entre si pode ser
imaginada como um único indivíduo que realiza o
mistério de se gerar a si próprio. Torna-se aqui evidente
que os indivíduos se fazem de facto uns aos outros, física
e espiritualmente, mas não se fazem a si próprios, nem no
sentido absurdo do sagrado Bruno, nem no sentido do
"Único", do homem "feito".
derrubada, mas também porque a classe que a derruba só
numa revolução consegue sacudir dos ombros toda a
velha porcaria e tornar-se capaz de uma nova fundação
da sociedade(52).
Resumo da concepção materialista da história
[24] Esta concepção da história assenta, portanto, no
desenvolvimento do processo real da produção, partindo
logo da produção material da vida imediata, e na
concepção da forma de intercâmbio intimamente ligada a
este modo de produção e por ele produzida, ou seja, a
sociedade civil nos seus diversos estádios, como base de
toda a história, e bem assim na representação da sua
acção como Estado, explicando a partir dela todos os
diferentes produtos teóricos e formas da consciência — a
religião, a filosofia, a moral, etc., etc. — e estudando a
partir destas o seu nascimento; deste modo, naturalmente,
a coisa pode também ser apresentada na sua totalidade (e
por isso também a acção recíproca destas diferentes
facetas umas sobre as outras). Ao contrário da visão
idealista da história, não tem de procurar em todos os
períodos uma categoria, pois permanece constantemente
com os pés assentes no chão real da história; não explica
a práxis a partir da ideia, explica as formações de ideias a
partir da práxis material, e chega, em consequência disto,
também a este resultado(53): todas as formas e produtos
da consciência podem ser resolvidos não pela crítica
espiritual, pela dissolução na "Consciência de Si" ou pela
transformação
em
"aparições",
"espectros",
"manias"[N17], etc., mas apenas pela transformação
prática [revolucionária] das relações sociais reais de que
derivam estas fantasias idealistas — a força motora da
história, também da religião, da filosofia e de toda a
demais teoria, não é a crítica, mas sim a revolução. Ela
mostra que a história não termina resolvendo-se na
"Consciência de Si" como "espírito do espírito"(54), mas
que nela, em todos os estádios, se encontra um resultado
material, uma soma de forças de produção, uma relação
historicamente criada com a natureza e dos indivíduos
uns com os outros que a cada geração é transmitida pela
sua predecessora, uma massa de forças produtivas,
capitais e circunstâncias que, por um lado, é de facto
modificada pela nova geração, mas que por outro lado
também lhe prescreve as suas próprias condições de vida e
lhe dá um determinado desenvolvimento, um carácter
especial -, mostra, portanto, que as circunstâncias fazem
os homens tanto [25] como os homens fazem as
circunstâncias.
Por fim, da concepção da história que desenvolvemos
obtemos ainda os seguintes resultados: 1) No
desenvolvimento das forças produtivas atinge-se um
estádio no qual se produzem forças de produção e meios
de intercâmbio que, sob as relações vigentes, só causam
desgraça, que já não são forças de produção, mas forças
de destruição (maquinaria e dinheiro) — e, em conexão
com isto, é produzida uma classe que tem de suportar
todos os fardos da sociedade sem gozar das vantagens
desta e que, excluída da sociedade [23], é forçada ao mais
decidido antagonismo a todas as outras classes; uma
classe que constitui a maioria de todos os membros da
sociedade e da qual deriva a consciência sobre a
necessidade de uma revolução radical, a consciência
comunista, a qual, evidentemente, também se pode formar
no seio das outras classes por meio da observação da
posição desta classe; 2) que as condições, no seio das
quais podem ser aplicadas determinadas forças de
produção, são as condições do domínio de uma
determinada classe da sociedade, cujo poder social,
decorrente da sua propriedade, tem a sua expressão
prática-idealista na respectiva forma de Estado, e por isso
toda a luta revolucionária se dirige contra uma classe que
até então dominou(50); 3) que em todas as revoluções
anteriores o modo da actividade permaneceu sempre
intocado e foi só uma questão de uma outra distribuição
desta actividade, de uma nova repartição do trabalho a
outras pessoas, ao passo que a revolução comunista se
dirige contra o modo da actividade até aos nossos dias,
elimina o trabalho(51) e suprime o domínio de todas as
classes suprimindo as próprias classes, porque é realizada
pela classe que na sociedade já não vale como uma classe,
não é reconhecida como uma classe, é já a expressão da
dissolução de todas as classes, nacionalidades, etc., no
seio da sociedade actual; e 4) que, tanto para a produção
massiva desta consciência comunista como para a
realização da própria causa, é necessária uma
transformação massiva dos homens que só pode
processar-se num movimento prático, numa revolução;
que, portanto, a revolução não é só necessária porque a
classe dominante de nenhum outro modo pode ser
Esta soma de forças de produção, capitais e formas de
intercâmbio social, que todos os indivíduos e todas as
gerações vêm encontrar como algo de dado, é o
fundamento real daquilo que os filósofos se têm
representado como "substância" e "essência do Homem",
daquilo que têm apoteotizado e combatido — um
fundamento real que de modo nenhum é afectado nos
seus efeitos e influências sobre o desenvolvimento dos
homens pelo facto de estes filósofos se rebelarem contra
ele como "Consciência de Si" e o "Único". Estas condições
16
de vida que as diferentes gerações já encontram vigentes é
que decidem, também, se o abalo revolucionário
periodicamente recorrente na história será suficientemente
forte ou não para deitar a baixo a base de todo o existente,
e quando estes elementos materiais de um
revolucionamento total — ou seja, por um lado, as forças
produtivas existentes, por outro, a formação de uma
massa revolucionária que faz a revolução não apenas
contra estas ou aquelas condições da sociedade anterior,
mas contra a própria "produção da vida" vigente até
agora, contra a "actividade total" em que se baseava —
não estão presentes, então é completamente indiferente
para o desenvolvimento prático que a ideia desta
transformação profunda já tenha sido expressa centenas
de vezes — como o prova a história do comunismo.
Mas, se o protestantismo não foi a verdadeira solução,
representou a verdadeira colocação do problema. Já não
se tratava da luta do leigo com o sacerdote que existe fora
dele, mas da luta com o sacerdote que existe dentro de si
próprio, com sua natureza sacerdotal. E, se a
transformação protestante do leigo alemão em sacerdote
emancipou os papas leigos, os príncipes, com toda sua
clerezia, se emancipou privilegiados e filisteus, a
transformação filosófica dos alemães com espírito
sacerdotal em homens emancipará o povo. Mas, do
mesmo modo que a emancipação não se deteve nos
príncipes, tampouco a secularização dos bens se deterá no
despojo da igreja, realizada sobretudo pela hipócrita
Prússia. A guerra dos camponeses, fato mais radical da
história alemã, lançou-se contra a teologia. Hoje, com o
fracasso da própria teologia, o fato mais servil da história
alemã, nosso status quo, se lançará contra a filosofia. As
vésperas da Reforma, a Alemanha oficial era o servo mais
submisso de Roma. As vésperas de sua revolução, é o
servo submisso de algo menos que Roma, Prússia e
Áustria, de fidalguetos rurais e filisteus,
Fonte: MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia
Alemã [fragmento]
--------------------------------------------------------1.6 – A realização da Filosofia e o proletariado
Não obstante, uma dificuldade fundamental parece oporse a uma revolução alemã radical.
[As armas da crítica]
Com efeito, as revoluções necessitam de um elemento
passivo, de uma base material. A teoria só se realiza numa
nação na medida que é a realização de suas necessidades.
Ora, ao imenso divórcio existente entre os postulados do
pensamento alemão e as respostas da realidade alemã
corresponderá o mesmo divórcio existente entre a
sociedade alemã e o Estado e consigo mesma! Não basta
que o pensamento estimule sua realização; é necessário
que esta mesma realidade estimule o pensamento -
As armas da crítica não podem, de fato, substituir a crítica
das armas; a força material tem de ser deposta por força
material, mas a teoria também se converte em força
material uma vez que se apossa dos homens. A teoria é
capaz de prender os homens desde que demonstre sua
verdade face ao homem, desde que se torne radical. Ser
radical é atacar o problema em suas raízes. Para o
homem, porém, a raiz é o próprio homem. A prova
evidente do radicalismo da teoria alemã e, portanto, de
sua energia prática, consiste em saber partir
decididamente da superação positiva da religião. A crítica
da religião derruba a idéia do homem cama essência
suprema para si próprio. Por conseguinte, com o
imperativo categórico mudam todas as relações em que o
homem é um ser humilhado, subjugado, abandonado e
desprezível, relações que nada poderia ilustrar melhor do
que aquela exclamação de um francês ao tomar
conhecimento da existência de um projeto de criação do
imposto sobre cães: Pobres cães! Querem tratá-los como
se fossem pessoas!
Todavia, a Alemanha não escalou simultaneamente com
os povos modernos as fases intermediárias da
emancipação política. Praticamente,. não chegou sequer
às fases que superou teoricamente. Como poderia, de um
salto mortal, remontar-se não só sobre seus próprios
limites, como também e ao mesmo tempo, sobre os limites
dos povos modernos, sobre limites que na realidade devia
sentir e aos quais devia aspirar como a emancipação de
seus limites reais! Uma revolução radical só pode ser a
revolução de necessidades radicais, cujas premissas e
lugares de origem parecem faltar completamente.
Não obstante, se a Alemanha só abstratamente
acompanhou o desenvolvimento dos povos modernos,
sem chegar a participar ativamente das lutas reais deste,
não é menos verdade que, de outro lado, partilhou os
sofrimentos deste mesmo desenvolvimento, sem usufruir
seus benefícios e satisfações parciais. A atividade abstrata
de um lado, corresponde o sofrimento abstrato do outro.
Assim, numa bela manhã, a Alemanha se encontrará em
nível idêntico à decadência européia antes mesmo de
haver atingido o nível da emancipação européia.
Poderíamos compará-la a um idólatra que agonizasse,
vítima do cristianismo.
Até historicamente a emancipação teórica tem um
interesse especificamente prático para a Alemanha. O
passado revolucionário da Alemanha é, de fato, um
passado histórico: é a Reforma. Como então no cérebro
do frade, a revolução começa agora no cérebro do
filósofo.
Lutero venceu efetivamente a servidão pela devoção
porque a substituiu pela servidão da convicção. Acabou
com a fé na autoridade porque restaurou a autoridade da
fé. Converteu sacerdotes em leigos porque tinha
convertido leigos em sacerdotes. Libertou o homem da
religiosidade externa porque erigiu a religiosidade no
interior do homem. Emancipou o corpo das cadeias
porque sujeitou de cadeias o coração.
Fixemo-nos, antes de mais nada, nos governos alemães, e
os veremos de tal modo impulsionados pelas condições da
época, pela situação da Alemanha, pelo ponto de vista da
cultura alemã e, finalmente, por seu próprio instinto
17
certeiro, a combinar os defeitos civilizados do mundo dos
Estados modernos, cujas vantagens não possuímos, com
os defeitos bárbaros do antigo regime, de que nos
podemos jactar até a saciedade, que a Alemanha, senão
por prudência, pelo menos à falta desta tem que participar
cada vez mais da constituição de Estados que estão muito
além de seu status quo. Acaso, por exemplo, há no mundo
algum país que partilhe tão simplesmente como a
chamada Alemanha constitucional todas as ilusões do
Estado constitucional sem partilhar de suas realidades.
Ou não teria que ser necessariamente uma ocorrência do
governo alemão o fato de associar os tormentos da
censura aos tormentos das leis de setembro na França,
que pressupõem a liberdade de imprensa. Assim como no
panteão romano se reuniam os deuses de todas as nações,
no sacro império romano germânico se reúnem os
pecados de todas as formas de estado. Que este ecletismo
chegará a alcançar um nível até hoje inimaginado, o
garante, de fato, o enfado estético-político de um monarca
alemão que aspira desempenhar, se não através da pessoa
do povo, pelo menos em sua própria, se não para o povo,
pelo menos para si mesmo, todos os papéis da
monarquia: a feudal e a burocrática, a absoluta e a
constitucional, a autocrática e a democrática. A
Alemanha, como a ausência do presente político
constituído num mundo próprio, não poderá derrubar as
barreiras especificamente alemães sem derrubar a barreira
geral do presente político.
defeitos da sociedade se condensem numa classe, que
uma determinada classe resuma em si a repulsa geral, que
seja a incorporação do obstáculo geral; é necessário, para
isto, que uma determinada esfera social seja considerada
como crime notório de toda a sociedade, de tal modo que
a emancipação desta esfera surja como autoemancipação
geral. Para que um estado seja par excellence o estado de
libertação, é necessário que outro seja o estado de
sujeição por antonomásia. O significado negativo geral da
nobreza e do clero franceses condicionou a significação
positiva geral da classe inicialmente delimitadora e
contraposta, da burguesia.
Todavia, todas as classes especiais da Alemanha carecem
de conseqüência, rigor, arrojo e intransigência capazes de
convertê-las no representante negativo da sociedade. Além
do mais, todas carecem da grandeza de espírito que
pudesse
identificar
uma
delas,
ainda
que
momentaneamente, com o espírito do povo; todas
carecem da genialidade que infunde o entusiasmo do
poder político ao poder material, da intrepidez
revolucionária que lança o desafio ao inimigo: Nada SOU
e tudo deveria ser. Esse modesto egoísmo que faz valer e
permite que outros também façam valer suas próprias
limitações é o fundo básico da moral e da honradez de
indivíduos e classes na Alemanha. Por isto, a relação
existente entre as diversas esferas da sociedade alemã não
é dramática, mas épica. Cada uma delas começa a sentir e
a fazer chegar às outras suas pretensões, não ao se ver
oprimida, mas quando as circunstâncias do momento,
sem intervenção sua, criam uma base social sobre a qual,
por sua vez, possa exercer pressão. Até mesmo o amor
próprio moral da classe média alemã repousa sobre a
consciência de ser o representante geral da mediocridade
filistéia de todas as demais classes. Portanto, não são
apenas os reis alemães que ascendem ao trono mal à
propos [Inoportunamente], mas todas as esferas da
sociedade burguesa, que sofrem sua derrota antes de
terem festejado a vitória, que desenvolvem seus próprios
limites antes de terem ultrapassado os limites que se
opõem a estes, que fazem valer sua pusilanimidade antes
de fazer valer sua arrogância, de tal modo que até mesmo
a oportunidade de desempenhar um grande papel
desaparece antes de existir e que cada classe, tão logo
começa a lutar com aquela que lhe está acima, vê-se
envolvida na luta com aquela que lhe está abaixo. Daí
porque os príncipes estão em luta contra a burguesia, os
burocratas contra a nobreza e os burgueses contra todos
eles, enquanto o proletário começa a lutar contra o
burguês. A classe média nem sequer se atreve a conceber o
pensamento da emancipação de seu ponto de vista, já que
o desenvolvimento das condições sociais, do mesmo
modo que o progresso da teoria política, se encarregam de
revelar este mesmo ponto de vista como algo antiquado
ou, pelo menos, problemático.
Para a Alemanha, o sonho utópico não é a revolução
radical, não é a emancipação humana geral, mas, ao
contrário, a revolução parcial, a revolução meramente
política, a revolução que deixa de pé os pilares do edifício.
Sobre o que repousa uma revolução parcial, uma
revolução meramente política? No fato de emancipar uma
parte da sociedade burguesa e de instaurar sua
dominação geral, no fato de uma determinada classe
empreender a emancipação geral da sociedade a partir de
sua situação especial. Esta classe emancipa toda a
sociedade, mas apenas sob a hipótese de que toda a
sociedade se encontre na situação desta classe, isto é, que
possua, por exemplo, dinheiro e cultura ou que possa
adquiri-los.
Nenhuma classe da sociedade burguesa pode
desempenhar este papel sem provocar um momento de
entusiasmo em si e na massa, momento durante o qual
confraterniza e se funde com a sociedade em geral, com
ela se confunde e é sentida e reconhecida como seu
representante geral, que suas pretensões e direitos são, na
verdade, os direitos e ai pretensões da própria sociedade,
que esta classe é realmente o cérebro e o coração da
sociedade. Somente em nome dos direitos gerais da
sociedade pode uma classe especial reivindicar para si a
dominação geral. E, para atingir esta posição
emancipadora e poder, portanto, explorar politicamente
todas as esferas da sociedade em benefício da própria
esfera, não bastam por si sós a energia revolucionária e o
amor próprio espiritual. Para que coincidam a revolução
de um povo e a emancipação de uma classe especial da
sociedade burguesa, para que uma classe valha por toda a
sociedade, é necessário, pelo contrário, que todos os
Na França, basta que alguém seja alguma coisa para
querer ser todas as coisas. Na Alemanha, ninguém pode
ser nada se não quiser renunciar a tudo. Na França, a
emancipação parcial é o fundamento da emancipação
universal. Na Alemanha, a emancipação universal é a
conditio sine que non de toda emancipação parcial.
18
Enquanto na França é a realidade da emancipação
gradual que tem de engendrar a liberdade total, na
Alemanha, ao contrário, é justamente a sua
impossibilidade. Na França, toda classe é um político
idealista que se sente como representante das
necessidades sociais em geral, ao invés de sentir-se como
representante de uma classe especial. Por isto, o papel
emancipador passa por turnos, em movimento dramático,
entre as distintas classes do povo francês até atingir,
finalmente, a classe que já não realiza a liberdade social
sob a hipótese de certas condições que se encontram à
margem do homem e que, não obstante, foram criadas
pela sociedade humana, mas que organiza todas as
condições de existência a partir da hipótese da liberdade
social. Pelo contrário, na Alemanha, onde a vida prática
tão pouco tem de espiritual assim como a vida espiritual
de prático, nenhuma classe da sociedade burguesa sente a
necessidade nem a capacidade de emancipação geral até
ver-se obrigada a isto por sua situação imediata, pela
necessidade material, pelas suas próprias cadeias.
Onde reside, pois,
emancipação alemã?
a
possibilidade
positiva
negativo da sociedade. O proletariado está amparado,
então, em relação ao mundo que nasce, da mesma razão
que assiste o rei alemão em relação ao mundo existente,
ao denominar o povo seu povo, como ao cavalo seu
cavalo. Ao declarar o povo sua propriedade privada, o rei
se limita a expressar que o proprietário privado é o rei.
Assim como a filosofia encontra no proletariado suas
armas materiais, o proletariado encontra na filosofia suas
armas espirituais. Com a mesma rapidez que o raio do
pensamento penetra a fundo neste puro solo popular, se
efetuará a emancipação dos alemães como homens.
Resumindo e concluindo:
A única emancipação praticamente possível da Alemanha
é a emancipação do ponto de vista da teoria, que declara
o homem essência suprema do homem. Na Alemanha, a
emancipação da Idade Média só é possível como
emancipação paralela das superações parciais da Idade
Média. Na Alemanha, não se pode derrubar nenhum tipo
de servidão sem derrubar todo tipo de servidão em geral.
A meticulosa Alemanha não pode revolucionar sem
revolucionar seu próprio fundamento. A emancipação do
alemão é a e emancipação do homem. O cérebro desta
emancipação é a filosofia; seu coração, o proletariado. A
filosofia não pode se realizar sem a extinção do
proletariado nem o proletariado pode ser abolido sem a
realização da filosofia.
da
Resposta: na formação de uma classe com cadeias
radicais, de uma classe da sociedade burguesa que não é
uma classe da sociedade burguesa; de um estado que é a
dissolução de. todos os estados; de uma esfera que possui
um caráter universal por seus sofrimentos universais e que
não reclama nenhum direito especial para si, porque não
se comete contra ela nenhuma violência especial, senão a
violência pura e simples; que já não pode apelar a um
título histórico, mas simplesmente ao título humano; que
não se encontra em nenhuma espécie de contraposição
particular com as conseqüências, senão numa
contraposição universal com as premissas do Estado
alemão; de uma esfera, finalmente, que não pode
emancipar-se sem se emancipar de todas as demais
esferas da sociedade e, simultaneamente, de emancipar
todas elas; que é, numa palavra, a perda total do homem e
que, por conseguinte, só pode atingir seu objetivo
mediante a recuperação total do homem. Esta dissolução
da sociedade como uma classe especial é o proletariado.
Quando se cumprirem todas as condições interiores, o
canto do galo gaulês anunciará o dia da ressurreição da
Alemanha.
Fonte: MARX, Karl. Introdução à crítica do Direito de
Hegel. [fragmentos]
O proletariado só começa a surgir na Alemanha, mediante
o movimento industrial que desponta, pois o que forma o
proletariado não é a pobreza que nasce naturalmente, mas
a pobreza que se produz artificialmente; não é a massa
humana oprimida mecanicamente pelo peso da sociedade,
mas aquela que brota da aguda dissolução desta e, em
especial, da dissolução da classe média, ainda que
gradualmente, como se compreende, venham a
incorporar-se também a suas fileiras a pobreza natural e
os servos cristãos-germânicos da gleba
Ao proclamar a dissolução da ordem universal anterior, o
proletariado nada mais faz do que proclamar o segredo de
sua própria existência, já que ele é a dissolução de fato
desta ordem universal. Ao reclamar a negação da
propriedade privada, o proletariado não faz outra coisa
senão erigir a princípio de sociedade aquilo que a
sociedade erigiu em princípio seu, o que já se personifica
nele, sem intervenção de sua parte, como resultado
19
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