Gauer 3 - Fafich

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In Gomes, W. B., Gauer, G. & Souza, M. L. (2007). História da Psicologia.
(manuscrito em preparação, especialmente cedido para fins de ensino,
proibida a reprodução não autorizada)
A TEORIA DA EVOLUÇÃO E A PSICOLOGIA
Gustavo Gauer
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Princípios evolucionários e a nascente psicologia. Primeiras teorias da evolução, as idéias de
Lamarck, Spencer, Francis Galton e Darwin1. Psicologia comparativa (Romanes e Morgan). Bases
funcionais da psicologia: organismo, ambiente, adaptação.
O estabelecimento da nova psicologia científica, identificada com o experimentalismo de Wundt, esteve
ligado à formulação de leis da associação que permitissem explicar os fenômenos mentais enquanto conjuntos de
elementos mecanicamente associados. Paralelamente a esse desenvolvimento, as “ciências da vida” 2, conheceram
uma verdadeira revolução com a sistematização das idéias evolutivas, concluída por Charles Darwin. De certa
forma, essas transformações, tanto em psicologia quanto em biologia, foram ensejadas pelos mesmos fatores
históricos, políticos e filosóficos. No âmbito científico, ambas as ciências (biologia e psicologia) estavam
respondendo à exigência cada vez maior de demonstração empírica, nos moldes da Física. Por outro lado, em
virtude das revoluções industriais, a sociedade ocidental passava por mudanças rápidas e substantivas. Essa visão
estendeu-se para além da vida social, alcançando o mundo natural. Assim, o conhecimento deveria dar conta não
apenas do mundo, mas de um mundo em constante mudança.
Está claro que as idéias psicológicas e o pensamento evolutivo preexistiram respectivamente a Wundt e a
Darwin. A psicologia, ligada à filosofia, correu paralela às primeiras teorias evolutivas, desenvolvidas por
botânicos e historiadores naturais. Entretanto, a revolução ocasionada pela obra de Darwin transformaria essa
relação entre biologia e psicologia, de paralela para interativa. De um lado, a psicologia, enquanto estudo dos
fenômenos mentais, interessará aos primeiros biólogos evolucionistas. Eles entenderam a vida mental em termos de
suas funções adaptativas, equiparando-a com outras características dos seres vivos, como órgãos vitais. A
influência da biologia sobre a psicologia, por outro lado, será visivelmente mais intensa, tanto em termos de prática
científica (epistemologia e lógica), quanto nas definições ontoaxiológicas.
No campo metodológico, a posição biológica sobre as funções mentais, descrita acima, foi assumida por
muitos psicólogos. Tal noção implicava que a mente não era uma dádiva de Deus, mas uma característica presente,
com diferentes graus de complexidade, na linhagem evolutiva desde as espécies ancestrais. O estudo das funções
psicológicas ganharia assim uma nova área e um novo método. Na área da psicologia comparativa, através do
método genético, manifestações mentais serão procuradas nos animais ditos inferiores e estes mesmos animais
começarão a ser sujeitos de pesquisas psicológicas. Como resultado da divulgação da teoria da evolução, a
funcionalidade adaptativa ocupou a primazia que desde Descartes cabia à causalidade mecânica na lógica das
explicações psicológicas. Além da prática da psicologia animal, as funções psicológicas de adultos normais serão
comparadas com as mesmas funções em crianças e em doentes e deficientes mentais. O trabalho com estes últimos
ocorrerá em combinação com a psicopatologia da medicina psiquiátrica (ver capítulo 16). Já a comparação de
funções plenamente desenvolvidas em adultos com as funções ausentes ou incipientes nas crianças dará origem à
importante área que conhecemos hoje como psicologia do desenvolvimento.
Além da análise genética3, o método psicométrico e a correlação estatística utilizados inicialmente por
Galton ocasionarão a consolidação de uma abordagem matemática da psicologia. Não é à toa que a psicologia
estatística desenvolveu-se atrelada à biologia evolutiva. A biologia teve que lidar com as acusações da física. Os
métodos estatísticos resolveram o problema da crença na causalidade colocado por Hume. Trabalhando com
probabilidades ao invés de funções matemáticas, biologia e psicologia puderam contornar essas dificuldades.
1
O autor agradece ao Professor Doutor Aldo Mellender de Araújo, do Programa de Pós-Graduação em Genética e Biologia
Molecular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, pela indicação de diversas obras citadas neste capítulo, bem como
pela orientação quanto aos debates sobre a história e filosofia da biologia evolutiva.
2
O campo das ciências da vida corresponde ao que hoje chamamos de Biologia. Essa área, que compreende diversas
disciplinas como botânica, zoologia, genética e ecologia, unificou-se no início do século XX em torno da chamada “moderna
síntese”, ou a combinação da teoria da evolução darwiniana e da genética mendeliana.
3
O termo “genética” é usado em duas acepções diversas em diferentes partes deste capítulo, uma instrumental e outra,
disciplinar. No sentido instrumental, a análise genética consiste na investigação da origem das funções orgânicas, incluindo as
psicológicas. No sentido disciplinar, a genética é a área da biologia que estuda a base física da hereditariedade (inicialmente os
genes, e mais recentemente o DNA).
Além dos adventos epistemológicos, como a comparação e a psicometria, a biologia, cada vez mais
unificada em torno da teoria da evolução, marcará a psicologia de forma indelével, ao introduzir um conjunto de
noções importantíssimas, diante das quais nenhuma definição ontoaxiológica de psicologia poderá permanecer
indiferente. Essas noções são as de organismo, ambiente e adaptação (ou função adaptativa). Esses conceitos
pautarão praticamente todo o desenvolvimento histórico da psicologia desde o final do século XIX. Diferentes
estudiosos da psicologia construirão “edifícios teóricos” com base em posições tomadas em relação a tais fatores,
priorizando ora uns, ora outros deles4.
Um debate suscitado pelo evolucionismo afetará a psicologia em especial, colocando em uma nova
perspectiva a questão do inatismo versus experiência. Trata-se da discussão sobre a determinação das
características psicológicas individuais, travada em torno da prevalência da hereditariedade ou do ambiente na
determinação de funções psicológicas. Os fenômenos passarão a ser entendidos como características do organismo
com função de adaptação ao meio, e os estudos de laboratório, em condições ambientais estritamente controladas,
serão questionados quanto à sua validade. Métodos observacionais e “instrumentos de papel” como questionários e
testes mentais serão introduzidos como técnicas de coleta de dados. A crescente sistematização das idéias
evolutivas terá ainda conseqüências éticas, na forma de uma nova preocupação com a finalidade e com a motivação
da ação e dos fenômenos psicológicos. A motivação, com o evolucionismo, passa a ser subsidiária da função
adaptativa do organismo.
Este capítulo focaliza os principais indicadores do impacto inicial das idéias evolutivas na ciência
psicológica. As conseqüências ontológicas, epistemológicas, lógicas e éticas da teoria da evolução para o
conhecimento psicológico são apreciadas a partir das obras de evolucionistas centrais como Charles Darwin,
Herbert Spencer e Sir Francis Galton. Os campos de estudo criados pela influência biológica, são considerados,
com especial atenção à psicologia comparativa de Morgan e Romanes e à psicologia do desenvolvimento de
Baldwin. Teorias psicológicas específicas, tributárias da biologia evolutiva, como Psicanálise, Epistemologia
Genética, Etologia e Comportamentalismo serão contempladas em capítulos subseqüentes deste volume.
Uma breve história das idéias evolutivas
Inúmeros autores, desde os gregos antigos, teorizaram sobre a origem dos seres. Perguntas sobre a criação e
sobre as mudanças por que passam tanto os objetos inanimados quanto dos seres vivos estavam imbricadas nas
primeiras obras filosóficas. A explicação da origem das coisas vivas e não-vivas já era presente nos pensadores présocráticos, e foi um dos motores do estabelecimento da filosofia racional. Para Tales, por exemplo, a physis
(equivalente a gênese, ou origem) era a água. Anaximandro, outro pensador da escola de Mileto, identificava no
apeiron (infinito) a substância original da qual derivam todas as coisas. Empédocles (492-450 a.C.), delineou em
seus poemas uma teoria do desenvolvimento do universo a partir de quatro elementos, fogo, ar, água e terra, que se
combinam por atração (amor) ou repulsão (ódio)5. Em Peri Physeos (Traduzido como “Da Natureza”, ou “Da
Origem”), Empédocles sustenta que o universo passou por quatro etapas: 1) completa mistura dos quatro elementos
num universo esférico; 2) separação dos elementos pelo “ódio”; 3) total separação dos elementos; e 4) crescente
mistura dos elementos, por “amor”. Neste último estágio, foram criados os animais, a partir da reunião de membros
e órgãos. Nesse processo de combinação, surgiram monstros, formas animais que não se harmonizaram ao seu
entorno e não reproduziram, vindo a desaparecer6. As formas que se harmonizaram eram as espécies que povoavam
o mundo conhecido por Empédocles (Ronan, 1987).
As explicações evolutivas foram ciclicamente retomadas por outros filósofos gregos. Na Idade Média,
todavia, o predomínio do pensamento cristão impunha a concepção bíblica da criação do mundo, conforme
retratada no livro do Gênesis: em seis dias o Senhor criou a luz, o mundo, os animais e o homem, à sua imagem e
semelhança. Esse panorama viria a mudar no período entre a renascença e a consolidação da sociedade industrial,
durante o qual a concepção de evolução biológica foi gradualmente sistematizada.
As doutrinas criacionistas, segundo as quais a vida foi criada por um ser divino, de uma só vez e já com as
suas muitas espécies definidas, perdiam força: o cartesianismo e a física newtoniana criaram uma expectativa por
explicações estritamente materiais, e preferencialmente matemáticas, para os fenômenos. A estrutura social na
Europa, cada vez mais complexa e dinâmica, era crescentemente incompatível com visões de mundo que não
4
Os exemplos mais notórios de teorias psicológicas de orientação biológica são a psicanálise, que enfatizou o instinto
adaptativo; o behaviorismo, que privilegiou o papel do ambiente; a etologia, que focalizou a hereditariedade; e a epistemologia
genética, que focaliza a função adaptativa na interação entre organismo e ambiente. Maiores detalhes sobre reducionismos
biológicos em psicologia serão desenvolvidos no capítulo 23 deste volume.
5
O capítulo 16 retrata a influência da doutrina dos quatro elementos para o desenvolvimento da medicina, desde Hipócrates até
a Renascença, e para a concepção de Galeno dos temperamentos individuais. Empédocles seria citado em 1858 por Charles
Darwin no prefácio à sua “Origem das Espécies”.
6
A semelhança entre esse pensamento e o raciocínio evolutivo é atestada no prefácio da “Origem das Espécies”, onde Charles
Darwin cita o próprio Empédocles.
dessem conta das mudanças em todos os âmbitos do mundo natural, incluídos seres vivos e não-vivos, inclusive o
próprio planeta Terra, e em todas as escalas de tempo, do nível dos segundos até o das eras. Em virtude das
descobertas de inúmeras espécies novas de animais e plantas no novo mundo, as classificações dos seres vivos, os
botanários e bestiários, tiveram que assumir uma abordagem mais factual e objetiva (Henry, 1998). Até então, as
descrições das características físicas das espécies vivas eram acompanhadas das lendas, simbolismos religiosos e
significados atribuídos pelos povos antigos aos animais em questão. Assim, as explicações evolutivas ganhavam
espaço, tanto no âmbito dos seres vivos (nas obras de Buffon, Erasmus Darwin e Lamarck), quanto no do mundo
inorgânico (como em Laplace e Lyell). Nesse contexto foram se estabelecendo os conceitos cruciais de organismo
e de ambiente, bem como do processo de relação interativa entre eles, a adaptação.
De certa forma, durante esse período a biologia evolutiva sofreu influências intelectuais semelhantes
àquelas experimentadas pelos sistemas psicológicos. Após o renascimento, os “naturalistas”, ocupados em
empreender uma filosofia natural rigorosa, estudavam espécies animais e vegetais, elaborando sistemas de
classificação cada vez mais sofisticados para dar conta da complexidade da vida. As perguntas sobre a origem e as
causas de tal complexidade, aliadas às exigências de cientificidade empírica decorrentes da revolução científica,
demandavam uma teoria composta de leis consistentes e elegantes como as da física newtoniana.
O corolário das concepções evolutivas da vida, a teoria da seleção natural de Charles Darwin, seguiu-se a
uma série de debates anteriores, e esteve calcada em idéias que estavam “pairando” sobre o mundo ocidental em
virtude daqueles grandes volumes de dados sobre espécies de seres vivos. Ademais, como ocorreu com a
psicologia, a biologia evolutiva sofreu o impacto de obras como as de Descartes, Locke, Hume, etc., até que um
naturalista como Darwin pudesse estabelecer uma teoria que dá conta das leis pelas quais os organismos e as
espécies interagem com a natureza, modificando-se ao longo do tempo.
Antecedentes de Charles Darwin
Inúmeros autores naturalistas trataram da evolução, tanto a dos seres vivos quanto a dos não-vivos, antes de
Darwin. Na verdade, o pensamento evolutivo, com diferentes graus de sofisticação, vinha sendo enunciado desde o
tempo da Grécia antiga (Di Mare, 2002). Como a divisão das atuais disciplinas científicas é relativamente recente,
muitos dos pensadores que marcaram a história da psicologia e da filosofia dedicavam-se também à história e à
filosofia natural, bem como a outras áreas como Física e Medicina. Nesta seção abordaremos alguns autores que,
mais próximos da época de Charles Darwin, tiveram uma influência mais clara na sistematização da teoria da
evolução. Nomes importantes como os do Conde de Buffon, de Maupertuis, e de Lineu serão saltados.
O avô de Charles Darwin, Erasmus, foi um pensador inglês progressista. Erasmus Darwin (1731-1802)
antecipou idéias como a da evolução a partir de um ancestral comum, da evolução como processo de mudança
estrutural em resposta a transformações do ambiente, e da seleção sexual.
Outro naturalista, o francês Lamarck, é costumeiramente citado como um adversário de Darwin, que
defendia a herança de caracteres adquiridos. Na verdade, Jean-Baptiste-Pierre-Antoine de Monet, Cavaleiro de
Lamarck (1744-1829) viveu em época anterior a Darwin, tendo sido botânico de Luís XVI, e responsável pelo
herbário dos Jardins Reais. Os Jardins foram transformados em Museu de História Natural após a revolução
francesa, e Lamarck continuou lá, como professor de zoologia. Membro da Academia de Ciências, ele morreu cego
e miserável. Influenciado por Maupertuis7 e Buffon8, Lamarck continuou o trabalho de Lineu9, classificando as
coleções de espécimes do Museu (Di Mare, 2002). Ali ele desenvolveu a classificação dos animais invertebrados,
para abarcar as classes de insetos e vermes (Simmons, 1969/2002). Suas principais obras foram a Philosophie
Zoologique de 1809, e a Histoire naturelle des animaux sans vertèbres, de 1822.
A importância de Lamarck, muitas vezes eclipsada pela “controvérsia” com Darwin, reside na sua
tentativa, de fato a primeira, de sistematizar a idéia de evolução biológica e formular as suas leis. Nesse ponto ele
rompia definitivamente com a noção de espécies fixas e imutáveis desde a criação. O contato constante com as
enormes coleções do Museu foi a fonte dos dados que Lamarck usou para propor sua teoria. Ele insistia na
diferença crucial entre os níveis orgânico e inorgânico, e entendia que as mudanças orgânicas respeitam a leis, e
não são devidas a intervenções milagrosas. Suas duas leis para a evolução dos seres vivos eram as seguintes: pela
7
Maupertuis (1698-1759) defendeu a tese da geração espontânea dos seres vivos a partir de moléculas orgânicas, e foi um
pioneiro ao identificar a transmissão de traços físicos hereditários em seres humanos, a qual acontecia graças a mutações nas
“partículas hereditárias”.
8
O Conde de Buffon (1707-1788) afastou idéias religiosas e milagrosas para a origem da vida, defendendo explicações
estritamente físicas para os fenômenos biológicos.
9
Carl Linnaeus (1707-1778), botânico sueco, inventou o sistema binomial de classificação das espécies (classifica os seres
vivos em classe, ordem, gênero, espécie e variedade) em uso até hoje, e dividiu a natureza em animais, vegetais e minerais .
Segundo Linnaeus, ao minerais têm corpo, mas não têm vida ou sensações; as plantas têm corpo e vida, mas não sensações; os
animais têm corpo, vida e sensações; os humanos, além do que os animais têm, possuem a faculdade do intelecto, que permite
conhecer todas as outras espécies pelo nome (Simmons, 1969/2002).
primeira lei, as alterações comportamentais ocasionadas por mudanças ambientais obrigam o indivíduo a utilizar
alguns órgãos com maior ou menor intensidade, modificando aqueles órgãos ou extinguindo-os. Pela segunda lei,
tais mudanças nos órgãos são herdadas pela prole dos indivíduos modificados. Esta segunda lei é a responsável
pela controvérsia em torno de Lamarck, pois ela implica que mudanças adquiridas por uso e desuso podem ser
herdadas.
A obra de Lamarck colaborou ao pensamento biológico ao introduzir as noções de organismo, função e
adaptação ao meio. A teoria foi defendida, quase hegemonicamente, por seus partidários durante muitos anos, até
sofrer as críticas ferozes decorrentes do darwinismo. Ressalte-se, contudo, que desenvolvimentos posteriores (como
o do psicólogo James M. Baldwin) tiveram que aprimorar a teoria da evolução para dar conta de certos fenômenos
evolutivos que, pela velocidade com que as mudanças adaptativas eram repassadas a descendentes, desafiavam a
teoria da seleção natural e pareciam concordar com o lamarckismo.
Charles Robert Darwin (1809-1882)
Alguns trabalhos evolutivos prévios inspiraram Darwin na sua formulação da teoria da seleção natural. Os
autores que parecem ter influenciado Darwin de forma mais direta foram o economista inglês Thomas Malthus e o
geólogo escocês Charles Lyell. Os achados geológicos de Sir Charles Lyell (1797-1875) davam conta de que a
forma da Terra nem sempre foi como se conhece hoje. Segundo Lyell, o planeta passou (e continua passando) por
uma evolução geológica que ocorre por mudanças graduais e que somaria centenas de milhões de anos10. Nos seus
“Princípios de Geologia”, completados em 1833, Lyell advogava pelo evolucionismo biológico, ao constatar que as
espécies de plantas e animais distribuíam-se geograficamente a partir de centros de dispersão e que elas se
extinguiam e eram substituídas por outras ao longo do tempo decorrido.
No seu Essay on the principle of population, as it affects the future improvement of society, de 1798,
Thomas Robert Malthus (1766-1834) enunciava a hoje famosa relação segundo a qual a população cresce em
progressão geométrica, enquanto a disponibilidade de alimentos cresce em progressão aritmética. Portanto, mais
indivíduos e menos alimentos criam uma situação de disputa pela sobrevivência. Afora essas teorias, Darwin
observava uma prática muito difundida na Europa, a seleção artificial de animais e plantas. Os criadores avançados
selecionam, por reprodução direcionada, características de cães e gatos como a pelagem e o temperamento, bem
como as cores e formas das orquídeas e outras plantas. Essas evidências enviaram Darwin no rumo da herança de
características sem atribuir as mudanças a uso e desuso, como fizera Lamarck.
As evidências empíricas nas quais Darwin se apoiou surgiram da observação naturalística durante suas
viagens no navio HMS Beagle às costas da América do Sul, Oceania, etc, de 1831 a 1836. A partir dessas
observações, Darwin fez as principais perguntas que guiaram a formulação de sua teoria, tais como “por que alguns
indivíduos morrem e outros sobrevivem nas mesmas condições ambientais?”, ou “por que a população de animais
de uma espécie em uma determinada ilha tem características diferentes (bicos maiores ou menores, cores de
plumagem) das populações de outras ilhas próximas?”. Consta que a principal diferença entre a teoria de Darwin e
as de outros naturalistas contemporâneos partidários do evolucionismo foi o enorme montante de dados que Darwin
acumulou antes de propor sua teoria (Schultz & Schultz, 1992). Embora Darwin tenha concluído a escrita de seu
trabalho em 1839, três anos após a viagem no Beagle, a publicação da Origem das Espécies somente ocorreria em
1858, quase 20 anos depois. Darwin receava publicar a obra pelas suas possíveis repercussões. O fator que
determinou a publicação efetiva foi uma consulta feita por Alfred Russell Wallace a Darwin. Wallace mostrou o
seu próprio trabalho11 sobre a origem das espécies a Darwin, então um renomado naturalista, em busca de
conselhos. Embora nunca tivessem trocado idéias, e o texto de Darwin permanecesse inédito, a teoria de Wallace
era notavelmente semelhante à do seu consultor. Diante disso, e encorajado pelo seu correspondente Charles Lyell
e por outro colega, Thomas Henry Huxley12, Darwin obrigou-se a tornar público seu trabalho, que foi editado,
conjuntamente com o de Wallace, num número da Revista da Sociedade Lineana (Di Mare, 2002; Murphy, 1962).
Na obra “A origem das espécies”, Darwin enunciou os princípios da sua teoria da seleção natural. De
acordo com essa teoria, há na natureza uma competição pela sobrevivência que premia os indivíduos melhor
adaptados ao ambiente em que vivem. Caracteres corporais e comportamentais adquiridos por mutações aleatórias,
e que podem ser adaptativamente vantajosos ou desvantajosos para seus portadores, são repassados por herança à
10
Lyell foi um pioneiro a estimar a idade da Terra em cerca de 240 milhões de anos, a partir de um cálculo com base em
fósseis de moluscos marinhos. Mesmo que hoje se saiba que as rochas mais antigas da Terra têm idades da ordem de 4 bilhões
de anos, a estimativa de Lyell era bastante avançada. Até então, prevalecia a tradição cristã segundo a qual, calculadas as
idades das gerações listadas no Antigo Testamento, acreditava-se que a Criação ocorrera cerca de 6 mil anos antes do final do
século XIX.
11
O artigo de Wallace chamava-se “Sobre as tendências das variedades de se afastarem indefinidamente a partir do tipo
original”.
12
Thomas Henry Huxley (1825-1895) foi um ferrenho defensor de Charles Darwin em debates decorrentes do choque da teoria
da evolução com as idéias religiosas da criação do mundo e do homem.
prole dos indivíduos que conseguirem crescer e procriar13. Além da seleção pela sobrevivência, há uma seleção
sexual, pela qual indivíduos com certas características têm maior probabilidade de ser escolhidos por potenciais
parceiros sexuais para procriar14. Darwin ainda discerniu os instintos dos hábitos. O instinto é uma ação que é
realizada por qualquer animal, mesmo muito jovem sem qualquer experiência, ou que é realizada por um grande
número de indivíduos de uma espécie da mesma maneira. Os instintos, com sua importância adaptativa, são
herdados, enquanto os hábitos teriam importância secundária para a seleção. Assim, a ação de construir um ninho é
um instinto das aves (Herrnstein & Boring, 1971).
Em sua primeira obra, Darwin não abordou o tema da evolução da espécie humana, o que ele somente viria
a fazer, em parte por influência de seu primo Francis Galton, em “A descendência do homem”, de 1871. Desta obra
surgiu a controvérsia sobre um ancestral comum do homem e dos macacos, idéia que costuma ser erroneamente
interpretada como sendo os seres humanos descendentes dos macacos. Neste mesmo trabalho Darwin acrescentou
ao conjunto de características sujeitas a herança os traços morais e espirituais, e comparou os instintos sociais com
os individuais, concluindo que os primeiros, por serem mais duradouros, persistem sobre os segundos. Em resposta
ao hedonismo, que entende a motivação pelo prazer ou desprazer que uma ação causa, Darwin considerava que a
força dos instintos que movem a ação é, na verdade, anterior ao julgamento de prazer vs. desprazer, e à reflexão
sobre as conseqüências da ação.
Em 1872, Darwin publicou um trabalho de grande interesse para a psicologia, e que possivelmente motivou
a criação do campo da psicologia comparativa; trata-se de “A expressão emocional no homem e nos animais”.
Segundo Darwin, a contração de músculos faciais e a emissão de sons, ambas relacionadas a estados emocionais do
organismo, são ações comuns aos humanos e a aos animais. Algumas das expressões surgiram muito antigamente,
como riso enquanto expressão do prazer e os tremores que demonstram o medo. Outras formas de expressão
somente apareceram na espécie humana após o surgimento de certas estruturas corporais: embora a contorção do
corpo seja uma expressão muito primitiva do sofrimento, o choro precisou de certas características dos músculos
faciais e do aparelho respiratório que apareceram recentemente na evolução da espécie.
Em “A descendência do homem”, Darwin afirmou que “a diferença mental entre o homem e os animais
superiores, por maior que seja, certamente é de grau, e não de tipo”, e que as mais altas emoções e faculdades
humanas podem ser encontradas em forma incipiente em animais inferiores. A partir desse princípio de
continuidade psicológica defendida por Darwin, a mente passou a ser encarada como uma função adaptativa que se
distribui num contínuo, que vai do supostamente menos complexo nos animais ao supostamente mais complexo
nos humanos. Segundo Darwin (1872/2002), até os insetos expressam raiva, terror, amor e ciúmes. Assim, não há
porque considerar que qualquer espécie tenha sido escolhida para ocupar o topo da “escada evolutiva”. Lembremos
que prevalecia até então a noção de Descartes, segundo a qual os animais eram “autômatos” que comportavam-se
exclusivamente em função dos processos mecânicos, estando a vida mental reservada para os humanos, espécie
escolhida por Deus.
Herbert Spencer (1820-1903)
O sociólogo e filósofo inglês Herbert Spencer, influenciado por Comte e Darwin, defendeu noções
otimistas e liberais de individualismo e progresso, com prevalência do indivíduo sobre a sociedade e da ciência
sobre a religião. Em sua audaciosa “Filosofia Sintética”, de 1896, Spencer procurava integrar as ciências especiais
(biologia, psicologia, sociologia, moralidade) sob a égide da Filosofia, entendida não como conhecimento reflexivo
e racional, mas sim como uma ciência geral, ou uma summa das ciências especiais.
Spencer foi possivelmente o primeiro pensador a aplicar critérios evolutivos a áreas humanas como
Sociologia e Psicologia. Ele entendia que, assim como os organismos, a sociedade e a mente evoluem e progridem
no intuito de adaptar-se. Nos seus “Princípios de Biologia”, de 1864, já influenciado por Darwin, Spencer cunhou a
conhecida expressão “sobrevivência do mais apto” (survival of the fittest, no original inglês). Essa noção, repetida
inúmeras vezes em diversos âmbitos do conhecimento, inclusive em políticas nacionais e internacionais, fomentou
visões de progresso mundo afora.
Spencer ressaltou a noção de função adaptativa, princípio pelo qual os órgãos dos seres vivos se
diferenciam. O progresso consistiria numa crescente capacidade de adaptação dos organismos, por meio do
acúmulo de variações funcionais diversificadas, entre as quais são selecionadas as que melhor respondem às
exigências ambientais. O aumento do número, da abrangência, da especialização e da complexidade das
adaptações. Em consonância com o pensamento liberal dominante na Inglaterra, ele privilegiava a diversidade e a
diferença como características positivas para o progresso, tanto dos indivíduos quanto da sociedade. Segundo
13
É importante salientar que não havia, nesta época, uma noção clara da base material da hereditariedade. A combinação da
teoria da evolução com a teoria cromossômica da hereditariedade (Mendel) seria realizada por Theodosius Dobszhanski nos
anos 1930, e o ácido desoxirribonucléico (DNA) seria descoberto somente na década de 1940 por James Watson e Francis
Crick.
14
Em geral, na natureza os machos têm certas características que os fazem ser escolhidos pelas fêmeas.
Spencer, uma sociedade diversificada e dinâmica é preferível a uma monótona e estática. De fato, Spencer
notabilizou-se por sua noção otimista de progresso pela variedade. No entanto, devemos ressaltar que evolução e
progresso não são sinônimos, e que, pela teoria da seleção natural, conquanto as variações ocorrem por acaso, e as
transformações ambientais idem, não há um sentido final que oriente a evolução em algum sentido, afora as
motivações individuais para sobrevivência e reprodução, e tampouco há espécies menos evoluídas que outras.
Spencer chegou a publicar seus “Princípios de Psicologia” em 1855. Ali ele empregava definia a “vida
como um ajustamento contínuo”. Essa visão era condizente com a sua noção de progresso dos seres mais
rudimentares até os mais complexos como a contínua melhoria da relação da adaptação entre os processos internos
do organismo e as mudanças no meio que o cerca. Nesses sentido, a mente é assemelhada a outros processos
fisiológicos da vida corpórea (Sahakian, 1968).
Embora como evolucionista reconhecesse a influência das mudanças ambientais nos organismos, Spencer
privilegiava a hereditariedade (assim como Galton) na explicação das aptidões humanas. Para ele, as capacidades
individuais eram inatas. Outrossim, esse inatismo diverge daquele de filósofos anteriores, para quem as idéias
inatas eram dons divinos (Descartes), ou categorias a priori (Kant). Pelo inatismo de Spencer, os indivíduos
herdam as capacidades adaptativas desenvolvidas pelos seus antepassados ao longo da evolução (Rosenfeld, 1993).
Sir Francis Galton (1822-1911)
Francis Galton era primo de Charles Darwin, com quem teve uma relação de mútua influência. Galton
iniciou, mas não terminou estudos de Medicina, transferindo-se para a área de Matemática. Após herdar uma
fortuna com a morte do pai, ele pôde dedicar-se a expedições pela África, bem como a suas outras áreas de
interesse, como meteorologia, aritmética, etc. Em psicologia, sua relevância deve-se aos estudos pioneiros nos
quais aplicou princípios evolutivos darwinianos e métodos estatísticos aos fenômenos mentais.
De acordo com a primeira divulgação da teoria da evolução, certas características físicas fazem com que
alguns indivíduos de uma espécie tenham vantagens adaptativas em relação a outros; essas vantagens os ajudam a
sobreviver e permitem que eles reproduzam, repassando à prole aquelas características vantajosas. O ponto de
partida de Galton foi perguntar se o mesmo princípio se aplicava a capacidades psicológicas como a inteligência.
Em seu livro de 1865, “O gênio hereditário”, Galton analisou as árvores genealógicas de 977 eminentes
cidadãos ingleses, como cientistas, juristas e escritores de sucesso, e concluiu que eles em geral eram filhos de
homens também ilustres. Galton defendia que, assim como as características físicas, a inteligência e o
temperamento eram herdados dos progenitores (Murphy, 1962). A dicotomia “natureza versus nutrição” (nature
x nurture) foi introduzida por Galton em uma obra de 1874 sobre os cientistas ingleses, com o intuito de
comprovar a sua tese da prevalência da hereditariedade.
Ao pesquisar diferenças individuais, Galton contribuiu substantivamente para o desenvolvimento da
psicologia mundial, criando as áreas de pesquisa (desenvolvimento humano e psicologia diferencial, ou da
personalidade); instrumentos psicológicos (questionários e testes) métodos científicos (estatísticas correlacionais,
psicologia comparada, estudos com gêmeos); e controvérsias científicas (nature x nurture, conceito de
normalidade).
Em 1884 Galton instalou um laboratório de antropometria na Exposição Internacional de Saúde. Com
este laboratório, Galton coletou dados de medições de cerca de quase dez mil pessoas. Galton avaliou a altura,
peso, percepção auditiva e visual, entre outras medidas individuais. Com essa massa de dados, ele pretendia
estabelecer as médias de tais variáveis na população inglesa, enriquecendo cada vez mais o estudo das diferenças
individuais (Schultz & Schultz, 1992).
Galton tendia à quantificação em todas as áreas de estudo a que se dedicou. As variáveis antropométricas
eram um exemplo. Galton desenvolveu a avaliação de tempo de reação, e chegou a medir o tédio causado por
palestras e outros eventos culturais pela contagem dos bocejos dos membros da audiência. Ele ainda estudou
experimentalmente associações de palavras, prefigurando os trabalhos de Carl Jung, e teve seu método adotado e
aprimorado por Wundt. Introduziu o uso de questionários como método de coleta de dados em estudo sobre a
imaginação, publicado na obra Inquiries into human faculty and its development, de 1883. Neste mesmo estudo,
Galton utilizou a curva de Gauss15, verificando que, na formação de imagens mentais, a maioria dos respondentes
tendia a apresentar um tipo misto de construção imagética, e que menos indivíduos apresentavam escores
próximos dos extremos da escala (Garrett, 1941).
Ao analisar estatisticamente diferenças individuais, em detrimento da análise de fenômenos mentais
elementares, típicos da psicologia experimental de então, Galton deu início a uma nova tradição de pesquisa
15
Galton inspirou-se no trabalho do matemático Belga Quetelet, que mediu a estatura de dez mil pessoas e verificou que a
maioria dos casos estava próxima à média, com poucos casos extremos, o que condizia com a distribuição normal de Gauss
(Schultz & Schultz, 1992). Nesse estudo, Quetelet introduziu a expressão “homem médio”, e Galton procurou aplicar o mesmo
princípio para outras medidas humanas, como a inteligência.
científica em psicologia (Fraisse, 1970; Rosenfeld, 1993). A psicologia diferencial criaria o ramo da psicologia
aplicada, que nos Estados Unidos daria início à profissão de psicólogo.
Galton foi um advogado da eugenia, doutrina que visava a progresso da espécie por controle genético.
Galton preocupava-se com a degenerescência da espécie humana: se, em termos de “gênio”, os filhos tendem a
aproximar-se da média em relação às aptidões dos pais, então a capacidade intelectual da sociedade ocidental
apenas regredia desde a Grécia antiga, época dos grandes gênios da humanidade. Galton procurou explicar por
que alguns indivíduos diferem dos outros em suas capacidades, e idealizou um método de melhorar
artificialmente as linhagens humanas através da paternidade seletiva. Este último método, chamado Eugenia, é
claramente controverso do ponto de vista ético. Galton acreditava que os povos europeus eram superiores aos
não-europeus, e idéias como as suas podem ter sido a base de políticas discriminatórias, traduzidas em
esterilizações em massa de pessoas portadores de deficiência ou doença mental, e em tentativas de extermínio de
grupos étnicos.
A psicologia comparativa
Resultado da ascensão do evolucionismo, e mais especificamente do livro de Charles Darwin sobre a
expressão das emoções, a psicologia comparativa (ou comparada) incluiu os animais na lista de potenciais sujeitos
da pesquisa psicológica. Segundo essa orientação, nos animais, o comportamento menos complexo e a irrelevância
de variáveis “culturais” que o atravessem, favorecem o estudo dos processos psicológicos mais básicos. Enunciado
por Darwin em “A expressão das emoções...”, o princípio evolutivo da continuidade entre as espécies daria conta
do problema lógico da generalização para humanos dos achados de estudos com animais.
Os pioneiros da psicologia comparada, Romanes e Morgan, eram mentalistas, e entendiam que os animais
tinham estados mentais assim como as pessoas. Por conseqüência, a psicologia comparada esbarrava
necessariamente num problema de acesso à evidência: animais geralmente não expressam seus estados mentais em
palavras, e os métodos psicológicos disponíveis à época eram basicamente os da introspecção, dependentes .
Alguns pesquisadores enfrentariam essa condição através de uma tendência materialista semelhante àquela
proposta por La Mettrie (ver capítulo 10), atendo-se o ao comportamento observável do indivíduo. Posteriormente,
as teorias comportamentalistas (notadamente a reflexologia russa e o behaviorismo norte-americano) ampliarão
esta noção ao postular que a psicologia deve abandonar conceitos mentalistas e ater-se à evidência do
comportamento estritamente observável.
Além da psicologia comparada, o evolucionismo abriria novas abordagens em outros campos da psicologia,
especialmente em psicopatologia (ver capítulo 16) e psicologia do desenvolvimento. A análise genética, no nível da
ontogênese (desenvolvimento individual), visava explicar a evolução de funções psicológicas estudando o seu
aparecimento nas crianças. O desenvolvimento individual teria um paralelo filogenético (evolução da espécie) na
análise comparativa, que procura a inserção de funções mentais incipientes em animais “inferiores” ao homem.
Estudos com animais possibilitarão contornar problemas éticos, e serão extensamente desenvolvidos nos Estados
Unidos.
Amigo de Darwin, o naturalista inglês George John Romanes (1848-1894) aplicou o darwinismo ao
estudo do comportamento. Suas principais obras são Animal intelligence (1882) e Mental evolution in man (1889).
Segundo Romanes, a psicologia é o estudo da mente, e a mente do homem está no mesmo contínuo da do animal.
Assim, os animais são sujeitos úteis aos psicólogos. Contudo, Romanes acreditava que o conhecimento da mente só
pode ser realizado subjetivamente, ou seja, uma pessoa somente pode conhecer a sua própria mente, nunca a de
outros. O estado mental de um animal, no entanto, pode ser inferido pelo seu comportamento observável, e o
mesmo será verdade para o conhecimento de outras mentes. O psicólogo inglês Conwy Lloyd Morgan
(1852-1936), discípulo de Thomas Henry Huxley (1825-1895) aprimorou a distinção de Romanes entre hábito
(aprendizagem) e instinto, reconhecendo a interação entre os dois no desenvolvimento individual (Hilgard, 1987).
Consta que Morgan influenciou o funcionalista Edward Thorndike por palestras proferidas nos EUA em 1896.
Morgan entendia que o objeto da psicologia é o comportamento corporal observável. O conhecido “Cânone de
Lloyd Morgan”, enunciado em seu livro de 1894, An introduction to comparative psychology, é um princípio de
parcimônia16 aplicado à realidade psicológica: nunca devemos interpretar uma ação como resultado do exercício de
uma faculdade mental mais elevada, se pudermos explicá-la como resultado do exercício de uma faculdade mais
simples, inferior na hierarquia psicológica (Herrnstein & Boring, 1971).
Funcionalismo: Organismo, ambiente, adaptação
Nos Estados Unidos, a idéia de evolução biológica será maciçamente reconhecida e interpretada por um
conjunto de estudiosos de Chicago (Dewey, Mead, etc), Harvard (James, Angell, etc.), que farão do funcionalismo
e do pragmatismo as principais tendências filosóficas dos Estados Unidos por décadas a fio. O funcionalismo
16
A parcimônia é uma orientação filosófica segundo a qual a natureza usa os meios mais simples disponíveis para atingir um
determinado fim; assim, explicações por princípios mais simples são preferíveis a explicações mais complexas.
iniciado por James, e desenvolvido em inúmeros avanços da ciência psicológica norte-americana e européia,
encontra-se apreciado no capítulo 20 deste volume.
Dos princípios da biologia evolutiva, o mais importante para a vida individual é aquele segundo o qual o
organismo adapta-se ao ambiente, visando à homeostase. Neste princípio estão implicados os três conceitos
fundamentais que a psicologia funcionalista herdará da biologia: organismo, ambiente e adaptação.
O termo “organismo” remonta a Aristóteles, e refere-se à constituição de um órgão, por partes desiguais
combinadas de forma a que ele exerça uma função, no que a noção poderia ser aplicada tanto a animais quanto a
máquinas (Ferrater Mora, 2001). Desde o século XVIII, contudo, o termo “orgânico” passou a caracterizar o grupo
dos seres vivos. O organismo vivo caracteriza-se por ser organizado em estruturas hierárquicas (por exemplo,
célula, tecido, órgão, sistema, organismo). Formas de vida mais complexas apresentam ainda capacidades de autoregulação17 e plasticidade do comportamento. Isso significa que tais organismos podem aprender ao longo da sua
existência individual, e que podem regular o seu próprio comportamento com base em condições do meio interno
(fome, sono, etc.). Essas características aumentam a eficácia do organismo rumo à sua finalidade de preservação da
espécie. A preservação da espécie é realizada através da consecução de finalidades individuais, que incluem o seu
desenvolvimento até a idade reprodutiva, a sua auto-conservação e a sua reprodução.
O ambiente é o meio externo ao organismo, composto tanto de fatores vivos quanto não-vivos. O ambiente
é o conjunto de recursos naturais necessários à sobrevivência, mas que oferece também desafios de proteção. A
inserção no ambiente implica na interação com outros membros da mesma espécie na disputa pelos recursos
ambientais e pela reprodução, e na interação com outras espécies na cadeia trófica, onde um indivíduo é predador
ou presa.
O processo de inserção do organismo no ambiente é chamado adaptação. O organismo interage com o
ambiente orgânico e inorgânico emitindo respostas às pressões que lhe são impostas. As capacidades de autoregulação e aprendizagem permitem que as respostas de um organismo sejam cada vez mais adequadas às
condições ambientais. A aprendizagem aumenta a diferenciação, tanto originando organismos individuais que
crescem e se desenvolvem individualmente podendo até gerar novas espécies, quanto ensejando o surgimento de
novas características que cumprirão diferentes funções. Chamamos de função biológica o papel que uma
característica (física ou comportamental) desempenha em prol da adaptação ao meio.
Funcionalistas norte-americanos
James Rowland Angell (1869-1949), que formou-se e lecionou em Harvard, foi um funcionalista
influenciado por William James. Num artigo sobre “A província da psicologia funcional” (1907/2000), Angell
definia o funcionalismo como uma psicologia que pergunta o “como” e o “por que” de as operações mentais serem
como são, e que as estuda nas condições em que elas ocorrem corriqueiramente na vida. A concepção fundamental
do evolucionismo implica que as funções psicológicas, têm as suas características atuais em virtude da eficiência
com que elas concorrem para a adaptação do organismo, sendo que as ações adaptativas são uma soma das
atividades orgânicas (ver Thorndike), não sendo possível analisá-las isoladamente. Essas tendências contrastavam
com o estruturalismo wundtiano, entendido como a psicologia preocupada com o “o que”, na descrição dos
elementos mentais. A psicologia funcionalista, segundo Angell, concebe a mente como mediador entre o ambiente
e as necessidades do organismo. Angell contrastou ainda a descrição de funções, persistentes ao longo do tempo,
com a identificação de elementos anatômicos. Por fim, Angell identificava no funcionalismo um sistema em que as
várias divisões da filosofia, como lógica e ética (e possivelmente epistemologia e ontologia), encontravam-se
intimamente conectadas, visto que estavam imbricadas na natureza.
Nos Estados Unidos, a influência da biologia atingiu a corrente dominante da filosofia, originando o
funcionalismo. Representado por William James e por alguns dos principais filósofos e psicólogos norteamericanos da virada do século XX, o funcionalismo constituiu uma abordagem amplamente assumida pelas
ciências naquele país. O funcionalismo, fez psicologia norte-americana voltar-se às bases biológicas de quaisquer
fenômenos que se estudasse. Aliado ao pragmatismo, outra importante corrente de pensamento, o funcionalismo
ainda deu margem à profissionalização da psicologia. Os temas relativos ao funcionalismo norte-americano, suas
origens e conseqüências, serão tratados com maior ênfase no capítulo 20. A maior parte dos autores representativos
desta orientação, Stanley Hall, Thorndike e o próprio William James também serão contemplados no referido
capítulo. Contudo, outros dois funcionalistas serão abordados nesta seção. James McKeen Cattell é o responsável
pela orientação “galtoniana” da psicologia norte-americana, e James Mark Baldwin foi um psicólogo que
contribuiu para a consolidação da biologia evolutiva.
17
O conceito de auto-regulação, bem como os de meio interno e homeostase foram introduzidos pelo fisiólogo francês Claude
Bernard (1813-1878), que criou a fisiologia moderna, e a farmacologia experimental, sendo um pioneiro na aplicação do
método experimental à medicina. Tais conceitos ocasionaram, além de uma sistematização do mecanismo de adaptação, uma
revolução na Medicina mundial (Simmons, 1969/2002).
James McKeen Cattel (1860-1944) trabalhou na Columbia University de 1891 até 1904. Em 1895, ele foi
o quarto presidente da American Psychological Association. Na segunda metade da sua vida, dedicou-se a outras
atividades importantes como a divulgação científica, e a psicologia aplicada18.
Durante a sua formação, ele estudou na Alemanha com Lotze em 1880 e com Wundt de 1883 a 1886; e na
Inglaterra, e com Galton em 1887. Sua tese de doutorado, a primeira de um americano a ser orientada por Wundt,
era intitulada The time taken up by cerebral operations. Embora tenha sido o primeiro assistente de Wundt no
Instituto de Psicologia Experimental, Cattell foi muito mais influenciado por Galton. Tal inclinação, dada a sua
importância na psicologia norte-americana, é responsável pela orientação para diferenças individuais, estatística,
grandes grupos (Schultz & Schultz, 1992). Desenvolveu o método comum às várias aplicações da psicologia, e que
substituía o aparato de laboratório: testes mentais. Testes psicológicos – 16 PF.
Apesar de ter colaborado na criação das baterias de testes para seleção de soldados, Cattell foi expurgado
da vida acadêmica em 1917 por causa de uma carta em que solicitava que os soldados norte-americanos não fossem
mandados à frente de batalha da Primeira Guerra Mundial, na Europa.
Tempo de reação: interalo entre a aplicação do estímulo sensorial e o início da contração muscular
Cunhou o termo “testes mentais”
Bateria de testes (Sahakian, 1970, p. 229):
1. Pressão por dinamômetro
2. Taxa de movimento
3. Áreas de sensação
4. Pressão que causa dor
5. Menor diferença perceptível de peso
6. Tempo de reação para som
7. Tempo para nomear cores
8. Bissecção de uma linha de 50 centímetros
9. Julgamento de um período de 10 segundos
10. Número de letras lembradas após ouvidas uma vez
James Mark Baldwin (1861-1934)
James Mark Baldwin atuou substantivamente tanto na Psicologia quanto na Biologia, sendo responsável
por pelo menos uma grande contribuição em cada uma dessas ciências. Em biologia, postulou o chamado “efeito
Baldwin” para explicar a emergência de certas características que afetam a velocidade da evolução das espécies.
Na psicologia, inaugurou laboratórios em universidades da América do Norte (Toronto em 1890 e Princeton em
1893) e encetou o campo da psicologia do desenvolvimento, aplicando critérios explicativos evolucionários,
originários da filogênese, para explicar o desenvolvimento individual, ou ontogênese (Bonin, 1991; Hilgard,
1987).
Baldwin postulou o princípio da reprodução, na ontogênese, de cada uma das etapas da filogênese.
Segundo esse princípio, o desenvolvimento individual da criança repete, na mesma seqüência, cada uma das
etapas da evolução de toda a espécie humana. Essa repetição inclui tanto as características anatomo-fisiológicas
quanto psicológicas. Anatomicamente, o feto repetiria os estágios da evolução, partindo de um estado unicelular,
passando seqüencialmente à forma multicelular, ganhando um sistema nervoso rudimentar que vai se
complicando, e assim por diante. Partidários dessa perspectiva identificaram no estudo do desenvolvimento
intrauterino uma ferramenta para compreender as mudanças por que passou a espécie humana em fases remotas
da evolução. O princípio de repetição aplica-se também ao escopo psicológico. As crianças repetiriam, na sua
trajetória individual, o desenvolvimento filogenético da espécie, especialmente nas questões relacionadas à
atividade intelectiva.
Enquanto para Darwin as características variam aleatoriamente de modo que o ambiente as seleciona por
adaptação, visto que indivíduos com aquelas características mais vantajosas as legarão para sua prole, segundo
Lamarck as características adquiridas na existência individual poderiam ser herdadas, como o desenvolvimento
de certos órgãos, ensejado pelo uso e desuso. Na natureza, há características que desafiam a teoria darwiniana,
sobretudo pela velocidade com que foram estabelecidas em certas espécies, e à primeira vista parecem ser
somente explicáveis por uso e desuso. A postulação do “novo fator na evolução” (Baldwin, 1896) veio a permitir
que a teoria darwiniana da seleção natural pudesse dar conta da evolução daquelas características que,
aparentemente, somente poderiam ser explicadas pelo critério lamarckiano, incompatível com a teoria da seleção
natural por mutações casuais.
18
Cattell foi proprietário de revistas científicas como Psychological Review, Science e Popular Science, e criou a
Psychological Corporation, empresa que inicialmente prestava serviços de psicologia aplicada a instituições, psicólogos e
público em geral, e hoje é uma das principais editoras de testes psicológicos no mundo. Com essa iniciativa Cattell foi um
pioneiro na transformação da psicologia em um negócio (Schultz & Schultz, 1992).
Conclusão
A posição genética, a favor da prevalência da herança, de Galton e Spencer revela uma tendência de
renovação do inatismo. Em Descartes as idéias inatas eram dons divinos, em Spinoza elas estavam ligadas a um
Deus-natureza, e em Kant, as categorias a priori eram os fatores inatos. Para os evolucionistas ingleses, as
capacidades mentais individuais eram determinadas pela herança genética. O evolucionismo possibilitou
explicações psicológicas ligadas à aprendizagem e à cultura, e direcionou o interesse dos elementos comuns à
experiência de todos (Wundt) para as diferenças individuais e entre grupos étnicos, etários, culturais (Galton).
Lembremos que os primeiros autores que aliaram o ponto-de-vista evolutivo ao estudo da mente (Galton e
Spencer, entre outros) partilhavam duas premissas com conseqüências axiológicas importantes: 1) a evolução é um
processo de melhoria, sendo que a espécie humana é o ápice desta evolução (justificativa para eugenia e
eurocentrismo); e 2) na relação entre hereditariedade e aprendizagem (natureza versus nutrição), a primeira
prevalece como determinante das características do organismo e das capacidades mentais. Outrossim, a visão do
determinismo biológico-evolutivo foi definitivamente esclarecida pelo movimento de unificação da biologia
representado pela “moderna síntese”. Fomentada por autores como Theodosius Dobzhansky e Julian Huxley, a
unificação ocorreu em torno da descoberta da base material da seleção por mudanças, o gene, aliada à modelagem
matemática e estatística dos processos evolutivos em populações (Smocovitis, 1996). As obras em questão
lançaram nova perspectiva sobre a questão da liberdade individual e da relação entre cultura, mente e organismo.
O biólogo ucraniano, naturalizado norte-americano, Theodosius Dobzhansky (1900-1975), foi autor de
Genetics and the origin of species (1937), uma das obras-chave da moderna síntese, onde explorou a relação da
biologia evolutiva com a mente e a cultura. Ele descartou o determinismo total ao reconhecer que, nesses dois
níveis, há possibilidade de propriedades emergentes, abrindo um espaço para o livre-arbítrio e para o processo
criativo na evolução humana (Smocovitis, 1996).
Outra obra relevante na unificação da biologia em torno da evolução é Evolution: The modern synthesis, de
Sir Julian Huxley (1887-1975) (1942). Huxley assumiu uma posição intermediária entre as posições radicais que
dominavam a biologia evolutiva até então: por um lado, um materialismo mecanicista que tenderia, em última
instância, a reduzir reduzia a biologia à física; pelo outro lado, o ultra-vitalismo que identificava nos organismos
vivos certas propriedades inexplicáveis do ponto de vista puramente material.
Mais recentemente, numerosos autores das áreas de neurociência e filosofia da mente vêm explorando a
relação entre mente e evolução, orientando o estudo da consciência para um aporte biológico-evolutivo. Richard
Dawkins (nascido em 1941), em “O gene Egoísta” (1976/2001), entende a consciência como uma função de autoregulação que aprimora as reações do organismo ao ambiente, amparando a tomada de decisões em antecipações
cada vez mais complexas do futuro. Daniel Dennett (1940-) ressalta, em obras como “Consciousness Explained”
(1991) e “Tipos de mentes” (1997), uma compreensão da consciência como uma característica orgânica que,
embora sujeita a evolução como quaisquer outras funções adaptativas, impôs um novo ritmo à evolução, explicado
pelo “efeito Baldwin”, anteriormente citado neste capítulo. O médico e químico norte-americano Gerald Maurice
Edelman19 (1929-), postulou um “darwinismo neural” para explicar a prevalência de certos conjuntos neurais nos
sistema nervoso (Edelman, 1987).
História da psicologia paralela à unificação da Biologia em torno do Evolucionismo.
Biologia e Psicologia enfrentaram, em suas trajetórias como disciplinas científicas, situações análogas.
Ambas as áreas se constituíram como ciências no final do século XIX, sob influência das disciplinas existentes,
inclusive tendo algumas delas em comum. Enquanto a Psicologia teve como principais influências a filosofia, a
fisiologia, e o evolucionismo, entre outras (Wertheimer, 1991), a Biologia é herdeira da história natural, da
geologia, do evolucionismo, da genética, da ecologia etc. (Smocovitis, 1996). Contudo, em Biologia, o advento da
moderna síntese nos anos 1930 transformou-a em ciência unificadora das disciplinas anteriores, que vieram a ser
suas subsidiárias. A unificação em torno da biologia evolutiva foi resultado de um processo intencional e articulado
em que cooperaram diversos estudiosos das chamadas “ciências da vida”. Em psicologia, por outro lado,
verificamos que, à mesma época em que se unificou a biologia, existia uma espécie de disputa, em que diferentes
teóricos pretendiam organizar a psicologia em torno dos seus pressupostos ontológicos (definição do objeto de
estudo), dispositivos epistemológicos (metodologia adequada à produção do conhecimento) e resultados
axiológicos (valores veiculados pela teoria). Essa fase de disputa ontoaxiológica em Psicologia ficou conhecida
como “era das escolas” (Wertheimer, 1991). Ao contrário do caso da Biologia, a matéria psicológica manteve-se
refratária à unificação em torno de uma teoria única. O que se viu ao final da era das escolas foi uma tendência,
talvez em resposta ao período anterior, a se dissipar a importância de uma teoria “forte” em psicologia,
19
Edelman recebeu o Prêmio Nobel de Medicina em 1972 por elucidar a estrutura dos anticorpos e seu papel na resposta do
organismo a infecções. Contudo, desde meados dos anos 1970, ele dedica-se às neurociências.
privilegiando-se o acúmulo de dados empíricos, sobretudo observacionais, e a construção de modelos explicativos
particulares.
No âmbito da filosofia da ciência, a Biologia foi acusada, por parte dos positivistas lógicos, de teleologia (a
evolução seria uma espécie de causa final), de tautologia (a evolução não poderia ser a explicação de si mesma) e
até mesmo de ser uma pseudo-ciência. Na luta pela consistência explicativa, ferramentas estatísticas tiveram de ser
desenvolvidas para a explicação tanto em Psicologia quanto em Biologia. A estatística exerceu papel importante na
operacionalização de ambas as disciplinas. Um conhecido instrumento estatístico muito usado em Psicologia, o
coeficiente de correlação de Pearson, foi inicialmente desenvolvido por Galton para evidenciar relações causais em
genética (Schultz & Schultz, 1992). A Análise de Variância é outro teste estatístico desenvolvido inicialmente na
biologia evolutiva por Fischer, mas que veio a ser adotado pela psicologia.
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Angell,
O início da psicologia científica
Leslie Spencer Hearnshaw
[Excerto do Capítulo VII – William James]
O papel de William James (1842-1910) no desenvolvimento da psicologia científica foi peculiar.
Diferentemente de Fechner, Helmholtz, Wundt ou Lloyd Morgan ele não foi um cientista experimental. Na
verdade, James precocemente admitiu possuir um temperamento que não era compatível com trabalhos de
laboratório,112 e a isto acrescentava-se o desgosto por matemática e análises lógicas.113 Então, em alguns aspectos,
ele era incapacitado para apreciar ou contribuir para o novo movimento em psicologia. Por outro lado, ele era um
gênio intuitivo com interesses em várias áreas, com conhecimentos em medicina e ciências naturais e também
influenciado por tendências literárias, artísticas e filosóficas de sua época. Em qualquer ciência há dois ingredientes
principais − o conteúdo e a metodologia. James era fraco em metodologia, mas ele possuía um conhecimento
intuitivo da riqueza e do alcance do potencial do conteúdo da psicologia, fato que ocorria com poucos psicólogos.
Em sua visita à Alemanha, em 1868, ele se deu conta de que uma nova fase havia sido aberta no desenvolvimento
da psicologia. “Me parece que talvez tenha chegado a hora”, escreveu em uma carta, “para a psicologia tornar-se
uma ciência”,114 e também acreditava firmemente que tal psicologia deveria ter suas raízes na biologia, apesar dele
nunca haver consentido na redução da riqueza das experiências vividas para as formulações abstratas da ideologia
científica determinística e mecanicista. Na psicologia, ele foi uma figura de transição, mas uma figura de transição
de enorme importância, cujas idéias de longo alcance não podiam ser confinadas às preocupações e limitações dos
primeiros experimentalistas. Logo, enquanto absorvia boa parte do que estava acontecendo a sua volta em
psicologia, juntamente com aspectos do passado, sua incansável mente estava constantemente aberta para o futuro.
William James deve muito a sua atípica formação familiar e a sua peculiar educação. 115 Sua família foi
altamente privilegiada e dotada de amplos recursos em diversas áreas, como o avô de William, que emigrou da
Irlanda para a América no final do século XVIII e acumulou uma das maiores fortunas de sua época. Isto
possibilitou que a família de James viajasse exaustivamente, e no período de 1855 à 1860, a maior parte do tempo
gasto viajando pela Europa, levou William e seu irmão igualmente talentoso Henry a estudarem na Inglaterra,
França, Suíça e Alemanha. Conseqüentemente, William tornou-se fluente em francês e alemão, e desde jovem
adquiriu conhecimentos continentais, assim como o inglês, filosofia e literatura. Isto foi da maior importância para
ele quando, posteriormente, interessou-se por psicologia. Igualmente importante foi sua natureza psicológica,
duplamente constituída pelo que Perry, seu biógrafo, denominou de seus traços ‘mórbido’ e ‘benigno’. 116 No lado
‘mórbido’ sua neurastenia e instabilidade geraram simpatia pela ‘alma doente’ e suas manifestações psicopáticas.
Ele não sofreu simplesmente de ‘insônia, desordens digestivas, problemas visuais, debilidade nas costas, e algumas
vezes de depressão do espírito’,117 mas ocasionalmente de ‘um medo terrível de minha própria existência”. 118 Por
alguns anos da década de 1870, ele era incapaz de trabalhar, e mesmo depois de sua melhora, ele cansava-se
facilmente. A compensatória característica ‘benigna’ inclui sua imensa vitalidade, sua sensibilidade refinada e sua
relevante dádiva de sociabilidade. Ele tinha um grande interesse por pessoas, especialmente por pessoas incomuns
e estranhas; ele poderia estabelecer uma afinidade com seres humanos com uma constituição completamente
diferente da sua e possuia um entendimento natural da natureza humana. Como seu amigo filósofo C. S. Pierce
observou, “ele era ainda melhor na prática do que na teoria da psicologia”. 119 Como resultado parcial das suas
dádivas de sociabilidade, tinha contato e, freqüentemente mantinha calorosas amizades, com muitas das principais
figuras da psicologia e da filosofia de sua época. O grande contato com estas figuras gerou comentários tanto sobre
as personalidades, quanto sobre os principais assuntos daquele tempo. 120 Havia, portanto, um ótimo motivo que
solucionava o fato de James nunca ter tido uma educação formal nem em psicologia nem em filosofia. Como ele
próprio admitiu “a primeira aula de psicologia que eu ouvi foi a primeira que eu escrevi”121 A única aprendizagem
formal que James teve foi em ciências biológicas e medicina, todavia ninguém pode ler muito a fundo seu
Principles of Psychology (Princípios de Psicologia) sem reconhecer que ele teve, de fato, um domínio da literatura
relevante de psicologia, fisiologia e filosofia, e os comentários anotados nas suas cópias destes clássicos da
literatura indicam o cuidado e a minuciosidade que James teve ao lê-los.
James graduou-se em medicina em 1869.122 Isto foi cinco anos antes dele obter o seu primeiro cargo de
professor de fisiologia, em Harvard. Nesse intervalo, ele experienciou um longo colapso neurótico, do qual ele
conseguiu recuperar-se após ler os escritos do filósofo francês Renouvier, e aceitando sua estimulante doutrina do
livre arbítrio. Após alguns anos de sua nomeação em Harvard, suas aulas foram basicamente de anatomia e
fisiologia comparada dos vertebrados, mas logo começou a demonstrar interesse por psicologia fisiológica.
Desenvolveu um curso de graduação sobre as relações entre fisiologia e psicologia, em 1875, e introduziu
demonstrações experimentais no ano seguinte. Em 1878, o curso foi transferido para o departamento de filosofia e,
em 1885, James foi nomeado professor de filosofia. Enquanto isso, em 1878, ele assinou um contrato com Holt, o
editor, para escrever um compêndio de psicologia. Este foi o começo de Principles of Psychology, que surgiu, após
muito esforço, doze anos depois, em 1890. Talvez este seja o mais conhecido e o mais lido de todos os compêndios
de psicologia, e aproximadamente um século depois da primeira edição continua mantendo-se atualizado.123
O valor de Principles of Psychology está na combinação de James de um maciço saber, com uma
proposição radical e questionadora, além de uma brilhante capacidade de exposição. As viagens de James pelo
continente europeu deram-lhe em primeira mão conhecimento sobre o que estava se passando nos novos
laboratórios da Alemanha e ele conheceu muitos dos principais vultos deste país, da Inglaterra e da França. Ele
banhou-se nas obras científicas e filosóficas importantes, na maioria dos idiomas europeus. Porém, recusou a
identificar-se com alguma escola de pensamento predominante. Foi igualmente crítico com o método
sensacionalista-associacionista-materialista dos empiricistas e com a suposição religiosa dos idealistas. A hipótese
da alma, ele manteve em um de seus mais conhecidos aforismas, “nada explica e nada garante”. 124 Por outro lado,
considerou o associacionismo como “contaminado com um grande erro”, 125 que era o atomismo mental. Sua
psicologia consistia em duas bases principais: primeiramente a biologia e, em segundo lugar, o que ele definiu
como ‘empiricismo radical’, pelo qual ele determinava o reconhecimento de toda riqueza e variedade da
experiência. O fundamental “Weltanschauung”, ele diz, é “o máximo da riqueza tanto subjetiva quanto
objetiva”.126 Em primeiro lugar, entretanto, a biologia: “o caminho para um entendimento mais profundo da
seqüência de nossas idéias”, ele afirmou, “está na rota da fisiologia cerebral”.127 A mais importante doutrina da
fisiologia cerebral foi a doutrina do ato reflexo, que dava a entender que o resultado do funcionamento dos nervos e
do cérebro era uma descarga motora. Em outras palavras “percepção e pensamento estão lá apenas devido ao
comportamento”128 Isso foi de extrema importância para a mudança da análise da consciência para o estudo do
comportamento, e James reservou uma porção razoável de seu compêndio para descrever os vários tipos de ação:
instintiva, habitual e voluntária. Ele foi mais longe, explicando eventos mentais em termos fisiológicos; assim, a
memória foi explicada pelo “caminho do cérebro”129 e na bem conhecida teoria da emoção, denominada teoria de
James-Lange (em função da promulgação quase simultânea das idéias de James e do fisiologista dinamarquês
Lange), as alterações fisiológicas eram prioritárias à emoção experienciada.130
Apesar da sua ênfase na ação, no comportamento e nos aspectos fisiológicos da mente, James nunca se
tornou, e jamais poderia haver se tornado, um behaviorista. Ele acreditava em estruturas internas − “a mente é
preenchida com relações necessárias e eternas”.131 Ele acreditava no livre arbítrio, o máximo poder de decisão, a
‘ordenação’ da vontade,132 bem como na habilidade individual para superar desafios; 133 e na consciência, não como
uma entidade, mas como uma função orgânica “um órgão adicionado para dirigir um sistema nervoso muito
complexo para regular a si mesmo”.134 Assim, observações introspectivas continuavam para ele como um método
primordial,135 e foi através da introspecção que ele chegou em uma das suas características mais típicas, a do “fluxo
de pensamento”.136 A idéia de um movimento contínuo e definitivo, o qual poderia ser distinguido em partes nítidas
“substantivas” e em partes mais imprecisas, “transitivas”.137 James enfatizou a “reafirmação do impreciso para o
valor do mesmo na vida mental” 138 e a importância dos detalhes da consciência. E achava duvidoso que o self fosse
apenas o que ele ouvia na introspecção, e que “cada pensamento é parte da consciência pessoal”.139 Mas acreditava
que o self era algo mais complexo, havia “tantos selves sociais, quanto há diferentes grupos de pessoas cujas
opiniões ele se importa”,140 e acima disso há um elemento ativo, um self espiritual “com o qual nós temos direto
conhecimento físico”.141
Isso foi útil também para outras áreas, além da psicologia experimental dos laboratórios alemães; e
certamente a atitude de James para esse experimentalismo alemão foi claramente ambivalente. Inicialmente ele
estava intensamente interessado nele, chegando a visitar os importantes Helmholtz e Wundt. Ele começou com
demonstrações experimentais mesmo antes de Wundt criar o Instituto de Leipzig, construiu um laboratório de
primeira categoria em Harvard142 e, quando não estava mais em condições de dirigi-lo, trouxe um experimentalista
alemão conhecido, Hugo Münsterberg para realizar a tarefa. Logo após esse fato, ele tornou-se profundamente
desiludido com os resultados dos experimentos. Em 1899, ele escreveu em uma carta para Stumpf, “o pensamento
de experimentações psicofísicas e os instrumentos, assim como as fórmulas algébricas para psicologia me enchem
de horror”.143 Acreditava que “o resultado psicológico apropriado (para a psicofísica de Fechner) era justamente
nada”,144 e como para Wundt, ele desprezou suas pretensões e descreveu-o como “um Napoleão sem genialidade e
sem idéias centrais”.145 Na conclusão de seu Briefer Course” (Breve curso - 1892) ele escreveu,
Quando, então, nós falamos de psicologia como uma ciência natural nós não devemos supor que
signifique que está solidificada sobre um terreno firme, significa justamente o contrário; significa
que a psicologia é particularmente frágil, e que a efemeridade da crítica metafísica torna-se evidente
a cada instante, uma psicologia cujas suposições elementares e dados devem ser reconsiderados em
conexões mais amplas e transportadas para outros termos ... Isto não é ciência, é apenas a esperança
de uma ciência.146
Isto não significa que James tivesse abandonado a esperança; isto significa que “as suposições da ciência
natural que os psicólogos adotaram deveriam ser consideradas como provisórias e reversíveis”.147 O futuro está
assentado em novas idéias e em novos dados, e James estava sempre procurando essas idéias e esses dados. Ele
tentava encontrá-los especialmente no campo da psicologia anormal, na pesquisa física e nas proezas paranormais.
No fim de sua vida escreveu:
As concepções clínicas, embora mais imprecisas que as analíticas, são certamente as mais
adequadas, dão uma imagem concreta da maneira que a mente funciona e têm importâncias práticas
mais urgentes . Então, a “atitude médica”, a “psicologia funcional”, é a área que mais merece valor
nos estudos.148
Ele expressou cedo a opinião que a descoberta, por volta de 1880, da direção das atividades inconscientes
em certas situações era “o passo mais importante da psicologia”,149 e disse para Stumpf que acreditava que as
pesquisas de Janet em histeria eram mais dignas de valor do que as mensurações de laboratório.150 Em 1896,
comentou sobre a possibilidade da utilização das descobertas Freudianas no alívio das patologias histéricas, 151 e
após assistir, em 1909, na Clark University, uma conferência sobre psicanálise, na qual Freud formou seu Five
Lectures upon Psycho-Analysis (Cinco Lições de Psicanálise), James comentou,
Eu espero que Freud e seus alunos promovam ao máximo suas idéias, a fim de podermos aprender o
que elas são. Não podem deixar de iluminar a natureza humana, mas confesso que ele me deixou a
impressão de um homem obcecado com idéias fixas. Não posso fazer nada de útil para mim com sua
teoria dos sonhos, e obviamente, o “simbolismo” é o método mais perigoso.152
Há algum tempo atrás, esse mesmo James utilizou-se dos estudos de caso em seu Principles of Psychology e isto é
o que parcialmente tornou o livro de tanto interesse humano. Suas conferências Gifford no Varietes of Religious
Experience (Variedades de Experiências Religiosas − 1902) têm sido descritas como estudos em psicologia
clínica, tratando duplamente das manifestações patológicas da “alma doente” e do “self dividido”, do fenômeno da
conversão religiosa, e da “enorme diversidade das vidas espirituais que os diferentes homens têm”.153
Em tudo isso James estava olhando adiante do fechado mundo dos laboratórios do período de transição
entre o século XIX para o século XX e ao que está relacionado com o mesmo − o impacto das novas idéias vindas
da medicina e das ciências sociais, a ascenção da psicologia aplicada e diferencial, e as novas filosofias. O interesse
dominante nas duas últimas décadas na vida de James foi filosófico.154 Ele foi atípico entre outros filósofos ao
preferir o desordenado à ordem, as heresias às ortodoxias, a verdade dos resultados práticos à verdade abstrata e
especulativa. “Realidade, vida, concretude, experiência, imediaticidade, use o termo que quiseres, exceda sua
lógica, inunde e envolva isso”.155 Psicólogos não têm prestado atenção na mensagem de James, mas ele não apenas
fez a psicologia parecer um tema interessante, como também preparou o caminho para outros acontecimentos.
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