cavernas e princípios da ciência mais moderna e progressista; preconceitos de todas as fases históricas passadas, grosseiramente localistas, e intuições de uma futura filosofia que será própria do gênero humano mundialmente unificado. Criticar a própria concepção de mundo, portanto, significa torná-la unitária e coerente e elevá-la até o ponto atingido pelo pensamento mundial mais elevado. Significa, portanto, criticar também a própria filosofia até hoje existente, na medida em que ela deixou estratificações consolidadas na filosofia popular. O início da elaboração crítica é a consciência daquilo que somos realmente, isto é, um “conhece-te a ti mesmo” como produto do processo histórico até hoje desenvolvido, que deixou em ti uma infinidade de traços recebidos sem benefício no inventário. Deve-se fazer, inicialmente, este inventário. 1.1 - A filosofia como atividade social. [Filosofia, preconceito e linguagem] linguagem] Deve-se discutir o preconceito, muito difundido, de que a filosofia seja algo muito difícil pelo fato de ser a atividade intelectual própria de uma de uma determinada categoria de cientistas especializados ou de filósofos profissionais e sistemáticos. Deve-se, portanto, demonstrar preliminarmente, que todos os homens são “filósofos”, definindo os limites e as características desta “filosofia espontânea” peculiar a “todo o mundo”, isto é, da filosofia que está contida: 1) na própria linguagem, que é um conjunto de noções e de conceitos determinados e não, simplesmente, de palavras gramaticamente vazias de conteúdo; NOTA II. Não se pode separar a filosofia da História da Filosofia, nem a cultura da História da Cultura. No sentido mais imediato e determinado, não podemos ser filósofos – isto é, ter uma concepção do mundo criticamente coerente – sem a consciência da nossa historicidade, da fase de desenvolvimento por ela representada e do fato de que ela está em contradição com outras concepções ou com elementos de outras concepções. A própria concepção do mundo responde a determinados problemas colocados pela realidade, que são bem determinados e “originais” em sua atualidade. Como é possível pensar o presente, e o presente bem determinado, com um pensamento elaborado por problemas de um passado bastante remoto e superado? Se isto ocorre, nós somos “anacrônicos” em face da época em que vivemos, nós somos fosseis e não seres modernos. Ou, pelo menos, somos “compostos” bizarramente. E ocorre, de fato, que grupos sociais que, em determinados aspectos, exprimem a mais desenvolvida modernidade, em outros manifestam-se atrasados com relação à sua própria posição social, sendo, portanto, incapazes de completa autonomia histórica. 2) no senso comum e no bom-senso; 3) na religião popular e, conseqüentemente, em todo o sistema de crenças, superstições, opiniões, modos de ver e de agir que se manifestam naquilo que se conhece geralmente por “folclore”. Após demonstrar que todos são filósofos, ainda que a seu modo, inconscientemente (porque, inclusive, na mais simples manifestação de uma atividade intelectual qualquer, na “linguagem”, está contida uma determinada concepção de mundo), passemos ao segundo momento, ao momento da crítica e da consciência, ou seja, ao seguinte problema: – é preferível “pensar” sem disto ter consciência crítica, isto é, “participar” de uma concepção de mundo “imposta” mecanicamente pelo ambiente exterior, ou seja, por um dos grupos sociais nos quais todos estão automaticamente envolvidos desde sua entrada no mundo consciente (e que pode ser a própria aldeia ou a província, pode se originar na paróquia e na “atividade intelectual” do vigário ou do velho patriarca, cuja “sabedoria” dita leis, na mulher que herdou a sabedoria das bruxas ou no pequeno intelectual avinagrado pela própria estupidez e pela impotência para a ação) ou é preferível elaborar a própria concepção do mundo de uma maneira crítica e consciente e, portanto, em ligação com este trabalho do próprio cérebro, escolher a própria esfera de atividade, participar ativamente na produção da história do mundo, ser o guia de si mesmo e não aceitar do exterior, passiva e servilmente, a marca da própria personalidade? NOTA III. Se é verdade que toda linguagem contém os elementos de uma concepção do mundo e de uma cultura, será igualmente verdade que, a partir da linguagem de cada um, é possível julgar da maior ou menor complexidade da sua concepção do mundo. Quem fala somente o dialeto e compreende a língua nacional em graus diversos, participa necessariamente de uma intuição do mundo mais ou menos restrita e provinciana, fossilizada, anacrônica em relação às grandes correntes de pensamento que dominam a história mundial. Seus interesses serão restritos, mais ou menos corporativos ou economicistas, não universais. Se nem sempre é possível aprender outras línguas estrangeiras a fim de colocar-se em contato com vidas culturais diversas, deve-se pelo menos conhecer bem a língua nacional. Uma grande cultura pode traduzir-se na língua de outra grande cultura, isto é, uma grande língua nacional historicamente rica e complexa pode traduzir qualquer outra grande cultura, ou seja, ser uma expressão mundial. Mas, com um dialeto, não é possível fazer a mesma coisa. NOTA I. Pela própria concepção de mundo, pertencemos sempre a um determinado grupo, precisamente o de todos os elementos sociais que partilham de um mesmo modo de pensar e agir. Somos conformistas de algum conformismo, somos sempre homens-massa ou homenscoletivos. O problema é o seguinte: qual é o tipo histórico do conformismo e do homem-massa do qual fazemos parte? Quando a concepção do mundo não é crítica e coerente, mas ocasional e desagregada, pertencemos simultaneamente a uma multiplicidade de homens-massa, nossa própria personalidade é composta de uma maneira bizarra: nela se encontram elementos dos homens das NOTA IV. Criar uma nova cultura não significa apenas fazer individualmente descobertas “originais”; significa 1 também, e sobretudo, difundir criticamente verdades já descobertas, “socializá-las, por assim dizer; transformálas, portanto, em base de ações vitais, em elemento de coordenação e de ordem intelectual e moral. Idade Média; o problema de saber-se qual é o original, se o espírito se a natureza, este problema revestia para a Igreja a seguinte forma aguda: o mundo foi criado por Deus, ou existe de toda a eternidade? Fonte: GRAMSCI, Antonio. Concepção Dialética da História [fragmento]. Segundo a resposta que dessem a esta pergunta, os filósofos dividiam-se em dois grandes campos. Os que afirmavam o caráter primordial do espírito em relação à natureza e admitiam, portanto, em última instância, uma criação do mundo, de uma ou de outra forma (e para muitos filósofos, como para Hegel, por exemplo, a gênese é bastante mais complicado e inverossímil que na religião cristã), firmavam o campo do idealismo. Os outros, que viam a natureza como o elemento primordial, pertencem às diferentes escolas do materialismo. --------------------------------------------------------1.2 – A questão fundamental da filosofia. [Idealismo, Materialismo e Dialética As expressões idealismo e materialismo não tiveram, de início, outro significado, e aqui jamais as empregaremos com outro sentido. A grande questão fundamental de toda filosofia, em particular da filosofia moderna, é a da relação entre o pensamento e o ser. Desde os remotíssimos tempos em que o homem, mergulhado na mais completa ignorância sobre seu próprio organismo, e excitado pelas aparições que sobrevinham em seus sonhos, chegou à idéia de que seus pensamentos e suas sensações não eram funções de seu corpo - e sim de uma alma especial que morava nesse corpo e o abandonava na hora da morte; desde essa época, o homem teve forçosamente que refletir sobre as relações dessa alma com o mundo exterior. Se, no momento da morte, ela se separava do corpo e continuava a existir, não havia razão alguma para atribuir-lhe também uma morte separada. Surgiu assim a idéia da imortalidade da alma: uma idéia que, nessa época de desenvolvimento, não aparecia absolutamente como um consolo, mas como uma fatalidade contra a qual nada se podia fazer, e não raro, como entre os gregos, como uma verdadeira desgraça. Não foi a necessidade religiosa de um conforto moral, mas a perplexidade decorrente de uma ignorância generalizada, o fato de não se saber, após a morte do corpo, o que fazer com a alma - já que se admitira sua existência - que levou, em geral, à fábula enfadonha da imortalidade do homem. Por caminhos muito semelhantes, através da personificação das potências naturais, surgiram também os primeiros deuses que, em seguida, com o desenvolvimento da religião, passaram a tomar cada vez mais um aspecto extraterreno, até que, finalmente, por um processo natural de abstração, quase diríamos de destilação, que se produz no curso do progresso espiritual, desses numerosos deuses mais ou menos circunscritos, e cujos campos de ação se limitavam mutuamente, brotou na mente dos homens a idéia de um Deus único e exclusivo, próprio das religiões monoteístas. O problema da relação entre o pensamento e o ser, entre o espírito e a natureza, o problema de toda a filosofia, tem assim, tanto quanto a religião, suas raízes na ignorância e nas concepções limitadas do período do selvagismo. Não pôde, entretanto, apresentar-se com toda a nitidez, nem pôde adquirir sua inteira significação, senão depois que a sociedade européia despertou do prolongado sono hibernal da Idade Média cristã. O problema da situação do pensamento em relação ao ser, problema que, aliás, teve também grande importância entre os escolásticos da Fonte: ENGELS, Friedrich. Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã [fragmento] --------------------------------------------------------1.3 – A Dialética. [Dialética] ialética] O socialismo moderno é, em primeiro lugar, por seu conteúdo, fruto do reflexo na inteligência, de um lado dos antagonismos de classe que imperam na moderna sociedade entre possuidores e despossuídos, capitalistas e operários assalariados, e, de outro lado, da anarquia que reina na produção. Por sua forma teórica, porém, o socialismo começa apresentando-se como uma continuação, mais desenvolvida e mais conseqüente, dos princípios proclamados pelos grandes pensadores franceses do século XVIII. Como toda nova teoria, o socialismo, embora tivesse suas raízes nos fatos materiais econômicos, teve de ligar-se, ao nascer, às Idéias existentes. Os grandes homens que, na França, iluminaram os cérebros para a revolução que se havia de desencadear, adotaram uma atitude resolutamente revolucionária. Não reconheciam autoridade exterior de nenhuma espécie. A religião, a concepção da natureza, a sociedade, a ordem estatal: tudo eles submetiam à crítica mais impiedosa; tudo quanto existia devia justificar os títulos de sua existência ante o foro da razão, ou renunciar a continuar existindo. A tudo se aplicava como rasoura única a razão pensante. Era a época em que, segundo Hegel, "o mundo girava sobre a cabeça" (1), primeiro no sentido de que a cabeça humana e os princípios estabelecidos por sua especulação reclamavam o direito de ser acatados como base de todos os atos humanos e toda relação social, e logo também, no sentido mais amplo de que a realidade que não se ajustava a essas conclusões se via subvertida, de fato, desde os alicerces até à cumieira. Todas as formas anteriores de sociedade e de Estado, todas as leis tradicionais, foram atiradas no monturo como irracionais; até então o mundo se deixara governar por puros 2 preconceitos; todo o passado não merecia senão comiseração e desprezo, Só agora despontava a aurora, o reino da razão; daqui por diante a superstição, a injustiça, o privilégio e a opressão seriam substituídos pela verdade eterna, pela eterna justiça, pela igualdade baseada na natureza e pelos direitos Inalienáveis do homem. crítico, à comparação e, consequentemente, a divisão em classes, ordens e espécies. Por isso, os rudimentos das ciências naturais exatas não foram desenvolvidos senão a partir dos gregos do período alexandrino (6) e, mais tarde, na Idade Média, pelos árabes; a ciência autêntica da natureza data semente da segunda metade do século XV e, desde então, não fez senão progredir a ritmo acelerado. A análise da natureza em suas diversas partes, a classificação dos diversos processos e objetos naturais em determinadas categorias, a pesquisa interna dos corpos orgânicos segundo sua diversa estrutura anatômica, foram outras tantas condições fundamentais a que obedeceram os gigantescos progressos realizados, durante os últimos quatrocentos anos, no conhecimento científico da natureza. Esses métodos de Investigação, porém, nos transmitiu, ao lado disso, o hábito de enfocar as coisas e os processos da natureza isoladamente, subtraídos à concatenação do grande todo; portanto, não em sua dinâmica, mas estaticamente; não como substancialmente variáveis, mas como consistências fixas; não em sua vida, mas em sua morte. Por Isso, esse método de observação, ao transplantar-se, com Bacon e Locke, das ciências naturais para a filosofia, determinou a estreiteza específica característica dos últimos séculos: o método metafísico de especulação. (...) Entretanto, junto à filosofia francesa do século XVIII, e por trás dela, surgira a moderna filosofia alemã, cujo ponto culminante foi Hegel. O principal mérito dessa filosofia é a restauração da dialética, como forma suprema do pensamento. Os antigos filósofos gregos eram todos dialéticos inatos, espontâneos, e a cabeça mais universal de todos eles - Aristóteles - chegara já a estudar as formas mais substanciais do pensamento dialético. Em troca, a nova filosofia, embora tendo um ou outro brilhante defensor da dialética (como por exemplo, Descartes e Spinoza) caía cada vez mais, sob a influência principalmente dos ingleses, na chamada maneira metafísica de pensar, que também dominou quase totalmente entre os franceses do século XVIII, ao menos em suas obras especificamente filosóficas. Fora do campo estritamente filosófico, eles criaram também obras-primas de dialética; como prova, basta citar O Sobrinho de Rameau, de Diderot, e o estudo de Rousseau sôbre a origem da desigualdade entre os homens. Resumiremos aqui, sucintamente, os traços mais essenciais de ambos os métodos discursivos. Para o metafísico, as coisas e suas Imagens no pensamento, os conceitos, são objetos de Investigação Isolados, fixos, rígidos, focalizados um após o outro, de per si, como algo dado e perene. Pensa só em antíteses, sem meio-termo possível; para ele, das duas uma: sim, sim; não, não; o que for além disso, sobra. Para ele, uma coisa existe ou não existe; um objeto não pode ser ao mesmo tempo o que é e outro diferente. O positivo e o negativo se excluem em absoluto. A causa e o efeito revestem também, a seus olhos, a forma de uma rígida antítese. À primeira vista, esse método discursivo parecenos extremamente razoável, porque é o do chamado senão comum. Mas o próprio senso comum - personagem multo respeitável dentro de casa, entre quatro paredes - vive peripécias verdadeiramente maravilhosas quando se aventura pelos caminhos amplos da investigação; e o método metafísico de pensar, pois muito justificado e até necessário que seja em muitas zonas do pensamento, mais ou menos extensas segundo a natureza do objeto de que se trate, tropeça sempre, cedo ou tarde, com uma barreira, ultrapassada a qual converte-se num método unilateral, limitado, abstrato, e se perde em Insolúveis contradições, pois, absorvido pelos objetos concretos, não consegue perceber sua concatenação; preocupado com sua existência, não atenta em sua origem nem em sua caducidade; obcecado pelas árvores, não consegue ver o bosque. Na realidade de cada dia, sabemos, por exemplo, e podemos dizer com toda certeza se um animal existe ou não; porém, pesquisando mais detidamente, verificamos que às vezes o problema se complica consideravelmente, como sabem muito bem os juristas, que tanto e tão inutilmente têm-se atormentado por descobrir um limite racional a partir do qual deva a morte do filho no ventre materno ser considerada um assassinato; nem é fácil tampouco determinar rigidamente o momento da morte, uma vez que a fisiologia demonstrou que a morte não é Quando nos detemos a pensar sobre a natureza, ou sobre a história humana, ou sobre nossa própria atividade espiritual,. deparamo-nos, em primeiro plano, com a imagem de uma trama infinita de concatenações e Influências recíprocas, em que nada permanece o que era, nem como e onde era, mas tudo se move e se transforma, nasce e morre. Vemos, pois, antes de tudo, a imagem de conjunto, na qual os detalhes passam ainda mais ou menos para o segundo plano; fixamo-nos mais no movimento, nas transições, na concatenação, do que no que se move, se transforma e se concatena Essa concepção do mundo, primitiva, ingênua, mas essencialmente exata, é a dos filósofos gregos antigos, e aparece claramente expressa pela primeira vez em Heráclito: tudo é e não é, pois tudo flui, tudo se acha sujeito a um processo constante de transformação, de Incessante nascimento e caducidade. Mas essa concepção, por mais exatamente que reflita o caráter geral do quadro que nos é oferecido pelos fenômenos, não basta para explicar os elementos isolados que formam esse quadro total; sem conhecê-los a Imagem geral não adquirirá tampouco um sentido claro. Para penetrar nesses detalhes temos de despregá-los do seu tronco histórico ou natural e Investigá-los separadamente, cada qual por si, em seu caráter, causas e efeitos especiais, etc. Tal é a missão primordial das ciências naturais e da história, ramos de investigação que os gregos clássicos situavam, por motivos muito justificados, num plano puramente secundário, pois primariamente deviam dedicar-se a acumular os materiais científicos necessários. Enquanto não se reúne uma certa quantidade de materiais naturais e históricos não se pode proceder ao exame 3 um fenômeno repentino, instantâneo, mas um processo muito longo. Do mesmo modo, todo ser orgânico é, a qualquer instante, ele mesmo e outro; a todo Instante, assimila matérias absorvidas do exterior e elimina outras do seu interior; a todo instante, morrem certas células e nascem outras em seu organismo; e no transcurso de um período mais ou menos demorado a matéria de que é formado renova-se totalmente, e novos átomos de matérias vêm ocupar o lugar dos antigos, por onde todo o seu ser orgânico é, ao mesmo tempo, o que é e outro diferente. Da mesma maneira, observando as coisas detidamente, verificamos que os dois polos de uma antítese, o positivo e o negativo, são tão inseparáveis quanto antitéticos um do outro e que, apesar de todo o seu antagonismo, se penetram reciprocamente; e vemos que a causa e o efeito são representações que somente regem, como tais, em sua aplicação ao caso concreto, mas que, examinando o caso concreto em sua concatenação com a imagem total do universo, se juntam e se diluem na idéia de uma trama universal de ações e reações, em que as causas e os efeitos mudam constantemente de lugar e em que o que agora ou aqui é efeito adquire em seguida ou ali o caráter de causa, e vice-versa. iniciou sua carreira de filósofo dissolvendo o sistema solar estável de Newton e sua duração eterna - depois de recebido o primeiro impulso - num processo histórico: no nascimento do Sol e de todos os planetas a partir de uma massa nebulosa em rotação. Dai, deduziu que essa origem implicava também, necessariamente, a morte futura do sistema solar. Meio século depois sua teoria foi confirmada matematicamente por Laplace e, ao fim de outro meio século, o espectroscópio veio demonstrar a existência no espaço daquelas massas igneas de gás, em diferente grau de condensação. A filosofia alemã moderna encontrou sua culminância no sistema de Hegel, em que pela primeira vez - e aí está seu grande mérito - se concebe todo o mundo da natureza, da história e do espírito como um processo, isto é, em constante movimento, mudança, transformação e desenvolvimento, tentando além disso ressaltar a intima conexão que preside esse processo de movimento e desenvolvimento. Contemplada desse ponto de vista, a história da humanidade já. não aparecia como um caos inóspito de violências absurdas, todas igualmente condenáveis diante do foro da razão filosófica hoje já madura, e boas para serem esquecidas quanto antes, mas como o processo de desenvolvimento da própria humanidade, que cabia agora ao pensamento acompanhar em suas etapas graduais e através de todos os desvios, e demonstrar a existência de leis internas que orientam tudo aquilo que à primeira vista poderia parecer obra do acaso cego. Nenhum desses fenômenos e métodos discursivos se encaixa no quadro das especulações metafísicas. Ao contrário, para a dialética, que focaliza as coisas e suas Imagens conceituais substancialmente em suas conexões, em sua concatenação, em sua dinâmica, em seu processo de nascimento e caducidade, fenômenos como os expostos não são mais que outras tantas confirmações de seu modo genuíno de proceder. A natureza é a pedra de toque da dialética, e as modernas ciências naturais nos oferecem para essa prova um acervo de dados extraordinariamente copiosos e enriquecido cada dia que passa, demonstrando com Isso que a natureza se move, em última instância, pelos caminhos dialéticos e não pelas veredas metafísicas, que não se move na eterna monotonia de um ciclo constantemente repetido, mas percorre uma verdadeira história. Aqui é necessário citar Darwin, em primeiro lugar, quem, com sua prova de que toda a natureza orgânica existente, plantas e animais, e entre eles, como é lógico, o homem, é o produto de um processo de desenvolvimento de milhões de anos, assestou na concepção metafísica da natureza o mais rude golpe. Até hoje, porém, os naturalistas que souberam pensar dialeticamente podem ser contados com os dedos, e esse conflito entre os resultados descobertos e o método discursivo tradicional põe a nu a Ilimitada confusão que reina presentemente na teoria das ciências naturais e que constitui o desespero de mestres e discípulos, de autores e leitores. Não importava que o sistema de Hegel não resolvesse o problema que se propunha. Seu mérito, que marca época. consistiu em tê-lo proposto. Não em vão, trata-se de um problema que nenhum homem sozinho pôde resolver. E embora fosse Hegel, como Saint-Simon, a cabeça mais universal. de seu tempo, seu horizonte achava-se circunscrito, em primeiro lugar, pela limitação inevitável de seus próprios conhecimentos e, em segundo lugar, pelos conhecimentos e concepções de sua época, limitados também em extensão e profundidade. Deve-se acrescentar a isso uma terceira circunstância. Hegel era idealista; isto é, para ele as Idéias de sua cabeça não eram imagens mais ou menos abstratas dos objetos ou fenômenos da realidade, mas essas coisas e seu desenvolvimento se lhe afiguravam, ao contrário, como projeções realizadas da "Idéia", que já existia, não se sabe como, antes de existir o mundo. Assim, foi tudo posto de cabeça para baixo, e a concatenação real do universal apresentava-se completamente às avessas. E por mais exatas e mesmo geniais que fossem várias das conexões concretas concebidas por Hegel, era inevitável, pelos motivos que acabamos de apontar, que muitos dos seus detalhes tivessem um caráter amaneirado, artificial, construído; em uma palavra, falso. O sistema de Hegel foi um aborto gigantesco, mas o último de seu gênero. De fato, continuava sofrendo de uma contradição interna incurável; pois, enquanto de um lado partia como pressuposto inicial da concepção histórica, segundo a qual a história humana é um processo de desenvolvimento que não pode, por sua natureza, encontrar o arremate intelectual na descoberta disso que chamam verdade Somente seguindo o caminho da dialética, não perdendo jamais de vista as inumeráveis ações e reações gerais do devenir e do perecer, das mudanças de avanço e retrocesso, chegamos a uma concepção exata do universo, do seu desenvolvimento e do desenvolvimento da humanidade, assim como da imagem projetada por esse desenvolvimento nas cabeças dos homens. E foi esse, com efeito, o sentido em que começou a trabalhar, desde o primeiro momento, a moderna filosofia alemã. Kant 4 absoluta, de outro lado nos é apresentado exatamente como a soma e a síntese dessa verdade absoluta. Um sistema universal e definitivamente plasmado do conhecimento da natureza e da história é incompatível com as leis fundamentais do pensamento dialético - que não exclui, mas longe disso implica que o conhecimento sistemático do mundo exterior em sua totalidade possa progredir gigantescamente de geração em geração. mais imperfeita que fosse. Mas a velha concepção idealista da história, que ainda não havia sido removida, não conhecia lutas de classes baseadas em interesses materiais, nem conhecia interesses materiais de qualquer espécie; para ela a produção, bem como todas as relações econômicas, só existiam acessoriamente, como um elemento secundário dentro da "história cultural". Os novos fatos obrigaram à revisão de toda a história anterior, e então se viu que, com exceção do Estado primitivo, toda a história anterior era a história das lutas de classes, e que essas classes sociais em luta entre si eram em todas as épocas fruto das relações de produção e de troca, isto é, das relações econômicas de sua época; que a estrutura econômica da sociedade em cada época da história constitui, portanto, a base real cujas propriedades explicam, em última análise, toda a superestrutura Integrada pelas instituições jurídicas e políticas, assim como pela ideologia religiosa, filosófica, etc., de cada período histórico. Hegel libertara da metafísica a concepção da história, tornando-a dialética; mas sua interpretação da história era essencialmente idealista. Agora, o idealismo fora despejado do seu último reduto: a concepção da história -, substituída por uma concepção materialista da história, com o que se abria o caminho para explicar a consciência do homem por sua existência, e não esta por sua consciência, que era até então o tradicional. A consciência da total inversão em que incorria o Idealismo alemão levou necessariamente ao materialismo; mas não, veja-se bem, àquele materialismo puramente metafísico e exclusivamente mecânico do século XVIII. Em oposição à simples repulsa, ingenuamente revolucionária, de toda a história anterior, o materialismo moderno vê na história o processo de desenvolvimento da humanidade, cujas leis dinâmicas é missão sua descobrir. Contrariamente à idéia da natureza que imperava entre os franceses do século XVIII, assim como em Hegel, em que esta era concebida como um todo permanente e invariável, que se movia dentro de ciclos estreitos, com corpos celestes eternos, tal como Newton os representava, e com espécies invariáveis de seres orgânicos, como ensinara Linneu, o materialismo moderno resume e compendia os novos progressos das ciências naturais, segundo os quais a natureza tem também sua história no tempo, e os mundos, assim como as espécies orgânicas que em condições propícias os habitam, nascem e morrem, e os ciclos, no grau em que são admissíveis, revestem dimensões infinitamente mais grandiosas. Tanto em um como em outro caso, o materialismo moderno é substancialmente dialético e já não precisa de uma filosofia superior às demais ciências. Desde o momento em que cada ciência tem que prestar contas da posição que ocupa no quadro universal das coisas e do conhecimento dessas coisas, já não há margem para uma ciência especialmente consagrada ao estudo das concatenações universais. Da filosofia anterior, com existência própria, só permanece de pé a teoria do pensar e de suas leis: a lógica formal e a dialética. O demais se dissolve na ciência positiva da natureza e da história. Desse modo o socialismo já não aparecia como a descoberta casual de tal ou qual intelecto genial, mas como o produto necessário da luta entre as duas classes formadas historicamente: o proletariado e a burguesia. Sua missão já não era elaborar um sistema o mais perfeito possível da sociedade, mas investigar o processo histórico econômico de que, forçosamente, tinham que brotar essas classes e seu conflito, descobrindo os meios para a solução desse conflito na situação econômica assim criada. Mas o socialismo tradicional era incompatível com essa nova concepção materialista da história, tanto quanto a concepção da natureza do materialismo francês não podia ajustar-se à dialética e às novas ciências naturais. Com efeito, o socialismo anterior criticava o modo de produção capitalista existente e suas conseqüências, mas não conseguia explicá-lo nem podia, portanto, destruí-lo ideologicamente; nada mais lhe restava senão repudiá-lo, pura o simplesmente, como mau. Quanto mais violentamente clamava contra a exploração da classe operária, inseparável desse modo de produção, menos estava em condições de indicar claramente em que consistia e como nascia essa exploração. Mas do que se tratava era, por um lado, de expor esse modo capitalista de produção em suas conexões históricas e como necessário para uma determinada época da história, demonstrando com isso também a necessidade de sua queda e, por outro lado, pôr a nu o seu caráter interno, ainda oculto. Isso se tornou evidente com a descoberta da mais-valia. Descoberta que veio revelar que o regime capitalista de produção e a exploração do operário, que dele se deriva, tinham por forma fundamental a apropriação de trabalho não pago; que o capitalista, mesmo quando compra a força de trabalho de seu operário por todo o seu valor, por todo o No entanto, enquanto que essa revolução na concepção da natureza só se pôde impor na medida em que a pesquisa fornecia à ciência os materiais positivos correspondentes, já há muito tempo se haviam revelado certos fatos históricos que imprimiram uma reviravolta decisiva no modo de focalizar a história. Em 1831, estala em Lyon a primeira insurreição operária, e de 1838 a 1842 atinge o auge o primeiro movimento operário nacional: o dos cartistas ingleses. A luta de classes entre o proletariado e a burguesia passou a ocupar o primeiro plano da história dos países europeus mais avançados, ao mesmo ritmo em que se desenvolvia neles, de uni lado, a grande indústria, e de outro lado, a dominação política recém-conquistada da burguesia. Os fatos refutavam cada vez mais rotundamente as doutrinas burguesas da identidade de interesses entre o capital e o trabalho e da harmonia universal e o bem-estar geral das nações, como fruto da livre concorrência. Não havia como passar por alto esses fatos, nem era tampouco possível ignorar o socialismo francês e inglês, expressão teórica sua, por 5 valor que representa como mercadoria no mercado, dela retira sempre mais valor do que lhe custa e que essa maisvalia é, em última análise, a soma de valor de onde provém a massa cada vez maior do capital acumulado em mãos das classes possuidoras. O processo da produção capitalista e o da produção de capital estavam assim explicados. governamental - como um "sistema tributário determinando", exemplo citado por ele mesmo. Entretanto, o que é necessário demonstra-se também, em última instância, como racional. Assim, aplicada ao Estado prussiano da época, a tese hegeliana permite uma única interpretação: este Estado é racional, corresponde à razão, na medida em que é necessário; se, no entanto, nos parece mal, e continua existindo, apesar disso, a má qualidade do governo justifica-se e explica-se pela má qualidade correspondente de seus súditos. Os prussianos da época tinham o governo que mereciam. Essas duas grandes descobertas - a concepção materialista da história e a revelação do segredo da produção capitalista através da mais-valia - nós as devemos a Karl Marx. Graças a elas o materialismo converte-se em uma ciência, que só nos resta desenvolver em todos os seus detalhes e concatenações. Contudo, segundo Hegel, a realidade não constitui absolutamente um atributo que, em todas as circunstâncias e em todas as épocas, seja inerente a um determinado estado de coisas político ou social. Ao contrário. A república romana era real, mas o império romano que a suplantou também o era. Em 1789, a monarquia francesa se havia tornado tão irreal, isto é, tão destituída de toda a necessidade, tão irracional, que teve de ser varrida pela grande Revolução, de que Hegel falava sempre com o maior entusiasmo. Aqui pois o irreal era a monarquia e o real era a revolução. E assim, no processo de desenvolvimento, tudo que antes era real se transforma em irreal, perde sua necessidade, seu direito de existir, seu caráter racional; à realidade que agoniza sucede uma realidade nova e vital; pacificamente, se o que caduca é bastante razoável para desaparecer sem luta; pela força, se se rebela contra essa necessidade. A tese de Hegel transforma-se assim, pela própria dialética hegeliana, em seu contrário; tudo que é real, nos domínios da história humana, converte-se em irracional, com o correr do tempo; já o é, portanto, por seu próprio destino, leva previamente, em si mesmo, o germe do irracional, e tudo que é racional na cabeça do homem está destinado a ser real um dia, por mais que ainda se choque hoje com a aparente realidade existente. A tese de que tudo que é real é racional se resolve, segundo todas as regras do método de pensamento de Hegel, nesta outra: tudo o que existe merece perecer. Fonte: ENGELS, Friedrich. Do Socialismos Utópico ao Socialismo Científico [fragmento] --------------------------------------------------------1.4 – Hegel e Feurbach. [Hegel e Feuerbach] Feuerbach] Tanto quanto na França do século XVIII, a revolução filosófica foi na Alemanha do século XIX o prelúdio do desmoronamento político. Mas quanta diferença entre uma e outra! Os franceses em luta aberta contra toda a ciência oficial, contra a Igreja e, não raro, mesmo contra o Estado; suas obras impressas fora das fronteiras, na Holanda ou na Inglaterra, e , além disso, os autores, com muita freqüência, iam dar com os costados na Bastilha. Os alemães, ao contrário, eram professores em cujas mãos o Estado colocava a educação da juventude; suas obras, livros de texto consagrados; e o sistema que coroava todo o processo de desenvolvimento - o sistema de Hegel - era inclusive elevado, em certa medida, ao nível de filosofia oficial do Estado monárquico prussiano! Como poderia a revolução esconder-se por trás desses professores, por trás de suas palavras pedantemente obscuras e de suas frases longas e aborrecidas? Pois não eram precisamente os liberais, considerados então os verdadeiros representantes da revolução, os inimigos mais encarniçados desta filosofia que trazia confusão às consciências? O que, entretanto, não puderam ver nem o governo nem os liberais, viu-o pelo menos um homem, já em 1833, que aliás se chamava Henrich Heine. (2) E nisso, precisamente, residia a significação real e o caráter revolucionário da filosofia hegeliana (à qual nos limitaremos aqui, como coroamento de todo o movimento filosófico iniciado com Kant): ela acabou, para sempre, com o caráter definitivo de todos os resultados do pensamento e da ação do homem. Em Hegel, a verdade que a filosofia procurava conhecer já não era uma coleção de teses dogmáticas fixas que, uma vez descobertas, bastaria guardar de memória; agora a verdade residia no próprio processo do conhecimento, através do longo desenvolvimento histórico da ciência, que sobe, dos degraus inferiores, até os mais elevados do conhecimento, sem, porém, alcançar jamais, com o desenvolvimento de uma pretensa verdade absoluta, um nível em que já não se possa continuar avançando, em que nada mais reste senão cruzar os braços e contemplar a verdade absoluta conquistada. E isso não se passava apenas no terreno da filosofia, mas nos demais ramos do conhecimento e no domínio da atividade prática. Da mesma forma que o conhecimento, também a história nunca poderá encontrar seu coroamento definitivo num estágio ideal e perfeito da Exemplifiquemos. Nunca houve uma tese filosófica que atraísse tanto o reconhecimento de governos míopes e a cólera de liberais, não menos curtos de visão, como a famosa tese de Hegel: "Tudo o que é real é racional; e tudo o que é racional é real". Não era, concretamente, a santificação de tudo que existe, a bênção filosófica dada ao despotismo, ao Estado policial, à justiça de gabinete, à censura? Assim acreditavam, realmente, Frederico Guilherme III e seus súditos. Para Hegel, porém, o que existe está longe de ser real pelo simples fato de existir. Em sua doutrina, o atributo da realidade corresponde apenas ao que, além de existir, é necessário; "em seu desdobramento, a realidade revela-se como necessidade". Eis porque Hegel não considera, absolutamente, como real, pelo simples fato de ser imposta, qualquer medida 6 humanidade; uma sociedade perfeita, um "Estado" perfeito, são coisas que só podem existir na imaginação. Pelo contrário, todas as etapas históricas que se sucedem nada mais são que outras tantas fases transitórias no processo de desenvolvimento infinito da sociedade humana, do inferior para o superior. Todas as fases são necessárias, e, portanto, legítimas para a época e as condições que as originam; uma vez, porém, que surgem condições novas e superiores, amadurecidas pouco a pouco em seu próprio seio, elas caducam e perdem sua razão de ser e devem ceder o lugar a uma etapa mais alta, a qual, por sua vez, também terá um dia de envelhecer e perecer. Da mesma forma que, através da grande indústria, da livre concorrência e do mercado mundial, a burguesia liquida na prática todas as instituições estáveis, consagradas por uma venerável antigüidade, esta filosofia dialética põe fim a todas as idéias de uma verdade absoluta e definitiva, e a um conseqüente estágio absoluto da humanidade. Diante dela, nada é definitivo, absoluto, sagrado; ela faz ressaltar o que há de transitório em tudo que existe; e só deixa de pé o processo ininterrupto do vira-ser e do perecer, uma ascensão infinita do inferior ao superior, cujo mero reflexo no cérebro pensante é esta própria filosofia. É verdade que ela tem também seu aspecto conservador quando reconhece a legitimidade de determinadas formas sociais e de conhecimento, para sua época e sob suas circunstâncias; mas não vai além disso. O conservantismo desta concepção é relativo; seu caráter revolucionário é absoluto, e a única coisa absoluta que ela deixa de pé. recobrar seu ser no espírito, ou seja, no pensamento e na história. Entretanto, só há um meio para essa volta ao ponto de partida no momento em que se chega ao fim de sua filosofia: é supor que a história chega a seu ponto final no momento em que a humanidade toma consciência dessa mesma idéia absoluta e proclama que essa consciência se adquire através da filosofia hegeliana. Com isso, porém, proclama-se como verdade absoluta todo o conteúdo dogmático do sistema de Hegel - o que está em contradição com seu método dialético que se opõe a todo dogmatismo. Assim, o lado revolucionário da doutrina de Hegel morre asfixiado pelo seu lado conservador. E o que dizemos do conhecimento filosófico é, também, aplicável à prática histórica. A humanidade, que na pessoa de Hegel foi capaz de descobrir a idéia absoluta, deve também na prática ser capaz de implantar essa idéia absoluta na realidade. As exigências políticas práticas que a idéia absoluta coloca para seus contemporâneos não devem, portanto, ser demasiado surpreendentes. É assim que, no final da Filosofia do Direito, constata-se que a idéia absoluta devia tomar forma naquela monarquia representativa que Frederico Guilherme III prometera a seus súditos tão tenazmente e tão em vão, isto é, uma dominação das classes possuidoras, em forma indireta, limitada e moderada, adaptada às condições pequeno-burguesas, da Alemanha de então; demonstrando-se, ainda, de passagem, por via especulativa, a necessidade da aristocracia. Como se vê, as necessidades internas do sistema conseguem explicar como, de um método de pensamento absolutamente revolucionário, pode decorrer uma conclusão política extremamente dócil. Aliás, a forma específica dessa conclusão provém de que Hegel era um alemão e, como seu contemporâneo Goethe, guardava seu lado de filisteu. Hegel e Goethe eram verdadeiros Júpiteres olímpicos, cada um em seu domínio, mas nunca chegaram a livrar-se inteiramente do que tinham de filisteus alemães. É desnecessário discutir, aqui, se este ponto-de-vista está plenamente de acordo com o atual estado das ciências naturais que prevêem um fim possível à própria Terra e fim quase certo à sua habitabilidade; isto é, que conferem à história da humanidade não apenas um ramo ascendente, como também um descendente. De qualquer forma, estamos ainda bastante longe do ápice de onde a história da sociedade começará a declinar e não podemos exigir tampouco que a filosofia hegeliana se preocupe com um problema que as ciências naturais de sua época não tinham colocado na ordem do dia. Tudo isso não impedia, porém, o sistema hegeliano de abarcar um campo incomparavelmente mais vasto que o de todos os que o haviam precedido, e de desenvolver, nesse domínio, uma riqueza de pensamento que causa assombro, ainda hoje. Fenomenologia do Espírito (que poderíamos chamar um paralelo da embriologia e da paleontologia do espírito: o desenvolvimento da consciência individual concebido, através de suas diferentes etapas, como a reprodução abreviada das bases por que, historicamente, passa a consciência do homem). Lógica, Filosofia da Natureza, Filosofia do Espírito, também investigada em suas diversas subcategorias históricas: Filosofia da História, do Direito, da Religião, História da Filosofia, Estética, etc - em todos esses variados domínios da história, Hegel esforçou-se por descobrir e demonstrar a existência de um fio condutor do desenvolvimento. E como não era apenas um gênio criador, mas possuía também uma erudição enciclopédica, suas investigações marcam época em todos os terrenos. É bem verdade que, em conseqüência das necessidades do "sistema" , ele se vê obrigado, com muita freqüência, a recorrer a construções arbitrárias que, ainda O que se pode, entretanto, dizer é que a argumentação que acabamos de apresentar não se encontra desenvolvida, em Hegel, com a mesma nitidez. Ela decorre, necessariamente, de seu método, mas o autor jamais a deduziu com a mesma clareza. E, isto, pela simples razão de que Hegel se via premido pela necessidade de construir um sistema, e um sistema filosófico, de acordo com as exigências tradicionais, deve ser coroado com uma espécie qualquer de verdade absoluta. Daí porque, embora Hegel insista, particularmente em sua Lógica, em que essa verdade absoluta nada mais é que o mesmo processo lógico (e por sua vez histórico), é obrigado a por um ponto final nesse processo, já que, necessariamente, tinha que chegar a um fim, fosse qual fosse, com o seu sistema. Na Lógica, pode fazer novamente desse fim um ponto de partida, pois ali o ponto final, a idéia absoluta - que só tem de absoluto o fato de que ele nada sabe dizer sobre ela - se "exterioriza", isto é, transforma-se na natureza, para mais tarde 7 hoje, fazem com que se esgoelem os pigmeus que o atacam. Essas construções constituem, porém, apenas os limites e os andaimes da sua obra: se não nos detemos, além do necessário, diante delas, e se penetrarmos mais profundamente no grandioso edifício, deparamos com tesouros incontáveis que ainda hoje conservam intacto o seu valor. O "sistema" representa, precisamente, o que é efêmero em todos os filósofos, e o é, justamente, porque brota de uma perene necessidade do espírito humano: a necessidade de superar todas as contradições. Superadas, porém, essas contradições de uma vez e para sempre, teremos chegado à chamada verdade absoluta: a história universal está terminada, e, não obstante, deve continuar existindo, embora nada mais tenha a fazer; o que representa, como se vê, uma nova e insolúvel contradição. Logo que descobrirmos - e afinal de contas ninguém mais do que Hegel nos ajudou a descobri-lo - que, assim colocada, a tarefa da filosofia se reduz a pretender que um filósofo isolado realize aquilo que somente a humanidade em seu conjunto poderá realizar, em seu desenvolvimento progressivo - assim que descobrirmos isso a filosofia, no sentido tradicional da palavra, chega a seu fim. Já não interessa a "verdade absoluta", inatingível por êste caminho e inacessível ao único indivíduo, e o que se procura são as verdades relativas, adquiridas através das ciências positivas e da generalização de seus resultados por meio do pensamento dialético. A filosofia, em seu conjunto, termina com Hegel; por um lado, porque em seu sistema se resume, da maneira mais grandiosa, todo o desenvolvimento filosófico; por outro lado, porque este filósofo nos indica, ainda que inconscientemente, a saída dêsse labirinto dos sistemas para o conhecimento positivo e real do mundo. razão, seu sistema lhe havia custado um "mais duro trabalho mental" que seu método. A cisão da escola hegeliana foi tornando-se, no fim da década de 30, cada vez mais patente. A ala esquerda, os chamados jovens hegelianos, abandonava pouco a pouco, na luta contra os ortodoxos pietistas e os reacionários feudais, aquela atitude filosófico-distinta de retraimento diante das questões candentes da atualidade, que valera até então às suas doutrinas a tolerância e inclusive a proteção do Estado. E quando em 1840 a beataria ortodoxa e a reação feudal-absolutista subiram ao trono, com Frederico Guilherme IV, já não havia mais remédio senão definir-se abertamente por um ou outro partido. A luta continuava a ser travada com armas filosóficas, mas já não se lutava por objetivos filosóficos abstratos; agora, tratava-se diretamente de acabar com a religião tradicional e com o Estado existente. E se nos Anais Alemães (3) os objetivos práticos finais apareciam ainda, de preferência, sob uma roupagem filosófica, na Gazeta Renana de 1842 a escola dos jovens hegelianos já se revelava nitidamente como a filosofia da burguesia radical que lutava para abrir caminho e que utilizava a máscara filosófica apenas para enganar a censura. No entanto, a política era nessa época matéria muito espinhosa; daí porque a luta principal fosse dirigida contra a religião; essa luta, contudo, era também indiretamente uma luta política, particularmente depois de 1840. Strauss havia dado o primeiro impulso em 1835, com a sua Vida de Jesus. Mais tarde Bruno Bauer levantou-se contra a teoria da formação dos mitos evangélicos, desenvolvida nessa obra, e demonstrou que uma série de relatos do Evangelho tinham sido fabricados por seus próprios autores. A luta entre essas duas correntes desencadeou-se, sob o disfarce filosófico de uma luta entre a "consciência" e a "substância". Tratava-se de saber se as lendas evangélicas dos milagres tinham nascido dos mitos criados espontaneamente e pela tradição, no seio da comunidade religiosa - ou se haviam sido, simplesmente, fabricados pelos evangelistas. A polêmica avolumou-se, até converter-se num outro problema: quem define, como potência decisiva, o rumo da história universal é a "substância" ou a "consciência"? Finalmente, apareceu Stirner, o profeta do anarquismo moderno - pois o próprio Bakunin muito lhe deve - e coroou a "consciência" soberana com a ajuda de seu "único" soberano. (4) É fácil compreender a enorme ressonância que o sistema de Hegel deveria ter numa atmosfera impregnada de filosofia, como a da Alemanha. Foi uma marcha triunfal que durou decênios inteiros e que não terminou sequer com a morte de Hegel. Muito ao contrário, foi precisamente de 1830 a 1840 que a "hegelomania" reinou da maneira mais absoluta, contaminando inclusive, em maior ou menor medida, seus próprios adversários. Foi precisamente nessa época que as idéias de Hegel penetraram em maior número, consciente ou inconscientemente, nas mais variadas ciências e também fermentou na literatura popular e na imprensa diária, de que o "espírito culto" vulgar se alimenta ideologicamente. Esse triunfo total nada mais era, porém, que o prelúdio de uma luta intestina. Não insistiremos sobre esse aspecto do processo de decomposição da escola hegeliana. O importante é que a grande maioria dos jovens hegelianos mais combativos, levados pela necessidade prática de lutar contra a religião positiva, tiveram que se voltar para o materialismo anglofrancês. E, ao chegar aqui, viram-se envoltos num conflito com o sistema de sua escola. Para o materialismo, a única realidade é a natureza: no sistema hegeliano, porém, esta é apenas a "exteriorização" da Idéia absoluta, algo assim como uma degradação da idéia: em todos os casos, o pensamento e seu produto, a idéia, são aqui o elemento primário e a natureza , o derivado, o que só pode existir graças à condescendência da Idéia. E, bem ou mal, davam voltas e mais voltas em torno dessa contradição. O conjunto da doutrina de Hegel dava bastante margem, como vimos, a que nela se abrigassem as mais diversas idéias partidárias práticas. E na Alemanha teórica daquela época duas coisas, sobretudo, revestiam-se de caráter prático: a religião e a política. Quem fizesse finca-pé no sistema de Hegel podia ser bastante conservador em qualquer desses domínios; aquele que considerasse essencial o método dialético podia figurar, tanto no plano religioso como no político, na oposição extrema. No conjunto, Hegel parecia pessoalmente inclinar-se mais para o lado conservador, apesar das explosões de cólera revolucionária bastante freqüentes em sua obra. Não sem 8 Foi então que apareceu A Essência do Cristianismo (5), de Feuerbach. De repente, essa obra pulverizou a contradição criada ao restaurar o materialismo em seu trono. A natureza existe independentemente de toda filosofia, ela constitui a base sobre a qual os homens cresceram e se desenvolveram, como produtos da natureza que são; nada existe fora da natureza e dos homens; e os entes superiores, criados por nossa imaginação religiosa, nada mais são que outros tantos reflexos fantásticos de nossa própria essência. Quebrarase o encantamento: o "sistema" salva em pedaços e era posto de lado - e a contradição ficava resolvida, pois existia apenas na imaginação. Só tendo vivido, em si mesmo, a força libertadora desse livro, é que se pode imaginá-la. O entusiasmo foi geral - e momentaneamente todos nós nos transformamos em "feuerbachianos". Com que entusiasmo Marx saudou a nova concepção e até que ponto se deixou influenciar por ela - apesar de todas as suas reservas críticas - pode ser visto em A Sagrada Família (6). 1.5 – Crítica dialética do materialismo e do idealismo [Superação do Materialismo e do Idealismo] Para explicar de maneira mais concreta o problema da relação entre ideologia e prática social ou prática política, a contribuição do método dialético, ou da filosofia da práxis de Marx, nesse terreno, é interessante confrontá-lo com as formas dominantes de pensamento de sua época. Existe uma primeira corrente de pensamento muito importante, que vem dos enciclopedistas. Para essa concepção, as idéias, as ideologias, as concepções do mundo, são produto das circunstâncias sociais em que vivem os homens. São as circunstâncias materiais que produzem a consciência, as idéias ou as ideologias. Considerando a época histórica em que aparece este materialismo mecânico, este materialismo vulgar, a época do medo de produção feudal e da monarquia absoluta, esses pensadores enciclopedistas são opostos ordem estabelecida. Eles criticam esta ordem e apontam para a necessidade de modificação das condições sociais, das circunstâncias materiais, porque consideram que é nas circunstâncias materiais existentes que se produz o obscurantismo, o fanatismo, as ideologias feudais, reacionárias. Os próprios defeitos do livro contribuíram para seu sucesso momentâneo. O estilo ameno, e mesmo empolado em certos trechos, assegurou-lhe um público maior e constituiu incontestavelmente um alívio, após tantos anos de hegelomania abstrata e abstrusa. O mesmo pode dizer-se da exagerada exaltação do amor, desculpável ainda que não justificável, depois de tanto e tão insuportável domínio do "pensamento puro". Não devemos, porém, esquecer que foi precisamente a essas duas debilidades de Feuerbach que se ligou o "verdadeiro socialismo" que, a partir de 1844, passou a propagar-se como uma praga por toda a Alemanha "culta"; que substituía o conhecimento científico pela frase literária e a emancipação do proletariado, através da transformação econômica da produção, pela libertação da humanidade por meio do "amor"; e que, em resumo, se perdia nessa literatura repugnante e nessa exacerbação amorosa cujo protótipo á Karl Gruen. Os preconceitos, os dogmas e a ignorância – sobretudo a ignorância do povo que não sabe ler, nem escrever, nem tem consciência social, além de ter fanatismo religioso – tudo isso não é visto como culpa dos indivíduos, dos camponeses, dos pobres. É visto como resultado das circunstâncias materiais. Esta filosofia materialista das luzes, que precedeu à Revolução Francesa, tem indiscutivelmente um aspecto revolucionário, um aspecto crítico e, em certa medida, um aspecto utópico, de negação ao sistema feudal, da ordem estabelecida, das condições feudais da sociedade francesa da época. Outra coisa que tampouco se deve esquecer é que, se a escola hegeliana tinha sido desfeita, a filosofia de Hegel não tinha sido ainda criticamente superada. Strauss tinha tomado um aspecto dela, Bauer outro, voltando-os um contra o outro. Feuerbach quebrou o sistema e o pôs simplesmente de lado. Para liquidar uma filosofia não basta, porém, proclamar pura e simplesmente que ela é falsa. E não se podia eliminar uma obra tão gigantesca como a filosofia de Hegel, que exercera tão vasta influência sobre o desenvolvimento espiritual da Nação, pelo simples fato de fazer caso omisso dela. Era necessário "superá-la", de acordo com seus próprios postulados - isto é: destruindo criticamente sua forma mas conservando o novo conteúdo adquirido por ela. Veremos adiante como isso se fez. No entanto, no sistema ideológico de pensamento deste materialismo da filosofia das luzes, deste materialismo enciclopédico do século XVIII, cujos principais representantes foram Diderot, D'Holbach, D'Alembert, as circunstâncias materiais produzem e reproduzem constantemente o obscurantismo, o fanatismo, a ignorância e a questão está em como sair desse circulo vicioso, desse mecanismo. A palavra mecanismo aí está carregada de todo o seu peso: a máquina que produz e reproduz sempre o mesmo fenômeno. Para romper este mecanismo das circunstâncias materiais que produzem constantemente o obscurantismo e a ignorância do povo, a única solução vista pelos enciclopedistas seria encontrar uma figura excepcional, que esteja acima da sociedade, acima das circunstâncias, que escape desse mecanismo e que tenha força suficiente para poder transformar as forças materiais, quebrar o mecanismo, a máquina das circunstâncias e criar um novo Nesse ínterim, veio a revolução de 1848 e pôs de lado toda a filosofia, com a mesma desenvoltura com que Feuerbach pusera de lado seu Hegel. E, com isso, o próprio Feuerbach passou a segundo plano. Fonte: ENGELS, Friedrich. Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã [fragmento] 9 sistema, novas circunstâncias materiais, nas quais se produzirão as luzes, o conhecimento, o saber, o pensamento racional e a educação Mas, para isso, essa personagem excepcional deverá ter um poder extraordinário para poder, de cima para baixo, quebrar, romper o mecanismo das circunstâncias. A idéia desses primeiros comunistas e, em particular, de Buonarroti, que foi de certa forma o ideólogo de toda essa corrente, era de que os déspotas esclarecidos não existiam. Eles achavam que todos os monarcas deveriam ser derrubados por revolução violenta, por uma revolução social. Mas quem iria fazer essa revolução? Não poderia ser o povo, o proletariado, os pobres, porque estavam condenadas à cegueira, ao fanatismo, à ignorância, ao obscurantismo, e não iriam entender quais eram seus interesses, não por culpa deles, mas das circunstâncias em que viviam, que lhes impediam o acesso à educação, ao conhecimento, as luzes. Então, apenas uma pequena minoria, uma elite de homens esclarecidos, é que iria realizar esta transformação revolucionária, derrubar a monarquia, derrubar o poder das classes dominantes e estabelecer uma ditadura revolucionária, que seria composta deste pequeno número de homens esclarecidos, dessa elite de homens sábios, conhecedores das necessidades do povo, e que iria destruir o antigo sistema e estabelecer novas condições, novas circunstâncias materiais. Os enciclopedistas pensavam encontrar este indivíduo excepcional em alguns monarcas europeus que eram inteligentes, cultos, se interessavam pela filosofia, inclusive pela filosofia da luzes. Estes personagens são conhecidos na história do século XVIII como déspotas esclarecidos: o rei Frederico II da Prússia e a rainha Catarina I da Rússia eram alguns deles. Seriam esses déspotas esclarecidos que teriam a grandiosa tarefa de romper com as circunstancias e criar novas, que produziriam educação, conhecimento, luzes. Na verdade, as coisas não se passaram assim. Os tais déspotas esclarecidos eram muito mais déspotas que esclarecidos e não modificaram, ou modificaram muito pouco aquelas circunstâncias. Abriram algumas escolas, produziram alguns livros, mas não mudaram nada de essencial. Estes pequenos grupos dos quais Auguste Blanqui era o mais conhecido, fizeram várias tentativas para tomar o poder, todas obviamente fracassadas, posto que inevitavelmente eram enfrentamentos minoritários, de pequenas organizações secretas contra n poder do exército das classes dominantes. O problema é que esse materialismo vulgar, mecânico, metafísico ou pré-dialético continuou exercendo influência muito grande, bem além do século XVIII, da filosofia das luzes. Vamos encontrar sua presença inclusive nos primeiros socialistas ou comunistas do século XIX. O exemplo clássico é o famoso socialista utópico inales Robert Owen, que escreve que a tarefa do socialismo é a supressão das influências perniciosas que rodeiam a humanidade, mediante a criação de combinações totalmente novas de circunstâncias exteriores, e que o personagem que vai realizar essa tarefa é o déspota esclarecido. Owen então se dirige ao rei da França, ao rei da Inglaterra e ao czar da Rússia e, mesmo, a uma reunião de todos os reis da Europa – a chamada Santa Aliança, em que todos eles se uniam para tentar lutar contra Napoleão – para a qual Owen manda um relatório propondo a essa coleção de monarcas ultra-reacionários, ultra-obscurantistas, proclamar o socialismo como solução para o problema da pobreza, da ignorância, do atraso, etc. Podemos dizer que esta atitude foi muito ingênua da parte de Owen, mas ela resulta, de maneira muito lógica, deste tipo de materialismo metafísico, a ponto de não se limitar a Owen, mas todos os socialistas utópicos vão assumir atitudes semelhantes, seja SaintSimon, seja Fourier, todos eles estão na busca daquele salvador supremo, do grande homem, do grande monarca que irá destruir as influências perniciosas e estabelecer novas circunstancias favoráveis às luzes, ao socialismo ou ao que seja. Deste modo, temos uma forma de compreensão, de analise da relação entre idéias ou ideologias e prática política, que é a concepção do materialismo vulgar, para o qual as idéias, as concepções, as doutrinas, as formas de pensamento e as ideologias resultam das circunstâncias materiais e, portanto, é necessária uma força que venha de fora, de algum lugar exterior, uma figura ou um conjunto de figuras excepcionais para transformar a sociedade. Oposta a essa forma de materialismo, outra escola de pensamento é o idealismo, cuja forma clássica se encontra no neo-hegelianismo. Não se trata do idealismo de Hegel, que era conservador, ou conformista, se trata de um idealismo revolucionário, de um idealismo crítico, dos discípulos de esquerda de Hegel, entre os quais se encontram Bruno Bauer, Max Stirner. Moses Hess. Os neo-hegelianos de esquerda partiam exatamente da hipótese contrária dos materialistas. Para eles, o importante era o espírito e a luta para mudar a sociedade, era uma luta espiritual, uma luta crítica. Por Isso, Marx os chamava ironicamente de críticos críticos. Eles acreditavam que criticando as idéias erradas, transformando a consciência ou a ideologia, ou o pensamento dos homens, transformariam a sociedade. Portanto, se criticassem o dogmatismo, a intolerância religiosa, as idéias monarquistas, anti-republicanas, antidemocráticas, ou as idéias egoístas, da propriedade privada, chegariam a uma sociedade diferente, de liberdade, igualdade, tolerância, democracia, ou mesmo ao socialismo, ou ainda, ao comunismo, posto que Moses Hess era um pensador comunista. Os primeiros comunistas revolucionários, que aparecem no século XIX, já têm uma concepção um pouco diferente, mas ainda herdeira dessa filosofia materialista. Eles são discípulos de Babeuf e de Buonarroti, organizadores da Conspiração dos Iguais, na época da Revolução Francesas e o mais conhecido deles é Auguste Blanqui, famoso revolucionário francês do século XIX Esta concepção da relação entre ideologia (ou utopia) e prática social parte então do pólo oposto, parte da idéia 10 de que a alavanca para o transformação social é o pensamento. São as idéias, as ideologias, as representações, ou melhor, a crítica às representações equivocadas, a crítica ideológica das ideologias, a crítica filosófica das filosofias, a critica anti-religiosa das religiões, é que iriam transformar as estruturas econômicas, sociais e políticas. A transformação da sociedade se faria através da transformarão da mentalidade ou da consciência do indivíduo. Ou do sujeito da ação social. Até aqui é uma critica ao materialismo vulgar. “A coincidência entre a modificação das circunstancias e a automodificação só pode ser entendida racionalmente como práxis revolucionária”. Isto quer dizer que não se trata de esperar milagrosamente que um indivíduo, ou um grupo de indivíduos supostamente situados fora da sociedade, transformem as circunstâncias. Também não se trata de acreditar ingenuamente que a pregação moral ou a crítica filosófica possam transformar a sociedade. O que se faz necessário é uma ação revolucionária, uma prática revolucionária, na qual irão se transformar, simultaneamente, as circunstâncias, as condições sociais, as estruturas, o Estado, a sociedade, a economia e os próprios indivíduos, autores da ação. O dilema clássico essencial da filosofia pré-marxista foi o dilema entre modificar primeiro as circunstâncias para, como conseqüência, transformar a consciência ou modificar primeiro a consciência, o sujeito e suas ideologias, para depois transformar a sociedade. Este era um dilema entre o materialismo vulgar e o idealismo moral. Entre uma concepção objetivista da sociedade e uma concepção subjetiva. Através dessa formulação, Marx conseguiu superar dialeticamente tanto o materialismo francês do século XVIII, quanto o idealismo alemão, neo-hegeliano; além disso deu fundamento filosófico, teórico-metodológico à sua teoria revolucionária, que é a teoria da autoemancipação do proletariado, ou da auto-emancipação dos oprimidos, num sentido mais amplo. Em outras palavras, ele defende que é só na autolibertação, na sua própria ação enquanto sujeito revolucionário, na sua própria práxis enquanto autor de sua libertação, que se dá a emancipação objetiva e subjetiva do homem, que se dá a destruição da opressão enquanto estrutura, e a transformação da consciência, das idéias, das representações e das ideologias. É no processo de autoemancipação revolucionária que se dá a auto-educação da classe revolucionária, através de sua própria experiência prática. Georg Lukács, em seu livro História e Consciência de Classe, tem uma boa fórmula para resumir esse dilema. Lukács diz que, nesse tipo de enfrentamento, vemos o dilema da impotência porque, na realidade, esses dois modelos de pensamento são incapazes de produzir uma ação social real, são impotentes para transformar a sociedade. É o dilema da impotência de, por um lado, o fatalismo das leis puras e; por outro lado, o moralismo das puras intenções. O pensamento de Marx veio trazer uma maneira nova de entender ou tentar enfrentar esse tipo de questão: a relação entre as idéias e a ação ou a prática social. O primeiro texto em que Marx enfrenta esta questão foram as “Teses sobre Feuerbach" escritas em 1845 e, curiosamente, não destinado à publicação. Eram notas que ele fazia em um caderno, uma agenda de endereços, e que só foram encontradas muito mais tarde por Engels, entre os papéis que ele deixou depois de sua morte. Engels resolveu publicá-las e escreveu uma introdução dizendo: "Estas notas sobre Feuerbach representam o germe genial de uma nova concepção de mundo". Portanto, é nessas notas que se encontra, pela primeira vez, um resumo do que viria a ser a nova concepção de mundo trazida por Marx, que podemos chamar de materialismo histórico, dialética materialista, filosofia da práxis, dialética revolucionária, etc. Fonte: LOWY, Michael. Ideologias e Ciência Social [fragmento] ----------------------------------------------------1.6 – A filosofia da Práxis Teses sobre Feuerbach Karl Marx 1ª Tese: A principal insuficiência de todo o materialismo até aos nossos dias - o de Feuerbach incluído - é que as coisas [der Gegenstand], a realidade, o mundo sensível são tomados apenas sobre a forma do objecto [des Objekts] ou da contemplação [Anschauung]; mas não como atividade sensível humana, práxis, não subjectivamente. Por isso aconteceu que o lado activo foi desenvolvido, em oposição ao materialismo, pelo idealismo - mas apenas abstractamente, pois que o idealismo naturalmente não conhece a actividade sensível, real, como tal. Feuerbach quer objectos [Objekte] sensíveis realmente distintos dos objectos do pensamento; mas não toma a própria actividade humana como atividade objectiva [gegenständliche Tätigkeit]. Ele considera, por isso, na Essência do Cristianismo, apenas a atitude teórica como a genuinamente humana, ao passo que a práxis é tomada e fixada apenas na sua forma de manifestação sórdida e São apenas onze teses, mas não cabe ao espaço deste estudo analisá-las (porque isso demandaria pelo menos um ano para que se fizesse uma análise relativamente detalhada), só vamos tomar aquela mais relacionada a questão que estamos vendo o dilema entre o materialismo mecânico e o idealismo neo-hegeliano. É a tese número 3 sobre Feuerbach, que diz o seguinte: "A teoria materialista segundo a qual os homens são produto de circunstancias e da educação esquece que as circunstâncias se transformam precisamente pelos homens e que o próprio educador precisa ser educado. Esta concepção, esta teoria materialista conduz pois, necessariamente, à divisão da saciedade em duas partes, uma das quais está por cima da outra”. 11 judaica. Não compreende, por isso, o significado da actividade "revolucionária", de crítica prática. como generalidade interior, muda, que liga apenas naturalmente os muitos indivíduos. 2ª tese: A questão de saber se ao pensamento humano pertence a verdade objectiva não é uma questão da teoria, mas uma questão prática. É na práxis que o ser humano tem de comprovar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o carácter terreno do seu pensamento. A disputa sobre a realidade ou não realidade de um pensamento que se isola da práxis é uma questão puramente escolástica. 7ª Tese Feuerbach não vê, por isso, que o próprio "sentimento religioso" é um produto social e que o indivíduo abstrato que analisa pertence na realidade a uma determinada forma de sociedade. 8ª Tese A vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que seduzem a teoria para o misticismo encontram a sua solução racional na práxis humana e no compreender desta práxis. 3ª Tese: A doutrina materialista de que os seres humanos são produtos das circunstâncias e da educação, [de que] seres humanos transformados são, portanto, produtos de outras circunstâncias e de uma educação mudada, esquece que as circunstâncias são transformadas precisamente pelos seres humanos e que o educador tem ele próprio de ser educado. Ela acaba, por isso, necessariamente, por separar a sociedade em duas partes, uma das quais fica elevada acima da sociedade (por exemplo, em Robert Owen). A coincidência do mudar das circunstâncias e da atividade humana só pode ser tomada e racionalmente entendida como práxiss revolucionante. 9ª Tese O máximo que o materialismo contemplativo [der anschauende Materialismus] consegue, isto é, o materialismo que não compreende o mundo sensível como atividade prática, é a visão [Anschauung] dos indivíduos isolados na "sociedade civil". 10ª Tese O ponto de vista do antigo materialismo é a sociedade "civil"; o ponto de vista do novo [materialismo é] a sociedade humana, ou a humanidade socializada. 4ª Tese Feuerbach parte do fato da auto-alienação religiosa, da duplicação do mundo no mundo religioso, representado, e num real. O seu trabalho consiste em resolver o mundo religioso na sua base mundana. Ele perde de vista que depois de completado este trabalho ainda fica por fazer o principal. É que o fato de esta base mundana se destacar de si própria e se fixar, um reino autônomo, nas nuvens, só se pode explicar precisamente pela autodivisão e pelo contradizer-se a si mesma desta base mundana. É esta mesma, portanto, que tem de ser primeiramente entendida na sua contradição e depois praticamente revolucionada por meio da eliminação da contradição. Portanto, depois de, por exemplo a família terrena estar descoberta como o segredo da sagrada família, é a primeira que tem, então, de ser ela mesma teoricamente criticada e praticamente revolucionada. 11ª tese Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo. Fonte: MARX, Karl. Teses sobre Feuerbach. A transformação do mundo ou as Onze teses de Marx sobre Feuerbach O pensamento para frente já há muito está na ordem do dia e pode ser ouvido. Só os covardes procuram sempre desconversar, e os mentirosos mantêm-se num plano geral. Só eles escondem-se em roupas folgadas ou pedantes, procuram estar sempre em outro lugar que não aquele em que são flagrados. Porém, nem é possível definir suficientemente o verdadeiro, mesmo quando ou justamente quando a coisa ainda está tomando forma diante dos olhos. Graças a esse faro para o essencial, já com a idade de dezenove anos, Marx foi capaz de produzir, na carta ao seu pai que se conservou, teses fundamentais em formulações precisas. Esse tipo busca de início entrar no âmago da questão, nunca desperdiça tempo com o inútil, descarta-o assim que o reconhece como tal. Assim, em tudo o que contempla largamente, em tudo o que pondera longamente, e que se acrescenta ao que tem, ele é capaz de, a cada momento, estar novamente em forma, intervindo e realçando. O que dessa forma pode ser compreendido mostra suas ênfases ao caminhar. Com estas e nestas aguça-se a tração para 5ª Tese: Feuerbach, não contente com o pensamento abstrato, apela ao conhecimento sensível [sinnliche Anschauung]; mas, não toma o mundo sensível como atividade humana sensível prática. 6ª Tese Feuerbach resolve a essência religiosa na essência humana. Mas, a essência humana não é uma abstração inerente a cada indivíduo. Na sua realidade ela é o conjunto das relações sociais, Feuerbach, que não entra na crítica desta essência real, é, por isso, obrigado: 1. a abstrair do processo histórico e fixar o sentimento [Gemüt] religioso por si e a pressupor um indivíduo abstratamente - isoladamente - humano; 2. nele, por isso, a essência humana só pode ser tomada como "espécie", 12 diante, para que lhe sejam proveitosas até mesmo possíveis digressões. Todavia, também esse indicativo, na sua seqüência, nem sempre pode ser vislumbrado tão rapidamente quanto pode ser citado em sua concisão. Pois a concisão significativa é coerente, razão pela qual oferece menos facilidade no que se refere a encontrar rapidamente uma formulação bem-acabada. do Estado, sim, já da organização social, que determina a forma do Estado ─ como reconhece a Crítica da filosofia do Estado de Hegel (1841-1843). A diferenciação que Hegel faz entre sociedade burguesa e Estado, apontada por Marx, já continha mais consciência econômica do que possuíam seus epígonos, inclusive os feuerbachianos. O distanciamento de Feuerbach ocorreu com todo o respeito e primeiramente apenas como uma correção ou até mera complementação; contudo, a perspectiva social, totalmente nova, está clara desde o início. Assim, no dia 13 de março de 1843, Marx escreve para Ruge: “Os aforismos de Feuerbach apenas num ponto não me parecem corretos, ou seja, pelo fato de ele apontar demais para a natureza e muito pouco para a política. Esta, porém, é o único pacto que levaria a atual filosofia a tornar-se uma verdade” (MEGA I, ½, p. 308). Os Manuscritos econômico-filosóficos, de 1844, ainda contêm uma significativa louvação de Feuerbach, ainda que como contraposição às lucubrações de Bruno Bauer; os Manuscritos louvam, assim, dentre os feitos de Feuerbach, sobretudo a “fundação do materialismo autêntico e da ciência real, quando Feuerbach torna a relação ‘do homem com o homem’ igualmente o princípio básico da teoria” (MEGA I, 3, S. 152). Todavia, os Manuscritos econômico-filosóficos já ultrapassaram Feuerbach muito mais do que dizem. Neles, a relação “do homem com o homem” não permanece uma relação antropológico-abstrata de cunho geral, como em Feuerbach; ao contrário, a crítica da alienação humana em relação a si mesma (transposta da religião para o Estado) já penetra aí no cerne econômico do processo de alienação. Isso ocorre não por último nas passagens extraordinárias sobre a fenomenologia de Hegel, em que é caracterizado o papel do trabalho na formação da história e em que a obra de Hegel é interpretada quanto a esse aspecto. Ao mesmo tempo, porém, os Manuscritos econômico-filosóficos criticam essa obra porque ela concebe a atividade laboral humana apenas como atividade intelectual e não material. A passagem para a economia política, portanto, afastando-se do homem genérico de Feuerbach, acontece na primeira obra empreendida em conjunto com Engels, em A sagrada família, igualmente em 1844. Os Manuscritos econômicos-filosóficos já continham a seguinte tese: “O próprio trabalhador é um capital, uma mercadoria” (loc. cit., p. 103), nada sobrando, portanto, da existência humana segundo Feuerbach, a não ser a sua negação no capitalismo; A sagrada família registrou o próprio capitalismo como fonte dessa alienação mais forte e definitiva. No lugar do homem genérico de Feuerbach, com sua naturalidade abstrata e invariável, surgiu então um conjunto historicamente alternante de relações sociais e sobretudo antagônico quanto à classe social. A alienação, entretanto, englobava as duas: tanto a classe dos exploradores quanto a dos explorados, principalmente no capitalismo, que é a forma mais intensa dessa autoalienação, dessa objetificação. “Porém”, consta em A sagrada família, “a primeira classe sente-se bem e afirmada nessa alienação de si mesma, está ciente de que a alienação é seu próprio poder e possui dentro dela a aparência de uma existência humana; a segunda sente-se A época da composição Assim, o entendimento tem de comprovar-se constantemente frente a frases desse tipo. Em nenhuma parte se pode fazer isso de modo mais renovador do que na coleção compacta de instruções extremamente compactas, conhecidas como as Onze teses sobre Feuerbach. Marx as redigiu em abril de 1845 em Bruxelas, muito provavelmente no embalo dos estudos preparatórios para a Ideologia alemã. As Teses só foram publicadas em 1888 por Engels, como anexo do seu Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã. Ao fazê-lo, Engels ocasionalmente deu aguns leves retoques estilísticos no texto apenas rascunhado por Marx, obviamente sem a menor modificação do conteúdo. Na observação introdutória ao seu Ludwig Feuerbach, Engels escreve o seguinte sobre as Teses: “Trata-se de notas para posterior elaboração, registradas rapidamente, em absoluto destinadas à impressão, mas inestimáveis como o primeiro documento em que foi depositado o germe genial da nova visão de mundo”. Feuerbach havia conclamado a retornar das puras idéias à contemplação sensorial, do espírito ao homem, incluindo a natureza como a sua base. Como se sabe, essa rejeição tão “humanista” quanto “naturalista” de Hegel (tendo o homem como idéia central, a natureza como prius em vez do espírito) teve uma influência muito forte sobre o jovem Marx. A essência do cristianismo, publicado por Feuerbach em 1841, as suas Teses provisórias sobre a reforma da filosofia, de 1842, os seus Princípios da filosofia do futuro, de 1843, tiveram um efeito tanto mais libertador porque nem a escola dos hegelianos de esquerda conseguiu se libertar de Hegel, antes não foi além de uma mera crítica intra-hegeliana ao mestre do idealismo. “O entusiasmo”, diz Engels restrospectivamente no Ludwig Feuerbach, cerca de cinqüenta anos depois, “foi geral: momentaneamente todos nós éramos feuerbachianos. Com que entusiasmo Marx saudou a nova concepção, e o quanto ele foi influenciado por ela ─, pode ser verificado na leitura de A sagrada família” (Ludwig Feuerbach, Diez, 1946, p. 14). A juventude alemã de então acreditava estar finalmente vendo, em vez de céu, terra, humana, imanente. Entretanto, Marx livrou-se bem depressa dessa visão imanente demasiado vaga da vida humana. Sua atividade na Rheinischen Zeitung [Gazeta Renana] trouxe-lhe contatos muito mais estreitos com questões políticas e econômicas do que tiveram os hegelianos de esquerda e também os feuerbachianos. Justamente esse contato fez com que Marx passasse da crítica da religião, à qual Feuerbach havia se limitado, de modo crescente à crítica 13 destruída na alienação, vislumbra nela a sua impotência e a realidade de uma existência inumana” (MEGA I, 3, p. 206). Isto comprovou, enfim, que a produção e o modo de troca respectivos, classistas e causadores da divisão do trabalho, em grau extremo os capitalistas, são as fontes da alienação. No mais tardar, a partir de 1843, Marx tornouse materialista; A sagrada família deu à luz, em 1844, a concepção materialista da história, e com ela o socialismo científico. E as Onze teses, surgidas entre A sagrada família de 1844/1845 e a Ideologia alemã de 1845/46, representam assim a despedida expressa de Feuerbach, juntamente com a tomada de posse de uma herança extremamente original. A experiência empírico-política do período renana somada a Feuerbach deixaram Marx imune contra o “espírito” e mais “espírito” da escola dos hegelianos de esquerda. A posição assumida a partir do proletariado fez com que Marx se tornasse causalmente concreto, ou seja, verdadeiramente (a partir de um fundamento) humanista. existentes, sobretudo socialmente ativos, com relações reais entre si e com a natureza, materialismo e história teriam divergido constantemente, apesar de toda a “antropologia”. Mas nesse ponto Feuerbach continua sempre relevante para Marx, tanto como passagem quanto como o único filósofo contemporâneo com o qual uma controvérsia é possível, esclarecedora e frutífera. Assim, as idéias fundamentais, às quais Marx reage criticamente, as quais ele ultrapassa produtivamente, constam basicamente no escrito principal de Feuerbach intitulado A essência do cristianismo, de 1841. Além disso, entram em cogitação as Teses provisórias sobre a reforma da filosofia, escritas por Feuerbach em 1842, e os Princípios da filosofia do futuro, de 1843. Os escritos anteriores do filósofo dificilmente terão tido alguma importância para Marx, já que, pelo menos até 1839, Feuerbach nada tinha de original, por estar demasiadamente sob a influência de Hegel. Somente a partir de então, Feuerbach aplicou à religião o conceito hegeliano da auto-alienação. Somente a partir de então, o antigo hegeliano disse que sua primeira idéia teria sido Deus, a segunda, a razão, sua terceira e última seria o homem. Isto quer dizer: assim como a filosofia hegeliana da razão superara a fé da Igreja, assim a filosofia colocaria agora o ser humano (incluindo a natureza como sua base) no lugar de Hegel. Não obstante tudo isso, Feuerbach não conseguiu encontrar o caminho até a realidade; ele jogou fora justamente o mais importante em Hegel, o método dialético-histórico. As Onze teses foram as primeiras a indicar o caminho do mero antihegelianismo para a realidade passível de transformação, do materialismo da etapa para o da linha de frente. Obviamente a despedida em questão aqui não representa uma ruptura completa. As relações com Feuerbach perpassam grande parte da obra de Marx, também após a despedida representada pelas Onze teses. O que está mais próximo da terra que ficou para trás, já por razões temporais, é a Ideologia alemã, que vem imediatamente após as Teses. Diversas versões críticas das Teses retornam nela, sendo que, no entanto, há uma diferença muito grande entre a crítica a Feuerbach e a liquidação impiedosa dos falsos epígonos de Hegel. Feuerbach ainda fazia parte da ideologia burguesa; por isso, a controvérsia com as encarnações decadentes aparentemente radicais originadas dele, como Bruno Bauer e Stirner, necessariamente atingia também a ele na Ideologia alemã. Porém, de tal maneira que o próprio filósofo em parte ainda fornecia o punho da arma conseqüente com que Marx investia contra ele. Mas sobretudo contra os hegelianos de esquerda. Em conformidade com isso, a Ideologia alemã inicia fundamentalmente com o nome de Feuerbach e, tomando como ponto de partida a sua crítica da religião, critica a “superação” meramente intraidealista do idealismo. “A nenhum desses filósofos ocorreu perguntar pela relação entre a filosofia alemã e a realidade alemã, pela relação entre a sua crítica e o seu próprio contexto material” (MEGA I, 5, p. 10). Contudo, Marx enfatiza, por outro lado, a “grande preeminência [de Feuerbach] frente aos materialista ‘puros’, no fato de reconhecer que também o homem é um ‘objeto sensorial [sinnlicher Gegenstand]’”. De fato, o referido reconhecimento caracteriza, justamente dessa forma, a importância de Feuerbach para a formação do marxismo, assim como a crítica ao seu homem abstrato, aistórico, aponta o aspecto não-feuerbachiano, sim, antifeuerbachiano do próprio marxismo já desenvolvido. O reconhecimento diz o seguinte: sem considerar o homem igualmente como um “objeto sensorial” teria sido muito mais difícil elaborar no nível materialista o humano como raiz de todas as coisas sociais. O materialismo antropológico de Feuerbach designa assim a transição possível facilitada do materialismo meramente mecânico para o histórico. A crítica diz o seguinte: sem a concretização do humano nos homens realmente A questão do agrupamento Uma questão antiga e nova ao mesmo tempo é a de como as Teses devem ser agrupadas. Pois assim como estão, destinadas ao entendimento próprio, e não para serem impressas, elas apresentam diversos pontos de interseção. Também trazem o mesmo conteúdo em outra parte, nem sempre permitem discernir a razão do ordenamento e da seqüência. Em vista disso, exigências didáticas deram origem a diversas tentativas de reordenar as Teses conforme seus traços comuns e de classificá-las assim em grupos. Nesse caso, procura-se às vezes manter a seqüência numérica, como se as Onze teses pudessem ser subsumidas uma após a outra, na seqüência em que aparecem. Esse agrupamento fiel à numeração tem, por exemplo, o seguinte aspecto: as teses 1, 2 e 3 encontramse sob “Unidade de teoria e práxis no pensamento”, as teses 4 e 5 sob “Compreensão da realidade em contradições”, as teses 6, 7, 8 e 9 sob “A própria realidade em contradições”, as tese 10 e 11 sob “Lugar e tarefa do materialismo dialético na sociedade”. Esta é uma ordenação por cifras; como há muitas outras desse tipo e de conteúdo bem distinto uma das outras, resulta que, neste caso, o mero valor numérico significa muito pouco. Cada uma dessas ordenações, por um lado, valoriza demasiadamente a seqüência, fazendo com que esteja 14 gravada por toda a eternidade, como a Lei das Doze Tábuas ou nos Dez mandamentos; por outro lado, trata-a de modo simplório e formalista, como se fosse uma série de selos. A numeração, no entanto, não é sistemática, e Marx é o que menos tem necessidade desse tipo de compensação. Por isso, deve-se agrupar filosófica e não aritmeticamente, isto é, a seqüência das teses é unicamente a de seus temas e conteúdos. Tanto quanto se pode enxergar, ainda não existe nenhum comentário às Onze teses; porém somente com ele, como resultado da própria causa comum, evidencia-se igualmente a coerência que continua a produzir-se, tanto a sua concisão quanto a sua profundidade. Surge, então, em primeiro lugar, o grupo epistemológico, referente à contemplação e atividade (teses 5, 1 e 3); em segundo lugar, o grupo histórico-antropológico, referente à autoalienação, sua causa real e o verdadeiro materialismo (teses 4, 6, 7, 9 e 10); em terceiro lugar, o grupo sintetizador ou grupo teoria-práxis, referente a comprovação e validação (teses 2 e 8). Por último, segue a tese mais importante, a senha, na qual os espíritos não só se dividem definitivamente, mas com cuja utilização eles deixam de ser meros espíritos (tese 11). O grupo epistemológico é apropriadamente aberto com a tese 5, o grupo histórico-antropológico, com a tese 4; pois essas teses designam as duas teorias fundamentais de Feuerbach, que Marx reconhece relativamente, e as quais ele ultrapassa nas demais teses dos respectivos grupos. A teoria assumida na tese 5 é a da rejeição do pensamento abstrato, na tese 4, a da rejeição da alienação humana. E, em conformidade com o primeiro traço básico da dialética materialista, cuja imagem anuncia-se aqui, há entre as teses individuais dentro do rerspectivo grupo um movimento livre e complementar das vozes; assim como entre os próprios grupos ocorre uma interação constante, um todo único e coerente. velhas circunstâncias com uma actividade completamente mudada, o que permite a distorção especulativa de fazer da história posterior o objectivo da anterior, por exemplo, colocar como subjacente ao descobrimento da América o objectivo de proporcionar a eclosão da Revolução Francesa; deste modo, a história recebe então os seus objectivos à parte, e torna-se uma "pessoa a par de outras pessoas" (como sejam: "Consciência de Si, Crítica, Único", etc.), enquanto aquilo que se designa com as palavras "Determinação", "Finalidade", "Germe", "Ideia" da história anterior mais não é do que uma abstracção formada a partir da história posterior, uma abstracção a partir da influência activa que a história anterior exerce sobre a posterior. Quanto mais se expandem, no curso deste desenvolvimento, os diversos círculos que actuam uns sobre os outros, quanto mais o isolamento original de cada nacionalidade é aniquilado pelo modo de produção e o intercâmbio já formados e pela divisão do trabalho entre as diferentes nações assim naturalmente produzida por eles, tanto mais a história se torna história mundial, pelo que, por exemplo, quando em Inglaterra é inventada uma máquina que deixa sem pão inúmeros operários na Índia e na China e transforma profundamente toda a forma de existência destes impérios, este invento torna-se um facto histórico-mundial; e o açúcar e o café provaram a sua importância mundial no século XIX pelo facto de a falta destes produtos, provocada pelo Sistema Continental Napoleónico [N15] ter levado os Alemães [21] à revolta contra Napoleão e se ter assim tornado a base real das guerras gloriosas de libertação de 1813. Daqui decorre que esta transformação da história em história mundial não é, de modo nenhum, um mero acto abstracto da "Consciência de Si", do Espírito do mundo ou de qualquer outro espectro metafísico, mas um acto totalmente material, demonstrável empiricamente, um acto cuja prova é fornecida por cada indivíduo no seu dia-a-dia, ao comer, ao beber e ao vestir-se. [BLOCH, Ernst. O princípio esperança [fragmento] -------------------------------------------------------------------- Na história até aos nossos dias é, sem dúvida, igualmente um facto empírico que cada um dos indivíduos, à medida que a actividade se alarga à escala histórico-mundial, fica cada vez mais escravizado sob um poder que lhe é estranho (cuja pressão eles imaginaram como chicana do chamado Espírito do mundo, etc.), um poder que se tornou cada vez mais desmedido e que em última instância se legitima como o mercado mundial. Mas, do mesmo modo, está empiricamente provado que pelo derrubamento do estado de coisas vigente na sociedade por meio da revolução comunista (da qual mais adiante falaremos) e da abolição da propriedade privada que àquela é idêntica, este poder tão misterioso para os teóricos alemães será dissolvido, e então será realizada a libertação de cada um dos indivíduos na medida em que a história se transforma completamente em história mundial (49). Depois do que atrás ficou dito, torna-se claro que a verdadeira riqueza espiritual do indivíduo depende completamente da riqueza das suas relações reais. Só deste modo os diferentes indivíduos são libertados das várias barreiras nacionais e locais, colocados em relação prática com a produção (também 1.7 – Existência e Consciência Social [Conclusões da concepção concepção materialista da história: continuidade do processo histórico, transformação da história em história mundial, a necessidade de uma revolução comunista] [20] A história não é senão a sucessão das diversas gerações, cada uma das quais explora os materiais, capitais, forças de produção que lhe são legados por todas as que a precederam, e que por isso continua, portanto, por um lado, em circunstâncias completamente mudadas, a actividade transmitida, e por outro lado modifica as 15 com a espiritual) de todo o mundo e colocados em condições de adquirir a capacidade de fruição para toda esta variada produção da Terra inteira (as criações dos homens). A dependência integral, esta forma natural da cooperação histórico-mundial dos indivíduos, é transformada [22] por esta revolução comunista no controlo e domínio consciente destes poderes que, gerados da acção dos homens uns sobre os outros, até aqui se lhes têm imposto e os têm dominado como poderes completamente estranhos. Ora, esta visão pode, de novo, ser concebida de modo idealista-especulativo, ou seja, de modo fantástico como "autogeração da espécie" (a "sociedade como sujeito"), e deste modo a série consecutiva de indivíduos em conexão entre si pode ser imaginada como um único indivíduo que realiza o mistério de se gerar a si próprio. Torna-se aqui evidente que os indivíduos se fazem de facto uns aos outros, física e espiritualmente, mas não se fazem a si próprios, nem no sentido absurdo do sagrado Bruno, nem no sentido do "Único", do homem "feito". derrubada, mas também porque a classe que a derruba só numa revolução consegue sacudir dos ombros toda a velha porcaria e tornar-se capaz de uma nova fundação da sociedade(52). Resumo da concepção materialista da história [24] Esta concepção da história assenta, portanto, no desenvolvimento do processo real da produção, partindo logo da produção material da vida imediata, e na concepção da forma de intercâmbio intimamente ligada a este modo de produção e por ele produzida, ou seja, a sociedade civil nos seus diversos estádios, como base de toda a história, e bem assim na representação da sua acção como Estado, explicando a partir dela todos os diferentes produtos teóricos e formas da consciência — a religião, a filosofia, a moral, etc., etc. — e estudando a partir destas o seu nascimento; deste modo, naturalmente, a coisa pode também ser apresentada na sua totalidade (e por isso também a acção recíproca destas diferentes facetas umas sobre as outras). Ao contrário da visão idealista da história, não tem de procurar em todos os períodos uma categoria, pois permanece constantemente com os pés assentes no chão real da história; não explica a práxis a partir da ideia, explica as formações de ideias a partir da práxis material, e chega, em consequência disto, também a este resultado(53): todas as formas e produtos da consciência podem ser resolvidos não pela crítica espiritual, pela dissolução na "Consciência de Si" ou pela transformação em "aparições", "espectros", "manias"[N17], etc., mas apenas pela transformação prática [revolucionária] das relações sociais reais de que derivam estas fantasias idealistas — a força motora da história, também da religião, da filosofia e de toda a demais teoria, não é a crítica, mas sim a revolução. Ela mostra que a história não termina resolvendo-se na "Consciência de Si" como "espírito do espírito"(54), mas que nela, em todos os estádios, se encontra um resultado material, uma soma de forças de produção, uma relação historicamente criada com a natureza e dos indivíduos uns com os outros que a cada geração é transmitida pela sua predecessora, uma massa de forças produtivas, capitais e circunstâncias que, por um lado, é de facto modificada pela nova geração, mas que por outro lado também lhe prescreve as suas próprias condições de vida e lhe dá um determinado desenvolvimento, um carácter especial -, mostra, portanto, que as circunstâncias fazem os homens tanto [25] como os homens fazem as circunstâncias. Por fim, da concepção da história que desenvolvemos obtemos ainda os seguintes resultados: 1) No desenvolvimento das forças produtivas atinge-se um estádio no qual se produzem forças de produção e meios de intercâmbio que, sob as relações vigentes, só causam desgraça, que já não são forças de produção, mas forças de destruição (maquinaria e dinheiro) — e, em conexão com isto, é produzida uma classe que tem de suportar todos os fardos da sociedade sem gozar das vantagens desta e que, excluída da sociedade [23], é forçada ao mais decidido antagonismo a todas as outras classes; uma classe que constitui a maioria de todos os membros da sociedade e da qual deriva a consciência sobre a necessidade de uma revolução radical, a consciência comunista, a qual, evidentemente, também se pode formar no seio das outras classes por meio da observação da posição desta classe; 2) que as condições, no seio das quais podem ser aplicadas determinadas forças de produção, são as condições do domínio de uma determinada classe da sociedade, cujo poder social, decorrente da sua propriedade, tem a sua expressão prática-idealista na respectiva forma de Estado, e por isso toda a luta revolucionária se dirige contra uma classe que até então dominou(50); 3) que em todas as revoluções anteriores o modo da actividade permaneceu sempre intocado e foi só uma questão de uma outra distribuição desta actividade, de uma nova repartição do trabalho a outras pessoas, ao passo que a revolução comunista se dirige contra o modo da actividade até aos nossos dias, elimina o trabalho(51) e suprime o domínio de todas as classes suprimindo as próprias classes, porque é realizada pela classe que na sociedade já não vale como uma classe, não é reconhecida como uma classe, é já a expressão da dissolução de todas as classes, nacionalidades, etc., no seio da sociedade actual; e 4) que, tanto para a produção massiva desta consciência comunista como para a realização da própria causa, é necessária uma transformação massiva dos homens que só pode processar-se num movimento prático, numa revolução; que, portanto, a revolução não é só necessária porque a classe dominante de nenhum outro modo pode ser Esta soma de forças de produção, capitais e formas de intercâmbio social, que todos os indivíduos e todas as gerações vêm encontrar como algo de dado, é o fundamento real daquilo que os filósofos se têm representado como "substância" e "essência do Homem", daquilo que têm apoteotizado e combatido — um fundamento real que de modo nenhum é afectado nos seus efeitos e influências sobre o desenvolvimento dos homens pelo facto de estes filósofos se rebelarem contra ele como "Consciência de Si" e o "Único". Estas condições 16 de vida que as diferentes gerações já encontram vigentes é que decidem, também, se o abalo revolucionário periodicamente recorrente na história será suficientemente forte ou não para deitar a baixo a base de todo o existente, e quando estes elementos materiais de um revolucionamento total — ou seja, por um lado, as forças produtivas existentes, por outro, a formação de uma massa revolucionária que faz a revolução não apenas contra estas ou aquelas condições da sociedade anterior, mas contra a própria "produção da vida" vigente até agora, contra a "actividade total" em que se baseava — não estão presentes, então é completamente indiferente para o desenvolvimento prático que a ideia desta transformação profunda já tenha sido expressa centenas de vezes — como o prova a história do comunismo. Mas, se o protestantismo não foi a verdadeira solução, representou a verdadeira colocação do problema. Já não se tratava da luta do leigo com o sacerdote que existe fora dele, mas da luta com o sacerdote que existe dentro de si próprio, com sua natureza sacerdotal. E, se a transformação protestante do leigo alemão em sacerdote emancipou os papas leigos, os príncipes, com toda sua clerezia, se emancipou privilegiados e filisteus, a transformação filosófica dos alemães com espírito sacerdotal em homens emancipará o povo. Mas, do mesmo modo que a emancipação não se deteve nos príncipes, tampouco a secularização dos bens se deterá no despojo da igreja, realizada sobretudo pela hipócrita Prússia. A guerra dos camponeses, fato mais radical da história alemã, lançou-se contra a teologia. Hoje, com o fracasso da própria teologia, o fato mais servil da história alemã, nosso status quo, se lançará contra a filosofia. As vésperas da Reforma, a Alemanha oficial era o servo mais submisso de Roma. As vésperas de sua revolução, é o servo submisso de algo menos que Roma, Prússia e Áustria, de fidalguetos rurais e filisteus, Fonte: MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã [fragmento] --------------------------------------------------------1.6 – A realização da Filosofia e o proletariado Não obstante, uma dificuldade fundamental parece oporse a uma revolução alemã radical. [As armas da crítica] Com efeito, as revoluções necessitam de um elemento passivo, de uma base material. A teoria só se realiza numa nação na medida que é a realização de suas necessidades. Ora, ao imenso divórcio existente entre os postulados do pensamento alemão e as respostas da realidade alemã corresponderá o mesmo divórcio existente entre a sociedade alemã e o Estado e consigo mesma! Não basta que o pensamento estimule sua realização; é necessário que esta mesma realidade estimule o pensamento - As armas da crítica não podem, de fato, substituir a crítica das armas; a força material tem de ser deposta por força material, mas a teoria também se converte em força material uma vez que se apossa dos homens. A teoria é capaz de prender os homens desde que demonstre sua verdade face ao homem, desde que se torne radical. Ser radical é atacar o problema em suas raízes. Para o homem, porém, a raiz é o próprio homem. A prova evidente do radicalismo da teoria alemã e, portanto, de sua energia prática, consiste em saber partir decididamente da superação positiva da religião. A crítica da religião derruba a idéia do homem cama essência suprema para si próprio. Por conseguinte, com o imperativo categórico mudam todas as relações em que o homem é um ser humilhado, subjugado, abandonado e desprezível, relações que nada poderia ilustrar melhor do que aquela exclamação de um francês ao tomar conhecimento da existência de um projeto de criação do imposto sobre cães: Pobres cães! Querem tratá-los como se fossem pessoas! Todavia, a Alemanha não escalou simultaneamente com os povos modernos as fases intermediárias da emancipação política. Praticamente,. não chegou sequer às fases que superou teoricamente. Como poderia, de um salto mortal, remontar-se não só sobre seus próprios limites, como também e ao mesmo tempo, sobre os limites dos povos modernos, sobre limites que na realidade devia sentir e aos quais devia aspirar como a emancipação de seus limites reais! Uma revolução radical só pode ser a revolução de necessidades radicais, cujas premissas e lugares de origem parecem faltar completamente. Não obstante, se a Alemanha só abstratamente acompanhou o desenvolvimento dos povos modernos, sem chegar a participar ativamente das lutas reais deste, não é menos verdade que, de outro lado, partilhou os sofrimentos deste mesmo desenvolvimento, sem usufruir seus benefícios e satisfações parciais. A atividade abstrata de um lado, corresponde o sofrimento abstrato do outro. Assim, numa bela manhã, a Alemanha se encontrará em nível idêntico à decadência européia antes mesmo de haver atingido o nível da emancipação européia. Poderíamos compará-la a um idólatra que agonizasse, vítima do cristianismo. Até historicamente a emancipação teórica tem um interesse especificamente prático para a Alemanha. O passado revolucionário da Alemanha é, de fato, um passado histórico: é a Reforma. Como então no cérebro do frade, a revolução começa agora no cérebro do filósofo. Lutero venceu efetivamente a servidão pela devoção porque a substituiu pela servidão da convicção. Acabou com a fé na autoridade porque restaurou a autoridade da fé. Converteu sacerdotes em leigos porque tinha convertido leigos em sacerdotes. Libertou o homem da religiosidade externa porque erigiu a religiosidade no interior do homem. Emancipou o corpo das cadeias porque sujeitou de cadeias o coração. Fixemo-nos, antes de mais nada, nos governos alemães, e os veremos de tal modo impulsionados pelas condições da época, pela situação da Alemanha, pelo ponto de vista da cultura alemã e, finalmente, por seu próprio instinto 17 certeiro, a combinar os defeitos civilizados do mundo dos Estados modernos, cujas vantagens não possuímos, com os defeitos bárbaros do antigo regime, de que nos podemos jactar até a saciedade, que a Alemanha, senão por prudência, pelo menos à falta desta tem que participar cada vez mais da constituição de Estados que estão muito além de seu status quo. Acaso, por exemplo, há no mundo algum país que partilhe tão simplesmente como a chamada Alemanha constitucional todas as ilusões do Estado constitucional sem partilhar de suas realidades. Ou não teria que ser necessariamente uma ocorrência do governo alemão o fato de associar os tormentos da censura aos tormentos das leis de setembro na França, que pressupõem a liberdade de imprensa. Assim como no panteão romano se reuniam os deuses de todas as nações, no sacro império romano germânico se reúnem os pecados de todas as formas de estado. Que este ecletismo chegará a alcançar um nível até hoje inimaginado, o garante, de fato, o enfado estético-político de um monarca alemão que aspira desempenhar, se não através da pessoa do povo, pelo menos em sua própria, se não para o povo, pelo menos para si mesmo, todos os papéis da monarquia: a feudal e a burocrática, a absoluta e a constitucional, a autocrática e a democrática. A Alemanha, como a ausência do presente político constituído num mundo próprio, não poderá derrubar as barreiras especificamente alemães sem derrubar a barreira geral do presente político. defeitos da sociedade se condensem numa classe, que uma determinada classe resuma em si a repulsa geral, que seja a incorporação do obstáculo geral; é necessário, para isto, que uma determinada esfera social seja considerada como crime notório de toda a sociedade, de tal modo que a emancipação desta esfera surja como autoemancipação geral. Para que um estado seja par excellence o estado de libertação, é necessário que outro seja o estado de sujeição por antonomásia. O significado negativo geral da nobreza e do clero franceses condicionou a significação positiva geral da classe inicialmente delimitadora e contraposta, da burguesia. Todavia, todas as classes especiais da Alemanha carecem de conseqüência, rigor, arrojo e intransigência capazes de convertê-las no representante negativo da sociedade. Além do mais, todas carecem da grandeza de espírito que pudesse identificar uma delas, ainda que momentaneamente, com o espírito do povo; todas carecem da genialidade que infunde o entusiasmo do poder político ao poder material, da intrepidez revolucionária que lança o desafio ao inimigo: Nada SOU e tudo deveria ser. Esse modesto egoísmo que faz valer e permite que outros também façam valer suas próprias limitações é o fundo básico da moral e da honradez de indivíduos e classes na Alemanha. Por isto, a relação existente entre as diversas esferas da sociedade alemã não é dramática, mas épica. Cada uma delas começa a sentir e a fazer chegar às outras suas pretensões, não ao se ver oprimida, mas quando as circunstâncias do momento, sem intervenção sua, criam uma base social sobre a qual, por sua vez, possa exercer pressão. Até mesmo o amor próprio moral da classe média alemã repousa sobre a consciência de ser o representante geral da mediocridade filistéia de todas as demais classes. Portanto, não são apenas os reis alemães que ascendem ao trono mal à propos [Inoportunamente], mas todas as esferas da sociedade burguesa, que sofrem sua derrota antes de terem festejado a vitória, que desenvolvem seus próprios limites antes de terem ultrapassado os limites que se opõem a estes, que fazem valer sua pusilanimidade antes de fazer valer sua arrogância, de tal modo que até mesmo a oportunidade de desempenhar um grande papel desaparece antes de existir e que cada classe, tão logo começa a lutar com aquela que lhe está acima, vê-se envolvida na luta com aquela que lhe está abaixo. Daí porque os príncipes estão em luta contra a burguesia, os burocratas contra a nobreza e os burgueses contra todos eles, enquanto o proletário começa a lutar contra o burguês. A classe média nem sequer se atreve a conceber o pensamento da emancipação de seu ponto de vista, já que o desenvolvimento das condições sociais, do mesmo modo que o progresso da teoria política, se encarregam de revelar este mesmo ponto de vista como algo antiquado ou, pelo menos, problemático. Para a Alemanha, o sonho utópico não é a revolução radical, não é a emancipação humana geral, mas, ao contrário, a revolução parcial, a revolução meramente política, a revolução que deixa de pé os pilares do edifício. Sobre o que repousa uma revolução parcial, uma revolução meramente política? No fato de emancipar uma parte da sociedade burguesa e de instaurar sua dominação geral, no fato de uma determinada classe empreender a emancipação geral da sociedade a partir de sua situação especial. Esta classe emancipa toda a sociedade, mas apenas sob a hipótese de que toda a sociedade se encontre na situação desta classe, isto é, que possua, por exemplo, dinheiro e cultura ou que possa adquiri-los. Nenhuma classe da sociedade burguesa pode desempenhar este papel sem provocar um momento de entusiasmo em si e na massa, momento durante o qual confraterniza e se funde com a sociedade em geral, com ela se confunde e é sentida e reconhecida como seu representante geral, que suas pretensões e direitos são, na verdade, os direitos e ai pretensões da própria sociedade, que esta classe é realmente o cérebro e o coração da sociedade. Somente em nome dos direitos gerais da sociedade pode uma classe especial reivindicar para si a dominação geral. E, para atingir esta posição emancipadora e poder, portanto, explorar politicamente todas as esferas da sociedade em benefício da própria esfera, não bastam por si sós a energia revolucionária e o amor próprio espiritual. Para que coincidam a revolução de um povo e a emancipação de uma classe especial da sociedade burguesa, para que uma classe valha por toda a sociedade, é necessário, pelo contrário, que todos os Na França, basta que alguém seja alguma coisa para querer ser todas as coisas. Na Alemanha, ninguém pode ser nada se não quiser renunciar a tudo. Na França, a emancipação parcial é o fundamento da emancipação universal. Na Alemanha, a emancipação universal é a conditio sine que non de toda emancipação parcial. 18 Enquanto na França é a realidade da emancipação gradual que tem de engendrar a liberdade total, na Alemanha, ao contrário, é justamente a sua impossibilidade. Na França, toda classe é um político idealista que se sente como representante das necessidades sociais em geral, ao invés de sentir-se como representante de uma classe especial. Por isto, o papel emancipador passa por turnos, em movimento dramático, entre as distintas classes do povo francês até atingir, finalmente, a classe que já não realiza a liberdade social sob a hipótese de certas condições que se encontram à margem do homem e que, não obstante, foram criadas pela sociedade humana, mas que organiza todas as condições de existência a partir da hipótese da liberdade social. Pelo contrário, na Alemanha, onde a vida prática tão pouco tem de espiritual assim como a vida espiritual de prático, nenhuma classe da sociedade burguesa sente a necessidade nem a capacidade de emancipação geral até ver-se obrigada a isto por sua situação imediata, pela necessidade material, pelas suas próprias cadeias. Onde reside, pois, emancipação alemã? a possibilidade positiva negativo da sociedade. O proletariado está amparado, então, em relação ao mundo que nasce, da mesma razão que assiste o rei alemão em relação ao mundo existente, ao denominar o povo seu povo, como ao cavalo seu cavalo. Ao declarar o povo sua propriedade privada, o rei se limita a expressar que o proprietário privado é o rei. Assim como a filosofia encontra no proletariado suas armas materiais, o proletariado encontra na filosofia suas armas espirituais. Com a mesma rapidez que o raio do pensamento penetra a fundo neste puro solo popular, se efetuará a emancipação dos alemães como homens. Resumindo e concluindo: A única emancipação praticamente possível da Alemanha é a emancipação do ponto de vista da teoria, que declara o homem essência suprema do homem. Na Alemanha, a emancipação da Idade Média só é possível como emancipação paralela das superações parciais da Idade Média. Na Alemanha, não se pode derrubar nenhum tipo de servidão sem derrubar todo tipo de servidão em geral. A meticulosa Alemanha não pode revolucionar sem revolucionar seu próprio fundamento. A emancipação do alemão é a e emancipação do homem. O cérebro desta emancipação é a filosofia; seu coração, o proletariado. A filosofia não pode se realizar sem a extinção do proletariado nem o proletariado pode ser abolido sem a realização da filosofia. da Resposta: na formação de uma classe com cadeias radicais, de uma classe da sociedade burguesa que não é uma classe da sociedade burguesa; de um estado que é a dissolução de. todos os estados; de uma esfera que possui um caráter universal por seus sofrimentos universais e que não reclama nenhum direito especial para si, porque não se comete contra ela nenhuma violência especial, senão a violência pura e simples; que já não pode apelar a um título histórico, mas simplesmente ao título humano; que não se encontra em nenhuma espécie de contraposição particular com as conseqüências, senão numa contraposição universal com as premissas do Estado alemão; de uma esfera, finalmente, que não pode emancipar-se sem se emancipar de todas as demais esferas da sociedade e, simultaneamente, de emancipar todas elas; que é, numa palavra, a perda total do homem e que, por conseguinte, só pode atingir seu objetivo mediante a recuperação total do homem. Esta dissolução da sociedade como uma classe especial é o proletariado. Quando se cumprirem todas as condições interiores, o canto do galo gaulês anunciará o dia da ressurreição da Alemanha. Fonte: MARX, Karl. Introdução à crítica do Direito de Hegel. [fragmentos] O proletariado só começa a surgir na Alemanha, mediante o movimento industrial que desponta, pois o que forma o proletariado não é a pobreza que nasce naturalmente, mas a pobreza que se produz artificialmente; não é a massa humana oprimida mecanicamente pelo peso da sociedade, mas aquela que brota da aguda dissolução desta e, em especial, da dissolução da classe média, ainda que gradualmente, como se compreende, venham a incorporar-se também a suas fileiras a pobreza natural e os servos cristãos-germânicos da gleba Ao proclamar a dissolução da ordem universal anterior, o proletariado nada mais faz do que proclamar o segredo de sua própria existência, já que ele é a dissolução de fato desta ordem universal. Ao reclamar a negação da propriedade privada, o proletariado não faz outra coisa senão erigir a princípio de sociedade aquilo que a sociedade erigiu em princípio seu, o que já se personifica nele, sem intervenção de sua parte, como resultado 19