CLEBER FERNANDO DE ASSIS XAVIER O TEXTO FILOSÓFICO NO CURRÍCULO DO ENSINO DE FILOSOFIA DO ESTADO DE SÃO PAULO. CAMPINAS 2015 iii 2015 RESUMO O presente projeto visa empreender uma análise sobre o texto filosófico (texto do filósofo) abordado no Currículo do estado de São Paulo para o ensino de filosofia. Analisaremos o seu papel, as recomendações para o seu emprego e o modo como é incorporado ao material didático – Material de Apoio ao Currículo do estado de São Paulo –, examinando se a maneira como o texto é proposto nos planos de aula oferece condições para que o professor o utilize de forma adequada e coerente e para que o educando possa lê-lo, interpretá-lo e problematizá-lo. Analisaremos o papel do texto filosófico ao longo da história do ensino de filosofia no Brasil, a fim de compreender seus objetivos e sua aplicação e de perceber, quando não utilizado, quais os outros recursos empregados. Também examinaremos o ensino de filosofia e o texto filosófico na perspectiva dos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio (PCNEM), das Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN+) e das Orientações Curriculares para o Ensino Médio (OCEM). Palavras-chave: Texto filosófico. Currículo do ensino de filosofia do estado de São Paulo. Material de apoio ao currículo do estado de São Paulo. ABSTRACT This project aims to undertake an analysis of the philosophical text (philosopher text) addressed in the Curriculum of São Paulo state to the philosophy teaching. We will review your finality, the recommendations for its use and how it is incorporated into their teaching material - Support Material for Curriculum of São Paulo state – examining if the way is proposed in their lesson plans provides conditions for teacher use it properly and consistently, and that the student can read it, interpret it and problematize it. We analyze the role of philosophical text throughout the philosophy history in Brazil, in order to understand their goals and application and, if not used, what resources were applied. Also, we will examine the philosophy teaching and the philosophical text according to National Curriculum Parameters for High School (PCNEM), Supplemental Educational Guidelines for National Curriculum Parameters (PCN+) and National Curriculum Guidelines for High School (OCEM). Keywords: Philosophical text. Support material for curriculum of São Paulo State. Philosophy curriculum of São Paulo state. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 17 CAPÍTULO I - O TEXTO FILOSÓFICO NO ENSINO DE FILOSOFIA NO BRASIL: BREVE HISTÓRICO ........................................................................................................................................ 22 Período Colonial ........................................................................................................................... 22 Período Jesuítico: a influência do catolicismo no ensino de filosofia .......................................... 23 Período Pombalino: a influência iluminista no ensino de filosofia e os compêndios modernos .. 26 Período Imperial: a forte presença dos compêndios .................................................................... 32 Período Republicano: presença/ausência do ensino de filosofia ................................................. 36 Período Ditatorial pós-1964 e a redemocratização: o livro didático ........................................... 44 Conclusão ...................................................................................................................................... 45 CAPÍTULO II - O PAPEL DA FILOSOFIA E DO TEXTO FILOSÓFICO NA LEGISLAÇÃO EDUCACIONAL ................................................................................................................................. 48 1. O papel da filosofia e do texto filosófico nos PCNEM ............................................................. 48 O ensino de filosofia e os PCNEM de Ciências Humanas ........................................................ 48 2. O papel da filosofia e do texto filosófico nos PCN+.................................................................. 59 3. O papel da filosofia e do texto filosófico nas Orientações Curriculares para o ensino médio .. 65 O texto filosófico e os documentos ........................................................................................... 81 CAPÍTULO III - O ENSINO DE FILOSOFIA E O TEXTO FILOSÓFICO NO CURRÍCULO DO ESTADO DE SÃO PAULO ......................................................................................................... 83 1. O Currículo oficial do estado de São Paulo .............................................................................. 83 A implementação do Currículo oficial e os materiais didáticos da SEESP ............................. 83 O Currículo e o papel da filosofia e do texto filosófico ........................................................... 85 2. O texto filosófico no Caderno de filosofia do professor e do aluno .......................................... 87 Orientações do Caderno do Professor ..................................................................................... 88 O texto filosófico deve ser avaliado pelo professor ................................................................. 88 Competências e metodologia .................................................................................................... 89 A avaliação e o texto filosófico ................................................................................................ 92 Conclusão ................................................................................................................................. 94 3. Análise dos textos filosóficos .................................................................................................... 95 1) Desarticulação entre os textos filosóficos e os objetivos da Situação de Aprendizagem .... 96 2) Caráter fragmentário e descontextualizado dos excertos .................................................. 109 3) Descompasso entre o grau de complexidade dos textos e as condições reais do educando para compreendê-los .............................................................................................................. 113 4) Afastamento ou distorção do sentido original do texto filosófico ...................................... 114 5) Escolha aparentemente aleatória de autores e excertos .................................................... 123 6) Reducionismo interpretativo .............................................................................................. 130 Adequada articulação da proposta com o texto filosófico ..................................................... 134 Conclusão ............................................................................................................................... 138 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................................... 140 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................................ 144 Dedico este trabalho a todos os colegas, professores de filosofia, da Diretoria de Ensino de São Roque. AGRADECIMENTOS Primeiramente a Deus, fundamento da minha vida. À minha queridíssima, linda e amada esposa, Regiane de Paula Correa Xavier, pela paciência e apoio durante todo o processo de desenvolvimento e elaboração da pesquisa, principalmente nos momentos mais conturbados. Aos meus pais, Maria Rosalina de Assis Xavier e José Olices Xavier de Souza; a meu irmão, Clayton Clesley de Assis Xavier; a minha tia, Maria Helena Xavier de Souza – enfim, a toda a minha família e aos amigos, pelas orações que me mantiveram firme, acreditando e persistindo na conclusão deste trabalho. A professores, alunos, ex-alunos, gestão e todo o quadro de funcionários da EE Prof.º José Pinto do Amaral e de outras escolas nas quais trabalhei, pelo apoio e incentivo; à Diretoria de Ensino de São Roque, em particular, aos membros da Comissão Regional do Programa Mestrado e Doutorado, pelas orientações e esclarecimentos a respeito dos documentos da Bolsa Mestrado; aos amigos professores de filosofia, grandes companheiros do magistério. À prof.ª Leda Farah, pela colaboração e disponibilidade na revisão e estruturação da dissertação. Ao meu orientador, prof.º Renê José Trentin Silveira, pelas contribuições acadêmicas durante as etapas de elaboração desta pesquisa e, principalmente, por acreditar em mim e na minha pesquisa. 17 INTRODUÇÃO A presente pesquisa teve como objetivo analisar a forma como os textos filosóficos são abordados e aplicados no Currículo do estado de São Paulo no ensino de filosofia no nível médio. O texto filosófico a que nos referimos consiste nas produções dos filósofos, ou seja, nos seus textos primeiros, originários, quer tomados na íntegra, quer na forma de excertos. Cumpre esclarecer, porém, que não estamos nos reportando aos textos no idioma vernáculo dos filósofos. As pesquisas no Brasil acerca do ensino de filosofia no ensino médio, dizem Gallo e Kohan (2000a, p. 7), são restritas, ―isso se não considerarmos uma produção até razoável de dissertações de mestrado e teses de doutorado sobre o tema‖. Gelamo (2010, p. 332, grifos do autor) mostra que a maior concentração de estudos a respeito do ensino de filosofia está vinculada à filosofia da educação. Também há pesquisas produzidas por filósofos vinculados aos cursos de sua formação específica, as quais, entretanto, tratam mais de questões político-educacionais dos cursos de filosofia. Sendo assim, esse ensino é ―[...] sempre tratado como um problema de menor importância para a Filosofia, sendo essa tarefa deixada para os ‗educadores‘ – pedagogos e filósofos da educação‖. Uma possível explicação para esse problema, infere Gelamo (2010, p. 332, grifos do autor), talvez ―seja justamente o fato de as questões do ensino da Filosofia serem entendidas como questões educacionais [...]‖. Para ter uma compreensão geral dessas pesquisas, levantamos um modesto mapeamento de artigos, dissertações e teses. Como fonte, foram consultados os seguintes sites bibliográficos: banco de teses e dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)1; Portal de Periódicos da Capes2 e Scientific Electronic Library Online (Scielo)3. 1 Disponível em:< http://bancodeteses.capes.gov.br/>. Acesso em: 29 dez. 2014. Disponível em: <http://www.periodicos.capes.gov.br>. Acesso em: 29 dez. 2014. 3 Disponível em: <http://www.scielo.org/php/index.php>. Acesso em: 29 dez. 2014. 2 18 As pesquisas referiram-se ao período de 2000 a 2013. O número de produções encontrado foi 29, sendo 6 artigos. As 23 pesquisas restantes são todas dissertações, das quais 18 são de instituições públicas e 5, de instituições privadas. Apenas uma (VIEIRA, 2012) das dissertações discute a questão do texto filosófico no ensino de filosofia no ensino médio. O restrito número de publicações no Brasil sobre o ensino de filosofia no ensino médio justifica a importância de ampliarmos essas pesquisas, inclusive aquelas relacionadas ao texto filosófico como recurso didático, visto que tal produção, de modo geral, tem sido ignorada pelos professores, em vista dos diversos desafios encontrados na escola pública ou da má qualidade da formação dos docentes. Hegel (1991, p. 139), criticando o não emprego dos ―conteúdos da filosofia‖ na reflexão filosófica, explica que isso corresponde a uma viagem na qual não se conhecem os lugares. Supõe-se que o ―conteúdo da filosofia‖ também se refira aos textos filosóficos, visto que é a partir deles que se tem acesso às ideias dos filósofos. Obiols (2002, p. 79) considera conteúdo filosófico a história, os conceitos, os problemas e ―textos canônicos‖ dos filósofos. Ora, se esse tipo de leitura não for o recurso principal do ensino da filosofia no ensino médio, no mínimo, é um dentre aqueles necessários para o desenvolvimento crítico dos estudantes. Sendo assim, é legítimo que avancemos nas questões sobre o texto filosófico. Em que medida é importante os estudantes do ensino médio lerem tais textos? Uma primeira resposta é a seguinte: essa leitura os coloca em contato direto com o pensamento do autor. Severino (2009, p. 6) nos diz que isso representa ―[...] a busca de um diálogo com aqueles que nos precederam nessa tarefa de desvendar o sentido das coisas ou daqueles que o fazem hoje, em diferentes lugares‖. Além disso, Gallo (2012, p. 82) explica que é fundamental que o estudante tenha uma ―experiência do pensamento conceitual‖, a qual é proporcionada também pelo texto filosófico. Tal experiência significa, segundo o autor, ir além da assimilação de conhecimentos ou de uma certa concepção de mundo, levando os estudantes a pensar o já pensado. Na verdade, é necessário oferecer resistência a esse tipo de ensino ―embrutecedor‖, apostando em um ―aprendizado ativo, para além da recognição [...] que implique um aprendizado criativo e não simplesmente reprodutivo‖. Assim, Gallo (2012, p. 148) conclui que, no ensino de filosofia, 19 [...] é importante que o professor tenha em seu repertório textos dos próprios filósofos. Se insisto que um bom ensino de filosofia é aquele que propicia aos alunos uma experiência do pensamento conceitual, [...] insisto também que a experiência própria com o pensamento conceitual só é possível no trato com os conceitos já criados. [...] se, porém, [a aula] não levar ao contato com o conceito, não será uma aula de filosofia. E para um contato inicial com o conceito, precisamos ir aos textos dos filósofos, que são a materialização do movimento conceitual no pensamento. Cabe destacar que não basta registrar a presença do texto filosófico no plano de aula do professor. Sua importância depende de como venha a ser efetivamente trabalhado, levando-se em conta as condições do professor e dos estudantes. Sua leitura não se compara à de uma notícia, por exemplo. Folscheid (2013, p. 11) explicita que, ―se é fácil ler um artigo de jornal, é difícil penetrar um texto filosófico. Nada mais normal. [...] Em filosofia, não se pode, não se deve esperar uma apropriação imediata. Essa última seria antes o sinal de que não se atingiu o essencial‖. Aspis (2009, p. 97) corrobora: [...] a primeira coisa que um texto filosófico nos ensina é que ele não é um campo aberto onde podemos entrar correndo sem dificuldades. [...] A segunda coisa, portanto, que ele nos ensina é persistir. [...] Mas nada podemos forçar. Temos de ter paciência. [...] É preciso esperar para que o texto vá nos moldando, nos mudando. [...] Ler de novo. De novo. Deixálo um pouco de lado e depois retomar. O Currículo de filosofia do estado de São Paulo faz recomendações sobre o texto filosófico, e grande parte das propostas de aula dos seus materiais didáticos emprega seus excertos. Sendo esse recurso adotado, é importante que examinemos sua abordagem e aplicação, a fim de aprofundar essas questões e, de alguma forma, avançar nessa discussão, para que, em algum nível, consolidemos efetivamente o seu emprego no ensino de filosofia no ensino médio. Esses textos abordam diversos temas que abrangem muitas áreas, como: ética, política, estética, epistemologia, teoria do conhecimento, entre outras mais. É um acervo importante da tradição filosófica, pois encontra-se nele muitas questões que podem ajudar no desenvolvimento da leitura, da escrita, da interpretação e, sobretudo, na formação reflexiva e crítica do estudante, colaborando para o desenvolvimento de um sujeito capaz de situar-se na sua realidade, intervir nela e, até mesmo, transformá-la. Tais atributos 20 referem-se à formação do cidadão, que é um dos principais objetivos estabelecidos na legislação educacional, inclusive aquela que trata sobre o ensino de filosofia. A maneira como estes textos filosóficos estão propostos no Caderno do Professor e do Aluno da disciplina de filosofia favorece o desenvolvimento das competências e habilidades da leitura, escrita, interpretação e crítica dos estudantes? Será que, da maneira como aparecem no trabalho, colaboram para o alcance de seus objetivos? No entanto, não podemos esquecer dos desafios. Sabemos que há muitos textos de filósofos com alto grau de complexidade, seja pela abordagem de conceitos não usuais, seja pela formalidade textual, seja pela falta de pré-requisito do leitor, além de outras razões. Ademais, em linhas gerais, o texto filosófico não é um recurso que faz parte do cotidiano da vida dos estudantes de escola pública, e a educação nacional passa por uma difícil situação, no que se refere às competências de leitura e escrita: grande parte das escolas, tendo como referência as avaliações internas e externas, vem apresentando resultados que demonstram que grande parte dos estudantes tem muita dificuldade na leitura, na interpretação e na escrita. A pesquisa está estruturada da seguinte forma: no primeiro capítulo, apresentaremos um quadro geral sobre o processo histórico, no Brasil, sobre o ensino de filosofia, no que diz respeito aos textos filosóficos. Nosso objetivo é compreender se esse recurso foi utilizado nos principais períodos da história do Brasil. Sendo empregado, qual era a sua finalidade? Caso não, que recurso era adotado e qual era o seu papel? No segundo capítulo, analisaremos as finalidades atribuídas pela legislação à filosofia e ao texto filosófico no ensino médio. As legislações educacionais analisadas serão: PCNEM, PCN+ e OCEM. Por fim, no terceiro capítulo, examinaremos, segundo o Currículo do ensino de filosofia do estado de São Paulo, esses textos e seus materiais didáticos, chamados de Caderno do Professor e Caderno do Aluno. Em relação a esses últimos, enfatizaremos o material do professor, visto que contém todos os aspectos elementares das propostas de aula que se encontram no material do aluno. Em alguns dos casos, se necessário, faremos referência ao Caderno do Aluno. Nosso objetivo não é analisar todas as propostas de aula, visto que seguem uma mesma estrutura. Sendo assim, examinaremos algumas Situações de Aprendizagem das três séries do ensino médio. Investigaremos o modo como é abordado o texto filosófico, no que se refere à sua articulação com o tema proposto; os objetivos anunciados; os comentários apresentados; e as atividades sugeridas, à luz de seis eixos temáticos, a saber: 21 1) desarticulação entre os textos filosóficos e os objetivos da Situação de Aprendizagem; 2) caráter fragmentário e descontextualizado dos excertos; 3) descompasso entre o grau de complexidade dos textos e as condições reais do educando para compreendê-los; 4) escolha aparentemente aleatória de autores e excertos; 5) afastamento ou distorção do sentido original do texto filosófico; 6) reducionismo interpretativo. Por fim, esta pesquisa, obviamente, não esgota a questão discutida, porém busca empreender uma reflexão sobre o texto filosófico na perspectiva do Currículo de filosofia do estado de São Paulo, seus materiais didáticos e a prática de ensino de seus docentes. Esperamos, assim, abrir caminhos que favoreçam o avanço e o aprofundamento desta discussão, assim como a construção de uma relação professor-texto filosófico que permita o aprimoramento da qualidade das aulas de filosofia e a consolidação da presença dessa disciplina no currículo do ensino médio. 22 CAPÍTULO I O TEXTO FILOSÓFICO NO ENSINO DE FILOSOFIA NO BRASIL: BREVE HISTÓRICO O ensino de filosofia no Brasil teve início no período colonial, passando, desde então, ora por situações que o favoreceram, ora por outras que o limitaram e, ainda, por outras que o inviabilizaram. Os recursos didáticos empregados nessas aulas, de maneira geral, consistiram no texto filosófico e, sobretudo, no compêndio. De acordo com o artigo 2º, parágrafo 1º, do decreto-lei nº 1.006/38 de 1938, os compêndios são considerados livros didáticos ―[...] que exponham, total ou parcialmente a matéria das disciplinas constantes dos programas escolares‖. Oliveira (1984, p. 23) explica que os compêndios ―também são chamados de livros de texto, livro-texto, compêndio escolar, livro escolar, livro de classe, manual e livro didático‖. Sendo assim, o compêndio de filosofia consiste em uma síntese geral dos conhecimentos considerados filosóficos, possibilitando conhecer, sumariamente, autores conceituados e suas principais ideias. Analisaremos brevemente a seguir estes dois recursos, com ênfase nos textos filosóficos, nosso objeto de investigação, procurando compreender o papel que desempenharam em cada momento histórico. Período Colonial No período colonial, a partir do século XVI, a educação no Brasil passou por dois tipos de organização, em momentos diferentes: a primeira tinha como base uma perspectiva religiosa e católica, direcionada pela Companhia de Jesus; a segunda foi delineada pelas reformas implantadas em Portugal e na Colônia pelo Marquês de Pombal, 23 que redirecionou a educação, retirando a influência jesuítica e fortalecendo o ideário iluminista. Período jesuítico: a influência do catolicismo no ensino de filosofia A Companhia de Jesus foi a principal responsável pela educação formal no Brasilcolônia. Seu sistema educacional baseava-se no Ratio Studiorum4. Segundo Saviani (2011, p. 55), este sistema consistia num ―[...] conjunto de regras cobrindo todas as atividades dos agentes diretamente ligados ao ensino‖, isto é, regras que se referiam tanto à sua pedagogia quanto à sua administração. Os estudos, ainda de acordo com Saviani (2011, p. 56, grifos do autor), eram divididos em dois níveis, o inferior e o superior: O novo Plano começava com o curso de humanidades, denominado no Ratio de ―estudos inferiores‖, correspondentes ao atual curso de nível médio. Seu currículo abrangia cinco classes ou disciplinas: retórica; humanidades; gramática superior; gramática média; e gramática inferior. A formação prosseguia com os cursos de filosofia e teologia, chamados de ―estudos superiores‖. O currículo filosófico era previsto para a duração de três anos, com as seguintes classes ou disciplinas: 1º ano: lógica e introdução às ciências; 2º ano: cosmologia, psicologia, física e matemática; 3º ano: psicologia, metafísica e filosofia moral. Cartolano (1985, p. 20) explica que, na organização do Ratio Studiorum, o ensino de filosofia só abrangia os ―estudos superiores‖, voltados àqueles estudantes de família com prestígio social, o qual era definido a partir da posse da terra e do escravo. Na realidade, como esclarece Saviani (2011, p. 56), ―no Brasil os cursos de filosofia e teologia eram, na prática, limitados à formação dos padres catequistas. Portanto, o que de fato se organizou no período colonial foi o curso de humanidades (‗estudos inferiores‘)‖. Nos estudos de filosofia, dois filósofos eram referências: Aristóteles e São Tomás de Aquino. Evidentemente, o conhecimento de Aristóteles e suas ideias se articulavam à perspectiva da tradição cristã. Na realidade, a filosofia subordinava-se à teologia, como explica Paim (1967, p. 28): consistia o curso superior em três anos de filosofia (Aristóteles) e quatro de Teologia (S. Tomás). A idéia básica defendida pela pedagogia da Companhia de Jesus era a da subordinação da filosofia à teologia. [...] Se 4 Ratio Studiorum é o nome abreviado de Ratio atque Institutio Studiorum Societatis Jesus (Plano de Estudos da Companhia de Jesus) (FRANCA, 1952, p. 2). 24 alguns forem amigos de novidade ou de espírito demasiado livre, devem ser afastados sem hesitação do serviço docente. O mesmo autor (1967, p. 28) nos diz que, ―para assegurar-se da execução dessas diretivas, tanto as questões a serem suscitadas pelos professores como também os textos a serem lidos pelos alunos achavam-se sujeitos a rigoroso controle‖. A 4ª regra, que refere-se às normas comuns a todos os professores das faculdades superiores, por exemplo, estabelecia que cada um dos docentes deveria obedecer [...] ao Prefeito dos estudos em tudo quanto se refere aos estudos e à disciplina das aulas; entregue-lhe, para serem revistas, todas as teses, antes de propô-las; não explique livro ou autor fora dos que estão em uso nem introduza novos métodos no ensino ou nas disputas (FRANCA, 1952, p. 56). E a 6ª regra determinava que ―ainda em assuntos que não apresentem perigo algum para a fé e a piedade, ninguém introduza questões novas em matéria de certa importância, nem opiniões não abonadas por nenhum autor idôneo, sem consultar os superiores‖ (FRANCA, 1952, p. 56). Podemos notar um demasiado controle sobre o que se lia e estudava. A 30ª regra do prefeito de estudos nos mostra algumas restrições sobre as obras: Nas mãos dos estudantes de teologia e filosofia não se ponham todos os livros mas somente alguns, aconselhados pelos professores com o conhecimento do Reitor: a saber, além da Suma de Santo Tomás para os teólogos e de Aristóteles para os filósofos um comentário para consulta particular. Todos os teólogos devem ter o Concílio Tridentino e um exemplar da Bíblia, cuja leitura lhes deve ser familiar. Consulte o Reitor se convém se lhes dê algum Santo Padre. Além disto, dê a todos os estudantes de teologia e filosofia algum livro de estudos clássicos e advirta-lhes que lhe não descuidem a leitura, em hora fixa, que parecer mais conveniente (FRANCA, 1952, p. 57) No que se refere aos estudos sobre Aristóteles, a segunda regra do professor de filosofia zelava pela sua interpretação à luz da ideologia católica: Em questão de alguma importância se afaste de Aristóteles, a menos que se trate de doutrina oposta à unanimemente recebida pelas escolas, ou, mais ainda, em contradição com a verdadeira fé. Semelhantes argumentos de Aristóteles ou de outro filósofo, contra a fé, procure, de acordo com as prescrições do Concílio de Latrão, refutar com todo vigor (FRANCA, 1952, p. 63). Na terceira regra, lê-se: ―Sem muito critério não leia nem cite na aula os intérpretes de Aristóteles infensos ao Cristianismo; e procure que os alunos não lhes cobrem afeição‖ (FRANCA, 1952, p. 63). Paim (1967, p. 29) nos diz que esta regra faz menção especial ―a 25 Alexandre de Afrodisias, comentador grego de Aristóteles que combateu a imortalidade da alma‖. A Averrois5, na quarta regra, recomenda-se que ―[...] se alguma cousa boa dele houver de citar, cite-a sem encômios, quando possível, mostre que hauriu em outra fonte‖. A quinta regra estabelece que ―[...] nem dissimule os erros de Averrois, de Alexandre e outros, antes tome daí ensejo para com mais vigor diminuir-lhes a autoridade‖ (FRANCA, 1952, p. 63) Nos estudos inferiores, mesmo sem ser um ensino específico de filosofia, estudavase nos cursos de humanidades e retórica obras de diversos autores, inclusive, de filósofos. Cunha (1980, p. 25) cita-as: [...] obras de Cícero , César, Salústio, Tito Lívio, Cúrcio, Virgílio e Horácio (em latim), e de Isócrates, São Crisóstomo, São Basílio, Platão, Sinésio, Plutarco, Focílides e Teognides (em grego); classes de retórica, utilizando, principalmente, as obras de Cícero e de Aristóteles (Retórica e Poética). Hansen (2001, p. 20) menciona algumas das obras: ―preceitos dos tratados de Cícero (De oratore), Aristóteles (Rhetorica) e Santo Agostinho (De doctrina christiana) [...]‖. Apesar destes dois cursos empregarem, em seus programas de estudo, obras de filósofos, suas finalidades, explica Saviani (2011, p. 57, grifo do autor), destinavam-se ao desenvolvimento da expressão: ―a dialética, chamada no Ratio de humanidades (uma série6), destinava-se a assegurar expressão rica e elegante. E a retórica (uma série) buscava garantir uma expressão poderosa e convincente‖. Sua finalidade, portanto, restringia-se à capacidade de se expressar bem, comunicar de maneira convincente, saber argumentar e organizar logicamente suas ideias. No que se refere aos estudos superiores, Cunha (1980, p. 25) nos apresenta os textos de Aristóteles que deveriam ser lidos no curso de filosofia: [...] no primeiro ano, lia-se A Lógica; no segundo, De Coelo, De Generatione e Meteoros; no terceiro, continuava-se com De Generatione, acrescentando-se De Anima e a Metafísica; paralelamente a essas obras principais, liam-se, na cadeira de moral, a Ética e, na de Matemática, a Geometria e a Cosmografia. 5 ―Nascido em 1126, em Córdoba [...] foi jurista e médico, mas, sobretudo, foi grande comentador de Aristóteles [...]‖. Ele defendia teses que contrapunham dogmas da Igreja Católica, por exemplo: afirmava ―a eternidade do mundo, negando imortalidade da alma singular‖ (REALE, 2003, p. 195). 6 Conforme Cunha (1980, p. 25) os estudos inferiores [...] eram desenvolvidos em cinco classes desdobradas em até sete séries anuais [...]‖ 26 Observa-se pelas palavras de Cunha que os estudantes de filosofia tinham acesso aos textos filosóficos, principalmente de Aristóteles e São Tomás de Aquino. Mas, conforme as orientações do Ratio, qualquer que fosse o pensador, seu estudo deveria ser feito com cuidado e ressalvas, a fim de não conflitar com o dogma católico. Daí o rigoroso controle sobre o uso desses autores. Isso demonstra que o texto filosófico, no ensino jesuítico, não visava à formação crítica dos estudantes, nos termos em que se entende essa formação atualmente, visto que sua leitura e estudo eram guiados e induzidos pelos professores, de modo a assegurar uma interpretação compatível com as verdades religiosas. Tal atitude, aliás, era coerente com os preceitos da escolástica que norteavam o Ratio e a pedagogia jesuítica e segundo os quais a filosofia deveria servir à teologia. Da mesma forma podemos afirmar que no curso de humanidades dos estudos inferiores, no qual, empregava o uso de textos filosóficos – mesmo não sendo um curso específico de filosofia -, a finalidade não se referia à formação crítica. Em ambos os contextos, o papel do texto filosófico não era e nem poderia ser o de preparar o estudante para pensar com autonomia e problematizar o mundo à sua volta, mas sim o de municiá-lo com as armas da filosofia e das habilidades retóricas e dialéticas a fim de capacitá-lo para defender e propagar a religião católica. Vale lembrar que o estudo da filosofia era destinado prioritariamente aos que se tornariam religiosos. Período Pombalino: a influência iluminista no ensino de filosofia e os compêndios modernos O período pombalino, que se iniciou em 1759, trouxe grandes mudanças para Portugal e para a colônia. Sebastião José de Carvalho e Mello (Marquês de Pombal) foi designado ministro do rei e foi lhe dada à responsabilidade de introduzir Portugal nos novos ideários liberais, pois o seu Antigo Regime, baseado no absolutismo e no mercantilismo, encontrava-se em crise diante das revoluções burguesas. Era necessário reerguer o País. A economia seria um dos fatores importantes dessa renovação, pois, em virtude de alguns tratados estabelecidos com a Inglaterra, o império português perdia sua independência econômica. De acordo com Cunha (1980, p. 39), Pombal, a partir de um conjunto de reformas, procurava a independência desse setor, instaurando um processo de industrialização, a fim de elevar a economia do País. O Marquês de Pombal também redirecionou a educação, com base no ideário iluminista e liberal; expulsou os jesuítas de Portugal e, consequentemente, de suas colônias, 27 retirando-lhes a responsabilidade de organizar e administrar a educação. Desse modo, o Estado assumiu a educação que antes fora dirigida pela Igreja. Cunha (1980, p. 50) explica que a famosa Universidade de Coimbra, a partir dos ideais iluministas e liberais, sofreu mudanças ideológicas; foram criadas duas ―faculdades maiores‖: filosofia e matemática. A faculdade de filosofia mantinha o caráter ―propedêutico‖ para os cursos de medicina, teologia, direito e cânones, porém, assumiu também outra função: a do ensino das ciências naturais como um ―fim em si mesmo‖. Isso significa, de acordo com Alves (1993, p. 63), que a filosofia perdeu seu caráter reflexivo-especulativo, adquirindo atributos científicos que caracterizavam uma vertente ―pragmática e utilitária‖, qualidades importantes para a ―concepção burguesa‖. A observação e a experimentação tornaram-se aspectos fundamentais, visto que intensificam o domínio do homem sobre a natureza. O curso de filosofia deveria ser concluído em quatro anos, conforme Cunha (1980, p. 50): os novos estatutos da Universidade de Coimbra determinavam que a cada ano se cursaria uma cadeira – com exceção do segundo ano –, na seguinte ordem: ―[...] 1) Filosofia Racional e Moral, 2) História Natural, 3) Física Experimental, 4) Química Teórica e Prática. No segundo ano os estudantes deveriam cursar, além daquela cadeira, a de Geometria Elementar na Faculdade Matemática‖. E os principais autores que constituíam a bibliografia básica do curso de filosofia eram os seguintes: ―Lineu para História Natural; Muskaem Broeck para Física Experimental; e Antônio Genuense para Lógica, Metafísica e Ética‖. Cunha (1980, p. 51) registra que Pombal enviou um ofício ao Reitor da Universidade de Coimbra, em 1773, criticando Antônio Genuense: Logo no Parágrafo Terceiro (escreve o Marquês de Pombal referindo-se às instituições da Lógica e da Metafísica de Genuense) dos Prolegômenos se contém as palavras que vão canceladas por mim; e que creio se podem, e devem omitir na impressão, que novamente se fizer. Porque ainda que vejo neste compêndio se trata somente da Lógica, e não da Metafísica, e que o Estatuto da Universidade impugnou Aristóteles; sempre o nome de um filósofo tão abominável se deve procurar, que antes esqueça nas lições de Coimbra do que se presente ao olhos dos acadêmicos como um atendível Corifeu da Filosofia. Além de que não é tão certo, como Genuense o diz que Aristóteles desse as mais completas Regras desta Arte. Nem isto se pode dizer do tempo de hoje, no qual as regras mais seguras são as que mais se apartam do mesmo Aristóteles. 28 Segundo Alves (2002, p. 15), esse novo plano mudou radicalmente a perspectiva proposta pela Ratio Studiorum, abrindo espaço para a leitura de novas ideias, sobretudo as vindas da França. Explica Ghiraldelli (2009, p. 27) que, no Brasil, o curso de humanidades (estudos inferiores) implantado pelos jesuítas, que equivalia ao ensino médio atual, foi suprimido, sendo colocadas em seu lugar as ―aulas régias‖. Estas aulas eram ―[...] avulsas [...]. Ou seja: os professores, por eles mesmos, organizavam os locais de trabalho e, uma vez tendo colocado a ‗escola‘ para funcionar, requisitavam do governo o pagamento pelo trabalho do ensino‖. Dessa forma, como explica Cunha (1980, p. 52), ―[...] foram criadas, no Brasil, aulas de grego, hebraico, filosofia, teologia, retórica e poética, desenho e figura aritmética, geometria, francês, quase todas independentes, funcionando em locais distintos‖. Por sua vez, Saviani (2011, p. 82) esclarece que, com a reforma dos estudos menores em 1759, havia somente ―[...] disposições relativas ao diretor de estudos e aos professores de gramática latina, de grego e de retórica. [...] o ensino correspondente ao nível secundário‖; portanto, sem o ensino de filosofia. O mesmo autor explica que somente a segunda reforma, em 1772, a qual tratou das mudanças a respeito do ensino das primeiras letras (nível primário), possibilitou a aula régia de filosofia racional e moral por um ano, ensinando lógica e ética para todos os estudantes que visavam ingressar na universidade. A expulsão dos jesuítas do Brasil e a implantação do novo plano de estudos, segundo Cunha (1980, p. 51), não tiveram um bom resultado. Na visão de Fernando de Azevedo, um crítico severo dos jesuítas, toda essa mudança não foi uma reforma de ensino, mas, sim, a destruição do ―sistema colonial do ensino jesuítico‖. Também Alves (2002, p.15) considera que ―o que houve na prática foi o desmonte do que havia de estrutura pedagógica montada pelos jesuítas: escolas, professores, materiais didáticos, livros etc., sem colocar no lugar algo equivalente, no nível estrutural‖. Cartolano (1985, p. 25) diz que essa substituição convocou, pela primeira vez, leigos para ministrar as aulas régias, mas a situação não mudou em suas bases, pois esses professores eram filhos de proprietários rurais formados pelos colégios jesuítas, portanto, continuadores daquela ação pedagógica. Embora parcelado, fragmentário e de baixo nível, o ensino orientou-se ainda para os mesmos objetivos religiosos e livrescos dos jesuítas; realizou-se através dos mesmos métodos pedagógicos, com apelo à autoridade e à disciplina estreitas, tendendo a impedir a criação individual e a originalidade. Quanto ao ensino de filosofia, continuou também no mesmo estilo livresco e escolástico. 29 Em vista do exposto, é razoável imaginar que, de um modo geral, nas aulas régias de filosofia racional e moral, devido à falta de estrutura e de organização e pelo fato de o corpo docente ser constituído de antigos alunos que estudaram segundo o método pedagógico jesuítico, mesmo após a intervenção de Pombal buscando eliminar a influência religiosa do ensino, os textos de filosofia disponíveis eram os mesmos da época dos colégios jesuítas, bem como os compêndios. Quanto aos objetivos a que serviam esses textos, permaneciam também eles subordinados à religião, ainda distantes daquilo que se poderia denominar de formação crítica. Inaugurado em 1800, o Seminário de Olinda – fundado pelo bispo José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho, antigo aluno da Universidade de Coimbra – foi uma opção de estudo que garantia uma certa qualidade à escola secundária no Brasil. O Seminário foi direcionado segundo as reformas de Pombal, fortemente influenciadas pelas ideias iluministas. Alves (1993, p. 12) nos diz que, apesar de o Seminário de Olinda seguir um projeto pedagógico que atende às necessidades burguesas, Azeredo era defensor do absolutismo e da escravidão. O mesmo autor (1993, p. 89) explica que o Iluminismo que se deu em Portugal não tinha as mesmas características do Iluminismo na França. Em Portugal e suas colônias, o Iluminismo se adequou às suas condições históricas. Conforme Alves (1993, p. 65), Azeredo Coutinho afirmava ser concebível compreender o trabalho livre na Europa, [...] onde os trabalhadores expropriados dos meios de produção não tinham qualquer outra alternativa que não a de se assalariarem junto os detentores do capital [...] Isto seria impensável no Brasil, [...] O trabalho livre ensejaria aos negros as possibilidades de adentrarem-se pelo interior do Brasil, cujas terras eram devolutas, e, aí, de iniciarem a restauração da organização social que lhes era peculiar na África. O objetivo de Azeredo Coutinho em defender a escravidão, o tráfico de negros e o absolutismo consistia na restauração da ―antiga grandeza material de Portugal‖. A criação do Seminário de Olinda tem, primariamente, um objetivo econômico, no qual, se expressa explicitamente na obra de Azeredo Coutinho: ―Discurso sobre o estado atual das minas do Brasil‖ (ALVES, 1993, p. 69). O ideal pedagógico do Seminário de Olinda teve um importante papel para o desenvolvimento econômico, visto que o seu projeto pedagógico destaca a questão prática e utilitária da perspectiva burguesa, pois ―quanto maior é o domínio do mundo material, 30 expresso nos recursos de que são dotados os instrumentos, maior é o controle que a burguesia tem de seus negócios‖ (ALVES , 1993, p. 62). O papel do ensino de filosofia foi fundamental para este ideal pedagógico. Saviani (2011, p. 110) nos diz que o plano de estudos do Seminário: [...] concedia um espaço importante para a filosofia na qual ocupava lugar especial a filosofia natural, com os estudos de física experimental, história natural e química. Tudo isso presidido por um espírito primordialmente prático, afastando-se do caráter especulativo de que se revestia o ensino jesuítico de filosofia. De acordo com os Estatutos do Seminário de Olinda (1798, p. 60) o curso de filosofia era dividido em três partes: filosofia racional, filosofia moral e a filosofia natural. A filosofia racional compreendia: a lógica, que dirige as operações do entendimento; a ontologia, que prepara os princípios de todas as ciências; e a pneumatologia, que compreende a ciência dos Espíritos. Esta última se dividia em teologia natural e psicologia, que concorreriam para a formação da metafísica. A filosofia moral corresponderia à ética, tratando sobre os costumes e a moderação das paixões, e sobre a felicidade. E, por fim, a filosofia natural que envolvia tudo o que correspondesse à contemplação da Natureza. O curso durava dois anos, sendo que no primeiro ano estudava-se a lógica, a metafísica, a ética e parte da física experimental. Esta última tratava sobre as questões da mecânica, da hidrostática e dos princípios necessários para a inteligência das máquinas e de suas forças. No segundo ano ensinava-se a história natural por meio de observação dos reinos animal, vegetal e mineral. Para tanto, até mesmo permitia-se que o professor saísse da cidade para que eles tivessem o contato com a natureza (ESTATUTOS, 1798, p. 61). Pode-se notar que em grande parte do programa do ensino de filosofia demonstra a forte presença do saber prático, da experiência e da observação. O Seminário de Olinda objetivava ser uma ―escola de princípios elementares‖ para formar não apenas um ―verdadeiro Ministro da Igreja‖, mas, um ―bom Cidadão‖ e ―indagador da Natureza‖ (ESTATUTOS, 1798, p. 60). Sendo uma escola de princípios elementares, com o principal objetivo de formar bons cidadãos e indagadores da natureza, quais textos seriam adequados a esse ensino? Continuariam com as obras filosóficas adotadas pelo método pedagógico jesuíta, bem como àquelas empregadas no curso de humanidades? Na verdade o principal recurso didático recomendado era o compêndio. Conforme os Estatutos, o professor de filosofia no primeiro ano ensinaria 31 [...] Lojica, Metafizica, e Etica por algum compendio moderno, escolhendo e explicando com clareza sómente as questões uteis, que pertencerem aos conhecimentos umanos, Juizos, Discursos, Critica, Ermeneutica, Ontologia, Psicologia, Teologia Natural, regras, e princípios das asões moraes, virtudes, e ofícios dos ómens, sem difusões, nem perplexidades, que embarasaõ o progresso dos estudos: deve explicar aos seus Dicipulos, que coiza seja método, em que consiste, e em quantas partes se divide; como se descobre a verdade pelo método Analitico; como se ensina, e convence pelo método Sintetico; e que coiza seja método Socratico (ESTATUTOS, 1798, p. 61, grifos nossos). Pelo exposto não há referência sobre a utilização de alguma obra filosófica, apenas o emprego do compêndio moderno. Sendo este recurso um conjunto sumário de um determinado saber para fins pedagógicos, supõe-se que, de maneira geral, são textos segundos, ou seja, textos elaborados – em alguns casos pelos próprios professores - a partir das obras e ideias dos principais filósofos da época. Os compêndios deveriam ser escolhidos e aprovados por uma comissão chamada de ―Congregação Literária‖, e eram, de maneira geral [...] I. Elementares, isto é concisos, sem serem superficiaes; e fecundos sem difuzaõ. II. Sistematicos, isto é bem ordenados nas dispozisões das matérias de que trataõ, e de suas divisões. III. Bem escritos com estilo puro, isto é sem barbarismos, e sem afétasaõ de ornato. Além disto se nos ditos Compendios faltar algum dos Tratados, que nos seus lugares apontamos, poderaõ os Profesores supri-lo, ou extraindo-o de outros Compendios já impresos, ou compondo-o eles mesmo, e dando-o aos Dicipulos para o copiarem depois de ser aprovado pela Cogregasaõ Literaria (ESTATUTOS, 1798, p. 82). Assim, podemos afirmar que, no que se refere aos recursos didáticos, o compêndio tinha um papel elementar, visto que há diversas recomendações a seu respeito, bem como não há qualquer outro recurso recomendado. Além disso, Alves (1993, p. 138,) nos diz que, ―quanto aos conteúdos do curso de filosofia, chama a atenção, de imediato, a dispensa da farta bibliografia de Aristóteles‖. Outro aspecto que devemos mencionar, que consolida a presença do compêndio no ensino de filosofia, refere-se às orientações metodológicas segundo o Estatuto (1798, p. 82): I. Explicar cada uma das difinisões que entraõ no seu Compendio, isto é rezolve-las nas idéas símplices, de que elas se compõem, ilustra-las com exemplos conhecidos, e com aplicações, e cazos particulares, e óbvios: II. Devem analizar cada uma das propozisões do mesmo Compendio, mostrando o que nelas é Teze, e o que é Ipoteze, distinguindo as suas partes determinantes, ilustrando-as com exemplos claros, e descobrindo o 32 nexo, que elas tem com outras propozisões antecedentes, de modo que os Dicipulos fiquem persuadidos da mutua dependencia das verdades, que vaõ aprendendo, e conhesaõ distintamente o uso, que se pode fazer de cada uma delas. Podemos notar que os conhecimentos filosóficos estudados no Seminário de Olinda tiveram influência dos pensadores iluministas. Isso se explica, em grande parte, pelo fato de esta instituição ter sido fundada à luz da concepção de mundo burguesa, voltada para solução de problemas proeminentemente econômicos. Sendo assim, os estudos de filosofia se ocuparam, principalmente da filosofia natural, dedicando-se à observação e à experimentação. Não se encontra nos Estatutos do Seminário de Olinda qualquer orientação sobre o uso de obras filosóficas para o ensino de filosofia, mas sim, o uso do compêndio. De maneira geral, este recurso didático é composto por textos segundos, visto que é um conjunto de saberes sintetizados da filosofia e, em alguns casos, elaborados ou adequado pelos próprios professores. No entanto, é importante mencionar que alguns autores de compêndios incorporam nos seus textos excertos filosóficos. Aliás, o próprio Estatuto do Seminário de Olinda, permite modificações de seu conteúdo. Desse modo, não podemos desconsiderar que alguns autores tenham introduzidos tais fragmentos, assegurando assim, de certa forma, a presença do texto filosófico. É claro que devem ter adotados autores que defendem a ideologia adotada pelo Seminário de Olinda. Mais a frente trabalharemos um pouco mais esta questão. O objetivo dos compêndios modernos consiste, fundamentalmente, na formação do estudante paras as questões práticas e úteis. O contexto econômico de Portugal e suas colônias inspirados no ideário liberal e iluminista, bem como os próprios Estatutos demonstram este propósito. Saviani (2011, p. 113) explica que ―a orientação traduzida nos estatutos elaborados por Azeredo Coutinho vigorou até 1836, quando o novo bispo, Dom João Perdigão, o substituiu por novos estatutos que direcionaram a instituição exclusivamente à formação teológica e ao cultivo da religiosidade‖. Portanto, supõe-se que a ideologia católica-cristã foi retomada na educação do Seminário de Olinda. Período Imperial: a forte presença dos compêndios 33 Em 1808, a sede do reino português foi transferida para a colônia brasileira, em razão do conflito entre as duas potências europeias na época: Inglaterra e França. Portugal apoiou a Inglaterra, pois mantinha com esse país alguns acordos econômicos e comerciais. Com a permanência da corte portuguesa na colônia, D. João VI investiu na sua infraestrutura, construindo espaços importantes que contribuíssem com a formação da população local, como, por exemplo: academias militares, biblioteca, museus, cursos voltados à medicina, à economia, à agricultura, entre outros. No campo educacional, segundo Cartolano (1985, p. 28), o ensino superior era responsabilidade do ―poder central‖, mas o ensino primário e o secundário eram ―regulamentados e promovidos pelas províncias‖. Este quadro mostrava o ―caráter elitista da educação que enfatizava o ensino de 3º grau‖. O Colégio Pedro II (antigo Seminário de São Joaquim), sediado no Rio de Janeiro, única instituição educacional secundária dirigida pelo Império, de acordo com Haidar, organizou seu plano de estudos, dando maior predominância aos estudos literários, das letras clássicas, sem impedir, contudo, a presença dos estudos da matemática, das línguas modernas, das ciências naturais e físicas e de história. Estas deveriam ser cursadas, normalmente, em oito anos. A filosofia constituía as ―tabelas quinta e sexta dos estudos do Colégio, juntamente com retórica e poética, ciências físicas, história, matemática [tabela quinta], e retórica e poética, história, ciências físicas, astronomia e matemática [tabela sexta]‖ (HAIDAR, 1972, p. 140). Em 1841, houve uma reestruturação dos estatutos do Colégio, propondo a duração de sete anos para o curso e redistribuindo as matérias pelas séries. No último ano do curso, explica Haidar (1972, p. 102, grifo do autor), o currículo se tornou verdadeiramente enciclopédico, e as matérias lecionadas eram: ―grego, latim, alemão, inglês, francês, geografia, história, retórica e poética, filosofia, geometria, matemática e cronologia, mineralogia e geologia, zoologia filosófica, desenho figurativo e música vocal‖. Nunes (2000, p. 44, grifos nossos) reforça essa afirmação: Efetivou-se, portanto, um currículo enciclopédico onde os estudos clássicos predominaram e os estudos científicos, apesar de incluídos, não só eram em menor número mas também apareciam reunidos e condensados durante o curso. Na falta de obras nacionais adotaram-se para o estudo das ciências físicas e naturais, da história e geografia e da filosofia compêndios franceses. A obediência fiel e cega aos livros adotados fazia com que, em 1856, nos programas de geologia, por exemplo, se estudassem as particularidades do terreno parisiense e das formações subapeninas e não o solo brasileiro. 34 Cartolano (1985, p. 28, grifos nossos) também assinala esse aspecto enciclopédico do currículo, no que tange à filosofia, pois, ―além do traço propedêutico que marcava o ensino secundário, nas classes de filosofia o que se encontrava era ainda o compêndio clássico aristotélico-tomista do ‗Genuense‘, combatido posteriormente‖. Bastos (2008, p. 48) registra um compêndio francês traduzido e empregado no curso de filosofia racional e moral no Colégio D. Pedro II: ―[...] no programa de 1877, consta a adoção, na disciplina de filosofia, da tradução do compêndio de A. Pellissier – Précis d’un cours complet de Philosophie élémentaire -, realizada por Augusto E. Zaluar, como apostila do professor‖. É razoável supor que pelas palavras de Nunes e Cartolano, o ―fiel e cego‖ emprego dos compêndios no ensino de filosofia ignorou o uso das obras filosóficas em suas aulas. Moraes Filho nos diz que se procurava redirecionar os estudos da filosofia afastando-se da visão aristotélico-tomista do Genuense. Silvestre Pinheiro Ferreira, abandonando a Congregação do Oratório, no Colégio Pedro II, iniciou um curso de filosofia ―a 26 de abril de 1813, publicado sob o título de Preleções Filosóficas sobre a teórica do discurso e da linguagem, a Estética, a Diceósina e a Cosmologia‖. Pretendia com essa obra renovar os estudos filosóficos no Brasil. Além desse livro, publicou também Noções elementares de filosofia geral e aplicada às ciências morais e política, em 1839, no qual ―procurava afastar do ensino oficial o compêndio de Genuense, admitido aqui e além-mar como o livro de texto‖ (MORAES FILHO, 1959, p. 5). Moraes Filho (1959, p. 9) registra alguns nomes de professores e compêndios trabalhados nos cursos de filosofia no Brasil: É curioso registrar os nomes de alguns professores que marcaram época, desta ou daquela maneira, no ensino da filosofia nos liceus e ginásios. Vamos encontrar, em 1818, o padre Diogo Feijó dando aulas de lógica em Itu, no interior de São Paulo e divulgando as ideias de Kant. Na Corte teve grande fama o frei Francisco Mont'Alverne, pregador da capela régia em 1816 e professor no Seminário S. José, onde foi seu aluno Gonçalves de Magalhães. Em 1859 publicou o seu Compêndio de Filosofia, reunindo as lições proferidas no seu curso de 1833. Ainda na Corte, publica Manuel de Morais e Vale, professor da Faculdade de Medicina, um Compêndio de Filosofia para uso dos estudantes, com orientação ecletista e sensista (2 vols., 1851). No ano seguinte vem a lume o Compêndio de Filosofia do bispo do Pará, D. José Afonso de Moraes Torres, também em dois volumes, praticamente traduzindo para o português as lnstitutiones logicac et metaphysicae do jesuíta austríaco Sigismund Storchenau. Na Bahia professava, com grande fama, frei Itaparica, de quem Tobias Barreto ainda foi aluno e dele recebeu forte influência no início de sua carreira de pensador. 35 Franca, na sua obra A filosofia no Brasil7 (...) faz alguns apontamentos em relação a estes compêndios. Por exemplo, no que se refere ao manual de Mont‘Alvene explica que: [...] só possuímos o Compêndio de Filosofia (Rio, 1859), obra póstuma, que, não podendo ser revista nem corrigida pelo autor, saiu sem a última demão literária. Dessa falta de revisão e de lima ressentiu-se gravemente o estilo, a disposição geral das partes e a ordem didática de toda a obra. É por esse único documento que podemos dar uma ideia sumária de suas opiniões (p. 3). Em relação ao compêndio de Manuel de Morais e Vale faz duras críticas: Não teve intenção o autor de propor nele ideias novas ou modificar teorias correntes. Seu intento foi mais modesto: facilitar aos alunos a preparação rápida do exame de admissão às faculdades superiores. As opiniões expostas são as do ecletismo francês do princípio do século: um espiritualismo a braços ainda com o sensualismo de Condillac de que se não conseguiu de todo desvencilhar. O resumidíssimo compêndio do ilustre médico é trabalho de nenhum valor. Falecem-lhe todos os requisitos das obras didáticas deste género: noções exatas, definições precisas, demonstrações claras. Não merece ser lido nem por curiosidade. Perde-se tempo (p. 4). O emprego dado aos compêndios mostra a clara preocupação em preparar os estudantes para os exames de admissão. Esse aspecto, somado a deficiências como as apontadas por Franca, permitem presumir que tais obras, bem como os cursos em que eram empregadas, não visavam propriamente à formação crítica e filosófica dos educandos. Podemos notar que o ensino de filosofia no período imperial fez parte do currículo da educação, tanto no nível secundário, quanto no nível superior. No entanto, essa presença não tinha como objetivo a formação filosófica especificamente, pois, segundo Alves (2002, p. 24), desde o período colonial até o período imperial, esse ensino adquiriu um caráter propedêutico ao ensino superior, sobretudo para os cursos de teologia e os de direito. No que diz respeito às leituras propostas, de maneira geral, eram feitas por meio de compêndios que, em grande parte, tinham forte influência religiosa e/ou, sobretudo, um enfoque enciclopédico. As obras filosóficas, ao que parece, tiveram pouca ou nenhuma presença no ensino de filosofia desse período. 7 Disponível em: <www.cinfil.com.br/arquivos/leonelfranca.pdf>. Acesso em 7 de jan. de 2015. 36 Período Republicano: presença/ausência do ensino de filosofia No final do século XIX, a educação no Brasil tomou novos rumos, em virtude de grandes mudanças que ocorreram a partir de 1889, quando foi instituída a República, sob a influência do movimento positivista. Segundo Ghiraldelli (2009, p. 31), ―o surgimento da República brasileira ocorreu por obra de um movimento militar com apoio variado de setores sociais que lidavam com a economia cafeeira e que estavam, então, descontentes com a política econômica do imperador‖. Muitas reformas contribuíram para a implantação dessas mudanças, porém, a principal delas consistiu na reestruturação das instâncias do poder, o que favoreceu os ideários políticos e ideológicos da República. De acordo com Alves (2002, p. 25), ―as reformas no campo educacional, empreendidas nas primeiras décadas da República, têm esse significado: formar uma nova ‗elite‘ para um novo Estado‖. A educação não era mais prerrogativa da Igreja, o Estado assumiu sua organização e aplicação, sendo agora ela seu principal aparelho ideológico. Benjamim Constant, primeiro ministro da Instrução Pública, foi responsável por garantir a veiculação da ideologia da República. Alves (2002, p. 26) explica que o movimento Entusiasmo pela Educação e otimismo pedagógico, ―que consistia em atribuir importância cada vez maior ao tema da instrução, nos seus diversos níveis e tipos‖, difundiu a ideia de que a educação é fundamental para a transformação da sociedade. No entanto, essa educação não visava à população como um todo, mas sim a elite brasileira, com o intuito de formar grandes líderes para a administração do País. O currículo educacional elaborado por Benjamim Constant e aprovado pelo decreto nº 981, de 8 de novembro de 1890, redistribuiu as matérias, introduziu algumas disciplinas científicas e deixou, pela primeira vez, a filosofia de fora do curso secundário. Segundo Cartolano (1985, p. 34), as alterações se fundamentaram na hierarquia das ciências de Augusto Comte: português, latim, grego, francês, inglês ou alemão (conforme a opção do aluno), matemática, astronomia, física, química, história natural, biologia, sociologia e moral, geografia, história universal, história do Brasil, literatura nacional, desenho, ginástica, evoluções militares e esgrima, música. Ainda de acordo com Cartolano (1985, p. 35), a filosofia não fez parte do currículo porque, segundo a orientação positivista, ela não ―figurava como matéria doutrinal‖. Sua 37 retirada também se tornou um meio para romper com a antiga tradição humanística clássica da Igreja e propor matérias formadoras e não propedêuticas. Para Alves (2002, p. 28), a opção de Benjamim Constant por excluir a filosofia representou ―o início de um processo de presença/ausência da filosofia no novo plano de estudos do Ginásio Nacional‖. O embate entre as duas concepções educacionais: humanidades literárias e humanidades científicas teve forte influência na retirada da filosofia do currículo, pois a perspectiva das humanidades literárias era severamente criticada pela concepção científica, em virtude da suposta ausência do princípio de utilidade. Conforme Nagle (1974, p. 119), aqueles que defendiam um currículo centrado na ciência afirmavam que ―o modelo mais adequado às exigências do mundo contemporâneo é aquele que se constrói à base do princípio de utilidade e proporciona a formação do espírito científico‖. Outro motivo que contribuiu para essa reformulação do currículo, conforme Alves, foi a necessidade de garantir uma hegemonia cultural e ideológica republicana. Era preciso, portanto, combater o ideário da Igreja Católica, que favorecia posições contrárias ao ideário republicano. A filosofia foi vista como suspeita pelos republicanos, principalmente pelos positivistas, pois estava impregnada da ―ideologia católica e da Monarquia, mormente identificada com a concepção do mundo Feudal, de cunho aristotélico-tomista‖ (ALVES, 2002, p. 28). Alves (2002, p. 29) nos diz também que as reformas das três primeiras décadas da República do Brasil, de Benjamim Constant (1890) até Rocha Vaz (1925), giraram em torno da oposição entre o ―espírito literário‖ e o ―espírito científico‖. Excluída pela Reforma Benjamim Constant (1890), a filosofia retorna em 1901, com a Reforma Epitácio Pessoa, reduzindo-se, porém, ao estudo da lógica. Assim afirma Cartolano (1985, p. 47): O Regulamento do Ginásio Nacional (Decreto nº 3.914 de 20-1-1901), que determinou o currículo proposto pelo Código Epitácio Pessoa, introduziu a lógica, no sexto ano do ensino secundário, com três aulas semanais, e retirou a biologia, a sociologia e a moral, acentuando, desse modo, a parte literária. Segundo o artigo 9º, inciso XI, deste Decreto (nº 3.914, de 1901), a lógica tinha o seguinte programa de ensino: [...] no seu domínio real e formal, restringir-se-há ao estudo elementar da marcha effectiva da inteligência humana no descobrimento, demonstração e transmissão da verdade, e ás leis invariaveis que regem os phenomenos intellectuaes, comprehendendo: meditação inductiva, meditação deductiva, classificação das sciencias e methodos correlativos. 38 Observa-se que o desenvolvimento do raciocínio lógico é o principal objetivo da introdução da disciplina, visto que a intenção é desenvolver habilidades cognitivas que capacitem o educando para a compreensão, demonstração e transmissão do conhecimento. Não há qualquer referência à sua formação crítica ou filosófica. Mais tarde, com a Reforma Rivadávia (Decreto nº 8.659, de 1911) que, segundo Cartolano (1985, p. 48, grifo do autor) conferiu ―uma organização mais prática dos programas‖, a filosofia perdeu novamente seu espaço no currículo. Posteriormente, a reforma de Carlos Maximiliano (Decreto nº 11.530, de 1915) propôs o ensino facultativo de filosofia. O parágrafo único do artigo 166 determina que ―haverá um curso facultativo de Psychologia, Logica e Historia da Philosophia por meio da exposição das principaes escolas philosophicas‖ (BRASIL, 1915, art. 116). Conforme Cartolano (1985, p. 48), embora presente no texto legal, na realidade a filosofia inerente a esse curso facultativo teve pouca influência na preparação dos alunos para o ensino superior, pois somente para a prova oral do exame vestibular da Faculdade de Direito é que ela era exigida; no primeiro ano dessa faculdade, a filosofia aparece como cadeira obrigatória. Com a última reforma antes de 1930, o Decreto nº 16.782A, de 1925, conhecido como Reforma Rocha Vaz, o ensino de filosofia voltou a ser obrigatório no quinto e no sexto anos do curso secundário. O artigo 48, parágrafo 3º, determina que ―o ensino da filosofia será geral, embora sumário‖ (BRASIL, 1925, art. 48). Segundo Cartolano (1985, p. 49), O currículo passou a ser acentuadamente enciclopédico, visando a formação do cidadão e não mais o preparo para o ensino superior. Essa ‗formação‘ ideal, contudo, revelou-se inoperante, na medida em que não forneceu aos indivíduos a instrumentação teórica necessária à transformação da realidade, mas, ao contrário, transmitiu-lhes um conjunto de doutrinas (católicas), noções e conceitos destinados a manter a ordem social vigente e os interesses de grupos minoritários e dominantes política e economicamente. Não foram encontrados registros nem indícios de que ao longo de todas essas reformas o texto filosófico tenha sido recomendado ou empregado no ensino de filosofia. Ao que parece, independentemente da forma como se dava a presença da disciplina no currículo, suas aulas ainda giravam em torno dos compêndios. Especificamente em relação à Reforma Rocha Vaz, Cartolano (1985, p. 50) esclarece que ―liquidado‖ o positivismo no Brasil, a Igreja Católica voltou a ganhar forte influência nas escolas secundárias. Sendo 39 assim, ―[...] as doutrinas evolucionistas, o darwinismo e o lamarckismo eram proibidos e em seu lugar, adotados os velhos compêndios jesuítas da famosa série F.T.D8.‖. Em 1929 ocorreu a quebra da Bolsa de Nova York, colocando muitos países em crise. O Brasil foi afetado, principalmente, com sua produção de café, porém a crise estimulou o mercado interno e a industrialização, fazendo com que se relativizasse ―o poder econômico dos cafeicultores‖ e se fortalecessem outros grupos, como a ―burguesia urbano-industrial‖. Destarte, a aristocracia rural foi perdendo sua hegemonia política a partir da Revolução de 30, ao mesmo tempo em que se constituíram e fortaleceram outros grupos econômicos e sociais, o que conduziu Getúlio Vargas, governador do estado do Rio Grande do Sul, à chefia do governo provisório. Cunha (1980, p. 204) considera que o governo de Getúlio Vargas determinou o início de uma nova era na História do Brasil, só terminada em 1945, quando ele foi deposto por um golpe militar. Durante esses 15 anos, Vargas foi presidente da República, primeiro garantido pelas armas das milícias das oligarquias dissidentes e do Exército; depois, eleito pelo Congresso Nacional; e, por último, sustentado pelo Exército, já com o monopólio do uso da força, representando os interesses das classes dominantes. Francisco Campos9 foi escolhido por Getúlio Vargas para assumir o Ministério da Educação e Saúde. Com a crise do modelo ―oligárquico agroexportador‖ e o desenvolvimento industrial, a escola precisava formar cidadãos para este novo contexto social. A Reforma Francisco Campos (1932) dividiu a nova estrutura do curso secundário em dois ciclos: o fundamental, de cinco anos, e o complementar, de dois anos, este último visando à preparação para o ensino superior. Cartolano (1985, p. 57) explica que o ensino de filosofia, como história da filosofia e lógica, fez parte do currículo complementar. O programa da disciplina de lógica foi inspirado pelo ambiente cultural e intelectual da época da Reforma Campos. O ensino secundário deveria ser uma formação na qual o sujeito pudesse ―viver por si e [...] tomar decisões‖. A história da filosofia era obrigatória na segunda série apenas para aqueles que se preparavam para o curso de direito. Já a lógica era ministrada juntamente com a 8 Editora de livros da congregação católica Marista. O significado da sigla FTD refere-se ao nome Frère Théophane Durand. Ele foi superior geral dessa congregação nos anos de 1883 e 1907. Disponível em: < http://www.ftd.com.br/a-ftd/>. Acesso em 16 de mai de 2015. 9 Segundo Ghiraldelli (2009, p. 40), ―[...] um dos reformadores do ensino em Minas Gerais na época do ciclo de reformas estaduais dos anos de 1920, Campos possuía experiência anterior e uma cultura razoável na literatura pedagógica da época [...]‖. 40 psicologia, que visava à preparação para os cursos de medicina, odontologia e farmácia, engenharia, arquitetura e direito. Na Reforma Gustavo Capanema, Decreto n.º 4.244, de 9 de abril de 1942, conforme Cartolano (1985, p. 58), a estrutura educacional continuou com uma visão ―enciclopédica e elitista‖, remanescente da reforma anterior. O ensino secundário mantevese em dois ciclos, sendo um o ginásio, com duração de quatro anos, e o outro, o colégio, com duração de três anos. O ciclo do colégio consistia na divisão de dois cursos: o clássico, que visava à formação intelectual; e o científico, que enfatizava um estudo maior das ciências. A filosofia era disciplina obrigatória no colégio, a partir da segunda e terceira séries do curso clássico e na terceira série do curso científico. O programa do curso de filosofia deveria ser comum aos cursos clássicos e científicos. De acordo com Cartolano (1985, p. 59), pela Portaria n.º 19, de 12 de janeiro de 1946, ―os programas passaram a ser elaborados por comissões designadas pelo ministro da Educação e se caracterizavam por sua respeitável extensão‖. Mais tarde foram elaborados pela congregação do Colégio Pedro II10 em 1951, pela Portaria n.º 966, de 2 de outubro. Cartolano explica que, ―[...] eram menos extensos, devendo, no entanto, ser claros e flexíveis‖. Cartolano (1985, p. 59, grifos do autor) também explicita a finalidade da filosofia: O ensino da filosofia no curso secundário, segundo as ―Breves Considerações Preliminares‖ dos programas de 1951, tinha por finalidade ―coroar a formação cultural e moral‖ dos alunos apresentando-lhes, de modo ―unificado‖ e ―harmonioso‖, o conteúdo do saber humano. Desse ponto de vista, o ensino de filosofia deveria promover a ordem e harmonia dos conhecimentos culturais e morais. Supõe-se que o principal veículo desse ensino continuavam sendo os compêndios, visto que possibilitavam resumir as ideias dos filósofos, sintetizando e unificando o conhecimento cultural de forma enciclopédica. A respeito das orientações dos professores, Moraes Filho (1959, p. 16) explicita que a legítimos professores de filosofia não se aconselham orientações metodológicas no ensino de sua cadeira. Apenas, como sinalação do campo de movimentos nas lições, a demarcar objetivamente os principais caminhos da cultura intelectual do homem através das idades, 10 Determina o artigo 8º da Portaria nº 966 do dia 2 de outubro que ―os estabelecimentos de ensino secundário poderão optar entre o plano de desenvolvimento elaborado pela Congregação do Colégio Pedro II e o organizado pelo Governo do respectivo Estado‖. Aqueles Estados que não tiveram seus planos aprovados de acordo com as determinações previstas ficam sujeitos ao plano do Colégio Pedro II (art. 8º, parágrafo único). 41 recomenda-se, neste curso, que se parta sempre da notação histórica dos problemas, na análise inteligente e estudo imparcial dos argumentos e das soluções que os vários sistemas e escolas têm apresentado e discutido. No que diz respeito ao programa do curso de filosofia, Moraes Filho (1959, p. 16) transcreve o seguinte: CURSO CLÁSSICO — 2" série. Introdução — Objeto e importância da filosofia. Sua divisão. Lógica — I — Definição; objeto; sua divisão; definição da lógica. II — Os fatos gerais do pensamento; sua expressão; ideia e termo; juízo e proposição; raciocínio e delogramo. III — Os métodos — recursos e processos lógicos na inquirição da verdade científica; metodologia científica; método da matemática; das ciências descritivas; das ciências físico-químicas; das ciências biológicas; das ciências morais; da psicologia; da sociologia. IV — Problemas — Os princípios de razão; verdade e certeza; a ciência e o espírito científico. V — Causalidade, determinismo e indeterminismo; conceito de lei natural; indeterminismo em física e biologia. 3ª série — Estética — I — Definição — A arte; objeto da estética, como produto de seleção e aprimoramento do gosto; os valores estéticos; o trabalho humano e o trabalho artístico; a classificação qualitativa das artes. II — Problemas. O belo e o gosto artístico. Psicologia — I — O fato psíquico; II — O método em psicologia; III — A sensação; IV — A intelecção; V — A volição; VI — A consciência psicológica; VII — O Eu. Moral e Sociologia: I — O problema da moral; a dignidade da pessoa humana — a consciência moral. II — Teorias de moral — resumo histórico das doutrinas; responsabilidade; sanção. III — Os grupos humanos — a civilização e os quadros institucionais da sociedade; família e casamento, deveres e direitos dos pais; sociedade; Nação; Estado. IV — Panorama da vida social em desenvolvimento — a vicia urbana e a vida rural — o trabalho, a produção. a distribuição e o consumo das utilidades — o ensino e a educação — função das instituições culturais no progresso do país. V — Problemas ético-sociais — Propriedade e capitalismo — condições de trabalho — Economia, sociologia e moral — O problema religioso. No programa do curso científico, Moraes Filho (1959, p. 17) revela que não há a quinta unidade e se repetem as quatro primeiras. A psicologia e a estética reduzem-se a: o fato psíquico - o método em psicologia; a consciência psicológica; o Eu; o belo e o gosto artístico. Também se inclui um estudo geral de Cosmologia e, no que se refere à Moral e Sociologia, o programa permanece idêntico ao curso clássico, porém sem a unidade II do programa. O objetivo de Capanema para o ensino da filosofia, segundo Cartolano (1985, p. 60), era formar ―nos adolescentes uma sólida cultura geral, acentuando neles a consciência patriótica e a consciência humanística‖. Nesse sentido, deveria colaborar com a educação moral e cívica e responder ―às solicitações da realidade social, política e cultural da época, 42 contribuindo, de sua parte, para a inculcação de uma certa concepção de mundo, aceita e defendida pelo grupo que estava no poder‖. Não foram encontrados registros do emprego de textos filosóficos no período da reforma Capanema. Na realidade, o objetivo da educação moral e cívica parece mais compatível com o emprego de compêndios especificamente confeccionados para este fim. Vale mencionar, no entanto, que alguns compêndios incorporavam excertos das obras filosóficas. O compêndio de filosofia de Estevão Cruz (1946, p. 488), elaborado de acordo com o Programa Oficial de Ensino, segundo o decreto nº 19.890 de 18 de abril de 1931 é um exemplo. O excerto a seguir citado trata-se sobre a moral, segundo Kant: Diz Kant que ‗os conceitos morais são inteiramente a priori; têm a sua fonte e sua sede unicamente na razão... A moral não aceita absolutamente nada do conhecimento do homem...; deve pois tratar-se more geométrico, independentemente de qualquer dado psicológico...Uma vez estabelecido o princípio da obrigação, todo o resto da moral se deduz pela simples análise dos conceitos de lei racional e obrigação‘ Outro exemplo é o compêndio do padre Leonel Franca (1969, p. 185), tratando sobre Shopenhauer, apresenta alguns trechos de sua obra: O prazer positivo é uma ilusão e a felicidade uma quimera. ‗A verdade é que nós devemos ser miseráveis e o somos‘. ‗A vida é uma senda de carvões em brasa apresentando, de onde em onde, raros pontos de refrigério‘. Como alívio às desventuras da vida, Shopenhauer inculca o estudo da arte, o cultivo da simpatia, e sobretudo, a negação do querer viver, o nirvana dos budistas . Franca (1969, p. 8, grifos nossos) explica que o registro de alguns excertos e citações de algumas obras em seu compêndio exprimi a intenção de colocar em contato o estudante com a obra: Não foi nosso intento prestar serviços a especialistas familiarizados com os grandes repertórios bibliográficos. Desejamos apenas levar ao conhecimento dos principiantes alguns dos trabalhos históricos que desenvolvem ou aprofundam o que, num compêndio elementar, só nos foi permitido acenar muito resumidamente. Podemos considerar que, de maneira geral, o texto filosófico se fez presente por meio de fragmentos espalhados em alguns compêndios. Levando-se em conta os objetivos das reformas, os quais, em grande parte, referiram-se à moralização cívica e/ou religiosa e a transmissão do conhecimento geral humanístico, bem como as considerações de Franca, pode-se perceber que a presença dos excertos filosóficos não objetivava a formação crítica 43 do estudante, no sentido de uma formação que capacite o sujeito a questionar a sua realidade e propor mudanças. Com a lei n. 4.024, de 1961 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) (BRASIL, 1961), o ensino de filosofia perdeu seu caráter de disciplina obrigatória e passou a ser uma disciplina complementar indicada para o 2º ciclo. Cabia aos Conselhos Estaduais escolher as disciplinas complementares, bem como as optativas. No conjunto das disciplinas optativas, a filosofia aparecia como lógica. Sua presença como disciplina complementar foi justificada pelo fato de ser um ―instrumento de lógica‖, do raciocínio, e proporcionar uma ampla visão dos problemas (CARTOLANO, 1985, p. 64-66). Cartolano (1985, p. 66, grifo do autor) também explica que o texto da Resolução nº 7/63 coloca a filosofia como uma espécie de ―superdisciplina‖ ou de um ―super-saber‖, sendo que a metafísica deveria ser o campo dos problemas mais importantes a ser estudados, ou seja, os ―problemas concretos que emergem da realidade social, econômica e política, e que deveriam ser objeto de reflexão da atividade filosófica, não são vistos como ‗decisivos‘‖. Como se pôde observar, no período analisado neste tópico o ensino de filosofia passou por várias mudanças, a partir das reformas educacionais que se sucederam: em algumas, foi garantida sua obrigatoriedade; em outras, apareceu como matéria opcional; e em outras, ainda, foi excluída do ensino secundário. Segundo Alves (2002, p. 34, grifo do autor), nesse período, ―a situação da filosofia na escola secundária nacional caracterizou-se por uma presença indefinida no currículo‖. No que diz respeito aos textos empregados nas aulas de filosofia, o enfoque enciclopédico dado à disciplina parece ter favorecido a predominância dos compêndios e o abandono dos textos filosóficos, exceto na forma de pequenos excertos inseridos em alguns desses compêndios. Além disso, o objetivo da disciplina ora propedêutico, ora de aprimoramento da capacidade lógica, ora de formação moral e cívica, de fato não exigia o contato direto e profundo com a obra dos filósofos. O que estava em jogo não era a formação filosófica propriamente dita dos educandos, nem sua capacitação para refletir criticamente sobre os problemas da realidade, mas sim a adequação da educação e, particularmente do ensino de filosofia, às necessidades do contexto histórico, político e econômico à quais cada reforma educacional procurou responder à sua maneira. . 44 Período Ditatorial pós-1964 e a redemocratização: o livro didático O golpe civil-militar de 1964, que implantou um regime de exceção no país, também reestruturou o sistema educacional, pautando-se principalmente na Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento e no tecnicismo pedagógico. Essa reestruturação foi efetivada por meio de inúmeros decretos e, principalmente, pela Lei 5692/1971, que instituiu a profissionalização compulsória no nível médio. O currículo passou a ser dividido em duas partes, uma denominada de ―núcleo comum‖, composta por disciplinas obrigatórias em todo o território nacional, e outra chamada de ―parte diversificada‖, cujas matérias seriam escolhidas pelos estados com base em suas peculiaridades regionais. Nesse cenário, a filosofia que não era profissionalizante, acabou relegada à parte diversificada, tornando-se, portanto, disciplina facultativa. A rigor, portanto, seu ensino não foi formalmente eliminado, mas diversos mecanismos dificultavam ou mesmo impediam a inclusão da disciplina. Além da profissionalização compulsória, já mencionada, a obrigatoriedade de Educação Moral e Cívica e de Organização Social e Política do Brasil não deixavam espaço no currículo para a opção das escolas por outras disciplina humanísticas. Acrescente-se a isso certa suspeita que a filosofia levantava quanto ao seu possível caráter questionador e até subversivo, o que obviamente não interessava ao regime de exceção. Na prática, portanto, a reforma do ensino promovida no regime militar representou a eliminação do ensino de filosofia do nível médio. É possível que algumas escolas – possivelmente privadas – tenham mantido a disciplina em suas grades curriculares. Não foram encontrados registros, porém, de recomendações quanto aos textos a serem empregados nesses casos. Com a promulgação da lei n. 7.044/82, que alterou o disposto da lei n. 5.692/71, as escolas ficaram desobrigadas de garantir a habilitação profissional aos estudantes. Sendo assim, conforme Alves (2002, p. 46, grifos do autor), as disciplinas da parte diversificada passaram a ser consideradas, então, sob outro prisma, ganhando destaque aquelas que forneciam uma formação mais geral em detrimento das disciplinas de formação específica. Isto deu condições para que espaços fossem abertos para a volta da filosofia ao currículo como disciplina optativa, porém, desta vez em caráter real e não fictício, como na lei n. 5.692/71. A promulgação da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), lei n. 9.396/96 (BRASIL, 1996) ainda deixou confusa a presença da filosofia no currículo. Segundo a LDBEN (BRASIL, 1996, art. 36, § 1º, inciso III), ―os conteúdos, as 45 metodologias e as formas de avaliação serão organizados de tal forma que ao final do ensino médio o educando demonstre: [...] o domínio dos conhecimentos de filosofia e de sociologia necessários ao exercício da cidadania‖. Alves (2002, p. 55) afirma que este trecho não ―[...] deixa claro como isto se dará concretamente nas escolas, se como disciplina ou diluída nas outras áreas como tema transversal, projetos etc.‖. No que se refere aos conteúdos, as metodologias e as formas de avaliação, grande parte dos professores de filosofia, utilizava livros didáticos. Desde a década de 1980, explica Gallo (2012, p, 144), as editoras vinham procurando suprir a demanda do ensino de filosofia na produção destes livros que, de maneira geral, apresentam ―[...] quadros explicativos, quadros sinóticos, explicação de conceitos, propostas de atividades para os alunos, propostas ao professor sobre como trabalhar determinados assuntos, quadros cronológicos de filósofos e ideias, bem como sugestões de leituras complementares‖ (GALLO, 2012, p. 44). De modo geral, os antigos compêndios de filosofia apenas abordavam o resumo das ideias filosóficas propostas, bem como algumas poucas questões para a compreensão. O livro didático, em geral, tem enriquecido o seu conteúdo sugerindo diversos recursos para a leitura e atividades, tanto do professor quanto do educando. Destaca-se o fato de que boa parte deles traz excertos filosóficos, dando ao educando acesso direto a alguns dos principais pensadores. Isso acrescenta rigor ao conteúdo apresentado e, ainda, pode estimular o leitor a recorrer à obra completa. Acompanhado destes excertos muitos livros didáticos propõem atividades que ajudam na compreensão e reflexão. Em 2006, com o Parecer CNE 38/2006, a filosofia tornou-se disciplina obrigatória no currículo das séries do ensino médio. Com base neste parecer, aprovou-se a lei 11.684, assinada pela Presidência da República em junho de 2008. Com os PCNEM (1999), os PCN+ (2002) e as OCEM (2006), surgiram orientações mais diretas sobre o uso do texto filosófico nas aulas de filosofia. A esse respeito discorreremos no segundo capítulo. Conclusão Pelo exposto pode-se concluir que, no decorrer da história do ensino de filosofia no Brasil, o compêndio foi o principal recurso literário utilizado, exceto, talvez, no período jesuítico em que se liam textos dos próprios filosóficos, sobretudo Aristóteles e São Tomás de Aquino, devidamente censurados e expurgados. Em geral, os compêndios eram 46 elaborados por renomados professores brasileiros – na maioria, padres; ou eram trazidas do exterior, sobretudo de autores franceses, estruturadas de forma enciclopédica e, em muitos casos, ainda com forte influência religiosa ou voltadas parar a educação moral cívica. Os compêndios apresentavam uma perspectiva histórica ou temática da filosofia, resumindo as principais ideias dos clássicos filósofos da tradição. Em alguns casos, esses manuais traziam fragmentos de textos filosóficos como recurso complementar. Os livros didáticos contemporâneos também se estruturam dessa forma, distinguindo-se, porém, pela diversidade de atividades e questões propostas. Moraes Filho (1959, p. 21) critica ao modelo enciclopédico do ensino de filosofia, bem como os recursos aos compêndios. Segundo o autor, o ensino secundário de filosofia no Brasil, ―[...] como de resto acontece no próprio nível superior, reveste-se êle de acentuado cunho enciclopédico. Compartilham de seus programas conteúdos de outras disciplinas, inclusive dos antigos programas de Instrução Moral e Cívica‖; também destaca que nesse ensino ―reside excesso de dogmatismo e tradicionalismo que o envolve. Nada mais perigoso e mortal para o pensamento filosófico do que o dogmatismo, a ausência de exame crítico‖ (MORAES FILHO, 1959, p. 25). De fato, as influências dogmáticas da religião e do civismo, os extensos programas, a preocupação com a memorização, entre outros aspectos que caracterizavam esses textos, contribuíram para a descaracterização do ensino de filosofia como um espaço de reflexão crítica. O cuidado em preservar a especificidade da filosofia era outra preocupação de Moraes Filho (1959, p. 26): Contato de espíritos livres, em atmosfera de livre debate e de reflexão crítica, deve a filosofia procurar tornar-se cada vez mais uma ciência rigorosa, exata, como já em 1807 pregava e queria Hegel, abandonado esta vaga e nebulosa inquietação poética e literária, simplesmente amadorista [...]. A esse respeito, o autor também menciona Husserl, para quem é fundamental que se reconheça ―[...] o caráter científico, próprio, distinto do conhecimento filosófico, que não se confunde com o científico, com o técnico, com o artístico, com o jurídico, nem com a vagamente nebulosa concepção do mundo e da vida‖ (MORAES FILHO, 1959, p. 26). Para garantir esta singularidade da filosofia, o autor destaca que se torna necessário estudar os textos dos próprios filósofos. No entanto, por falta de tempo, em meio a vários e absorventes deveres de outras disciplinas, às vezes também por falta de vocação autêntica, a verdade é 47 que os estudantes se contentam com a palha seca dos compêndios ou das apostilas de aula, sem coragem ou aptidão para o comércio direto com as obras marcantes da história do pensamento humano. E sem invencível curiosidade e livre espírito crítico não há filosofia possível (MORAES FILHO, 1959, p. 26). Ora, os entraves ao contato com o texto filosófico, identificados por Moraes Filho em sua época, não apenas permanecem atuais, como também foram agravados por novos problemas que acometem a educação brasileira contemporânea. Cumpre, portanto, examinar se e de que maneira é possível, nas condições atuais, empregar textos filosóficos com os estudantes do ensino médio. À primeira vista, dado o quadro atual da educação brasileira, pode-se inferir que tal emprego representará um grande desafio para os professores e os estudantes. Antes de adentrar nesse debate, porém, cumpre examinar como o texto filosófico é tratado pelas principais leis da educação que regulamentam o ensino de filosofia no Brasil. É o que será feito no capítulo seguinte. 48 CAPÍTULO II - O PAPEL DA FILOSOFIA E DO TEXTO FILOSÓFICO NA LEGISLAÇÃO EDUCACIONAL Neste capítulo analisaremos as finalidades atribuídas pela legislação à filosofia e ao texto filosófico no nível médio. As questões que nortearam o desenvolvimento desta etapa da pesquisa podem ser formuladas nos seguintes termos: na visão oficial, que fins são atribuídos à filosofia como disciplina do ensino médio? Que lugar é reservado ao texto filosófico e como se espera que ele contribua para a consecução desses fins? A legislação analisada inclui: os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio (PCNEM), as Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN+) e, por fim, as Orientações Curriculares para o Ensino Médio (OCEM). Tais documentos foram selecionados porque representam referências legais importantes na organização educacional do País e, naturalmente, também no que tange ao ensino de filosofia. 1. O papel da filosofia e do texto filosófico nos PCNEM Inicialmente faremos uma breve exposição da estrutura dos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio, no que diz respeito ao ensino de filosofia, procurando caracterizar a concepção desse ensino na perspectiva desse documento. Em seguida, analisaremos o papel ali conferido à disciplina e ao texto filosófico. O ensino de filosofa e os PCNEM de Ciências Humanas Tendo sido publicados anteriormente à lei 11.684, de 2008, que alterou o inciso III, do Artigo 36 do §1 da LDBEN, tornando obrigatória a inclusão de filosofia e sociologia no ensino médio, PCNEM de Ciências Humanas, no que se refere ao ensino de filosofia, ainda se baseiam no texto original daquele inciso que determinava que o currículo do ensino 49 médio assegurasse ―o domínio dos conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania‖. Um dos primeiros aspectos que o documento aponta para mostrar a relevância das ciências humanas e da filosofia é o fato de que a sociedade tecnológica, bem como o seu sistema produtivo, exigem do sujeito não somente uma formação específica, técnica, mas também uma formação geral, ―inclusive em sua dimensão literária e humanista‖. Talvez por esse motivo, segundo os PCNEM, criaram-se condições para que ―[...] a nova educação brasileira pudesse prescrever, tanto à Filosofia quanto às Ciências Humanas, as atribuições pedagógicas com que hoje são apresentadas na lei 9.394/96 e suas regulamentações‖ (BRASIL, 1999, p. 327). O documento, no que tange ao Artigo 35, em que se caracterizam as finalidades do ensino médio, considera importante a contribuição da filosofia para o cumprimento dessas finalidades: ―Há, com certeza, uma contribuição decisiva da Filosofia para o alcance dessas finalidades: ela nasceu com a declarada intenção de buscar o Verdadeiro, o Belo, o Bom [...]. Mais do que nunca, filosofar é preciso‖ (BRASIL, 1999, p. 328). Com base no revogado inciso III, acima referido, os PCNEM tratam dos conhecimentos dos quais o aluno, ao final do ensino médio, deve demonstrar domínio: ―conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania‖; enfatizam a importância dos conhecimentos filosóficos em ―promover, sistematicamente, condições indispensáveis para a formação de cidadania plena‖ (BRASIL, 1999, p. 328, grifo do autor). No entanto, admite-se que tais conhecimentos, embora relevantes para tal finalidade, não são suficientes. A interdisciplinaridade é ―eixo estruturante a ser privilegiado em toda formulação curricular‖ (BRASIL, 1999, p. 329) e, segundo a Resolução 03/98, §2º, alínea b do Artigo 10: ―as propostas pedagógicas das escolas deverão assegurar tratamento interdisciplinar e contextualizado para os conhecimentos de filosofia‖. Há algumas questões importantes que os PCNEM esboçam e que ―podem auxiliar na contextualização mais adequada dos conhecimentos filosóficos no Ensino Médio‖. Como ponto de partida, são levantadas três questões: ―(a) quais conhecimentos são necessários? (b) que Filosofia? e (c) de que aspectos deve-se recobrir a concepção de cidadania assumida como norte educativo?‖ (BRASIL, 1999, p. 329). A respeito da questão sobre que filosofia, o documento destaca a variedade de correntes filosóficas existentes. Desse modo, considera que não devemos falar em Filosofia, mas em filosofias. Assim, a escolha por um sistema dependerá da perspectiva do indivíduo: 50 ―Alguém acolhe uma maneira de filosofar porque a considera correta e heuristicamente (isto é, do ponto de vista de sua fertilidade conceptual) proveitosa‖ (BRASIL, 1999, p. 330). No entanto, nenhuma das filosofias pode abandonar o seu aspecto racional. Portanto, diante da multiplicidade de linhas e orientações filosóficas, ―[...] a especificidade da atividade filosófica consiste, em primeiro lugar, em sua natureza reflexiva‖ (BRASIL, 1999, p. 330, grifo do autor). Essa ―natureza reflexiva‖ é dividida em duas dimensões: a ―reconstrução (racional) e a crítica‖. Almeida (2011, p.108) esclarece bem essas dimensões: A ―reconstrução racional‖ se refere ao agir filosófico, no sentido de clarear e esclarecer a nossa própria racionalidade adquirida na ―[...] medida que nos exercitamos num dado sistema de regras‖ (idem, ibidem). Trata-se de superar o ―saber pré-teórico‖ com o qual fazemos uma leitura pré-filosófica do mundo. A ―crítica‖ se refere especificamente à tentativa de superar, por meio da análise filosófica, toda visão pré-concebida e parcial do mundo que oriente e restrinja nossa ação e percepção dele, fruto de nossa própria vivência social. Diante das diversas perspectivas pelas quais a filosofia pode ser assumida, o documento afirma que a escolha feita pelo docente dependerá da sua formação e linha de estudo. ―Em suma, a resposta que cada professor de Filosofia do Ensino Médio dá à pergunta (b) ‗que Filosofia?‘ decorre, naturalmente, da opção por um modo determinado de filosofar que ele considera justificado‖ (BRASIL, 1999, p. 331). É importante que o professor faça essa escolha, porque terá mais condições e propriedade para fundamentar e discutir as possíveis questões trabalhadas, dando, assim, mais credibilidade e rigor à aula. Na questão sobre os aspectos segundo os quais é concebida a cidadania, primeiro o documento deixa claro que a formação cidadã pode ser vista como uma finalidade síntese da Educação Básica, ―a qual não dispensa o contexto do trabalho como sentido prático para sua realização‖ (BRASIL, 1999, p. 331). Ou seja, a noção de cidadania está associada ao mundo do trabalho. Não se trata de um fim atribuído exclusivamente à filosofia, mas a toda a Educação Básica. Cabe, no entanto, questionar o tipo de cidadania pretendido. Para tentar delinear essa resposta, tomam-se como ponto de partida os valores referidos na lei 9.394/96, conforme disposto no artigo 2º da Resolução Nº 03/98: I – os fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de respeito ao bem comum e à ordem democrática; II – os que fortaleçam os vínculos de família, os laços de solidariedade humana e de tolerância recíproca. Os PCNEM afirmam que esses valores, ―nucleados a partir do respeito comum e da consciência social, democrática, solidária e tolerante, permitem identificar mais 51 precisamente a concepção de cidadania que queremos para nós e que desejamos difundir para os outros‖ (BRASIL, 1999, p. 332, grifo do autor) e abarcam três dimensões distintas: estética, ética e política. Do ponto de vista estético, a cidadania consiste na capacidade de conhecer a si mesmo e na abertura à diversidade (sensibilidade). Do ponto de vista ético, a cidadania consiste na consciência e na atitude de respeito universal e liberdade na tomada de posição (identidade autônoma). Na perspectiva política, a cidadania consiste no reconhecimento dos direitos humanos, na prática da igualdade de acesso aos bens naturais e culturais, na atitude tolerante e no protagonismo na luta pela sociedade democrática (participação democrática) (BRASIL, 1999, p. 332). Em relação às competências e habilidades associadas ao ensino de filosofia, o documento relaciona seis: 1) ―ler textos filosóficos de modo significativo‖; 2) ―ler, de modo filosófico, textos de diferentes estruturas e registros‖; 3) ―articular conhecimentos filosóficos e diferentes conteúdos e modos discursivos nas ciências naturais e humanas, nas artes e em outras produções culturais‖; 4)―contextualizar conhecimentos filosóficos, tanto no plano de sua origem específica quanto em outros planos: o pessoal-biográfico; o entorno sócio-político, histórico e cultural; o horizonte da sociedade científicotecnológica‖; 5) ―elaborar, por escrito, o que foi apropriado de modo reflexivo‖ e 6) ―debater, tomando uma posição, defendendo-a argumentativamente e mudando de posição face a argumentos mais consistentes‖ (BRASIL, 1999, p. 334). No que se refere à competência ―ler textos filosóficos de modo significativo‖ é importante mencionar que os PCNEM não explicitam se concebem o texto filosófico como o texto primeiro, o texto do filósofo, mas, por fazer alusão à tradição filosófica como referência ao conteúdo da filosofia, entende-se, implicitamente, que se trata desse tipo de texto, como veremos adiante.. Uma das primeiras dificuldades apontadas consiste na seleção de conteúdos, pois, na filosofia, diversas dimensões podem ser trabalhadas: a natureza, a arte, a linguagem, a moral, o conhecimento etc. Também há várias possibilidades de perspectivas filosóficas em que essas dimensões podem ser abordadas, diferentes sistemas, correntes, tradições etc. Para resolver essa questão, o documento recorre à própria natureza da atividade filosófica, afirmando que, ―para além do conteúdo concreto a ser ensinado, o que está em questão é, antes, a necessidade de tornar familiar ao estudante um modo de pensar que aponta, precipuamente, para os pressupostos daquilo que é aparente‖ (BRASIL, 1999, p. 334). De acordo com os PCNEM, considerando que todos os conteúdos filosóficos são discursos, o principal objetivo do ensino de filosofia consiste na formação do estudante no 52 desenvolvimento de uma competência ―discursivo-filosófica‖. Nesse sentido, o fato de que ―[...] tenha se apropriado significativamente de um determinado conteúdo filosófico significa, ao mesmo tempo, que ele se apropriou conscientemente de um método de acesso a esse conteúdo‖ (BRASIL, 1999, p. 334). A competência de leitura significativa de textos filosóficos refere-se, primeiramente, à ―capacidade de problematizar o que é lido, isto é, apropriar-se reflexivamente do conteúdo‖ (BRASIL, 1999, p. 335, grifo do autor). Esta apropriação só é garantida da seguinte forma: [...] o plano geral de trabalho deve concentrar-se na promoção metódica e sistemática da capacidade do aluno em tematizar e criticar, de modo rigoroso, conceitos, proposições e argumentos, valores e normas, expressões subjetivas e estruturas formais. Somente o desenvolvimento dessa capacidade é que pode indicar que o aluno se apropriou de um modo de ler/pensar filosófico-reflexivo (BRASIL, 1999, p. 335, grifo do autor). Portanto, o educando só conseguirá compreender, analisar e problematizar um texto filosófico se ele apropriar-se de um método que lhe proporcione tais competências, caso contrário, a leitura não será significativa. O documento admite que ―o filosofar não se produz no vácuo‖: necessita de ―textos e discursos concretos‖. O desenvolvimento, pelo estudante, da competência da ―leitura filosófica‖ só é possível se ele se familiariza com o universo específico da filosofia, apropriando-se ―de um quadro referencial a partir dos conceitos, temas, problemas e métodos conforme elaborados a partir da própria tradição filosófica. Nesse sentido, a competência aqui referida é bem clara‖ (BRASIL, 1999, p. 335, grifos do autor). A alusão à ―tradição filosófica‖ parece sugerir a possibilidade do emprego de textos primeiros, embora isso não seja explicitado. O documento não se posiciona sobre quais tipos de materiais devem ser usados no ensino da filosofia. Apenas propõe que esse ensino se paute na tradição filosófica. Entretanto, ―[...] isso não resolve ainda o problema prático de que conteúdos devam ser ministrados, que metodologias e que tipo de material didático devem ser utilizados‖ (BRASIL, 1999, p. 337, grifo nosso). Para a escolha dos conteúdos da filosofia, são apresentados alguns possíveis caminhos: ministrar as aulas, tendo a história da filosofia como centro e, se necessário, privilegiar um aspecto desse conteúdo; adotar linhas temáticas: liberdade, política, ideologia, trabalho, linguagem, entre outros; trabalhar as áreas de investigação filosófica, 53 como: filosofia da linguagem, filosofia da natureza, filosofia da ciência etc. Independentemente da escolha do professor, ―devem-se ter critérios muito claros na escolha que se fizer deles para o cotidiano pedagógico. Um deles, [...] será o ponto de vista filosófico do professor, conjugado à sua formação cultural. Outro, [...] [a] capacidade de leitura dos alunos‖ (BRASIL, 1999, p. 336). É importante destacar que, ao selecionar um texto filosófico, o professor deve levar em conta a competência leitora de seus educandos e elaborar estratégias metodológicas que auxiliem na sua compreensão e análise. O professor também deve ter cuidado quanto ao risco de duas possíveis distorções: a primeira, se as aulas acabarem se constituindo num espaço de discussão que se mantém no nível do senso comum, ou seja, as aulas podem não favorecer a reflexão rigorosa e crítica sobre os assuntos tratados, fazendo com que os alunos permaneçam numa abordagem ingênua e superficial. A outra distorção se o professor pretender formar especialistas em filosofia, produzindo aulas de nível similar ao universitário. Tanto um encaminhamento quanto o outro desvirtuam o objetivo da filosofia no ensino médio. É preciso [...] cuidado redobrado com respeito às metodologias e materiais didáticos, levando sempre em conta as competências de que os alunos já dispõem e o que é necessário para introduzi-los significativamente no filosofar. Esse zelo metodológico se justifica na medida em que nem se pode ter a veleidade de pretender formar filósofos profissionais e nem se deve banalizar o conhecimento filosófico. Ambos os equívocos esvaziam o sentido e invalidam a pertinência da Filosofia no Ensino Médio (BRASIL, 1999, p. 337, grifo do autor). O documento esclarece que não banalizar o ensino de filosofia ―[...] significa não falsear ou trivializar o sentido de um pensamento filosófico [...]‖; por sua vez, não formar filósofos profissionais baseia-se no ―[...] pressuposto de que o Ensino Médio não deve ser uma transposição reduzida de qualquer currículo acadêmico‖ (BRASIL, 1999, p. 337). O mesmo cuidado deve se dedicar ao trabalho com textos filosóficos: não banalizálos nem utilizá-los de modo academicista. É indispensável selecionar textos - na íntegra ou excertos –, mais adequados às condições do estudante, a fim de possibilitar sua leitura, compreensão e problematização. Caso contrário, perder-se-ão os objetivos associados ao emprego desses textos. Além disso, é importante destacar que a maior ou menor dificuldade apresentada por um texto filosófico depende também da maneira como o docente o trabalha em aula. 54 Portanto, para ler textos filosóficos de modo significativo é preciso adquirir a competência discursivo-filosófica, que se dá por meio de um método que possibilite ao estudante ―tematizar e criticar, de modo rigoroso, conceitos, proposições e argumentos, valores e normas, expressões subjetivas e estruturas formais‖ (BRASIL, 1999, p. 335). O documento não explicita que metodologia deve ser empregada, no entanto, afirma ser indispensável que o estudante se aproprie de um quadro referencial a partir da própria tradição filosófica, o que, novamente, acena para a possibilidade do emprego de textos primeiros. A segunda competência, das seis relacionadas pelos PCNEM para a Filosofia, ―ler, de modo filosófico, textos de diferentes estruturas e registros‖, trata da capacidade de ler ―filosoficamente, textos estruturados a partir das configurações discursivas próprias das diferentes esferas culturais‖ (BRASIL, 1999, p. 338). O que seria essa leitura filosófica sobre textos de diversas esferas culturais? Significa que o estudante deve ter um olhar ―analítico, investigativo, questionador, reflexivo, que possa contribuir para uma compreensão mais profunda da produção textual específica que tem sob as vistas‖ (BRASIL, 1999, p. 338). Portanto, a leitura filosófica, em primeiro lugar, consiste numa postura profundamente crítica do leitor, e, ademais, essa leitura não se limita aos conteúdos filosóficos, podendo estender-se aos mais variados registros. Fazer com que o estudante tenha esse olhar crítico sobre diversos outros textos exige dele um ―quadro mínimo de referência‖, - disponibilizado, principalmente, pelo professor, mas não exclusivamente, a fim de motivar o gosto pela pesquisa - baseado no repertório dos saberes da filosofia. Isso, porém, não é suficiente, pois, de maneira geral, é preciso que ele tenha conhecimentos prévios de outros saberes culturais, como sugerem os PCNEM (BRASIL, 1999, p. 338): [...] como entender e avaliar filosoficamente uma obra de arte como um filme autoral, por exemplo, sem o recurso a todo um conjunto de outras referências culturais, sem as quais o filme pode não fazer nenhum sentido? Como problematizar o método científico, sem o conhecimento prévio de alguns modos e procedimentos usuais da pesquisa científica e de como eles são historicamente constituídos? Portanto, é fundamental que o professor avance além daquilo que faz parte do universo filosófico. ―Nesse sentido, é possível compor um programa de trabalho centrado primordialmente nos próprios textos da tradição filosófica, mas não exclusivamente neles‖ (BRASIL, 1999, p. 338, grifos do autor). Ora, admitindo que ―textos da tradição filosófica‖ sejam os textos primeiros, observa-se nessa passagem que os PCNEM lhes conferem 55 caráter primordial, embora não exclusivo. O raciocínio parece ser o seguinte: o aluno aprende a ler filosoficamente lendo textos filosóficos (primeiros) com a devida orientação metodológica. Como, porém, espera-se que aprenda a ler filosoficamente também outros tipos de textos, o trabalho pedagógico não deve se limitar ao emprego dos primeiros. Esse aspecto é importante, pois em seu contexto cultural o educando se depara com uma vasta gama de gêneros textuais em relação aos quais também precisa se posicionar criticamente. Mas vale ressaltar que, ler de maneira filosófica textos de outras áreas, também depende de um método de leitura. Daí a necessidade de que se aproprie desse método mediante a prática da leitura de textos filosóficos. A terceira competência consiste em ―articular conhecimentos filosóficos e diferentes conteúdos e modos discursivos nas ciências naturais e humanas, nas artes e em outras produções culturais‖. Segundo os PCNEM: ―A modernidade cultural [...] caracteriza-se, em princípio, pela ruptura e pela fragmentação daquilo que antes estava reunido em uma visão do mundo unificada, sob a tutela das verdades ‗reveladas‘‖ (BRASIL, 1999, p. 339). Com o intuito de amenizar essa situação, a ―interdisciplinaridade‖ direciona-se para algo além de uma ―prática científica meramente disciplinar‖, buscando conexões entre os saberes. Tal iniciativa deve partir, principalmente, do professor, porém, é preciso ter cuidado para não ―cair na tentação de fazer meras justaposições de conteúdos programáticos distintos num mesmo espaço didático‖ (BRASIL, 1999, p. 340). A filosofia, possuindo um caráter transdisciplinar, pode colaborar para a articulação dos diversos sistemas teóricos curriculares. Conforme o documento aqui analisado, considerando a inter/transdisciplinariedade do ponto de vista de outros conteúdos disciplinares, é evidente que deve restar em aberto o modo pelo qual os agentes sociais no sistema escolar optam por construir ―ensino de área‖, a saber, que pontes pretendem estabelecer entre si. A partir deste ponto de vista, somente a construção socialmente compartilhada de um currículo escolar inter/transdisciplinar e contextualizado é que pode produzir a articulação efetiva dos conhecimentos filosóficos e dos outros conhecimentos e, assim, auxiliar o aluno a alcançar uma compreensão ampla e integrada dos diferentes conteúdos disciplinares. Neste sentido, uma Filosofia só não faz verão... (BRASIL, 1999, p. 342, grifos do autor). De acordo com as DCNEM a interdisciplinaridade requer ―[...] um conhecimento que vai além da descrição da realidade e mobiliza competências cognitivas para deduzir, tirar inferências ou fazer previsões a partir do fato observado‖ (BRASIL, 1999, p. 89). Ora, um método adequado de leitura de textos filosóficos pode contribuir para este tipo de conhecimento, visto que também desenvolve tais competências. Sendo assim, um 56 estudante que sabe analisar criticamente e problematizar os temas que encontra nesses textos, tem mais condições de articular conhecimentos filosóficos e diferentes conteúdos em outras produções culturais. Portanto, o texto filosófico pode contribuir no desenvolvimento das referidas competências. Os PCNEM ressaltam, porém, que a abordagem interdisciplinar não dispensa ―a presença de um profissional da área‖ (BRASIL, 1999, p. 342, grifos do autor), visto que o conhecimento filosófico é um saber especializado. Sobretudo, no que se refere aos textos filosóficos, pois são textos especializados. Por isso, a qualidade de seu emprego e utilização depende de um profissional da área. A quarta competência consiste em ―contextualizar conhecimentos filosóficos, tanto no plano de sua origem específica quanto em outros planos: o pessoal-biográfico; o entorno sócio-político e cultural; o horizonte da sociedade científico-tecnológica‖. Para poder contextualizar, o estudante precisa dispor de uma ―[...] destreza hermenêutica, assim como com a crítica‖ (BRASIL, 1999, p. 343). De que forma o educando pode desenvolver essas capacidades se não for por um trabalho metodológico de leitura? Contextualização e posicionamento crítico dependem de uma rotina de estudos que demanda uma prática de leitura alicerçada em uma metodologia especificamente voltada para esse objetivo. Segundo o documento, a contextualização pode ―auxiliar o aluno a desenvolver competências de mediação entre ele mesmo e os diferentes conhecimentos, isto é, o tornarse intérprete‖. Esse processo pode ter um sentido tanto ―ascendente quanto descendente‖, ou seja, pode partir do contexto do intérprete até o contexto específico do conhecimento, ou vice-versa. Qualquer que seja a opção metodológica, ―é pela capacidade do professor de escutar atentamente, exibir uma sincera postura dialógica (não autoritária) e, não menos importante, estabelecer habilmente as ligações suficientes, que uma competência de contextualização pode ser desenvolvida‖ (BRASIL, 1999, p. 343). O documento também deixa claro que a capacidade de contextualizar exige dos alunos ―um esforço de inteligibilidade a que normalmente, isto é, na perspectiva do senso comum cotidiano, não estão acostumados‖. Para a contextualização dos conhecimentos filosóficos, os PCNEM trazem duas importantes orientações, a saber: ―tem-se, em primeiro lugar, que localizá-los no sistema conceptual de onde provêm originariamente. [...] Em segundo lugar, é imprescindível assinalar as coordenadas gerais em que esse pensamento se inscreve‖ (BRASIL, 1999, p. 343). O documento complementa: 57 Para serem compreendidos, portanto, é necessário que os conhecimentos filosóficos sejam interpretados, ao mesmo tempo, na perspectiva de seu autor e no contexto de origem desse pensamento. Para torná-los compreensíveis, é preciso, como já foi referido anteriormente, que o professor conheça e leve em consideração as dificuldades e competências prévias do aluno/intérprete. Para compreendê-los, o aluno/intérprete tem de: a) partir de seus conhecimentos, capacidades e contexto pessoal (biográfico, sócio-histórico etc.); b) abandonar essa primeira perspectiva e alcançar o texto em seu contexto específico; c) retornar às suas próprias demandas problemáticas. Em síntese, uma ―exegese‖ do texto filosófico só é possível na perspectiva de uma mediação entre o texto e o contexto de seu intérprete. (BRASIL, 1999, p. 343, grifos do autor). Têm-se na citação acima importantes indicações metodológicas para a leitura de textos filosóficos: interpretar o texto na perspectiva do seu autor e no contexto em que foi escrito; conhecer e considerar as dificuldades e capacidades prévias dos alunos, a fim de selecionar corretamente os textos; tomar os conhecimentos, as demandas e o contexto do aluno como ponto de partida, preparando sua articulação com a leitura a ser feita; avançar, a partir desses elementos iniciais, para a compreensão do contexto específico do autor e do texto em questão; retornar às demandas o aluno, agora examinadas à luz da leitura realizada. Ou seja, trata-se de buscar formas de fazer a mediação entre o texto e o aluno intérprete. De fato, para serem adequadamente compreendidos é imprescindível contextualizá-los. Outro aspecto que possibilita verificar a compreensão do conteúdo pelo educando consiste na reaplicação do conhecimento aprendido em outros contextos. ―É, aliás, essa possibilidade de aplicação o melhor critério para o reconhecimento de que uma competência foi adquirida de fato‖ (BRASIL, 1999, p. 344). Do ponto de vista do plano ―pessoal-biográfico‖, a competência de contextualização proporciona o conhecimento de várias vivências, fazendo com que o educando reflita sobre elas, bem como sobre sua própria experiência. Esse aspecto direciona o desenvolvimento da autonomia do sujeito. Na perspectiva ―sócio-histórico-cultural‖ 11 , o estudante tem a possibilidade de conhecer sua realidade, identificando sua posição política, cultural e as demais que fazem parte de seu contexto histórico: ―[...] para além de apenas fornecer referências culturais, a 11 Esta perspectiva, conforme os PCNEM, pode auxiliar ―a compreender a dimensão preeminentemente social que tem sua própria vida e a descobrir que seu projeto de vida se torna tanto mais pessoal e significativo quanto mais se aprofunda no contexto da comunidade em que se projeta, seja ela entendida local, regional ou universalmente‖ (BRASIL, 1999, p. 344). 58 Filosofia serve ainda mais quando o aluno a contextualiza no seu tempo e espaço sociais‖ (BRASIL, 1999, p. 344). Para compreender o texto filosófico, portanto, uma das estratégias propostas é a sua contextualização. Para tanto, é fundamental o papel do professor nesse direcionamento. Para o educando, é uma forma de o texto ganhar significado, criar sentido e não se limitar em si mesmo. A quinta e sexta competências, respectivamente: ―elaborar, por escrito, o que foi apropriado de modo reflexivo‖ e ―debater, tomando uma posição, defendendo-a argumentativamente e mudando de posição face a argumentos mais consistentes‖ de acordo com os PCNEM (BRASIL, 1999, p. 345) são meios para a avaliação: ―a rigor, na escola só é possível acompanhar o desenvolvimento das quatro primeiras competências listadas a partir de uma avaliação bem feita das duas últimas e, em especial, da capacidade de elaborar o aprendizado por escrito‖. A competência sobre a produção escrita permite que o educando elabore de forma própria os resultados de sua aprendizagem. O estudante, na medida em que realiza seus ―procedimentos analíticos‖, necessita ir registrando suas impressões, a fim de que consiga ―reconstruir a estrutura textual‖ e sua análise crítica. Assim, ―uma reelaboração por escrito dos conteúdos é simplesmente o contraponto necessário de uma leitura criteriosa‖ (BRASIL, 1999, p. 345). Na medida em que o educando vai se familiarizando com o texto filosófico, acaba assimilando a sua estrutura lógico-discursiva – pelo menos nos textos filosóficos que possuem esta estrutura12. É comum escutarmos que ―quem lê muito tem mais facilidade de escrever‖. Talvez, a razão da facilidade seja o fato do leitor ter assimilado muito bem a estrutura lógico-discursiva de suas leituras, e, na medida em que vai escrevendo, vai reproduzindo esta estrutura, com a intenção de esclarecer melhor suas ideias. Se isso é verdade, pode-se presumir que o texto filosófico, lido com o devido rigor, é um dos principais recursos para o aprimoramento da capacidade de elaboração escrita. Da mesma forma, também podemos observar a contribuição do texto filosófico para a competência do debate. Conforme os PCNEM (BRASIL, 1999, p. 346), a sexta competência consiste numa ―competência-síntese‖ das anteriores, pois, a filosofia é 12 Como afirma Rodrigo (2009, p. 81) ―há textos filosóficos propositalmente assistemáticos, ou que se expressam por meio de gêneros literários que não admitem esse tipo de leitura, como romance (ex.: Sartre), a confissão (ex.: Santo Agostinho), o mito (ex.: Platão), o aforismo e o poema (ex.: Nietzsche) etc‖. 59 essencialmente voltada ao debate, que é constituído pela clara formulação dos argumentos, pela organização e fundamentação reflexiva e pelas condições de igualdade daqueles que debatem. Sendo assim, o texto filosófico que consiste - pelo menos aqueles que se referem à estrutura lógico-discursivo – de teses e argumentos sistematizados, a partir de uma fundamentação reflexiva, pode contribuir no desenvolvimento dessa competência. Cumpre salientar que, sendo essas duas últimas competências, meios para a avaliação, cumprem papel decisivo também na verificação do aproveitamento dos alunos quanto aos textos filosóficos. Essas são as habilidades e competências que se espera que os educandos adquiram, ao estudar filosofia no ensino médio e para as quais, como se pôde observar, contribui mais ou menos diretamente seu contato com textos filosóficos. Em suma, no que se refere ao texto filosófico, os PCNEM parecem sugerir que essa produção literária pode ser o texto do próprio filósofo (texto primeiro), porém, não o diz explicitamente. Trata-se de um recurso primordial para o contato do educando com o quadro referencial dos conceitos, problemas e sistemas da filosofia. Seu adequado aproveitamento, porém, requer um trabalho metodológico mediado pelo docente e que leve em conta as habilidades de leitura dos alunos e a formação do professor. Esse aproveitamento inclui a compreensão adequada das ideias do autor, além de sua contextualização e problematização. Espera-se, também, que o aluno, aprendendo a ler textos filosóficos, torne-se capaz também de ler outros textos filosoficamente. Resta saber se nas condições atuais da educação no país, considerando as imensas defasagens na formação dos estudantes e o número reduzidos de aulas de filosofia no currículo do ensino médio, o emprego do texto filosófico é de fato viável e, caso seja, de que forma poderia ser trabalhado a fim de assegurar os objetivos propostos pelos PCNEM para a disciplina. Este tema, porém, será retomado mais adiante. 2. O papel da filosofia e do texto filosófico nos PCN+ Os PCN+, publicados em 2002, não têm caráter normativo. Seu objetivo é complementar os Parâmetros Curriculares Nacionais, buscando contribuir com a implementação das disposições da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, regulamentadas por Diretrizes do Conselho Nacional de Educação, a fim de facilitar a organização do trabalho nas escolas. O volume dedicado às Ciências Humanas ―procura 60 trazer elementos de utilidade para o professor de cada disciplina, na articulação entre competências e conceitos da qual emergem sugestões temáticas que sejam facilitadoras para a construção dos processos de ensino e de aprendizagem‖ (BRASIL, 2002a, p.13). Ao tratar da filosofia, o documento se fundamenta em alguns artigos da LDBEN, a saber: art. 2º, art. 27, art. 35 e art. 36. Apresenta-se ali a noção de que ―não existe uma Filosofia [...], o que existem são filosofias‖ – aspecto já abordado pelos PCNEM. Desse modo, cabe ao ―filósofo-educador‖ – nome dado ao professor do ensino de filosofia – privilegiar uma determinada corrente filosófica, de acordo com suas concepções. O documento deixa claro também que não há um ―pré-requisito para se introduzir a Filosofia, a não ser quanto aos cuidados necessários com o estágio de competência de leitura e abstração dos alunos, bem como o universo de conhecimentos e valores que cada um deles já traz consigo‖ (BRASIL, 2002a, p. 42). O documento afirma que é indispensável o pré-requisito no que se refere à leitura. Pode-se concluir, então, que, na visão dos PCN+, esse estudo deverá recorrer a textos específicos dessa área. Cumpre identificar a natureza desses textos e o lugar atribuído aos propriamente filosóficos. Os PCN+ (BRASIL, 2002a, p. 42) questionam os PCNEM, no que diz respeito à formação do cidadão: Outra dificuldade encontrar-se-ia nas sugestões dos PCNEM quanto aos saberes e às competências necessários para a formação do cidadão, como sujeito ético e político. Ora, se pensarmos que a Filosofia não tem função pragmática, no sentido de que sua finalidade está nela mesma, ou seja, no filosofar, somos levados a concluir não ser possível transformá-la em instrumento de qualquer fim, por mais nobre que seja. A despeito de não se prestar a um papel pragmático, o documento afirma a vocação do filósofo para ―estabelecer vínculos com a educação‖. Fundamenta essa afirmação em Platão, lembrando que, n‘A República, aqueles que saíram da caverna contemplaram as verdades e voltaram para junto dos seus que ainda estavam presos, revelando, assim, um ―compromisso com a paideia” (BRASIL, 2002a, p. 42). Nesse sentido, a função educativa do filósofo configura certo caráter pragmático. Contudo, com os novos tempos, mais do que ―dirigir o processo‖ por conhecer a verdade, cabe ao educador dar condições para que o aluno construa um ―conhecimento crítico‖ e autônomo. Assim, assinala o documento, ―não constitui incoerência recusar a função pragmática da Filosofia, no momento em que o filósofo criador elabora conceitos 61 originais, ao mesmo tempo em que se reconhece a dimensão pedagógica da Filosofia‖ (BRASIL, 2002a, p. 42). Há, portanto, uma natureza não pragmática da filosofia, que se realiza no ―filósofo criador‖ – que elabora conceitos originais –, porém, ao mesmo tempo, no que se refere ao filósofo-educador, ela possuir uma dimensão pragmática: [...] discutiremos o trabalho do filósofo-educador e suas intenções pedagógicas – nesse caso, intencionais e pragmáticas – de proporcionar a ocasião oportuna para seus alunos desenvolverem determinadas competências e habilidades que os tornem sujeitos autônomos e cidadãos conscientes (BRASIL, 2002a, p. 42). Outro problema analisado pelos PCN+ é em relação à definição de filosofia, que é um problema filosófico. Vários filósofos já propuseram algumas definições. Segundo o documento, é possível perceber que, ao longo da história, a vocação da filosofia consiste muito mais em formular problemas do que em respondê-los. ―Mesmo porque à medida que mudam as formas de relações humanas e o conhecimento do mundo, surgem novos questionamentos e perplexidades‖ (BRASIL, 2002a, p. 43). Contudo, antes de definir a filosofia ou um método, é fundamental que se reconheçam atividades que possam ser qualificadas de filosóficas, tendo em vista o propósito de educadores. De acordo com os PCN+, a despreocupação com a escolha de uma filosofia específica ―supõe a aceitação de posicionamentos diferentes entre os professores de Filosofia na escolha dos conteúdos programáticos‖, porém, não se deve perder o ―norte educativo‖, o qual corresponde à formação para a cidadania. No entanto, mesmo reconhecendo a multiplicidade de caminhos possíveis para se trabalhar a disciplina, os PCN+ (2002a, p. 44) destacam, em linhas gerais, a compreensão da filosofia como: ―uma reflexão crítica a respeito do conhecimento e da ação, a partir da análise dos pressupostos do pensar e do agir e, portanto, como fundamentação teórica e crítica dos conhecimentos e das práticas‖. Segundo o documento, a filosofia tem condições mais efetivas de contribuir para o processo da formação da cidadania, pois, enquanto as outras disciplinas trabalham esse conteúdo de forma transversal, para a filosofia ali estão os eixos principais do conteúdo programático. Isso não significa que a filosofia seja superior às outras disciplinas, mas que, pela sua especificidade, é possível ―tematizar e explicitar os conceitos que permeiam todas as outras disciplinas, e o faz de forma radical‖; ―discute os fins últimos da razão humana‖, levantando ―questões dos valores‖; ―examina os problemas sob a perspectiva de conjunto”; 62 ―não trata de um objeto específico, como nas ciências, porque nada escapa ao seu interesse, ocupando-se de tudo‖ (BRASIL, 2002a, p. 44, grifos do autor). Os PCN+ (BRASIL, 2002a, p. 44) explicam que ―nem sempre, porém, a disposição humana para a reflexão é estimulada, antes chega a ser desencorajada ou escamoteada‖; além do mais, o estudante traz um ―saber não-crítico, fragmentado, incoerente, desarticulado, misturado a crenças arraigadas e, portanto, pré-reflexivo‖. Por isso, torna-se papel do filósofo-educador ―dar elementos para o aluno examinar de forma crítica as certezas recebidas e descobrir os preconceitos muitas vezes velados que as permeiam‖. O documento acrescenta ainda que não se trata, porém, de concluir que o professor de Filosofia é um ―guia‖ que conduz o aluno ―das trevas à luz‖, mas sim que é o mediador entre o educando e o texto filosófico (ou o texto não filosófico que será compreendido segundo o enfoque da Filosofia), o que equivale a dizer que o professor é o mediador entre o aluno e a cultura em que vive, já que o ensino/aprendizagem não se faz à margem do contexto histórico-social (BRASIL, 2002a, p. 45, grifo do autor). Assim, o filósofo-educador será a ponte entre o estudante e o conhecimento a ser estudado, seja este apresentado num texto filosófico ou não, porém, sempre numa perspectiva filosófica. O papel do docente será de oportunizar os meios necessários que motivem a articulação das competências e habilidades do discente. Para tanto, a formação, o conhecimento e a metodologia do docente têm grande importância. A citação acima é a primeira referência que o documento faz ao texto filosófico e ao não-filosófico, sem ainda apresentar muitos detalhes sobre como os compreende. Mais à frente o tema será um pouco mais esclarecido. O documento aponta como conceitos estruturadores 13 da filosofia: o ser, o conhecimento e a ação. Sua apropriação é feita de uma perspectiva que busca uma reflexão radical e uma indagação sobre seus fins. Em relação ao ser, procura-se compreender o 13 ―No âmbito de cada disciplina, os conceitos estruturadores com os quais se pode organizar o ensino constituem uma composição de elementos curriculares da Filosofia, Geografia, História e Sociologia, com competências e habilidades, no sentido em que esses termos são utilizados nos PCN do Ensino Médio ou no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Dessa forma, cada disciplina apresenta um conjunto de conceitos estruturadores articulados com conhecimentos, que não são só tópicos disciplinares nem só competências gerais ou habilidades, mas sugestões de sínteses de ambas as intenções formativas. Ao se apresentarem dessa forma, esses conceitos estruturadores do ensino disciplinar e de seu aprendizado não mais se restringem, de fato, ao que tradicionalmente se considera responsabilidade de uma única disciplina, pois incorporam metas educacionais comuns às várias disciplinas da área e às das demais áreas, o que implica modificações em procedimentos e métodos, que já sinalizam na direção de uma nova atitude da escola e do professor‖ (BRASIL, 2002a, p. 13). 63 sentido das coisas, que englobe a totalidade dos seres, diferentemente da ciência, que se ocupa de uma dimensão específica. No que diz respeito à ―reflexão sobre os fundamentos e fins do conhecimento, a filosofia investiga os instrumentos do pensar, como a lógica e a metodologia; distingue e compara as diversas formas de apreensão do real‖ (BRASIL, 2002a, p. 45). Por fim, em relação à ação, ―parte-se das grandes áreas de reflexão ética, estética, política, antropológica etc., a fim de compreender as formas de agir [...]‖ (BRASIL, 2002a, p. 46) dessas áreas. Segundo os PCN+ (BRASIL, 2002a, p. 46), o significado das competências específicas da filosofia consiste na sua articulação para responder às mudanças de nosso tempo: Mais do que transmitir conhecimentos, o professor deve promover competências gerais. Ou seja, mais do que ensinar, deve ―fazer aprender‖, uma vez que não se pode prever as modificações que virão a ocorrer em curto espaço de tempo nos mais diversos campos da cultura. Desse modo, os conteúdos devem ser mobilizados nas mais diversas situaçõesproblema. As competências apresentadas pelos PCN+ são as mesmas que integram o PCNEM. Destacamos alguns pontos importantes que tratam sobre o texto filosófico. Dentre eles, a orientação para não abordar a ―herança filosófica de maneira passiva, como um produto acabado‖, ao ―ler textos filosóficos de modo significativo‖. Sendo assim, os alunos precisam desenvolver a ―competência discursivo-filosófica‖ para, de fato, apropriar-se do ―texto filosófico‖, ou seja, é necessário que o estudante compreenda o processo da reflexão, da busca dos pressupostos e da problematização para ter acesso a este tipo de texto (BRASIL, 2002a, p. 47). E, segundo o próprio documento: [...] o acesso ao conteúdo filosófico se faz de maneira reflexiva, buscando os pressupostos dos conceitos e exercitando a capacidade de problematização. Para tanto, há que se utilizar da leitura de textos dos filósofos e, mesmo quando o professor preferir desenvolver um programa a partir de temas, não se deve deixar de tomar a história da Filosofia como referencial constante das reflexões, a fim de evitar equívocos e a banalização do conhecimento filosófico (BRASIL, 2002, p. 47, grifos nossos). O documento refere-se aos ―textos dos filósofos‖ e à ―história da Filosofia‖ como elementos fundamentais no ensino de filosofia, sob pena de sua banalização e descaracterização. Recomenda, ainda, uma metodologia de leitura: Há várias formas de se desenvolver a leitura analítica, mas em geral é importante fazer com que o aluno comece pela análise temática, ocasião 64 em que aprende a ―ouvir o que o autor tem a dizer‖. Esses passos iniciais são importantes para estimular a disciplina intelectual, ao aprender a identificar as idéias centrais, o rigor dos conceitos, a articulação da argumentação, a coerência da exposição, para só então enveredar pelos aspectos denotativos do texto e exercitar a análise interpretativa e a posterior problematização (BRASIL, 2002a, p. 47, grifos do autor). Sabemos das dificuldades de leitura dos estudantes. Daí a importância de ensiná-los a ler analiticamente, a fim de que se apropriem de um método que lhe dê os suportes básicos para entender um texto filosófico. Segundo o documento, tendo como referência os conteúdos da filosofia, o professor tem a possibilidade de trabalhar suas aulas com um enfoque nos temas filosóficos ou com a história da filosofia. Nessas duas perspectivas, é preciso que se tenha certa atenção: no caso dos temas filosóficos, não se pode perder o enfoque da história da filosofia, e, ao trabalhar com a história da filosofia, não se deve reduzir as aulas à exposição de fatos e ideias, mas, sim, buscar compreender os conceitos na sua origem, bem como no seu contexto atual (BRASIL, 2002a, p. 51). Em suma, os PCN+ apresentam a filosofia como um saber que promove a reflexão crítica a respeito do conhecimento e da ação. Além disso, é a disciplina mais preparada para a formação do educando como pessoa e cidadão, visto que busca explicitar os assuntos de maneira radical, discutir os seus fins últimos, tendo como referência uma perspectiva de conjunto. No que se refere ao texto filosófico, é tratado como texto dos filósofos e o consideram indispensável; ressaltam a necessidade de não trabalhá-los de maneira passiva, ou seja, de um modo que não seja significativo para o educando. Para se evitar essa abordagem é fundamental que o professor proporcione ao educando o desenvolvimento da competência discursivo-filosófica, isto é, a sua capacidade de pensar filosoficamente buscando os pressupostos dos conceitos e problematizando-os. Outro aspecto refere-se ao fato de que é por meio do texto filosófico que o educando tem acesso ao quadro referencial básico da tradição filosófica. Isso significa que é fundamental que haja um trabalho metodológico por meio da leitura analítica, visto que são textos, em muitos aspectos, complexos. O desafio é garantir, minimamente, um trabalho em que o educando possa ler e analisar um texto filosófico: entender sua tese central, seus argumentos e discuti-los, sobretudo, relacionando com o seu contexto. Fica claro que o texto filosófico não é o único recurso a ser usado no ensino de filosofia, porém, é um recurso fundamental para o desenvolvimento da reflexão crítica do 65 educando. Seu emprego e aproveitamento, porém, estão condicionados à orientação metodológica do professor que prepara os alunos para a leitura analítica e problematizadora. 3. O papel da filosofia e do texto filosófico nas Orientações Curriculares para o ensino médio É importante esclarecer que as OCEM, ao se referirem aos textos dos próprios filósofos, utilizam três denominações: ―texto filosófico‖, ―textos clássicos‖ e ―textos propriamente filosóficos e primários‖. As novas Orientações Curriculares Nacionais para o ensino médio foram publicadas em 2006, no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, quando, portanto, ainda não estava estabelecida a obrigatoriedade da Filosofia no ensino médio, e vigoram até os dias atuais. Segundo Almeida (2011, p. 132), elas foram elaboradas: [...] a partir de uma nova visão do MEC, do CNE (Conselho Nacional de Educação) e da CEB (Câmara de Educação Básica) sobre a presença da disciplina de Filosofia na grade curricular do Ensino Médio, a expressão política desse momento se deu com a elaboração do Parecer MEC/CNE nº. 38/2006 e da Resolução CNE/CEB nº. 04/2006 que trazem uma intervenção favorável a estabelecer a Filosofia como disciplina curricular. Segundo as OCEM (BRASIL, 2006, p. 15) Ciências Humanas e suas Tecnologias, a filosofia deveria ser tratada como disciplina obrigatória na grade curricular do ensino médio, ―pois isso é condição para que ela possa integrar com sucesso projetos transversais e, nesse nível de ensino, com as outras disciplinas, contribuir para o pleno desenvolvimento do educando‖. Considera, porém, que, mesmo sem a obrigatoriedade, esse ensino vem passando por uma ―consolidação institucional‖. Sabendo que a filosofia tem grande responsabilidade pela formação cidadã do sujeito, o documento considera imprescindível que se estabeleçam ―condições adequadas para sua presença como disciplina, implicando a garantia de recursos materiais e humanos‖ (BRASIL, 2006, p. 15). Outro aspecto apontado é em relação à necessidade de discutir os cursos de graduação em filosofia, pois são eles que preparam os futuros docentes para as escolas de ensino médio. A implantação do ensino de filosofia tem uma dificuldade peculiar, pois é, na verdade, a ―reimplantação‖ de uma disciplina que por muito tempo ficou ausente e, por 66 isso, acabou não se consolidando como componente curricular, ―[...] quer em materiais adequados, quer em procedimentos pedagógicos, quer por um histórico geral e suficientemente aceito‖ (BRASIL, 2006, p. 16). Desse modo, ―a ideia de rediscutir os parâmetros curriculares para a disciplina traz novo fôlego para sua consolidação entre os componentes curriculares do ensino médio, e, com eles e outras iniciativas, a filosofia pode e deve retomar seu lugar na formação de nossos estudantes‖ (BRASIL, 2006, p. 16). A falta de profissionais suficientes para garantir a demanda era um dos fatores que dificultavam o tratamento da filosofia como disciplina. No entanto, progressivamente, vem aumentando o número de docentes formados, bem como o número de cursos de graduação e pós-graduação. Esses fatores são fundamentais para que haja mais profissionais de qualidade. O que foi dito acima pode ser resumido na seguinte passagem (BRASIL, 2006, p. 16): Muitas das ambiguidades dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) anteriores resultam da indefinição, que consiste em apontar a necessidade da Filosofia, sem oferecer-lhe, contudo, as adequadas condições curriculares. A afirmação da obrigatoriedade, inclusive na forma da lei, torna-se essencial para qualquer debate interdisciplinar, no qual a Filosofia nada teria a dizer, não fora também ela tratada como disciplina, ou seja, como conjunto particular de conteúdos e técnicas, todos eles amparados em uma história rica de problematização de temas essenciais e que, por conseguinte, exige formação profissional específica, só podendo estar a cargo de profissionais da área. Caso contrário, ela se tornaria uma vulgarização perigosa de boas intenções que só podem conduzir a péssimos resultados. O ensino de filosofia no nível médio não será uma ―simplificação ou uma mera antecipação do ensino superior e sim uma etapa específica com regras e exigências próprias, mas essas só podem ser bem compreendidas ou satisfeitas por profissionais formados em contato com o texto filosófico‖ (BRASIL, 2006, p. 17, grifo do autor). Nesta passagem, destaca-se a importância desse recurso na formação do professor de filosofia e, consequentemente, na qualidade desse ensino. A boa formação filosófica torna-se um elemento imprescindível para o profissional da área. Não basta o professor ser didaticamente talentoso, se não é capaz de tratar os assuntos trabalhados em sala de maneira filosófica. Nesse sentido, [...] a utilização de valorosos materiais didáticos pode ligar um conhecimento filosófico abstrato à realidade, inclusive ao cotidiano do estudante, mas a simples alusão a questões éticas não é ética, nem filosofia política a mera menção a questões políticas [...] (BRASIL, 2006, p. 17). 67 Compreender a importância da obrigatoriedade da filosofia é ter clara noção de seu papel formador, o qual, para ser adequadamente cumprido, requer uma carga horária também adequada. ―Neste sentido, propõe-se um mínimo de duas horas-aula semanais para a disciplina, apontando ademais que deva ser ministrada em mais de uma série do ensino médio‖ (BRASIL, 2006, p. 18). Essa proposta deve ser estruturada com base nas diferenças regionais. Outro aspecto importante da filosofia e que contribui para justificar sua obrigatoriedade é sua ―vocação transdisciplinar‖. Diz o documento: ―A compreensão da Filosofia como disciplina reforça, sem paradoxo, sua vocação transdisciplinar, tendo contato natural com toda ciência que envolva descoberta ou exercite demonstrações, solicitando boa lógica ou reflexão epistemológica‖ (BRASIL, 2006, p. 18). O próprio texto filosófico possibilita estabelecer ―intercâmbio‖, por exemplo, com a área de linguagens. (BRASIL, 2006, p. 18). As Orientações, porém, não esclarecem como se daria esse intercâmbio. Também não explicitam, nesse momento, o que entendem por ―texto filosófico‖. O documento critica os PCN por proporem ―passos por demais doutrinários que terminam por roubar à Filosofia um de seus aspectos mais ricos, a saber, a multiplicidade de perspectivas [...]‖. Tentar reduzi-la a uma ―voz unilateral‖ é abrir espaço para as ―imposições doutrinárias‖. No entanto, essa consideração da diversidade não deve desconsiderar as posições filosóficas do professor, nem impedi-lo de defendê-las. Porém, da mesma forma, deve-se ter cuidado com as tomadas de posições, para não fazer delas – por mais que sejam politicamente corretas – posturas doutrinárias (BRASIL, 2006, p. 18). Quanto ao conceito de competência, desconsiderou-se ―tudo que nesse termo possa sugerir competição ou adequação flexível ao mercado de trabalho‖ (BRASIL, 2006, p. 19). Destacaram-se duas razões: a primeira afirma porque ―competência não pode ser exterior à própria disciplina‖, e a segunda porque ―a competência pode realizar-se no interesse de contato com nossa tradição e nossa especificidade filosófica‖ (BRASIL, 2006, p. 19). Segundo o documento, esse quadro não forma educandos, necessariamente, para o mercado de trabalho, e ―o currículo desejado se articula com o perfil de profissional que deve ser formado nos cursos de graduação em Filosofia‖, de acordo com as competências e habilidades definidas pela ―comissão de especialistas no ensino de Filosofia da Secretaria de Educação Superior (SESu) do Ministério da Educação‖ (BRASIL, 2006, p. 19). 68 De acordo com as OCEM, essas considerações apresentam em parte o ―Relatório das Discussões sobre as Orientações Curriculares do Ensino Médio e a Filosofia‖, resultante [...] de uma série de seminários regionais e de um seminário nacional realizados em 2004 sob a coordenação do Departamento de Políticas de Ensino Médio da Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação. E esse texto é uma das peças institucionais que subsidiam o presente documento, dando-lhe as coordenadas, em conjunto com o texto Os Parâmetros Curriculares do Ensino Médio e a Filosofia, as Diretrizes Curriculares aos Cursos de Graduação em Filosofia 14 e a Portaria das Diretrizes do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade15) 2005 para a Área de Filosofia16 (BRASIL, 2006, p. 19). O processo de avaliação institucional dos cursos de graduação em filosofia, efetuado por meio do Enade, ajudou a fortalecer a presença da disciplina como componente curricular no ensino médio, pois afirmou ―algumas posições acerca da graduação e das competências esperadas do profissional formado nos cursos de licenciatura em Filosofia‖ (BRASIL, 2006, p. 19). Estas posições são as seguintes: em primeiro lugar ―não separar, no momento da avaliação, o bacharelado e a licenciatura em Filosofia‖ (BRASIL, 2006, p. 20), pois ambas devem oferecer a mesma formação básica, reforçando a necessidade de proporcionar um sólido conhecimento da história da filosofia, que capacite o profissional ―para a compreensão e a transmissão dos principais temas, problemas, sistemas filosóficos‖, podendo promover análises e reflexões críticas. Em segundo lugar, ―decidiu-se que a avaliação de cursos de graduação em Filosofia deve tomar como eixo central o currículo mínimo composto pelas cinco matérias básicas: História da Filosofia, Teoria do Conhecimento, Ética, Lógica e Filosofia Geral‖ (BRASIL, 2006, p. 20). A não dissociação do bacharelado e da licenciatura nos cursos de filosofia, a preocupação com a formação do professor quanto à história da filosofia e a sistematização de eixos centrais do currículo mínimo nos cursos, de maneira geral, vêm colaborar para o 14 As Diretrizes foram elaboradas para o MEC-SESu por uma comissão de especialistas de ensino de filosofia, composta pelos professores Álvaro Valls (Unisinos), Nelson Gomes (UnB) e Oswaldo Giacoia Júnior (Unicamp) (BRASIL, 2006, p. 19). 15 Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes é um dos procedimentos de avaliação do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes). 16 A elaboração da portaria contou com apoio de comissão composta pelos professores Alfredo Carlos Storck (UFRG), Antonio Edmilson Paschoal (PUC-PR), Ethel Menezes Rocha (UFRJ), João Carlos Salles Pires da Silva (UFBA), Milton Meira do Nascimento (USP) e Nelson Gonçalves Gomes (UnB) (BRASIL, 2006, p. 19). 69 aprimoramento da formação do professor de filosofia e, por conseguinte, para a consolidação da posição da filosofia no currículo e para as melhorias das condições de seu ensino, inclusive no que se refere ao emprego de textos filosóficos. A nova legislação sobre a formação do professor de filosofia no ensino médio (BRASIL, 2002b) estabelece, em seu Artigo 1º, ―400 horas de prática como componente curricular e 400 horas de estágio curricular supervisionado‖, integralizando na carga horária a ―preparação específica de atividades e a seleção de material didático para o ensino médio‖. Não há qualquer esclarecimento sobre que tipo de material didático deve ser empregado. O ensino de filosofia ganhou uma nova perspectiva a partir dessas Diretrizes, que passaram a pensá-lo como disciplina obrigatória, entendendo que, dessa forma, criar-seiam melhores condições para o processo de seu ensino e aprendizagem. É importante destacar o reconhecimento, pelo documento, de que a boa formação do professor é indispensável para a qualidade desse ensino e que, por sua vez, o conhecimento do texto filosófico, bem como da história da filosofia, é condição necessária para essa formação. O documento apresenta algumas características que compõem a especificidade da filosofia. Uma das primeiras citadas se refere à proposição de questões das mais diversas, inclusive aquelas consideradas mais comuns, não apontadas no cotidiano, ou seja, tudo é possível ser questionado, desde as coisas mais intrigantes, até as consideradas óbvias. ―Com isso, a Filosofia costuma quebrar a naturalidade com que usamos as palavras, tornando-se reflexão‖ (BRASIL, 2006, p. 22). Outro aspecto interessante e que a diferencia de outros saberes é o fato de que a filosofia proporciona uma reflexão sobre si mesma, ―um discurso sobre o discurso, um conhecimento do conhecimento. Não pergunta simplesmente se isso ou aquilo é verdadeiro; antes indaga: o que pode ser verdadeiro? Ou ainda, o que é a verdade?‖ (BRASIL, 2006, p. 22). A filosofia pode criar vínculos com outros saberes e áreas, seu universo de pesquisa é diverso, amplo e geral. No entanto, ela ―tem a necessidade, ao mesmo tempo, de se definir no interior do filosofar como tal, isto é, naquilo que tem de próprio e diferente de todos os outros saberes‖, e uma de suas peculiaridades consiste no fato de que não a podemos pensar sem uma base racional. Assim, por mais que haja diversas filosofias, não podemos deixar de ―reconhecer o que há de comum em nosso trabalho: a especificidade da atividade filosófica enquanto expressa, sobretudo, em sua natureza reflexiva‖ (BRASIL, 2006, p. 23). 70 O documento assinala que, independentemente da ―orientação filosófica‖, esta se compõe de ―[...] uma investigação que tematiza diretamente este ou aquele objeto, mas, sobretudo, de um exame de como os objetos nos podem ser dados, como eles se nos tornam acessíveis‖, ou seja, um certo ―voltar atrás‖, uma perspectiva sobre a gênese, e esta reflexão filosófica, em geral, consiste em dois aspectos: a reconstrução racional e a crítica: [...] a reconstrução racional, quando o exame analítico se volta para as condições de possibilidade de competências cognitivas, linguísticas e de ação [...] a crítica, quando a reflexão volta para os modelos de percepção e de ação compulsivamente restritos pelos quais, em nossos processos de formação individual ou coletiva, nos iludimos a nós mesmos, de sorte que, por um esforço de análise, a reflexão consegue flagrá-los em sua parcialidade [...] (BRASIL, 2006, p. 23). Da mesma forma referida nos PCN+ e nos PCNEM, a abordagem a ser adotada pelo professor deve ser aquela por ele considerada justificável. Conforme as OCEM: ―[...] é relevante que ele tenha feito uma escolha categorial e axiológica a partir da qual lê o mundo, pensa e ensina‖ (BRASIL, 2006, p. 24). Aliás, essa escolha deve estar em consonância tanto com a formação do professor quanto com o nível cultural do aluno, porém, é imprescindível que haja certo rigor e que não se configure como doutrinação. O conceito de cidadania, do ponto de vista dos documentos, também é um problema filosófico, pois, da mesma maneira que há várias filosofias, também há diversas maneiras de interpretar a cidadania. Esta ―não escapa de opções filosóficas, não sendo assim um conceito unívoco, nem um mero ponto de partida fixo e de todo estabelecido. [...] torna-se mais um desafio para uma disciplina formadora e menos um conjunto de informações doutrinárias [...]‖ (BRASIL, 2006, p. 24). O documento, tendo a necessidade de esboçar alguma correlação entre conhecimentos da filosofia e uma concepção de cidadania segundo a legislação vigente, toma como ―ponto de partida‖, os valores explicitados nas Diretrizes Curriculares para o Ensino Médio, no Artigo 2º da Resolução CEB nº 3, de 26 de junho de 1998 (BRASIL, 1998): Art. 2º A organização curricular de cada escola será orientada pelos valores apresentados na Lei 9.394, a saber: I - os fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de respeito ao bem comum e à ordem democrática; II. os que fortaleçam os vínculos de família, os laços de solidariedade humana e de tolerância recíproca. 71 E, tendo em vista estes valores, acrescenta o Artigo 3º dessa mesma Resolução, destacando a coerência entre a prática escolar e os princípios estéticos, políticos e éticos, já mencionados no capítulo sobre os PCNEM. Portanto, de acordo com o documento, uma possível concepção de cidadania proposta na formação do ensino de filosofia estaria relacionada aos valores e princípios destacados acima. Para as Orientações, porém, independentemente da concepção adotada, ―[...] seria criticável tentar justificar a Filosofia apenas por sua contribuição como um instrumental para a cidadania. Mesmo que pudesse fazê-lo, ela nunca deveria ser limitada a isso‖ (BRASIL, 2006, p. 25). Além disso, esse papel não é função exclusiva da filosofia: ―a formação para a cidadania, além da preparação básica para o trabalho, é a finalidade síntese da educação básica como um todo (LDB, Artigo 32) e do ensino médio em especial (LDB, Artigo 36)‖ (BRASIL, 2006, p. 26). Sendo assim, as OCEM afirmam: Não se trata, portanto, de um papel particular da disciplina Filosofia, nesse conjunto, oferecer um tipo de formação que tenha por pressuposto, por exemplo, incutir nos jovens os valores e os princípios mencionados, nem mesmo assumir a responsabilidade pela formação para a solidariedade ou para a tolerância. Tampouco caberia a ela, isoladamente, ―o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico‖ [...] (BRASIL, 2006, p. 26). As OCEM complementam, afirmando que não é função da filosofia cumprir papéis antes ―desempenhados por disciplinas como Educação Moral e Cívica‖, nem ―ocupar um espaço crítico que se teria perdido sem ela‖; também não é responsabilidade da filosofia suprir a carência do ―lado humanístico‖. Formar para a cidadania, portanto, é uma responsabilidade do ―conjunto das disciplinas e da política pública voltada para esta etapa da formação‖ (BRASIL, 2006, p. 26). Mas, se todos esses aspectos não correspondem à função específica da filosofia para o exercício da cidadania, de que maneira ela pode contribuir para esse objetivo? Segundo as OCEM, e corroborando os PCN+, ela pode contribuir para o ―desenvolvimento da competência geral de fala, leitura e escrita‖ (BRASIL, 2006, p. 26). Cabe, então, especificamente à Filosofia a capacidade de análise, de reconstrução racional e crítica, a partir da compreensão de que tomar posições diante de textos propostos de qualquer tipo (tanto textos filosóficos quanto textos não filosóficos e formações discursivas não explicitadas em textos) e emitir opiniões acerca deles é um pressuposto indispensável para o exercício da cidadania (BRASIL, 2006, p. 26, grifo do autor). 72 A identidade da filosofia, portanto, consiste na reflexão, que se caracteriza a partir da reconstrução racional e da crítica, suporte para o desenvolvimento das competências gerais da fala, da escrita e da leitura, que são imprescindíveis para a formação cidadã do indivíduo. Se a forma como o ensino de filosofia contribui para a cidadania é desenvolvendo nos estudantes a capacidade de análise e de reconstrução racional e crítica e, se tal capacidade é adquirida mediante a compreensão de textos filosóficos (embora não exclusivamente) e do posicionamento diante deles, então a presença e a utilização desses textos é essencial para que o ensino de filosofia cumpra seu papel específico na formação para a cidadania. Outro elemento importante, que destaca a peculiaridade do papel da disciplina no ensino médio e a diferencia dos outros saberes, é ―a relação singular que a Filosofia mantém com sua história, sempre retornando a seus textos clássicos para descobrir sua identidade, mas também sua atualidade e sentido‖ (BRASIL, 2006, p. 27. Grifo do autor). Ademais, segundo Nascimento (1986, p.116), ―[...] não é possível fazer Filosofia sem recorrer à sua própria história [...] é o mesmo que numa aula de Física pedir que os alunos descubram por si mesmos a fórmula da lei da gravitação sem estudar Física‖. O documento deixa bem claro que, independentemente de como o professor vai direcionar suas aulas, [...] é recomendável que a história da Filosofia e o texto filosófico tenham papel central no ensino de Filosofia, ainda que a perspectiva adotada pelo professor seja temática, não sendo excessivo reforçar a importância de se trabalhar com os textos propriamente filosóficos e primários, mesmo quando se dialoga com textos de outra natureza, literários e jornalísticos, por exemplo – o que pode ser bastante útil e instigante nessa fase de formação do aluno. Porém, é a partir de seu legado próprio, com uma tradição que se apresenta na forma amplamente conhecida como História da Filosofia, que a Filosofia pode propor-se ao diálogo com outras áreas do conhecimento e oferecer uma contribuição peculiar na formação do educado (BRASIL, 2006, p. 27, grifos nosso). No que se referem aos objetivos da disciplina, as Orientações retomam o disposto na LDBN, a saber: ―pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho‖ e ―flexibilidade a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores‖ (Artigos 2o e 35 respectivamente, da lei nº 73 9.394/96). 17 Esse último aspecto significa que o aluno deve ―mais que dominar um conteúdo, saber ter acesso aos diversos conhecimentos de forma significativa‖ (BRASIL, 2006, p. 28). O conteúdo, portanto, não pode ser um conjunto de informações memorizadas, sem nenhum significado para os estudantes, mas deve estabelecer uma ―ativa relação com eles‖. Segundo as OCEM, ―a Filosofia cumpre, afinal, um papel formador, uma vez que articula noções de modo bem mais duradouro que outros saberes, mais suscetíveis de serem afetados pela volatilidade de informações‖ (BRASIL, 2006, p. 28). O outro objetivo geral está expresso no Artigo 36, inciso III, da lei 9.394/96, ―aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico‖. O documento admite que essa determinação é um tanto quanto imprecisa, mas afirma que esse aprimoramento não se restringe à formação técnica voltada, por exemplo, para o mercado de trabalho, mas, sim, trata-se ―antes de um tipo de formação que inclua a constituição do sujeito como produto de um processo, e esse processo como um instrumento para o aprimoramento do jovem aluno‖ (BRASIL, 2006, p. 29). Portanto, os objetivos que norteiam o ensino de filosofia consistem na capacidade de tornar o conhecimento aprendido um saber significativo para os dias atuais, usando esse conhecimento para responder às diversas situações que envolvem a vida em todos os sentidos. Para tanto, é necessário priorizar o desenvolvimento das competências, e não a memorização dos conteúdos. A esse respeito, porém, as Orientações denunciam – e nisso se distinguem dos documentos anteriores – que tal orientação alinha-se com as diretrizes de organismos internacionais como o Banco Mundial: ―Tal concepção, no entanto, não pode ser admitida sem a denúncia da coincidência flagrante entre o perfil do educando esboçado e, por exemplo, certos documentos do Banco Mundial‖ (BRASIL, 2006, p. 29). A flexibilização aparece sob a perspectiva de competências que ―podem ser aplicadas a uma grande variedade de empregos e permitir às pessoas adquirirem habilidades e conhecimentos específicos orientados para o trabalho, quando estiverem no local de trabalho‖ (SANTIAGO, 2002, p. 503). As OCEM alertam para o fato de que a mesma lógica que inseriu a filosofia no currículo, por ser útil a determinados fins, pode suprimi-la, se passar a considerá-la 17 É importante destacar que nas OCEM está registrado, erroneamente, como Artigo 36, inciso II, mas este, na verdade, trata do currículo e não das finalidades do ensino médio. 74 inconveniente. Seja como for, ―o estudante é considerado instrumento, ora perigoso, ora requintado. Em suma, mesmo que animado, um instrumento‖ (BRASIL, 2006, p. 29). Sob essa luz, a filosofia pode ser direcionada conforme o sentido político que lhe seja atribuído. O próprio documento afirma: ―Medir-se pelo que se espera é sempre delicado. Afinal, em uma sociedade desigual, pode esperar-se também o desigual, ameaçando um processo global de formação que deveria servir à correção da desigualdade‖ (BRASIL, 2006, p. 29). Em suma, parece ser reconhecida a influência do ideário neoliberal na educação brasileira, embora o tema não seja muito desenvolvido. Deixando, porém, de lado esse aspecto, o documento reconhece que a noção de competência se relaciona, de algum modo, com o trabalho filosófico, pois sendo da ordem das disposições, só pode ser lida e reconhecida à luz de matrizes conceituais específicas. Em certos casos, a competência mostrase na elaboração de hipóteses, visando à solução de problemas. Em outros casos, porém, uma vez que as competências não se desenvolvem sem conteúdos nem sem o apoio da tradição, a competência pode significar a recusa de soluções aparentes por recurso ao aprofundamento sistemático dos problemas (BRASIL, 2006, p. 30). É importante evidenciar que as competências e habilidades não se restringem à solução de problemas, mas tratam também do seu aprofundamento. No entanto, este necessita de ―conteúdos‖ e do ―apoio da tradição‖, o que permite supor a necessidade do suporte dos textos filosóficos (BRASIL, 2006, p. 30). As OCEM deixam claro que as competências referidas ao ensino de filosofia consistem, de maneira geral, no seguinte: De forma um tanto sumária, pode-se afirmar que se trata tanto de competências comunicativas, que parecem solicitar da Filosofia um refinamento do uso argumentativo da linguagem, para o qual podem contribuir conteúdos lógicos próprios da Filosofia, quanto de competências, digamos, cívicas, que podem fixar-se igualmente à luz de conteúdos filosóficos (BRASIL, 2006, p. 30). Dessa forma, o exercício da cidadania não consiste, necessariamente, no estudo dos conteúdos de ética e política, mas, sim, no fato de o aluno aceder à competência discursivo-filosófica; segundo as OCEM, essa ―sem dúvida, é a contribuição mais importante da Filosofia‖ (BRASIL, 2006, p. 30). As competências comunicativas que auxiliam na capacidade de leitura, análise, interpretação e crítica do estudante possibilitam a ele uma tomada de posição sobre um determinado texto. Segundo o documento, isso ―é um pressuposto necessário e decisivo para o exercício da autonomia e, por conseguinte, da cidadania‖ (BRASIL, 2006, p. 31). Dessa forma, a formação para a cidadania, da mesma 75 maneira que afirmam os PCN+, consiste no desenvolvimento das competências referentes ao universo da leitura (análise, investigação, crítica, interpretação etc.). São esses atributos que dão suporte ao sujeito para agir e intervir no mundo de forma autônoma. Daí a importância do texto filosófico. Referindo-se à competência leitora, qual tipo de leitura especificaria as competências voltadas ao ensino de Filosofia? Não podemos afirmar que o olhar analítico, investigativo, reflexivo, questionador seja atributo exclusivo desse saber, pois um cientista pode ter essas mesmas qualidades no desenvolvimento de seus estudos. Desse modo, conforme as OCEM (BRASIL, 2006, p. 31, grifos do autor): O fundamental aparece a seguir, conferindo a marca de conteúdo e de método filosófico: é imprescindível que ele tenha interiorizado um quadro mínimo de referências a partir da tradição filosófica, o que nos conduz a um programa de trabalho centrado primordialmente nos próprios textos dessa tradição, mesmo que não exclusivamente neles. Assim, quer como centro quer como referência, para recuperar uma distinção do professor Franklin Leopoldo e Silva, a história da Filosofia (não como um saber enciclopédico ou eclético) torna-se pedra de toque de nossa especificidade. Destaca-se a centralidade do texto filosófico (porém, não exclusivamente) na contribuição para a especificidade do ensino de filosofia no ensino médio, bem como na consecução dos seus objetivos. O que torna peculiar a competência leitora, no ensino de filosofia, é o olhar filosófico sobre os textos que compõem o universo da filosofia, visto que, para isso, é necessário ter assimilado um quadro de referências dos conteúdos do campo filosófico. Isso implica, necessariamente, o contato com a leitura da história da filosofia e dos textos da tradição filosófica. É importante destacar que não se espera que o ensino de filosofia seja trabalhado apenas com os textos da tradição, mas deve-se colocá-los como recurso central, visto que proporcionam a sua especificidade como disciplina. As OCEM indicam algumas habilidades e competências que se esperam de um professor de filosofia no ensino médio, a saber: a) capacitação para um modo especificamente filosófico de formular e propor soluções a problemas, nos diversos campos do conhecimento; b) capacidade de desenvolver uma consciência crítica sobre conhecimento, razão e realidade sócio-histórico-política; c) capacidade para análise, interpretação e comentário de textos teóricos, segundo os mais rigorosos procedimentos de técnica hermenêutica; d) compreensão da importância das questões acerca do sentido e da significação da própria existência e das produções culturais; e) percepção da integração necessária entre a Filosofia e a produção científica, artística, bem como com o agir pessoal e político; 76 f) capacidade de relacionar o exercício da crítica filosófica com a promoção integral da cidadania e com o respeito à pessoa, dentro da tradição de defesa dos direitos humanos (BRASIL, 2006, p. 31). Além disso, o professor egresso do curso de filosofia (licenciado ou bacharel) deve ter uma ―sólida‖ formação em história da filosofia, que o capacite a: a) compreender os principais temas, problemas e sistemas filosóficos; b) servir-se do legado das tradições filosóficas para dialogar com as ciências e as artes, e refletir sobre a realidade; c) transmitir o legado da tradição e o gosto pelo pensamento inovador, crítico e independente (BRASIL, 2006, p. 32). Espera-se ainda que o professor de filosofia desenvolva competências e habilidades similares nos alunos do ensino médio, sempre se valendo daquilo que é peculiar ao ensino de filosofia: ―o recurso à tradição filosófica‖, servindo-se desse legado e transmitindo-o. O documento complementa: Caso tome, por exemplo, a primeira competência, a preparação para a ―capacitação para um modo filosófico de formular e propor soluções de problemas‖ implica que o professor de Filosofia tenha, em sua formação, familiaridade com a História da Filosofia – em especial, com os textos clássicos. Esse deve ser seu diferencial, sua especificidade (BRASIL, 2006, p. 32, grifos nossos). Exige-se, portanto, do professor de filosofia conhecimento adequado dos textos clássicos, o que, de resto, é coerente com a centralidade desses textos no ensino de filosofia, afirmada pelas Orientações. As OCEM reconhecem a crítica sobre a dicotomia entre aprender a filosofar e aprender filosofia. Entende que essa dicotomia ―pode ter papel enganador, servindo para encobrir, muitas vezes, a ausência de formação em véus de suspeita competência argumentativa de pretensos livres-pensadores‖ (BRASIL, 2006, p. 32). Nessa crítica, o documento apoia-se na afirmação de Silvio Gallo e Walter O. Kohan (2000b, p. 184): ―a própria prática da filosofia leva consigo o seu produto e não é possível fazer filosofia sem filosofar, nem filosofar sem fazer filosofia‖. Sendo assim, não se opõe o conteúdo à forma, visto que ambos se complementam. As Diretrizes para os cursos de Graduação em Filosofia, segundo as OCEM (BRASIL, 2006, p. 33), afirmam que a [...] tarefa do professor, ao desenvolver habilidades, não é incutir valores, doutrinar, mas sim despertar os jovens para a reflexão filosófica, bem como transmitir aos alunos do ensino médio o legado da tradição e o gosto pelo pensamento inovador, crítico e independente. O desafio é, 77 então, manter a especificidade de disciplina, ou seja, o recurso ao texto, sem objetivá-lo. O cuidado que o professor deve preservar nas aulas é não reproduzir ―a técnica de leitura que o formou‖ na graduação; antes, deve buscar associar temas a textos, procurando meios de despertar o interesse do aluno para ―a reflexão filosófica e de articular conceitualmente os diversos aspectos culturais que então se apresentam‖ (BRASIL, 2006, p. 33). Essa perspectiva deixa clara a necessidade de se trabalhar uma metodologia de leitura adequada às condições dos educandos, sobretudo quando se tratar de textos filosóficos, para que estes sejam bem compreendidos. O documento apresenta, como sugestão, uma lista de temas 18 que podem ser trabalhados nas aulas de filosofia. ―Trata-se de referências, de pontos de apoio para a montagem de propostas curriculares e não de uma proposta curricular propriamente dita‖. Em se tratando de propostas, são passíveis de mudanças, porém devem ―valer-se de textos filosóficos, cuidadosamente selecionados‖. Novamente a insistência quanto ao recurso ao texto filosófico. É importante também que o professor não torne as aulas ―um somatório de ideias que o estudante deva decorar‖, mas, sim, um espaço para uma ―visão crítica‖ e ―trabalho do conceito‖ (BRASIL, 2006, p. 34. Grifos do autor.). Tratando da metodologia, diz o documento (BRASIL, 2006, p. 36): ―Para que o aluno desenvolva as competências esperadas ao final do ensino médio, não pode haver uma separação entre conteúdo, metodologia e formas de avaliação‖. Dentre os recursos mais 18 1) Filosofia e conhecimento; Filosofia e ciência; definição de Filosofia; 2) validade e verdade; proposição e argumento; 3) falácias não formais; reconhecimento de argumentos; conteúdo e forma; 4) quadro de oposições entre proposições categóricas; inferências imediatas em contexto categórico; conteúdo existencial e proposições categóricas; 5) tabelas de verdade; cálculo proposicional; 6) filosofia pré-socrática; uno e múltiplo; movimento e realidade; 7) teoria das ideias em Platão; conhecimento e opinião; aparência e realidade; 8) a política antiga; a República de Platão; a Política de Aristóteles; 9) a ética antiga; Platão, Aristóteles e filósofos helenistas; 10) conceitos centrais da metafísica aristotélica; a teoria da ciência aristotélica; 11) verdade, justificação e ceticismo; 12) o problema dos universais; os transcendentais; 13) tempo e eternidade; conhecimento humano e conhecimento divino; 14) teoria do conhecimento e do juízo em Tomás de Aquino; 15) a teoria das virtudes no período medieval; 16) provas da existência de Deus; argumentos ontológico, cosmológico, teleológico; 17) teoria do conhecimento nos modernos; verdade e evidência; ideias; causalidade; indução; método; 18) vontade divina e liberdade humana; 19) teorias do sujeito na filosofia moderna; 20) o contratualismo; 21) razão e entendimento; razão e sensibilidade; intuição e conceito; 22) éticas do dever; fundamentações da moral; autonomia do sujeito; 23) idealismo alemão; filosofias da história; 24) razão e vontade; o belo e o sublime na Filosofia alemã; 25) crítica à metafísica na contemporaneidade; Nietzsche; Wittgenstein; Heidegger; 26) fenomenologia; existencialismo; 27) Filosofia analítica; Frege, Russell e Wittgenstein; o Círculo de Viena; 28) marxismo e Escola de Frankfurt; 29) epistemologias contemporâneas; Filosofia da ciência; o problema da demarcação entre ciência e metafísica; 30) Filosofia francesa contemporânea; Foucault; Deleuze (BRASIL, 2006, p. 34). 78 empregados está a aula expositiva com o apoio de debates ou trabalhos em grupo. Grande parte dos professores adota ―os livros didáticos (manuais) ou compõe apostilas com formato semelhante ao do livro didático; mesmo assim, valem-se da aula expositiva em virtude da falta de recursos mais ricos e de textos adequados‖ (BRASIL, 2006, p. 36). O documento não esclarece o que quer dizer quando se refere à falta de textos adequados. No entanto, tendo como referência os aspectos levantados acima, pode-se inferir que se trata de textos filosóficos, aos quais, possivelmente, professores e estudantes não teriam acesso, seja pela sua ausência física na escola, seja pelo seu alto grau de complexidade, que os tornariam inacessíveis para a maioria dos alunos. Segundo as OCEM, ―em função de alguns elementos preponderantes, como o uso do manual e a aula expositiva, é possível dizer que a metodologia mais empregada no ensino de Filosofia destoa da concepção de ensino de Filosofia que pretende‖ (BRASIL, 2006, p. 36). Isso por duas razões: pelo fato de que boa parte dos professores que leciona filosofia é formada em outras áreas, mesmo havendo um número suficiente de vagas de cursos de graduação em filosofia, de boa qualidade; ou porque os licenciados não têm condições de desenvolver o ensino de filosofia desejável. Isso, de maneira geral, acarreta uso inadequado de material didático, mesmo quando, eventualmente, esse tenha qualidade. Dessa forma, o texto filosófico é, então, interpretado à luz do historiador, do pedagogo, do geógrafo, de modo que a falta de formação específica pode reduzir o tratamento dos temas filosóficos a um arsenal de lugares-comuns (BRASIL, 2006, p. 36). Atualmente vem aumentando o número de professores das escolas públicas de ensino médio formados em filosofia, mas, por diversos fatores, ainda há muitos professores sem formação específica atuando nesse ensino. Nesse cenário, o trabalho com o texto filosófico pode não alcançar os objetivos desejados e comprometer a qualidade desse ensino. Por outro lado, vale ressaltar que ter um professor formado em filosofia não significa, necessariamente, que haverá aulas satisfatórias com o uso do texto filosófico, visto que a qualidade da formação também determina a boa atuação do docente em sala de aula. Afirmam as OCEM que o ―texto filosófico (primários de preferência)‖ é um elemento ―central‖ no desenvolvimento das competências específicas da filosofia, sobretudo no que se refere à história da filosofia, porém, o documento reforça a ideia de que não se devem excluir outros tipos de texto, visto que ―o exercício de busca e reconhecimento de problemas filosóficos em textos de outra natureza, literários e jornalísticos, por exemplo, não deixa de ser salutar, contanto que não se desloque, com isso, 79 o primado do texto filosófico‖ (BRASIL, 2006, p. 37). Reforça-se aqui, mais uma vez, o espaço central do texto filosófico nesse ensino. As OCEM também chamam a atenção para o cuidado que o professor deve ter com o risco da doutrinação e a importância da história da filosofia como ―medida de controle‖ para evitar esse risco: [...] Certamente ninguém trabalha uma questão filosófica se situando fora de suas próprias referências intelectuais, sendo inevitável que o professor dê seu assentimento a uma perspectiva. Essa adesão, entretanto, tem alguma medida de controle na referência à História da Filosofia, sem a qual seu labor torna-se-ia mera doutrinação. Além disso, tendo esse pano de fundo, mais que incutir valores o professor deve convidar os alunos à prática da reflexão. A Filosofia, afinal, ao contrário do que se faria em qualquer tipo de doutrinação, deveria instaurar procedimentos, como o de nunca dar sua adesão a uma opinião sem antes submetê-la à crítica (BRASIL, 2006, p. 37). A referência à história da filosofia, portanto, é o caminho para o desenvolvimento da capacidade de reflexão e de crítica e, ao mesmo tempo, uma forma de desviar-se da doutrinação. No entanto, o documento não esclarece como se dá essa medida de controle pela história da filosofia. Em relação à estruturação do currículo e às práticas pedagógicas, a centralidade da história da filosofia tem ―méritos adicionais‖: (i) solicita uma competência profissional específica de sorte que os temas próprios da Filosofia devam ser determinados por uma tradição de leitura consolidada em cursos de licenciaturas próprias; (ii) solicita do profissional já formado continuidade de pesquisa e formação especificamente filosóficas; (iii) evita a gratuidade da opinião, com a qual imperariam docentes malformados, embora mais informados que seus alunos, suprimindo o lugar da reflexão e da autêntica crítica; e (iv) determina ainda o sentido da utilização de recursos didáticos e de quem pode usar bem esses recursos, de modo que sejam filosóficas as habilidades de leitura adquiridas (BRASIL, 2006, p. 37). Observa-se, portanto, que, na perspectiva das Orientações, uma das vantagens da centralidade da história da filosofia é justamente a exigência de uma prática de leitura, tanto para o professor quanto para o aluno, necessária à consecução dos objetivos da disciplina. Novamente aparece, embora implicitamente, a importância do texto filosófico. As OCEM afirmam que o profissional, tendo a formação filosófica e a história da filosofia como referência, deve buscar recursos e práticas pedagógicas diferenciadas para atrair o interesse dos alunos, como dinâmicas de grupo, recursos audiovisuais, filmes, 80 dramatizações, entre outros, porém é fundamental que o docente não sobreponha esses recursos aos textos filosóficos (BRASIL, 2006, p. 38). Silveira (2000, p. 143) reforça a importância desses textos para a reflexão filosófica: [...] textos específicos de Filosofia que abordem os temas estudados, incluindo-se aqui, sempre que possível, textos ou excertos dos próprios filósofos, pois é neles que os alunos encontrarão o suporte teórico necessário para que sua reflexão seja, de fato, filosófica. O desafio é garantir a especificidade da filosofia no ensino médio, diante de duas condições: a complexidade de algumas questões desse saber e as condições de ensino encontradas, as quais, infelizmente, nos dias de hoje, não são das mais favoráveis: há grandes e complexas situações que dificultam, limitam e, até mesmo, impedem o processo da aprendizagem. Como nos diz o documento (BRASIL, 2006, p. 38), podem-se correr dois riscos: num extremo, transportar para o ensino médio ―uma versão reduzida do currículo da graduação e a mesma metodologia que se adota nos cursos de graduação e pós-graduação em Filosofia; ou [...] procurando torná-la acessível [...] falseá-la pela banalização do pensamento filosófico‖. Também não se deve banalizar o ensino de filosofia com uma espécie de ―ecletismo‖, ou seja, ―uma saída de emergência para professores sem formação devida [...]. Em versão mais generosa, o ecletismo afirmaria apenas a parte positiva das doutrinas, suprimindo qualquer negatividade‖. Tal abordagem também poderia limitar o conhecimento filosófico a uma abordagem superficial, precária, comprometendo, assim, seus objetivos quanto à formação dos estudantes. Por isso, [...] o professor com honestidade intelectual deva situar-se em uma perspectiva própria, o que indica maturidade e boa formação. Assim, em vez de uma posição soberana que pretenda suprimir o próprio debate filosófico, parece necessário retornar, também com perspectivas próprias, ao debate e a textos selecionados que sirvam de fundamento à reflexão (BRASIL, 2006, p. 38). Ainda em relação ao professor de filosofia, as OCEM (BRASIL, 2006, p. 39) afirmam que as Diretrizes Curriculares para os Cursos de Graduação em Filosofia determinam que o licenciado deverá estar habilitado para enfrentar com sucesso os desafios e as dificuldades inerentes à tarefa de despertar os jovens para a reflexão filosófica, bem como transmitir aos alunos do ensino médio o legado da tradição e o gosto pelo pensamento inovador, crítico, e independente. 81 Segundo o documento, é importante que se desperte o interesse dos jovens pelos ―temas clássicos da filosofia‖, a fim de que pensem seus problemas à luz desses temas. Ademais, não se deve perder de vista a especificidade da filosofia, bem como se deve promover o diálogo com as outras áreas do saber. Desse modo, é importante investir na formação do professor de filosofia do ensino médio, na ―reflexão‖ e na ―produção de novos materiais‖ (BRASIL, 2006, p. 39). Em suma, as OCEM se referem aos textos dos próprios filósofos como ―textos filosóficos‖ ― textos clássicos‖ ou ―textos propriamente filosóficos e primários‖. Definem a filosofia como disciplina responsável pelo desenvolvimento das competências comunicativas que se referem à formação geral da fala, da leitura e da escrita, competências fundamentais para a constituição da cidadania. Consideram fundamental o uso de textos filosóficos e não filosóficos, sendo os primeiros peça central, pois proporcionam um quadro referencial do universo da filosofia que auxilia na leitura filosófica, ou seja, problematizadora e crítica. Pela mesma razão esses textos contribuem para configurar a especificidade do ensino de filosofia. O documento também apresenta as competências que se esperam dos professores de filosofia ao se formarem nos cursos de graduação, nas quais, quatro delas referem-se, de certa forma, à habilidade de trabalhar com os textos filosóficos: capacidade de análise de textos teóricos; formação sólida sobre a história da filosofia; transmissão do legado da tradição e servir-se dele para dialogar com outros saberes. Isso evidencia a importância dada pelas Orientações ao texto filosófico, o qual, no entanto, exige uma adaptação didática para que sejam devidamente aproveitados pelos estudantes do ensino médio. Tal adaptação depende em grande parte da percepção e da experiência do professor. Esse é um dos grandes desafios do ensino de filosofia. O texto filosófico e os documentos Uma síntese geral dos documentos analisados neste capítulo revela que os PCN+ e as OCEM tratam o texto filosófico como o texto primeiro, ou seja, o texto do próprio filosófico, seja na íntegra ou como um excerto; por sua vez, os PCNEM, não afirmam de maneira explícita. Apresentam como competência a ser desenvolvida no educando a capacidade de ler textos filosóficos significativamente, e destacam a sua centralidade no ensino de filosofia, embora devam-se recorrer também a outros gêneros de texto. 82 A principal competência associada ao ensino de filosofia é a competência discursivo-filosófica, que consiste na capacidade do educando de apropriar-se do texto, de modo a compreendê-lo e problematizá-lo. Para desenvolvê-la, a leitura analítica é uma das estratégias metodológicas recomendadas ao professor. O quadro referencial da tradição filosófica é considerado fundamental para dar suporte à formação crítica do educando e, de acordo com os PCN+ e os OCEM, é o que constitui a especificidade do ensino de filosofia. Esses documentos destacam a importância de, por um lado, não se trabalhar os textos filosóficos em um nível acadêmico e, por outro lado, não banalizá-los de modo que sua leitura e reflexão permaneçam ao nível do senso comum. Em suma, o texto filosófico é um recurso primordial no ensino de filosofia, pois tem um papel decisivo no desenvolvimento da competência discursivo-filosófico, principal objetivo desse ensino. No entanto, sua utilização, para ser eficaz, deve levar em consideração as dificuldades enfrentadas pelos estudantes do ensino médio das escolas públicas, tais como a falta de pré-requisitos no que se refere à leitura e a escrita, por exemplo. Ora, nessas condições, como deve ser trabalhado o texto filosófico para que se evitem leituras, reflexões e análises fundamentadas no senso comum ou, por outro lado, distanciá-lo ainda mais dos estudantes? Essa questão será retomada adiante. Antes, porém, seguindo no caminho aqui proposto, cumpre examinar como o texto filosófico é compreendido pelo Currículo Oficial do Estado de São Paulo e que papel este lhe é atribuído. É o que será feito no próximo capítulo. 83 CAPÍTULO III - O ENSINO DE FILOSOFIA E O TEXTO FILOSÓFICO NO CURRÍCULO DO ESTADO DE SÃO PAULO Neste capítulo analisaremos a forma como os textos filosóficos são abordados e aplicados no Currículo do estado de São Paulo no ensino de filosofia. Para contextualizar, apresentaremos inicialmente um breve histórico deste Currículo, no que se refere à sua implementação, seus princípios e aos materiais didáticos da SEESP – o Caderno do Professor e o Caderno do Aluno. Em seguida, analisaremos de que maneira são propostos os textos filosóficos em algumas das Situações de Aprendizagem. 1. O Currículo oficial do estado de São Paulo A implementação do Currículo oficial e os materiais didáticos da SEESP Em 2008, a SEESP apresentou a Proposta Curricular do estado de São Paulo, com o objetivo de mobilizar professores e coordenadores para que, com suas análises, críticas e sugestões, complementassem o Currículo Oficial do estado de São Paulo, concluído em 2009. Alegava-se que a autonomia escolar que a LDB determinou para que as unidades escolares elaborassem seus próprios projetos pedagógicos havia sido importante, porém, ―ineficiente‖. Sendo assim, propôs-se uma ―ação integrada e articulada‖, com o intuito de organizar melhor o sistema educacional do estado de São Paulo (SÃO PAULO, 2008). Os materiais didáticos próprios da SEESP tornaram-se disponíveis a partir de 2008: nesse ano, o Caderno do Professor e, em 2009, o Caderno do Aluno. É importante destacar que a mobilização dos professores para contribuir com a complementação do material foi feita enquanto esse material era utilizado nas escolas, ou seja, os professores o receberam pronto. Isso sugere que só seriam admitidas as complementações propostas que não 84 afetassem diretamente a estrutura do material, pois o mínimo foi alterado. Sendo assim, a contribuição dos professores foi secundária. O Caderno do Professor e o do Aluno passaram por algumas mudanças desde a sua implantação. Em 2008, o material do Professor era organizado da seguinte forma: em suas respectivas disciplinas, cada série estava dividida em quatro cadernos e cada um deles correspondia aos respectivos quatro bimestres. No caso da disciplina de filosofia, o caderno restringia-se à 1ª e à 2ª séries, pois, na grade curricular daquele ano, no que tange ao ensino médio, determinou-se que a filosofia só seria ministrada nessas séries. Em 2009, o ensino de filosofia estendeu-se para a 3ª série do ensino médio, tendose produzido, então, os respectivos Cadernos do Professor e do Aluno. Para todas as disciplinas, alterou-se o termo ―bimestre‖ para ―volume‖, e tanto o Caderno do Professor quanto o Caderno do Aluno, nas suas respectivas disciplinas e séries, permaneceram divididos em quatro volumes. Essa estrutura seguiu da mesma forma até 2013, quando se enfatizou a caracterização desse material como recurso e apoio ao Currículo do estado de São Paulo, pois, desde a sua implantação, muitos professores entendiam esse material como compulsório e julgavam que deveriam segui-lo sem qualquer alteração. Ao que parece, esse foi o motivo do acréscimo na denominação do material, registrando-se, nas contracapas, a seguinte intitulação: ―Material de apoio ao Currículo do Estado de São Paulo‖. Na realidade, a questão da não obrigatoriedade do uso dos materiais não estava clara no início da sua implantação. No decorrer dos anos, devido às diversas reclamações por parte dos professores, procurou-se enfatizá-la. No entanto, há algo de imperativo no material, como se pode depreender do trecho abaixo, extraído do Caderno do Professor da 3ª série, no volume 3, de 2009: [...] os professores poderão adequar seu planejamento, selecionando as atividades em cada uma das Situações de Aprendizagem, de acordo com as condições de sua turma e de sua escola. Preservados os objetivos educacionais da Proposta Curricular, conteúdos e competências podem ser planejados, tendo em vista o tempo, as condições cognitivas e os recursos materiais de cada unidade escolar (SÃO PAULO, 2009, p. 8). A obrigatoriedade, portanto, refere-se aos objetivos do Currículo. No caso das Situações de Aprendizagem sugeridas, se for necessário, o professor pode adequá-las, desde que os objetivos não sejam comprometidos. Em 2014 – edição que seguirá até 2017 –, esses materiais (tanto do professor quanto do aluno) não foram mais divididos em quatro volumes, mas, sim, em dois, dos 85 quais o primeiro corresponde aos conteúdos que faziam parte dos antigos primeiro e segundo volumes, e o segundo corresponde aos conteúdos que compunham os antigos terceiro e quarto volumes. Isto é, reduziu-se o número de cadernos, organizando-os da seguinte forma: dois cadernos por cada série e disciplina, tanto para os materiais do professor quanto para os do aluno. Nos Cadernos do Professor e do Aluno da disciplina de filosofia, há excertos de textos filosóficos em todas as séries. Em algumas Situações de Aprendizagem há textos grandes (uma lauda), médios e curtos, acompanhados de atividades. Esse tema será desenvolvido mais à frente. O Currículo e o papel da filosofia e do texto filosófico Para responder às condições estabelecidas pela sociedade contemporânea, marcadas pelo uso intensivo do conhecimento, ―seja para trabalhar, conviver ou exercer a cidadania, seja para cuidar do ambiente em que se vive‖ (SÃO PAULO, 2010, p. 8), o Currículo apresenta seis princípios: 1) a escola que aprende; 2) o currículo como espaço de cultura; 3) as competências como eixo de aprendizagem; 4) a prioridade da competência de leitura e de escrita; 5) a articulação das competências para aprender; e 6) a contextualização no mundo do trabalho. Sendo a sociedade contemporânea marcada pelo acentuado uso do conhecimento, o desafio é garantir a todos uma educação de qualidade que desenvolva competências cognitivas e afetivas que subsidiem o educando a gerenciar sua aprendizagem (SÃO PAULO, 2010, p. 8). Conforme o Currículo, ―[...] a tecnologia imprime um ritmo sem precedentes ao acúmulo de conhecimentos e gera profunda transformação quanto às formas de estrutura, organização e distribuição do conhecimento acumulado‖. Dessa forma, com base nessas mudanças, a capacidade de aprender deve ser trabalhada tanto no aluno quanto na própria escola (SÃO PAULO, 2010, p. 10). Ora, tendo como base essas transformações, de que modo o Currículo vê a finalidade do texto filosófico no ensino médio? Para ele, ―[...] trabalhar os textos de um pensador é algo da maior importância. Entretanto, sem a preocupação de fazer pensar o seu leitor contemporâneo, este é um exercício que não se presta aos objetivos do ensino de filosofia‖ (SÃO PAULO, 2010, p. 118). E adverte que ―terá dificuldade o professor que 86 encerrar um filósofo em uma espécie de caixa-preta, tentando isolar seu pensamento, imaginando que a arquitetura do texto, por si só, poderá levar a qualquer forma de compreensão ou reflexão‖ (SÃO PAULO, 2010, p. 118). Nessa perspectiva, entende-se que o papel do texto filosófico no ensino de filosofia do ensino médio consiste em fazer com que o educando reflita sobre o pensamento do autor a partir do seu próprio contexto, ou seja, que atualize para o seu tempo os problemas tratados na leitura. No entanto, que tipo de reflexão está se propondo? Pois, como diz Saviani (1984, p. 23), ―se toda reflexão é pensamento, nem todo pensamento é reflexão‖. É referido no Currículo que o objetivo da filosofia no ensino médio é ―ampliar o significado e os objetivos sociais e culturais da educação‖, proporcionando reflexões aos estudantes para que melhor compreendam as ―relações histórico-sociais‖, bem como para inseri-los no ―universo subjetivo das representações simbólicas‖, a fim de elevá-los a um ―[...] nível político-existencial que supere as meras transmissão e aquisição de conteúdos, feitas de modo mecânico e inconsciente‖ (SÃO PAULO, 2010, p. 26). Essa perspectiva supõe que a reflexão proposta para os educandos se refira à sua capacidade de trabalhar as informações adquiridas nas aulas, fazendo suas análises, interpretações, seus questionamentos e suas contextualizações da maneira mais coerente e rigorosa possível. Como vimos, um dos princípios norteadores do Currículo são as competências a serem desenvolvidas pelos educandos, as quais são tomadas como ―eixo de aprendizagem‖. Conforme o documento, ―um currículo que promove competências tem o compromisso de articular as disciplinas e as atividades escolares com aquilo que se espera que os alunos aprendam ao longo dos anos‖. Essas competências, de maneira geral, ―caracterizam modos de ser, de raciocinar e de interagir que podem ser depreendidos das ações e das tomadas de decisão em contextos de problemas, de tarefas ou atividades‖ (SÃO PAULO, 2010, p. 12). Ora, se as competências são uma referência central, cabe perguntar quais são necessárias para que um educando tenha condições de ler um texto filosófico. Naturalmente, a competência da leitura, juntamente com a da escrita, é considerada prioritária pelo Currículo e constitui outro de seus princípios, que estabelece que ―o domínio do código não é suficiente para garantir a comunicação‖. Por isso, o desenvolvimento da competência linguística refere-se ao ―[...] domínio da competência performativa: o saber usar a língua em situações subjetivas ou objetivas que exijam graus de distanciamento e de reflexão sobre contextos e estatutos de interlocutores [...]‖ (SÃO 87 PAULO, 2010, p. 15). Essa perspectiva parece atender à finalidade proposta para a leitura do texto filosófico, visto que sugere uma leitura reflexiva. Portanto, o papel da filosofia é ampliar o significado e os objetivos sociais e culturais da educação, de maneira que o educando possa refletir, evitando a mera assimilação dos conhecimentos, de modo inconsciente e mecânico. Por sua vez, o texto filosófico deve fazer seu leitor pensar a partir do seu próprio contexto, isto é, o educando precisa refletir sobre ele com base nos problemas e nas questões que está vivenciando. Sendo a competência performativa uma capacidade linguística além do domínio técnico sobre o uso da norma-padrão, que desenvolve reflexões interpretativas e analíticas, é a que mais se adequa ao desenvolvimento da leitura dos textos filosóficos. No entanto, resta saber se as condições e a organização da educação do estado de São Paulo permitem que o educando leia e compreenda, pelo menos de forma minimamente satisfatória, um texto filosófico. 2. O texto filosófico no Caderno de filosofia do professor e do aluno Nossa proposta é identificar e analisar, nos Cadernos do Professor e do Aluno da disciplina de filosofia, somente os textos filosóficos primeiros. Não serão considerados, portanto, os textos de comentadores, bem como daqueles elaborados pelos autores dos Cadernos, independentemente de conterem ou não excertos filosóficos. O objetivo é analisar e discutir a forma como os textos primeiros são incorporados ao material didático, destacando-se os objetivos a eles associados, suas orientações e as atividades propostas para sua utilização. Para tanto, será utilizada a última edição dos Cadernos, a saber, a de 2014-2017, enfatizando o Caderno do Professor, visto que ele reúne todos os textos que estão no Caderno do Aluno e é nele que se pode encontrar a orientação didática para o uso desses textos. Recorreremos, porém, esporadicamente ao Caderno do Aluno, quando alguma atividade referente aos textos filosóficos estiver registrada somente nele. Examinaremos, primeiramente, as orientações propostas em cada volume dos Cadernos do Professor. Em seguida, analisaremos as Situações de Aprendizagem à luz do texto filosófico. 88 Orientações do Caderno do Professor Analisaremos as orientações sobre o Caderno à luz do texto filosófico. Nosso objetivo é compreender de que forma o texto filosófico é tratado, no que se refere às competências propostas, às metodologias e às avaliações. Como as orientações dos volumes de cada Caderno e série são, de certa forma, as mesmas, abordaremos todas em uma perspectiva geral, exceto quando for necessário especificar orientações que não são recomendadas para todos os Cadernos. O texto filosófico deve ser avaliado pelo professor De acordo com o Caderno do Professor, as propostas estão alicerçadas ―[...] em excertos de textos da tradição filosófica‖ (SÃO PAULO, 2014c, p. 7), inseridos na maioria das Situações de Aprendizagem. Elas ―[...] devem ser avaliadas por você e consideradas, sempre, em função da experiência adquirida na convivência com os alunos nos ambientes em que são desenvolvidas suas atividades docentes‖ (SÃO PAULO, 2014a, p. 5). Nesse sentido, assume-se a posição de que as propostas ―[...] não se configuram como uma camisa de força, mas sim como sugestões‖ (SÃO PAULO, 2014c, p. 8). Além disso, recomenda-se que ―[...] para seguir o Currículo você não precisa nem deve ficar restrito apenas aos Cadernos‖. Adverte-se que, caso adote um livro didático, o docente deve complementar com outros recursos e planejamento, a fim de atender ao Currículo (SÃO PAULO, 2014d, p. 5). Portanto, admite-se que o professor avalie as recomendações segundo sua experiência com seus educandos, bem como considere se os educandos têm condições de acompanhar as atividades propostas. Sendo assim, supõe-se que haja a possibilidade de adaptar, substituir ou, até mesmo, omitir as atividades, porém, tendo como referência os limites e as possibilidades dos educandos. Dessa maneira, o texto filosófico também se encontra nessas condições. Contudo, mesmo havendo a possibilidade de mudança, ainda é um desafio para o professor trabalhar com ele, qualquer que seja o trecho ou o autor escolhido, principalmente devido às limitações da maioria dos estudantes no que se refere às competências leitoras e escritoras. Além de o professor ter como referência as condições do estudante no acompanhamento das aulas, também não deve ignorar o Currículo. De acordo com o 89 Caderno do Professor, o docente tem autonomia para ―[...] planejar e preparar as aulas, selecionar os textos e os pensadores que melhor se adequam aos temas curriculares e ao desenvolvimento das competências e habilidades, referência do Currículo Oficial do Estado de São Paulo‖. E o Caderno destaca que ―[...] a aplicação do Currículo é indispensável‖ (SÃO PAULO, 2014d, p. 5). Posto isto, estabelece-se que a autonomia do professor se restringe ao planejamento e à preparação das aulas, os quais, contudo, devem ser elaborados a partir do Currículo. Nesse sentido, os temas curriculares e as competências e habilidades propostas não devem ser alterados significativamente. Sendo assim, no que tange à escolha do texto filosófico, sua alteração pode ocorrer, desde que não interfira nos objetivos dos temas curriculares e das competências e habilidades. É importante mencionar que, seja qual for a mudança feita com o texto filosófico, o professor precisa estar atento aos objetivos da Situação de Aprendizagem, a fim de que não proponha algum texto que, no conjunto do plano de aula, fique inadequado. Competências e metodologia As competências a serem desenvolvidas nos alunos giram em torno da ―argumentação filosófica‖, que, de acordo com o Caderno do Professor, [...] procura, de forma elementar, permitir aos alunos reconstruir racionalmente uma questão, compreender e tomar posição diante de eventos, conceitos e ideias ‗materializados‘ em textos. Essa reconstrução, mesmo que modesta, deve levar o aluno à crítica, com a perspectiva de dar nova significação aos problemas da tradição filosófica relacionados, principalmente, à realidade social, histórica e política no contexto atual (SÃO PAULO, 2014f, p. 8). Para isso, é imprescindível que os textos – filosóficos ou não – estejam adequados aos estudantes e muito bem contextualizados pelos professores, visto que, para que os primeiros reconstruam uma questão, tomem uma posição ou deem nova significação aos problemas da tradição filosófica, é indispensável que tenham assimilado as principais ideias e os argumentos dos textos. Por isso, o Caderno do Professor destaca que, para o desenvolvimento dessas competências e habilidades, exige-se ―[...] o exercício da leitura, da escrita e da prática dialógica‖ (SÃO PAULO, 2014i, p. 8). Sendo assim, a importância da competência da leitura é clara, pois os temas ―[...] devem ser estudados principalmente com base na análise de textos – leitura, interpretação, compreensão, síntese, associação, classificação, 90 comparação, organização, caracterização, estabelecimento de relações e conclusão‖ (SÃO PAULO, 2014a, p. 6). Os textos, então – e não é diferente com os textos filosóficos –, devem ser objetos de análise do estudante, de forma que ele possa desenvolver as habilidades referidas na citação acima. Daí a importância de selecionar excertos filosóficos que deem condições para que os estudantes desenvolvam essas habilidades, visto que são recursos, de certa forma, mais complexos, em virtude, sobretudo, do seu vocabulário e do pouco conhecimento que os estudantes têm sobre a filosofia, de maneira geral. De acordo com o Caderno do Professor, a perspectiva dialógica consiste em ―[...] ouvir os alunos e ser ouvido por eles; dialogar com base no que se ouve na sala de aula e se lê nos textos filosóficos [...]‖ (SÃO PAULO, 2014a, p. 5, grifos nossos), procurando propiciar uma reflexão crítica por meio dos textos, relacionando-os com o contexto do estudante e produzindo suas próprias reflexões por escrito. Infere-se que o texto filosófico citado acima se refere ao texto do filósofo, visto que, em grande parte das Situações de Aprendizagem, há variados excertos de obras filosóficas. O Caderno do Professor também destaca que é necessário estar atento aos ―[...] documentos norteadores do ensino desta disciplina, que enfatizam a necessidade de se trabalhar com textos filosóficos de modo significativo‖ (SÃO PAULO, 2014f, p. 9). Essa abordagem deve ocorrer quando ―[...] o aprendizado da tradição filosófica se manifesta na sociedade contemporânea, na experiência do indivíduo e no coletivo, conduzindo o estudante a provocações, diálogos e investigações‖. Para tanto, nas Situações de Aprendizagem, é preciso estabelecer conexões entre: [...] a retomada da explicação do professor, a pesquisa do vocabulário específico da Filosofia, exercícios que, por meio de excertos de textos, conduzam à reflexão, a inferências, hipóteses e respostas possíveis, pesquisas sobre alguns filósofos e suas ideias e posicionamentos diante de alguns temas a partir de sua visão de mundo, as quais condicionam a interpretação e elaboração de redações de cunho filosófico (SÃO PAULO, 2014c, p. 8). Do mesmo modo que é importante que as atividades sejam significativas para o estudante, sua coerência com os objetivos da proposta também deve ser igualmente considerada. De acordo com o Caderno do Professor, é incentivado: [...] nas Situações de Aprendizagem a leitura, a análise para a compreensão do texto, a partir de pesquisas que visam ampliar o 91 vocabulário, em especial, permitir que os alunos tenham acesso aos termos filosóficos. Há, ainda, a indicação de questões que se propõem a fazer que o aluno se remeta ao texto preferencialmente ou à explicação do professor. E, em menor frequência, mas não em menor importância, destacamos o papel da redação, que não especificamos como dissertação, pois esta deve ser uma opção do professor, [...] Contudo, lembramos que a dissertação é ocasião privilegiada para o exercício da reflexão filosófica (SÃO PAULO, 2014d, p. 6, grifos nossos). As orientações indicam também que as questões propostas sejam respondidas, preferencialmente, à luz do texto, e que a autonomia do estudante, no que tange à leitura, seja motivada. Embora os incentivos propostos para a compreensão do texto girem em torno do direcionamento de pesquisa, do exercício de responder questões e da elaboração de redações, é importante também propor estratégias que auxiliem na leitura e na análise, sobretudo do texto filosófico. Em alguns casos, isso seria indispensável, visto que há textos filosóficos mais complexos. Uma proposta poderia ser a orientação de algumas técnicas de leitura analítica, porém, desde que o excerto sugerido dê condições para isso. Severino (2009, p. 13) explica que a leitura analítica é [...] o processo de decodificação de um texto escrito, com vistas à apreensão/recepção da mensagem nele contida. Por essa modalidade de leitura, entende-se aquela abordagem de um texto a partir dos seguintes objetivos: apreender a mensagem global da unidade de leitura, de modo que o leitor tenha uma visão da integralidade do raciocínio desenvolvido pelo autor, levando-o tanto à compreensão dessa mensagem como à sua interpretação. Um aspecto fundamental no desenvolvimento da leitura analítica é a possibilidade de seu leitor adquirir uma visão global do raciocínio e da mensagem do filósofo. Essa perspectiva reforça, mais uma vez, a importância de selecionar textos filosóficos adequados às condições do estudante, do professor e das circunstâncias. Outro aspecto é o fato de que o texto filosófico tem suas particularidades, visto que, segundo Severino (2009, p. 13), ―[...] os textos científicos e filosóficos demandam alguns recursos próprios, diferentes daqueles que usamos na leitura dos textos literários, jornalísticos ou coloquiais‖. Por isso a necessidade de propor orientações para leitura e análise do texto filosófico. Poder-se-ia questionar o fato de que a elaboração e a aplicação das instruções da leitura analítica de um texto filosófico deve ser papel único do professor, visto que ele é quem conhece as condições de suas turmas. No entanto, devemos levar em conta alguns fatores, por exemplo, há textos filosóficos que alguns professores podem omitir pela única 92 razão de que têm dificuldades na sua compreensão. Nesse sentido, é importante que o Caderno do Professor proponha estratégias de leitura e análise, a fim de mostrar caminhos e de subsidiar o próprio professor nessas leituras. E, mesmo que o professor os conheça e saiba propor estratégias, não há problema que haja sugestões sobre leitura e análise. Mesmo nesse caso, o professor poderá ter ali uma boa ajuda. A avaliação e o texto filosófico De acordo com o Caderno do Professor, a ―[...] a avaliação deve fazer parte do cotidiano escolar e não pode reduzir a uma prova, ela deve contemplar todas as tarefas propostas, não apenas para o professor classificar, mas também para que o aluno reconheça as suas dificuldades e potencialidades‖ (SÃO PAULO, 2014g, p. 7). E ―[...] os procedimentos de avaliação visam, sobretudo, ao desenvolvimento da capacidade de leitura, reflexão e escrita, fundamentada em conteúdos conceituais da Filosofia‖ (SÃO PAULO, 2014a, p. 6). Posto isso, é fundamental que haja propostas para a orientação da leitura e da análise, pois o próprio estudante teria mais condições de perceber e reconhecer suas dificuldades e potencialidades na leitura de textos filosóficos. De modo geral, o estudante poderia identificar em qual ou quais etapas da leitura e da análise está tendo dificuldades, por exemplo: problemas com o vocabulário; problemas em identificar a ideia principal ou os argumentos; dificuldades em interpretar ou problematizar e outros. Sendo assim, a ajuda do professor amenizaria essas limitações. Os Cadernos da 2ª e da 3ª séries propõem não trabalhar com a ―perspectiva de gabarito stricto sensu‖, pois mais importante que responder de maneira precisa uma questão é reconhecer o quanto o aluno compreendeu do conteúdo. As questões não se configuram como um ―receituário de perguntas‖, cujas respostas já foram definidas, mas tomam como referência um texto que aborda a ideia de um pensador, ―dessa forma, as respostas dos alunos devem se remeter ao que foi proposto e aos pensadores citados, sempre que assim for requerido‖. Por isso, antes de propor que os alunos respondam as questões sugeridas pelas Situações de Aprendizagem, orienta-se que o professor as analise, a fim de verificar sua pertinência no processo da sua aula (SÃO PAULO, 2014d, p. 7). Se se espera avaliar o que o estudante compreendeu do texto filosófico, as questões abertas (resposta dissertativa) ampliam este objetivo, pois é possível melhor verificar se o estudante, por exemplo: entendeu a proposta da questão; sabe escrever com coerência, 93 coesão e objetividade; compreendeu a ideia principal do texto; sabe quais são os argumentos do autor; sabe interpretar; sabe levantar hipóteses, sabe problematizar e entre outros. Por outro lado, as questões objetivas (perspectiva de gabarito stricto sensu) limitam a possibilidade de verificar o desempenho, pois, por sorte, o estudante pode ter assinalado uma alternativa correta, sem compreender o assunto. Além disso, por direcionar respostas – devido às alternativas sugeridas –, reduz a possibilidade de o estudante desenvolver o seu próprio raciocínio e interpretação. O Caderno do Professor reconhece que o ensino de filosofia no nível médio tem algumas limitações, visto que a grade escolar determina um número reduzido de aulas e há certas dificuldades em empregar provas padronizadas para a avaliação, que precisa constatar se [...] a reflexão filosófica do estudante vai ao encontro do tema explorado em aula bem como do cotidiano, verificando se foram capazes de: ler o texto com coesão e coerência, compreendê-lo, sublinhar as palavras desconhecidas e, após pesquisá-las, identificar problemas, levantar hipóteses e apresentar possíveis respostas; compreender conceitos e linhas teóricas do filósofo estudado; expressar-se (oralmente ou por escrito) por meio de argumentação de âmbito filosófico; e, dados dois ou mais textos, estabelecer uma analogia entre eles (SÃO PAULO, 2014c, p. 8). É importante destacar que os critérios de avaliação se referem à capacidade do próprio estudante de realizar as leituras, compreendê-las e analisá-las, o que, pode-se supor, também se aplica ao texto filosófico. O Caderno, bem como a mediação didática do professor, precisam prover condições suficientes para que o aluno tire o máximo proveito possível dos textos, sejam eles filosóficos ou não. Para tanto, é importante que o aluno consiga descobrir por si mesmo o argumento, o raciocínio e o sentido das ideias do autor, adquirindo, pouco a pouco, autonomia na leitura e na interpretação. Sem essa perspectiva, parece não haver fortes justificativas para o emprego do texto filosófico. Daí a importância de o Caderno do Professor propor estratégias de leitura e análise. Corroborando a questão sobre a autonomia da leitura do estudante, o Caderno do Professor considera que o trabalho com o acervo filosófico da tradição só terá sentido, se ―os alunos puderem experimentar o percurso do pensamento organizado pelo encontro com diferentes possibilidades de vocabulário, raciocínio, hipóteses, escolhas de premissas e consequências‖ (SÃO PAULO, 2014d, p. 6). É importante retomar a citação de Severino (2009, p. 13), que afirma ser a leitura analítica um meio para o estudante experimentar tal 94 percurso, visto que um dos objetivos dessa leitura é ―[...] apreender a mensagem global da unidade de leitura, de modo que o leitor tenha uma visão da integralidade do raciocínio desenvolvido pelo autor [...]‖. Nesse sentido, deve-se dar a devida importância às sugestões e às estratégias para a leitura e a análise dos textos filosóficos. Conforme o Caderno do Professor, a avaliação deve considerar se os estudantes [...] ao ler um texto filosófico, conseguiram identificar os conceitos e a linha argumentativa do filósofo; se foram capazes de, a partir desse contato, reconhecer a relevância do problema e da contribuição da tradição filosófica; se foram capazes de identificar o problema proposto como um problema atual, da sua realidade e, finalmente, até que ponto eles conseguiram avançar para uma reflexão e argumentação do tipo filosófica (SÃO PAULO, 2014f, p. 9). Isso deixa claro duas coisas: primeiro, o fato de que ler e compreender um texto filosófico é critério de avaliação. Segundo, é imprescindível que se criem condições para que o estudante seja capaz de lê-lo por si só e compreendê-lo. É claro que essa expectativa não exclui a explicação do professor, sobretudo considerando as dificuldades de leitura apresentadas por grande parte dos alunos. No entanto, independentemente da metodologia adotada, o docente deve ajudar o educando a adquirir condições de fazer sua própria leitura, isto é, de ler com autonomia. Conclusão De acordo com o Currículo, o papel da filosofia e do texto filosófico consiste em fazer com que o educando reflita sobre os seus problemas discutidos à luz de seu contexto, de modo que reflita sobre as questões propostas e as problematize. O princípio básico que auxilia esse processo é a competência relacionada à leitura e à escrita, fundamental para o desenvolvimento da leitura de textos filosóficos. No que diz respeito às orientações sobre os temas curriculares e suas atividades, deixa-se claro que os textos filosóficos propostos podem ser adaptados, substituídos ou omitidos, de acordo com a percepção do professor quanto a sua turma. Isso não diminui o desafio de trabalhar com tais recursos em sala de aula. Entretanto, não se deve fazer qualquer alteração em relação ao Currículo: é preciso manter sempre os temas e o desenvolvimento de suas competências e habilidades. As competências e a metodologia giram em torno da leitura, da escrita e da prática dialógica. A análise de texto é uma das propostas para a leitura do excerto filosófico, e suas estratégias referem-se às pesquisas, às questões e à elaboração de redações. Não se 95 mencionam estratégias para a leitura e para a análise, propriamente ditas. Ora, se a maioria das Situações de Aprendizagem emprega, pelo menos, um texto filosófico em uma de suas etapas, ou até em mais de uma, infere-se que esse texto possui importância no desenvolvimento e no cumprimento dos objetivos da aula. Sendo assim, seria fundamental que houvesse sugestões ou indicações de estratégias de leitura e análise de texto filosófico, para motivar aquele professor que tem dificuldades a trabalhar com esse texto e levar aquele que já tem sua própria metodologia a rever outras propostas e, até mesmo, a enriquecer a sua própria. Um dos critérios de avaliação consiste na capacidade do estudante de ler textos filosóficos. Caso contrário, perde-se o sentido de sua proposta. Sendo assim, já que o Caderno permite que o professor avalie o texto filosófico proposto, é fundamental analisar se esse texto está de acordo com os objetivos da Situação de Aprendizagem; se dá condições para que o estudante possa compreendê-lo; e se as sugestões de pesquisa e atividades colaboram para o entendimento, a interpretação ou a problematização do texto. Na próxima etapa, analisaremos os textos filosóficos propostos em algumas das Situações de Aprendizagem contidas nos Cadernos. 3 Análise dos textos filosóficos Nosso objetivo é analisar criticamente algumas situações em que aparecem textos filosóficos nas Situações de Aprendizagem selecionadas. Essa seleção abrangeu planos de aula das três séries do ensino médio que, de alguma forma, empregaram o texto de pelo menos um filósofo. Os problemas detectados foram agrupados em seis categorias: 1) desarticulação entre os textos filosóficos e os objetivos da Situação de Aprendizagem; 2) caráter fragmentário e descontextualizado dos excertos; 3) descompasso entre o grau de complexidade dos textos e as condições reais do educando para compreendê-los; 4) escolha aparentemente aleatória de autores e excertos; 5) afastamento ou distorção do sentido original do texto filosófico; 6) reducionismo interpretativo. Para melhor compreender as análises, bem como os objetivos e as finalidades do texto filosófico de acordo com a proposta, apresentaremos, também, brevemente, em cada uma das Situações de Aprendizagem examinadas, as etapas e as orientações de seu percurso. Vale esclarecer, porém, que os problemas identificados por meio dessas categorias, muitas vezes, ocorrem simultaneamente em diversas Situações de 96 Aprendizagem, de modo que a categorização aqui adotada visa, sobretudo, a facilitar sua exposição e análise. 1) Desarticulação entre os textos filosóficos e os objetivos da Situação de Aprendizagem Nas propostas de aula, os excertos filosóficos, muitas vezes, não tratam – ou o fazem apenas indireta e muito sutilmente – dos temas das Situações de Aprendizagem. Com isso, os objetivos anunciados ficam comprometidos. 1ª série, volume 1 - Situação de Aprendizagem 1 Esta Situação de Aprendizagem é intitulada ―Criando uma imagem crítica da filosofia‖ e objetiva esclarecer o que é a filosofia e discutir a respeito do conceito de reflexão. O Caderno do Professor orienta acompanhar os seguintes passos: Inicialmente, vamos ouvi-los [alunos] sobre o que pensam da Filosofia em relação a outras disciplinas; em seguida, cabe dialogar com eles a respeito do conceito de Filosofia; depois, pode-se apresentar o conceito de reflexão utilizando a análise do espelho; na sequência, temos a leitura de trechos de Aristóteles e Platão; por fim, é hora de promover o diálogo com base nesses textos (SÃO PAULO, 2014a, p. 9). A princípio não se explica qual a finalidade específica da leitura dos trechos de Aristóteles e Platão, no que se refere aos objetivos da Situação de Aprendizagem. Vale lembrar, como já foi mencionado, que as recomendações introdutórias desta Situação de Aprendizagem reiteram a possibilidade de alterações nas atividades propostas: Todas essas sugestões, entretanto, devem ser avaliadas por você, professor, que conhece melhor os limites e as possibilidades de suas condições de trabalho. É possível, por exemplo, dilatar ou reduzir o tempo dedicado a cada atividade, bem como acrescentar ou modificar procedimentos. Enfim, faça as adaptações que julgar necessárias para atingir seus objetivos docentes (SÃO PAULO, 2014a, p. 9). Sendo assim, desde que o professor avalie e considere que a leitura de tal texto filosófico não é apropriada para a sua turma, permitem-se adaptações. Entretanto, cumpre salientar que as alterações, para que tenham sentido, devem ser feitas tendo em vista os objetivos propostos pela Situação de Aprendizagem. 97 Antes da leitura dos textos filosóficos, propõem-se os seguintes procedimentos: 1. Iniciar com uma pesquisa individual sobre as expressões como: ―intelecto‖, ―reflexão crítica‖, ―filosofia‖ e ―cidadania‖. O objetivo é fazer com que os estudantes ―[...] conheçam e fixem conceitos que serão trabalhados ao longo deste volume‖. 2. Propor um quadro onde os estudantes anotem o que sabem sobre as disciplinas que estão estudando, principalmente, sobre a filosofia. Depois, levantar questões a respeito da filosofia e, em seguida, apresentar algumas respostas elaboradas por estudantes do ensino médio. O objetivo é dialogar sobre o conceito de filosofia. 3. Discutir sobre o conceito de reflexão. Essa discussão procura caracterizar o que significa a reflexão na perspectiva do espelho. Para tanto, baseia-se em três questões: ―O que se vê no espelho?‖, ―O que o espelho não pode refletir?‖ e ―Como e para que o espelho é utilizado?‖ (SÃO PAULO, 2014a, p. 10). Tendo em vista essa proposta, entende-se que a intenção é construir o significado da reflexão do espelho para depois comparar com a reflexão intelectual. Definido o primeiro, espera-se que na próxima etapa se discuta a respeito do conceito de reflexão intelectual. Para tanto, propõe-se a leitura de dois trechos filosóficos, um de Platão e outro de Aristóteles: O texto de Platão (apud SÃO PAULO, 2014a, p. 14) é extraído da Apologia de Sócrates: Pois nada mais faço do que persuadir a todos, jovens e anciãos, a não se preocuparem com si mesmos ou com suas posses, mas acima de tudo e principalmente a se preocuparem com o mais profundo aperfeiçoamento da alma. Digo a vocês que a virtude não é dada pela riqueza, mas que, de fato, a virtude gera riqueza e também todos os bens dos homens, públicos e também privados. O de Aristóteles (apud SÃO PAULO, 2014a, p. 13), de sua obra Da alma: Ao considerarmos que o conhecimento de qualquer tipo é algo a ser honrado e valorizado, um tipo que talvez seja, em razão de sua maior exatidão ou por dizer respeito a objetos mais belos e elevados, digno de maior valor do que qualquer outro, em ambos os casos deveríamos naturalmente colocar o estudo da alma em primeiro lugar. O conhecimento da alma certamente contribui muitíssimo para o avanço da verdade em geral e, acima de tudo, para a nossa compreensão da Natureza, já que a alma é, em certo sentido, o princípio da vida animal. Nosso objetivo é captar e compreender primeiro sua natureza essencial e, segundo, suas propriedades; destas, algumas são compreendidas como afetos próprios da alma em si, enquanto outras são consideradas como sendo ligadas ao animal, já que este a carrega em si mesmo. 98 As recomendações sobre a leitura dos excertos pelos estudantes apenas sugerem que eles sublinhem as palavras desconhecidas e procurem o seu significado, transcrevendoas na seção ―Meu vocabulário filosófico‖ 19. Ao professor primeiramente se sugere que apresente aos alunos biografias curtas desses filósofos e de outros, se necessário; também se orienta que se enfatize ―que esses filósofos podem ajudar a pensar a capacidade reflexiva dos seres humanos‖. Além disso, aconselham: ―caso julgue necessário, acrescente outros textos que considere importantes, extraindo-os, por exemplo, de seu material didático. É fundamental que os alunos tenham contato com esses excertos‖ (SÃO PAULO, 2014a, p. 13). É importante destacar dois aspectos: primeiro, afirma-se que a principal razão de suas leituras é pensar a capacidade reflexiva do ser humano, e, não necessariamente, a compreensão sobre a reflexão do intelecto, propriamente dito, objetivo proposto pela Situação de Aprendizagem. Segundo, tem-se a impressão de que o próprio Caderno do Professor admite a limitação desses excertos para atingir tal finalidade, visto que orienta o docente a utilizar outros, se julgar necessário. Contudo, não faz qualquer indicação sobre textos filosóficos que abordem a questão da reflexão intelectual. O comentário sobre os textos do Caderno do Professor afirma que a reflexão do espelho [...] não mostra tudo o que acontece na vida natural e na cultura humana, você pode chamar a atenção dos alunos para o fato de que Platão e Aristóteles trazem em seus textos a preocupação com a alma, com a virtude, com a capacidade de conhecimento, ou seja, com palavras ou conceitos que fazem parte da experiência humana e exigem esforço de reflexão que se distingue da reflexão constatada com a ajuda do espelho (SÃO PAULO, 2014a, p. 14). Ao que parece, a preocupação é fazer com que o estudante experiencie o esforço da reflexão, compreendendo os conceitos propostos. Ocorre que os excertos não tratam especificamente da noção de reflexão, mas de outros temas, tais como virtude, alma, conhecimento. Mesmo esses, aliás, não chegam a ser claramente apresentados. Ora, podese então perguntar se não seria mais coerente com os objetivos proclamados selecionar um texto que tratasse justamente da noção de reflexão intelectual. 19 Essa atividade consiste na busca por palavras desconhecidas de um texto, a fim de, em seguida, encontrar os seus significados e registrá-las no Caderno do Aluno. 99 Com o objetivo de ajudar a problematizar e direcionar uma discussão sobre a diferença entre os dois tipos de reflexão, propõem-se algumas questões: Como podemos afirmar que existem a alma, a virtude, a capacidade de conhecimento? O que fazemos para refletir sobre esses conceitos? [...] O que os alunos do ensino médio, presentes na aula de filosofia, entendem por alma? Onde formularam suas representações sobre alma e virtude? Nas igrejas, na família, na escola? Com a ajuda do cinema, da televisão? Como argumentar que existem a alma e virtudes como solidariedade e justiça, e que somos capazes de pensar e de conhecer o mundo em que vivemos? (SÃO PAULO, 2014a, p. 14). É interessante notar que não há questões voltadas para a compreensão do que é reflexão intelectual, talvez pelo fato de que os textos filosóficos propostos não oferecem tal condição. Do mesmo modo, podemos observar essa ausência em outras questões elaboradas para serem respondidas com base em outro excerto – Apologia de Sócrates (Platão): 1. a) b) c) d) e) Com base na leitura do texto, assinale somente as sentenças corretas. Da riqueza vem tudo que precisamos, inclusive as virtudes. A Filosofia não é algo para os jovens. O mais importante é conhecer. O mais importante é preocupar-se com o estudo da alma. A virtude é boa, afinal dela nascem a riqueza e tudo mais (SÃO PAULO, 2014b p. 8) A segunda questão é dissertativa: ―Releia o seguinte texto [o excerto acima] e apresente um argumento a favor da afirmação de Platão e um argumento para questionar esta afirmação‖ (SÃO PAULO, 2014b p. 11). Da mesma forma, essas questões não tratam da reflexão intelectual, nem de sua distinção em relação à reflexão do espelho. Propor a leitura desses excertos com o objetivo de diferenciar os dois sentidos da palavra reflexão não nos parece o melhor caminho. Primeiramente, esses excertos não têm o objetivo de fazer tal distinção; as questões propostas pelo Caderno também direcionam a discussão para outros conceitos, como os de alma, virtude e conhecimento. Perde-se de vista, portanto, o objetivo a alcançar. Além disso, o texto filosófico, por ser descontextualizado do conjunto do pensamento do autor, acaba subaproveitado, perdendose o sentido de sua utilização. A impressão que se tem é que a escolha desses dois excertos foi motivada pela preocupação formal de incluir textos filosóficos que, na melhor das hipóteses, ilustrariam sutilmente o exercício da reflexão praticado pelo autor. Não houve, contudo, o cuidado de 100 explicitar as características e as exigências desse tipo de atividade intelectual, comprometendo, assim, o próprio objetivo da Situação de Aprendizagem. 1ª série, volume 1 - Situação de Aprendizagem 2 Na Situação de Aprendizagem 2, ―Como funciona o intelecto? Introdução ao Empirismo e ao Criticismo‖, o objetivo geral ―é que o aluno compreenda o intelecto como um objeto de estudo, que pode ser entendido‖. Para a primeira etapa desta proposta, é abordado o empirismo a partir do funcionamento de aparelhos eletrônicos, como o rádio, e, na segunda e terceira etapas, sugere-se a leitura de dois excertos filosóficos – um em cada etapa (SÃO PAULO, 2014a p. 17). É importante destacar que o Caderno do Professor propõe, como uma das competências e habilidades a serem desenvolvidas, a ―[...] leitura da ordem dos argumentos de um texto filosófico‖. Para as atividades, ―[...] os alunos podem organizar os argumentos de um texto filosófico e associar questões atuais a referências extraídas da História da Filosofia‖. Em relação à avaliação, ―[...] espera-se que o aluno seja capaz de ler textos filosóficos, compreender suas estruturas e ordenar suas ideias‖ (SÃO PAULO, 2014a, p. 17). Essa perspectiva sugere um trabalho mais centrado no texto filosófico, tendo como foco a leitura, a compreensão e o entendimento de sua estrutura, bem como sua articulação com as questões atuais. A Situação de Aprendizagem inicia-se com a sensibilização sobre o funcionamento de aparelhos eletrônicos, com a intenção de compará-lo com o funcionamento do intelecto. Antes, sugere-se apresentar algumas informações sobre a biografia de John Locke, autor de um dos excertos propostos nesta atividade. Recomenda-se que, ao analisar o funcionamento dos aparelhos, ―[...] nas discussões, considerar a proposta teórica do empirismo, assim como as questões já trabalhadas sobre o conhecimento do intelecto, ou da alma intelectiva, baseando-se nos textos filosóficos anteriores‖ (SÃO PAULO, 2014a, p. 17). Como já demonstrado, os excertos da primeira Situação de Aprendizagem não contribuem para o entendimento do conceito de intelecto. Ademais, o Caderno do Professor não esclarece como fazer essa consideração para relacionar a proposta teórica do empirismo com o conhecimento do intelecto. Ao que parece, essa tarefa fica por conta, unicamente, do professor. 101 Os excertos filosóficos selecionados são retirados das seguintes obras: na segunda etapa, Ensaio acerca do entendimento humano (John Locke) e, na terceira etapa, Crítica da razão pura (Immanuel Kant). Eis o excerto de Locke: Suponhamos, então, que a mente seja, como dissemos, uma folha em branco, vazia de elementos, sem qualquer ideia: – Como ela é preenchida? De onde vem essa vasta coleção que a imaginação aguda e ilimitada do homem nela inscreveu com uma variedade quase infinita? De onde vem todo o material para a razão e o conhecimento? A isso eu respondo, em uma palavra, da experiência. Nela está fundamentado todo nosso conhecimento; e dela, em última análise, ela própria se deriva. Nossa observação empregada seja sobre objetos externos sensíveis ou sobre operações internas de nossas mentes percebidas e refletidas por nós mesmos é o que fornece nossa compreensão com todo material de pensamento. Essas são as duas fontes de conhecimento a partir das quais derivam todas as ideias que temos, ou podemos ter, naturalmente. Primeiro, nossos sentidos, conhecedores de objetos sensíveis particulares, realmente transmitem para a mente inúmeras percepções sobre coisas, de acordo com os vários meios dentro dos quais esses objetos os afetam. E, assim, obtêm-se as ideias que temos sobre amarelo, branco, calor, frio, macio, duro, amargo, doce e todas aquelas que denominamos qualidades sensíveis; quando digo que os sentidos transmitem à mente, quero dizer que eles transmitem à mente, a partir de objetos externos, aquilo que produz nela tais percepções. A esta grande fonte da maioria das ideias que temos, dependentes unicamente de nossos sentidos, e da qual deriva nosso entendimento, eu denomino sensação. Segundo, a outra fonte da qual a experiência fornece entendimento com ideias é a percepção de operações de nossas próprias mentes dentro de nós, empregadas sobre as ideias que têm; operações as quais, quando a alma chega a refletir e considerar, verdadeiramente fornecem o entendimento com outro conjunto de ideias, que não poderiam existir a partir de coisas externas. E tais são percepção, pensamento, questionamento, crença, racionalidade, conhecimento, vontade e todas as diferentes formas de ação de nossas mentes. Essa fonte de ideias todo homem traz dentro de si; e, apesar de não ser um sentido, já que não tem nada a ver com objetos externos, ela se parece muito com um e pode ser adequadamente denominada como sentido interno. Mas, como denominei o outro sensação, logo denomino este como reflexão, sendo as ideias proporcionadas por ele apenas existentes por meio da reflexão da mente em suas próprias operações dentro de si mesma (LOCKE apud SÃO PAULO, 2014a, p. 19) O Caderno do Professor não deixa claro qual é finalidade deste texto no percurso do plano de aula. Apenas sugere, da mesma maneira que foi proposto na Situação de Aprendizagem anterior, que os educandos pesquisem os significados das palavras desconhecidas, bem como, se necessário, o professor acrescente outros textos ou atividades para o desenvolvimento do conteúdo (SÃO PAULO, 2014a, p. 19). De acordo com o objetivo desta Situação de Aprendizagem, pretende-se que o estudante compreenda o intelecto como um objeto de estudo que pode ser entendido. Ora, o excerto não trata disso diretamente; essa não é a preocupação do autor. É claro que 102 Locke, de certa forma, ao afirmar que nossa mente é igual a uma ―folha em branco‖ quando nascemos, trata o intelecto como um objeto de estudo, porém, este não é o tema do excerto. Na verdade, o objetivo do autor nessa obra consiste em compreender como se forma o nosso conhecimento, interrogando a ―[...] relação entre o nosso pensamento e a realidade, nossas ideias e as coisas: em que condição nosso conhecimento pode ser verdadeiro?‖ (CAMUS et al., 2010, p. 74). Considerando este excerto, Locke propõe que a experiência é o principal fundamento do conhecimento, bem como a sensação e a reflexão são as responsáveis por gerar todas as nossas ideias. Portanto, há uma desarticulação entre o objetivo da Situação de Aprendizagem e o raciocínio do autor no texto filosófico. Se a proposta deste plano de aula é fazer com que o educando compreenda que o intelecto pode ser um objeto de estudo, de que forma o excerto de Locke pode contribuir para tal? Se é possível fazer isto, o Caderno do Professor não deixa claro. Sendo assim, o texto fica sem uma coerente finalidade dentro da Situação de Aprendizagem. As demais orientações sobre o excerto nos dão a impressão de que a sua principal razão é fazer com que o estudante compreenda, de maneira geral, a estrutura de um texto filosófico, seu raciocínio: ideia central (tese) e os argumentos. Para isso, sugere-se uma atividade em grupo que identifique trechos que correspondam aos seguintes tópicos que resumem os argumentos do texto: 1. 2. 3. 4. 5. 6. A mente é vazia de ideias. Como se adquire conhecimento? A experiência é o fundamento de todos os conhecimentos. Como a experiência pode ensinar? Os sentidos fazem que as ideias entrem na mente. Tipos de experiências dos sentidos: branco, amarelo, quente, frio, duro, amargo. 7. A mente percebe as suas operações pela reflexão. 8. Tipos de percepções: pensar, duvidar, crer, raciocinar (SÃO PAULO, 2014a, p. 20). O Caderno do Professor explica que ―[...] todos os argumentos, ou motivos, ou porquês foram elencados de modo a permitir a defesa da ideia central [que] [...] pode ser resumida nesta frase: ‗Nascemos sem conhecimento algum e vamos aprendendo pelas análises das experiências‘‖. Em seguida, pede-se [...] aos grupos para procurar, no texto, trechos que combinem com a frase que lhes coube. Cada uma delas resume argumentos que estão no texto. Quando encontrarem, no texto, algo semelhante à frase que possuem, terão, então, o argumento. Você pode pedir que ordenem as 103 frases segundo o texto. Assim, eles poderão perceber a construção de um raciocínio textual (SÃO PAULO, 2014a, p. 20, grifos nossos). Isso significa que, para encontrar os argumentos de uma ideia em um texto, basta identificar as palavras semelhantes. Dessa forma é possível identificar os argumentos? Essa estratégia poderia até proporcionar ao estudante a capacidade de selecionar os argumentos, mas não garantiria que o educando tenha compreendido a sua relação com a ideia central. Sendo assim, estaria inadequada, visto que não proporciona a compreensão do texto filosófico. Outro aspecto que merece destaque é o fato de que, segundo as orientações do Caderno do Professor, basta os estudantes colocarem as devidas frases do texto em ordem que perceberão a estrutura de um raciocínio textual. Não parece ser tão simples assim. A intenção de propor uma abordagem de leitura que possibilite compreender a estrutura do texto filosófico é válida, pois introduzir o estudante nesse tipo de leitura é necessário, visto que haverá outros textos filosóficos. Porém, é preciso propor métodos mais coerentes e adequados ou esclarecer melhor as etapas da estratégia proposta. Reforçando o objetivo de compreender a estrutura do texto filosófico, o Caderno do Aluno propõe a seguinte questão: Todo bom texto apresenta com clareza a sua ideia principal, que chamamos de tese. A seguir, há frases que fazem referência ao texto de John Locke. Circule a frase que apresenta a principal ideia do autor. a) Existem dois tipos de conhecimento: os que provêm da experiência e os que fazemos sobre as operações de nossa mente. b) A mente é vazia de ideias, as experiências é que dão a ela todo o conhecimento necessário. c) A reflexão é diferente da sensação. O estudante só terá condições de respondê-la, se tiver compreendido o raciocínio de Locke, se não pelo texto, pela explicação do professor. Mais ainda: o fato de o estudante assinalar a alternativa correta não garante, necessariamente, que tenha compreendido. Isso porque questões de múltipla escolha permitem ao aluno responder sem que tenha entendido o assunto da questão. Uma estratégia que poderia revelar o entendimento do aluno, mas, mesmo assim, precisaria ser formulada adequadamente, é a proposta de uma pergunta dissertativa. Na última etapa desta mesma Situação de Aprendizagem, que trata do texto de Kant, é sugerida a leitura do seguinte excerto, retirado da Crítica da razão pura (Immanuel Kant): 104 Não há dúvida de que todo o nosso conhecimento começa com a experiência; pois de que outro modo poderia a nossa faculdade de conhecimento ser despertada para o exercício, não fosse por meio de objetos que estimulam nossos sentidos e, em parte, produzem representações por si mesmos, em parte colocam em movimento a atividade de nosso entendimento, levando-a a compará-las, conectá-las ou separá-las e, assim, transformar a matéria bruta das impressões sensíveis em um conhecimento de objetos chamado experiência? No que diz respeito ao tempo, portanto, nenhum conhecimento antecede em nós à experiência, e com esta começam todos. Ainda, porém, que todo nosso conhecimento comece com a experiência, nem por isso surge ele apenas da experiência. Pois poderia bem acontecer que mesmo o nosso conhecimento por experiência fosse um composto daquilo que recebemos por meio de impressões e daquilo que nossa própria faculdade de conhecimento (apenas movida por impressões sensíveis) produz por si mesma; uma soma que não podemos diferenciar daquela matéria básica enquanto um longo exercício não nos tenha tornado atentos a isso e aptos a efetuar tal distinção. Aquela expressão não é suficientemente determinada, contudo, para designar de maneira adequada o sentido integral da questão posta. Pois, se costuma dizer, de muitos conhecimentos derivados de fontes da experiência que nós somos capazes ou participantes deles a priori, na medida em que não os derivamos imediatamente da experiência, mas sim de uma regra universal que, no entanto, tomamos emprestada da própria experiência. Assim, diz-se de alguém que solapou os fundamentos de sua casa que ele poderia saber a priori que ela cairia, i.e., ele não precisava esperar pela experiência em que ela de fato caísse. Inteiramente a priori, contudo, ele não poderia mesmo sabê-lo. Pois teria que aprender antes, por meio da experiência, que os corpos são pesados e, por isso, caem quando lhes é retirado o suporte. No que segue, portanto, entendermos por conhecimento a priori aqueles que se dão não independentemente desta ou daquela, mas de toda e qualquer experiência. A eles se supõem os conhecimentos empíricos ou aqueles que só são possíveis a posteriori, i.e., por meio da experiência (KANT, 2013, p. 45 apud SÃO PAULO, 2014a, p. 21). Segundo o Caderno do Professor, esta etapa baseia-se nas ideias do texto ―Da distinção entre o conhecimento puro e o empírico‖. O objetivo é fazer com que ―[...] os alunos conheçam e assimilem conceitos que serão trabalhados neste trecho [...]‖. Sugere-se a pesquisa de algumas palavras como: ―experiência‖, ―conhecimentos a priori‖, ―conhecimento a posteriori‖, ―sensação‖ e ―reflexão‖, bem como a apresentação de uma pequena biografia de Kant. Supõe-se que esta última tarefa seja papel do professor (SÃO PAULO, 2014a, p. 20). Parece-nos que a leitura do texto deva ser feita individualmente, visto que se pede aos estudantes que, além de procurar as palavras desconhecidas, identifiquem a tese principal: ―Após a leitura, peça aos alunos que sublinhem as palavras que desconhecem, procurem seu significado e os transcrevam [...] Aproveite este momento para esclarecer 105 dúvidas e introduzir novas ideias. Peça também que identifique qual é a principal tese do texto‖ (SÃO PAULO, 2014a, p. 20). Em relação à orientação de introduzir novas ideias, não há qualquer direcionamento. De quais novas ideias está se tratando? Ao que parece, refere-se aos novos conceitos trazidos pelo texto, como: conhecimento a priori e a posteriori. No entanto, a proposta não está clara. Diferentemente do procedimento com o texto filosófico de John Locke proposto, o Caderno do Professor apresenta um comentário sobre o excerto de Kant: Nesse trecho, Kant nos mostra como a Filosofia é importante para entender o funcionamento da nossa inteligência. Afinal, como podemos melhorar algo que não sabemos como funciona? Ninguém aprende a dirigir bem um carro sem ter alguma noção de como ele funciona. Assim é com o rádio, a televisão e o celular e com a nossa inteligência. Kant explica que o conhecimento que temos pode ser posterior à experiência (conhecimento a posteriori) ou anterior a ela (conhecimento a priori). Quando pensamos sobre o funcionamento da nossa inteligência, fazemos uma reflexão crítica. Agora podemos entender um pouco mais o conceito de Filosofia [...], podemos dizer que a Filosofia consiste em analisar como nós pensamos a respeito do conhecimento e da ação. Nossa inteligência está bem equipada para pensar os conhecimentos? (SÃO PAULO, 2014a, p. 21). Isolando a referência sobre o conhecimento anterior e posterior à experiência, o comentário se afasta do pensamento do autor. Na verdade, o excerto trata, especificamente, da distinção entre o conhecimento puro e o empírico, e não sobre a importância da filosofia para entender o funcionamento da inteligência, para melhorá-lo, ou compreender o conceito de filosofia. De acordo com Japiassú e Marcondes (1996, p. 59), a Crítica da razão pura propõe um programa filosófico e afirma que ―[...] a filosofia, diferentemente da ciência não deve pretender conhecer o mundo, mas sim revelar os fundamentos da ciência, estabelecendo as condições e possibilidades do conhecimento‖. Desse modo, a questão gira em torno das condições e das possibilidades do conhecimento. Sendo o texto filosófico descontextualizado do pensamento do autor, de que modo pode ajudar o estudante a compreendê-lo? Como proposta de avaliação, sugerem-se algumas questões, a fim que o estudante identifique ―[...] alguns conceitos elaborados por Kant e Locke, ao tratarem da natureza do nosso conhecimento‖: Qual é a ideia principal, ou tese, do texto? Para Kant, o que são conhecimento a priori e conhecimento a posteriori? 106 Destaque a diferença central entre as ideias apresentadas no texto de Locke e no de Kant (SÃO PAULO, 2014b, p. 20). Tais questões objetivam a compreensão das ideias centrais dos excertos de Locke e Kant. Elas são pertinentes, pois auxiliam na compreensão dos textos. Entretanto, há aí pelo menos dois problemas: o primeiro é a descontextualizacão do excerto em relação ao raciocínio do autor; o outro é o fato de o excerto ser desarticulado com o objetivo e o objeto da situação de aprendizagem. Nessas condições, como assegurar que os estudantes leiam, entendam e discutam de forma apropriada os aspectos principais desses textos? Além disso, pode-se questionar a viabilidade de trabalhar ambos os textos no tempo proposto, dado o grau de dificuldade que encerram e o reduzido número de aulas. Como se verá adiante, essa é outra ordem de problema que se encontra no emprego do texto filosófico pelos Cadernos. 2ª série, volume 1 - Situação de Aprendizagem 1 Na Situação de Aprendizagem 1, intitulada ―O EU racional‖, o objetivo é [...] fazer que o aluno se reconheça como um ser racional e seja introduzido ao estudo da ética como sujeito ético, isto é, como alguém capaz de fazer escolhas por meio de princípios racionais que reconhecem valores. Para isso, vamos utilizar o cogito cartesiano como suporte teórico (SÃO PAULO, 2014d, p. 8). A princípio, apenas se acena para o fato de que será utilizado um texto do filósofo Descartes para contribuir com os objetivos propostos, mas não se informa como nem o porquê. O desenvolvimento desta Situação de Aprendizagem propõe, em sua introdução, que se faça uma pesquisa, como lição de casa, sobre a biografia de René Descartes, a fim de promover algum interesse e curiosidade por parte do estudante. Como sensibilização, sugere-se uma atividade com o objetivo de exercitar a argumentação. Para tanto, apresentam-se algumas questões que discutem a existência do indivíduo, por exemplo: ―Prove que você existe‖. Com o propósito de introduzir o estudante ao raciocínio cartesiano sobre a existência, recomenda-se completar a resposta a partir dos seguintes problemas: ―Se tudo isto fosse um sonho, só uma coisa eu ainda seria capaz de fazer:‖, ―Se eu duvido da existência de tudo, não importa; duvidar prova que:‖. A intenção dessa 107 atividade é fazer com que os estudantes percebam que ―o ato de pensar é uma certeza. Se tudo é uma ilusão, pensar é uma certeza‖ (SÃO PAULO, 2014d, p. 8). Nota-se que, nesse ponto, o professor já precisa esboçar o princípio-chave de Descartes, ―Penso, logo existo‖. E, antes que se introduza a leitura do texto filosófico, o Caderno sugere que os estudantes tenham entendido primeiro que o ―‗eu penso‘ é uma constante‖ (SÃO PAULO, 2014d, p. 9). Ao que parece, isto significa que o pensar é uma certeza, pois as orientações da atividade anterior objetivam conduzir o estudante a perceber esta afirmação. O excerto proposto é retirado do Discurso do Método, de Descartes: [...] desejando então somente dedicar-me à busca da verdade, eu pensei que fosse necessário que eu fizesse o contrário, rejeitando como absolutamente falso tudo o que me pudesse despertar a menor dúvida, para verificar se, após isso, restaria alguma coisa em minha crença que fosse completamente incontestável. Assim, como nossos sentidos nos iludem algumas vezes, supus que não existia nada da maneira como os sentidos nos fazem imaginar; e como há homens que se enganam ao raciocinar, ainda que sobre os assuntos mais simples de geometria, e cometem paralogismos, considerando que eu também estava sujeito ao erro como qualquer outro, eu rejeitei como falsas todas as razões que anteriormente eu tinha tomado como demonstrações; e, enfim, considerando que os mesmos pensamentos que temos quando despertados também podem nos acometer quando dormimos, sem que nenhum seja verdadeiro, decidi fingir que todas as coisas que até então tinham penetrado meu espírito não eram mais verdadeiras que as ilusões de meus sonhos. Mas logo em seguida ponderei que, querendo pensar, dessa forma, que tudo é falso, era necessário que eu, que o pensava, fosse alguma coisa; e observando que esta verdade, penso, logo existo, era tão firme e certa que as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de abalá-la, julguei que eu podia adotá-la sem escrúpulos como o primeiro princípio da filosofia que eu buscava. Depois, examinei atentamente quem eu era, e vendo que eu podia fingir que não tinha nenhum corpo e que não havia nenhum mundo, nem nenhum lugar em que eu existisse, mas que não podia fingir que eu não existia, e que, ao contrário, pelo fato mesmo de eu duvidar da verdade das outras coisas, sucedia-se, evidente e certamente, que eu existia; enquanto se eu somente deixasse de pensar, ainda que tudo que eu sempre tivesse imaginado fosse verdadeiro, eu não teria nenhuma razão para imaginar que eu existia; disso concluí que eu era uma substância cuja única essência ou natureza era só pensar, e que para existir não necessitava de nenhum lugar nem dependia de nenhuma coisa material; de modo que esse eu, isto é, a alma, pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo, e mesmo mais fácil de conhecer que ele e, ainda que o corpo não existisse, a alma não deixaria ser tudo o que é. Após isso, eu considerei, de modo geral, o que é exigido para que uma proposição seja verdadeira e certa; pois, já que acabava de encontrar uma que eu sabia que o era, eu pensei que devia também saber no que consiste a certeza. E tendo observado que na proposição penso, logo existo não há nada que assegure que eu digo a verdade, a não ser que vejo muito claramente que para pensar é preciso existir, eu julguei que podia admitir esta regra geral, que as coisas que 108 concebemos muito clara e distintamente são todas verdadeiras, mas que há somente alguma dificuldade em determinar quais são as que concebemos distintamente. [...] (DESCARTES apud SÃO PAULO, 2014d, p. 9, grifos do autor). Não há uma recomendação específica sobre como ler, apenas se indica ―[...] a pesquisa do significado das palavras pertinentes ao texto‖. O comentário sobre o excerto explica que a filosofia cartesiana poderá nos auxiliar na compreensão da construção do sujeito ético a partir da Era Moderna. Na perspectiva da Filosofia Moderna e em especial da filosofia cartesiana, a articulação entre a subjetividade e a verdade tem como referência básica o sujeito que pensa e que, por isso, pode ter acesso ao conhecimento legítimo [, além disso,] bem conduzir a vida (SÃO PAULO, 2014d, p. 10). Este comentário não explicita de que forma isso pode ser feito ou como o conteúdo do texto pode contribuir para isso, ou seja, propõem-se objetivos, oferecem-se conteúdos, mas não se explica como tudo isso se articula. Ao que parece, é papel do professor intuir esse procedimento. Dessa forma, o texto fica desvinculado do percurso do plano de aula e, assim, perde seu sentido. A atividade proposta é uma boa sugestão introdutória para discutir as ideias-chave do excerto, porém falta propor um desfecho que dê sequência à questão sobre o sujeito ético, anunciada nos objetivos desta Situação de Aprendizagem. Sugere-se o seguinte exercício: [...] após a leitura do texto, os alunos devem desenvolver com as suas palavras algumas das ideias extraídas do trecho da obra Discurso do método, de René Descartes (1637). Selecionamos algumas sugestões [...] a) Rejeitar tudo o que era proveniente dos sentidos; b) Rejeitar tudo o que poderia vir do raciocínio; c) Rejeitar todos os pensamentos que ocorrem quando se está acordado e quando se está dormindo; d) Considerar como única certeza o fato de pensar; e) Julgar que as coisas que concebemos muito clara e distintamente são todas verdadeiras (SÃO PAULO, 2014d, p. 10). A finalidade da atividade é fazer com que o educando explique com suas palavras algumas das ideias principais retiradas do texto de Descartes. No entanto, não está claro de que maneira se dá a discussão dessas ideias em relação à introdução ao sujeito ético apresentado nos objetivos deste plano de aula. O objetivo da proposta e da leitura do texto filosófico é fazer com que o estudante se reconheça como ser racional e seja introduzido aos estudos da ética. Entretanto, conforme Camus et al. (2010, p. 46), no Discurso do Método “[...] trata-se de ‗aprender a 109 distinguir o verdadeiro do falso‖, ou seja, aprender a bem usar a razão. Sendo assim, a leitura está desarticulada com a proposta da Situação de Aprendizagem. O texto, de certo modo, apresenta o homem como ser racional, porém não esclarece – nada diz sobre – sua condição de indivíduo como sujeito ético. Há, portanto, uma descontinuidade no conteúdo, uma espécie de lacuna que quebra o raciocínio e dificulta o estabelecimento da relação entre a racionalidade e a ética, justamente aquela que supostamente o educando deveria perceber. 2) Caráter fragmentário e descontextualizado dos excertos Os excertos são retirados do contexto argumentativo do autor, sem a preocupação de possibilitar a apreensão de seu raciocínio por parte do estudante, comprometendo-se, assim, os objetivos fixados para a disciplina, particularmente, aquele de desenvolver a competência de ler textos filosóficos. 1ª série, volume 1 - Situação de Aprendizagem 6 Na Situação de Aprendizagem 6, ―Introdução à Filosofia da Religião – Deus e a Razão‖, o objetivo é ―[...] apresentar ao aluno o uso da racionalidade relacionada à existência de Deus‖. O percurso do plano de aula se inicia propondo a ―diferenciação entre argumentos racionais e emocionais‖ no que tange à existência de Deus. Em seguida apresentam-se as provas racionais sobre a existência de um ser superior, segundo alguns filósofos, como: Platão, Aristóteles, São Tomás de Aquino e Santo Anselmo, bem como a explicação, segundo o filósofo Plotino, sobre o fato de que o mundo e o seu criador são as mesmas substâncias, ou seja, o universo é Uno. Discute-se, segundo Kant, o problema de que o conhecimento humano é limitado, à luz da prova da existência de Deus. Por fim, sugere-se ―[...] uma reflexão sobre a alteridade, após a leitura de um texto de Montesquieu‖ (SÃO PAULO, 2014a, p. 50). Segundo o objetivo proposto, a finalidade desta Situação de Aprendizagem limitase a discutir a questão sobre a racionalidade e a existência de Deus. No entanto, no final do percurso do plano de aula, aparece a sugestão da leitura de Montesquieu, tratando sobre a alteridade. O Caderno não esclarece o porquê dessa sugestão, depois de ter trabalhado quase toda a proposta sobre a racionalidade e a existência de Deus. 110 Sob nenhum aspecto o excerto de Montesquieu discute a racionalidade relacionada à existência de Deus. De acordo com Camus et al. (2010, p. 42), sua obra, O espírito das leis, [...] tem por ambição descobrir a lógica da ―infinita diversidade das leis e dos costumes‖ de todas as sociedades humanas, empregando um novo método, inspirado na ciência experimental nascente: partir dos fatos concretos e de suas variações para deduzir leis, e não mais construir, como nas filosofias políticas anteriores, um modelo abstrato de sociedade ideal a partir da análise de sua essência. A leitura de Montesquieu é intitulada, pelo Caderno, de ―Uniformidade e diferença‖. Eis o excerto: Existem certas ideias de uniformidade que algumas vezes ocorrem aos gênios, [...] mas que infalivelmente causam grande impressão às pequenas almas. Estas descobrem no interior de tais ideias uma espécie de perfeição; porque é quase impossível não vê-la: os mesmos pesos, as mesmas medidas no comércio, as mesmas leis do Estado, a mesma religião em toda parte. Mas será isso sempre verdadeiro, sem exceções? Será o mal da mudança constante menor que o do sofrimento? E a grandeza de um gênio não consiste, precisamente, em distinguir entre os casos em que a uniformidade é um requisito e aqueles em que há necessidade de diferenças? (MONTESQUIEU apud SÃO PAULO, 2014a, p. 55) Sugere-se apresentar uma pequena biografia de Montesquieu antes de propor a leitura. Para contextualizar o fragmento, o Caderno do Professor registra um comentário, explicando que, a partir do século XVIII, surgiu no horizonte político o Estado laico, que se deu, em parte, pela ascensão do pensamento burguês. Montesquieu propôs a divisão do poder (executivo, legislativo e judiciário), excluindo, assim, a função eclesiástica, de modo que substituiu a ―noção de uniformidade da religião‖ pela ―neutralidade do Estado‖. ―O ensino público universal, também introduzido pela Revolução, deve ignorar a religião e deixar a cada um que cultive as suas crenças, sem ter o direito de impô-las aos outros‖ (SÃO PAULO, 2014a, p. 55). O comentário quer explicitar que, a partir do século XVIII, o Estado laico afastou o poder eclesiástico, garantindo o direito do cidadão de escolher a sua crença. Além de esse excerto estar mal articulado com o tema proposto, visto que não explicita nem desenvolve a questão do uso da racionalidade relacionada à existência de Deus, nota-se que, mesmo com a proposta de contextualização, o texto permanece fragmentado diante do plano de aula. Por isso, o educando não tem condições de compreender, pela sua leitura, o encadeamento das ideias do autor. 111 Se o objetivo é o de que o estudante leia, compreenda, interprete e discuta o texto filosófico, é necessário que este se preste adequadamente a este fim. Do contrário, a compreensão do aluno dependerá quase exclusivamente da explicação do professor, privando o primeiro da oportunidade de extrair suas próprias conclusões da leitura do filósofo em questão. No Caderno do Aluno é proposto que, após a leitura, se faça uma discussão em grupos com base na seguinte questão: ―Observando nossa sociedade o que é preciso uniformizar e o que é preciso manter e respeitar quando se trata de diferenças culturais?‖ (SÃO PAULO, 2014b, p. 57). O único subsídio para a discussão é o excerto de Montesquieu que, como foi mostrado, está fragmentado e descontextualizado. Devido a isso, corre-se o risco de que a discussão permaneça no nível do senso comum, sem que se tire do texto filosófico o proveito desejável, perdendo-se, assim, o sentido de sua utilização. 2ª série, volume 2 - Situação de Aprendizagem 3 Na Situação de Aprendizagem 3, ―Filosofia e as relações de gênero‖, objetiva-se ―[...] discutir as diferenças sociais entre homens e mulheres e atualizar o debate acerca das questões de gênero‖. Para tanto, são abordados aspectos do pensamento de Olympe Gouges, Simone de Beauvoir e Michel Foucault (SÃO PAULO, 2014f, p. 27). Quais aspectos são abordados de cada um destes autores mencionados? Ou quais textos e com quais objetivos? O Caderno do Professor não esclarece. Sendo assim, a introdução não dá condições para que o professor tome consciência do percurso, das relações e dos objetivos do plano de aula. Na primeira etapa propõe-se abordar a questão do gênero, discutindo a diferença entre o homem e a mulher, as condições de submissão desta última, bem como o espaço que ela vem ganhando no horizonte social. Na próxima etapa, trata-se das funções sociais de homens e mulheres, com base nos seguintes filósofos: Simone de Beauvoir e Michel Foucault. É nesta fase que se propõe a leitura de um excerto filosófico, no caso, de Foucault. O Caderno do Professor sugere que, antes de abordar a leitura, se proponha um debate com as seguintes questões: ―[...] o que faz um homem ser homem e uma mulher ser mulher – o corpo, o pensamento ou a sociedade? Quem decide as funções sociais da 112 mulher e do homem – o corpo, o pensamento ou a sociedade?‖. Após o debate, recomendase que ―[...] leia com os alunos os textos a seguir [...]‖ (SÃO PAULO, 2014f, p. 31). Um deles, intitulado ―Sobre o Segundo sexo, de Simone de Beauvoir‖, é elaborado pelos autores do Caderno. O outro texto, reproduzido a seguir, é retirado da obra de Michel Foucault (2010, p. 84 apud SÃO PAULO, 2014f, p. 32), Ética, sexualidade, política: [...] a ideia de que se deve ter finalmente um verdadeiro sexo está longe de ter sido completamente dissipada. Seja qual for a opinião dos biólogos sobre esse assunto, encontramos, pelo menos em estado difuso, não somente na psiquiatria, na psicanálise e na psicologia, mas também na opinião corrente, a ideia de que entre sexo e verdade existem relações complexas, obscuras e essenciais. Somos, na verdade, mais tolerantes em relação às práticas que transgridem as leis. Porém continuamos a pensar que algumas delas insultam ―a verdade‖: um homem ―passivo‖, uma mulher ―viril‖, pessoas do mesmo sexo que se amam. Talvez haja a disposição de admitir que isso não é um grave atentado à ordem estabelecida, porém estamos sempre prontos a acreditar que há nelas algo como um ―erro‖. Um ―erro‖ entendido no sentido mais tradicionalmente filosófico: uma maneira de fazer que não é adequada à realidade; [...]. Em seguida, há alguns comentários sobre os textos. No que diz respeito ao excerto de Michel Foucault, explica-se o seguinte: Segundo o filósofo francês Michel Foucault, a determinação do que é certo, errado, normal e anormal no âmbito do sexo, do gênero e da sexualidade está relacionada com classificações fundadas em identificações e diferenciações que não são naturais, mas criadas por convenção social para melhor controlar as populações. Essas classificações foram engendradas e perpetuadas por meio de diferentes mecanismos do poder, entre eles: a produção de saberes e o estabelecimento de disciplinas e discursos que nos fornecem determinado modo de ver o mundo e as relações humanas (SÃO PAULO, 2014f, p. 33). Ora, nota-se que o comentário apresenta informações que vão além do que o excerto expõe. Então, não seria mais adequado trabalhá-lo de modo mais amplo e aprofundado, intercalando excertos com explicações, de maneira a que o educando possa acompanhar o raciocínio do autor gradativamente e apreender suas ideias principais o mais diretamente possível, a partir do maior contato possível com o próprio texto? Do contrário, a presença do excerto é insuficiente. A propósito, em relação à atividade, não há nenhuma questão sugerida que se refira diretamente ao texto, a saber: 1. Comente o seguinte ditado popular: ―Atrás de um grande homem, há sempre uma grande mulher‖. 2. Levando em conta as diferenças no tratamento dado pelas famílias aos meninos e às meninas, que a partir de uma certa idade são incentivados a se identificar com o que seriam as 113 marcas distintas do seu sexo, escreva um pequeno texto respondendo às seguintes questões: Esse tratamento diferenciado pode ser creditado apenas aos familiares? Pelas suas experiências e lembranças, a indústria de brinquedos reafirma essa tendência? Há brinquedos fabricados especificamente para meninos e meninas? Há brincadeiras de meninos e de meninas? O que acontece quando meninos e meninas não aceitam essa tendência? Você consegue pensar nas consequências? (SÃO PAULO, 2014f, p. 33). Esta atividade não enfoca diretamente a compreensão do texto; antes, parece mais apropriada ao momento de sensibilização. O texto de Foucault está fragmentado e descontextualizado dentro da proposta. Seria necessário ampliá-lo, para que o educando pudesse compreender a linha de raciocínio do autor. Tal como está, o texto é subaproveitado. 3) Descompasso entre o grau de complexidade dos textos e as condições reais do educando para compreendê-los Também na Situação de Aprendizagem 2, ―Como funciona o intelecto? Introdução ao empirismo e ao criticismo‖, encontramos um descompasso entre a proposta das leituras dos textos filosóficos e as condições reais dos educandos. Como esta proposta já foi discutida acima, não transcreveremos seus objetivos e textos. As obras Ensaio acerca do entendimento humano, do filósofo Locke, e Crítica da razão pura, do filósofo Kant, sugeridas na Situação de Aprendizagem, não são leituras fáceis. Propô-las em uma mesma Situação de Aprendizagem para educandos da 1ª série, no 1º bimestre, sabendo que o professor de filosofia tem apenas duas aulas por semana, aumenta ainda mais a dificuldade. Tendo em vista essas condições, não seria mais adequado sugerir a leitura de apenas um texto filosófico e, obviamente, apropriado aos objetivos da Situação de Aprendizagem? Nesse caso, fazer essa adaptação não significa subestimar a capacidade do educando, nem nivelar por baixo a qualidade da aula ou do texto empregado. Trata-se, na verdade, de buscar o bom senso, a fim de que o educando tenha o melhor aproveitamento 114 possível da leitura de um texto filosófico20. Para isso, o professor precisa, necessariamente, contextualizar muito bem o assunto, de modo que o educando seja munido de informações referentes à obra, ao filósofo, ao contexto histórico e às ideias principais do texto em questão. O professor deve ter cuidado no emprego desses textos, a fim de que não os utilize apenas pela sua importância no ensino, sem se preocupar com as condições reais de seus educandos. Essa perspectiva pode comprometer a relação entre os alunos e essas leituras, de maneira que eles julguem, apressadamente, que são textos impossíveis de serem compreendidos. Além disso, também pode prejudicar os objetivos propostos pela Situação de Aprendizagem. Em algumas experiências com alunos da 1ª série do ensino médio, trabalhando a leitura, a compreensão e a discussão dos textos de Locke e Kant, nota-se que se leva muito tempo para encerrá-las e, mesmo assim, nem sempre o resultado é satisfatório. Isso compromete o desenvolvimento das outras Situações de Aprendizagem, pois há um conjunto proposto de aulas que devem ser cumpridas no bimestre. Sendo assim, o atraso de uma compromete o bom desenvolvimento das posteriores. As orientações do Caderno do Professor admitem que o docente adapte as Situações de Aprendizagem, de acordo com as condições por ele avaliadas. No entanto, as adaptações deveriam ser feitas em aspectos secundários. Se se fazem necessárias em aspectos essenciais da proposta, isso põe em dúvida a qualidade do plano de aula em questão. 4) Afastamento ou distorção do sentido original do texto filosófico O direcionamento dado ao estudo e à interpretação do texto filosófico, muitas vezes, conduz ao afastamento ou à distorção do sentido original que lhe fora dado pelo autor. Deixa-se, assim, de explorá-lo adequadamente e com o rigor que seria desejável em um trabalho pedagógico com filosofia. 20 Conforme o Caderno do Professor, ―em relação às competências e habilidades, espera-se que o aluno seja capaz de ler textos filosóficos, compreender suas estruturas e ordenar suas ideias‖ (SÃO PAULO, 2014a, p. 17). 115 1ª série, volume 1 - Situação de Aprendizagem 7 Na Situação de Aprendizagem 7, ―Introdução à Filosofia da Cultura – Mito e Cultura‖, objetiva-se ―a problematização dos aspectos simbólicos e filosóficos da cultura‖. De acordo com o Caderno do Professor, inicia-se com ―a leitura do mito de Eros, constante no diálogo platônico O banquete; em seguida, trataremos do pensamento de Ernest Cassirer‖, a fim de discutir a respeito do conceito de cultura, e, por fim, ―[...] debateremos os conceitos de etnocentrismo, relativismo cultural e alteridade‖ (SÃO PAULO, 2014a, p. 58, grifos do autor). Os objetivos propostos são vagos. Mesmo anunciando as leituras sugeridas, não se explicitam as razões, nem se esclarece como problematizar os aspectos simbólicos e filosóficos da cultura. Para essa temática, encontram-se dois excertos extraídos das seguintes obras: O banquete (Platão) e o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (Rousseau). Anteriormente à proposta do texto filosófico de Platão, o Caderno do Professor sugere discutir com os estudantes o que eles pensam sobre o amor e, em seguida, explicar suas diferentes interpretações. Recomenda-se apresentar a origem dos deuses gregos, segundo Hesíodo, para quem ―o deus amor, Eros, era filho do primeiro deus manifesto no mundo: Caos‖. Logo após, há uma explicação sobre o amor, segundo O banquete (SÃO PAULO, 2014a, p. 59). Não há recomendações de como deve ser lido tal excerto. Ao que parece, porque a explicação sobre o amor à luz de O banquete precede o excerto, supõe-se que o professor deve, primeiramente, esclarecer a história, para depois propor a leitura. No entanto, por não explicitar qualquer estratégia, entende-se que a escolha fique por conta unicamente do professor. O trecho de O banquete é a passagem que traz a narrativa mítica da origem do amor (Eros): Por ocasião do nascimento de Afrodite, os deuses celebraram com uma grande festa e, entre eles, estava Porus (a Abundância), filho de Métis. Após a ceia, Penia (a Penúria), percebendo tanta fartura, veio mendigar as sobras e encostou-se junto à porta. Porus, embriagado pelo néctar dos deuses, já que o vinho ainda não havia sido inventado, entra no jardim de Zeus e cai em sono profundo. Penia, desejosa de gerar um filho de Porus para superar sua situação de penúria, deita-se junto a ele e, nesse encontro, Eros é concebido. Eros é, portanto, seguidor e servo de Afrodite, pois foi concebido no dia do nascimento dessa deusa, e também 116 por ser naturalmente um amante de tudo o que é belo, e Afrodite era bela. E por ser filho da Penúria e da Abundância, Eros partilha da natureza e do destino de seus pais. Ele é eternamente pobre, e longe de ser delicado e belo como imaginado pelos homens, é esquálido e enrugado; seu vôo é raso junto ao chão e ele não tem morada ou sapatos; dorme ao relento junto aos umbrais das portas, em ruas desprotegidas; possuindo, assim, a mesma condição de sua mãe, ele é eternamente insaciável. Mas, visto que traz algo de seu pai, ele está sempre a fazer planos para obter coisas que sejam boas e belas; ele é destemido, veemente e forte; um caçador cruel, sempre está a tramar novas armadilhas; extremamente cauteloso e prudente, possui inúmeros recursos; é também, ao longo de toda sua existência, um filósofo, um poderoso sedutor, um mago e um sofista sutil. E, por não ser nem mortal nem imortal, no mesmo dia em que pode ser bem-aventurado e bem-sucedido, ele irá simultaneamente florescer e morrer para, em seguida, e de acordo com a natureza de seu pai, renascer novamente. Tudo o que conquista, escapa-lhe continuamente, de tal modo que Eros não é jamais rico ou pobre, e encontra-se permanentemente em um estado intermediário entre a ignorância e a sabedoria (PLATÃO apud SÃO PAULO, 2014b, p. 61). Posterior ao excerto, no Caderno do Professor, há comentários para que o professor esclareça aos educandos o significado do mito e sua função, bem como uma interpretação de Ernest Cassirer a partir da sua obra, A filosofia das formas, explicitando uma profunda reflexão sobre os mitos, que, de modo geral, conclui que a relação do homem com as pessoas e a natureza acontece por meio dos símbolos que, por sua vez, colaboram na construção dos mitos. Ou seja, ―o homem toca o mundo pelos signos, ele os inventa e deles tira o sentido das coisas [...] Os símbolos são amplamente partilhados, mas também podem ser muito pessoais, e o mesmo acontece com os significados‖ (SÃO PAULO, 2014b, p. 61). Não há comentários sobre o excerto. Tem-se a impressão de que a ideia é apresentá-lo como exemplo de mito, porém não há nada explícito. Somente no Caderno do Aluno há sugestões de atividades, a saber: 1. Sublinhe, no texto, as palavras que você desconhece. Depois, investigue uma por uma e escreva os significados na seção Meu vocabulário filosófico, no final deste Caderno. 2. Com base no texto apresentado e nas explicações do professor, explique o que é um mito. 3. Escreva sobre um mito que você conheça. Se preferir, pesquise algum. 4. Os símbolos são partilhados por várias pessoas, mas também podem ser muito pessoais; o mesmo acontece com os significados. Lembre-se de que o signo é a representação aos nossos sentidos de algo que existe: pode ser uma imagem, um som, um cheiro, um sabor, um gesto, uma temperatura, uma dança. O significado é o ―conteúdo‖ desse signo, a 117 ideia que está por trás daquilo que se apresenta para as pessoas ou para si mesmo. Complete o quadro a seguir, escrevendo o significado ou desenhando um signo21 (SÃO PAULO, 2014b, p. 62). Nota-se que, para essas sugestões – exceto a primeira –, o excerto é dispensável, visto que as perguntas giram em torno do comentário proposto para o professor sobre o mito e sua função. Sendo assim, de modo geral, o excerto é subaproveitado. Para que o educando bem o aproveite – leia, compreenda e analise-o –, seria mais adequado que se selecionasse um texto filosófico que tratasse, por exemplo, sobre o mito ou o símbolo, propriamente dito, e se elaborassem questões que mais envolvessem diretamente o conteúdo da leitura. Dessa forma, os estudantes, com base no texto, teriam condições de responder as questões. Aliás, resolver as atividades, tendo, preferencialmente, referência ao excerto, é uma das orientações dos Cadernos do Professor. Além disso, o Caderno deixa perder-se o sentido original do texto de Platão que é o de apresentar, por meio da metáfora do mito de Eros, a natureza da filosofia e do filósofo. Em seguida, o Caderno do Professor apresenta comentários sobre o ―[...] conceito de cultura, principalmente com base no livro A ideia de cultura, de Terry Eagleton (2005)‖. Propõe-se que o professor, a partir dessas reflexões, discuta com seus educandos sobre cultura a partir das seguintes problemáticas: ―cultura versus natureza‖; ―liberdade e determinismo‖; ―a cultura em transição com a natureza‖; ―a cultura é uma construção de si mesmo‖; ―cultura e Estado‖ e, por fim, ―conceito de cultura‖ (SÃO PAULO, 2014b, p. 62). Logo depois, sugere-se a leitura do segundo excerto, Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (Rousseau), que tem o objetivo de ―[...] desenvolver ainda mais o conceito de cultura‖. Ademais, orienta-se que o professor proponha uma discussão, retomando as ideias iniciais desse conceito (SÃO PAULO, 2014a, p. 64). Esta orientação não esclarece o que discutir sobre cultura e, muito menos, explica sua relação com o excerto de Rousseau. De acordo com Camus et al. (2010, p. 56), a obra não trata diretamente do conceito de cultura, mas, sim, procura ―[...] compreender bem a origem da sociedade, do Estado e por conseguinte das desigualdades‖. O trecho retirado do Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, de Rousseau, é o seguinte: 21 É apresentado um quadro com símbolos, imagens e palavras, onde os estudantes devem desenhar ou escrever o significado, de acordo com aquilo que é proposto. Por exemplo, se for apresentada uma imagem, deve-se escrever o seu significado e, se for apresentada uma palavra, deve-se desenhar o seu significado. 118 Efetivamente, é fácil ver que, entre as diferenças que distinguem os homens, muitas passam por naturais, quando são unicamente a obra do hábito e dos diversos gêneros de vida que os homens adotam na sociedade. Assim, um temperamento robusto ou delicado, a força ou a fraqueza que disso dependem, vêm muitas vezes mais da maneira dura ou efeminada como foi educado do que da constituição primitiva dos corpos. O mesmo ocorre com as forças do espírito, e não somente a educação estabelece diferença entre os espíritos cultivados e os que não o são, mas ela aumenta a que se acha entre os primeiros à proporção da cultura; pois, quando um gigante e um anão andam na mesma estrada, cada passo que darão abrirá uma nova vantagem para o gigante. Ora, se compararmos a diversidade prodigiosa de educação e de gêneros de vida que reina nas diferentes ordens do estado civil com a simplicidade e a uniformidade da vida animal e selvagem, em que todos se nutrem dos mesmos alimentos, vivem da mesma maneira e fazem exatamente as mesmas coisas, compreenderemos quanto a diferença de um homem para outro homem deve ser menor no estado de natureza do que no de sociedade; e quanto a desigualdade natural deve aumentar na espécie humana pela desigualdade de instituição (SÃO PAULO, 2014a, p. 64). O texto, como se pode observar, não faz referência direta à noção de cultura. Ao que tudo indica, espera-se que o aluno intua, com a ajuda do professor, a diferença entre natureza e cultura a partir da distinção, sugerida no texto, entre estado de natureza e estado de sociedade, ou entre desigualdade natural e desigualdade de instituição. No entanto, mesmo essas noções são insuficientemente esclarecidas, ficando o aluno, portanto, na dependência da complementação do professor. Novamente, o texto filosófico é subaproveitado. Como atividade, além do ―Vocabulário filosófico‖, as questões propostas no Caderno do Aluno sobre esse excerto são as seguintes: ―Para Rousseau, qual é a importância da educação? Qual é a sua atitude pessoal em relação à educação?‖ (SÃO PAULO, 2014b, p. 65). Ora, por mais que a educação esteja associada à cultura, se esta última é o tema sugerido pela Situação de Aprendizagem, não seria lógico que as perguntas fossem diretamente dirigidas a ele? Além disso, o excerto não oferece elementos para que as questões sejam respondidas. Portanto, os textos filosóficos sugeridos são direcionados de forma que se afastam do sentido original proposto pelo autor, distorcendo assim o seu raciocínio e comprometendo a leitura, a compreensão e a reflexão do educando sobre eles. 3ª série, volume 1 - Situação de Aprendizagem 5 119 A Situação de Aprendizagem 5, ―Filosofia e Religião‖, tem como objetivo aprofundar [...] a compreensão sobre as características do discurso filosófico, com destaque para a relação entre Filosofia e Mitologia ou ainda Filosofia e Religião. Com a ajuda de historiadores da Filosofia, contextualiza-se a origem da Filosofia como processo em diálogo e não em ruptura com a Mitologia. (SÃO PAULO, 2014g, p. 45). A temática desta Situação de Aprendizagem parece um pouco deslocada quanto à sua proposta de desenvolvimento da aula. Como se sugere trabalhar a compreensão das características do discurso filosófico, parece ser mais adequado denominar este tema: ―O discurso filosófico‖, pois a primeira impressão que se tem ao ler o tema ―Filosofia e Religião‖, é de que ocorrerão discussões a respeito do universo religioso e do universo filosófico. É interessante notar que, ao tratá-lo nas salas de aula, no decorrer de seu desenvolvimento, os próprios estudantes questionam o fato de que não foi abordada a questão da religião. Portanto, o título não está coerente com a proposta. Como sensibilização, o Caderno sugere que os educandos, em grupo, criem ―[...] hipóteses sobre possíveis comentários de um filósofo e de um religioso [...]‖ sobre uma notícia de desastre de avião. De acordo com o Caderno do Professor, ―o objetivo dessa sondagem é verificar as representações elaboradas pelos alunos a respeito dos possíveis padrões discursivos a partir das características do discurso filosófico e das características do discurso religioso‖ (SÃO PAULO, 2014g, p. 46). Em seguida propõe-se um texto intitulado ―Filosofia e Religião‖, de autoria dos elaboradores do Caderno, que trata sobre as relações (aproximações e diferenças) entre a filosofia, a mitologia e a religião. Após a leitura, o educando ―[...] deve responder quais são as possíveis afinidades entre os discursos filosófico e religioso e as narrativas mitológicas‖ (SÃO PAULO, 2014g, p. 46). No que diz respeito ao texto filosófico, apresenta-se uma leitura retirada da obra de Kant, Crítica da razão pura. Ela é sugerida em uma atividade que tem como objetivo ―[...] ajudar os alunos a pensar as diferenças entre um discurso e outro‖. O outro texto é ―[...] uma transcrição de nossa autoria do mito denominado Eros e Psiquê, narrado pela primeira vez por um escritor romano chamado Lucio Apuleio (século II d. C.)‖ (SÃO PAULO, 2014g, p. 47). Eis o excerto de Kant: Não há dúvida de que todo o nosso conhecimento começa com a experiência; pois de que outro modo poderia a nossa faculdade de 120 conhecimento ser despertada para o exercício, não fosse por meio de objetos que estimulam nossos sentidos e, em parte, produzem representações por si mesmos, em parte colocam em movimento a atividade de nosso entendimento, levando-a a compará-las, conectá-las ou separá-las e, assim, transformar a matéria bruta das impressões sensíveis em um conhecimento de objetos chamado experiência? No que diz respeito a um tempo, portanto, nenhum conhecimento antecede em nós à experiência, e com esta começam todos. Ainda, porém, que todo nosso conhecimento comece com a experiência, nem por isso surge ele apenas da experiência. Pois poderia bem acontecer que mesmo o nosso conhecimento por experiência fosse um composto daquilo que recebemos por meio de impressões e daquilo que nossa própria faculdade de conhecimento (apenas movida por impressões sensíveis) produz por si mesma; uma soma que não podemos diferenciar daquela matéria básica enquanto um longo exercício não nos tenha tornado atentos a isso e aptos a efetuar tal distinção. Aquela expressão não é suficientemente determinada, contudo, para designar de maneira adequada o sentido integral da questão posta. Pois, se costuma dizer, de muitos conhecimentos derivados de fontes da experiência que nós somos capazes ou participantes deles a priori, na medida em que não os derivamos imediatamente da experiência, mas sim de uma regra universal que, no entanto, tomamos emprestada da própria experiência. Assim, diz-se de alguém que solapou os fundamentos de sua casa que ele poderia saber a priori que ela cairia, i.e., ele não precisava esperar pela experiência em que ela de fato caísse. Inteiramente a priori, contudo, ele não poderia mesmo sabê-lo. Pois teria que aprender antes, por meio da experiência, que os corpos são pesados e, por isso, caem quando lhes é retirado o suporte. No que segue, portanto, entendermos por conhecimento a priori aqueles que se dão não independentemente desta ou daquela, mas de toda e qualquer experiência. A eles se supõem os conhecimentos empíricos ou aqueles que só são possíveis a posteriori, i.e., por meio da experiência (SÃO PAULO, 2014h, p. 48). Pode-se notar que o excerto trata da diferença entre o conhecimento puro e o conhecimento empírico. Por sua vez, o outro texto, baseado na obra A metamorfose ou o asno de outro, do filósofo Lúcio Apuleio, refere-se à história de Eros e Psiquê. Propõe-se uma leitura silenciosa de ambos os textos, procurando identificar suas diferenças. Para direcionar essa atividade, sugerem-se três questões: 1) ―Qual é o objetivo de cada texto e qual é o assunto tratado em cada um deles?‖; 2) ―De que forma a mensagem principal e as demais mensagens são apresentadas em cada um dos textos?‖; 3) ―Aponte alguma característica específica de cada um dos textos, que não possa ser encontrada no outro‖ (SÃO PAULO, 2014g, p. 47). De acordo com a proposta, os estudantes precisam perceber que um ―apresenta-se com uma narrativa marcada por analogias, metáforas e parábolas, enquanto, no exemplo dado do texto filosófico, o discurso apresenta-se marcado por questionamentos sucessivos a cada afirmação [...]‖ (SÃO PAULO, 2014g, p. 50). 121 Esta perspectiva levanta um problema, pois parte da existência de uma ruptura radical entre os dois gêneros textuais, como se a filosofia não pudesse se valer do mito e este não pudesse conter um sentido filosófico. Desse modo, a Alegoria da caverna, de Platão, bem como outras passagens em que ele recorre ao mito, não poderia ser considerada um texto filosófico. Este reducionismo se repete na proposição de uma atividade de pesquisa: ―Sugerimos que os alunos elaborem uma frase que informe a diferença quanto à natureza dos textos mitológicos e dos textos filosóficos‖ (SÃO PAULO, 2014g, p. 50, grifos nossos). Nota-se que as orientações do Caderno do Professor não se preocupam em esclarecer que há textos filosóficos com narrativas mitológicas. Rodrigo (2009, p. 81), ao esclarecer que há textos de filósofos que não apresentam uma ―estruturação lógico-discursiva‖, por isso não é possível aplicar um ―método de análise-estrutural‖, explica que ―há textos filosóficos propositalmente assistemáticos, ou que se expressam por meio de gêneros literários [...] como romance (ex.: Sartre), a confissão (ex.: Santo Agostinho), o mito (ex.: Platão), o aforismo e o poema (ex.: Nietzsche) etc.‖. Portanto, há textos filosóficos que se valem de narrativas mitológicas. Sendo assim, o Caderno precisa deixar isso claro, pois, do contrário, pode induzir o aluno a uma interpretação equivocada. Ainda sobre a proposta das leituras, seria mais adequado propor textos que tratam dos mesmos assuntos, pois, dessa forma, seria favorecida a compreensão, pelo estudante, da distinção da estrutura do discurso. Na experiência da sala de aula, alguns estudantes interpretam que, para determinados temas, utiliza-se apenas um específico discurso. Por exemplo, eles entendem que não é possível escrever sobre o amor em um texto filosófico com uma estruturação lógico-discursiva, apenas em outro que utilize analogias, metáforas ou parábolas. A seleção de discursos diferentes (filosófico e mitológico) sobre um mesmo assunto contribuiria para evitar tal interpretação. É interessante que, na solicitação de pesquisa, sugere-se que ―[...] os alunos tragam para a sala de aula um exemplo de narrativa mitológica e de texto filosófico, se possível, sobre o mesmo tema‖ (SÃO PAULO, 2014g, p. 50, grifos nossos). Parece que se reconhece essa importância. Observa-se, assim, que o conteúdo do texto de Kant é secundário para a proposta desta Situação de Aprendizagem, visto que o interesse se volta para sua estrutura. Nesse sentido, há um afastamento do sentido original da leitura. 122 3ª série, volume 2 - Situação de Aprendizagem 1 Na Situação de Aprendizagem 1, ―Filosofia e Ciência‖, a proposta consiste em comparar o discurso científico com o discurso filosófico, identificando semelhanças e distanciamentos. De acordo com o Caderno do Professor, ―[...] mais importante que traçar fronteiras demasiadamente explícitas é pensar uma origem comum aos dois campos na Grécia Antiga e as hipóteses para o distanciamento ocorrido entre eles ao longo da história [...]‖ (SÃO PAULO, 2014i, p. 10). Posto o objetivo e o aspecto que será ressaltado, o papel do texto filosófico para esta proposta é contribuir com a distinção entre o discurso filosófico e o discurso científico. Para tanto, o texto filosófico sugerido é retirado da obra Les Essais (Ensaios), do filósofo Michel Montaigne: Para Cícero, filosofar não é outra coisa que preparar-se para a morte. Talvez porque o estudo e a contemplação tiram a alma para fora de nós, separam nossa alma do corpo, o que, em suma, se assemelha à morte e constitui como que um aprendizado em vista dela. Ou então é porque de toda sabedoria e inteligência resulta, finalmente, que aprendemos a não ter receio da morte. Em verdade, ou nossa razão falha ou seu objetivo único deve ser a nossa própria satisfação, e seu trabalho tender para que vivamos bem, e com alegria, como recomenda a Sagrada Escritura. [...] Não sabemos onde a morte nos aguarda, e por isto a esperamos em toda parte. Refletir sobre a morte é refletir sobre a liberdade; quem aprendeu a morrer, desaprendeu de servir; nenhum mal atingirá quem na existência compreendeu que a privação da vida não é um mal; saber morrer nos libera de toda sujeição e constrangimento (MONTAIGNE apud SÃO PAULO, 2014i, p. 11). Este excerto vem acompanhado de outro, intitulado ―Dados da mortalidade juvenil no Brasil‖. De acordo com o Caderno do Professor, o texto, é ―[...] tipicamente científico, retirado de um relatório sobre violência no Brasil‖ (SÃO PAULO, 2014i, p. 10). Ele apresenta dados sobre os jovens brasileiros, no que se refere ao número de mortes e suas causas. A proposta consiste em o educando identificar nas duas leituras a diferença entre os discursos. Como subsídio, o Caderno do Professor sugere algumas questões: ―1. Os dois textos trazem opinião de seus atores? 2. Como se apresentam as informações em cada um dos textos? 3. Quais diferenças entre os dois textos chamam mais a atenção?‖ (SÃO PAULO, 2014i, p. 12). 123 Com base na comparação dos textos propostos, sobretudo, no que se refere ao conteúdo do texto filosófico, de maneira indireta dá-se a impressão de que a filosofia é sinônimo de metafísica. Essa sutil redução induz o estudante a interpretar que é esta a característica do discurso filosófico. Dessa forma, os outros campos da filosofia, como política, ética, estética, entre outros, são desconsiderados. Ademais, uma das referências populares que definem a filosofia é o fato de que é um saber distante da realidade, no sentido de que a filosofia trata somente de assuntos como morte, alma, espírito, paraíso e entre outros. Sendo assim, essa abordagem reforça ainda mais a possibilidade de reduzir a filosofia a uma única perspectiva. Portanto, o texto filosófico sugerido induz a uma equivocada interpretação ou, ao menos, a uma visão reducionista da diferença entre o discurso filosófico e o científico, bem como se afasta do sentido original que lhe fora dado pelo autor. 5) Escolha aparentemente aleatória de autores e excertos Não se explicitam as razões da escolha de um ou mais autores e de seus respectivos excertos para tratar determinados assuntos, de modo que essa escolha parece se dar aleatoriamente ou ao mero sabor da preferência do autor do material didático. 2ª série, volume 1 - Situação de Aprendizagem 5 Na Situação de Aprendizagem 5, ―Introdução à teoria do indivíduo‖, trata-se de uma reflexão ética a respeito da ação e da conceituação do indivíduo, tendo como referência três filósofos: John Locke, Jeremy Bentham e John Stuart Mill. As questões que norteiam a temática são: ―O que sou?” e ―O indivíduo na perspectiva de John Locke‖ e uma reflexão sobre o pensamento utilitarista, segundo Jeremy Bentham (SÃO PAULO, 2014d, p. 43). Primeiramente, o objetivo proposto está vago. Qual a justificativa de propor esses três filósofos? De que maneira se pretende refletir eticamente a respeito da ação e da conceituação do indivíduo, tendo como referência os filósofos citados? Quais textos serão utilizados? Por quê? De que maneira será feita a reflexão sobre o pensamento utilitarista, segundo Jeremy Bentham? Qual texto será empregado e com qual finalidade? Se se 124 anunciou o filósofo John Stuart Mill como um dos que também será estudado, por que se mencionou a reflexão apenas sobre o pensamento utilitarista de Bentham? É fundamental esclarecer esses aspectos, sobretudo na introdução, a fim de favorecer o entendimento da relação entre os conteúdos e os objetivos propostos. Do contrário, o plano fica fragmentado. Esse esclarecimento é importante porque, dessa forma, o professor tem mais condições para planejar o percurso das atividades tendo o cuidado de estabelecer suas relações, a fim de dar sentido ao desenvolvimento da aula e alcançar os objetivos propostos, inclusive, com as atividades referentes às leituras com textos filosóficos. Na primeira etapa é proposta uma sensibilização: solicita-se uma pesquisa sobre a vida e a obra de John Locke, John Stuart Mill e Jeremy Bentham, bem como o significado de alguns termos como: ―utilitarismo‖, ―indivíduo‖, ―contratualismo‖ e ―teoria Liberal‖ (SÃO PAULO, 2014d, p. 43). Seria interessante que o Caderno do Professor sugerisse como e quando introduzi-los no processo da Situação de Aprendizagem, a fim de esclarecer as razões de sua pesquisa. No entanto, não há qualquer recomendação a esse respeito. Também se levantam algumas questões, para refletir ―[...] sobre a autoimagem e os diferentes aspectos que podem assumir a nossa condição sócio-histórica‖. A recomendação sugere que os professores procurem [...] orientar a reflexão dos alunos com o intuito de fazê-los pensar em sua individualidade e, em certa medida, na individualidade alheia, além, é claro, de analisarem a relação entre nossa individualidade e os grupos aos quais pertencemos. [...] Com base em um entendimento comum da nossa condição de indivíduos, reflita com os alunos sobre a convivência [...] como realizar as necessidades e os desejos individuais na convivência com os outros que trazem consigo os próprios desejos e necessidades? (SÃO PAULO, 2014d, p. 44). A partir dos problemas refletidos, principalmente, sobre a questão da convivência, espera-se introduzir o conceito de ―contrato‖, segundo John Locke, discutindo a seguinte questão: ―[...] os homens, antes de se organizarem em sociedade, viviam em uma situação chamada ‗estado de natureza‘. A hipótese de um período originário como esse tem o sentido de auxiliar a refletir sobre os motivos que levaram os homens a se organizar e viver em sociedade‖. Com o objetivo de auxiliar o professor nessa questão, o Caderno do Professor apresenta uma breve explicação sobre o ―contrato social‖, o ―estado de natureza‖, o ―estado de guerra‖ e como se deu a organização na sociedade (SÃO PAULO, 2014d, p. 44). 125 O texto filosófico é proposto em seguida. São apresentados três excertos do filósofo John Locke, retirados de sua obra Segundo tratado sobre o governo civil, que tratam sobre o estado de natureza, o estado de guerra e a propriedade: Do estado de natureza Para compreender corretamente o poder político e deduzi-lo a partir de sua origem, devemos considerar em qual estado se encontram naturalmente todos os homens, ou seja, um estado de liberdade perfeita para ordenar suas ações e regular suas posses e pessoas como acharem conveniente, dentro dos limites da lei da natureza, sem necessidade de pedir permissão ou depender da vontade de outro homem. Um estado, também, de igualdade, no qual todo poder e justiça são recíprocos, sem que um tenha mais do que outro; evidentemente, seres da mesma espécie e posição, nascidos aleatoriamente para usufruir de todos os benefícios da natureza e do uso das mesmas faculdades, devem também ser iguais entre si, sem que haja subordinação ou sujeição, exceto quando o senhor e mestre de todos eles expresse seu desejo por meio da declaração de sua vontade de colocar um acima do outro e conferir ao primeiro, por meio de uma designação clara e evidente, o direito ao domínio e à soberania. [...] Do estado de guerra [...] E, portanto, aquele que tentar submeter outro homem ao seu poder absoluto coloca-se, dessa forma, em estado de guerra com esse homem. Essa atitude deve assim ser entendida como uma declaração de que visa a controlar sua vida. Pois tenho razão em concluir que aquele que me subjuga em seu poder, sem meu consentimento, faria uso de mim como desejasse quando me encontrasse sob seu poder e também iria me destruir quando assim desejasse fazê-lo, pois ninguém pode desejar subjugar-me a seu poder absoluto, exceto para forçar-me a fazer algo que é contra meu direito de liberdade, isto é, fazer de mim um escravo. Estar livre de tal força é a única garantia de minha preservação e a razão faz-me percebê-lo como um inimigo de minha preservação, alguém que me privaria daquela liberdade que protege tal preservação; logo, aquele que tentar escravizarme irá colocar-se, dessa forma, em estado de guerra comigo. Aquele que, no estado de natureza, retirasse a liberdade que pertence a qualquer um em tal estado deve necessariamente ser considerado como possuidor de um desejo de retirar todas as demais coisas, já que a liberdade é o alicerce de tudo o que existe. Tal como aquele que no estado de sociedade retirasse a liberdade pertencente aos membros daquela sociedade ou do bem comum deve ser considerado como alguém que deseja tirar deles tudo o que resta, e assim ser visto como em estado de guerra. Da propriedade [...] Apesar de a terra e todas as demais criaturas serem comuns a todos os homens, cada homem possui uma propriedade sobre sua própria pessoa. A ela, ninguém tem direito, exceto ele próprio. O trabalho de seu corpo e a criação de suas mãos, podemos dizer, são apropriadamente seus. Qualquer coisa que ele retire do estado em que a natureza a tenha criado e dessa forma deixado revela a mescla de seu esforço a tal coisa, transformando-a em algo que agora lhe pertence, tornando-a assim sua propriedade. Por ter sido retirada do estado comum no qual a natureza a 126 colocou e porque algo foi adicionado a tal coisa por meio do trabalho, isso exclui o direito comum de outros homens. Por ser tal esforço de propriedade inquestionável de seu executor, nenhum homem além dele pode ter direito ao que ele criou, ao menos enquanto houver o bastante e enquanto boas condições forem deixadas em comum para outros homens (LOCKE apud SÃO PAULO, 2014d, p. 45). De acordo com o Caderno do Aluno, estes excertos são propostos com ―[...] o objetivo de trazer alguns elementos para refletir sobre o que pode ter levado diferentes indivíduos, apesar das suas peculiaridades, a se organizarem em sociedade‖ (SÃO PAULO, 2014e, p. 45). Por sua vez, no Caderno do Professor, não consta esta explicação; ele apenas sugere que se leia e abra um debate com algumas questões que serão analisadas mais à frente. Já que um dos objetivos da Situação de Aprendizagem é compreender o indivíduo na perspectiva de Locke, então, seria adequado algum comentário explicativo sobre a relação entre este último e os excertos propostos. Dessa forma, poderia melhor esclarecer ao professor o papel dos excertos, tendo em vista os objetivos da Situação de Aprendizagem. As questões propostas têm o objetivo de promover um debate. Eis as perguntas: Se cada um é livre, tem o direito à propriedade e à defesa da própria vida, como nós não acabamos em uma situação de guerra de todos contra todos? Caso uma pessoa não tenha o que precisa, o que a impede de tomar de outro o que lhe falta? Por que tenho de respeitar a liberdade do outro? (SÃO PAULO, 2014d, p. 46). São questões que nos colocam a pensar sobre alguns problemas discutidos no excerto em um horizonte contemporâneo. Considerando a riqueza de cada excerto, bem como a proposta do Currículo de que o estudante deve desenvolver a competência de ler textos filosóficos, poder-se-iam propor, também, questões mais diretamente voltadas à compreensão do sentido original do texto de Locke. As questões propostas, se não forem bem direcionadas, podem fazer com que o educando reflita sobre esses problemas, sem saber qual a sua relação com os textos do autor. Nesse caso, os excertos seriam dispensáveis. Dessa forma, é possível que o professor ignore a leitura dos excertos e resuma suas ideias e, em seguida, discuta com os estudantes as questões do debate, contornando, assim, as dificuldades – dos alunos, mas, muitas vezes, também dele – de leitura e análise desses textos. 127 Conforme o Caderno do Aluno, o objetivo dos excertos de Locke é motivar uma reflexão sobre os motivos que levaram os indivíduos a se organizarem em sociedade. Contudo, no Caderno do Professor recomenda-se que [...] o mais importante para esta etapa22 é deixar claro que, na filosofia de John Locke, há a valorização do indivíduo como agente histórico e jurídico. Por isso, toda ação depende necessariamente do indivíduo. O tipo de governo que ele deixa existir, o tipo de relações sociais sob as quais viverá, o conhecimento que deverá produzir; enfim, sua felicidade ou tristeza não competem mais ao rei ou ao senhor feudal, mas somente ao indivíduo (SÃO PAULO, 2014d, p. 46). Os excertos filosóficos não dão condições para esclarecer estes aspectos; muito menos, o Caderno do Professor explica como articulá-los com os excertos. Portanto, estão desvinculados da proposta. Ademais, para o aprofundamento do assunto, sugere-se outro texto – elaborado pelos autores do Caderno –, que trata sobre a diferença entre o direito natural e o direito positivo, explicando que as leis positivas são criadas para garantir a manutenção dos direitos naturais e, por isso, todos devem obedecê-las. Ao que parece, este texto foi proposto, também, para que esclarecesse os aspectos mencionados na citação acima. Para tratar sobre o indivíduo na perspectiva utilitarista, propõe-se a apresentação da biografa de Jeremy Bentham e John Stuart Mill. Em seguida, sugere-se a leitura de um excerto da obra de Bentham, Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. Eis o texto: I. [...] Prazeres e dores são instrumentos com os quais o legislador tem de trabalhar: é necessário, assim, que ele compreenda sua força, o que significa, novamente, conhecer seu valor. II. Para um indivíduo considerando a si mesmo, o valor do prazer ou da dor considerados em si mesmos será maior ou menor, de acordo com as seguintes quatro circunstâncias: 1. Sua intensidade. 2. Sua duração. 3. Sua certeza ou incerteza. 4. Sua proximidade ou distanciamento. III. Essas são as circunstâncias que devem ser levadas em conta quando se estima prazer ou dor considerados em si mesmos separadamente. Mas quando o valor de um prazer ou uma dor é considerado com o propósito de estimar a tendência de qualquer ato pelo qual é produzido, existem duas outras circunstâncias que devem ser observadas. São elas: 5. Sua fecundidade, ou a possibilidade de ser seguida por sensações do mesmo tipo, ou seja, prazeres, no caso de um prazer, dores, no caso de uma dor. 6. Sua pureza, ou a possibilidade de não ser seguida por sensações do tipo oposto, ou seja, dores no caso de um prazer, prazeres, no caso de uma dor (BENTHAM apud SÃO PAULO, 2014d, p. 47). 22 Etapa na qual se propõe a leitura dos excertos filosóficos de Locke. 128 Assim explica o Caderno do Professor o procedimento em relação ao texto: ―[...] trataremos do indivíduo concebido pelo utilitarismo, que se diferencia do indivíduo pensado por Locke. Para isso, vamos ler um excerto de Bentham que pode ser acompanhado pelos alunos [...]‖; outra orientação é: ―[...] discuta com a classe o texto de Bentham, enfatizando que, para o utilitarismo, prazer e utilidade são compatíveis, sendo que a utilidade depende da relação social‖; e, por último, faz a solicitação de encontrarem as palavras desconhecidas e pesquisarem os seus significados (SÃO PAULO, 2014d, p. 47, grifos do autor). Ora, o excerto não trata, especificamente, sobre o indivíduo utilitarista, mas, sim, das circunstâncias que se levam em conta para determinar o valor do prazer e da dor. Sendo assim, o texto, mais uma vez, está em descompasso com a proposta da atividade. Dessa forma, não dá condições para que o estudante, em sua leitura, compreenda o conceito do indivíduo utilitarista, muito menos a diferença entre este último e a concepção de indivíduo segundo Locke. Cumpre salientar que a única orientação sobre a leitura se limita à procura dos significados das palavras desconhecidas. O Caderno do Professor apresenta uma explicação sobre o indivíduo segundo o utilitarismo, mencionando algumas questões, como, entre outras: a crítica de Bentham sobre a teoria de Locke em relação à sua teoria empirista e o direito natural; a concepção do indivíduo segundo o utilitarismo. No entanto, não há referência direta alguma sobre o conteúdo do excerto. Isso seria importante, pois o professor teria mais condições para compreender a proposta no desenvolvimento da aula. Ao que parece, reconhece-se que o texto não é adequado para chegar a estas questões, por isso, a necessidade de colocar esses comentários explicativos. Há uma proposta de atividade que envolve o excerto de Bentham. Solicita-se ao estudante escolher um desejo considerado útil e, a partir deste, responder alguns itens, dentre os que foram retirados do próprio excerto, a saber: a intensidade do desejo; a duração do desejo; a certeza do desejo; a proximidade do desejo; a fecundidade do desejo; a pureza do desejo; e, por fim, as pessoas que serão beneficiadas e não beneficiadas, bem como seus motivos. Em seguida, respondem-se estes mesmos itens, porém, com base em um desejo considerado inútil. De acordo com o Caderno do Professor, recomenda-se ―[...] sempre explorar, ao máximo, a especificidade do desejo e sua relação com a sociedade. Quanto mais específico e justificado, melhor será o desenvolvimento desse exercício‖ (SÃO PAULO, 2014d, p. 49). O Caderno do Professor não explicita qual é o objetivo da atividade. Contudo, ela pode ser um interessante caminho para envolver o contexto do estudante com o conteúdo 129 do excerto, mas nota-se que o seu sucesso dependerá, antes, de um bom direcionamento e esclarecimento do texto. Caso contrário, o estudante responderá os itens sem compreender sua relação com o pensamento de Jeremy Bentham. Por isso é fundamental que o excerto filosófico esteja consoante a proposta da leitura, bem como a suas atividades. Como já demonstrado, os objetivos sugeridos nesta Situação de Aprendizagem não estão claros, sobretudo no que diz respeito ao filósofo John Stuart Mill. Ao contrário do que ocorre com Jeremy Bentham, não é anunciada uma proposta de leitura do filósofo John Stuart Mill na introdução deste plano de aula. O último excerto proposto refere-se à obra Sobre a liberdade, de John Stuart Mill. O texto é o seguinte: Sendo essas razões que tornam imperativo que os seres humanos devam ser livres para formar opiniões, e para expressá-las sem reservas e sendo essas as danosas consequências para a natureza moral do homem, a menos que esta liberdade seja concedida, ou restaurada a despeito da proibição, vamos agora examinar se as mesmas razões não requerem que os homens devam ser livres para agir de acordo com suas opiniões – para mantê-las em suas vidas, sem impedimentos físicos ou morais, causados pelos seus companheiros, desde que o risco seja por sua própria conta. Essa última cláusula é evidentemente indispensável. Ninguém acha que as ações devam ser tão livres quanto as opiniões. Ao contrário, mesmo as opiniões perdem suas imunidades quando as condições em que são expressas são tais que exprimi-las leva a uma instigação de algum ato maléfico. [...] Atos que de uma maneira qualquer e sem causa justificável causam danos a outras pessoas podem ser – e nos casos mais importantes é imperativo que o sejam – controlados por sentimentos que lhes são desfavoráveis e, quando tal for necessário, pela interferência ativa da humanidade. A liberdade do indivíduo deve ser limitada dessa maneira; ele não deve tornar a si mesmo um problema para as outras pessoas (MILL, 2010 apud SÃO PAULO, 2014d, p. 50). O Caderno do Professor recomenda ao professor que, ―da mesma forma como foi feito com o texto de Bentham, reflita com os alunos sobre suas ideias [...]‖ (SÃO PAULO, 2014d, p. 50), como: a questão da liberdade; o fato de Mill ter sido discípulo de Bentham; sua discordância sobre algumas ideias de seu mestre. Em relação ao excerto, o Caderno do Professor explica que esse trecho apresenta aspectos interessantes para se pensar o utilitarismo de Mill. [...] o filósofo traz uma importante reflexão sobre o indivíduo e a sua liberdade de opinião. Após a leitura do texto, convide-os a pesquisar o artigo 220 da Constituição brasileira. Essas duas fontes deverão subsidiar a redação de um texto com o tema: liberdade de opinião e responsabilidade (SÃO PAULO, 2014d, p. 50). 130 O excerto de Mill dá poucas condições para refletir sobre o utilitarismo. Aliás, não seria mais adequado selecionar um excerto da obra Utilitarismo, de John Stuart Mill, ao invés de sua obra Sobre liberdade? Se a proposta sugere que o excerto colabore na reflexão sobre o utilitarismo de Mill, o primeiro proporcionaria excertos mais pertinentes do que o segundo sugerido. Como atividade, é proposto pelo Caderno do Professor tratar sobre o indivíduo e sua liberdade de opinião, com base no texto de Mill. Para tanto, também se sugere uma pesquisa sobre o artigo 220 da Constituição brasileira, a fim de contribuir para a elaboração de uma redação com o seguinte tema: liberdade de opinião e responsabilidade. Contudo, não há qualquer referência que evidencie de que modo a liberdade de opinião se articula com o utilitarismo. Sem esta compreensão, a proposta fica fragmentada. Aliás, como o excerto não foi anunciado na introdução da Situação de Aprendizagem, parece que ele foi agregado com o objetivo formal de apresentar algum conteúdo do filósofo Mill. Os textos filosóficos sugeridos não estão consoantes a proposta da Situação de Aprendizagem. A impressão que se tem é a de que houve uma escolha aleatória de autores e excertos ou tais escolhas se basearam na preferência do autor do material. De todo modo, comprometeram-se os objetivos da proposta dos planos de aula. 6) Reducionismo interpretativo Selecionam-se alguns textos filosóficos, limitando-se a poucos autores, de modo que se reduz a compreensão do tema proposto na Situação de Aprendizagem. Nem ao menos há a preocupação em esclarecer as possibilidades de compreensão a partir de outros enfoques do tema. 3ª série, volume 1 - Situação de Aprendizagem 3 A Situação de Aprendizagem 3, ―A condição animal como ponto inicial no processo de compreensão sobre o homem‖, tem como objetivo [...] dar início à reflexão sobre os seres humanos, destacando a importância de admitir sua condição de animal dotado de um corpo que o aproxima e o distingue dos demais seres do planeta. Admitir essa aproximação e essa distinção requer esforço típico da reflexão filosófica, indubitavelmente necessária para formação ética e para a construção da convivência humana solidária (SÃO PAULO, 2014g, p. 34). 131 As perguntas centrais desta Situação de Aprendizagem, que têm a finalidade de sensibilizar os educandos sobre o tema, são: ―Quem somos nós, seres humanos?”. E ainda: “Qual é a nossa condição de transformar o mundo em que vivemos em um lugar melhor?‖. A primeira evidência que será destacada e refletida será o fato de que temos corpo, e ―[...] esse corpo nos remete, antes de tudo, ao lugar dos animais‖. Sendo assim, propõem-se outras questões, como: ―Que espécie de animal nós somos? O que nos caracteriza? O que nos marca como animais da espécie humana?‖. Com a ajuda do professor e ―[...] de textos filosóficos, os alunos serão motivados a refletir a (sic) importância de se conceber aproximações e distinções entre o homem e os demais seres da natureza‖ (SÃO PAULO, 2014g, p. 34). Nesse momento não se informa quais textos filosóficos serão trabalhados, nem ao menos seus autores. Como já mencionamos, é importante esse esclarecimento, porque auxilia o professor a compreender as razões da proposta, bem como melhor planejar as fases do plano de aula. Na primeira etapa, o Caderno do Professor sugere que os educandos, em grupo, selecionem imagens e tentem explicar, a partir delas, o que é o ser humano. Como suporte, propõem-se algumas perguntas. Uma delas é: ―essas imagens podem ser associadas ao ser humano em qualquer tempo e lugar?‖. Também se recomenda que os educandos registrem os motivos que levaram à escolha da imagem e o que se pode observar. Logo após, propõese que o professor elabore uma síntese a partir das respostas dos alunos, destacando o fato de que temos um corpo e há diferenças e aproximações entre seres humanos e os demais animais. A partir da síntese, deve-se propor uma questão que problematize a condição animal do homem e sua convivência com outros seres humanos (SÃO PAULO, 2014h, p. 35). Enfim, de maneira geral, a sensibilização objetiva conscientizar o educando de que há aproximações e diferenças entre o ser humano e os demais seres da natureza. Após esta primeira etapa, é proposta a leitura, com reflexão, de dois textos filosóficos. Os excertos são de duas obras de autores distintos. Este é do filósofo René Descartes, de sua obra Meditações: E, primeiro, não existe nenhuma dúvida que tudo o que a natureza me ensina contém algo de verdadeiro […]. Ora, não há nada que essa natureza me ensine mais claramente nem mais sensivelmente que o fato de eu ter um corpo que fica indisposto quando sinto dor, que tem necessidade de comer ou de beber quando tenho os sentimentos de fome ou de sede etc. E, portanto, eu não posso absolutamente duvidar que 132 tenha alguma verdade nisso. A natureza me ensina também por meio desses sentimentos de dor, fome, sede etc. que eu não estou apenas alojado em meu corpo como um comandante em seu navio, mas que, além disso, lhe estou muito intimamente conjugado e tão entrelaçado e misturado que componho um único todo com ele. [...] Além disso, a natureza me ensina que vários outros corpos existem em volta do meu, alguns dos quais devo seguir e de outros fugir (DESCARTES, 1835, p. 167 apud SÃO PAULO, 2014h, p. 39) O outro trecho é retirado da obra do filósofo Blaise Pascal, Pensamentos: A primeira coisa que se oferece ao homem ao contemplar-se a si próprio é seu corpo, isto é, certa parcela de matéria que lhe é peculiar. Mas, para compreender o que ela representa e fixá-la dentro de seus justos limites, precisa compará-la a tudo o que se encontra acima ou abaixo dela. Não se atenha, pois, a olhar para os objetos que o cercam, simplesmente, mas contemple a natureza inteira na sua alta e plena majestade. Considere esta brilhante luz colocada acima dele como uma lâmpada eterna para iluminar o universo, e que a Terra lhe apareça como um ponto na orbita ampla deste astro e maravilhe-se de ver que essa amplitude não passa de um ponto insignificante na rota dos outros astros que se espalham pelo firmamento. E se nossa vista aí se detém, que nossa imaginação não pare; mais rapidamente se cansará ela de conceber, que a natureza de revelar. Todo esse mundo visível é apenas um traço perceptível na amplidão da natureza, que nem sequer nos é dado a conhecer de um modo vago. Por mais que ampliemos as nossas concepções e as projetemos além de espaços imagináveis, concebemos tão somente átomos em comparação com a realidade das coisas. [...] Afinal que é o homem dentro da natureza? Nada, em relação ao infinito; tudo, em relação ao nada; um ponto intermediário entre o tudo e o nada. Infinitamente incapaz de compreender os extremos, tanto o fim das coisas quanto o seu princípio permanecem ocultos num segredo impenetrável, e é-lhe igualmente impossível ver o nada de onde saiu e o infinito que o envolve (PASCAL, 2005 apud SÃO PAULO, 2014g, p. 37). O Caderno do Professor não esclarece o porquê da escolha dos dois autores para o tema apresentado. Discuti-lo unicamente com essas duas perspectivas não poderia empobrecer a compreensão do tema abordado – a condição humana? Ademais, não há qualquer advertência quanto a isso. Portanto, não parece ser uma preocupação dos autores desta Situação de Aprendizagem. Se a proposta do tema fosse refletir sobre: ―a condição animal como ponto inicial no processo de compreensão sobre o homem, a partir das perspectivas de Descartes e Pascal‖, não haveria a necessidade de ampliar esta temática com enfoques de outros autores, visto que o tema delimita o seu campo de análise. No entanto, não é este o seu objetivo. Na verdade, sugere-se o tema acima citado, sem que se faça referência a algum 133 filósofo em particular. Um leitor menos avisado poderia até imaginar que essas duas perspectivas resumem o que se poderia pensar a respeito desse tema. Dessa forma, há a necessidade de ampliar esta reflexão, com pontos de vista de outros, pois, do contrário, corre-se o risco de um reducionismo. Antes de apresentar os excertos, o Caderno do Professor esclarece dois objetivos dessa leitura: ―a continuidade do contato com fragmentos de textos filosóficos, com indicação para que leiam o texto completo, caso assim queiram, e a reflexão sobre a importância de nos considerarmos animais em meio aos demais seres da natureza‖ (SÃO PAULO, 2014g, p. 36). Estes objetivos parecem mostrar que se reconhece a insuficiência dos excertos, por isso, o professor precisa complementar a discussão com sua explicação ou com o emprego de outros textos da mesma obra e autor. O Caderno do Professor, por meio de comentários explicativos, faz algumas reflexões sobre a questão de que no século XVII e, mais intensamente no século XIX, o ser humano era considerado superior em relação à natureza. Por isso, essa consciência pode ter impulsionado o progresso da técnica e da ciência, porém também nos levou a consequências desastrosas na natureza. Por isso, uma das principais ideias que esta temática procura considerar é o fato de ―[...] não nos vermos como seres distintos e superiores, mas distintos e ocupantes de um mesmo contexto material e natural [...] capazes de prever consequências, assumir equívocos e de rever metas contemplando a preservação da própria vida e a de outros seres‖. Assim, de acordo com o Caderno do Professor, ―Descartes e Pascal nos oferecem dois textos interessantes para inspirar essa consciência sobre nossa inserção em uma natureza material assim como a todos os seres que nos cercam. Ambos foram escritos no século XVII‖ (SÃO PAULO, 2014h, p. 37). Como orientação para a compreensão dos textos, o Caderno do Professor apresenta alguns destaques: A afirmação enfática de que somos um corpo; a imagem de que a natureza me ensina que convivo com outros corpos; a ideia de que fujo de alguns e de outros me aproximo; a ideia de que não vemos, não compreendemos nossos extremos: nem fim, nem princípio; a ideia de que somos nada em relação ao infinito, porém somos tudo em relação ao nada (SÃO PAULO, 2014h, p. 38). Explica-se também que [...] se um texto (Descartes) traz a visão de conflito do homem consigo mesmo, o outro (Pascal) traz a ideia de nossa limitação diante da natureza. Duas condições básicas da existência humana que precisam ser 134 corajosa e filosoficamente enfrentadas para a compreensão do ser humano (SÃO PAULO, 2014h, p. 38). No que diz respeito ao texto de Descartes, o excerto traz esta visão, porém, de maneira muito sutil, por isso, haveria a necessidade de o professor acrescentar outros trechos que contribuam com a sua compreensão. A proposta da atividade tem como objetivo que o estudante compare ambos os excertos por meio das seguintes questões: ―1) Quais argumentos se aproximam, isto é, nos fazem pensar ideias semelhantes ou iguais?‖; ―2) Quais são os argumentos diferentes? O que nos permite dizer que existem diferenças entre os dois textos?‖ (SÃO PAULO, 2014h, p. 37). Para o desenvolvimento desta atividade, é importante que o professor esclareça aos estudantes o que são argumentos e os auxilie na sua identificação. Ele poderia propor outras questões que auxiliassem na compreensão do texto, inclusive dos possíveis outros excertos retirados da versão da obra completa desses autores. Os dois textos propostos contribuem para a reflexão sobre a condição animal como ponto inicial no processo de compreensão sobre o homem, porém, é importante que se acrescentem outros excertos, a fim de melhor apresentar o raciocínio dos autores. Outro problema é a falta de esclarecimento sobre os motivos que levaram a escolher textos de Descartes e Pascal. Ademais, basear a discussão apenas neles pode reduzir a compreensão da concepção de homem. Adequada articulação da proposta com o texto filosófico O Caderno da 3ª série é o que apresentou Situações de Aprendizagem que melhor se articularam com o texto filosófico, de maneira que, em alguns casos, há coerência na sua seleção em relação à proposta e suas orientações. Vejamos como isso se dá a partir da análise da Situação de Aprendizagem a seguir. 3ª série, volume 1 - Situação de Aprendizagem 2 135 A Situação de Aprendizagem 2, ―Filosofia como atividade reflexiva e sua importância para o exercício da cidadania‖, apresenta uma introdução esclarecedora das etapas e do desenvolvimento das aulas. Primeiro, explica que o objetivo é ―destacar e problematizar uma das formas mais comuns de preconceito contra a Filosofia, qual seja, aquela que a considera como uma atividade intelectual muito difícil, por isso, acessível apenas a uma minoria de inteligência privilegiada‖. Para tanto, como suporte teórico, o pensamento de Gramsci será referência. A proposta é mostrar que ―[...] todos são potencialmente filósofos‖ e que tal potencialidade é fundamental na formação do cidadão consciente e crítico (SÃO PAULO, 2014g, p. 22). Com passagens da obra Cadernos do cárcere, de Gramsci, pretende-se explicitar que a filosofia está presente ―[...] nas diversas instâncias do senso comum (na linguagem, no bom senso, na religião etc.)‖, mas, apesar dessa proximidade, há uma clara distinção, que, contudo, não visa estabelecer uma barreira; busca, ―[...] ao contrário, apontar caminhos para que o ‗filosofar‘ espontâneo, comum a todos os homens, avance cada vez mais na direção de um filosofar mais parecido com o dos filósofos especialistas‖ (SÃO PAULO, 2014g, p. 22). Em seguida é retomado o conceito de filosofia que, por sua vez, já foi trabalhado no Caderno da 1ª série, volume 1. A diferença está na proposta de ―[...] basear-se na etimologia da palavra (filosofia como amor pelo saber)‖. Para tanto, propõe-se a leitura de um texto elaborado pelos autores do Caderno, no qual há alguns excertos da obra O banquete, de Platão (SÃO PAULO, 2014g, p. 22). É interessante observar que somente na 3ª série do nível médio se aborda a questão da etimologia da palavra ―filosofia‖. Sendo um aspecto elementar, já deveria ter sido tratado no primeiro ano do ensino médio. Ao final apresenta-se a atividade filosófica ―[...] como ‗reflexão radical, rigorosa e de conjunto sobre os problemas da realidade‘, segundo a concepção de Demerval Saviani‖ e, conclui-se, retomando Gramsci, ser ela valiosa para ―[...] reforçar a importância política do contato com a Filosofia para a formação da cidadania‖ (SÃO PAULO, 2014g, p. 22). Esta introdução deixa claros o percurso e os objetivos propostos para a Situação de Aprendizagem, bem como quais os conteúdos e seus aspectos abordados. Isso é fundamental para que o professor compreenda a proposta da aula e, assim, tenha condições suficientes de bem planejá-las. Esta Situação de Aprendizagem emprega mais textos elaborados pelos autores do Caderno. Contudo, neles estão inseridos pequenos trechos de textos filosóficos. Mesmo 136 assim, não serão analisados porque o objeto de estudo desta pesquisa refere-se ao texto do filósofo. De modo geral, o desenvolvimento da aula inicia-se com uma etapa de sensibilização, que pretende fazer com que o estudante perceba o fato de que a filosofia está presente no seu dia a dia. Colaborando com esta etapa, são propostas leituras de textos elaborados pelos autores do Caderno, letras de música e questões. É importante destacar que o Caderno do Professor sugere uma estratégia de aprofundamento que tem por objetivo fazer com que o estudante se familiarize com uma técnica de estudo que pode colaborar com a leitura de textos filosóficos: A título de complementação e aprofundamento do estudo, você pode solicitar que, em casa, os alunos releiam o texto ―Todos os homens são filósofos‖ e respondam a uma ficha de leitura que poderá ser proposta por você. Trata-se, em suma, de um modelo simplificado de fichamento, cujo objetivo é familiarizar o aluno com esta técnica de estudo, de modo que ela lhe seja útil no estudo de textos filosóficos e também no de outras disciplinas. Sugerimos as seguintes questões: qual é a tese (ideia central) do autor? Que argumentos ele utiliza para sustentar sua tese? A que conclusão ele chega? Você concorda com a tese do autor? Justifique (SÃO PAULO, 2014g, p. 26). Tal proposta é pertinente para o ensino de filosofia, visto que uma das competências exigidas para seu estudo é a capacidade do estudante de ler e compreender textos filosóficos. Essa sugestão pode estimular o professor a incentivar seus educandos a desenvolver uma técnica de leitura e análise de textos filosóficos. Sem oferecer caminhos para tal, favorecer-se-ia ao professor – sobretudo, aquele que tem mais dificuldade – ignorar as leituras. Daí a importância de o Caderno do Professor, a partir dos textos filosóficos propostos, sugerir estratégias para a sua leitura e análise. Por isso, tal método já poderia ter sido proposto nos Cadernos da 1ª série, ou melhor, na maioria das Situações de Aprendizagem das três séries. Dessa forma, o educando acaba adquirindo essa rotina de leitura e, assim, pela prática, melhor se apropria dessa competência. Um dos excertos filosóficos propostos é retirado da obra de Gramsci, Cadernos do cárcere, sugerido como atividade extraclasse (lição de casa). Ela ―[...] visa ao aprofundamento dessa discussão 23 ‖. Para tanto, solicita-se que o docente oriente o estudante a ―ler e interpretar‖, sintetizando ―[...] o que foi estudado, e a explicar o sentido das palavras do autor‖. Eis o excerto: 23 A discussão refere-se à distinção entre o ―filósofo‖ que todos somos e o filósofo especialista, bem como à capacidade de avançarmos para o filosofar com mais rigor. 137 É preciso destruir o preconceito, muito difundido, de que a filosofia é algo muito difícil pelo fato de ser a atividade intelectual própria de uma determinada categoria de cientistas especializados ou de filósofos profissionais e sistemáticos. É preciso, portanto, demonstrar, preliminarmente, que todos os homens são ―filósofos‖, definindo os limites e as características dessa ―filosofia espontânea‖ peculiar a ―todo mundo‖, isto é, da filosofia que está contida: 1) na própria linguagem, que é um conjunto de noções e de conceitos determinados e não, simplesmente, de palavras gramaticalmente vazias de conteúdo; 2) no senso comum e no bom senso; 3) na religião popular e, consequentemente, em todo o sistema de crenças, superstições, opiniões modos de ser e de agir que se manifestam naquilo que se conhece geralmente por ―folclore‖ (GRAMSCI, 2001, p. 93 apud SÃO PAULO, 2014g p. 28). O texto filosófico proposto é adequado, visto que está de acordo com o desenvolvimento do conteúdo e seus objetivos anunciados na introdução. Contudo, como sugestão, poderia se propor uma questão ou questões que colaborassem no direcionamento da atividade, visto que a comanda sugerida no Caderno do Aluno está vaga, a saber: ―leia o texto a seguir e, com base no que estudou, explique o sentido das palavras do autor‖ (SÃO PAULO, 2014h, p. 30). Aliás, em uma atividade extraclasse, o professor não estará por perto para acompanhar o seu desenvolvimento. Sendo assim, é imprescindível que, nas orientações da atividade, haja subsídios suficientes, que melhor direcionem o que é requerido. Na sequência, as etapas da Situação de Aprendizagem visam ao desenvolvimento da questão sobre o conceito de filosofia, dos critérios para a atividade filosófica e, por fim, da percepção de sua importância à cidadania. Da mesma forma, são propostas atividades que envolvem textos e questões. No que diz respeito ao texto filosófico, sua leitura é sugerida em uma atividade, a saber: Para finalizar, propomos que você retome a questão da utilidade versus inutilidade da Filosofia por meio de dois excertos a seguir. Sugerimos que peça aos alunos que os interpretem à luz das seguintes questões, propostas no Caderno do Aluno, na seção Leitura e análise de texto. 1. Para que serve, afinal, a Filosofia? 2. É importante estudar a Filosofia na escola? (SÃO PAULO, 2014g, p. 32). Dos dois excertos propostos, um refere-se a um texto elaborado pelos autores do Caderno e o outro é da obra Cadernos do cárcere, de Gramsci. Eis o excerto deste último: [...] é preferível ―pensar‖ sem disto ter consciência crítica, de uma maneira desagregada e ocasional, isto é, ―particular‖ de uma concepção do mundo ―imposta‖ mecanicamente pelo ambiente exterior, ou seja, por um dos vários grupos sociais nos quais todos estão automaticamente envolvidos desde sua entrada no mundo consciente [...] ou é preferível elaborar a própria concepção do mundo de uma maneira crítica e 138 consciente e, portanto, em ligação com este trabalho próprio do cérebro, escolher a própria esfera de atividade, participar ativamente na produção da história do mundo, ser o guia de si mesmo e não aceitar do exterior, passiva e servilmente, a marca da própria personalidade? (GRAMSCI, 2001, p. 93 apud SÃO PAULO, 2014g, p. 33). A proposta de atividade e os textos sugeridos, inclusive o texto filosófico, estão adequados aos objetivos propostos para a Situação de Aprendizagem, pois abordam a questão da importância da filosofia para a cidadania, outro objetivo que foi anunciado. Ambos os excertos – o filosófico e o não filosófico – colaboram para a reflexão sobre as questões sugeridas, pois ajudam a pensar sobre a questão da utilidade e a importância da filosofia na capacidade de refletir sem uma imposição de pensamento exterior. É claro que, para o sucesso da atividade, não basta apenas que os textos selecionados e a proposta do plano de aula estejam adequados; também é fundamental que o professor apoie o educando, contextualizando e esclarecendo pontos centrais. Portanto, as etapas e os objetivos desta Situação de Aprendizagem, mesmo não explorando um pouco mais as atividades em relação aos textos filosóficos, garantem a coerência entre a proposta do plano de aula, a seleção dos textos filosóficos e as atividades. Conclusão Salvo algumas exceções, como a da última Situação de Aprendizagem apresentada, em geral, os textos filosóficos contidos nos Cadernos não se articulam coerentemente com os objetivos propostos. Como esperamos ter demonstrado, os principais problemas detectados no emprego desses textos podem ser resumidos nas seis categorias acima analisadas. Acrescente-se a isso a falta de informação sobre como o texto filosófico se entrelaça com o desenvolvimento da aula e com seus conteúdos propostos na introdução. Na maioria dos casos, não se esclarece a finalidade do excerto quanto à proposta da aula, nem em que aspecto será abordado. Da mesma maneira, dentro do desenvolvimento das etapas do plano de aula, poucas orientações são direcionadas. No que diz respeito às estratégias de leitura, as orientações resumem-se em solicitar que o estudante identifique as palavras desconhecidas e encontre seus significados e que se façam pesquisas sobre o autor do texto. Em algumas propostas é recomendada a forma como deve ser feita a leitura, por exemplo: individual ou em grupo. Também em outras se sugere uma estratégia de leitura e análise, porém, pouco esclarecida ou inadequada. 139 Os comentários sobre o texto filosófico, que deveriam ter a finalidade de orientar o professor sobre o excerto, apresentam, em sua maioria, informações que pouco o explicam. Não se comenta sobre as ideias, os argumentos ou as teses desenvolvidas, muito menos a sua finalidade em relação à proposta da Situação de Aprendizagem. Quando há, este comentário está desarticulado com o raciocínio do pensamento do autor do excerto. A seleção dos textos é insuficiente para que o estudante, apenas com sua leitura, possa compreender aquilo que é proposto na Situação de Aprendizagem. Nesse sentido, o educando fica dependente da explicação do professor, o que, no limite, pode comprometer o desenvolvimento das competências relacionadas à leitura, sobretudo, aquela referente ao texto filosófico, uma das competências do Currículo, no que tange ao ensino de filosofia. Se a competência e a habilidade a serem desenvolvidas no ensino de filosofia giram em torno da leitura e da análise de texto, inclusive do texto filosófico, é necessário que os excertos sejam bem selecionados. Outras atividades referem-se às sugestões de perguntas. A maioria das questões não exige, necessariamente, que o educando retome a leitura para responder. Elas têm o propósito de fazer com que ele reflita sobre alguma ideia tratada no texto, com base na contemporaneidade; é importante que o uso do texto filosófico permita que o estudante se aproprie de conteúdos, conceitos, categorias, teorias que o capacitem a compreender melhor, de forma mais rigorosa e crítica, os temas e os problemas contemporâneos, superando, assim, a visão do senso comum que, em geral, possuem deles. Dessa forma, sua reflexão sobre seu próprio contexto terá mais qualidade. Ademais, é recomendação do Currículo que, para responder a alguma questão, o educando deve recorrer, preferencialmente, ao texto. Portanto, esse descompasso entre os objetivos da Situação de Aprendizagem, os comentários, as atividades e os textos filosóficos faz com que estes últimos sejam desvinculados do desenvolvimento da aula, fragmentados. Nessas condições, como é possível avaliar a capacidade do estudante de identificar conceitos e a linha argumentativa do filósofo? Mesmo que o professor tenha a liberdade de selecionar outros textos filosóficos para tentar adequar à proposta da aula, espera-se de um bom material didático coerência entre os textos filosóficos e os objetivos propostos para a unidade em que são inseridos. 140 CONSIDERAÇÕES FINAIS Esta pesquisa teve como propósito analisar de que maneira os textos filosóficos são abordados no Currículo de filosofia do estado de São Paulo e de que modo são incorporados nos planos de aula dos materiais didáticos adotados pela SEESP. Para tanto, primeiramente, percorremos a história do ensino de filosofia no Brasil e, em seguida, as principais legislações educacionais que regulamentam o ensino dessa disciplina. A história do ensino de filosofia no Brasil vem mostrar, de modo geral, que o recurso literário mais usado foi o compêndio, exceto, talvez, no período jesuítico, quando se empregavam, no curso de filosofia, obras filosóficas, sobretudo de Aristóteles – A Lógica, De Coelo, Generatione, Metereoros, Generatione, De Anima, Metafísica e Ética. Entretanto, era censurado tudo aquilo que não guardasse a doutrina católica. Cumpre salientar que, a despeito de o curso de humanidades e retórica não ser um ensino específico de filosofia, também se empregavam textos filosóficos, tais como o de Cícero: De oratore, Pro Lege Manilia, pro Archia, pro Marcello; e de Aristóteles: Retórica e Poética. Seu propósito era desenvolver melhor a linguagem, no sentido de falar bem e de maneira clara e elegante. Os objetivos referentes ao curso de filosofia correspondiam à formação de sujeitos letrados, eruditos e, sobretudo, católicos. Na prática, Saviani (2011, p. 56) nos diz que se limitavam à formação dos padres catequistas. Sendo assim, a finalidade dos textos filosóficos se sujeitava aos interesses religiosos. Os compêndios – também chamados de livros de texto, livros-texto, compêndios escolares, livros escolares, livros de classe, manuais ou livros didáticos – eram, na maioria, trazidos do exterior, sobretudo da França, porém, havia aqueles elaborados pelos próprios professores, dos quais, grande parte era constituída de padres. Os livros caracterizavam-se pela forma enciclopédica e, geralmente, tinham forte influência religiosa ou cívica. Apresentavam uma perspectiva temática ou histórica, resumindo as principais ideias dos clássicos filósofos da tradição. Em alguns casos, havia excertos filosóficos que complementavam os compêndios, e um dos seus objetivos era colocar em contato o estudante com a obra do filósofo, de maneira que o motivasse a aprofundar seus estudos. 141 Em alguns livros didáticos contemporâneos de filosofia há atividades específicas para o próprio excerto filosófico. Moraes Filho (1959, p. 26) afirma que a estrutura enciclopédica, as influências do dogmatismo religioso, bem como da instrução moral e cívica nos compêndios de filosofia, mais a falta de tempo e o conformismo dos estudantes em permanecer nos compêndios, pela desmotivação de estudar textos mais complexos, não colaboravam com o desenvolvimento crítico do estudante. Ademais, desloca-se a especificidade da filosofia. Este quadro se repete na atualidade de forma ainda mais grave, acrescentando-se, por exemplo, o fato de que alguns materiais didáticos propõem textos filosóficos, porém de maneira inadequada, colaborando pouco – ou nada – para o contato do estudante com este tipo de leitura e, muito menos, para o seu desenvolvimento crítico. Além disso, é fundamental compreender como a legislação educacional, no que tange ao ensino de filosofia, trata o assunto. Os PCN+ e as OCEM tratam o texto filosófico como o texto primeiro, ou seja, o texto do próprio filósofo; os PCNEM lidam da mesma forma, porém não de maneira explícita. Espera-se que o educando leia textos filosóficos de modo significativo, ou seja, de maneira que lhe façam sentido, que lhe sejam compreensíveis e que ele possa problematizá-los. Contudo, não se deve trabalhar exclusivamente com eles, também é preciso empregar textos de outras áreas. A capacidade de compreender e problematizar um texto filosófico corresponde à principal competência associada ao ensino de filosofia: competência discursivo-filosófica. Para desenvolvê-la, uma das estratégias recomendadas é a leitura analítica. De acordo com os PCN+ e as OCEM, o quadro referencial da tradição filosófica é a especificidade do ensino de filosofia que dá suporte à formação crítica do educando. Não se deve trabalhar os textos filosóficos de maneira acadêmica, mas também não se pode banalizá-los. Tendo em vista os grandes desafios da educação no ensino médio, principalmente aqueles que se referem às competências relacionadas à leitura e à problematização, é importante planejar uma estratégia que não banalize os textos filosóficos e não os torne impenetráveis aos educandos. Por isso, é indispensável que haja um método de leitura e análise, pois só assim é possível fazer com que o educando os compreenda de maneira clara e coerente. De acordo com o Currículo de filosofia do estado de São Paulo, o texto filosófico deve ser empregado de forma que o educando possa estudar os problemas debatidos pelos 142 filósofos à luz de seu contexto, a fim de que faça sentido para o estudante. As competências a serem desenvolvidas giram em torno da leitura. Sendo assim, ele deve ter a capacidade de ler, interpretar, analisar, argumentar, posicionar e problematizar os textos filosóficos. Para tanto, é fundamental que os excertos escolhidos, as propostas e os objetivos sugeridos tenham uma articulação coerente e clara. Os Cadernos do Professor e do Aluno do Currículo de filosofia propõem em seus planos de aula o emprego de excertos retirados das obras de filósofos. Eles não estão em todas as Situações de Aprendizagem, porém estão na maioria. Contudo, as análises demonstraram que grande parte das Situações de Aprendizagem emprega mal o texto filosófico, apresentando vários problemas: desarticulação entre os objetivos da proposta de aula e os textos; caráter fragmentário e descontextualizado das leituras; descompasso entre o número de textos filosóficos, o seu grau de complexidade e as condições dos educandos; afastamento ou distorção do sentido original da leitura; e reducionismo interpretativo. Na maioria dos casos, os textos filosóficos estão pouco articulados com os objetivos e com as atividades sugeridas pelos planos de aula, de modo que parecem estar deslocados do desenvolvimento da sequência didática. Um dos problemas é haver pouca orientação e pouco esclarecimento sobre sua finalidade no desenvolvimento da aula. Quando isso ocorre, o excerto escolhido ou é inadequado, ou insuficiente em relação à proposta. A impressão é que a inclusão dos textos filosóficos teria a única finalidade formal de empregá-los no contexto da Situação de Aprendizagem. Para que o professor melhor os aproveite nas Situações de Aprendizagem e, assim, dê condições para que o estudante leia, é preciso observar alguns pontos fundamentais. Os excertos precisam ser bem articulados com os objetivos do plano de aula. Quando se sugere uma leitura – inclusive de texto filosófico –, deve-se levar em consideração de que modo ela pode contribuir para os objetivos do plano de aula. Isso pode ser observado, analisando o modo como o texto trata o tema sugerido e como contribui para esses objetivos. Para tanto, o professor precisa avaliar se o trecho proposto apresenta condições para que o educando leia, compreenda e reflita. Caso o texto não cumpra essa função, é necessário contextualizá-lo no conjunto do pensamento do autor, bem como acrescentar outros excertos que complementem o raciocínio do filósofo. Isso é imprescindível, porque uma das habilidades a serem desenvolvidas refere-se à leitura de textos filosóficos. 143 Os comentários sobre esses textos colaboram muito com o professor. É importante que destaquem informações sobre o autor, seu contexto e, principalmente, expliquem de que o excerto sugerido está tratando e quais os motivos de propô-lo, no que se refere ao plano de aula. Esse cuidado favorece a compreensão da proposta da Situação de Aprendizagem em relação aos textos filosóficos. As orientações sobre como empregá-los assim se apresentaram: elaborar um vocabulário das palavras desconhecidas; pesquisar sobre a biografia dos autores dos textos; e propor leituras individuais ou em grupos. Em alguns casos, houve algumas tentativas de sugerir estratégias para uma leitura analítica, porém, pouco esclarecidas e mencionadas. A propósito, no Caderno da 3ª série, apresentou-se um modo de elaborar um fichamento de leitura e análise simples. A proposta é interessante, pois, de alguma maneira, introduz o educando a esse tipo de análise. Contudo, no que tange às outras Situações de Aprendizagem, pouco foi tratado. Se se espera que o educando desenvolva a habilidade de ler textos filosóficos de modo significativo e que tenha condições de interpretar, problematizar, levantar hipóteses, entre outras habilidades, é importante que os Cadernos deem condições para tal, e, se possível, proponham ou apontem alguma estratégia de análise simples, que possa colaborar com a introdução do educando a esse tipo de leitura. Para tanto, poder-se-ia pensar em questões básicas como: Do que trata o texto? Qual a tese do autor? Quais argumentos o autor apresenta para defender sua opinião? Essas e outras questões poderiam ser a base para a elaboração de um fichamento de leitura analítica. Entretanto, nada disso é viável, se o professor não mediar esse processo, acompanhando os limites e o desenvolvimento de seus educandos, para, se necessário, reformular as estratégias de acordo com as limitações de seus estudantes, porém, sempre procurando desafiá-los a avançar na leitura e na análise dos textos filosóficos. O Currículo de filosofia do estado de São Paulo e seus materiais didáticos empregam o texto filosófico, bem como defendem o seu uso como um dos recursos centrais desse ensino. Contudo, é necessário rever a abordagem desses textos nos planos de aula, visto que a maioria apresenta vários problemas que os tornam dispensáveis ou subaproveitados. Sendo assim, não se cumprem os objetivos recomendados pela legislação educacional a respeito da filosofia, no que se refere ao papel do texto filosófico. Por isso, é imprescindível que reavaliemos essas propostas e os excertos selecionados e avancemos nessa análise, de forma a progredir na consolidação do ensino de filosofia no nível médio e na efetiva consecução dos objetivos da disciplina na formação crítica dos estudantes. 144 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, E. de S. Ensino de filosofia no ensino médio: por uma cidadania da práxis. 2011. 183 páginas. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas-SP, 2011. ALVES, D. J. A filosofia no ensino médio: ambiguidades e contradições na LDB. Campinas, SP: Autores Associados, 2002. ALVES, G. L. O pensamento burguês no seminário de Olinda: 1800-1836. Ibitinga-SP: Humanidades, 1993. ASPIS, R. L. Ensinar filosofia: um livro para professores. São Paulo: Atta Mídia e Educação, 2009. BANCO DE TESES – Capes. Disponível em: http://bancodeteses.capes.gov.br/. Acesso em: 29 dez. 2014. BRASIL. Decreto nº 3.914, de 23 de janeiro de 1901. 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Equipe: Luiza Christov, Paulo Miceli, Renê José Trentin Silveira. São Paulo: SEE, 2009. ______. Secretaria da Educação. Currículo do Estado de São Paulo: Ciências Humanas e suas tecnologias. Coordenação geral: Maria Inês Fini. Coordenação de área: Paulo Miceli. São Paulo: SEE, 2010. ______. Secretaria da Educação. Material de apoio ao currículo do Estado de São Paulo: caderno do professor: filosofia, ensino médio, 1ª série. Coordenação geral: Maria Inês Fini. Equipe: Adilton Luís Martins, Luiza Chirstov, Paulo Miceli. São Paulo: SE, 2014a. v. 1. ______. Secretaria da Educação. Material de apoio ao currículo do Estado de São Paulo: caderno do aluno: filosofia, ensino médio, 1ª série. Coordenação geral: Maria Inês Fini. Equipe: Adilton Luís Martins, Luiza Chirstov, Paulo Miceli. São Paulo: SE, 2014b. v. 1. ______. Secretaria da Educação. Material de apoio ao currículo do Estado de São Paulo: caderno do professor: filosofia, ensino médio, 1ª série. Coordenação geral: Maria Inês Fini. Equipe: Adilton Luís Martins, Luiza Chirstov, Paulo Miceli. São Paulo: SE, 2014c. v. 2. ______. Secretaria da Educação. Material de apoio ao currículo do Estado de São Paulo: caderno do professor: filosofia, ensino médio, 2ª série. Coordenação geral: Maria Inês Fini. Equipe: Adilton Luís Martins, Luiza Chirstov, Paulo Miceli. São Paulo: SE, 2014d. v. 1. ______. Secretaria da Educação. Material de apoio ao currículo do Estado de São Paulo: caderno do aluno: filosofia, ensino médio, 2ª série. Coordenação geral: Maria Inês Fini. Equipe: Adilton Luís Martins, Luiza Chirstov, Paulo Miceli. São Paulo: SE, 2014e. v. 1. ______. Secretaria da Educação. Material de apoio ao currículo do Estado de São Paulo: caderno do professor: filosofia, ensino médio, 2ª série. Coordenação geral: Maria Inês Fini. Equipe: Adilton Luís Martins, Luiza Chirstov, Paulo Miceli. São Paulo: SE, 2014f. v. 2. 148 ______. Secretaria da Educação. 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