A importância da estratigrafia para a intervenção em revestimentos e acabamentos Maria Goreti Margalha Câmara Municipal de Beja Portugal [email protected] Resumo: Desde há cerca de três, quatro décadas em alguns países da Europa, regista-se um novo interesse pela preservação dos revestimentos e cores das fachadas, procurando compreender a sua evolução ao longo da história. No nosso país é recente a aplicação de técnicas para este estudo, mas nota-se um crescente interesse pelo conhecimento da constituição das superfícies originais e tem sido incentivada a prática sistemática de trabalhos de conservação, neste domínio, por parte de algumas Instituições. Na presente intervenção procura dar-se a conhecer algumas metodologias para a avaliação do estado de conservação dos revestimentos. Palavras-chave: revestimentos, conservação, estudo estratigráfico . 1. ALGUNS PRINCÍPIOS PARA A INTERVENÇÃO EM EDIFÍCIOS ANTIGOS Uma das maiores dificuldades, quando se procede a uma intervenção nas superfícies de edifícios antigos é seleccionar o que é mais importante preservar e o que será inevitável sacrificar. Sabendo o quanto é importante manter esta herança e memória do passado, não é fácil tomar uma decisão sobre como proceder em cada momento. O valor do nosso património obriga-nos a defender cada edifício como caso único e com base numa apreciação crítica pode-se no processo de recuperação, “ignorar” algum estilo ou período que esteja presente. Em alguns casos, é difícil conciliar a preservação das diferentes épocas com a uniformidade que é necessário obter para não desvalorizar a leitura do edifício. Na observação das superfícies originais há alguns aspectos fundamentais que se devem considerar: • O revestimento existente está aderente à superfície? • O revestimento existente mostra fraca adesão das camadas entre si? • O revestimento existente está a sofrer problemas de desagregação? Nesta fase terá que haver uma decisão ponderada sobre a necessidade de remoção dos revestimentos ou parte destes. Normalmente as argamassas colocadas posteriormente com base em cimento devem ser eliminadas. No entanto é sempre necessário avaliar se são provocados maiores danos retirando ou mantendo certos materiais. Manter as superfícies originais pode justificar-se não só por razões de ética de conservação, mas também por razões económicas. Proceder às habituais “picagens de todos os revestimentos” é, na maior parte dos casos, enveredar por um caminho mais dispendioso. Com este procedimento, elimina-se toda a possibilidade do estudo dos materiais e técnicas aplicados e altera-se, naturalmente, a aparência e a estética do edifício. O problema, por vezes, é encontrar técnicos especializados para a execução do trabalho. O processo de consolidação pode ser aplicado em revestimentos, mas a mesma metodologia pode ser empregue para consolidar estruturas, abóbadas, paredes resistentes ou em trabalhos de maior minúcia de acabamento de superfícies, como são as pinturas murais. 2. AVALIAÇÃO DO ESTADO DE CONSERVAÇÃO DOS REVESTIMENTOS 2.1 Metodologia O primeiro contacto com o edifício deve ser feito apenas visualmente e sem qualquer conhecimento do objecto (Figura 1). Figura 1- Mapeamento das patologias da Capela do Castelo de Paderne (construção essencialmente dos séc.XV e XVI) O diagnóstico a efectuar ao estado de conservação deve incluir alguns passos obrigatórios: • • • • • • Fazer uma pesquisa visual ao edifício. Identificar e descrever os materiais usados e as técnicas de construção empregues. Identificar as patologias e analisar as suas causas. Documentar as observações do ponto de vista gráfico e fotográfico. Avaliar a necessidade dos estudos científicos. Avaliar a necessidade de recolha de exemplos para análise. As causas de degradação são várias e muitas vezes é a incúria a que os edifícios são votados, com sistemas de drenagem de águas pluviais danificados, telhas partidas, proliferação de vegetação, que está na origem do mau estado de conservação As recuperações feitas com materiais inadequados podem provocar eflorescências, fissuras, ou outros problemas adicionais. Os factores como a poluição, o clima (vento, temperatura, chuva) ou o simples envelhecimento dos materiais podem também ser factores de degradação. Uma análise preliminar correcta pode encaminhar-nos para a optimização de fases posteriores de pesquisa e como resultado o projecto de conservação poderá ser posto em prática com menores riscos, no que diz respeito às soluções adoptadas e por vezes com redução de custos. 2.2 Estudo estratigráfico das superfícies 2.2.1 Recolha de amostras Retirar exemplos para estudos científicos ou análise inclui-se numa fase avançada de conhecimento dos edifícios. Ao retirar o exemplo para o estudo estratigráfico é preciso colocar uma questão prévia que se julga ser da máxima importância esclarecer: uma questão ↔ uma resposta Saber porquê ? Justificar a recolha de exemplos, já que se trata de um método destrutivo e é evidente que não podemos recolher exemplos em todos os locais do edifício, em primeiro lugar por razões de preservação do próprio objecto mas também por razões económicas. Por isso, depois de um conhecimento adequado do edifício deve ser feita uma opção ponderada quanto ao número de exemplos a retirar e o local para o fazer. A quantidade da amostra a retirar também depende do valor artístico do objecto. O tamanho deve ser tão pequeno quanto possível, mas que permita conhecer o resultado desejado. Os locais devem ser escolhidos em zonas cujas superfícies se encontrem no melhor estado possível. À partida as áreas mais protegidas são aquelas onde o revestimento sofreu menor degradação, normalmente escolhem-se as zonas abaixo do beirado, junto às cornijas, porque estão protegidas por este. Quando não existe cobertura os exemplos podem ser retirados junto ao pavimento, mas neste caso podem vir afectados pelos sais provenientes do solo. Os exemplos são retirados com instrumentos simples, tesoura, bisturi, agulha, e quando se trata de zonas de baixa aderência esse trabalho é possível ser feito à mão. Na fachada assinala-se o sítio onde a amostra é retirada que deve ser fotografado (Figura 2). Figura 2- Alçado principal e posterior do edifício localizado na rua do Sembrano (construção do séc. XVIII com intervenções posteriores), com os locais assinalados de onde se retiraram exemplos para o estudo estratigráfico. Todo o trabalho de investigação a efectuar com as amostras seleccionadas não pode ser alheado do contexto macroscópico do edifício, pelo que, previamente à fase de laboratório a amostra deverá ser analisada macroscopicamente, 2.2.2 Modo de preparação das amostras Depois de seleccionar a parte mais representativa da amostra, no laboratório podem ser seguidos alguns passos tendo em vista a sua preparação de forma que seja observada ao microscópio ou à lupa binocular. Preparação da resina e colocação da amostra no recipiente. • • • • • Colocação do recipiente no vácuo para preenchimento de todos os vazios pela resina (Figura 3). Após endurecimento da resina, cortar a amostra com uma serra adequada por forma que a amostra seja dividida em duas partes iguais (Figura 4). Polimento da amostra com lixas finas de boa qualidade e água até obter uma superfície lisa sem resíduos da resina. Observação ao microscópio ou à lupa binocular, conforme o objectivo da observação escolhe-se a lupa a utilizar, que pode ter uma ampliação de apenas 2x ou até 500x (Figura 5) . As camadas devem ser descritas, numerando-as da face interior do revestimento até ao acabamento. Figura 3- Colocação das Figura 4- Amostra depois de Figura 5- Observação da amostra com uma lupa amostras no aparelho de endurecida binocular vácuo para introdução da resina nos poros da argamassa 2.2.3 Resultados do estudo estratigráfico Nos edifícios, as várias épocas vão-se sobrepondo, correspondendo aos gostos e às tecnologias de cada uma, muitas vezes relacionadas com as alterações de uso dos mesmos. Analisar a estratigrafia do edifício nem sempre é tarefa fácil, tanto ao nível dos materiais como das cores, que sofrem um processo de deterioração muito próprio ao longo do tempo. Os detalhes estratigráficos dos revestimentos (argamassas) e acabamentos (cor) que podem ser observados neste estudo são os seguintes: -cor; -granulometria do agregado; -tipo de grão do agregado; -adições na argamassa ( tijolo, carvão, ...); -adição de pigmentos; -dados sobre a técnica de execução ( aplicação “wet/wet”, no verdadeiro fresco vê-se a cor a penetrar na argamassa, grafitos, estuques, ...); - número e espessura das camadas; -relação da 1ª camada com o suporte; -estado de preservação ( ataques biológicos, falta de adesão ou coesão, fissuras, ... ); -composição sem grande rigor, por vezes, consegue-se estimar. As fotografias das amostras permitem a sistematização e o registo da observação visual ao microscópio (Figuras 6 e 7). A determinação das cores pode ser feita adoptando vários métodos, sendo os mais conhecidos o Natural Colour Systems (NCS) ou o sistema Munsell (Figura 8). Fig. 8- Determinação da cor utilizando o sistema NCS (ampliação 7,5X) Nº e Cor da Camada 0-reboco 01-reboco 1- barramento branco (ampliação 25X) Nº e Cor da Camada 1-pintura ocre 2-barramento branco 3-pintura azul cobalto 4-pintura cinza/azul 5-barramento branco 6-Pintura cinza claro 7-Barramento branco 8-Pintura azul escuro 7Identificação Fig. 6Identificação Fig. estratigráfica do exemplo 2, estratigráfica do exemplo 4, acabamento revestimento e acabamento Este trabalho efectua-se preferencialmente no local, porque a recolha do exemplo e a sua observação noutro local quando se utilizam estes sistemas, pode alterar a leitura da cor. A cor pode ser observada em sistemas mais complexos e pode ser “medida” utilizando, por exemplo, um espectrocolorímetro. Os métodos visuais correm o risco de ser menos exactos, porque estão dependentes da sensibilidade da visão do observador, mas são muito fáceis de aplicar. Naturalmente que subsiste muita informação sobre o revestimento que não é visível no estudo estratigráfico, nomeadamente: - o traço da argamassa; a composição química e mineral dos ligantes e agregados; a composição química e mineral dos pigmentos; a datação da argamassa ( carbono 14 ). Estes últimos procedimentos são mais dispendiosos e este tipo de análises também não nos dão especificações totais para a renovação das superfícies, por esses motivos podem tornar-se dispensáveis nas intervenções correntes. Não podemos olvidar a importância do saber tanto no que diz respeito à reprodução das técnicas de produção, como na aplicação de boas misturas com os materiais ao nosso dispor, usando simultaneamente o conhecimento recente que possuímos nesta matéria em que intervêm tantas variáveis. Por exemplo, se a quantidade de água a adicionar numa argamassa não for a mais correcta, poderemos comprometer a sua resistência mecânica ou ter uma deficiente plasticidade na mistura, o que não permitirá aplicá-la. Também as variáveis humanas podem alterar a qualidade final da intervenção. À escolha de um BOM MATERIAL, deve estar associado um BOM EXECUTOR. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS O estudo estratigráfico é uma técnica que ajuda a conhecer melhor a história dos revestimentos e acabamentos, podendo ser complementado com outros ensaios, nomeadamente análises químicas, mineralógicas ou outras. Torna-se, por vezes, num trabalho muito complexo quando os edifícios foram objecto de muitas intervenções e reparações após a data de construção. Essa complexidade cruza-se com a necessidade de conhecer o passado do edifício, o que por vezes não é possível, pelo menos no que se refere a todas as épocas. A análise detalhada das superfícies existentes revela-nos alguns materiais e técnicas tradicionais empregues. A recuperação das superfícies exige que se procurem os materiais originais, embora por vezes seja difícil de encontrá-los porque já não existem no mercado e nem sempre é fácil encontrar técnicos especializados para a execução dos trabalhos. No entanto, na maioria das intervenções, para as quais os recursos económicos não são infelizmente abundantes nem sequer suficientes, a ajuda de um conveniente diagnóstico do estado de conservação do edifício pode tornar-se uma ferramenta fundamental no processo de conservação/ recuperação. REFERÊNCIAS H. Ulrich- Architectural surfaces and theirpolychrome decorations in Carinthia. «Architectural Surfaces Conservation and Restoration of Plastered Facades», Viena, Bundesdenkmalamt, 1997. p.83. Tinzl, Christoph- Conservation of historic render at the Lieben Castle, 1994-96. «Architectural Surfaces Conservation and Restoration of Plastered Facades», Viena: Bundesdenkmalamt, 1997. p.93. AGRADECIMENTOS À Drª Martha Tavares e ao Laboratório Nacional de Engenharia Civil.