Coordenadores Marcos Wachowicz João Luis Nogueira Matias A EFETIVAÇÃO DO DIREITO DE PROPRIEDADE PARA O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL: relatos e proposições Fundação Boiteux Florianópolis 2010 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições D598 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições [Recurso eletrônico] / Marcos Wachowicz, João Luis Nogueira Matias (coordenadores). – Florianópolis : Fundação Boiteux, 2010. 1 CD-ROM Inclui bibliografia ISBN: 978-85-7840-020-0 1. Direito de propriedade. 2. Direito ambiental. 3. Empresas – Ética profissional. 4. Economia – Aspectos morais e éticos. 5. Meio ambiente. I. Wachowcz, Marcos. II. Matias, João Luis Nogueira. CDU: 347.78 Catalogação na publicação por: Onélia Silva Guimarães CRB-14/071 Editora Fundação Boiteux Conselho Editorial Luiz Carlos Cancellier de Olivo João dos Passos Martins Neto Eduardo de Avelar Lamy Horácio Wanderley Rodrigues Miriam Marques Moreira Reibnitz Secretária executiva Thálita Cardoso de Moura Capa, projeto gráfico Studio S Diagramação e revisão Germana Parente Neiva Belchior [email protected] Endereço UFSC – CCJ - 2º andar – Sala 216 Campus Universitário – Trindade Caixa Postal: 6510 – CEP: 88036-970 Florianópolis – SC E-mail: [email protected] Site: www.funjab.ufsc.br 2 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições SUMÁRIO PREFÁCIO.................................................................................................................................................................8 PARTE I – PROPRIEDADE..................................................................................................................................10 CONSIDERAÇÕES QUANTO À GERAÇÃO DE ENERGIA NO BRASIL E SUA REPERCUSSÃO NOS DIREITOS CONSTITUCIONAIS NA PROPRIEDADE, MORADIA E MEIO AMBIENTE................................11 Alfredo Chaia Mattos Neves Natália Cardoso Marra NOVOS PARADIGMAS DA CONSTRUÇÃO CIVIL NO SÉCULO XXI: PELA IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE INCENTIVO ÀS CONSTRUÇÕES VERDES........................................................ 28 Ana Afif Mateus Sarquis Queiroz Fernanda Castelo Branco Araújo O IPTU PROGRESSIVO NO TEMPO E OS PRINCÍPIOS DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E DA PRESERVAÇÃO DO MEIO AMBIENTE...........................................................................................................51 Carlos Araújo Leonetti IPTU AMBIENTALMENTE ORIENTADO: UMA ANÁLISE SOB A PERSPECTIVA CONSTITUCIONAL A PARTIR DA PROPOSTA DE REFORMA TRIBUTÁRIA AMBIENTAL (PEC 353/2009)....................................65 Carolina Sena Vieira Flávia Koerich Mafra Ubaldo César Balthazar A EXPANSÃO URBANA E A INFLUÊNCIA NAS ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS: O CASO DE FORTALEZA............................................................................................................................................................85 3 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Daniela Maia Saboia Moura Armando Elísio Gonçalves Silveira É O FUTEBOL UM BEM CULTURAL IMATERIAL? UMA ANÁLISE CRÍTICA DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA AMBIENTAL Nº 994.09.013383-3.........................................................................................................................110 David Barbosa de Oliveira TRIBUTAÇÃO AMBIENTAL: POSSIBILIDADES DE INTERVENÇÃO NAS DIRETRIZES DA POLÍTICA NACIONAL DOS RESÍDUOS SÓLIDOS.............................................................................................................125 Denise Lucena Cavalcante Iasna Chaves Viana PATRIMÔNIO NATURAL DA HUMANIDADE NO BRASIL............................................................................147 Elizabeth Alice Barbosa Silva de Araújo CIBERESPAÇO E PROPRIEDADE INTELECTUAL: COMO PROMOVER UM DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL DA INFORMAÇÃO?.................................................................................................................168 Eulália Emília Pinho Camurça O USO, A OCUPAÇÃO E O CONTROLE DA PROPRIEDADE URBANA: NOVAS PERSPECTIVAS SOBRE UM VELHO TEMA................................................................................................................................................181 Fernando da Conceição Raposo O PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE......................................................................................................................................................191 Germana Parente Neiva Belchior Ana Carolina Aguiar Carneiro A DIMENSÃO AMBIENTAL DA PROPRIEDADE PRIVADA...........................................................................210 Giselle Marques de Araújo 4 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições O CONDOMÍNIO COMO PARADIGMA? MEIO-AMBIENTE, REGIÕES URBANAS E FEDERAÇÕES ESTATAIS: SUSTENTAR E RESPONSABILIZAR A PARTILHA.................................................................... .232 Paulo Castro Seixas O DIREITO DE PROPRIEDADE SOB O VIÉS GARANTISTA..........................................................................250 Sérgio Urquhart Cademartori Isabela Souza De Borba PARTE II – MEIO AMBIENTE...........................................................................................................................274 A IMPORTÂNCIA DA PROTEÇÃO DA BIODIVERSIDADE BRASILEIRA PARA GARANTIR O ACESSO À SAÚDE....................................................................................................................................................................275 Denise Almeida de Andrade Tarin Cristino Frota Mont'alverne A CONVERGÊNCIA ENTRE OS DIREITOS DE PROPRIEDADE E AO MEIO AMBIENTE SADIO: A CESSÃO DE USO DAS ÁGUAS DA UNIÃO PARA A PRODUÇÃO DE PESCADO NO BRASIL.................280 João Luis Nogueira Matias João Felipe Nogueira Matias CONCENTRAÇÃO DE RENDA, ACESSO À PROPRIEDADE E SUBDESENVOLVIMENTO: UM OLHAR SOBRE A AGRICULTURA FAMILIAR NO BRASIL..........................................................................................303 Juliana Cristine Diniz Campos O POVO INDÍGENA ANACÉ E O COMPLEXO INDUSTRIAL E PORTUÁRIO DO PECÉM: TESSITURAS SOCIOAMBIENTAIS DE UM “ADMIRÁVEL MUNDO NOVO”......................................................................318 Luciana Nogueira Nóbrega Martha Priscylla Monteiro Joca Martins SERVIÇOS AMBIENTAIS, POPULAÇÕES TRADICIONAIS E ECONOMIA AMBIENTAL: PROJETO DE LEI FEDERAL N° 5586/2008 QUE TRATA DOS PROJETOS DE REDD E O EXEMPLO AMAZONENSE......................................................................................................................................................344 5 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Luís Pedro Oliveira S. Rodrigues OS CONFLITOS RESULTANTES DO USO DA ÁGUA DAS FONTES SUBTERRÂNEAS PARA ABASTECIMENTO HUMANO: ESTUDO DE CASO DA FONTE GUARIBAS EM CRATO-CE...................365 Márcia Maria dos Santos Souza A PROPRIEDADE INTELECTUAL DOS TRANSGÊNICOS NO BRASIL.......................................................381 Patrícia Santos Précoma Pellanda Rubens Onofre Nodari O COMÉRCIO INTERNACIONAL DE CRÉDITOS DE CARBONO.................................................................413 Renata de Assis Calsing A FUNÇÃO AMBIENTAL DA PROPRIEDADE COMO GARANTIDORA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS..................................................................................................................................................430 Sarah Carneiro Araújo Tarin Cristino Frota Mont'alverne TERRA, ÁGUA E PODER: A CONCENTRAÇÃO FUNDIÁRIA E HÍDRICA NO SEMIÁRIDO BRASILEIRO COMO ORIGEM DOS CONFLITOS SOCIAIS ...................................................................................................448 Stella Maris Nogueira Pacheco Francisco Carlos Mourão Neto TERRA INDÍGENA E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL.......................................................................469 Thais Luzia Colaço A INTERFERÊNCIA DO ZONEAMENTO AMBIENTAL NO DIREITO DE PROPRIEDADE EM PROL DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL DAS CIDADES..................................................................................484 Thalita Maria Tomaz de Sousa Ana Jamille Tomaz Viana Mirna Nunes Mineiro 6 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições PRÁTICAS ECONÔMICAS SOLIDÁRIAS: UMA FACETA DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL.....................................................................................................................................................500 Theresa Rachel Couto Correia Monique Tavares de Figueiredo A PROPRIEDADE URBANA E A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA SOB O ENFOQUE SUSTENTÁVEL: CONTORNOS PRÁTICOS NA LEI N° 11.977/09 NO ÂMBITO DE CURITIBA/PR.........................................513 Vivian Carolina Koerbel Dombrowski A FUNÇÃO SÓCIO-AMBIENTAL DA PROPRIEDADE AGRÁRIA ANTE O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL.....................................................................................................................................................540 William Paiva Marques Júnior 7 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições PREFÁCIO A obra “A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições” é resultado das discussões realizadas durante o IV Simpósio Internacional de Propriedade e Meio Ambiente e o IV Encontro Temático do Projeto Casadinho. O evento reuniu em Fortaleza pesquisadores dos Programas de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará e da Universidade Federal de Santa Catarina, bem como convidados de outras instituições parceiras do Brasil e de Portugal. Estamos no sexto e último livro oriundo do Projeto Casadinho, financiado pelo CNPQ, cujos trabalhos demonstram a necessária convergência entre o direito de propriedade e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Os três primeiros foram produtos dos eventos anteriores, o quarto na temática de Tributação Ambiental e o quinto, publicado recentemente, como resultado do primeiro Workshop Internacional com o título “Propriedade e Meio Ambiente: da inconciliação à convergência”, ocorrido em dezembro deste ano, no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa (ISCSPUTL). O presente ivro foi dividido em duas partes de acordo com o enfoque dado pelos autores: na primeira, encontram-se reunidos os estudos com uma maior evidência no Direito de Propriedade e, no segundo momento, são contemplados os trabalhos com predominância no Direito Ambiental. Os pesquisadores apresentam resultados práticos dos estudos desenvolvidos ao longo dos dois anos do Projeto Casadinho, o que demanda uma relação inafastável entre os direitos de propriedade e ao meio ambiente sadio. Todos as metas invocadas no projeto inicialmente aprovado pelo CNPQ foram conquistadas. O Programa não consolidado (UFC) obteve conceito 4 na última avaliação realizada pela CAPES, bem como o Programa consolidado (UFSC) retrata maturidade internacionalmente reconhecida. Aliás, os resultados do Projeto foram além do esperado, assumindo efeitos além mar, o que estimula os pesquisadores à continuidade da pesquisa. 8 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Que possamos comemorar o sucesso do “casamento” da tradição do Programa de PósGraduação em Direito da UFC com a maturidade do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFSC. João Luis Nogueira Matias Professor do Curso de graduação e Pós-graduação em Direito na Universidade Federal do Ceará – UFC Marcos Wachowicz Professor do Curso de graduação e Pós-graduação em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC 9 PARTE I PROPRIEDADE CONSIDERAÇÕES QUANTO À GERAÇÃO DE ENERGIA NO BRASIL E SUA REPERCUSSÃO NOS DIREITOS CONSTITUCIONAIS DA PROPRIEDADE, MORADIA E MEIO AMBIENTE Alfredo Chaia Mattos Neves1 Natália Cardoso Marra 2 RESUMO: O Brasil é um país privilegiado naturalmente e possui várias fontes de geração de energia. Ocorre que a produção nacional de energia elétrica se baseia em usinas hidrelétricas. A construção dessas usinas implica em grande impacto sócio-ambiental, visto que a desapropriação de enormes terrenos ocasiona a perda da propriedade, da moradia e da identidade de várias famílias, além da submersão de áreas naturais. A vasta utilização do instrumento da desapropriação, mediante a outorga da Agência Nacional de Energia Elétrica, sob o argumento da utilidade pública, acaba por desestimular, de certa forma, a pesquisa que promova o desenvolvimento de formas alternativas de energia que prejudiquem em menor extensão os direitos sociais, humanos e constitucionais. Esse trabalho visa descrever a situação atual do Brasil quanto a produção de energia, os direitos à propriedade e ao meio ambiente e o instrumento da desapropriação, para, a partir da conceituação e descrição desses sob a ótica do princípio da sustentabilidade, demonstrar a necessidade de mudanças no arcabouço jurídico e político brasileiro. PALAVRAS-CHAVE: Desapropriação; Utilidade pública; Propriedade; Meio ambiente; Energia. ABSTRACT: Brazil is a country naturally privileged and have multiple sources of power generation. Occurs that domestic production is based on hydropower. The construction of these plants requires a large socio-environmental impact because the expropriation of land caused the enormous loss of property, housing and identity for several families, including the sinking of natural areas. The extensive use of the instrument of expropriation, including directly by the National Agency of Electrical Energy, on the grounds of public utility ultimately discourage research that promotes the development of alternative energy sources that harm to a lesser extent the social, human and constitutional. This paper aims to describe the current situation in Brazil regarding energy production, property rights and the environment and the instrument for the expropriation from the conceptualization and description of these from the perspective of the sustainability principle to demonstrate the need for changes in legal framework Brazilian politician. 1 Advogado da Omega Energia Renovável S.A. Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC Minas. Especialista em Direito Processual pelo Instituto de Educação Continuada - IEC da PUC Minas. E-mail: [email protected]. 2 Advogada, Especialista em Administração Pública e Gestão Urbana pela PUC Minas e em Direito Ambiental pelo CAD, pesquisadora do grupo de planejamento urbano participativo do Núcleo Jurídico de Políticas Públicas da PUC Minas, coordenado pela professora Marinella Machado Araújo, estudante do 2o período do curso de Geografia do UNI BH, mestranda em Processos Políticos Sociais, Articulações Interinstitucionais e Desenvolvimento Local do Centro Universitário UNA. E-mail: [email protected] A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições KEY-WORDS: Expropriation; Utilities; Property; Environmental; Energy. 1 PROPEDÊUTICA A Declaração Universal dos Direitos Humanos dispõe no seu artigo XVII que toda pessoa tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros, e que ninguém será arbitrariamente privado da sua. O instituto jurídico da desapropriação é um instrumento utilizado pela Administração Pública para a aquisição de imóveis mediante a saída compulsória de pessoas das suas respectivas propriedades e o pagamento de indenização justa. À primeira vista, a leitura dos parágrafos acima retrata um paradoxo. Um direito fundamental sendo lesado por uma norma constitucional, principalmente porque a Constituição da República de 1988 - CR/88 trata, em seu artigo - art., 5o tanto da garantia do direito de propriedade quanto da possibilidade de desapropriação nos casos previstos em lei. Em casos de utilidade pública, por exemplo, pode-se ocorrer a desapropriação de uma propriedade particular para e implementação de um benefício em prol da coletividade. Porém, por vezes, a utilidade pública deverá ser sopesada diante das condições factuais, sejam elas sociais, ambientais, econômicas e/ou políticas. Na atualidade, já foram desenvolvidas várias formas de geração de energia limpa e sustentável. No Brasil, de um modo geral, a energia é produzida por hidrelétricas, e para a construção de hidrelétricas, podem ser inundadas enormes áreas onde existem residências, cidades inteiras, atividades agropecuárias e áreas de mata com grande diversidade biológica. A luta de proprietários contra desapropriações em determinadas áreas pode salvar a devastação de florestas e o habitat de animais silvestres, além de incentivar o desenvolvimento sustentável de energia, por meio de investimentos em novas metodologias de geração de eletricidade. Esse trabalho visa caracterizar a desapropriação, a propriedade, a utilidade pública e a relevância do meio ambiente no contexto atual, de modo a possibilitar reflexões no campo da produção de energia elétrica no país. 2 A GERAÇÃO DE ENERGIA ELÉTRICA NO BRASIL O Brasil é um país privilegiado, pois nele se encontram as mais diversas matérias primas e muitos recursos naturais. Ocorre que a exploração desses recursos e matérias primas 12 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições acaba muitas vezes ocorrendo de modo a não possibilitar a preservação da natureza. As maiores geradoras de energia no Brasil são as centrais hidrelétricas. Existem cerca de 866 usinas em operação, onde é gerada 76,09% de toda a energia do país (ANEEL, 2008). Ainda que existam outras formas de se gerar energia elétrica (biomassa, gás natural, eólica, dentre outras) estas todas juntas produzem menos que a metade da energia elétrica produzida por hidrelétricas. Esse é um processo histórico. Devido ao potencial hídrico do país, ao grande número de rios e volume de água, tradicionalmente a produção de energia foi pautada na instalação de centrais hidrelétricas. O grande problema da construção dessas usinas é a quantidade de terrenos que são submersos por represamento de água. Cidades inteiras podem desaparecer do mapa, milhares de pessoas e animais têm que ser removidos, incontáveis espécies de plantas correm o risco de desaparecerem sob as águas. O impacto sócio-ambiental dessas centrais pode ser enorme, e deve ser controlado. Para tanto, deve-se melhor trabalhá-lo, pois identidades são perdidas a partir da remoção de pessoas. 2.1 Possibilidades de geração de energia elétrica limpa Como já dito, o Brasil, com dimensões continentais, possui uma vasta amplitude de fontes naturais capazes de gerar energia elétrica. Essencial ao desenvolvimento econômicosocial do país, o acesso à energia elétrica já é realidade para aproximadamente noventa por cento da população brasileira 3, e o governo brasileiro, em todas as suas esferas (federal, estadual e municipal), vem envidando esforços para que se aumente cada vez mais este percentual. Para tanto, necessária foi, e será, a criação de formas institucionais e programas de incentivo capazes de viabilizar o investimento na geração de energia elétrica em todas as suas possibilidades - mediante a utilização dos potenciais hídricos, eólicos, do petróleo e seus derivados, da biomassa, do urânio, dentre outras fontes possíveis de se gerar energia elétrica. Destaca-se, portanto, a predominância de fontes de energia primária, aquelas provenientes de fontes naturais. Mesmo assim, em dados fornecidos pela EPE - Empresa de Pesquisa Enérgica, vinculada à ANEEL - Agência Nacional de Energia Elétrica, aproximadamente 8% da energia elétrica consumida no Brasil, em 2009, foi produzida em outros países e importada; energia esta também primária (EPE, 2010, p.14). 3 Disponível em: cgu.unicamp.br/energia2020/papers/paper_Poppe.pdf Acesso dia: 14/09/2010 13 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Dentro deste panorama, sabe-se que a energia elétrica hidráulica, ou seja, gerada a partir de água doce, dos cursos de água, corresponde, repita-se, a 76,9% de toda a energia gerada e ofertada no território brasileiro (EPE, 2010, p.14). Tal dependência cria uma série de preocupações, sejam elas econômicas, sociais e/ou ecológicas, mas destaca-se por uma produtividade, pode-se dizer, limpa de energia elétrica. Com o advento do século XXI, iniciou-se uma consciência pela utilização de fontes renováveis limpas para a geração de energia elétrica, haja vista os impactos ambientais irreversíveis causados por aquelas que não renováveis, findáveis na natureza, tais como as provenientes da combustão do gás natural, do metano, do carvão, do diesel e outros derivados de petróleo, que liberam imensas quantidades de gás carbônico, dentre outros elementos extremamente tóxicos. As fontes renováveis limpas assim são denominadas por serem provenientes de matéria prima que possibilita a sua utilização por diversas vezes em uma cadeia de geração de energia elétrica, e/ou que permita reiterada vezes a sua utilização, e, principalmente, por não lançarem no meio ambiente gases ou resíduos tóxicos, capazes de prejudicar o meio ambiente em todas e quaisquer qualidades. No caso da energia elétrica hidráulica, propiciada pelas hidrelétricas, as águas, que atravessam as turbinas e fazem gerar a energia, retornam aos seus lugares de origem por meio de condensação e liquefação, ou seja, evaporam, transformando-se em nuvens, produzindo-se chuvas. Não só isso, mas utilizando-se somente da forca mecânica produzida pela água, as hidrelétricas possuem a vantagem ambiental de emitir nenhum resíduo, ou gás tóxico. Contudo, podem trazer diversas repercussões ambientais, até mesmo no que concerne à propriedade de terras, pois afetam áreas cuja ocupação humana se tornam um fator crítico. 2.2 Das Centrais Hidrelétricas A construção de uma central hidrelétrica é um processo por demais complexo, que envolve diversas áreas do conhecimento em prol de um único sentido: gerar energia elétrica dentro dos padrões legais. E a complexidade variará principalmente pela potência de energia gerada correspondente á central hidrelétrica: A Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) adota três classificações: Centrais Geradoras Hidrelétricas (com até 1MW de potência instalada), Pequenas Centrais Hidrelétricas (entre 1,1 MW e 30 MW de potência instalada) e Usina Hidrelétrica de Energia (UHE, com mais de 30 MW). (ANEEL, 2008, p. 53) 14 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Essa classificação interfere diretamente em outra, que se identifica pela existência ou não de reservatório; este, depende inteiramente da topografia local. Para a construção de uma hidrelétrica, seja ela em qualquer de suas potências acima explanadas, necessário é o estudo das condições do rio cuja instalação será realizada. Tal estudo é denominado como inventário, melhor, estudo de inventário hidrelétrico. O Estudo de Inventário Hidrelétrico é a etapa em que se determina a melhor forma de aproveitamento do potencial hidrelétrico de uma bacia hidrográfica ao estabelecer a melhor divisão de queda, aquela que propicie um máximo de energia ao menor custo, associado a um mínimo de efeitos negativos sobre o meio ambiente e considerando uso múltiplo da água. Isso corresponde ao aproveitamento ótimo do potencial hidráulico tratado no § 3º do art. 5º da Lei nº 9.074, de 07 de julho de 1995.(SUGAI, SANTOS JUNIOR, MACHADO, xxx) A partir de então, será possível identificar qual tipo de reservatório, se é que o mesmo seja necessário, será adotado na construção da respectiva hidrelétrica. Pois bem, aqui se adentra na maior problemática ambiental desses tipos de empreendimentos geradores de energia elétrica, uma vez que, para a construção de um reservatório, seja ele de qual tamanho for, afetar-se-á as propriedades ribeirinhas, que serão inundadas nos limites dos projetos de construção do empreendimento. Quando não há população nessas regiões, as preocupações apenas contornam a fauna e flora local, que deverão ser realocadas, na medida do possível, dentro dos parâmetros legais e ambientas adequados. Contudo, nem sempre só esses são os problemas. Os deslocamentos da população, não muito freqüente, mas preocupantes, quando necessários, devem ser atentamente analisados e planejados, respeitando-se tanto o direito da propriedade, como o direito de um meio ambiente saudável. Tal análise certamente contribuirá para a (não)aceitação de um projeto hidrelétrico com reservatório. Existem casos emblemáticos. A construção do reservatório da maior usina hidrelétrica do mundo, a Three Gorges Dam, localizada na China, ocasionou o deslocamento de 500 mil a 1 milhão de pessoas, para fins de viabilização de um potencial energético de aproximadamente 18.200 MW. No Brasil, podem-se mencionar dois casos: a submersão de grande parte da cidade de Guadalupe, no estado do Piauí, pela represa da hidrelétrica Boa Esperança, bem como o deslocamento de cerca de 60 mil pessoas devido ao reservatório da hidrelétrica de Sobradinho, na Bahia (LEITE, 2007, P. 261-262). 15 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Daí, se tem mas das maiores preocupações ambientais no Brasil. Como já dito, a matriz energética brasileira é essencialmente hidráulica, devido à abundância natural do recurso água. Quando necessária a construção de um reservatório, dever-se-á atentar para as conseqüências ambientais a serem causadas no local, sopesando princípios, dentre eles, o direito à propriedade, e ao meio ambiente. Como elemento conector, o desenvolvimento, em caráter sustentável, deverá ser o norte deste jogo de pesos e contrapesos, onde o desenvolvimento econômico e social sofrerá interferências drásticas diante de fatores ambientais. Os impactos ambientais decorrentes da construção de uma hidrelétrica são definitivos e irreversíveis. Dessa forma, durante a fase do projeto do empreendimento, são definidos programas de mitigação ou compensação de são implantados durante a construção e operação da hidrelétrica. Com este entendimento, podemos tratar especificamente das propriedades ribeirinhas afetadas pelos empreendimentos hidrelétricos, pois fato é que suas terras serão inundadas para a construção de reservatórios, quando necessário. Dessa forma, os impactos deverão ser estudados, e soluções deverão ser criadas para amenizá-los. 3 O DIREITO DE PROPRIEDADE O Código Civil Brasileiro, em seu artigo 1228, descreve o direito de propriedade como a faculdade do proprietário de usar, gozar, dispor da coisa, e de reavê-la do poder de quem injustamente a detenha. A importância da propriedade privada emergiu quando o mercado passou a considerar os homens não por sua nobreza, mas pelo valor de seus bens acumulados e sua capacidade de acumular cada vez mais. Conforme afirma Marés (2003), a própria liberdade almejada pela Revolução Francesa se tratava da liberdade de dispor livremente de seus bens e contratar. As terras são vistas como bens de produção e poder de troca, não como bens de poder de uso. Por um viés patrimonialista, não há o que se questionar quanto à intensidade, o tamanho e o modo do exercício do direito da propriedade, já que ser proprietário implica em poder de compra. A propriedade já foi considerada como um direito absoluto, não susceptível a qualquer interferência. Atualmente, a CR/88 prevê no seu artigo 5o que todos são iguais perante a lei, garantindo-se a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à propriedade, nos termos dos incisos do mesmo artigo. No inciso XXII é assegurado o direito de propriedade e o XXIII afirma que a propriedade atenderá a sua função social. Com 16 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições a assunção da função social o exercício do direito de propriedade passou a ter limites determinados por lei (artigo 1128 do Código Civil Brasileiro, e artigos 2o e 8o do Estatuto da Cidade - Lei nº. 10.257, de 10 de julho de 2001) e pela própria CR/88 (artigos 182 e 183). Obrigações de não fazer que restringem as faculdades do proprietário, são comuns no direito civil, especialmente nas leis de uso e ocupação do solo, delimitando a altura de prédios, o coeficiente de aproveitamento de terrenos, impondo como limite o direito dos vizinhos. Já as obrigações de fazer são mais recentes no campo jurídico, e derivam do Estatuto da Cidade e da função social. Para Marés (2003) a função social se baseia no cumprimento de alguns requisitos: o aproveitamento racional da terra, a preservação do meio ambiente, a obediência às obrigações trabalhistas e uma exploração que favoreça o bem estar de todos os envolvidos. A função social impõe ao direito de propriedade deveres, cujo não cumprimento implica na perda da proteção da propriedade, impõe limites ao poder absoluto do proprietário, relevando a importância do direito de igualdade e o princípio da dignidade da pessoa humana. O direito de propriedade remete ao dever do exercício efetivo da posse sobre a coisa. O proprietário deve fazer valer os seus poderes e faculdades no sentido do bem comum (LEAL, 1998, p.127). A função social não visa à limitação da propriedade, mas à garantia do exercício desse direito conforme o interesse coletivo da sociedade. A posse de acordo com Caio Mário da Silva Pereira (2005) é o exercer sobre uma coisa poderes ostensivos, conservando-a e defendendo-a como se sua fosse, mesmo não tendo propriedade sobre a coisa. O exercício efetivo da posse representa a efetivação da função social da propriedade, o que descarta qualquer tipo de desapropriação sansão conforme a prevista no Estatuto da Cidade. O direito da propriedade defendido na CR/88 e na Declaração Universal dos Direitos Humanos não pode sofrer interferências caso cumpra com a função social e não fira nenhuma disposição legal. A exceção para essa situação é a necessidade de desapropriação fundamentada no interesse público. O direito de propriedade não se resume ao simples poder de compra e troca, mas à possibilidade de produção e uso do imóvel, para moradia, lazer, plantio, pecuária e outros fins. A desapropriação não significa somente a transmissão da propriedade de um bem em troca de indenização porque implica em mudanças na vida pessoal e profissional de todos os expropriados mais na mudança do ecossistema local. 17 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Segundo Ilse Scherer-Warren (2005, p.79) “o uso e a apropriação do espaço na sociedade capitalista moderna tem se relacionado cada vez mais estreitamente com o processo de reprodução do capital”. A execução de projetos de grande escala no Brasil (como a construção de centrais hidrelétricas) implica em uma considerável ocupação territorial, que pode se dar em espaços desocupados, habitados ou ricos em biodiversidade. É recente a preocupação com as conseqüências sociais derivadas de grandes projetos de engenharia. Essas conseqüências devem ser diagnosticadas frente aqueles que são afetados direta (pessoas removidas compulsoriamente) ou indiretamente, por meio de reflexos. A necessidade de adquirir licenças ambientais já é institucionalizada, mas os problemas sociais ainda não são devidamente avaliados (SCHERER-WARREN, 2005). O interesse do capital, tendo em vista o crescimento e a necessidade de acumulação e progresso, faz uso do solo e dos recursos naturais sob a égide da utilidade pública. A ideologia da modernização justifica a desapropriação contanto que essa possibilite a realização de obras que permitam o “desenvolvimento” e legitima a “ideologia da redenção”, na qual é prioridade tudo o que corresponda com o interesse público geral, como é o caso do desenvolvimento (SCHERER-WARREN, 2005). Os custos ambientais e sociais podem ser minimizados, apesar de inevitáveis, e a conjuntura global é que nos dará as pistas de como deveremos solucionar as questões sócioambientais a serem enfrentadas. Restam os questionamentos: quais devem ser os custos ambiental e social para que estes se sobressaiam ao interesse público geral? Há de fato um limite para esses custos, um valor que impeça a implantação de obras que favoreçam o desenvolvimento? Deve haver um valor máximo ou dificilmente será incentivado o investimento de recursos na produção alternativa de energia, comprovadamente possível de ser aplicada em substituição a processos de geração de energia que causam muitos danos ambientais e sociais. A análise do custo-benefício no caso em questão é realizada de acordo com a racionalidade do capital e sob a ótica dos custos sociais intrínsecos às populações atingidas como onde essas vivem, como vivem e do que vivem. A recompensa material oferecida pela indenização não cobre os desgastes sofridos pela população. As medidas de compensação ambiental não neutralizam os danos ambientais. Não são avaliados os múltiplos significados do espaço (SCHERER-WARREN, 2005). 18 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Como os processos de desapropriação da propriedade das pessoas afetadas pela construção de hidrelétricas são autoritários e compulsórios, ainda que legais, não representam legitimidade frente às comunidades atingidas. Por essa razão os expropriados sentem seus direitos violados e não são violados apenas os direitos dos expropriados, mas de toda a coletividade, pois a área atingida pela hidrelétrica afeta enormes extensões territoriais o que pode incluir locais de beleza cênica ou repletos de matas e animais o que lesa o meio ambiente e fere o art.225 da CF/88. 3.1 O instrumento da desapropriação De acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello (2005), à luz do direito positivo, a desapropriação se define como o procedimento pelo qual o Poder Público, fundado em necessidade pública, utilidade pública ou interesse social, compulsoriamente despoja alguém de um bem certo, adquirindo-o para si mediante o pagamento de indenização prévia, justa e pagável em dinheiro, salvo quando o imóvel Para Pereira (2005) a desapropriação realiza a cessação da relação dominial para o dominus e a integração da res ao acervo estatal de modo que assim, a desapropriação não é uma compra e venda, porque é forçada, mas um ato de direito público que gera a transferência de domínio. Ao ter sua terra desapropriada, o proprietário recebe um preço pela mesma, de modo que a perda da proteção da propriedade não cause mais danos ao proprietário particular. A desapropriação para reforma agrária não pode ser efetivada sobre a pequena e a média propriedades rurais, assim definidas em lei, desde que o proprietário dessas não seja dono e outro imóvel. A propriedade produtiva também não pode ser objeto de reforma agrária (MELLO, 2005), mas essas podem ser objeto de desapropriação por utilidade pública como a construção de represas para hidrelétricas, justamente a qualidade que se quer discutir. O argumento político da desapropriação corresponde à supremacia do interesse coletivo sobre o privado quando esses são incompatíveis e se refere ao domínio que o Estado dispõe sobre todos os bens existentes no seu território (MELLO, 2005). O fundamento constitucional encontra-se nos arts. 5o, XXIV, 182 e 184 da CR/88. Já o infraconstitucional reside em leis e decretos lei que tratam da necessidade e utilidade pública (dentre eles, a Lei 4.132, de 10 de setembro de 1962, e o decreto-lei 1.075, de 22 de janeiro de 1970). De acordo com o decreto-lei 3.365, de 21 de junho de 1941 (artigo 5º), as hipóteses para desapropriação por utilidade pública são: segurança nacional; salubridade pública; assistência 19 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições pública; exploração ou conservação de serviços públicos; abertura, conservação ou melhoramento de vias ou logradouros públicos; reedição ou divulgação de obras ou invento de natureza científica, artística ou literária; preservação ou conservação de monumentos históricos e artísticos, dentre outros. São hipóteses de desapropriação por interesse social, dentre outras, conforme o artigo 2º da Lei 4.132: o aproveitamento de todo bem improdutivo ou explorado sem correspondência com as necessidades de habitação, trabalho e consumo dos centros de população a que deve servir ou possa suprir por seu destino econômico; o estabelecimento e a manutenção de colônias ou cooperativas de povoamento e trabalho agrícola, a construção de casas populares, a proteção do solo e a proteção de cursos e mananciais de água e de reservas florestais. Para Mello (2005, p. 812) a “declaração de utilidade pública é o ato através do qual o Poder Público manifesta sua intenção de adquirir compulsoriamente um bem determinado e o submete ao jugo de sua força expropriatória”. A União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal podem fazer referida declaração. A Agência Nacional de Energia Elétrica também possui competência para declarar imóveis como de utilidade pública - artigo 10 da Lei 9.074, de 07 de julgo de 1995 - quando esses são necessários para a implantação de instalações de concessionários, permissionários e autorizados de serviços de energia elétrica. Todavia nem todos os serviços de energia elétrica autorizados são de utilidade pública, como nos casos em que a energia gerada será utilizada somente pelo próprio produtor, ou seja, é de interesse exclusivo dos autorizados - artigo 7o, incisos I e II, da Lei 9.074/95. Nesses casos não há o que se falar em desapropriação. Na declaração de utilidade pública devem constar a manifestação pública da vontade de submeter o bem à força expropriatória do Estado, o fundamento legal em que se embasa o poder expropriante, a destinação específica a ser dada ao bem, a identificação do bem a ser expropriado (MELLO, 2005). Os efeitos da utilidade pública para Mello (2005) são: submeter o bem à força expropriatória do Estado; fixar o estado do bem (condições, benfeitorias existentes, etc); conferir ao Poder Público o direito de penetrar no bem a fim de fazer verificações e medições; dar início ao prazo de caducidade da declaração (cinco anos). Nos casos das hidrelétricas, os procedimentos necessários para obtenção de declaração de utilidade pública para fins de desapropriação das áreas abrangidas pela implantação de instalações de geração de concessionários, permissionários ou autorizados de energia elétrica 20 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições estão previstos na Resolução ANEEL nº 259, de 09 de junho de 2003. A Licença Prévia Ambiental ou manifestação favorável do órgão responsável pelo licenciamento aprovando a execução do empreendimento ou, ainda, posição atualizada sobre o processo de licenciamento ambiental, são fatores de suma importância para a obtenção da qualidade de utilidade pública, haja vista a interferência direta no direito de propriedade alheio. Não são poucos os casos de desapropriação de propriedades inteiras, ou parte delas, para a implantação de uma central hidrelétrica. No que tange às Pequenas Centrais Hidrelétricas – PCH, o instrumento é menos agressivo, pois em grande parte dos empreendimentos, as cotas de inundação são baixas, ocasionando o alagamento de áreas pouco expressivas, ou, até mesmo, de nenhuma área, dependendo do planejamento e condições topográficas do rio. Contudo, tratando-se de empreendimentos de grande porte (Usinas Hidrelétricas), a situação pode ser bem diferente. Como já explanado, caso desapropriado, o afetado terá direito a uma indenização justa, pois lhe será retirada uma parte de terras. O problema ocorre quando a parte de terras é utilizada para atividades econômicas, muitas vezes para subsistência, bem como para moradia. As regiões ribeirinhas são extremamente habitáveis devido aos vastos benefícios propiciados por um rio: irrigação, abastecimento, pesca etc. Muitas famílias estabelecem sua residência nesta região, formando-se pequenas, médias e grandes comunidades. Traços culturais se formam, e nem sempre as indenizações são suficientes. Em 2002, tivemos um caso emblemático com a construção da Usina Hidrelétrica de Aimorés. Uma cidade inteira, Ituêta, de Minas Gerais, foi relocada, em virtude da inundação para o enchimento do reservatório. Parte de Resplendor, cidade também de Minas Gerais, foi afetada pelo mesmo reservatório, obrigando o consórcio construtor, formado pela Vale do Rio Doce e a Companhia Energética de Minas Gerais - CEMIG, reconstruírem todas as condições de morabilidade destas áreas atingidas. Mesmo com as indenizações dadas aos moradores, e com o cumprimento de várias normas ambientais, muitos moradores se sentiram prejudicados devido às alterações das terras, pois já vinham desenvolvendo atividades agropecuárias desde o início do século passado. O depoimento de Frederico Carlos Ortlieb, um dos moradores da região de Ituêta, que foi removido de sua propriedade rural onde a família vivia desde 1913, demonstra bem o que se passa com as pessoas que são lesadas no seu direito de propriedade e na sua identidade: “Não temos terra para vender. Não há dinheiro que pague o suor derramado nesse chão.” 21 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições (FILHO, 2000, p.24). Segundo Tim (2000, p. 24), os moradores removidos dessa área preservavam uma mata, combatiam os incêndios do período da seca, zelavam pelo meio ambiente, mas tiveram que assistir à inundação de suas casas, plantações, áreas preservadas e raízes familiares. A situação torna-se menos grave quando somente parte de propriedades são afetadas, cuja forma de relocação se torna mais fácil devido à pouca alteração do estado das terras. 4 O DIREITO AO MEIO AMBIENTE SAUDÁVEL Devido à relevância do tema, a CR/88 possui um capítulo próprio para a tratativa do meio ambiente. O caput do art. 225 dispõe que: Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. (BRASIL) Diante do exposto no artigo acima transcrito, fica claro que o meio ambiente é um fator essencial para a boa qualidade de vida dos cidadãos, ou seja, não está de modo algum dissociado dos direitos sociais. Desse modo deve o mesmo ser devidamente preservado. De acordo com Milaré (2009, p.154) o meio ambiente é um fator diretamente implicado no bem-estar da coletividade, e por essa razão deve ser protegido dos excessos quantitativos e qualitativos da produção econômica que afetam a sustentabilidade e dos abusos das liberdades que a CR/88 confere aos empreendedores. O artigo 170 da CR/88 trata da ordem econômica e afirma que essa deve ser implementada conforme os ditames da justiça social, observados alguns princípios, como o da soberania nacional, da propriedade privada, da função social da propriedade, da defesa do meio ambiente, da redução das desigualdades regionais e sociais. A partir da interpretação desse artigo é possível constatar que os grandes empreendimentos, como a instalação de hidrelétricas, devem observar preceitos constitucionais como a preservação do meio ambiente e da propriedade privada, o que reforça a idéia de que ao ser avaliada a possibilidade de ocupação de terras, de desapropriação esses preceitos devem ser analisados. Inclusive, a degradação ambiental representa o descumprimento da função social da propriedade. Como todo direito fundamental o direito ao ambiente ecologicamente equilibrado é indisponível. A CR/88 trata da preservação do meio natural como um dever do Poder Público 22 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições e não mera faculdade o que representa que existe a obrigação de zelar, preservar e defender a natureza. O cidadão também não é mais simples titular de um direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Esse passa a ter a titularidade do dever de defender e preservar assim como o Poder Público. A implantação de qualquer atividade ou obra efetiva ou potencialmente degradadora deve submeter-se a uma análise e controle prévios (MILARÉ, 2009, p.373). Qualquer projeto de desenvolvimento interfere no meio ambiente. O homem hoje depende da exploração de vários recursos naturais, mas essa exploração e os projetos de desenvolvimento não podem ocorrer à revelia, mas controlados e avaliados. Neste intuito, a Constituição de 1988 cria uma articulação entre os estados-membros e a União4, criando uma competência concorrente para legislar sobre questões relativas à preservação do meio ambiente. Dessa forma, as legislações ambientais passam tanto pela esfera federal, como estadual, o que possibilita maior adequação de quaisquer projetos que interfiram de modo degradante na natureza tornando-os um modelo ecologicamente adequado e viável. Como instrumentos capazes de avaliar os impactos ambientais e impedir a instalação de empreendimentos que gerem danos irreversíveis e insustentáveis à natureza, foram criados pela CR/88 institutos jurídicos, dentre eles o Estudo Prévio de Impacto Ambiental (EPIA), bem como, já na legislação federal, as Avaliações de Impactos Ambientais (AIA), as Licenças Ambientais, os Estudos de Impactos Ambientais (EIA) e os Relatórios de Impactos Ambientais (RIMA). O RIMA é de suma importância porque facilita a promoção da participação popular, principalmente na fiscalização, pois relata os dados pesquisados para o EIA em um linguagem mais acessível para leigos e a sociedade civil em geral. A participação popular é essencial para a preservação ambiental, pois são poucos os fiscais do Estado para realizar respectiva fiscalização e os cidadãos acompanham de perto o que ocorre em várias localidades que podem estar sendo degradadas (MILARÉ, 2009). 5 O PRINCÍPIO DA SUSTENTABILIDADE O princípio da sustentabilidade surge a partir dos processos de globalização e degradação ambiental e social. Esse princípio se desenvolve como um limite para a reorientação da humanidade e da produção. Demarca uma nova geração da racionalidade, fundamentada na reflexão sobre o crescimento econômico adotado pelo modelo capitalista 4 Art. 24, inc. VI 23 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições que nega a natureza, e que é capaz de prejudicar a sobrevivência humana. O desenvolvimento sustentável pode ser definido como “um processo que permite satisfazer as necessidades da população atual sem comprometer a capacidade de atender as gerações futuras” (LEFF, 2001, p.19). Segundo Sachs (2008), o conceito de sustentabilidade atual ultrapassa as barreiras econômicas, pois pouco adianta multiplicarmos a riqueza material, se a mesma não adota critérios de igualdade, equidade e solidariedade. E quando se apresenta tais critérios, os mesmos devem ser entendidos em uma conjuntura social, ambiental, territorial, econômica e política. Estes são os cinco pilares do desenvolvimento sustentável. a-Social, fundamental por motivos tanto intrínsecos quanto instrumentais, por causa da perspectiva de disrupção social que paira de forma ameaçadora sobre muitos lugares problemáticos do nosso planeta; b-Ambiental, com as suas dimensões )os sistemas de sustentação da vida como provedores de recursos e como “recipientes” para a disposição de resíduos); c-Territorial, relacionado à distribuição espacial dos recursos, das populações e das atividades; d-Econômico, sendo a viabilidade econômica a conditio sine qua non para que as coisas aconteçam; e-Político, a governança democrática é um valor fundador e um instrumento necessário para fazer as coisas acontecerem; a liberdade faz toda a diferença. (SACHS, 2008, p.15-16) A sustentabilidade se baseia na construção de um novo paradigma econômico fundado no respeito às leis da natureza. É sob essas condições que foram propostos e ratificados todos os princípios propostos na Declaração de Estocolmo sobre o Ambiente Humano (junho de 1972), na Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (junho de 1992) e na Carta da Terra (março de 2000) onde se apresentou moldes de um desenvolvimento sustentável da humanidade indissociáveis das questões de preservação do meio ambiente. Ocorre que o discurso sustentável ainda não é bem utilizado e costuma ser explorado sob finalidade que visa simplesmente à manutenção da ordem pública por meio da legitimação dos processos de produção frente à crise ambiental. O ecodesenvolvimento é efeito de marketing para maquiar a utilização dos recursos naturais e os impactos ambientais dos grandes empreendimentos. Prega-se, nesse caso, o crescimento econômico orientado pelo livre mercado, tendo a tecnologia como aliada para a redução dos desgastes gerados no meio ambiente. Essa idéia é paradoxal, já que a tecnologia é uma das grandes consumidoras dos 24 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições recursos naturais, além de gerar muitos resíduos sólidos. De todo, independentemente da forma como vem sendo feito o uso do princípio da sustentabilidade, esse é um princípio que pode sim favorecer a preservação do meio ambiente e uma mudança nas políticas e pedagogias de educação ambiental dos cidadãos. A democracia participativa e a racionalidade ambiental são trabalhadas pela sustentabilidade. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS É fato, já de conhecimento popular, que a contínua degradação do meio ambiente no Brasil e no mundo podem causar a extinção da raça humana. Para criar uma consciência de que é necessária uma nova visão de consumo e de novos processos produtivos, foi elaborado o princípio da sustentabilidade. A efetivação de respectivo princípio é capaz de promover uma revolução na educação ambiental e na mobilização social. Esses dois aspectos são essenciais para uma mudança no comportamento das pessoas e do próprio Poder Público para que ações e investimentos sejam empregados na execução de projetos que preservem o meio ambiente e que o utilizem de modo sustentável, respeitando as leis da natureza. O desenvolvimento econômico é imprescindível. Com ele, a demanda por energia elétrica inevitavelmente aumenta; surgem novas empresas; aquelas que já existem, aumentam suas capacidades; cidadãos que não tinham acesso à energia elétrica passam a ter e aqueles que já a tinham, aumentam o seu consumo, com o fatal (e não controlável) avanço da tecnologia. Dessa forma, a educação ambiental e a mobilização social são os instrumentos capazes de tornar efetivo o princípio da sustentabilidade através da criação de uma nova ética que oriente os valores e comportamentos sociais para os objetivos de sustentabilidade ecológica e equidade social. O desenvolvimento sustentável trata da necessidade de se buscar novas formas de exploração dos recursos naturais para que a natureza seja preservada para as futuras gerações. A CR/88 torna constitucional o compromisso com o princípio da sustentabilidade no seu artigo 225. Dessa forma não é uma faculdade do Poder Público e de todos os brasileiros zelar pelo meio ambiente, mas um direito seguido de um dever. Hoje existem várias fontes de energia e diversos tipos de usina. Essa variedade de possibilidades deve ser estudada e executada para sejam ocasionados danos menores e se possível, reversíveis. Faltam investimentos em pesquisa e tecnologia, capazes de proporcionar uma melhoria nas formas de geração de energia elétrica, ou seja, que promovam o 25 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições desenvolvimento sustentável. Todavia, novos empreendimentos para geração de energia estão sendo implantados, sendo um mediante a utilização de energia da maré, cinco de fonte fotovoltaica, noventa e oito de fonte eólicas, duzentas e oito termelétricas e trezentas e seis hidrelétricas (ANEEL). Questões de âmbito social também devem ser observadas na implantação de empreendimentos de usinas hidrelétricas, por exemplo. Direitos constitucionais como o direito à propriedade, à moradia e ao meio ambiente não podem ser deixados à revelia em prol do mercado e da produção de bens de consumo. O princípio da sustentabilidade não pode ser maquiado e utilizado sob a ótica que o mercado requer. O uso de instrumentos como o da desapropriação somente devem ser autorizados quando já foi feita uma avaliação quanto à melhor forma de se gerar energia. Esses não podem ser aplicados para a realização de obras que prejudicam direitos constitucionais fazendo uso da fundamentação da utilidade pública sendo que havia alternativas menos danosas para a natureza e a sociedade. Desse modo a instalação de usinas hidrelétricas somente pode ser feita a partir da análise de qual forma de produção de energia é a mais sustentável para o caso em específico. Após a conclusão quanto ao modo de gerar energia devem ser realizadas as avaliações de impacto ambiental e todas as demais que a legislação requer. A desapropriação não pode ser conseguida de forma muito simples ou essa acaba desmotivando o investimento em pesquisas e desenvolvimento de fontes alternativas de energia. Os impactos da desapropriação na sociedade são marcantes. É importante a busca por formas de geração de energia que não ocupem um espaço enorme como a geração por água. A questão tratada neste texto não visa argumentar contra o desenvolvimento tecnológico ou contra a produção de energia, mas demonstrar a necessidade de políticas que busquem aplicar novas formas de produção de energia que gerem menos impactos sócio-ambientais. Não deve ser omisso que as normas jurídicas também precisam mudar de modo a intensificar a fiscalização e sobre os grandes empreendimentos e desapropriações. A análise dos aspectos sociais deve ser melhor explorada nas avaliações de impacto, assim como a participação popular. A avaliação de impacto ambiental deve estar atenta não somente aos impactos causados pelos empreendimentos avaliados, mas também a quais empreendimentos podem ser construídos ao invés do modelo proposto para que sejam reduzidos os resultados negativos e gerada uma soma positiva entre utilidade pública e danos sócio ambientais. 26 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições REFERÊNCIAS ANEEL - Agencia Nacional de Energia Elétrica. Atlas da Energia Elétrica do Brasil. 3ª ed. Brasília: ANEEL, 2008. BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em 31/08/2010. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível <http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm>. Acesso 08/09/2010. em: dia DIEGUES, Antônio Carlos. O Mito da Natureza Intocada. 5a ed. São Paulo: Editora Hucitec, 2004. 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O estudo aborda, inicialmente, a nova orientação do uso da propriedade frente ao dever de proteção ao meio ambiente, ressaltando a função socioambiental da propriedade urbana. Em um segundo momento, enfatiza-se a necessidade de sustentabilidade das construções, apresentando-se os chamados “prédios verdes” e os sistemas de certificação ambiental presentes no Brasil (LEED e AQUA). A terceira parte do trabalho analisa aspectos positivos das construções ambientalmente orientadas, tais como o marketing ambiental, a econômica operacionalidade dessas edificações a longo prazo e os benefícios socioambientais que acarretam. Por fim, verifica-se a possibilidade de utilização dos “prédios verdes” como base para implementação de políticas públicas, sobretudo através da tributação ambiental, expondo-se o papel do Estado diante de uma nova realidade de mercado consumidor. PALAVRAS-CHAVE: “Construções Verdes”, Sustentabilidade, Políticas Públicas. ABSTRACT: This article seeks to examine the most important innovations in the construction industry aimed at the sustainable use of urban property, through a scientific approach that passes between, beyond and across different disciplines, highlighting how transdisciplinary the theme under discussion is. The study focuses, initially, the new guidance on the use of property because of the duty of environment protection, highlighting the socioenvironmental function of urban property. In a second step, it is showed the need for sustainable buildings, demonstrating the “green buildings” and the environmental certification systems used in Brazil (LEED and AQUA). The third part examines the positive aspects of environmentally oriented constructions, such as the green marketing, the economic operation of these buildings and the long-term social and environmental benefits that they entail. Finally, there is the possibility of using “green buildings” as enforcement of public policies, mainly through environmental taxation, exposing the role of the state facing a new reality in the consumer market. KEY WORDS: “Green Buildings”, Sustainable, Public Politics. 1 Alunas do 9º semestre do Curso de Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará – UFC. A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições 1 INTRODUÇÃO A construção civil no Brasil tem demonstrado, nos últimos anos, considerável aquecimento, sobretudo em função do projeto do governo federal “Minha Casa, Minha Vida” e das obras de infraestrutura necessárias à realização da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016. O Produto Interno Bruto (PIB) do setor, no segundo trimestre deste ano, apresentou, em relação ao ano passado, recorde histórico de alta (16,4%)2. Por outro lado, os impactos ambientais causados pela construção civil são impressionantes. O setor responde por até 40% da emissão de gás carbônico direta ou indiretamente em todo o mundo. No Brasil, as construções consomem em média 21% de toda a água tratada, 42% da energia produzida e geram 70% dos resíduos3, o que demonstra quão negativa ela tem sido ao meio ambiente, que, por sua vez, trata-se de bem difuso constitucionalmente tutelado e cuja proteção traduz-se em imperativo essencial à própria sobrevivência humana. Nesse contexto, e levando em consideração que o texto constitucional também impõe que a proteção ambiental seja desempenhada pelo Poder Público e por particulares, de forma a garantir o desenvolvimento sustentável, o que pode ser entendido como “suprir as necessidades do presente sem afetar a habilidade das gerações futuras de suprirem as próprias necessidades”4, nasce para toda e qualquer atividade que compõe a sociedade o dever de buscar efetivar o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Com efeito, a necessária educação ambiental começa a se difundir entre todos os setores da economia, gerando, inclusive, uma mudança de paradigma na forma de consumir da população. A partir daí, surgem as construções sustentáveis, as quais buscam aliar competitividade ao uso de técnicas e produtos que atenuem os impactos ambientais dos empreendimentos imobiliários, desde a construção até a manutenção. Observe-se que não se busca, no presente estudo, abordar todas as perspectivas possíveis no que se refere aos desdobramentos das construções sustentáveis no âmbito nacional, mas tão somente propor a utilização paramétrica dos critérios adotados pelos sistemas de certificação com expressão no Brasil para a elaboração e implementação de políticas públicas voltadas à proteção do meio ambiente. Desse modo, a atenção se volta à 2 Conforme divulgado na edição de 17 de setembro de 2010, do Jornal Diário do Nordeste. CASADO, Marcos. Green Buildings: a onda de “prédios verdes” chegou definitivamente ao país. Revista Construção e Mercado, São Paulo, nº89, p. 23, dez. 2008. 4 Relatório Brundtland. Disponível em pt.wikipedia.org/wiki/Relatório_Brundtland. Acesso em 15 de set. 2010. 3 29 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições demonstração dos processos de certificação ambiental, dos requisitos exigidos para a obtenção dos “selos verdes” e dos benefícios socioambientais que os “prédios verdes” representam. Assim, partindo-se da apresentação das normas legais e principiológicas influentes no direito de propriedade atual, serão analisadas as construções sustentáveis, propondo-se, ao final, medidas públicas de fomento à disseminação desse novo conceito, a fim de auxiliar na viabilização do uso ambientalmente orientado da propriedade urbana. 2 A NOVA ORIENTAÇÃO DO USO DA PROPRIEDADE FRENTE AO DEVER DE PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE: FUNÇÃO SOCIOAMBIENTAL DA PROPRIEDADE URBANA Inicialmente, importa situar o leitor acerca dos aspectos relevantes do atual conceito de propriedade, apresentando-se, a partir de breve digressão histórica, como o cumprimento da função social passou a fazer parte dos deveres do proprietário. O direito de propriedade caracteriza-se por sua historicidade. Configura-se em conformidade com os períodos históricos, para que possa adequar-se aos direitos considerados merecedores de tutela jurídica de cada época. A partir das Constituições Mexicana de 1917 e Alemã (Weimar) de 1919, que inauguraram o que ficou conhecido como estado de direito social, sua disposição passou a voltar-se à realização da justiça social. Esse novo parâmetro do direito de propriedade surgiu após os abusos de individualismo verificados com o fim da Revolução Francesa, marco inicial do ideário liberal. Nesse período, os indivíduos, preocupados em garantir a propriedade privada, encararam-na como um direito absoluto e exclusivo, esquecendo-se da coletividade que com ela interagia. No entanto, a sociedade contemporânea demandava, mais do que um Estado formalmente social, um Estado no qual o Poder Público e a população participassem efetivamente na construção de uma nova realidade social, o que fez nascer o estado democrático de direito, caracterizado no Brasil, nas palavras de Matias (s/d), pela funcionalização dos direitos à criação de uma sociedade livre, justa e solidária 5. A Constituição Federal de 1988 traduziu este novo paradigma, através da apresentação de rol extenso de direitos fundamentais que demonstram a solidariedade como fator essencial 5 MATIAS, João Luís Nogueira. Historicidade do direito de propriedade: a marcha rumo à humanização. p. 6 (texto não publicado). 30 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições à vida em sociedade. No que concerne ao direito de propriedade em geral, é nítida a limitação da liberdade individual do proprietário em prol dos interesses sociais, como se pode constatar nas normas dos artigos 5º, XXIII e 170, III. Neste ponto, cabe fazer uma observação: a simples realização de condutas negativas relacionadas ao direito de propriedade se trata de mera limitação ao seu exercício (fator externo). O cumprimento da função social da propriedade, mais do que isso, requer uma conduta positiva do proprietário, com a finalidade de propiciar o máximo de benefício à coletividade. Destarte, é possível encarar a função social como parte da própria essência do conceito de propriedade, que se soma às tradicionais faculdades de usar, gozar, dispor e reivindicar, atuando de forma a nortear todas elas. Desta feita, com esteio no pensamento de Chaves e Rosenvald 6, pode-se afirmar que: A função social consiste em uma série de encargos, ônus e estímulos que formam um complexo de recursos que remetem o proprietário a direcionar o bem às finalidades comuns. Daí a razão de ser a propriedade comumente chamada de poderdever ou direito-função. Contudo, a partir da tomada de consciência do alarmante estágio de degradação ambiental em que a Terra se encontra, a tutela do meio ambiente começou a ser vista como indispensável para garantir a qualidade de vida e a própria sobrevivência humana. A Constituição Federal de 1988 elevou o direito ao meio ambiente equilibrado à condição de direito fundamental, dispondo, em seu art. 225 que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Por figurar no ápice do ordenamento jurídico pátrio, a tutela ambiental irradia-se por todos os ramos da sociedade, de modo a orientar a atuação do Poder Público e limitar a vontade dos particulares. Ademais, o meio ambiente consiste em direito difuso, cuja titularidade ultrapassa o indivíduo, o que impede que ele seja apropriado por qualquer pessoa ou instituição. O meio ambiente é definido no art. 3°, I da Lei n° 6.938/81, que dispõe sobre a Política 6 FARIAS, Christiano Chaves de; ROSENVALD, Nélson. Direitos Reais. 5. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 205. 31 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Nacional do Meio Ambiente, como “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”. Deste modo, consiste num bem composto não só dos recursos naturais, mas também de todo o produto da atuação humana na Terra, como o patrimônio cultural, o espaço urbano e mesmo o meio ambiente do trabalho7. Dessa forma, não se mostra mais satisfatório falar apenas em função social da propriedade, no sentido de abalizamento do direito de propriedade a fim de consolidar os direitos sociais. Forçoso compreender que, diante da gravidade do problema ambiental que se nos afigura, o proprietário deve agir de modo a buscar cumprir também uma função ambiental da propriedade. Esta nova perspectiva traz em seu bojo a idéia de submissão do direito de propriedade às normas de proteção legal do meio ambiente e vem sendo instituída no ordenamento jurídico brasileiro a partir do Código Civil de 2002. O diploma legal, embora não tenha utilizado expressamente o termo função socioambiental da propriedade, traduz com nitidez, no §1° do art. 1.228, a imposição ao proprietário de exercer o direito de propriedade com a preocupação de preservar o meio ambiente e atender às demandas sócio-econômicas: §1º O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas. Do mesmo modo, o texto constitucional, com a alteração sofrida através da Emenda Constitucional n° 42/2003, disciplina a função social e a defesa do meio ambiente como princípios gerais da ordem econômica: Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: III - função social da propriedade; [...] VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme 7 De acordo com Franco Giampietro apud Celso Antônio Pacheco Fiorillo (2010, p. 73) “meio ambiente do trabalho caracteriza-se pelo complexo de bens imóveis e móveis de uma empresa ou sociedade, objeto de direitos subjetivos privados e invioláveis da saúde e da integridade física dos trabalhadores que a freqüentam”. 32 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação. Feita essa breve explanação acerca da função socioambiental da propriedade, notório que este poder-dever, por ser incidente em toda e qualquer espécie de propriedade, relativiza tal direito fundamental sob diversos aspectos. Para fins de nosso estudo, analisaremos sua influência no direito de propriedade urbana. O artigo 182, CF/88 condiciona a atuação do proprietário urbano aos ditames do plano diretor, ao afirmar que a política de desenvolvimento urbano “tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”, e que a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor. Desse modo, é através do plano diretor que o Município intervém na política urbana para garantir o desenvolvimento das funções sociais da cidade. Este, por sua vez, deve seguir o disposto na Lei n° 10.257/01 (Estatuto de Cidade), que estabelece normas gerais sobre o uso da propriedade, regulamentando o dispositivo constitucional no que concerne à função social e ambiental da propriedade urbana. O Estatuto da Cidade, logo no parágrafo único de seu artigo 1º, deixa transparecer o escopo de proteção ambiental a que se dispõe: “estabelece normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental”. A seu turno, o último plano diretor do Município de Fortaleza, que entrou em vigor em 2 de fevereiro de 2009, elenca a função social da propriedade dentre os princípios da Política Urbana e condiciona o seu cumprimento ao desenvolvimento da função socioambiental, a qual, qual conforme §3° do art. 3°, é alcançada quando a propriedade, cumulativamente: I - for utilizada em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental; II - atenda às exigências fundamentais deste Plano Diretor; III - assegurar o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça socioambiental e ao desenvolvimento das atividades econômicas; IV - assegure o respeito ao interesse coletivo quanto aos limites, parâmetros de uso, ocupação e parcelamento do solo, estabelecidos nesta Lei e na legislação dela decorrente; V - assegurar a democratização do acesso ao solo urbano e à moradia; 33 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições VI - não for utilizada para a retenção especulativa de imóvel. As duas legislações responsáveis pela regulamentação do direito de propriedade urbana possuem papel fundamental na garantia de efetividade das demandas sociais e ambientais da sociedade atual. Cabe a elas o desafio de conciliar os direitos fundamentais da dignidade da pessoa humana, do meio ambiente e da propriedade, de modo a “alcançar a harmonia entre o bem-estar da população e a necessária premissa da conservação do meio ambiente saudável” 8. 3 NECESSIDADE DE SUSTENTABILIDADE DAS CONSTRUÇÕES A Construção Civil, setor da economia executor de obras que atuarão como edificações empresariais, públicas e sobretudo residenciais, é o responsável pela concretização do direito de propriedade, estando submetido ao plano diretor e, conseqüentemente, ao dever de cumprimento da função socioambiental da propriedade urbana. No entanto, a realidade tem revelado que, ao contrário do que as normas apregoam e a degradação ambiental impõe, ele tem atuado como grande vilão do desenvolvimento sustentável. Conforme dados da revista Atitude Sustentável9, com base em estatísticas do Green Building Council Brasil, do Ministério de Minas e Energia e da Agência Nacional de Águas: cerca de 45% do consumo de energia e uma proporção parecida de emissão de carbono mundialmente têm origem em edifícios mal planejados ou mal-isolados termicamente; no Brasil, o consumo de energia elétrica em edificações responde por cerca de 42% do consumo total de energia elétrica; o setor urbano é responsável por 26% do consumo de toda água bruta do país e a construção civil responsável por 16% de toda a água potável. Por outro lado, em razão da crescente conscientização do homem acerca das questões ambientais que se levantam na atualidade, o controle e gerenciamento ambiental começam a ganhar relevo na administração de algumas organizações do ramo, o que as leva a incluir a preservação do meio ambiente em seu planejamento estratégico. 8 NEGÓCIO, Carla Daniela Leite; CASTILHO, Ela Wiecko Volmer de. Meio Ambiente e Desenvolvimento: uma interface necessária. In: Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável. THEODORO, Suzi Huff, BATISTA, Roberto Carlos e ZANETI, Izabel (coord.). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 62. 9 RIBEIRO, Gustavo. Minha casa sustentável. Revista Atitude Sustentável. Curitiba, n. 2, p 32, 2010. 34 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições 10 Segundo Reinaldo Dias , quando essa preocupação ultrapassa o objetivo de diminuição de custos e riscos relacionados às sanções legalmente previstas para a reparação dos danos ambientais causados, nasce, a partir daí, uma cultura ambiental, que, ao se espalhar por toda a empresa, a forma como o ambiente externo é encarado modifica-se, passando este a ser um componente que influi significativamente na competitividade da empresa e nas decisões tomadas pelo seu quadro de dirigentes. As construtoras passam, então a projetar e executar as construções sustentáveis, que se apresentam como mecanismo de conciliação entre o meio ambiente e a propriedade privada. Os empreendimentos que se enquadram neste conceito adotam uma série de práticas e materiais na preparação, durante a construção e na manutenção da obra depois de concluída com a finalidade de alcançar uma edificação que não danifique a natureza ou o patrimônio cultural, e que busca contribuir, ainda, para a melhoria da qualidade de vida daqueles que a utilizam, seja para fins de moradia ou como meio de trabalho. 3.1 Os “prédios verdes” O conceito de construções sustentáveis traduz-se num conjunto indeterminado e flexível de medidas, orientadas a partir do pressuposto de uso ambientalmente responsável de tudo aquilo que de alguma forma relaciona-se à construção e utilização de edificações. No intuito de elaborar padrões predefinidos de classificação de obras ambientalmente orientadas, têm se formado, nos últimos anos, várias organizações que emitem certificados para edifícios comerciais, institucionais e residenciais, os quais estão sendo chamados de “prédios verdes”. A certificação ambiental, ou selo verde, é, ao mesmo tempo, instrumento de gestão de empresas e preservação ambiental e deve ser compreendida sob o contexto da economia de mercado atual. Ela permite que o sistema de gerenciamento da organização busque uma otimização do desempenho ambiental de suas atividades, processos e produtos, além de representar rígido controle do processo de melhoria do ciclo de vida dos materiais utilizados e dos impactos ambientais negativos. Os certificados mais conhecidos ao redor do mundo atualmente são: LEED – Leadership in Energy and Environmental Design, HQE - Haute Qualité Environnementale, HK BEAM – Honk Kong Building Environmental Assessment Method e BREEAM – Building Research Establishment Environmental Assessment Method. No entanto, apenas os dois 10 DIAS, Reinaldo. Gestão Ambiental: responsabilidade social e sustentabilidade. 1ª ed. São Paulo: Atlas, 2009. 35 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições primeiros têm sido adotados no Brasil, razão pela qual serão analisados mais detalhadamente neste estudo. 3.2 Sistemas de Certificação Ambiental presentes no Brasil: Leed e Aqua O selo LEED é uma certificação do Green Building Council Institute – GBCI, organização sem fins lucrativos com sede nos EUA, obtida como resultado da análise documental de novos empreendimentos, edificações em reforma, ou mesmo bairros e comunidades. Conforme informações prestadas pela arquiteta Daniela Corcuera11, para a obtenção do sistema LEED vigente, faz-se necessário alcançar um mínimo de 40 pontos, numa escala que chega a 110, distribuídos em requisitos que se enquadram em sete categorias: implantação sustentável, eficiência hídrica, energia e atmosfera, materiais e recursos, conforto ambiental, inovação e projeto, e créditos regionais. As certificações variam entre prata, ouro e platina, a depender da quantidade de pontos obtida. O procedimento de certificação se dá através do preenchimento de formulários, planilhas e envio de documentação digitalizada na plataforma on-line do GBCI. No entanto, a profissional assevera que “a certificação é concedida a edifícios de alta performance ambiental e energética, ou seja, não contempla uma análise dos aspectos sociais” 12 da região, fator que revela uma falha do sistema, uma vez que tais condições são de elevada importância para a viabilidade econômica do empreendimento. Cumpre advertir, ainda, que, embora esteja previsto para o final deste ano a conclusão do projeto de regionalização do certificado LEED para o Brasil13, a classificação ainda toma por base as condições climáticas, geográficas e culturais da região do globo terrestre norte americana, as quais não se adéquam perfeitamente as características ambientais do território brasileiro, tampouco do semi-árido cearense. Por sua vez, a HQE, de origem francesa, lançou recentemente uma versão adaptada às especificidades brasileiras, intitulada Alta Qualidade Ambiental – AQUA. Segundo informações contidas no sítio eletrônico da Fundação Vanzolini, responsável pela adequação do certificado, este consiste num “processo de gestão do projeto visando obter a qualidade 11 CORCUERA, Daniela. Sistema Leed. Disponível em http://www.revistasustentabilidade.com.br/comercial/sistema-leed/?searchterm=LEED. Acesso em 18 de set.2010. 12 Ibid. 13 GBC Brasil. Certificação. Disponível em http://www.gbcbrasil.org.br/pt/index.php?pag=certificacao.php. Acesso 18 de set.2010. 36 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições ambiental de um empreendimento de construção ou de reabilitação”14. Ele pode ser concedido a empreendimentos residenciais e comerciais, públicos ou particulares, desde que alcancem uma qualificação no padrão mínimo de bom em quatorze critérios de desempenho ambiental, relacionados aos impactos ambientais causados no canteiro de obras, na implantação da construção e no seu término, bem como a requisitos de conforto e saúde do usuário. Em entrevista à revista Sustentabilidade 15, Manuel Carlos dos Reis Martins, engenheiro e auditor da Fundação Vanzolini e coordenador executivo da certificação, explica que o processo ocorre em etapas fiscalizadas por auditorias presenciais e independentes entre si. A primeira fase ocorre durante o planejamento do empreendimento (programa), a segunda após a conclusão dos projetos da obra (concepção), e por último, tem-se a fase de realização, quando a obra já foi concluída, a fim de verificar a real observância dos critérios de desempenho. Em todo o Brasil, até agosto deste ano, 19 empreendimentos possuíam a certificação LEED e outros 192 estavam em processo de certificação 16. Quanto ao certificado AQUA, 23 processos foram iniciados, sendo que 15 certificados já foram emitidos 17. No Ceará, há apenas uma obra em construção com uma espécie provisória do selo LEED, a qual foi concedida em junho do corrente ano18. Percebe-se assim, que os selos verdes cumprem o papel de facilitadores da compreensão e da aplicação prática do conceito de construções sustentáveis, podendo ser adotados em toda e qualquer propriedade. Desse modo, utilizar essas certificações como parâmetro para a elaboração de políticas públicas, mostra-se instrumento eficaz de implementação do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado estatuído no diploma constitucional. 14 CASAGRANDE, Bruno. Fundação Vanzolini: Desenvolvimento de Negócios - Processo Aqua. Disponível em http://www.processoaqua.com.br/pdf/ApresentacaoConsolidada200510%20.pdf. Acesso em 18 set. 2010. 15 Revista Sustentabilidade. Fundação Vanzolini apresenta certificação ambiental Aqua. Disponível em http://www.revistasustentabilidade.com.br/noticias/certificacao-aqua-para-empreendimentos-sustentaveis-e-aprimeira-nacional. Acesso em 18 de set. 2010. 16 BARBOSA, Vanessa. Construções Sustentáveis ganham mercado no Brasil. Disponível em http://portalexame.abril.com.br/meio-ambiente-e-energia/noticias/construcoes-sustentaveis-ganham-mercadobrasil-589607.html. Acesso em 17 de set. 2010. 17 CASAGRANDE, op. cit. 18 Portal Jornal Diário do Nordeste. C. Rolim recebe certificação. Disponível em http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=823055. Acesso em 18. set. 2010. 37 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições 4 ASPECTOS POSITIVOS DAS CONSTRUÇÕES AMBIENTALMENTE CORRETAS Para se adequar aos requisitos e determinações exigidas pelos sistemas de certificação ambiental citados, as “construções verdes” devem utilizar produtos e serviços que viabilizem uma menor agressão ao meio ambiente, desde o processo de construção da edificação até sua manutenção, compensando os danos que o meio ambiente tem sofrido com o crescimento desordenado das cidades e, conseqüentemente, da construção civil. Tais construções, a priori, podem parecer desinteressantes aos empresários, na medida em que a utilização de recursos inovadores, em regra, significa aumento considerável dos custos da obra, o que pode acarretar diminuição nos lucros. No entanto, a sociedade, de forma crescente, vem exigindo das empresas maior responsabilidade social e compromisso com a preservação do meio ambiente, de modo que, cada vez mais clientes se disponibilizam a pagar um preço mais elevado pela responsabilidade ambiental que o empreendimento representa. Diante dessa alteração, a construção civil começa a demonstrar que está se adequando aos conceitos de sustentabilidade. Com efeito, no contexto mundial de promoção da preservação ambiental, as empresas devem realmente se adaptar a nova realidade ou se tornarão ultrapassadas em poucos anos. 4.1 O marketing ambiental As pressões públicas e a preocupação com o meio ambiente estão mudando a maneira de se fazer acordos e negócios por todo o mundo. Os novos consumidores estão aumentando a demanda por produtos e serviços ambientalmente corretos oferecidos por organizações socialmente responsáveis. As empresas não são cobradas somente por sua filosofia, mas também por suas estratégias de investimentos e ações diárias efetivas voltadas à preservação do meio ambiente, com o fito de agradar o novo mercado consumidor, aumentando vendas e locações, e manter um bom relacionamento com os órgãos ambientais defensores de projetos sustentáveis. Segundo o engenheiro e gerente técnico do Green Building Council Brasil, Marcos Casado19, “os mais jovens estão começando a exigir de seus fornecedores uma postura mais correta em relação ao meio ambiente, desenvolvendo um dos maiores desafios corporativos deste milênio: o consumo consciente”. Todas essas mudanças de parâmetros na construção civil têm se tornado uma importante 19 CASADO, Marcos. Green Buildings: a onda de prédios verdes chegou definitivamente ao país. Revista Construção e Mercado, São Paulo, nº89, p. 23, dez. 2008. 38 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições ferramenta educacional e de comunicação com o consumidor, além de criar parâmetros de qualidade para o mercado. 4.2 Operacionalidade com maior eficiência e menores custos Os “prédios verdes” não se caracterizam por um modismo da construção civil, mas, sim, por uma necessidade ambiental de um mundo em crise, com receio de colapso da disponibilidade de seus recursos naturais, diante do estágio preocupante de degradação ambiental a que chegamos. Via de regra, a execução de um projeto de edifício sustentável implica em utilização de materiais de alto grau de sofisticação e tecnologia, o que requer maior investimento financeiro inicial. Nos Estados Unidos, estudos estatísticos indicam que são gastos em média de 1% a 7% a mais nessas edificações. No Brasil, há uma tendência de se gastar de 5% a 10% a mais em edifícios comerciais e 2 a 4% a mais nos residenciais 20. No entanto, o retorno econômico a médio e longo prazo é certo e evidente, tanto em se tratando da diminuição dos assustadores dados de agressão ao meio ambiente, quanto em relação à economia feita pelos usuários da obra depois de concluída. Em geral, uma construção verde pode reduzir em 30% o consumo de energia, em 50% o consumo de água, em 35% as emissões de gás carbônico e até a totalidade do descarte de resíduos 21. Com a redução das principais despesas do cotidiano do prédio, a taxa de condomínio tende a diminuir de forma considerável, o que torna os “prédios verdes” mais atrativos a seus usuários. Ademais, o valor patrimonial do empreendimento se mantém valorizado ao longo do tempo, na medida em que utiliza materiais mais dispendiosos na sua construção, mas que promovem uma efetiva economia a longo prazo, de maneira que os custos para adquiri-los são suavizados pela economia gerada após a conclusão da obra. As condições de conforto, saúde e estética também são requisitos importantes para o julgamento de uma construção verde. Tais critérios colaboram para o aumento da produtividade daqueles que trabalham no local, pois promovem um agradável meio ambiente de trabalho, deixando funcionários satisfeitos em realizar suas atividades nesse tipo de estabelecimento. Assim, um ambiente de trabalho equilibrado e causador de bem-estar influencia 20 SANTOS, Altair. prédios verdes: o que é isso? Disponível em http://www.cimentoitambe.com.br/massacinzenta/predio-verde-o-que-e-isso/. Acesso em 16 de set. 2010. 21 CASADO, op. cit., p. 17. 39 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições diretamente na produção das empresas e no aprendizado em caso de instituições de ensino. O arquiteto Volker Hartkopf, professor titular do curso de arquitetura da Universidade Carnegie Mellon, nos Estados Unidos, afirma que “os projetos de edifícios verdes são mais caros. Aos poucos, porém, as companhias estão percebendo que o investimento compensa a médio e longo prazo, em termos de redução de custos e ganhos de produtividade dos funcionários” 22. Nos “prédios verdes”, também há um maior gerenciamento das fontes poluidoras externas e internas, como emissão de gás carbônico e descarte de resíduos, para que não prejudiquem o meio ambiente e nem os freqüentadores e usuários da edificação, além de preservar indiretamente a qualidade de vida dos vizinhos da edificação. 4.3 Benefícios Socioambientais Com a união de consumidores satisfeitos, empresas socialmente compromissadas e um mercado de negócios consciente, o meio ambiente é beneficiado nos mais variados aspectos. Nos “prédios verdes”, a energia proveniente de usinas hidroelétricas (água), usinas térmicas (queima de combustível) ou usinas nucleares (fissão e fusão de átomos) é utilizada de forma racional e planejada. Em alguns casos, a edificação chega a ser até mesmo energeticamente auto-sustentável, pois a quantidade de energia de que necessita pode ser produzida através de placas solares ou de aerogeradores implantados no próprio edifício. Embora cada “prédio verde” possa seguir um modelo singular de gestão de energia, o consumo reduzido de um empreendimento não significa necessariamente uma menor produção de energia por parte das fontes energéticas tradicionais. Para atingir um patamar considerável de diminuição da demanda de energia, é fundamental que tais atitudes sejam implementadas em larga escala na construção civil. A água, por sua vez, é um recurso natural não renovável, reconhecido atualmente como risco natural. Sua preservação influi no compromisso constitucional de um meio ambiente equilibrado para as presentes e futuras gerações. O uso diário da água nas atividades dos “prédios verdes”, desde o processo de sua construção, é ambientalmente planejado, dando-se ênfase às possibilidades de seu reuso, por exemplo, por meio de dutos captadores e de reservatórios de água da chuva. O gás carbônico é um dos principais agentes causadores do Efeito Estufa, sendo a 22 HERZOG, Ana Luiza. Os prédios verdes são mais lucrativos. Disponível em http://planetasustentavel.abril.com.br/noticia/desenvolvimento/conteudo_231676.shtml. Acesso em 16 de set. 2010. 40 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições construção civil, conforme exposto anteriormente, responsável por mais de um terço de sua emissão, em termos mundiais. A diminuição da difusão de agentes nocivos como este, o que é alcançado pela utilização de aparelhos energéticos mais eficientes e dotados de um sistema de geração de energia predominantemente limpa, com baterias para armazenar a eletricidade, também contribui para diminuir a agressão ao meio ambiente. 5 O PAPEL DO ESTADO NO FOMENTO ÀS CONSTRUÇÕES VERDES: POLÍTICAS PÚBLICAS A função que o Estado representa em nossa sociedade sofreu grandes transformações ao longo dos anos. Com a expansão da democracia, deixou de exercer apenas a defesa e segurança públicas, passando a ser verdadeiro responsável pelo bem-estar social de seu povo. Para tanto, porém, é preciso que o Estado desenvolva uma série de ações, em diferentes áreas, tais como saúde, educação e meio ambiente, ações estas chamadas de políticas públicas. Diante da situação de crise de escassez dos recursos naturais em escala mundial, o Estado não pode se omitir da constante elaboração de tais políticas, responsáveis por garantir e induzir modelos que disseminem o aperfeiçoamento contínuo das práticas de sustentabilidade. O Poder Público pode e deve criar mecanismos diferenciados para tornar mais atrativa a construção dos “prédios verdes”, assunto em destaque neste artigo, como reduzir a alíquota de IPTU – Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana, incentivar a implantação de coleta seletiva do lixo, conceder mais espaço aos projetos de prédios que tenham a pavimentação verde e capacitar profissionais do setor imobiliário para este fim. Os dois maiores inimigos da sustentabilidade são o desperdício e a baixa produtividade, uma vez que as tecnologias evoluíram, mas as cidades estão visivelmente menos saudáveis e seus moradores com menor qualidade de vida. Nesse contexto, novas idéias e procedimentos são vitais para o compartilhamento de uma realidade ecologicamente sustentável, e para que esta seja perene e definitiva. Porém, para tanto, é fundamental que o Poder Público transmita ao setor da construção civil o seu empenho em fazer da construção ambiental uma prioridade. Em países como Estados Unidos, Japão e membros da Comunidade Européia, já existem incentivos para os empresários ou pessoas comuns que optem por construções ambientalmente corretas. E, mesmo aqueles que não dispõem de recursos para investir em uma casa nova podem aproveitar certos auxílios do governo para realizar pequenas 41 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições 23 reformas . No Brasil, não se pode apontar grandes avanços do governo no intuito de elaborar políticas incentivadoras dos “prédios verdes”. Porém, algumas ações deveriam ser executadas, de forma ampla e abrangente, pelo Estado, em prol de um efetivo desenvolvimento dos projetos relativos às construções verdes e à disseminação de uma consciência sustentável a sociedade atual. Os principais estímulos ainda são, em regra, com fins de redução do consumo de energia, através da exigência do selo Procel (Programa de Conservação de Energia Elétrica) ao se comprar um produto elétrico, evidenciando que este consome menos energia, e incentivos na área fiscal/tributária, o que tem ocorrido por meio da aplicação de alíquotas diferenciadas de impostos como o ICMS (Imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual, intermunicipal e de comunicação) e o IPTU. Em Fortaleza, por exemplo, foi sancionada, em março deste ano, Lei Municipal que prevê redução de 5% da alíquota de IPTU dos condomínios que executarem coleta seletiva de resíduos sólidos. Essa atitude demonstra o início de uma era de mudança de paradigmas, que utiliza a caracterísitca da extrafiscalidade dos tributos para estimular atitudes positivas ao meio ambiente na sociedade O Estado também pode se utilizar de seu poder de compra para adquirir projetos ambientalmente orientados, apoiando empreendimentos residenciais ou comerciais com certificação ambiental, o que acaba por propagar as certificações indutoras dessas edificações (LEED e AQUA) para que a sociedade as conheça e exija. Desta feita, mostra-se primordial a publicidade destas inovações do setor da construção civil, para que investidores se interessem em atuar de forma ambientalmente correta e a sociedade possa reconhecer isso. Além disso, os municípios, através de suas leis internas, podem elaborar um Planejamento Urbano compromissado com as idéias de sustentabilidade e cumprimento da função social da propriedade urbana. Finalmente, os prédios pertencentes ao Governo devem adequar-se aos novos parâmetros das construções verdes, tantos em novas edificações, quanto em reformas de 23 FARIA, Caroline. Construção Sustentável. Disponível em http://www.infoescola.com/ecologia/construcaosustentavel/. Acesso em 18 de set. 2010. 42 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições prédios já existentes, como, por exemplo, pleiteando certificações ambientais, o que comprova que o Poder Público reconhece a importância desses projetos para o mercado e para a preservação ambiental. 5.1 Projeto de Lei n° 34/2007 propõe incentivos à construção urbana ambientalmente correta no Brasil O Deputado Federal Cassio Taniguchi é autor do Projeto de Lei nº 34/2007, que propõe alterações no Estatuto da Cidade, com a finalidade de oferecer incentivos ao uso racional do solo urbano como medida de redução dos impactos ambientais. O texto, já aprovado pelo Senado Federal e pelas comissões temáticas permanentes da Câmara dos Deputados, aguarda ser apreciado no plenário da Câmara. O projeto em comento altera os artigos 32 e 33 dos Estatuto das Cidades (Lei n°10.257/2001), acrescentado os seguintes incisos: Art. 32 - Lei municipal específica, baseada no plano diretor, poderá delimitar área para aplicação de operações consorciadas. (...) § 2o Poderão ser previstas nas operações urbanas consorciadas, entre outras medidas: (...) III – a concessão de incentivos a operações urbanas que utilizam tecnologias visando à redução de impactos ambientais, e que comprovem a utilização, nas construções e uso de edificações urbanas, de tecnologias que reduzam os impactos ambientais e economizem recursos naturais. Art. 33 - Da lei específica que aprovar a operação urbana consorciada constará o plano de operação urbana consorciada, contendo, no mínimo: (...) VIII – natureza dos incentivos a serem concedidos aos proprietários, usuários permanentes e investidores privados, uma vez atendido o disposto no item III do §2º do art. 32 desta Lei. O conceito de “operações urbanas consorciadas” é definido pelo próprio Estatuto das Cidades, em seu artigo 32, §1°, que dispõe, in verbis: § 1o Considera-se operação urbana consorciada o conjunto de intervenções e medidas coordenadas pelo Poder Público municipal, com a participação dos proprietários, moradores, usuários permanentes e investidores privados, com o objetivo de alcançar em uma área transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a valorização ambiental. 43 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições O Estatuto é importante marco regulatório da gestão do meio ambiente artificial, sendo suas ações conjuntas meios de garantia do cumprimento da função social da propriedade e de um melhor aproveitamento do solo urbano. A mudança nos artigos desse diploma legal visa criar normas programáticas, pelas quais possam surgir possibilidades de incentivo a empreendimentos da construção civil, que utilizem práticas sustentáveis nas fases de planejamento, execução das obras e uso das edificações. O projeto não objetiva diminuir os investimentos da iniciativa privada nesse setor. Ao contrário, procura incentivar ações de mercado coerentes com uma moderna visão social, em que se conciliam os princípios liberais e os valores ambientais, pretendendo estimular a sociedade a construir uma nova concepção de moradia e utilizá-la em larga escala, mesmoque custem preços um pouco mais elevados. Analisando as alterações propostas, também se percebe o chamado de cooperação incluindo estados e municípios, que terão abertura de adequarem o conceito de Construção Sustentável a suas necessidades. A aprovação do presente projeto seria de grande importância para uma maior efetivação dos parâmetros sustentáveis na construção civil, incentivando investidores a apoiar tais edificações e se adequar às novas exigências de mercado. 5.2 Incentivos Fiscais: ICMS Ecológico e IPTU Ambiental A Tributação Ambiental é instrumento de gestão e preservação do meio ambiente, visto que aplicar direcionamentos a certos tributos, mesmo de forma desvinculada, é meio de gerenciamento dos recursos naturais e aprimoramento da consciência ambiental. O artigo 170, IV, da Constituição Federal autoriza a utilização dos tributos como mecanismos indutores de atividades econômicas, através de benefícios fiscais positivos ou negativos. Assim, a Tributação Ambiental é medida fundamental para construir uma nova orientação de mercado, pois a atividade do Fisco não se resume a sua função arrecadatória, atuando também com alíquotas específicas de certas atividades e orientação de políticas públicas (extrafiscalidade). O ICMS e o IPTU, por se tratarem de impostos, são tributos que têm por fato gerador uma situação independente de qualquer atividade estatal específica relativa ao contribuinte, 44 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições conforme artigo 16 do Código Tributário Nacional 24. Ou seja, não estão atrelados a nenhuma ação direcionada ao contribuinte ou por ele provocada. Tal assertiva tem lugar também na Constituição Federal, em seu artigo 167, IV25, que dispõe sobre a não vinculação do produto arrecadado pelos impostos a fundo, órgão ou despesa. Diante dessa afirmação, poderia-se concluir que os valores de arrecadação provenientes de impostos não podem ser destinados a custear a proteção ambiental, em nenhuma de suas formas. Porém, segundo os autores Celso Antonio Pacheco Fiorillo e Renata Marques Ferreira26, essa interpretação não é correta: Isso não quer dizer, no entanto, que nossa Constituição não tenha amparado determinados impostos e lhes conferido, indiscutivelmente, como no caso do IPTU, natureza típica de tributo ambiental, imposto direcionado à viabilização de uma bem ambiental, como as cidades. Não só o IPTU apresenta feição ambiental. O ICMS é de competência dos Estados e do Distrito Federal e apresenta-se como imposto atrativo de determinados nichos de mercado, quando possui alíquotas diferenciadas, reduzidas ou isentas. Na visão dos mesmos autores 27, tal imposto é: Tributo estadual de maior relevância para os estados da federação, o ICMS vem sendo utilizado desde 1991 por alguns Estados com típica indicação ambiental. Conhecido por ICMS Ecológico, sua utilização no sentido da viabilização de atividades “menos degradadoras” nos Municípios vem sendo importante fonte de gestão ambiental.. 5.2.1 Redução da alíquota de ICMS para Ecoprodutos na construção civil O mercado para tecnologias e produtos sustentáveis no Brasil apresenta resultados e oportunidades reais diante do fenômeno das construções verdes. Segundo pesquisa do Ibope, realizada em 2007, 52% dos consumidores brasileiros já estavam dispostos a comprar produtos de fabricantes que não agridem o meio ambiente mesmo que tivessem que pagar a 24 CTN. Art. 16 - Imposto é o tributo cuja obrigação tem por fato gerador uma situação independente de qualquer atividade estatal específica, relativa ao contribuinte. 25 Art. 167 - São vedados: (...) IV - a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa (...). 26 FIORILLO, Celso A. Pacheco. FERREIRA, Renata Marques. Direito ambiental tributário. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 57. 27 Ibid., p. 115. 45 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições 28 mais por isso . Para atender a nova demanda de clientes diferenciados e compromissados com a preservação ambiental, o setor de construção precisa, muitas vezes, importar produtos sustentáveis específicos para tais edificações ou comprá-los no mercado interno por um preço bem mais elevado, além dos altos impostos. Uma forma de atuação do Estado para incentivar que os empresários aderissem ao ramo da construção ambientalmente correta seria reduzir os impostos atrelados a esses produtos (ecoprodutos). Formas de redução ou isenção tributária contribuiriam para consolidar o mercado da sustentabilidade no Brasil, estimulando a adoção de novos padrões de produção e tecnologias mais limpas pelas empresas, sem transferir os custos dessa transformação mercadológica para o consumidor. Para Roque Carrazza29, “da concepção do tributo como meio de obtenção de recursos avançou-se para a idéia de que ele pode e deve ser utilizado para favorecer a realização dos mais elevados objetivos sociais, econômicos e políticos”, não servindo somente para atingir fins arrecadatórios, mas, sim, para atuar como instrumento de regulação de mercado e incentivo a ações de preservação ao meio ambiente. Portanto, fica evidente que a diminuição ou isenção das alíquotas de ICMS para os produtos e serviços sustentáveis seria ferramenta importante para tornar os “prédios verdes” mais interessantes para os construtores, na medida em que iam representar menores custos para os investidores da área. 5.2.2 O IPTU Ambiental e os “prédios verdes” É de fácil percepção que, com o advento do Estatuto da Cidade 30, o IPTU tornou-se instrumento de efetivação da função social da propriedade diante do chamado meio ambiente artificial, na medida em que consideramos as cidades com natureza de bem jurídico ambiental. Entendemos que para cumprir a já referida função social de forma devida, a proteção e preservação do meio ambiente é medida fundamental, devendo o poder público municipal 28 LOPES, Juliana. Os desafios e oportunidades para a consolidação do mercado de tecnologias sustentáveis no Brasil. Disponível em http://www.ideiasocioambiental.com.br/revista_conteudo.php?codConteudoRevista=302. Acesso em 18 de set. 2010. 29 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 21 ed. rev. ampl. e atual. até a EC n. 48/2005. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 659. 30 Estatuto da Cidade. Art. 47 - Os tributos sobre imóveis urbanos, assim como as tarifas relativas a serviços públicos urbanos, serão diferenciados em função do interesse social. 46 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições utilizar o IPTU para alcançar tal desiderato. Trazendo essa realidade de instrumentalidade do IPTU aos “prédios verdes”, uma edificação nesses termos, através dos incentivos fiscais, pode contribuir para tal imposto de forma diferenciada e reduzida, atraindo a atenção dos empresários do ramo imobiliário e dos próprios usuários/compradores, que por usufruir deste benefício fiscal ao longo dos anos, procurarão adquirir construções com essa qualificação para pagarem um valor reduzido. As diferenciações na cobrança desse imposto podem apresentar-se de três tipos: - IPTU Ambiental Preservacionista: é forma de tributação reduzida da propriedade territorial urbana, de forma a diminuir o valor do imposto ou isentar o contribuinte, na medida em que se verifique a real preservação do meio ambiente, que engloba a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, evitando a poluição do ar e das águas. Todas essas atuações de proteção podem ser encontradas conjuntamente nos “prédios verdes”. - IPTU Ambiental Repressivo: é forma de majoração do imposto, aumentando o valor de contribuição de quem cause gravames ao meio ambiente, em toda a sua dimensão e diversidade. - IPTU Ambiental Progressivo no tempo: a Constituição Federal autoriza aos Municípios a aplicação da progressividade desse imposto em relação ao incorreto aproveitamento do solo, nos termos de lei municipal própria. No âmbito ambiental, é preciso interpretar o dispositivo diante do caso concreto. Se a hipótese de incidência está atrelada a preservação ambiental é IPTU Ambiental Preservacionista. Se importar em descumprimento da função social da propriedade cabe IPTU Ambiental Progressivo. A aplicação de contribuições de IPTU diferenciadas por parte dos Municípios, em suas respectivas leis internas, é atividade propulsora do avanço dos “prédios verdes”, pois deixam tais investimentos mais interessantes aos olhos do mercado, tanto para fornecedores quanto para consumidores. Os incentivos fiscais nessas áreas demonstram o compromisso do Poder Público com a preservação ambiental e seu apoio à nova mentalidade sustentável do mundo moderno. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS O dever de proteção ao meio ambiente, mais proeminente a cada desastre ecológico que se presencia, vem interferindo cada vez mais nas ações da sociedade. O direito de propriedade 47 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições é relativizado pela função socioambiental da propriedade, a atividade empresarial busca meios de aliar tecnologia à preservação ambiental e o Estado institui normas e desenvolve programas no intuito de amenizar os danos e promover a educação ambiental. Nesse contexto, no Brasil, o setor da Construção Civil, responsável por um enorme impacto ambiental, se vê diante do dilema de atender, ao mesmo tempo, às demandas estruturais, habitacionais e mercadológicas de um país que se desenvolve a passos largos, mas que sofre com os resultados de décadas de crescimento urbano desordenado. Como forma de solucionar esta árdua questão, despontam as “construções verdes”, as quais, a partir da utilização de produtos e técnicas menos agressivos à natureza, acabam por elevar o bem estar de quem participa de sua execução e daqueles que vão usufruir da obra depois de concluída. No entanto, a sustentabilidade de uma edificação pode ser alcançada das mais diversas formas, o que tem levado instituições ao redor do mundo a tentar estabelecer os critérios mais relevantes para a classificação de um empreendimento como “verde”, e cuja observância finda na concessão de uma certificação ambiental. Assim, certificados como o LEED e o AQUA funcionam como verdadeiros selos de compromisso de certa edificação com o meio ambiente, dando maior segurança ao novo mercado consumidor que procura depositar seus investimentos em projetos desse tipo. Diante dos inegáveis benefícios socioambientais que as construções ambientalmente orientadas proporcionam, não é aceitável que o Estado mantenha-se inerte. Ao contrário, ele pode e deve estimular a propagação de tais empreendimentos por meio de políticas públicas que se desdobram em incentivos fiscais, programas educacionais e mesmo na adaptação de prédios públicos aos padrões de sustentabilidade. Num primeiro momento, aconselhável o aproveitamento dos critérios adotados pelas instituições emissoras de certificados ambientais como parâmetro norteador da implementação dessas ações governamentais, haja vista o caráter emergencial do tema ora exposto. Imperioso atentar, porém, para o fato de que essas certificações têm origem internacional, de modo que, ainda que sofram adaptações, podem não se adequar perfeitamente à realidade brasileira e menos ainda, à nordestina. O estado cearense, por exemplo, tem problemas e soluções específicas quando o assunto é proteção ambiental. Voltando-se para este fato, através de apoio aos estudos desenvolvidos em âmbito local, talvez torne-se possível alcançar a efetivação do direito ao meio ambiente 48 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições ecologicamente equilibrado da maneira como a Constituição Federal estabelece e o a realidade ambiental requer. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Josimar Ribeiro de. Normalização, Certificação e Auditoria Ambiental. Rio de Janeiro: Thex, 2008. ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 11ª ed. Rio Grande do Sul: Lumen Juris, 2008. BARBOSA, Vanessa. Construções Sustentáveis ganham mercado no Brasil. Disponível em http://portalexame.abril.com.br/meio-ambiente-e-energia/noticias/construcoessustentaveis-ganham-mercado-brasil-589607.html. Acesso em 17 de set. 2010. CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 21 ed. rev. ampl. e atual. até a EC n. 48/2005. São Paulo: Malheiros Editores, 2005. CASADO, Marcos. Green Buildings: a onda de “prédios verdes” chegou definitivamente ao país. Revista Construção e Mercado, São Paulo, nº89, dez. 2008. CASAGRANDE, Bruno. Fundação Vanzolini: Desenvolvimento de Negócios - Processo Aqua. Disponível em http://www.processoaqua.com.br/pdf/ApresentacaoConsolidada200510%20.pdf. Acesso em 18 set. 2010. CORCUERA, Daniela. Sistema Leed. 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Disponível em http://www.biblioteca.sebrae.com.br/bds/BDS.nsf/E0008A0F54CD3D43832575A80057019E /$File/NT00040D52.pdf, Acesso em 18 de set. 2010. 50 O IPTU PROGRESSIVO NO TEMPO E OS PRINCIPIOS DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E DA PRESERVAÇÃO DO MEIO AMBIENTE Carlos Araújo Leonetti 1 RESUMO: A Constituição de 1988 inovou substancialmente no reconhecimento da importância do princípio da função sócio-ambiental da propriedade, explicitando alguns dos instrumentos para sua consecução. Dentre estes instrumentos, se destacam o uso de alíquotas do IPTU progressivas no tempo e a obrigatoriedade de adoção de plano diretor, para cidades com mais de 20.000 habitantes. Ambos os instrumentos, além de outros, estão disciplinados na Lei 10.257/2001, mais conhecida por Estatuto da Cidade. Infelizmente, constata-se que, mais de vinte anos após a promulgação da Carta de 1988 e quase dez depois da edição do Estatuto da Cidade, na prática, pouco mudou. Isto, porque a implementação dos instrumentos referidos exige lei específica municipal, o que esbarra na falta de vontade política dos governantes e parlamentares. PALAVRAS-CHAVE: Função social da propriedade,Mmeio ambiente; IPTU; Estatuto da Cidade. ABSTRACT: The 1988 Brazilian Constitution has substantially innovated in recognizing the importance of the principle of social and environmental function of property, explaining some of the instruments for their achievement. Among these instruments, we highlight the use of the progressive in time property tax rates and mandatory adoption of master plans for cities with more than 20.000 unhabitants. Both instruments, among others, are regulated by Federal statute 10.257/2001, better known as the Cities Statute. Unfortunately, it appears that more than twenty years after the promulgation of the 1988 Constitution and almost ten after the release of the Cities Statute, in practice, little has changed. This is because the implementation of these instruments requires specific municipal statutes, which touches on the lack of political will of governments and legislators. KEY WORDS: property social role; environment; brazilian urban real state tax; brazilian urban law satute. 1 CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE O IPTU O IPTU, imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana, é tributo de competência privativa dos Municípios e do Distrito Federal (Constituição, art. 156, I, c/c art. 147, in fine.) Excepcionalmente, a União pode instituí-lo e cobrá-lo sobre os imóveis situados 1 Professor da graduação e da pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. Procurador da Fazenda Nacional. A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições em Território Federal não dividido em Municípios (CF, art. 147.) Segundo o art. 32 do Código Tributário Nacional - CTN , a hipótese de incidência do IPTU é a propriedade, o domínio útil ou a posse, de bem imóvel por natureza ou acessão física, como definido no Código Civil, situado na zona urbana do Município, desde que servido por, no mínimo, dois dos melhoramentos arrolados no parágrafo 1o daquele dispositivo. A propriedade é o direito real por excelência, que confere ao seu titular os direitos, ou atributos, de uso, gozo e disposição da coisa, além do de poder reavê-la de quem quer que injustamente a possua (Código Civil, art. 524.) Domínio útil, por seu turno, é o nome dado, pelo Código Civil (arts. 678 e ss.), ao conjunto de atributos conferidos ao titular de enfiteuse, aforamento ou emprazamento, direito real em favor de terceiro, não proprietário do bem, que lhe permite agir quase como se o fosse. Nos dias atuais, a enfiteuse, no Brasil, como instituto de direito privado, é praticamente inexistente, na prática. O aforamento subsiste, em regra geral, tão-somente como instituto de direito público, em especial, o administrativo, incidindo sobre os imóveis federais denominados de terrenos de marinha (Decreto-lei 9.760/46.) Finalmente, a posse é uma situação essencialmente fática que consiste no comportamento, por parte de alguém, pessoa física, jurídica ou a esta equiparada, como se fosse proprietário de um determinado bem, sendo-o, ou não. É o que se depreende do art. 485 do Código Civil, de nítida inspiração na teoria objetivista da posse preconizada por JHERING, conforme reconhecimento unânime da doutrina pátria, e que a conceitua, ainda que de forma oblíqua, como o exercício de fato, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes ao domínio. Em outras palavras, no direito brasileiro, a posse é relação de fato entre a pessoa e a coisa, tendo em vista a utilização econômica desta. É a exteriorização da conduta de quem procede como normalmente age o dono. É a visibilidade do domínio. No entanto, conforme muito bem observa SACHA CALMON NAVARRO COÊLHO (2001, p. 516/519), apesar de o CTN, em seu art. 34, incluir o possuidor a qualquer título entre os contribuintes do IPTU, não é qualquer posse que autoriza a exigência, do seu titular, do imposto: apenas aquelas hipóteses em que o possuidor se comporta como se legítimo proprietário do imóvel fosse. Assim, o locatário, o comodatário, e outros que a estes se assemelham, não são contribuintes do IPTU. Com razão o tributarista mineiro: somente há sentido em tributar-se, em sede de IPTU, a 52 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições mera posse, quando esta é exercida como se autêntica propriedade fosse, isto é, naquelas hipóteses, muito comuns no Brasil, ainda que, de modo especial, nas áreas rurais, em que o possuidor do bem se julga o seu efetivo senhor e, de fato, o é, apenas não detendo o necessário título de domínio. Por outro lado, nos casos de desdobramento da posse, v.g., locação, comodato, depósito, penhor, etc., revela-se, inteiramente, descabida a exigência do imposto do possuidor direto do bem (o locatário, comodatário, depositário, credor pignoratício, etc.), devendo sê-lo do seu proprietário, via de regra, conhecido, ou conhecível, pelo Fisco. Os autores costumam situar o IPTU entre os chamados impostos reais, i. é aqueles em cuja quantificação não se leva em conta aspectos pessoais do contribuinte, como ocorre, por exemplo, ainda que não na medida desejável, com o imposto de renda – pessoa física. ALFREDO AUGUSTO BECKER (1972, p. 390/394) vê o IPTU como um autêntico imposto sobre a existência de direitos, no caso o de propriedade de um bem imóvel, no que é aplaudido por NAVARRO COÊLHO (2001, p. 516/519), que lembra que o núcleo da hipótese de incidência é o direito real da pessoa e não, a coisa. COÊLHO rejeita, outrossim, a posição da doutrina tradicional que classifica o IPTU como tributo real, entendendo que tal classificação não se reveste de caráter jurídico. Contrariando o ensinamento de ALIOMAR BALEEIRO(2001, p. 253/256), para quem o IPTU é velho, na competência dos Municípios brasileiros, HUGO DE BRITO MACHADO(2004, p. 368/374) lembra que o IPTU figurava, na primeira Constituição republicana, como um imposto de competência dos Estados, passando à alçada municipal a partir da Carta de 1934. Na verdade, o texto constitucional, a partir da Emenda 18/65, cinge o campo de incidência do IPTU à propriedade predial e territorial urbana, ao passo que o art. 32 do CTN, como já exposto anteriormente, inclui o domínio útil e a posse entre suas hipóteses de incidência, configurando-se, assim, uma aparente exorbitância da lei. No entanto, tal contradição entre o texto legal e o constitucional é, apenas, aparente, posto que a teoria objetivista da posse, de JHERING, adotada, majoritariamente, pelo Código Civil brasileiro, conforme já visto, permite, perfeitamente, entender-se a posse incluída na expressão propriedade, na forma utilizada pelo constituinte. Isto é, parece claro que o constituinte quis permitir a tributação do patrimônio do contribuinte, na parte em que este é integrado por imóveis urbanos. Assim, se uma determinada pessoa tem como seu um imóvel 53 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições urbano, o qual representa, em seu patrimônio, um determinado valor, deve pagar o IPTU devido, ainda que não tenha título de domínio. 2 A PROGRESSIVIDADE DAS ALÍQUOTAS DO IPTU As alíquotas do IPTU são as fixadas pelo respectivo Município, por meio de lei. Em princípio, o Município goza de inteira liberdade para fazê-lo, condicionado, por óbvio, ao respeito aos princípios constitucionais tributários, sejam explícitos ou implícitos. Assim, no estabelecimento das alíquotas aplicáveis ao IPTU como, de resto, aos demais impostos, o legislador municipal deverá atentar para que não se fira, por exemplo, os princípios da isonomia tributária e da vedação do uso de tributo com efeito de confisco (CF, art. 150, II e IV.) Quanto a este último, cumpre lembrar que não se aplica nas hipóteses em que o imposto é utilizado, preponderantemente, como tributo extra-fiscal, como, v.g., instrumento de estímulo para o cumprimento da função social da propriedade. Os tributos podem ser regressivos ou progressivos. O tributo é regressivo quando sua onerosidade RELATIVA cresce na razão inversa da capacidade econômica (ou contributiva) do contribuinte; i. é, quanto mais pobre o sujeito passivo, maior será o peso relativo do imposto. É o caso dos tributos indiretos em geral (aqueles em que o ônus financeiro é suportado por outra pessoa, o consumidor final, diferente da do contribuinte de direito; v.g. IPI, ICMS, ISS, COFINS, etc.) e da maioria dos tributos diretos (v.g., IPVA, ITBI, e o próprio IPTU, como regra geral.) Já no tributo progressivo, sua onerosidade relativa (i. é, o peso do valor devido) cresce na medida em que aumenta a capacidade contributiva do contribuinte. Ou seja: os mais ricos pagam proporcionalmente mais do que os mais pobres. O exemplo típico de imposto progressivo é o imposto de renda - pessoa física, embora, atualmente, com a redução das faixas de renda a, apenas, três, a sua progressividade resta prejudicada. Sob a égide das Cartas de 1946 e de 1967/69, o Supremo Tribunal Federal consagrou o entendimento segundo o qual o uso de alíquotas progressivas para o IPTU, proporcionalmente ao número de imóveis do contribuinte, era inconstitucional, o que foi consubstanciado na Súmula 589. A Constituição de 1988 inovou, nesta matéria, ao prever o uso da progressividade, em sede de IPTU, em duas situações: a) em respeito ao princípio da capacidade contributiva, insculpido no art. 145, par. 1º, da 54 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Constituição e aplicável, "sempre que possível", aos impostos; b) para conferir eficácia ao princípio da "função social da propriedade", conforme determina o já citado par. 1º do art. 156, além do art. 182, par. 4º, ambos relativamente ao IPTU, e, ainda, o art. 153, par. 4º , com referência ao ITR. Assim, pode dizer que há previsão constitucional de dois tipos distintos de progressividade, em sede de IPTU, a saber: a progressividade simples, i. é, a adoção de alíquotas variáveis, proporcionais à base de cálculo do imposto (IPTU e ITR;) é a prevista nos arts. 153, par. 4º , II e 156, par. 1º); a progressividade no tempo, ou seja o uso de alíquotas crescentes com o passar do tempo (aumentando a cada ano, por exemplo), prevista, de forma expressa, apenas para o IPTU e subordinada a normas a serem veiculadas por lei federal, ainda não editada. Na chamada progressividade simples, a alíquota adotada não cresce com o tempo mas, em função de outros parâmetros relacionados ao contribuinte, tais como: valor da base de cálculo global do imposto, número de bens imóveis de sua propriedade, domínio útil ou posse, área total dos imóveis, etc. Em razão do entendimento adotado pelo STF, proveu-se a aprovação da Emenda Constitucional 29, de 13 de setembro de 2.000, pela qual alterou-se a redação do parágrafo 1º. do art 156, deixando-se claro que o IPTU “pode ser progressivo em razão do valor do imóvel.” Na doutrina, mesmo antes da EC 29/2000, contudo, vozes não faltavam em prol da admissão da progressividade, como regra geral, em sede de IPTU. HUGO DE BRITO MACHADO(2004, p. 368/374), por exemplo, sustenta que a progressividade nas alíquotas do IPTU já era admitida pela Constituição anterior e o continua sendo, de forma ainda mais explícita, pela atual. São suas as palavras: Em face da Constituição Federal de 1988 voltou a reinar divergência em torno da validade do IPTU progressivo. Em síntese, tem sido sustentado que o parágrafo 1 º do art. 156 da vigente Constituição, segundo o qual o IPTU "poderá ser progressivo, nos termos de lei municipal, de forma a assegurar o cumprimento da função social da propriedade", não autoriza outra forma de progressividade para este imposto além da prevista pela própria Constituição, em seu art. 182, parágrafo 4º, inciso II. Não obstante defendida por tributaristas os mais eminentes, a tese não nos parece procedente. Em primeiro lugar, porque não é razoável admitir tenha a Constituição utilizado a norma do art. 156, parágrafo 1º, inutilmente, e a prevalecer a interpretação segundo a qual é inadmissível outra progressividade que não seja a do art. 182, parágrafo 4 º, a regra do art. 156, parágrafo 1º restaria absolutamente inútil, podendo ser excluída do 55 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições texto constitucional sem lhe fazer qualquer falta. [...] Em segundo lugar, porque não se pode deixar de Ter em conta a técnica legislativa utilizada pelo constituinte de 1988. A Constituição de 1988 trata de cada assunto em seu lugar, podendo ser a relativa autonomia no trato, ali, de cada matéria, facilmente demonstrada. [...] Em terceiro lugar, pode ser invocado, ainda, o elemento teleológico ou finalístico. Do ponto de vista da política urbana, pode-se entender que a propriedade cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais da urbanização, expressas no respectivo plano diretor. Isto, porém, não significa que não existam outras formas pelas quais a propriedade também tenha de cumprir sua função social, até porque a propriedade há que ser encarada como riqueza que é, e não apenas como elemento a ser tratado pelas normas de política urbana. Por seu turno, para SACHA CALMON NAVARRO COÊLHO(516/519), o IPTU admite (e admitia) a progressividade estribado em duas matrizes: a) a matriz da política urbana, cujo fundamento constitucional tem sede no art. 182, parágrafo 4º, inciso II, da Constituição; b) a matriz da capacidade contributiva, que exsurge do art. 145, parágrafo 1º, da Carta Política. Assiste razão ao tributarista mineiro: porque razão estaria o IPTU fora do alcance da norma insculpida no parágrafo 1º do art. 145 da Constituição, segundo a qual sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte ? Mesmo que se entenda que a expressão sempre que possível se refira tanto ao caráter pessoal dos impostos, como ao respeito à capacidade contributiva (ou econômica) do contribuinte, não se visualiza óbice a impedir que o Município utilize a progressividade, nas alíquotas do IPTU, a fim de graduar o tributo segundo a capacidade econômica do contribuinte, desde que se julgue apto a fazê-lo. Em outras palavras, a partir da Carta de 1988, o IPTU passou a revestir, também, a natureza de tributo extra-fiscal. O parágrafo 1º do art. 156, da Constituição, prevê que o IPTU "poderá ser progressivo, nos termos de lei municipal, de forma a assegurar a função social da propriedade." Por seu turno, o par. 4º do art. 182, da Carta, dispõe, verbis: Par. 4º - É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área 56 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente de : I - parcelamento ou edificação compulsórios; II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo; III – desapropriação [...] Frise-se que o uso da progressividade no IPTU, desde que em estrita obediência às regras constitucionais, não configura violação ao princípio da vedação de tributo com efeito de confisco, insculpido no art. 150, inciso IV, da Lei Maior, embora haja quem entenda que esta progressividade não é ilimitada. Cumpre lembrar, ainda, por oportuno, que, tanto o art. 156, parágrafo 1 º , como o 182, parágrafo 4º , inciso II, da Constituição prevêem uma faculdade aos Municípios que a adotarão, ou não, em função de seus interesse e conveniência, à luz das realidades locais. Gize-se que o uso de alíquotas do IPTU progressivas no tempo deve atender ao disposto na lei federal prevista no caput do parágrafo 4º do art. 182 da Constituição, a saber, a Lei 10.257, de 10 de julho de 2001, mais conhecida como Estatuto da Cidade. Este diploma legal visou estabelecer “normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental. O IPTU progressivo no tempo é disciplinado no art. 7º., do seguinte teor: Art. 7o Em caso de descumprimento das condições e dos prazos previstos na forma do caput do art. 5o desta Lei, ou não sendo cumpridas as etapas previstas no § 5o do art. 5o desta Lei, o Município procederá à aplicação do imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana (IPTU) progressivo no tempo, mediante a majoração da alíquota pelo prazo de cinco anos consecutivos. § 1o O valor da alíquota a ser aplicado a cada ano será fixado na lei específica a que se refere o caput do art. 5o desta Lei e não excederá a duas vezes o valor referente ao ano anterior, respeitada a alíquota máxima de quinze por cento. § 2o Caso a obrigação de parcelar, edificar ou utilizar não esteja atendida em cinco anos, o Município manterá a cobrança pela alíquota máxima, até que se cumpra a referida obrigação, garantida a prerrogativa prevista no art. 8o. § 3o É vedada a concessão de isenções ou de anistia relativas à tributação progressiva de que trata este artigo. Assim, o IPTU ganhou, com a Constituição atual, um papel de destaque como instrumento de concretização da política urbana nacional, na medida em que pode ser utilizado para estimular os proprietários, enfiteutas e demais possuidores de imóveis urbanos, 57 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições a cumprir o estabelecido no plano diretor do Município e, destarte, fazer com que se atenda o princípio da função social da propriedade. Neste giro, o IPTU progressivo no tempo também colabora com a proteção do meio ambiente, na medida em que estimula o correto aproveitamento dos imóveis urbanos, o qual deverá obedecer as estipulações do Plano Diretor. Neste aspecto, vale a pena lembrar o que dispõem os arts. 39 e 40 do Estatuto da Cidade: Art. 39. A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas, respeitadas as diretrizes previstas no art. 2o desta Lei. Art. 40. O plano diretor, aprovado por lei municipal, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana. § 1o O plano diretor é parte integrante do processo de planejamento municipal, devendo o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e o orçamento anual incorporar as diretrizes e as prioridades nele contidas. § 2o O plano diretor deverá englobar o território do Município como um todo. § 3o A lei que instituir o plano diretor deverá ser revista, pelo menos, a cada dez anos. § 4o No processo de elaboração do plano diretor e na fiscalização de sua implementação, os Poderes Legislativo e Executivo municipais garantirão: I – a promoção de audiências públicas e debates com a participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade; II – a publicidade quanto aos documentos e informações produzidos; III – o acesso de qualquer interessado aos documentos e informações produzidos. Por sua vez, o art. 2º. da Lei 10.257/01, mencionado no caput do art. 39, dispõe: Art. 2o A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais: I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações; II – gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano; III – cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais setores da sociedade no processo de urbanização, em atendimento ao interesse social; IV – planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população e das atividades econômicas do Município e do território sob sua área de influência, de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente; 58 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições V – oferta de equipamentos urbanos e comunitários, transporte e serviços públicos adequados aos interesses e necessidades da população e às características locais; VI – ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar: a) a utilização inadequada dos imóveis urbanos; b) a proximidade de usos incompatíveis ou inconvenientes; c) o parcelamento do solo, a edificação ou o uso excessivos ou inadequados em relação à infra-estrutura urbana; d) a instalação de empreendimentos ou atividades que possam funcionar como pólos geradores de tráfego, sem a previsão da infra-estrutura correspondente; e) a retenção especulativa de imóvel urbano, que resulte na sua subutilização ou não utilização; f) a deterioração das áreas urbanizadas; g) a poluição e a degradação ambiental; VII – integração e complementaridade entre as atividades urbanas e rurais, tendo em vista o desenvolvimento socioeconômico do Município e do território sob sua área de influência; VIII – adoção de padrões de produção e consumo de bens e serviços e de expansão urbana compatíveis com os limites da sustentabilidade ambiental, social e econômica do Município e do território sob sua área de influência; IX – justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização; X – adequação dos instrumentos de política econômica, tributária e financeira e dos gastos públicos aos objetivos do desenvolvimento urbano, de modo a privilegiar os investimentos geradores de bem-estar geral e a fruição dos bens pelos diferentes segmentos sociais; XI – recuperação dos investimentos do Poder Público de que tenha resultado a valorização de imóveis urbanos; XII – proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico; XIII – audiência do Poder Público municipal e da população interessada nos processos de implantação de empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente natural ou construído, o conforto ou a segurança da população; XIV – regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação, consideradas a situação socioeconômica da população e as normas ambientais; XV – simplificação da legislação de parcelamento, uso e ocupação do solo e das normas edilícias, com vistas a permitir a redução dos custos e o aumento da oferta dos lotes e unidades habitacionais; XVI – isonomia de condições para os agentes públicos e privados na promoção de empreendimentos e atividades relativos ao processo de urbanização, atendido o interesse social. 3 A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 A necessidade de que a propriedade cumpra sua função social, de há muito defendida por parte da doutrina, ganhou, no Brasil, status constitucional com a Carta de 1934, que teve, 59 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições como se sabe, vida curta, ceifada que foi pelo advento da Constituição de 1937, a "polaca", mediante a qual Getúlio Vargas implantou o chamado "Estado Novo". Na Carta de 1946, redigida sob os ventos da redemocratização que se seguiu ao final da Segunda Grande Guerra, a necessidade do cumprimento da função social da propriedade retornou ao texto constitucional, entre os princípios regentes da ordem econômica e social (art. 147), prevendo-se que o uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. Entretanto, o disposto no par. 16 do art. 141, que arrolava os chamados direitos e garantias individuais, garantia o direito de propriedade, sem fazer qualquer menção ao cumprimento de sua função social. A Emenda Constitucional nr. 10, de 9.11.64, acresceu parágrafos ao art. 147 da Constituição, prevendo a possibilidade de a União promover a desapropriação de imóveis rurais para os fins previstos neste artigo. A Constituição de 1967 manteve, por seu turno, a função social da propriedade entre os princípios da ordem econômica e social (art. 157, III.) No entanto, silenciou a respeito ao tratar do direito de propriedade como um direito e garantia individual, no art. 150, par. 22. A situação foi mantida com a Emenda 1/69. Finalmente, a Carta de 1988 inovou, substancialmente, no tratamento dado à matéria, ao incluir a função social da propriedade entre os direitos e garantias individuais e coletivos (art. 5º, XXIII), conferindo-lhe, assim, o status de "cláusula pétrea" ( art. 60, par. 4º, IV.) Por outro lado, a Constituição atual manteve a função social da propriedade entre os princípios da ordem econômica (art. 170, III) e, não satisfeita, cuidou de, inclusive, prever os requisitos mediante os quais a propriedade de bens imóveis, sejam urbanos ou rurais, cumpre sua função social. Assim, o par. 2º do art. 182 dispõe que a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor. Por sua vez, o art. 186 arrola os requisitos para o cumprimento da função social da propriedade rural, remetendo à lei federal estabelecer os respectivos critérios e graus de exigência. Tal lei é a de nr. 8.629/93. O art. 5º da Carta de 88, apesar de garantir, no seu caput, a inviolabilidade do direito à propriedade, determina, em seus incisos XXII e XXIII, verbis: “XXII – é garantido o direito de 60 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições propriedade; XXIII – a propriedade atenderá a sua função social; [...]” Assim, a partir da Constituição de 1988, toda forma de propriedade no Brasil, após a Constituição de 1988, está impregnada do princípio da função social da propriedade. Ou seja: o constituinte de 1988 fez com que o princípio da função social da propriedade passasse a integrar o próprio desenho, a estrutura mesmo, do direito à propriedade privada, condicionando este ao cumprimento daquele. Em outras palavras, a partir da CF/88, apenas a propriedade privada que cumpra sua função social faz jus à proteção jurídica; daí a extraordinária importância da inovação constitucional. 4 A PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 A Carta Constitucional de 1988 dedicou especial atenção à proteção ao meio ambiente. Assim, além de dedicar ao tema o Capítulo VI – Do meio ambiente - do Título VII – Da ordem social -, trata da defesa do meio ambiente em outros dispositivos como, v.g., o art. 170, VI , o qual o inclui entre os princípios da ordem econômica, 177, par. 4º., II, b, 186, II, dentre outros. Por seu turno, o Estatuto da Cidade, já em seu art. 1º., parágrafo único, estabelece que: Parágrafo único. Para todos os efeitos, esta Lei, denominada Estatuto da Cidade, estabelece normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental. (grifado) Esta preocupação do legislador se manifesta em diversos outros dispositivos, como, por exemplo, o art. 2º., I, V, g, VIII, e XII; 4º., III, c, V, e 26, VII, dentre outros. O art. 2º. I, merece destaque, ao incluir, entre as diretrizes gerais da política urbana, a “garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações”, além de. (grifado) 5 O IPTU COMO INSTRUMENTO PARA O CUMPRIMENTO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E DA PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE Conforme já visto, a Constituição de 1988 elegeu o IPTU como um dos instrumentos para que a função sócio-ambiental da propriedade seja, efetivamente, atendida. Não foi por acaso que o legislador maior tomou esta decisão, eis que o uso da tributação como ferramenta de política estatal se revela em altamente eficaz, na medida em que atinge o administrado em um dos pontos mais vulneráveis do indivíduo: suas finanças. 61 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Por outro lado, além de sua inegável eficácia, o uso de alíquotas progressivas em sede de IPTU constitui medida de operacionalização mais fácil do que as demais previstas no parágrafo 4º do art. 182 da Carta (parcelamento ou edificação compulsórios e desapropriação.) Com efeito, o parcelamento e a edificação compulsórios, além de serem providências nem sempre viáveis (jurídica ou economicamente falando), demandam algum (ou muito) tempo para sua concreção, seja por questões meramente burocráticas ( o procedimento de desmembramento envolve a Municipalidade e o Ofício do Registro de Imóveis; a construção exige prévia aprovação do projeto pelos órgãos competentes, etc.), seja de ordem material (prazos a serem observados no desmembramento; tempo necessário para a construção.) A desapropriação, por seu turno, além de exigir um procedimento administrativo e, freqüentemente, judicial (quando não houver acordo quanto ao valor da indenização), implica em desembolso, por parte do Poder Público, ainda que, neste caso, mediante títulos da dívida pública com prazo de resgate de até dez anos, assegurados, porém, o valor real da indenização e os juros legais (Constituição, art. 182, parágrafo 4 o, inciso III.) De se lamentar, talvez, que o constituinte tenha previsto o uso da progressividade, no tempo, do IPTU, apenas, como uma segunda medida a ser tomada pelo Município, quando o parcelamento ou edificação compulsório não se revelarem viáveis ou não surtirem os efeitos colimados. É o que se depreende da redação do parágrafo 4º do art. 182, supra-transcrito, e, em especial da expressão, utilizada ao final de seu caput: sob pena, SUCESSIVAMENTE de (grifado.) Infelizmente, são poucos os Municípios brasileiros que adotaram o uso da progressividade do IPTU no tempo, a despeito da previsão no Estatuto da Cidade, desde 2001. De outra banda, não se pode olvidar que, ao estimular o cumprimento da função social da propriedade, o IPTU progressivo no tempo também induz o respeito à proteção do meio ambiente. Isto porque, conforme é consabido, o uso adequado e racional do solo urbano contribui para a preservação do meio ambiente, na medida em que , a uma o imóvel em questão não será utilizado para armazenar lixo, água parada, etc e a duas os ocupantes do mesmo deverão dar um destino adequado aos resíduos produzidos. Por outro lado, percebe-se que a preocupação com o meio ambiente equilibrado permeia todo o texto do Estatuto da Cidade, diploma legal, que, como visto, disciplina, dentre outros instrumentos de política urbana, o uso do IPTU progressivo no tempo e o plano diretor. 62 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições No tocante ao plano diretor, é de se destacar que o Estatuto da Cidade, ao dispor sobre este instrumento, em seu art. 39 remete ao disposto no art 2º. daquele diploma legal, o qual elenca as diretrizes que devem reger sua elaboração. Dentre estas diretrizes conforme já esposado, figura, no inciso IV, a preocupação com as distorções no crescimento urbano e seus efeitos sobre o meio ambiente. Já o inciso VI manifesta o temor com a deterioração de áreas urbanizadas e com a poluição ambiental. No inciso VIII, a necessidade de adoção de padrões de consumo e de expansão urbana compatíveis com o desenvolvimento sustentado. O inciso XII, por seu turno, remete à proteção e preservação do meio ambiente. No inciso XIV, o legislador deixa claro que o respeito às normas ambientais deve informar as políticas de regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas pela população carente, como, v.g., as favelas, palafitas, malocas e similares. Ou seja, pode-se concluir que a elaboração do plano diretor deve se pautar, dentre outros valores, pelo respeito às normas ambientais. Como a adoção do IPTU progressivo no tempo visa estimular que os imóveis urbanos sejam utilizados de acordo com o que dispõe o plano diretor, respeitadas as diretrizes do art. 2º., exsurge que este instrumento também faz com que haja o respeito ao meio ambiente equilibrado. 6 CONCLUSÕES Ainda que não pareça, à primeira vista, a inovação perpetrada pelo constituinte de 1988, ao prever o uso da progressividade do IPTU como instrumento para o atendimento da função social da propriedade se revela da maior importância para a história da tributação no Brasil. Com efeito, o tratamento dado à matéria pela Constituição consagra o uso de tributo como instrumento de política social e, neste passo, da própria cidadania, e não, apenas, de política estatal, como já ocorria no passado. Isto é, apesar de a extra-fiscalidade não ser, entre nós, nenhuma desconhecida, até então seu uso se restringia à implementação de programas ou ao atingimento de objetivos essencialmente do Estado enquanto tal e não, necessariamente, da Sociedade. Assim, usa-se (e abusa-se) da tributação como instrumento de política econômica (aumentando-se, por exemplo, os impostos incidentes na importação de determinados produtos), financeira (majorando-se, v.g. as alíquotas do imposto sobre operações financeiras nas operações de crédito a consumidor), etc. Ou seja: os efeitos buscados eram aqueles assim eleitos pela Administração. No caso da progressividade do IPTU, a situação mudou e o fez substancialmente: os 63 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições efeitos buscados consistem na concreção do que preceitua a Constituição, i. é, que a propriedade cumpra sua função social. Esta desmistificação do tributo como mera ferramenta para a geração de recursos para o Estado ou para implementação de sua política econômica é de suma importância para a (re)abilitação do fenômeno da tributação junto à Sociedade, acostumada, há décadas, a vê-lo, deformadamente, como um instrumento de dominação e espoliação. O futuro dirá até que ponto esta semente, plantada pelo constituinte de 1988, vingou e se os frutos dela provenientes foram os desejados pela Sociedade. REFERÊNCIAS BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. 11 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 2. Ed. São Paulo: Saraiva, 1972. COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 24 ed. São Paulo: Malheiros, 2001. 64 IPTU AMBIENTALMENTE ORIENTADO: UMA ANÁLISE SOB A PERSPECTIVA CONSTITUCIONAL A PARTIR DA PROPOSTA DE REFORMA TRIBUTÁRIA AMBIENTAL (PEC 353/2009) Carolina Sena Vieira1 Flávia Koerich Mafra2 Ubaldo César Balthazar3 RESUMO: Em meio ao global movimento em direção à conscientização ambiental e à tomada de iniciativas que promovam efetivamente o desenvolvimento sustentável, o Brasil aparece como importante ator. Dentro de tal debate, aparece o tributo como instrumento apto a incentivar comportamentos ambientalmente positivos, auxiliando a transformação da sociedade relativamente à sua posição frente ao meio ambiente. Nesse sentido, um dos enfoques principais da discussão acerca da ecologia é o direito à propriedade. Busca-se, atualmente, alternativas para seu melhor aproveitamento na tentativa de harmonizar direitos e deveres quanto ao seu uso, gozo e disposição. Surge então a figura do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) como instrumento efetivo de conexão prática entre meio ambiente e propriedade. É esta a temática da presente pesquisa. Tratar-se-á, neste artigo, a partir da análise da Proposta de Reforma Tributária Ambiental em discussão no Congresso Nacional (PEC 353/2009), a possibilidade de inserção constitucional da variável ambiental na regulamentação do IPTU, com vistas à promoção da tomada de atitudes ambientalmente positivas no tocante à propriedade predial e territorial urbana. PALAVRAS-CHAVE: Imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana, Meio ambiente, Propriedade; Desenvolvimento sustentável; Tributação ambientalmente orientada. ABSTRACT: Amid the global movement toward environmental awareness and the taking of initiatives that effectively promote sustainable development, Brazil is an important actor. Within this debate, taxation appears as an instrument able to encourage environmentally positive behaviors, assisting the transformation of the society relative to its position facing the environment. In this sense, one of the main focuses of discussion about the ecology is the right to property. Recently, researchers are seeking alternatives to its best use in an attempt to 1 Advogada. Ex-professora do Curso de Graduação em Ciências Contábeis da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Professora do Curso de Graduação em Direito do Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina. Professora do Curso de Especialização em Direito Tributário do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Santa Catarina. 2 Advogada. Professora do Curso de Graduação em Direito do Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina. Especialista em Direito Tributário pela Universidade Federal de Santa Catarina. Mestranda do Programa de PósGraduação em Direito da Universidade de Santa Catarina. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Tributação Ambiental (UFSC/UFC). 3 Professor de Direito Tributário do Curso de Direito da UFSC. Mestre em Direito pela UFSC. Doutor em Direito pela Université Libre de Bruxelles, Bélgica. A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições harmonize the rights and duties regarding property´s use, enjoyment and disposition. The figure of the Urban Property Taxation arises as an effective instrument of practical connection between the environment and property. That is the theme of this research. This article will discuss, from the analysis of the proposed Environmental Tax Reform under discussion in Congress (PEC 353/2009), the possibility of constitutional treatment of the environmental variable in the regulation of Urban Property Taxation, in order to promote environmentally positive attitudes regarding urban property. KEY-WORDS: Urban property taxation, Environment, Property, Sustainable development, Environmental taxation. 1 INTRODUÇÃO Diversas Nações têm adaptado seu corpo normativo no sentido de inserir a preocupação com o meio ambiente no palco das discussões financeiras e tributárias. Desta feita, é imprescindível que o Brasil, inserido nesse contexto de conscientização ambiental emergente, principalmente nos países ocidentais, execute a revisão de sua legislação, buscando adaptá-la aos anseios de possibilitar o desenvolvimento sustentável nacional. Dentre as possíveis hipóteses de utilização da variável ambiental para direcionar a elaboração e aplicação do direito, a tributação aparece com destaque em razão de tornar efetivamente viável a mudança de comportamentos com reflexos ambientais. Em meio ao amplo rol de possibilidades que o Direito Tributário apresenta no que concerne à utilização de seus instrumentos de acordo com a proteção ecológica, destaca-se a instituição do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) com fins ecológicos como medida urgente e plenamente apta a implantação no país. O crescimento urbano, desenfreado e sem planejamento, dos municípios, traz reflexos negativos ao meio ambiente, portanto, é imprescindível o encontro de alternativas ecologicamente positivas, que contribuam para neutralizar tais prejuízos decorrentes do exercício do direito de propriedade. Diante do exposto, este trabalho visa demonstrar as possibilidades de implementação do IPTU ambientalmente orientado nos municípios brasileiros, com vistas a incentivar o uso da propriedade urbana de acordo com sua função sócio-ambiental. Embora os debates e estudos sobre essa temática venham recebendo destaque no cenário internacional, no Brasil as discussões se apresentam incipientes, direcionadas à tentativa de harmonização das legislações tributária e ambiental. Exemplo disso é a existência 66 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições de uma Proposta de Emenda Constitucional que tem como objeto a Reforma Tributária Ambiental (PEC 353/2009, de autoria do Deputado Roberto Rocha do PSDB/MA), ainda iniciando seu processo de aprovação. Dentro deste contexto, busca-se uma análise do exercício do direito de propriedade em paralelo com as alterações no Imposto sobre a Propriedade Territorial Urbana – IPTU propostas na referida PEC 353/09. 2 TRIBUTAÇÃO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 2.1 Conscientização ambiental e o conceito de desenvolvimento sustentável A consciência com relação à problemática ambiental inicia-se a partir da percepção do homem quanto aos prejuízos causados pelo desenvolvimento realizado de forma desordenada. As conseqüências da exploração exaustiva dos recursos naturais começam a aparecer de forma emblemática após Segunda Guerra Mundial, quando se tornaram perceptíveis o agravamento dos índices de poluição dos países desenvolvidos, provocado pelo grande crescimento da produção industrial. O século XX, portanto, é o marco histórico quanto à conscientização social e política com relação ao meio ambiente. Inicialmente, as medidas tomadas para evitar maiores prejuízos ao meio ambiente, não impedindo o desenvolvimento econômico das Nações, trataram de prever ações que atingissem de forma positiva os efeitos gerados pela poluição, visando neutralizá-los. A partir da década de 80, buscou-se a adaptação dos processos produtivos de forma a atacar as causas da degradação ambiental. Portanto, durante longo período, a mentalidade cultivada era a de que este era o custo a ser pago pelo desenvolvimento. Entretanto, em 1971, iniciou-se a elaboração do conceito de desenvolvimento sustentável, dentro da noção de ecodesenvolvimento tratada no Painel de Founex, na Suíca. Finalmente, em 1981, a Comissão Mundial Independente sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento – posteriormente intitulada Comissão Brundtland – definiu desenvolvimento sustentável como “aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem as suas próprias necessidades”. O conceito foi criticado pela própria Comissão, que apontou duas deficiências: a falta de limitações absolutas e de um plano detalhado de ações4. E também a partir da década de 1970, quando foi realizada em Estocolmo, em 1972, a 4 LEMOS, Haroldo Mattos de. Gestão ambiental e desenvolvimento sustentável – história da questão ambiental: curso FGV online, 08 de maio de 2010. Notas de aula. 67 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Conferência das Nações Unidas Sobre o Meio Ambiente, o mundo finalmente abriu os olhos para a necessidade de se evitar o desperdício, progredindo sim, mas com a preocupação de deixar recursos existentes para as gerações futuras, o que a doutrina convencionou chamar de desenvolvimento sustentável. Na lição de José Marcos Domingues de Oliveira: Desenvolvimento sustentável consiste no progresso da atividade econômica compatível com a utilização racional dos recursos ambientais. Representa a rejeição do desperdício, da ineficiência e do desprezo desses recursos.5 No Brasil, na esteira da Conferência de Estocolmo, a lei n.º 6.938/81, que institui a Política Nacional do Meio Ambiente, pela primeira vez previu em seu art. 4º, VII, a determinação de que se visará a “imposição, ao poluidor e ao predador, da obrigação de recuperar e/ou indenizar os danos causados”. Trata-se do princípio ambiental do poluidorpagador, o qual Ricardo Lobo Torres assim define: O princípio do poluidor-pagador sinaliza no sentido de que os potenciais poluidores devem arcar com a responsabilidade pelo pagamento das despesas estatais relacionadas com a precaução e a prevenção dos riscos ambientais. 6 Poucos anos depois de citada lei, a Constituição da República Federativa do Brasil reconheceu a necessidade de adoção do princípio do poluidor-pagador. Em seu art. 225, § 3º, a Lei Maior traz a determinação constitucional de que “as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”. E não obstante o art. 225, § 3º da Constituição Federal, igualmente o art. 170, ao tratar da ordem econômica, estabelece taxativamente: Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] VI – defesa do meio ambiente; […] Em nível mundial, a necessidade de políticas públicas que promovessem a 5 Direito Tributário e Meio Ambiente: proporcionalidade, tipicidade aberta, afetação da receita. Rio de Janeiro: Renovar, 1995, p. 12. 6 Valores e princípios no Direito Tributário Ambiental, in Direito Tributário Ambiental. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 27. 68 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições internalização dos custos ambientais se tornou ainda mais visível 20 anos depois da Convenção de Estocolmo, por oportunidade da Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente realizada no Rio de Janeiro em 1992. Naquela oportunidade, foi fixado o seguinte princípio: Princípio 16. Tento em vista que o poluidor deve, em princípio, arcar com o custo decorrente da poluição, as autoridades nacionais devem procurar promover a internalização dos custos ambientais e o uso de instrumentos econômicos, levando na devida conta o interesse público, sem distorcer o comércio e os investimentos internacionais. No entendimento de Anderson O.C Lobato e Gilson C. B. de Almeida, a determinação constitucional aliada ao Princípio 16 da RIO 92 permite a adoção de medidas capazes de operacionalizar no país o princípio que “aquele que polui deve pagar”: Desse modo, admite-se a possibilidade de criação por parte do poder público de um conjunto de medidas econômicas e administrativas que possam impor aos empreendedores potencialmente poluidores ou que ainda estejam obtendo da natureza os recursos necessários à sua atividade lucrativa, de modo a promover a responsabilização pelos custos ambientais 7. 2.2 Internalização positiva e negativa em Pigou – um rascunho da utilização do tributo com fins ecológicos Desde o início da conscientização humana com relação à questão ambiental, percebeuse que os custos ambientais são, normalmente, ignorados no ato da análise econômicofinanceira dos projetos. A partir dessa constatação procuraram-se alternativas para incorporar esses custos ou para incentivar sua não realização. Dentre os instrumentos utilizados para esses fins, em 1920, Arthur Cecil Pigou8 sugeriu a utilização de tributos como instrumentos de políticas de proteção ambiental. O economista demonstrou a existência de externalidades geradas pelo desenvolvimento, apontando que os resultados lucrativos obtidos pelas empresas demonstravam-se, no mais das vezes, superiores ao produto social de suas atividades, surgindo, então, as chamadas externalidades negativas, ou seja, resultados prejudiciais ao meio ambiente gerados pela exploração econômica desordenada. Da mesma forma, Pigou indicou a existência de externalidades positivas, excepcionalmente geradas por essas atividades. A partir de então, as variáveis ambientais 7 Tributação Ambiental: uma contribuição ao desenvolvimento sustentável, in Direito Tributário Ambiental. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 629. 8 The Economics of Welfare. Londres: Macmillan and Co., 1932. Disponível em: <http://www.econlib.org/library/NPDBooks/Pigou/pgEW.html>. Acesso em 8 de março de 2010. 69 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições incorporaram-se aos debates legislativos nas tratativas tributárias, cabendo ao Estado responsabilizar, através de tributos mais onerosos, os geradores de externalidades negativas. A imposição de tributos com esse fim possibilita a utilização dos recursos arrecadados na compensação dos prejuízos gerados pelas atividades poluidoras. Por outro lado, surge a possibilidade de instrumentos tributários com o objetivo de incentivar atitudes ecologicamente positivas, desonerando tais atividades. Em decorrência das idéias apresentadas por Pigou, emergem as duas possibilidades de utilização dos tributos com fins ecológicos: a imposição de cargas tributárias mais elevadas para atividades produtivas mais poluentes, ou a desoneração tributária para atividades produtivas ambientalmente positivas. Percebe-se que a primeira alternativa visa, assim como as experiências embrionárias relativas a questão ambiental, afetar os efeitos da poluição e da degradação ambiental, não sendo totalmente eficiente quanto à proteção do meio ambiente, já que não evita a exploração desordenada dos recursos naturais. Entretanto, a utilização de critérios extrafiscais na instituição dos tributos com fins ecológicos, incentiva a mudança de comportamentos ambientalmente relevantes, possibilitando-se evitar a degradação. 3 A POSSIBILIDADE E A NECESSIDADE DOS CHAMADOS TRIBUTOS AMBIENTAIS 3.1 Algumas experiências no direito alienígena A adoção de medidas tributárias com o fim de modelar o comportamento dos contribuintes foi devidamente implantada com sucesso em diversos países. Apenas para exemplificar, Alemanha, Espanha, Holanda, França, Bélgica, Dinamarca e Estados Unidos instituíram políticas públicas com o intuito de coibir práticas poluidoras ou degradantes: Na Alemanha, o imposto municipal sobre embalagens, pratos e talheres descartáveis, a tributação maior sobre veículos não guarnecidos de catalisadores, bem como o imposto para prevenção de incêndios, dentre outros. Destaquem-se, na Espanha, os impostos especiais sobre hidrocarbonetos ou tabacos, sobre o licenciamento de veículos e sobre instalações que agridam o ambiente. Já na Holanda, apresentam feição ambiental, dentre outros, os impostos sobre combustíveis, sobre a contaminação de superfícies aquáticas e sobre a contaminação causada por ruído causado por aeronaves civis. A França, por seu turno, exige imposto sobre produtos florestais, sobre corte de matas, 70 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições além de um imposto específico para preservar espaços naturais protegidos. Na Bélgica, há o imposto devido pelos consumidores sobre bens descartáveis (pilhas, embalagens em geral, etc), semelhante ao exigido na Itália, sobre sacos plásticos. Na Dinamarca, tem-se diversos impostos com perfil ecológico, dentre os quais o sobre lâmpadas incandescentes e fusíveis elétricos, sobre a emissão de determinados gases e sobre resíduos. Nos Estados Unidos da América, tem-se o adicional “ambiental” do imposto de renda; a dedutibilidade de doações de terrenos e matas com finalidade preservacionista; o imposto pago pelos refinadores sobre petróleo e, ainda, o imposto, devido pelas empresas químicas, sobre produtos químicos perigosos e derivados. 9 3.2 Extrafiscalidade no Direito Tributário Brasileiro Tradicionalmente, as imposições tributárias são tratadas com o fim de arrecadação, de modo a abastecer os cofres públicos para tornar viável o cumprimento dos deveres do Estado. Trata-se da função arrecadatória do tributo. Ao lado dessa função, percebe-se a possibilidade da utilização dos tributos como forma de influenciar condutas dos contribuintes, sendo essa sua chamada função extrafiscal. A utilização extrafiscal dos tributos tem sua origem relacionada ao crescimento da atividade intervencionista do Estado, pois, à medida que evoluem as funções sociais do Poder Público, se pode demonstrar de forma mais clara a ampla eficácia dos tributos enquanto elementos de regulação do mercado e reestruturação social, adquirindo fundamental importância a noção de extrafiscalidade, despindo a figura tributária de seu caráter puramente arrecadatório10. Dentro dessa perspectiva, torna-se imprescindível a utilização de critérios extrafiscais verdes quanto à exigência tributária. O objetivo de qualquer instrumento que vise à proteção ambiental é prevenir a degradação. A função extrafiscal dos tributos verdes aparece com esse intuito. O tributo, quando instituído com fins extrafiscais, ou seja, com a finalidade de reestruturar as atividades produtivas no sentido de bem aproveitar os recursos naturais, e até de gerar externalidades positivas, demonstra grande eficiência ecológica. Dentre os inúmeros instrumentos possíveis de implementar o direito ao meio ambiente saudável, o tributo aparece 9 COSTA, Regina Helena. Apontamentos sobre a tributação ambiental no Brasil in Direito Tributário Ambiental. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 316. 10 TUPIASSU, Lise Vieira da Costa. Tributação ambiental: a utilização de instrumentos econômicos e fiscais na implementação do direito ao meio ambiente saudável. Rio de janeiro: Renovar, 2006, p. 119. 71 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições como figura de destaque quando se trata de impossibilitar ou prevenir a ocorrência de atividades danosas ao meio ambiente. A extrafiscalidade da tributação ambientalmente orientada traz conseqüências positivas diretas à proteção ambiental, pois induz o contribuinte a tomada de decisões ecologicamente benéficas, evitando a destruição do meio ambiente. Sobre a utilização de instrumentos tributários com finalidades ambientais, Jorge Jiménez Hernández ressalta duas principais vantagens: [...] a equidade no tratamento dos agentes econômicos, uma vez que os tributos não impõem ações concretas como diminuir a contaminação em porcentagens determinadas ou utilizar certos componentes na produção. Os sistemas baseados em tributos ambientais levam em conta que todas as pessoas que se situem na mesma situação tenham as mesmas facilidades para reduzir a contaminação, já que isto depende de circunstâncias próprias de cada caso, as quais podem chegar a ser muito variadas. [...] Isto nos leva a uma segunda vantagem intimamente ligada a anteriormente expressa. Uma das qualidades mais destacáveis dos tributos ecológicos é o incentivo à investigação e utilização de todo tipo de alternativas que propiciem um menor dano ao meio ambiente [...]11 Também para Heleno Taveira Torres, a tributação pode ser o meio pelo qual o poder público cumprirá seu dever de preservar o meio ambiente e garantir sua manutenção: Não se pode negar a importância fundamental da preservação ambiental nos dias atuais e tampouco a imperiosa necessidade de coordenar meios e envidar esforços para dar efetividade às determinações constitucionais sobre o dever dos poderes públicos e da sociedade de preservar o ambiente e garantir sua manutenção para as gerações futuras, como reclama o nosso art. 225. Para tanto, Estado e sociedade devem encontrar instrumentos eficazes que permitam essa medida de conservação. E a tributação pode ser uma alternativa para alcançar fim tão nobre, superadas as dificuldades que envolvem tal entrelaçamento de princípios e valores. 12 Já José Marcos Domingues de Oliveira acredita na utilização da tributação ambiental não só como instrumento para que o Estado possa angariar fundos para agir, mas também como ferramenta para desestimular condutas poluidoras e estimular as não-poluidoras13, entendimento no qual é seguido de perto por Regina Helena Costa: A tributação ambiental pode ser singelamente conceituada como o emprego de 11 El tributo como instrumento de protección ambiental. Granada: Comares, 1998, p. 64. Da relação entre competências constitucionais tributárias e ambiental – os limites dos chamados “tributos ambientais” in Direito Tributário Ambiental. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 97. 13 OLIVEIRA, José Marcos Domingues de. Direito Tributário e Meio Ambiente: proporcionalidade, tipicidade aberta, afetação da receita. Rio de Janeiro: Renovar, 1995, p. 12. 12 72 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições instrumentos tributários para gerar os recursos necessários à prestação de serviços públicos de natureza ambiental (aspecto fiscal ou arrecadatório), bem como para orientar o comportamento dos contribuintes à proteção do meio ambiente (aspecto extrafiscal ou regulatório).14 Entretanto, como bem frisa Fernando Magalhães Modé, o caráter extrafiscal da tributação ambiental não pode ser confundido em hipótese alguma com sanção por ato ilícito, posto que [...] verifica-se que a tributação ambiental, em regra, não se estrutura, como ocorre com os mecanismos de comando, em face de uma dicotomia: permitido/proibido. A tributação ambiental, ao revés, parte do pressuposto de que todas as atividades são lícitas, pois, se razão houvesse para tê-las como ilícitas, deveriam ser assim tratadas por normas de conteúdo proibitivo, e não pela tributação ambiental.15 A extrafiscalidade16 dos tributos ambientais gera na doutrina saudável discussão sobre se estes tributos, mais especificamente os impostos, obedeceriam ou não o princípio constitucional tributário da capacidade contributiva. Na opinião de Jorge Jiménez Hernandez, a capacidade econômica constitui um limite para a utilização extrafiscal do tributo, e somente respeitando dito limite é que o tributo extrafiscal pode ser desenhado sem ir de encontro ao sistema jurídico vigente17. Já Regina Helena Costa segue viés diverso, defendendo a mitigação parcial do princípio da capacidade contributiva na hipótese: Em nossa opinião, convivem a atuação extrafiscal e a observância do postulado da capacidade contributiva, informador dos impostos e insculpido no art. 145, § 1º da Constituição. Isto porque, em razão da extrafiscalidade, autorizada está a prescindibilidade da graduação dos impostos consoante a capacidade econômica do contribuinte, para que se atinjam finalidades outras, que não a mera obtenção de recursos, homenageadas pela ordem constitucional, como, por exemplo, a função social da propriedade, a proteção ao meio ambiente, o incentivo a cultura etc. Vale dizer, o Poder Público pode instituir tributos progressivos ou regressivos sem ater-se à pertinência que os mesmos deveriam guardar com a riqueza do sujeito passivo. Nesses casos, teremos derrogações parciais do princípio, pois o princípio da capacidade contributiva não resta completamente afastado quando da tributação extrafiscal. O legislador não poderá descuidar-se da preservação dos limites que o próprio princípio exige: manutenção do “mínimo vital”, o não atingimento do 14 Apontamentos sobre a tributação ambiental no Brasil in Direito Tributário Ambiental. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 313. 15 Tributação Ambiental – a função do tributo na proteção do meio ambiente. 1. ed., 2ª tir. Curitiba: Juruá, 2004, p. 82. 16 “Na extrafiscalidade, a arrecadação tributária é secundária, pois seu objetivo principal é incentivar ou coibir determinados comportamentos do contribuinte, motivado por interesses sociais, políticos ou econômicos do legislador tributário”. (NEVES, Luiz Fernando de Souza. Apontamentos sobre o ITR e sua progressividade (in Curso de Especialização em Direito Tributário – Estudos analíticos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 1103). 17 El tributo como instrumento de protección ambiental. Granada: Editorial Comares, 1998, p. 89. 73 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições confisco e o não cerceamento de outros direitos constitucionais.18 A finalidade do direito ambiental é preservar o meio ambiente já que o dano ambiental, depois de ocorrido, é de difícil recuperação, sendo quase impossível o retorno ao status quo ante. Dessa forma, a extrafiscalidade da ecotributação aparece como instrumento indispensável à efetivação do desenvolvimento sustentável, respeitando e buscando a aplicação dos princípios fundamentais de nosso país, encampados constitucionalmente. A Constituição Federal de 1988, ao estabelecer as bases constitucionais do Sistema Tributário Nacional, fixou seus princípios gerais, sem olvidar os fundamentos que constituem a estrutura normativa do Estado Democrático de Direito brasileiro no que diz respeito à atividade tributária desse Estado19. Dentre os princípios enaltecidos constitucionalmente a partir de 1988, o da dignidade da pessoa humana demonstra-se essencial à análise da relação Fisco-contribuinte, determinando os limites e objetivos da atividade tributária no Brasil. Justifica-se a imposição tributária, em harmonia com o princípio da dignidade da pessoa humana, em razão da necessidade de arrecadação de fundos para que o Estado possa realizar seus fins sociais. Assim, impõe-se a instituição dos tributos de acordo com a relevância das atividades tributadas e dentro dos limites impostos pelo respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana (contribuinte). Da mesma forma, o princípio da dignidade da pessoa humana aparece como limitador da tributação em situações que demonstrem conseqüências socialmente positivas. Dentro do conceito de dignidade da pessoa humana, encontramos seu direito ao meio ambiente saudável. Assim, as atividades que geram benefícios ao meio ambiente, privilegiam a sociedade, devendo seu agente ser compensado pelos gastos tidos com atitudes que extrapolam a obtenção de externalidades positivas pessoais. Em outras palavras, as atividades produtivas que geram benefícios para além dos limites de seu agente devem a ele ser compensadas economicamente. Desse modo, o direito tributário incentiva os contribuintes a atuarem de acordo com as previsões de desenvolvimento sustentável. Como mencionado, o meio ambiente saudável é um dos direitos fundamentais dos seres humanos, protegido constitucionalmente em seu artigo 225 que assim dispõe: Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público 18 Apontamentos sobre a tributação ambiental no Brasil in Direito Tributário Ambiental. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 322. 19 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco; FERREIRA, Renata Marques. Direito ambiental tributário. 2. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 33. 74 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. A tributação aparece dentre as hipóteses de defesa e preservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado, deveres impostos ao Poder Público e à coletividade, como demonstrado anteriormente. Entretanto, no Brasil, a utilização desta importante ferramenta é tímida. Porém, ainda que incipiente, sua utilização já deu seus primeiros passos através do ICMS ecológico 20. Esta política, adotada pela primeira vez em 1991 pelo Estado do Paraná consiste em diferenciar a repartição das receitas do ICMS entre os Municípios de forma que se beneficiem aqueles que possuam fortes políticas de proteção ambiental. Fernando Facury Scaff e Lise Vieira da Costa Tupiassu, sem entrar no mérito da questão relativa à possível inconstitucionalidade do critério, assim explicam a sistemática do ICMS ecológico: Os valores e critérios legalmente estabelecidos passam então a ser quantificados diante dos dados fáticos, proporcionando a definição de um ranking ecológico dos municípios. Deste modo, cada município recebe um montante proporcional ao compromisso ambiental por ele assumido, o qual será incrementado conforme a melhoria da qualidade de vida da população. Um dos pontos chaves da política é, portanto, a não criação de novo tributo, não subsistindo qualquer ônus financeiro para o Estado ou aumento da carga tributária dos contribuintes. Trata-se, unicamente, da adoção de critérios ambientalmente relevantes para a repartição das receitas normalmente obtidas. 21. Não se pode olvidar que aos Municípios também é conferida constitucionalmente a competência comum para “proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas” (art. 23, VI) e concorrente para legislar sobre “direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico” e sobre “florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição” (art. 24, I e VI). De fato, com o advento da Lei n.º 10.257/2001, o Estatuto da Cidade, foram fixadas as diretrizes gerais da política urbana do Município. Torna-se assim o Município responsável por 20 Ver, a propósito, BALTHAZAR, U.C. E MAFRA, F.K., “ICMS ecológico: instrumento de tributação ambientalmente orientada ou mitigação da autonomia municipal?”, in CAVALCANTE, Denise L. (Corrd.); BALTHAZAR, Ubaldo C. (Coord.); PESSOA, Gabriela P. (Org.). Estudos de tributação ambiental. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2010, p. 402-415. 21 Tributação e Políticas Públicas: O ICMS ecológico in Direito Tributário Ambiental. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 737. 75 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições garantir o equilíbrio ecológico, utilizando-se inclusive de instrumentos de política tributária para tanto, conforme ensinam Anderson O.C. Lobato e Gilson C. B. de Almeida: O Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257, de 10.7.2001), ao definir a política urbana, estabeleceu que a propriedade deve assumir sua função social, de segurança e de bem-estar dos cidadãos, bem como o equilíbrio ecológico através de instrumentos de política econômica, tributária e financeira, representados pelo imposto territorial, pela contribuição de melhoria e por incentivos fiscais. 22 A principal ferramenta da qual o Município pode se utilizar, no entendimento de Regina Helena Costa, é a progressividade do IPTU no tempo. Para a autora: O grande instrumento tributário dos Municípios para a preservação ambiental é o Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana – IPTU. A propriedade imobiliária urbana está igualmente afetada ao cumprimento da função social e satisfaz esse requisito quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor (art. 156, § 2º), cabendo a utilização do IPTU quando o proprietário não promova o adequado aproveitamento do solo urbano.23. Por ser a mais importante ferramenta do Município na implementação da tributação ambiental, o IPTU será abordado a seguir com mais profundidade, destacando-se as alterações constitucionais sugeridas pela Proposta de Emenda à Constituição nº 353/2009. 4 IPTU AMBIENTALMENTE ORIENTADO – UMA ANÁLISE DA PEC 353/2009 4.1. Delineamento constitucional do Imposto sobre a Propriedade Territorial Urbana – IPTU Com o fim de evitar a sobreposição de tributação, a Constituição Federal de 1988 delimitou as competências para instituição dos tributos, repartindo-a entre as pessoas jurídicas de direito público interno (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) que formam a República Federativa do Brasil. O Capítulo I do Título VI da Lei Maior traz em seus artigos 153 a 156 a delimitação da competência para a instituição de impostos, um deles o objeto de análise do presente estudo. A definição de competência, nas palavras de Paulo de Barros Carvalho, pode ser efetuada da seguinte forma: “Competência”, com as acepções encontradas no direito positivo e na doutrina, é termo próprio do vocabulário técnico-jurídico. Quando empregado na Constituição para autorizar as pessoas políticas de direito constitucional interno a legislar sobre matéria tributária, falamos em “competência tributária”. Trata-se de especificação de 22 Tributação Ambiental: uma contribuição ao desenvolvimento sustentável, in Direito Tributário Ambiental. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 637. 23 Apontamentos sobre a tributação ambiental no Brasil in Direito Tributário Ambiental. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 327. 76 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições competência legislativa, posta como aptidão de que são dotadas aquelas pessoas para expedir regras jurídicas, inovando o ordenamento, e que se opera pela observância de uma série de ato, cujo conjunto caracteriza o procedimento legislativo.[...] A competência tributária é, em síntese, uma das parcelas entre as prerrogativas legiferantes das quais são portadoras as pessoas políticas, consubstanciada na faculdade de legislar para a produção de normas jurídicas sobre tributos. Configura tema eminentemente constitucional. Uma vez cristalizada a delimitação do poder legiferante, pelo seu legítimo agente (o constituinte), a matéria dá-se por pronta e acabada, carecendo de sentido sua abertura em nível infraconstitucional.24 Neste panorama, aos Municípios foi conferida a competência tributária para a instituição de impostos (artigo 156 da Constituição Federal), taxas (artigo 145 da Constituição Federal), contribuições de melhoria (artigo 145 da Constituição Federal) e contribuições (artigo 149, § 1º e 149-A da Constituição Federal). No que se refere aos impostos, podem ser instituídos: imposto sobre a propriedade territorial e predial urbana – IPTU, imposto sobre a transmissão de bens imóveis e de direitos reais sobre imóveis por atos “inter vivos” - ITBI e imposto sobre serviços – ISS25. Na instituição do IPTU, o legislador ordinário poderá se utilizar de alíquotas progressivas, conforme previsões encartadas nos artigos 156 e 182 da Constituição Federal. São elas: Art. 156 omissis [...] § 1º Sem prejuízo da progressividade no tempo a que se refere o art. 182, § 4º, inciso II, o imposto previsto no inciso I poderá:(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000) I - ser progressivo em razão do valor do imóvel; e (Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000) II - ter alíquotas diferentes de acordo com a localização e o uso do imóvel.(Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000) Art. 182. omissis [...] § 4º - É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado 24 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: linguagem e método. 2.ed. São Paulo: Noeses, 2008, p. 232/233 25 Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre: I - propriedade predial e territorial urbana; II - transmissão "inter vivos", a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição; III - serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar.(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993) [...] 77 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de: [...] II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo; [...] Posto o delineamento constitucional do IPTU, passa-se à análise da possibilidade de sua utilização como instrumento de modulação de condutas ambientalmente conscientes, na forma como atualmente se encontra regulado na Constituição Federal. 4.1 Possibilidades de utilização “verde” do Imposto sobre a Propriedade Territorial Urbana – IPTU no atual panorama constitucional O Sistema Tributário Nacional apresenta diversas possibilidades de aproveitamento dos tributos com fins ecológicos. Dentre elas a utilização do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) com o objetivo de viabilizar a função social da propriedade urbana, prevista no artigo 182 da Constituição Federal de 1988, já mencionado: Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes. [...] § 2º - A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor. [...] § 4º - É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de: [...] II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo; [...] Dentro do conceito de função social da propriedade encontra-se a proteção ambiental, pois a sociedade está inserida e dependentemente relacionada ao meio ambiente que a circunda. Desta forma, a Carta Constitucional brasileira, implementando o princípio da dignidade da pessoa humana (e dentro dele o respeito à função social ou sócio-ambiental da propriedade) possibilita a instituição e utilização do IPTU de acordo com critérios ecológicos. E é exatamente o viés extrafiscal desse imposto que permite sua previsão com fins de cumprimento da função social da propriedade. Ao tratar da Política Urbana com relação à proteção ambiental, o professor José Afonso 78 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições da Silva demonstra a relevância da instituição de critérios ambientais na previsão do IPTU: [...] os planos urbanos, antes preocupados basicamente com o controle do uso do solo, voltam sua atenção, hoje, até com certa ênfase, para os recursos naturais urbanos. Água, ar, solo e áreas verdes são componentes da realidade urbana e por ela intensamente consumidos. É especialmente no meio urbano que por primeiro repercute a degradação ambiental26. O artigo 23 da Constituição Federal prevê, em seus incisos VI e VII, a competência dos municípios com relação à proteção do meio ambiente, combate à poluição, preservação de florestas, fauna e flora. Nesse dispositivo encontra-se um dos fundamentos para o emprego de critérios ambientais na instituição do IPTU por parte dos municípios. Assim, a função social da propriedade é premissa de fundamental importância na aplicação do IPTU verde. Encontrase ela petrificada no inciso XXIII, do artigo 5º da Constituição pátria. Tal princípio fundamental, posicionado constitucionalmente ao lado do direito à propriedade, previsto no inciso imediatamente anterior demonstrou a pretensão constitucional de estabelecer que toda forma de propriedade fosse por ele intrinsecamente permeada 27. Esclarece o professor Carlos Araújo Leonetti que o constituinte de 1988 fez com que o princípio da função social da propriedade passasse a integrar o próprio desenho, a estrutura mesmo, do direito à propriedade privada, condicionando este ao cumprimento daquele. Em outras palavras, a partir da CF/88, apenas a propriedade privada que cumpra sua função social faz jus à proteção jurídica; daí a extraordinária importância da inovação constitucional28. A propriedade urbana, no cumprimento de sua função social, deve respeitar parâmetros ambientais em sua edificação e utilização. Segundo determinação do artigo 182, §2º, da CF/88, “a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”. Esse, por sua vez, é o “instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana” (artigo 182, §1º, da CF/88) que “tem por objeto ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes” (artigo 182 da CF/88). Tratando desse assunto, o tributarista Heleno Taveira Tôrres destaca que “todo meio ambiente artificial29 deve receber muita atenção por parte dos poderes públicos, ao que o 26 Direito ambiental constitucional. 6. Ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 220. Idem. Curso de direito constitucional positivo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 280. 28 O IPTU e a função social da propriedade. Disponível em: <http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/files/journals/2/articles/20267/public/20267-20268-1-PB.html>. Acesso em 15 de março de 2010. 29 Por meio ambiente artificial entende-se aquele cuja responsabilidade pela construção é do Homem, é obra do Homem, em contraposição ao meio ambiente natural, composto pela natureza (água, ar, solo, e outros recursos naturais). 27 79 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições instrumento tributário poderá ser sobremodo útil à sua ordenação saudável e equilibrada” 30. Demonstra-se, assim, a relevância da análise das possibilidades de aplicação do IPTU ambientalmente orientado no cenário nacional. Algumas ações demonstram-se desde já possíveis de implementação em razão de alguns municípios brasileiros já estarem adaptando suas legislações nesse sentido. Dentre elas a concessão de benefícios fiscais a contribuintes que utilizem em suas propriedades urbanas técnicas de reaproveitamento de água e de energia elétrica. 4.2 As alterações propostas pela PEC 353/2009 Como visto, é possível a utilização da progressividade do IPTU com o intuito atingir fins ecológicos. Todavia, em que pese esta medida já ser possível na atual redação do texto constitucional, tramita perante o Congresso Nacional a Proposta de Emenda Constitucional nº 353/2009, de autoria do Deputado Roberto Rocha. Na justificativa para o envio do projeto de emenda, percebe-se a intenção de efetivar uma “Reforma Tributária Ambiental”, inspirada na Environmental Tax Reform – ETR européia. Explica o Deputado: No Brasil, pouca atenção foi dada à ETR, seja nos meios políticos, seja nos meios acadêmicos. A expressão “Reforma Tributária Ambiental” é pouco conhecida, sinal de que nosso país tardiamente vem acordando para a necessidade da introdução da questão ambiental no centro da agenda política nacional. […] No âmbito do IPTU, a proposta possui a seguinte redação: PROPOSTA DE EMENDA À CONSTITUIÇÃO Nº 353, DE 2009 (Do Sr. Roberto Rocha e outros) Altera os artigos 149, 150, 153, 155, 156, 158 e 161 da Constituição Federal. As Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, nos termos do art. 60 da Constituição Federal, promulgam a seguinte emenda ao texto constitucional: Art. 1º Esta Emenda Constitucional dispõe sobre a Reforma Tributária Abiental. Art. 2º A Constituição passa a vigorar com os seguintes artigos alterados: […] “Art. 156. …........................... …............................. 30 Da relação entre competências constitucionais tributária e ambiental – os limites dos chamados “tributos ambientais”. In: TÔRRES, Heleno Taveira (Org.). Direito tributário ambiental. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 116. 80 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições § 1º ….............................. II – ter alíquotas diferentes de acordo com a localização e o uso do imóvel e o respeito à função socioambiental da propriedade. …..........................” Com a alteração proposta, o art. 156 da Constituição Federal passaria a conter a seguinte redação: Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre: I - propriedade predial e territorial urbana; [...] § 1º Sem prejuízo da progressividade no tempo a que se refere o art. 182, § 4º, inciso II, o imposto previsto no inciso I poderá:(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000) I - ser progressivo em razão do valor do imóvel; e (Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000) II - ter alíquotas diferentes de acordo com a localização e o uso do imóvel.(Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000) II – ter alíquotas diferentes de acordo com a localização e o uso do imóvel e o respeito à função socioambiental da propriedade. […] (grifou-se) Conforme destacado linhas acima, cabe ao plano diretor (art. 182, § 1º e 2º da Constituição Federal) estabelecer as determinações referentes à ordenação da cidade que, se cumpridas, demonstrarão que a propriedade desempenha sua função social. Portanto, no novo texto constitucional proposto caberá também ao plano diretor estabelecer quais os requisitos a serem cumpridos para que a propriedade cumpra com sua função não só social mas também socioambiental. Neste sentido, Maria de Fátima Ribeiro ensina que: É através do Plano Diretor que os municípios desenvolverão suas competências de promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano. […] A finalidade do planejamento local é o adequado ordenamento do território municipal, com o objetivo de disciplinar o uso, o parcelamento e a ocupação do solo urbano (art. 30, VIII). O solo qualifica-se como urbano quando ordenado para cumprir destino urbanístico, especialmente a edificabilidade e o assentamento viário. Esse ordenamento é função do Plano Diretor, aprovado pela Câmara Municipal, a que a Constituição Federal elevou à condição de instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana (art. 182, § 1º, CF). Assim, o Plano Diretor constitui o instrumento pelo qual se efetiva o processo de planejamento urbanístico local. Demonstra ser um instrumento potencializador da 81 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições demanda por proteção ambiental, uma vez que normatiza a atuação estatal junto com a comunidade na ordenação de um meio ambiente urbano equilibrado e saudável promovendo a qualidade de vida no meio ambiente urbano.31 É interessante observar que a inserção de uma previsão constitucional de utilização da progressividade do IPTU para fins socioambientais diminuirá consideravelmente a possibilidade de questionamentos quanto à constitucionalidade das legislações municipais editadas no atual panorama constitucional. Este, aliás, foi um dos motores propulsores do Projeto de Emenda, conforme se denota das palavras do Deputado Roberto Rocha, na justificativa do projeto: Na doutrina jurídica brasileira, o tema também tem sido negligenciado, talvez não por motivação político-ideológica, senão por desconhecimento. Essa ausência de percepção do problema, que também pode ser explicada pelo distanciamento da dogmática jurídica em relação a outros ramos das ciências sociais e econômicas, seria capaz de gerar, inclusive, defesas apaixonadas da inconstitucionalidade de proposições legislativas que almejassem introduzir o elemento ambiental em qualquer das normas de incidência de nosso sistema tributário nacional. Portanto, com a nova redação do artigo 156 da Constituição Federal proposta pela PEC nº 353/2009, serão minimizadas as possibilidades de questionamento da constitucionalidade das legislações municipais supervenientes a ela que instituam em seus textos a progressividade do IPTU com fins de garantir o cumprimento da função socioambiental da propriedade. 5 CONCLUSÃO O estudo minucioso dos problemas ambientais e a conseqüente previsão legal da necessidade dos cuidados com o meio ambiente levam a crer que a cada dia aumentam a conscientização e a preocupação com o desenvolvimento sustentável, que nada mais é do que a utilização racional dos recursos naturais para que estes perdurem para as gerações futuras. Primeiramente, a Convenção de Estocolmo, em 1972, alertou sobre a necessidade de maior atenção ao meio ambiente, como forma de frear o extrativismo desenfreado. Aqui no Brasil, antes mesmo da RIO 92, a Constituição Federal já previu, em seus artigos 170 e 225, o ônus do Estado em lutar pela defesa do meio ambiente. Dessa forma, a instituição de tributos ambientalmente orientados encontra seus delineamentos na defesa da concretização do desenvolvimento sustentável, sem prejuízo do 31 O IPTU Conforme Disposições do Estatuto da Cidade. In: PEIXOTO, Marcelo Magalhães (Coord.). IPTU – Aspectos Jurídicos Relevantes. São Paulo: Quartier Latin, 2002, p. 461/462. 82 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições desenvolvimento econômico e financeiro dos países, mas de acordo com a exploração ordenada dos recursos naturais. Nesse contexto, impõe-se a utilização ambientalmente orientada da propriedade urbana, sendo o IPTU um eficiente instrumento para influenciar a tomada de atitudes ecologicamente positivas. Em que pese a atual ordem constitucional já permitir a utilização do IPTU neste sentido, certamente a aprovação do Projeto de Emenda Constitucional nº 353/2009 trará segurança jurídica principalmente aos municípios que pretenderem se utilizar desta ferramenta. Isto porque com a nova redação proposta ao inciso II do parágrafo 1º do artigo 156 da Constituição Federal será expressamente constitucionalizada a possibilidade de utilização da progressividade do IPTU como ferramenta para se perseguir o cumprimento da função socioambiental da propriedade urbana. REFERÊNCIAS AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. 11. ed. atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 2004. BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7. ed. atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro, 2006. BALTHAZAR, U.C. 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A partir de uma análise da cidade de Fortaleza, verificaram-se alterações climáticas provenientes do seu rápido e desordenado crescimento urbano. A outrora “Cidade Luz” amarga inúmeros problemas de cunho urbanístico e ambiental, sendo melhor designada nos dias atuais como “estufa alencarina”. PALAVRAS-CHAVE: Expansão urbana, Alterações Climática, Fortaleza. ABSTRACT: This work was developed with the aim of deepening the theme related to the expansion of cities and their contribution to climate change, an issue of great relevance in today's society. The aim of this article is to show that indiscriminate constructions or inconsistent with existing legal provisions may adversely affect the urban climate, hurting the preservation of local environment and collective well-being, and this fact implies the failure of social and environmental function of property. From an analysis of the city of Fortaleza, there have been climate changes from their rapid and unplanned urban growth. The once "City Light" bitter numerous problems of urban and environmental imprint, best known nowadays as "alencarin greenhouse”. KEY-WORDS: Urban Sprawl, Climate Changes, Fortaleza. 1 INTRODUÇÃO As modificações climáticas derivadas das atividades humanas é um tema de grande importância na atualidade e muitos esforços estão sendo realizados no intuito de minimizar os 1 Advogada (Bacharel em Direito pela UFC), Especialista em Direito Civil-(UNIFOR), Mestranda em Desenvolvimento e Meio Ambiente- PRODEMA-UFC, Fortaleza, Ceará, [email protected]. 2 Arquiteto (Faculdade de Arquitetura - UFC), Especialista em Tecnologia do Ambiente Construído (CENTEC Centro de Ensino Tecnológico - Ceará), Mestrando em Desenvolvimento e Meio Ambiente -PRODEMA- UFC, Fortaleza, Ceará, [email protected]. A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições danos locais e mundiais. Para fazer uma análise sobre as alterações climáticas no ambiente urbano faz-se relevante expor algumas considerações sobre a função social e ambiental da propriedade urbana. O clima influi diretamente na qualidade de vida do homem e construções urbanas causadoras de prejuízos ao chamado “microclima” da cidade além de não obedecerem o art. 225 da Constituição Federal de 88 (que estipula a preservação do meio ambiente) ainda ferem o bem-estar coletivo, fato este que acarreta na não aplicação da sua função socioambiental. O eixo temático do artigo tem como foco principal a cidade de Fortaleza, visto que esta se encontra envolta por inúmeros problemas de cunho urbano, sendo que as alterações climáticas fazem parte desta situação proveniente da rápida e desordenada evolução da capital cearense que ainda hoje sofre com as irregularidades na aplicação das disposições do seu Plano Diretor. 2 A FUNÇÃO SOCIAL E AMBIENTAL DA PROPRIEDADE URBANA A atual Constituição Federal brasileira garante o direito à propriedade (Direitos e Garantias Fundamentais), confirmando que ela atenderá a sua função social (art.5º, XXIII), criando uma série de condições para que o proprietário possa exercer seus poderes com o escopo de garantir que os objetivos estipulados na Carta Magna sejam respeitados e cumpridos devidamente: “Art. 5º [...] XXII - é garantido o direito de propriedade; XXIII - a propriedade atenderá a sua função social”. A função social da propriedade é voltada para o bem-estar social, sobressaindo-se à antiga concepção romana que se utilizava do direito ilimitado sobre a coisa. A partir do entendimento de José Diniz de Moraes3, a própria palavra "função" vem do Latim funtio, functionis, significando trabalho, exercício, cumprimento ou execução. No aspecto semântico possui muitos sentidos, sendo utilizada de diversas formas. De acordo com Duguit, citado por Santos4: A propriedade já não é no direito moderno aquele direito intangível, absoluto, que o homem que possui a riqueza tem sobre ela. O proprietário, isto é, o possuidor de 3 MORAES, José Diniz de. A Função Social da Propriedade e a Constituição Federal de 1988. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 81. 4 DUGUIT apud SANTOS, Edilson Portela. A Constituição Brasileira em um Decênio de Vigência. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1957, p.69-70. 86 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições uma riqueza, tem, pelo fato de possuir riqueza, uma função social a cumprir; enquanto cumpre essa missão, seus atos de proprietário estão protegidos. Se não a cumpre, ou a cumpre mal, se por exemplo, não cultiva sua terra ou deixa arruinar sua casa, a intervenção dos governantes é legítima para obrigá-lo a cumprir sua função social de proprietário, que consiste em assegurar o emprego das riquezas que detenha, conforme o seu destino. A função social da propriedade visa justamente à obtenção de uma conciliação entre os direitos individuais dos que possuem a propriedade e a coletividade, tendo como finalidade principal o bem comum. O conceito de cidade é proveniente do vocábulo latino urbs e o chamado meio ambiente artificial está inserido neste contexto, visto que compreende o conjunto de edificações (espaço urbano fechado) e os equipamentos públicos (espaço urbano aberto).5A natureza jurídica ambiental do meio ambiente artificial foi estabelecido não somente pela Constituição, mas principalmente pelo Estatuto da Cidade. Mediante o entendimento de Venosa6, a instituição do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001) o tornou uma espécie de estatuto do cidadão, possuindo um cunho eminentemente social, objetivando melhorar o aproveitamento da propriedade urbana para que o cidadão pudesse realizar seus desígnios com sua família, passando a viver em um local urbano e meio ambiente eficiente, este seria o desenvolvimento sustentável. Vale ressaltar que, para aferição do desenvolvimento sustentável tem-se que obter uma evolução benéfica em três setores principais da sociedade: o econômico, o social e o ambiental. Apesar de a União possuir a competência para elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social, não pode deixar de se ressaltar a importância do Município em todo esse processo, considerando que ele é a base da estrutura do meio ambiente artificial e de direito urbanístico, sendo de grande relevância para o bem estar da população. O Estatuto da Cidade visa adequar a política urbana aos preceitos referentes ao princípio da função social da propriedade, tendo como escopo a obtenção de uma sociedade mais organizada urbanisticamente, influenciando as pessoas a visarem o bem comum, procurando 5 FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 11.ed. ver. Atual. Ampl. São Paulo: Saraiva, 2010. O autor ainda considera que o meio ambiente artificial: “não está empregado em contraste com o termo campo ou rural, porquanto qualifica algo que se refere a todos os espaços habitáveis (...)”.pg. 72. 6 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direitos reais. 2.ed. São Paulo: Atlas, 2002, v.5.pg.156. 87 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições estabelecer cidades mais organizadas e voltadas para o respeito dos direitos sociais, dentre eles o direito à propriedade e o modo correto para o seu planejamento, além da proteção e tutela ambiental (art. 4º). A função ambiental da propriedade se perfaz como um tipo de evolução do conceito da função social. A própria questão do meio ambiente e sustentabilidade estão devidamente expostas dentre os artigos da Constituição Federal de 1988, a exemplo dos arts. 225 e art. 22, IV; art. 24, VI, VIII, quem compõem a chamada Política nacional do Meio Ambiente com o estabelecimento da Lei nº 6. 938/1981, além do próprio art. 5º, inciso, XXIII, ao considerar a função ambiental da propriedade uma evolução da função social estipulada pela Constituição. Segundo o exposto no Dicionário Michaelis 7, ambiente é o meio em que vivemos ou em que vive cada um, ou seja, pode ser o meio natural, artificial, cultural e do trabalho. A Lei nº 6. 938/1981: Art 3º - Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por: I - meio ambiente, o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas; Dentre as inúmeras vertentes da qualificação do meio ambiente está aquela que se aplica ao direito de propriedade e a sua função ambiental. Figueiredo 8estabelece que: As normas de caráter ambiental que interferem na conformação do direito de propriedade constituem, em seu conjunto, a consubstanciação do princípio da função social da propriedade, mas não é este princípio um conjunto de regras relativas à limitação do direito de propriedade: ele é o próprio contorno jurídico do instituto da propriedade privada. Neste novo milênio, a função socioambiental da propriedade surge como um meio de coibir os excessos na utilização da propriedade, a fim de garantir o bem-estar da população. A Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6. 938/1981) estipula: Art 3º [...] III - poluição, a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente. a) Prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população”; (grifo nosso). A questão da função ambiental da propriedade está intrinsecamente ligada ao meio 7 MICHAELIS, Moderno dicionário da Língua Portuguesa. São Paulo: Companhia Melhoramentos, 1998.pg. 126. 8 FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de. A Propriedade no Direito Ambiental. 4. ed. Ver., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.p. 33. 88 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições 9 ambiente artificial. Di Sarno salienta que para haver uma sadia qualidade de vida para a população faz-se necessária a estruturação e a realização de uma política urbana condizente com o bem comum da sociedade. A função ambiental da propriedade relaciona-se diretamente com a sua função social, especialmente sob o enfoque o novo enfoque holístico e interdisciplinar que hoje se encontra as ciências humanas e naturais. Figueiredo10ainda contempla que não se deve adotar terminologia contrária à utilizada pela CF-88. Deve-se preferir a expressão dimensão ambiental da função social da propriedade. Mediante o autor, não existe na Constituição Federal, a expressão “sócioambiental” ou “socioambiental”, concluindo-se que mencionar a expressão “socioambiental” seria redundante, visto que as relações sociais modificam o meio ambiente e fazem parte do próprio ambiente em que se encontram. Segundo a Constituição Federal, qualquer relação de apropriação deve permitir o cumprimento de duas funções diferenciadas: uma de cunho individual (dimensão econômica da propriedade) e uma coletiva (dimensão socioambiental) que nem sempre se impõem de maneira simultânea11 Ayala12 considera que: O princípio da função social da propriedade se superpõe à autonomia privada, que rege as relações econômicas, para proteger os interesses de toda a coletividade em torno de um direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Somente a propriedade privada que cumpra a sua função social possui proteção constitucional. Por esta razão, seu cumprimento importa a imposição de uma sanção: a expropriação compulsória. Esta é suportada pelo proprietário exatamente em razão do exercício irresponsável do direito e da gestão inadequada dos recursos naturais. Através da execução do estipulado no Plano Diretor de cada cidade objetiva-se garantir o desenvolvimento da função social da propriedade, conforme o art. 182, § 2º, da Constituição Federal- 88. Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes. § 1º - O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades 9 DI SARNO, Daniela Campos Libório apud SANT‟ANNA Mariana Senna. Planejamento urbano e qualidade de vida-da Constituição Federal ao plano diretor. In: DALLARI, Adilson Abreu; DI SARNO, Daniela Campos Libório. Coords. Direito Urbanístico e Ambiental. Belo Horizonte: Fórum, 2007, pg. 153. 10 FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de. Obr. Cit., p. 38. 11 AYALA, Patrick de Araújo. Deveres Ecológicos e regulamentação da atividade econômica na Constituição Brasileira. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato. Orgs. Direito Constitucional Brasileiro. 3. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2010. pg. 297. 12 AYALA, Patrick de Araújo. Deveres Ecológicos e regulamentação da atividade econômica na Constituição Brasileira. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato. Orgs. Obr. Cit., pg. 294. 89 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana. § 2º - A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”. (grifo nosso) As disposições constitucionais supracitadas, o Estatuto da Cidade e o Plano Diretor visam adequar a política urbana aos preceitos referentes à função social e ambiental da propriedade, tendo como escopo a obtenção de uma sociedade mais organizada urbanisticamente, influenciando as pessoas a visarem o bem estar coletivo, procurando estabelecer cidades mais organizadas, voltadas para o respeito dos direitos sociais e a preservação do meio ambiente (art.225 da Constituição Federal de 1988). A função socioambiental da propriedade serve como meio de modificar o antes direito absoluto do dominus e impor que seus preceitos sejam respeitados para que o proprietário possa usufruir do seu bem sem prejudicar o bem-estar da sociedade, especialmente quando se considera que meio ambiente é tudo o que nos cerca abrangendo o natural, artificial, cultural e do trabalho. No Brasil, a expansão desordenada da maioria de suas metrópoles acarretou uma série de impactos ambientais, dentre estes, as alterações climáticas. O desenvolvimento capitalista voltado somente para o crescimento econômico vai de encontro à própria designação de desenvolvimento sustentável que, segundo o Relatório Brundtland é o desenvolvimento que satisfaz as necessidades presentes, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades. 13 3 AS MUDANÇAS CLIMÁTICAS E O DESENVOLVIMENTO NO BRASIL E NO MUNDO Durante séculos o homem explorou a natureza como se não houvesse o amanhã. Hoje, grande parte das nações se sente insegura quanto ao futuro da humanidade devido à crescente escassez de recursos naturais em contraposição ao aumento da população mundial e da poluição, fatores estes que contribuem com as mudanças climáticas. Como principais causas relevantes para o aquecimento global no último meio século tem-se a combinação do crescimento da população mundial e o consumo generalizado de energia fóssil. Além dos efeitos provenientes do homem, não se pode esquecer que o mundo 13 O Relatório Brundtland é o documento intitulado “Nosso Futuro Comum”, publicado em 1987 e elaborado pela Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento chefiado pela Ministra da Noruega, Gro Harlem Brundtland.Disponível em: HTTP://pt.wikipedia.org/wiki/Relat%C3%B3rio_de_Brundtland. Acesso em: 10 de setembro de 2010. 90 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições passa por um fenômeno natural interglacial. Com o desenvolvimento desordenado da humanidade desprovida da visão de sustentabilidade, as emissões de gases de efeito estufa (dióxido de carbono- CO², metanoCH4, óxido nitroso- N²O e os clorofluorcarbonos-CFC) fizeram com que a temperatura média do globo se elevasse paulatinamente de 13,2º C para 14º C entre os idos de 1900 e 2005, possuindo ainda uma previsão de elevação de mais 2 a 3ºC até 2050, caso não haja uma redução na emissão dos gases (IPCC, 2007)14. Com o aumento exacerbado das populações mundiais e, grande parte dela, instalada em áreas urbanas, o índice de emissão de poluentes tornou-se um problema de grande relevância, causando efeitos extremamente nocivos ao ar e ao clima. Duas fontes principais de emissão de poluentes são caracterizadas: fontes móveis (frota de veículos automotores) e fontes estacionárias (indústrias, usinas termoelétricas, incineradores de lixo, etc.). 15 No intuito de amenizar as evidentes modificações no clima da Terra devido à ação desastrosa dos seres humanos foram realizadas: a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano (1972); a Conferência das Nações Unidas sobre o meio Ambiente Humano e Desenvolvimento (1992); a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (1992); o Protocolo de Quioto (1997) e os Acordos de Marraqueche (2001). Após a Segunda Guerra Mundial, o mundo adentrou em uma corrida capitalista, ocasionando uma utilização desenfreada dos recursos naturais. 16 A poluição advinda das fábricas e a queima de combustíveis fósseis passaram a aumentar o efeito estufa e a produção de CFC‟s (clorofluorcarbonetos) provenientes dos sprays e ar condicionados17 se tornaram uma das principais causas dos problemas na camada de ozônio (O³) que protege todos os seres vivos dos raios ultravioletas. Além do supracitado efeito estufa, outros fenômenos surgiram derivados da poluição: o “smog” e as chuvas ácidas. Ainda em busca de remediar a problemática do clima, em 1972 foi criado um órgão 14 VIOLA, Eduardo J. In: FERREIRA, Heline Silvini; LEITE, José Rubens Morato; BORATTI, Larissa Verri. Orgs. Estado de Direito Ambiental: Tendências. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. Pg. 47. 15 ORSINI, Celso. In; MAGALHÃES, Luiz Edmundo de. Coord. A questão ambiental. 1.ed. São Paulo: Terragraph, 1994. 16 CASARA, Ana Cristina. Direito Ambiental do clima e créditos de carbono.Curitiba: Juruá, 2009, pg. 23 17 AFONSO, Sonia. Paisagem e Ambiente urbano Sustentáveis: Métodos e Ferramentas. Disponível em: http://soniaa.arq.prof.ufsc.br/sonia/ENEPEA/sonia2002.pdf. Acesso em: 23 de setembro de 2010. “Temperaturas elevadas em áreas urbanas aumentam uso de ar-condicionado e favorecem a concentração da poluição do ar. As áreas urbanas contemporâneas têm superfícies mais escuras e menos vegetação. Estas diferenças afetam o clima, o uso de energia, e a habitabilidade das cidades. Superfícies escuras e vegetação reduzida aquecem a camada de ar acima das áreas urbanas, conduzindo à criação de ilhas de calor.” 91 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições especializado da Organização das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), em 1988 foi instituído o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) 18 para analisar o papel do homem no meio ambiente e as variáveis climáticas. Em 1991 foi instaurada a Agenda 21 e em 2002 foi realizada em Johannesburgo a Cúpula Mundial sobre o Desenvolvimento Sustentável. Infelizmente, houve um grande fracasso nas negociações em Copennhague que culminou em 2008 em muitas discussões entre os líderes das grandes potências. Apenas a Comunidade Européia mostrou apoio, o contrário dos dois maiores poluidores mundiais, Estados Unidos e China com 20 e 23% (respectivamente) da emissão de gases a nível mundial. Chegou-se à conclusão que, para haver uma redução nas intempéries ocorridas pelos danos causados pelo homem e para a obtenção do desenvolvimento sustentável, haveria a necessidade de fazer a aplicação de um desenvolvimento não voltado somente para o crescimento em termos de PIB (Produto Interno Bruto) e de riquezas mas, principalmente, um crescimento com a valorização da qualidade de vida das pessoas e do meio ambiente. Viola19 faz a seguinte exposição sobre o Brasil: O Brasil tem uma população de 190 milhões de habitantes, um PIB de 1,6 trilhão de dólares e um PIB per capita de 8.000 dólares. Emite aproximadamente 1,8 bilhão de toneladas de carbono, correspondente a aproximadamente 5% das emissões globais, 9 toneladas per capita e 1,2 tonelada de carbono por cada 1.000 dólares de PIB. As emissões do Brasil nos anos 2005-2008 sofreram forte redução com referência ao período 2001-2004, devido à dramática queda da taxa de desmatamento na Amazônia, de uma média anual de 20.000 km² para uma média anual de 13.000 km². O Brasil é um dos países considerados hoje “em desenvolvimento”, mesmo assim, padece com diversos problemas de cunho social, político, econômico e ambiental nas suas cidades. Grandes metrópoles como São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Fortaleza, dentre outras, atravessaram por uma expansão urbana desordenada que, adicionada com a não aplicação correta dos dispostos contidos nos Planos Diretores, está causando uma série de 18 “O Quarto Relatório de Avaliação (AR4) do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) mostra que a temperatura média da Terra a superfície aumentou 0,76 º C desde 1850. A maior parte do aquecimento nos últimos 50 anos é muito provável que tenha sido causado pelas emissões de dióxido de carbono (CO2) e outros "gases estufa" das atividades humanas. Sem uma ação para reduzir essas emissões, a temperatura média global deve aumentar ainda mais por 1,8-4,0 °C neste século, e até 6,4 °C no pior cenário, as projeções do IPCC. Mesmo a extremidade inferior do intervalo levaria o aumento da temperatura desde a época pré-industrial acima de 2 ° C - o limiar além do qual muitos cientistas acreditam que as mudanças irreversíveis e possivelmente catastróficas se tornaria mais provável.” Disponível em:http://translate.google.com.br/translate?hl=ptBR&langpair=en%7Cpt&u=http://ec.europa.eu/environment/climat/home_en.htm. Acesso em: 23 de setembro de 2010. 19 VIOLA, Eduardo J. In: FERREIRA, Heline Silvini; LEITE, José Rubens Morato; BORATTI, Larissa Verri. Orgs. Estado de Direito Ambiental: Tendências. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. Pg. 47. 92 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições impactos no meio ambiente onde se encontram, tendo como uma de suas principais conseqüências as alterações climáticas. Na atualidade, a maioria da população mundial mora nas cidades. No Brasil, este fenômeno ganha visibilidade entre as décadas de 1950 e 1960, e vem crescendo continuamente desde então. “Em 1940 a população urbana representava apenas 31,24% do total, passando para 36,16% em 1950, 44,67% em 1960, 55,92% em 1970, 67,59% em 1980, 75,59% em 1991 e 78,36% em 1996.(...)” (AMORIM, 2000, p.16). Hoje, a população urbana brasileira já ultrapassou dois terços da população total do país. A substituição dos ambientes naturais por áreas urbanas gera o aumento das temperaturas nas escalas locais. Este fenômeno ocorre em função de vários fatores, tais como a diminuição das áreas verdes, a canalização dos córregos, o aumento das indústrias que liberam poluentes na atmosfera entre outras atividades inerentes à vida nas cidades, que além de gerarem o aumento nas temperaturas, causam a redução da umidade relativa, dando origem a um clima particular, denominado clima urbano.20 A fim de buscar meios para solucionar a problemática do clima, um dos principais projetos aplicados no Brasil é o MDL (Mecanismo de Desenvolvimento Limpo), com o intuito de reduzir as emissões de gases de efeito estufa possuindo vinculação ao Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), dentre outros órgãos. Como o MDL é um instrumento financeiro, faz-se necessário expor o conteúdo do art. 170 da CF-88: Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)” (grifo nosso). Como foi explanado acima, o efeito estufa é um grave problema de ordem climática que ocasiona o aumento da temperatura da Terra. A queima de combustíveis fósseis (carvão mineral, petróleo,etc.) prejudica ainda mais a situação, além de causar a poluição do ar atmosférico. Seguindo as estipulações hoje aplicadas ao Direito Ambiental, as fábricas ou qualquer ente que causar degradação ambiental serão responsabilizados seguindo legislação própria ou em esferas civis, administrativas e penais. Vale lembrar a Lei nº 9.605/98- (Lei de Crimes Ambientais) e a Resolução 237/1997 do CONAMA (Conselho Nacional do Meio Ambiente). 20 LIMA, Gabriela Narcizo de. Clima urbano em Teodoro Sampaio/SP: características da temperatura e umidade relativa do ar no início do anoitecer. Disponível em:. http://www4.fct.unesp.br/cursos/geografia/CDROM_IXSG/Anais%20%20PDF/Gabriela%20Narcizo%20Lima.pdf. Acesso em: 22 de setembro de 2010 93 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Além da poluição, outras causas levam à gradativa modificação no clima urbano das grandes metrópoles brasileiras. Construções irregulares ou em locais que literalmente “barram” a circulação dos ventos acabam por elevar a temperatura ou causar desastres gerados pelo mau escoamento das chuvas. Outro problema que agrava a situação das “ilhas de calor” encontra-se na região sudoeste, oeste e central de Fortaleza, área que, apesar de não possui muita verticalidade, as edificações são extremamente homogêneas e com pouca vegetação local. 21 As edificações que prejudicam não somente o clima urbano como também o meio ambiente que a cerca não está de acordo com um princípio basilar do direito de propriedade, a obediência à sua função social e ambiental. Infelizmente, em um país como o Brasil, que cresceu de maneira desordenada, principalmente na área urbana, muitas construções encontram-se nesta situação. O proprietário que estiver causando danos ao meio ambiente também está abusando do seu direito de propriedade (art. 1228, § 1º, do Código Civil Brasileiro. Lei 10.406/2002): Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha. § 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas. (grifo nosso). José Afonso da Silva22 considera que: [...] o assunto integra o título da ordem social, onde se estatui que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações (art. 225). É um campo que integra, na sua complexidade, a disciplina urbanística, mas se revela como social, na medida em que sua concreção importa em prestação do Poder Público. 21 “A hipótese já colocada anteriormente de que as áreas de grande concentração de massa edificada de aspecto homogêneo é a mais cogitada para explicar o fato dos setores sudoeste, oeste e porção central apresentarem as mais freqüentes e elevadas temperaturas do ar na cidade, isso porque há o rápido aquecimento da massa edificada de estrutura homogênea e, consequentemente, o ligeiro aquecimento da temperatura do ar por convecção, (...)”.MOURA, Marcelo de Oliveira; ZANELLA, Maria Elisa; SALES, Marta Celina Linhares. Ilhas térmicas na cidade de Fortaleza, Ce. Boletim Goiano de Geografia. Goiás, v.28, n. 2, p. 33-34, jul./dez., 2008. Disponível em: http://www.revistas.ufg.br/index.php/bgg/article/viewFile/5718/4523. Acesso em 29 de jun. de 2010. 22 SILVA, José Afonso da. Apud 22 ROSA, ALEXANDRE MORAIS DA. Princípios Ambientais, Direitos Fundamentais, Propriedade e Abuso do Direito: por uma leitura a partir do Garantismo Jurídico (Ferrajoli). Disponível em: http://www.advocaciapasold.com.br/publicacoes/principiosdedireitoambiental.doc. Acesso em: 12 de setembro de 2010. 94 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Ao causar degradação ambiental que inclui a poluição e emissão de gases de efeito estufa em desobediência ao estipulado pela legislação, o proprietário não atende a função social da propriedade que inclui a preservação do meio ambiente e a manutenção do bemestar social. O Brasil pode ser considerado pela ONU (Organização das Nações Unidas) como um país em desenvolvimento, mas não especificou que a expansão brasileira é gerada pela exploração de muitos trabalhadores e muitos destes vivem em condições sub-humanas nas grandes metrópoles, em lugares por vezes insalubres. O desenvolvimento verde e amarelo não se perfaz conjugando a economia, o social e o ambiental, as bases principais para a sustentabilidade. Todas estas colocações mostram que, nas cidades brasileiras, o PIB (Produto Interno Bruto) é mais valorizado do que o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) e como o bemcomum não é passível de barganha, o povo e o meio ambiente sofrem com as conseqüências, inclusive o clima da região. Mesmo com tentativas provenientes do exterior ou mesmo de caráter interno, o Brasil ainda precisa desenvolver melhores formas de aplicação da sua política urbana para evitar que mais complicações no meio ambiente urbano se realizem nos anos vindouros. 4 A EXPANSÃO URBANA E A INFLUÊNCIA NAS ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS: O CASO DE FORTALEZA A cidade de Fortaleza enfrenta na atualidade os problemas derivados de uma expansão urbana desordenada23 com diversas construções em áreas que são importantes para a circulação dos ventos dentro da capital cearense, ocasionando o aumento da sensação térmica na maioria de seus bairros. Os dados do IBGE (censo 2000) apresentam uma população de 2.141.402 habitantes e densidade 63,89 hab/ha24.”. 23 FREITAS, Clarissa F. Sampaio. A produção desequilibrada do meio ambiente urbano de Fortaleza e o papel do movimento ambientalista. Disponível em: http://www.anppas.org.br/encontro_anual/encontro2/GT/GT11/gt11_clarissa_freitas.pdf. Acesso em: 23 de setembro de 2010. “Para demonstrar esse argumento, o artigo expõe o processo de transformação do espaço natural de Fortaleza baseando-se na teoria marxista de desenvolvimento desequilibrado (Smith, 1984). O caso de Fortaleza demonstra que o discurso da preservação ambiental tem facilitado uma lógica de desenvolvimento urbano capaz de alimentar um ciclo vicioso de geração de desigualdades sócio-ambientais no espaço intraurbano.” 24 LOUREIRO, Caroline Vitor; FARIAS, Juliana Felipe. IMPACTOS AMBIENTAIS RESULTANTES DA IMPERMEABILIZAÇÃO DO SOLO NA CIDADE DE FORTALEZA-CE . Disponível em: http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:http://www.geo.ufv.br/simposio/simposio/trabalhos/trab 95 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições A ocupação desorganizada do homem vem provocando modificações na paisagem da área através da impermeabilização do solo, descaracterização da cobertura vegetal, mudanças nos cursos d‟água e aterramento das lagoas, implicando em alterações climáticas no entorno Os relatórios ambientais por vezes não contemplam os problemas gerados pela expansão urbana descontrolada sobre o clima, favorecendo a emissão de licenciamentos ambientais passíveis de erro, podendo gerar ações governamentais equivocadas que influenciam os gestores nas suas deliberações. Muito destes estudos ambientais desconsideram a biodiversidade local, as particularidades do ecossistema e induzem a descaracterização do meio ambiente, impactando negativamente na questão climática, fenômeno que influi diretamente na perda da qualidade de vida da população. Fiorillo considera25 O relatório de impacto ambiental e o seu correspondente estudo deverão ser encaminhados para o órgão ambiental competente para que se proceda a analises sobre o licenciamento ou não da atividade. Moura26 explica faz-se necessário um entendimento mais profundo sobre o sítio natural é importante para considerações sobre o clima de uma região. Fortaleza, por apresentar topografia plana, garante maior fluidez à penetração dos ventos, excetuando-se a região das dunas e relevos litorâneos, principalmente os localizados a leste da cidade. Na primeira metade do século XX, a capital cearense foi constituída por um núcleo formado pelo centro comercial e alguns bairros circundantes ocupados pelas elites locais, configuração esta que permaneceu até os idos dos anos 60, quando intervenções do governo, somados ao êxodo rural derivado da intensidade das secas, motivaram a expansão urbana que atingiu limites impensados pela maioria dos habitantes da metrópole. A partir de 1972, instituiu-se o PLANDIRF (Plano de Desenvolvimento Integrado da Região Metropolitana de Fortaleza), projeto este que orientou a criação da Região Metropolitana onde Fortaleza já assumia papel de significativa importância, promovendo transformações espaciais de certas regiões à custa das demandas da Metrópole. Com o advento da Constituição de 1988, as políticas urbanas municipais passaram por transformações, gerando mudanças de cunho legislativo e administrativo de Fortaleza. alhos_completos/eixo11/018.pdf. Acesso em: 23 de setembro de 2010. 25 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2010. 26 MOURA, Marcelo de Oliveira. O clima urbano de Fortaleza sob o nível do campo térmico. (Dissertação de Mestrado). Fortaleza: Programa de Pós-graduação em Geografia/UFC, 2008. 96 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Os arts. 182 e 183 da Carta Magna de 1988 referem-se às competências do Poder Público Municipal e a obrigatoriedade do Plano Diretor como base para as políticas públicas, objetivando ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bemestar de seus habitantes. Segundo Accioly27, a partir da Constituição, o Plano Diretor passa a ser uma exigência legal e instrumento base para a implantação de políticas urbanas, tendo o Governo Municipal como agente regulador e promotor do desenvolvimento e o Estado no papel de gestor central. O Estatuto da Cidade, Lei 10.257, de 10 de julho de 2001, entrou em vigor no dia 10 de outubro de 2001 e regulamentou os artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988. Estes dois artigos da Constituição da República tratam especificamente da Política Urbana. Mediante o exposto no art.2º do Estatuto da Cidade: Art. 2º. A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais: I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações; II – gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano;[...] IV – planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população e das atividades econômicas do Município e do território sob sua área de influência, de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente. Em 1981 foi elaborado o Código de Obras e Posturas de Fortaleza (Lei nº 5.530), em 1992 é aprovado o PDDUFOR (Plano Diretor de Fortaleza) e em 1996 é aprovada a Lei de Uso e Ocupação do Solo (Lei nº 7.987) que se tornam instrumentos legais de orientação das práticas urbanas de agentes públicos e privados. Durante a gestão do prefeito Juraci Magalhães foram criadas as Secretarias Executivas Regionais (SER‟s) e foi extinto o IPLAM (Instituto de Planejamento do Município), o que favoreceu a gestão fragmentada da cidade com o ganho de força política e administrativa das regionais que passaram a se tornar “mini-prefeituras”, superestimando as questões políticas em detrimento do planejamento urbano adequado. 27 ACCIOLY, Vera Mamede. A metrópole e o impacto das políticas públicas na expansão urbana: Fortaleza entre 1980 e 2008. Disponível em: Disponível em: http://egal2009.easyplanners.info/area05/5837_Vera_Mamede_Accioly.pdf. Acesso em: 28 de jun. 2010. 97 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições 28 Silva considera: [...] a influência dos movimentos sociais na expansão urbana foi mais expressiva quando a cidade adquiriu o status de metrópole. Neste momento, destacam-se a sua participação nos fóruns de discussão do Plano Diretor, como também em mobilizações, forçando mudanças nas políticas públicas, nos projetos de renovação urbana e também em ações dos grupos empresariais, quando comprometem o meio ambiente e atingem a população local. Fortaleza se encontra próxima à linha do Equador e possui aproximadamente trinta quilômetros de faixa praia inserida entre a foz dos rios Ceará e Pacoti. Por estar situada nesta região, a cidade recebe altos índices de insolação, condição que repercute em elevadas temperaturas durante todos os meses do ano, baixa amplitude térmica e altas taxas de evaporação. Além disso, a cidade apresenta uma quadra chuvosa de aproximadamente três meses, preferencialmente entre março e maio, podendo se prolongar em determinados anos. A maritimidade29 domina o clima da cidade, garantindo uma temperatura média estável no decorrer do ano. A presença do mar, devido às propriedades termodinâmicas da água, acumula todo o calor recebido durante o dia, equilibrando as temperaturas à medida que a energia solar diminui de intensidade. Devido ao tropismo, ou seja, a mudança que acontecem nos trópicos resultantes das transformações que acontecem em lugares afastados, especialmente a Europa, nos idos do século XX ocorreram uma série de mudança comportamentais dos habitantes da capital cearense que passaram a freqüentar a Orla, inicialmente por critério terapêutico e, posteriormente, como meio de lazer e prática da vilegiatura.30 Com o passar dos anos, as praias cearenses se voltaram ao turismo e localidades como a Beira-Mar foram alvo de intensa especulação imobiliária, ocasionando a construção de edifícios com elevada altitude, o que passou a ser um legítimo “paredão de concreto” para os ventos advindos do oceano. Os oceanos são muito importantes para o controle dos fluxos globais de energia, pois armazenam quantidades consideráveis de radiação solar que absorvem ou liberam lentamente, estabilizando as temperaturas do globo. 28 SILVA apud ACCIOLY, Vera Mamede. Obr. Cit.. DANTAS, Eustógio Wanderley Correia. Maritimidade dos Trópicos: Por uma Geografia do Litoral. Fortaleza:Edições UFC, 2009. O autor tem como maritimidade: “ (...) maneira cômoda de designar conjunto de relações de uma população com o mar (...)”. pg. 15. 30 DANTAS, Eustógio Wanderley Correia. Obr. Cit. O autor expõe: “ três aspectos de valorização da zona de praia em Fortaleza podem ser anunciados: a) trata-se de processo em construção, resultante da interiorização ou da recusa dos sinais emitidos do Ocidente; b)representa fator de diferenciação social; c)engloba, com o advento das inovações tecnológicas no domínio da comunicação (notamente televisão ),progressivamente outros grupos e indivíduos.” Pg. 29. 29 98 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições 31 De acordo com Xavier , a velocidade dos ventos foi diminuída em cerca de 50% em virtude de construções indevidas na orla marítima, trazendo repercussões negativas à qualidade de vida dos habitantes. A rápida expansão da cidade e as grandes obras de infra-estrutura provocaram um reordenamento urbano da população. Ainda na década de 80, ocorreu uma transformação urbana em decorrência da mobilidade gradativa da elite que se deslocou dos bairros mais adensados (exemplo: Aldeota e Meireles) para outros da região sul e sudeste (exemplo: água Fria, Edson Queirós,etc.), buscando regiões diferenciadas longe da violência e poluição dos maiores centros, com espaços mais reservados, avenidas mais amplas e espaços verdes. Nas áreas urbanas, mais especificamente Fortaleza, as modificações induzidas no clima pela ação antrópica são nítidas e visíveis. Sobre estas pairam um sistema climático próprio, no qual as propriedades e sensações climáticas são completamente distintas do clima regional predominante. A análise da relação entre a climatologia e a cidade faz-se importante, visto que o clima é conjunto das interações entre as atividades antrópicas e a atmosfera local, resultando nas “ilhas de calor”32. Esse fenômeno também pode ser gerado pelas propriedades dos materiais de construção que armazenam calor durante o dia e o liberam à noite; pela adição de calor resultante das atividades humanas; pelo aumento das superfícies impermeáveis e pela redução da vegetação e velocidade dos ventos provocada por edificações de alto gabarito, os “canyons urbanos” 33. As edificações constituem um obstáculo ao resfriamento urbano por dificultarem a perda de radiação de ondas longas para o espaço. Fator este, que determina o resfriamento das superfícies e do ar adjacente. Áreas com maior compactação de construções elevadas são mais difíceis de resfriamento e há uma interferência na quantidade de radiação solar que atinge as superfícies da estrutura urbana, haja vista que grande parte desta região é por elas bloqueada. Quanto mais altas e mais compactas são as edificações, menor o acesso do entorno à radiação solar. 31 XAVIER apud MOURA, Marcelo de Oliveira; ZANELLA, Maria Elisa; SALES, Marta Celina Linhares. Ilhas térmicas na cidade de Fortaleza, Ce. Boletim Goiano de Geografia. Goiás, v.28, n. 2, p. 33-34, jul./dez., 2008. Disponível em: http://www.revistas.ufg.br/index.php/bgg/article/viewFile/5718/4523. Acesso em 29 de jun. de 2010. 32 MONTEIRO, C.A.F. Teoria e Clima Urbano. Série Teses e Monografias nº 25. São Paulo: IGEOC-USP, 181p. 1976. 33 MOURA, Marcelo de Oliveira; ZANELLA, Maria Elisa; SALES, Marta Celina Linhares. Obr. Cit.. 99 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Além disso, pode haver uma redução do acesso solar provocada pela emissão de poluentes em áreas urbanas. Os edifícios construídos em climas tropicais, como no caso de Fortaleza, deveriam ser permeáveis, garantindo a circulação de ar para diminuição da sensação térmica, mas a intensa urbanização gera “microclimas” em determinados pontos com características diferentes dos informados pelas estações meteorológicas. Esta situação juntamente com a impermeabilização do solo, retirada da cobertura vegetal e emissão de poluentes que aumentam a inércia térmica, contribuem para o efeito “ilha de calor”.34. Portanto, quanto mais altas e mais compactas são as edificações, juntamente com a emissão de poluentes em áreas urbanas, menor o acesso do entorno à radiação solar. Rosa35 considera que: Exemplificando: apesar de existir uma regra jurídica autorizando (Plano Diretor) a construção de um prédio de 15 andares na faixa de praia de uma cidade litorânea, tal regra viola o princípio maior de preservação do meio ambiente e da solidariedade, por implicar no efetivo prejuízo dos demais indivíduos em utilizar convenientemente o bem público = praia. Isto porque, por mais que exista autonomia municipal para regulamentar o gabarito dos prédios, essa autonomia não pode violar o princípio da solidariedade e da ampla preservação do meio ambiente sadio (CF, art. 225). De sorte que a regra municipal pode ser enquadrada como abuso de direito desde que no cotejo com os princípios, posto que os princípios informadores do direito de propriedade, como visto, cedem quando em tensão com os princípios de Direito Fundamental. A sensação térmica também recebe influência através do índice de cobertura vegetal de uma região. Áreas verdes de uma cidade podem ainda contribuir para o efeito de canalização dos ventos, proporcionando o resfriamento das superfícies, além de atuar como moderadora das velocidades extremas do ar no microclima urbano. Os paredões urbanos aumentam a sensação de calor na cidade, principalmente pelas construções de grande porte situadas na orla marítima causando verdadeiras barreiras à ventilação. Algumas regiões densamente urbanizadas sofrem mais com esta problemática devido à absorção de calor pelo concreto e da malha asfáltica das vias, o que ocasiona o aquecimento da superfície e do ar circulante. 34 CORBELLA, Oscar e YANNAS, Simos. Em busca de uma Arquitetura Sustentável para os trópicos. Conforto ambiental. Rio de Janeiro: Revan, 2003. 35 ROSA, Alexandre Morais da. Princípios Ambientais, Direitos Fundamentais, Propriedade e Abuso do Direito: por uma leitura a partir do Garantismo Jurídico (Ferrajoli). Disponível em: http://www.advocaciapasold.com.br/publicacoes/principiosdedireitoambiental.doc. Acesso em: 12 de setembro de 2010. 100 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Segundo o Diário do Nordeste36 (16/11/2009): A ostensiva ocupação da faixa litorânea da cidade por "paredões", construções de grande porte, não é determinante em termos de altura para considerar que houve, nos últimos anos, um aumento da temperatura média em Fortaleza. Conforme o meteorologista da Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme), Eduardo Peixoto, o que acontece, devido a isso, é o aumento da sensação de calor e não uma alteração climática pelo crescimento da temperatura média. "O concreto absorve muito calor e aquece mais do que o vegetal. Como o ar aquece a partir da superfície, se a superfície está mais quente, o ar fica mais quente também", disse. Conforme ele, muros de prédios na orla de cidades litorâneas como Fortaleza são barreiras para a ventilação. Com isso, aumenta a sensação térmica de calor, que é mensurada a partir da junção da temperatura, ventos e umidade do ar.” A sensação de aquecimento vem gerando intensas reclamações por parte dos moradores. Fortaleza hoje recolhe os efeitos de uma organização urbana deficitária e expansão desordenada que acarretaram inúmeros problemas de cunho não somente social e econômico, como também prejuízos indeléveis ao bem-estar de sua população. Além de todas as causas acima relacionadas, como o aumento da sensação térmica na cidade de Fortaleza, existe ainda a questão do aquecimento global. Há cinco anos, a cidade não registrava um calor tão intenso. A afirmação é do doutor em Ciências Atmosféricas e professor da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Alexandre Costa.De acordo com o pesquisador, três fatores contribuem diretamente para esse calorão. O primeiro, de abrangência local, tem a ver com a expansão da cobertura asfáltica e a ocupação desordenada de lagoas e áreas verdes. O segundo, de alcance mundial, está relacionado ao onipresente aquecimento global. ``De fato, o planeta todo está mais quente``, informa. Por fim, um velho conhecido está de volta: o El Niño, que desde 2005 não dava as caras no Ceará. (O POVO, 28/01/2010)37 Estudos mostram que as mudanças climáticas em áreas tropicais estão associadas à transformação da energia na área urbana influenciadas pela morfologia, pelas propriedades dos materiais das superfícies construídas e pela produção antropogênica de calor. Este fenômeno traz implicações na redução da velocidade dos ventos, causada pelo aumento da rugosidade superficial38 . As conseqüências do processo são variáveis de acordo com o tipo de cidade, formas de relevo, tamanho da área urbanizada. Esta situação pode ser observada em bairros como 36 VASCONCELOS, Paola. Cidade cercada por um cinturão de concreto. Diário do Nordeste. Disponível em: http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=692366. Acesso em: 22 de junho de 2010. 37 O POVO. 2010: ano de muito calor e pouca chuva. Disponível em: http://www.sct.ce.gov.br/noticias/2010ano-de-muito-calor-e-pouca-chuva. Acesso em: 22 de jun. de 2010. 38 ASSIS, Eleonora Sad de. Aplicações da climatologia urbana no planejamento da cidade: revisão dos estudos brasileiros. Disponível em: http://www.portalseer.ufba.br/index.php/rua/article/viewArticle/3149. Acesso em: 28 de jun. de 2010. 101 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Meireles e Aldeota na capital cearense. As legislações urbanísticas, em particular a de planejamento urbano, muitas vezes não incorporam as mudanças climáticas provenientes das atividades antrópicas em sua agenda. Em Fortaleza, o clima é considerado por planejadores do espaço a partir de um único ponto da cidade, desconsiderando que o espaço urbano modifica a atmosfera gerando inúmeros climas urbanos, denominados “microclimas”39. A questão é que o problema climático de uma região é dinâmico, mesmo assim, os gestores públicos ainda persistem no erro de considerá-lo de forma isolada e estática, prejudicando a sua avaliação final. Atualmente, a sensação de aquecimento vem gerando intensas reclamações por parte dos moradores de Fortaleza, devido não somente ao aumento da temperatura no planeta proveniente do efeito estufa, mas também a uma organização urbana municipal deficitária gerada pela expansão desordenada, acarretando inúmeros problemas sociais e econômicos, além de prejuízos indeléveis ao bem-estar de sua população. O crescimento desorganizado do município acompanhado de inúmeras intervenções pontuais no ambiente alterou o clima original de Fortaleza, já bastante modificado pela urbanização excessiva40. Tal fenômeno não é mensurado nas políticas de desenvolvimento urbano necessitando sensibilização para discussão sobre as possíveis mudanças climáticas no meio ambiente da cidade. Segundo o Jornal “Diário do Nordeste” (15/08/2010) 41: O caos urbano que passa pelo trânsito e pelo transporte, a falta de serviços em determinados locais, a ausência de espaços de lazer, periferias inchadas e desordenadas e áreas nobres com empreendimentos que negam o espaço público. Assim vive Fortaleza. E a Cidade vem crescendo 2% ao ano e incorporando 50 mil habitantes anualmente. Muitos problemas poderiam ser evitados se o Município pudesse contar com um Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano que fosse aplicado na sua plenitude. [...] Apesar de lançado em 2009, o Plano Diretor Participativo de Fortaleza (PDP-FOR) é uma peça ficcional por falta de regulamentação de leis complementares. Somente os novos índices de construção, que orientam o mercado imobiliário, entraram em vigor. (...) A descentralização dos estudos de planejamento urbano é uma das barreiras para a institucionalização dos instrumentos. A Fundação de Desenvolvimento Habitacional (Habitafor), a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano e Infraestrutura (Seinf) e a Secretaria de Planejamento e Orçamento (Sepla) se revezam nas ações de 39 MOURA, Marcelo de Oliveira. Obr. Cit. MOURA, Marcelo de Oliveira; ZANELLA, Maria Elisa; SALES, Marta Celina Linhares. Obr. Cit.. 41 MOSCOSO, Lina. Plano diretor de Fortaleza carece de leis regulamentadas. Diário do Nordeste. Disponível em: http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=832090. Acesso em: 20 de setembro de 2010. 40 102 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições planejamento. Fora isso, Fortaleza é a única capital brasileira que não possui um Instituto Municipal de Planejamento Urbano, organismo público responsável pela atualização e pelo acompanhamento dos planejamentos urbano e ambiental da cidade e pela análise prévia da adequação legal dos projetos construtivos públicos ou privados, em especial, os empreendimentos impactantes, contemplados ou não pelo Plano Diretor. Na capital cearense, várias áreas estão completamente loteadas mas, apesar dos avanços obtidos pela Lei 10.257/2001 (Estatuto da Cidade), onde se discute entre outras questões a função social da terra urbana, terrenos encontram-se subutilizados, ocasionando a carência de áreas livres ou verdes para amenizar os impactos da urbanização (verticalização, impermeabilização, descaracterização da cobertura vegetal) no entorno imediato. Art. 2º do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001): IV – planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população e das atividades econômicas do Município e do território sob sua área de influência, de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente; [...] VI – ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar: [...] c) o parcelamento do solo, a edificação ou o uso excessivos ou inadequados em relação à infra-estrutura urbana; g) a poluição e a degradação ambiental; A verticalização é fruto do crescimento urbano e imobiliário das metrópoles brasileiras em geral e, alguns bairros de Fortaleza (ex.: bairros da Aldeota, Meireles e Dionísio Torres), já enfrentam o esgotamento de seus espaços; concomitantemente, os bairros mais afastados, especialmente nas regiões sul e sudeste vêm se adensando rapidamente e de maneira desorganizada, prejudicando de forma indelével o meio ambiente da área e o bem-estar da população. Sônia Afonso42, professora de Arquitetura e Urbanismo da UFSC, expõe as possíveis soluções para que as edificações se tornem mais sustentáveis: A combinação de controle solar em todas as orientações, com a adequada inércia térmica e capacidade de resfriamento tanto pelas brisas como pela ventilação noturna, pode levar a índices de conforto térmico desejáveis sem o uso de ar condicionado; Os elementos de controle de ar e luz podem contribuir com as soluções formais dos edifícios; 42 AFONSO, Sonia. Paisagem e Ambiente urbano Sustentáveis: Métodos e Ferramentas. Disponível em: http://soniaa.arq.prof.ufsc.br/sonia/ENEPEA/sonia2002.pdf. Acesso em: 23 de setembro de 2010. 103 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Para melhorar o uso da iluminação natural talvez seja necessário utilizar mecanismos automatizados de controle; As pessoas gostam do contato com o exterior e as condições de conforto podem ser obtidas durante o projeto; O ambiente externo deve ser considerado no projeto, protegendo a construção do sol e fazendo bom uso da iluminação natural; Mesmo usando o ar condicionado, o consumo de energia pode ser otimizado se forem observadas: a inércia térmica, o controle solar e as relações das paredes externas com a envolvente; o uso do ar condicionado e da iluminação artificial poderão ser reduzidos através do controle da entrada de luz natural. Fortaleza, devido a problemas em determinadas edificações, a poluição e o adensamento de bairros relevantes para a circulação dos ventos vem apresentando um crescente aumento na sensação térmica. A outrora “Cidade Luz”, eternizada pelo célebre José de Alencar, amarga hoje inúmeros problemas de cunho urbanístico e ambiental, encontrando-se nos dias atuais melhor caracterizada como “estufa alencarina”. Não somente as edificações causam problemas no clima, com elas há o aumento indiscriminado de veículos, além da manta asfáltica que contribuem para a elevação da sensação térmica e a poluição. Outro problema que se encontra atualmente acelerado devido o aumento da impermeabilização do solo e irregularidades nas construções é a questão das inundações na cidade43. As vias de circulação que se expandiam, juntamente com as áreas para habitação, resultaram na impermeabilização do solo da cidade e alteraram a permeabilidade deste. A Lei de Uso e Ocupação do Solo de Fortaleza prevê que todas as construções deixem um percentual de área livre para a água penetrar no solo e não escoar diretamente para as ruas. Na capital cearense o desrespeito aos recursos naturais é tão claro que construções são realizadas na época de estiagem quando os ambientes lacustres estão secos, conforme observado em trabalho de campo. No período chuvoso o lençol freático ressurge e as construções são inundadas. Relativamente à poluição atmosférica, além dos dispostos legais como a Lei de Crimes Ambientais, a Lei de Zoneamento (Lei n. 6.803/80), o CONAMA estabeleceu na sua Resolução de nº 18/86 o Programa de Controle da Poluição do Ar por veículos automotores – PROCONVE e o Programa Nacional de Qualidade do ar – PRONAR, dentre outras estipulações legais que visam colaborar com a atividade de proteção conferida pelo município. 43 LOUREIRO, Caroline Vitor; FARIAS, Juliana Felipe. IMPACTOS AMBIENTAIS RESULTANTES DA IMPERMEABILIZAÇÃO DO SOLO NA CIDADE DE FORTALEZA-CE . Disponível em: http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:http://www.geo.ufv.br/simposio/simposio/trabalhos/trab alhos_completos/eixo11/018.pdf. Acesso em: 23 de setembro de 2010. 104 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Mediante o PDPFOR (Plano Diretor Participativo de Fortaleza – Lei Complementar nº 062/2009), em seu art. 9º, as diretrizes da política de meio ambiente, está a preservação ambiental e a redução dos riscos socioambientais. Considerando o exposto no novo Plano Diretor da capital cearense, verifica-se a importância dos gestores públicos realizarem uma melhor fiscalização nas construções (vias de transporte e habitações), seguindo sempre as disposições legais para o uso e ocupação do solo, fazer a devida verificação dos licenciamentos ambientais para que a problemática do clima na região não se torne ainda mais intensa. 5 CONCLUSÃO O mundo presencia na atualidade uma reformulação de pensamento e de ações. A questão ambiental está cada vez mais em evidência junto à principais Nações do mundo e o Brasil não se faz indiferente. Mesmo com uma legislação ambiental densa e evoluída, o Brasil ainda sofre com suas precárias estruturas urbanas, gerando uma gama de problemas ambientais, a exemplo das alterações climáticas. A influência do homem sobre a atmosfera possui uma melhor visibilidade no âmbito urbano e sobre as cidades paira uma espécie de “abóbada climática” com características próprias que o diferenciam do clima regional dominante. 44 Os habitantes de uma cidade devem se conscientizar da importância do clima para a saúde, a energia e o conforto do ser humano. A preservação do meio ambiente (art. 225, CF88) não deve ser compreendida somente pelo ambiente natural, visto que envolve o meio artificial, o cultural e o do trabalho. A capital do Ceará, uma das cinco maiores capitais brasileiras, enfrenta os prejuízos climáticos com a elevação da sensação térmica em muitos pontos da cidade decorrentes da edificação indiscriminada; a não obediência às estipulações do Plano Diretor e a concessão de licenciamentos para a construção em locais impróprios urbanística e ambientalmente. A diferença na temperatura nos bairros de Fortaleza é evidente e esta problemática ocorre também em diversos outros locais do Brasil. Mediante o exposto no presente artigo, verificou-se que a alteração climática pode ser gerada por ações de caráter público e privado. Na capital cearense a problemática se perfaz 44 DREW, David. Processos Interativos Homem-Meio Ambiente. Tradução de João Alves dos Santos; revisão de Suely Bastos. São Paulo: DIFEL, 1986. pg. 181. 105 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições em decorrência da falta de planejamento urbano adequado e por edificações que não buscam a preservação do meio ambiente local. A retirada inadequada das áreas verdes, a impermeabilização do solo de maneira indiscriminada, altura indevida de prédios, todos estes aspectos prejudicam os chamados “microclimas” da cidade, configurando um abuso do direito de propriedade e a não aplicação da sua função socioambiental da propriedade. Diante do exposto no presente artigo, verifica-se que, para evitar maiores danos climáticos na cidade de Fortaleza, os gestores, antes de concederem o licenciamento para a construção de alguma obra, devem: verificar através do estudo de impactos ambientais os efeitos desta obra o clima, visto que é uma questão de interesse coletivo, como também buscar a comprovação de que a edificação será realizada mediante o exposto no zoneamento estabelecido pelo PDPFOR (Plano Diretor Participativo de Fortaleza- 2009). REFERÊNCIAS ACCIOLY, Vera Mamede. A metrópole e o impacto das políticas públicas na expansão urbana: Fortaleza entre 1980 e 2008. Disponível em: Disponível em: http://egal2009.easyplanners.info/area05/5837_Vera_Mamede_Accioly.pdf. Acesso em: 28 de jun. 2010. AFONSO, Sonia. Paisagem e Ambiente urbano Sustentáveis: Métodos e Ferramentas. Disponível em: http://soniaa.arq.prof.ufsc.br/sonia/ENEPEA/sonia2002.pdf. Acesso em: 23 de setembro de 2010. AYALA, Patrick de Araújo. 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A ação foi indeferida pelo juiz de primeiro grau, obrigando ao autor recorrer ao TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) e no julgamento desse recurso à Câmara Reservada ao Meio Ambiente deu provimento ao recurso, estabelecendo a partir da discussão sobre a competência que o futebol é um bem cultural da nação. Mas, o futebol, ante a teoria dos bens culturais imateriais, pode ser alcunhado como bem cultural ou isso é um equívoco técnico do judiciário paulista? E uma vez sendo tido como bem cultural imaterial, o futebol será protegido como patrimônio cultural imaterial? A fim de aclarar essas indagações construímos esse artigo. PALAVRAS-CHAVE: Futebol. Direito Ambiental. Patrimônio Cultural Imaterial. ABSTRACT: He was recently judged the Environmental Public Civil Action No. 994.09.013383-3 filed by the Paulista Football Federation against 79 organized supporters of football teams from São Paulo to eliminate violence in stadiums. The lawsuit was dismissed by the judge of first instance, forcing the author to use the TJ-SP (Court of Justice of São Paulo) and the trial of that action to the Board Restricted Environmental allowed the appeal, setting from the discussion on competence that football is a cultural nation. But in football, against the theory of intangible cultural heritage, can be dubbed as a cultural asset or is it a technical misunderstanding of the judiciary in São Paulo? And since being taken as object as intangible cultural, football will be protected as intangible cultural heritage? In order to clarify these questions we construct this article. KEY-WORDS: Soccer. Environmental Law. Intangible Cultural Heritage. 1 Introdução Recentemente foi julgada a Ação Civil Pública Ambiental nº 994.09.013383-3 impetrada pela Federação Paulista de Futebol contra 79 torcidas organizadas de times de futebol de São Paulo visando eliminar a violência nos estádios. A ação foi indeferida pelo juiz 1 Graduado em Direito pela Universidade Federal do Ceará - UFC. Especialista em Filosofia Moderna do Direito pela Universidade Estadual do Ceará - UECE. Bolsista CNPQ no Mestrado em Direito, com área de concentração em Ordem Jurídica Constitucional, pela Universidade Federal do Ceará – UFC. A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições de primeiro grau, obrigando ao autor recorrer ao TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) e no julgamento desse recurso à Câmara Reservada ao Meio Ambiente deu provimento ao recurso, estabelecendo a partir da discussão sobre a competência que o futebol é um bem cultural da nação. Os bens culturais sofreram logo desenvolvimento no Brasil e sua discussão remonta ao Anteprojeto de Lei de Mário de Andrade para o SPHAH. Aloísio Magalhães, presidente do órgão nas décadas anteriores à Constituição de 1988 influenciou a constituinte, trazendo à tona a ampliação de patrimônio cultural com a noção de bem cultural, possibilitando a proteção do bem cultural imaterial além do já protegido patrimônio material. Mas, o futebol, ante a teoria dos bens culturais imateriais, pode ser alcunhado como bem cultural ou isso é um equívoco técnico do judiciário paulistano? E uma vez sendo tido como bem cultural imaterial, o futebol será protegido como patrimônio cultural imaterial? A fim de aclarar essas indagações construímos esse artigo. 2 A ação civil pública ambiental nº 994.09.013383-3: o futebol como bem cultural Recentemente foi julgada a Ação Civil Pública Ambiental nº 994.09.013383-3 impetrada pela Federação Paulista de Futebol contra 79 torcidas organizadas de times de futebol de São Paulo visando eliminar a violência nos estádios. A ação foi indeferida pelo juiz de primeiro grau, obrigando ao autor recorrer ao TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo), que acolheu o recurso. O julgamento do recurso coube à Câmara Reservada ao Meio Ambiente que deu provimento o recurso interposto pela Federação e fixou uma série de medidas que buscam “minorar, senão eliminar, a violência em estádios de futebol”. O extenso acórdão, com 28 laudas, tem como relator o desembargador Lineu Peinado e de sua decisão cabe recurso ao STJ (Superior Tribunal de Justiça). A Federação Paulista de Futebol pede na ação que nos jogos realizados por ela sejam as torcidas organizadas proibidas de ingressar nos estádios, “os quais devem ser dotados de vigilância eficaz, fixando-se valores de multas como penas para as hipóteses de lesões e ameaças”. Segundo a ação, é necessário que se proíba a participação das torcidas organizadas em qualquer jogo administrado pela Federação no Estado de São Paulo. A autora “alega ser 111 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições fato notório que as torcidas organizadas pregam a violência no futebol, causam danos e colocam em risco a vida dos torcedores comuns, sendo, portanto, necessária a tutela judicial antecipada a fim de se implementar as providencias indicadas na petição inicial”. O juiz de primeiro grau, Antônio Manssur Filho, indeferiu a petição inicial por entender que o tema discute normas de segurança pública que são “responsabilidade das autoridades policiais”, mencionando ainda não ser possível ferir o direito de ir e vir, bem como o direito de associação, ambos constitucionalmente garantidos. O relator, Lineu Peinado, a fim de dirimir a competência aponta que “o primeiro ponto a ser solvido diz respeito à competência recursal. Atribuir ao futebol, esporte por excelência, a pecha de bem cultural parece, á primeira vista, desbordar do conceito de bem cultural”. E mais a frente o relator asseverou: Ora, futebol, esporte muito praticado em terras brasileiras, como é fato público e notório, ainda continua, ou deveria continuar a ser, apenas um esporte, não dizendo respeito nem fazendo referência à identidade, ação e memória de diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, a não ser que se parta do princípio segundo o qual cada equipe de futebol representa um grupo por si só, princípio que não corresponde à realidade e poderia se prestar a justificar ações que se divorciam da civilidade por parte desses grupos. Para isso basta atentar que todos os grupos de torcedores em época de disputa de Campeonato Mundial de Seleções, passam a usar o amarelo ao invés das cores de suas equipes preferidas e todas, em conjunto com os brasileiros, quase sem exceção, torcem unidos, como uma torcida só, pela equipe de futebol selecionada pelo Brasil. Ou seja, os diferentes grupos de torcedores deixam, ainda que momentaneamente, de torcer pelo seu clube e passa a torcer por outro, desfazendo-se de suas cores e suas insígnias. Todavia, há que se levar em conta de consideração que, apesar do quanto mencionado acima, o futebol é uma das paixões do cidadão brasileiro. Tanto que políticos de todos os matizes dele se utilizam como forma de angariar simpatias entre os eleitores, dizendo-se simpatizantes de determinada equipe, geralmente as consideradas mais populares, buscando com isso uma forma de identificação com o eleitor, ainda que tal expediente não deva ser usado por políticos que se pretendam sérios. Também é certo que o desporto é mencionado no artigo 217 da Constituição Federal como dever do Estado em "...fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, ..." e o futebol, sem dúvida alguma se constitui em prática desportiva, de forma que pode se entender que praticar futebol no Brasil deve ser objeto de fomento do Estado e direito de cada um, direito esse que se encontra alocado entre outros direitos do cidadão no capítulo constitucional dedicado à educação, à cultura e ao desporto. Possível assim, que entendido o termo de forma ampla, se possa afirmar que o futebol pode ser considerado um bem cultural, o que pode ser bem melhor compreendido pelos não juristas, que baseados no senso comum consideram futebol não apenas um esporte, mas sim um traço cultural dos brasileiros. Razoável, para se dizer o mínimo, o entendimento segundo o qual o futebol é um bem cultural da Nação, o que justifica a competência desta C. Câmara 112 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Reservada ao Meio Ambiente, que abarca não apenas o denominado "verde", mas também por meio ambiente artificial e cultural. (grifo nosso) Mas será que restou acertada a decisão do judiciário sobre essa questão? O futebol pode ser um bem cultural e, mais especificamente, um bem cultural imaterial? A fim de solucionar essa questão vamos observar o que é e qual a abrangência constitucional do bem cultural imaterial. 3 Bem cultural imaterial brasileiro: muito antes da Constituição Federal de 1988 O início da proteção patrimonial, no Brasil, se dá, em 1936, com a proposição oficial da criação da agência federal de proteção ao patrimônio. A nova elite que assumia o poder buscava criar, em meio ao pensamento moderno da época, uma nova nação através de inovações na economia, política e cultura. Buscava-se inserir o país entre as modernas civilizações européias, sem, entretanto, deixar de lado a singularidade do país tupiniquim. Essa elite buscava essa singularidade no que o país possui de mais autêntico, valorizando o tradicional. “Acreditavam que, para identificar ou redescobrir o Brasil, o país teria que retornar aos seus mais 'autênticos' valores nacionais, os quais estavam supostamente fundados no passado, assim como os valores regionais”2. Essa idéia se assemelha muito as ideias românticas alemãs. O romantismo alemão do Séc. XIX vai desenvolver o termo kultur que, em contraponto à referência francesa (iluminismo) do termo civilização, vai determinar justamente as diferenças nacionais. “Depois da derrota na batalha de Iena, em 1806, e a ocupação de Napoleão, a consciência alemã vai conhecer uma renovação do nacionalismo, que se expressará através de uma acentuação da interpretação particularista da cultura alemã” 3. O termo civilização passa a designar a França e sua hegemonia cultural sobre os demais países ocidentais, ao passo que kultur denotará a singularidade da alma alemã. O resgate das raízes medievais germânicas desempenha um papel de maior importância nesse movimento de afirmação de identidade alemã; ele constitui um modo de fazer frente à hegemonia dos valores franceses ao resgatar um espírito obscurecido e encoberto pela frieza e 2 GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A retórica da perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ, p. 41 e 42. 3 CUCHE, Denys. A Noção de cultura nas ciências sociais. São Paulo: Paz e Terra, 1992, p. 28. 113 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições artificialidade dos hábitos da sociedade policé. A valorização dos contos, das poesias, das lendas nacionais e de tudo o mais que evoca o retorno as fontes de um passado pleno de força e virtude exorta os alemães a reconhecer em sua própria origem os traços de uma essência perdida4. Essa busca pela identidade alemã, em suas origens, é o mesmo motor que vai movimentar os modernistas antropofágicos na “descoberta” da identidade nacional. Desta forma, os modernistas mergulharam, na busca da essência do nacional, no interior, na roda de viola, no caipira e no matuto e principalmente no índio mítico. Foi em busca desse Brasil “puro” que Mário de Andrade foi à procura quando foi-lhe encomendado um projeto de lei de proteção do patrimônio cultural nacional. Assim, o projeto de Mário de Andrade buscava proteger todos os bens culturais nacionais, o material e o imaterial5. Em 1937, o Projeto de Lei Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN foi aprovado, tendo, inicialmente, à frente Rodrigo Melo Franco de Andrade e ao contrário do que almejava Mário de Andrade, no seu anteprojeto, teve alcance limitado ao tombamento de bens móveis e imóveis. A visão do patrimônio nacional como uma continuação do Brasil que se formou da união do negro, do ameríndio e do europeu vai continuar até uma reviravolta na proteção patrimonial nacional realizada por Aloísio Magalhães inicialmente no Centro Nacional de Referência Cultural – CNRC e, mais à diante, em 1979, à frente do próprio Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN. Aloísio, ao contrário da política de Rodrigo Franco, não vê nas matrizes culturais brasileiras (ameríndia, negra e branca) um evolucionismo cultural6, mas “formas de vida social e cultural atuais, diversas e em processo de transformação. Ele enfatiza que deveriam ser igualmente representadas por uma política de patrimônio cultural”7. No Brasil, na ordem 4 MOURA, Caio. O advento dos conceitos de cultura e civilização: sua importância para a consolidação da autoimagem do sujeito moderno. Filosofia Unisinos. UNISINOS: 157-173, mai/ago, 2009, p. 162 5 Mário de Andrade viajou parte do país para gerar a concepção do patrimônio cultural que o novo órgão federal iria proteger. Seu ante projeto era muito mais amplo do que apenas a proteção patrimonial material, de tão avançado, em verdade só agora, depois da Carta de 1988, é que se pode almejar a proteção que à época propunha o poeta. Mario de Andrade “desenvolveu uma concepção de patrimônio extremamente avançada para seu tempo, que em alguns pontos antecipa, inclusive, os preceitos da Carta de Veneza, de 1964. Ao reunir num mesmo conceito – arte, manifestações eruditas e populares, Mário de Andrade aforma o caráter ao mesmo tempo particular/nacional e universal da arte autêntica, ou seja, a que merece proteção”. FONSECA, Maria Cecilia Londres. Patrimônio em processo: trajetória da politica federal de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ; IPHAN, 2005, p. 108. 6 Como aponta Edward Burnett Tylor afirmando que “o fenômeno da cultuar pode ser arranjado e classificado, estágio por estágio, numa ordem provável de evolução”. CASTRO, Celso (Org.). Evolucionismo cultural: textos de Morgan, Tylor e Frazer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 74. 7 GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A retórica da perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ, 2006, p. 55. 114 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições 8 constitucional de 1967 , embasada pela política de proteção de Rodrigo Franco, o que se protegia em regra eram as referências da Cultura europeia (documentos, praças, monumentos etc), quedando-se na sombra a outra parcela do Brasil, a oprimida, a aculturada9, mas que igualmente compõem nossa cultura 10. A gênese da proteção do patrimônio cultural imaterial, no Brasil, está no anteprojeto de Mário de Andrade, mas a instrumentalização dessa proteção empeçou com Aloísio Magalhães. Para ele o conjunto de objetos e de atividades sociais e culturais classificados como bens culturais “são vistos como os meios através dos quais diferentes segmentos que compõem a nação expressam-se a si mesmos no fluxo do processo histórico. Eles são pensados não como objetos fixos, exemplares, mas no processo mesmo de criação e recriação lhes dá realidade”11. Na ordem constitucional anterior, reverenciavam-se fatos históricos de relevância para o Brasil de matriz europeia. A memória protegida era materializada em monumentos, documentos, prédios etc. Essa proteção constitucional do passado representativo unicamente de fatos históricos relevantes da “cultura eurocentrista, com evidente velamento da dinâmica social e cultural dos povos formadores da cultura e memória nacional” 12, não era fiel a nossa história nem à identidade cultural de nosso povo. Essa representação artificial de nossa anima refletia, por certo, o modo como o Poder estava distribuído no Brasil, pois, como afirma Peter Häberle, el Estado constitucional se define (tambien) por su cultura nacional (funda su identidad) y la libertad solo se convierte em libertad 'plena' através de la cultura. (...) La Constitución no solo es un texto jurídico o un conjunto de reglas normativas, sino que tambien es expresión de un determinado nivel de desarollo cultural, es 8 Art. 172, CF/67 – “O amparo à cultura é dever do Estado. Parágrafo único – Ficam sob a proteção especial do Poder Público os documentos, as obras e os locais e valor histórico ou artístico, os monumentos e as paisagens naturais notáveis, bem como as jazidas arqueológicas”. 9 No termo aculturação, o prefixo “a” não significa supressão, mas aproximação, formando-se etimologicamente da partícula ad do latim. Daí aculturação poder ser conceituada como “o conjunto de fenômenos que resultam de um contato contínuo e direto entre grupos de indivíduos de culturas diferentes e que provocam mudanças nos modelos (patterns) culturais iniciais de um ou de dois grupos”. CUCHE, Denys. op. cit., p. 115. 10 Celso Furtado, sobre a origem da cultura brasileira, afirma que “nos três séculos do período colonial gestou-se no Brasil um estilo cultural que, sendo português em seus temas dominantes, incorpora não apenas motivos locais mas toda uma gama de valores das culturas originais dos povos dominados”. FURTADO. Celso. O longo amanhecer: reflexões sobre a formação do Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999, p. 60. 11 GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A retórica da perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ, 2006, p. 55. 12 DANTAS, Fernando Antônio de Carvalho. Base jurídica para a proteção dos conhecimentos tradicionais. In Revista CPC, v. 1, 2006, p. 02 115 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições expresión de la autorepresentación cultural de un pueblo, espejo de su patrimonio cultural y fundamento de sus esperanzas”.13 Se a Constituição, como aponta Peter Häberle, é o espelho de seu patrimônio, a Ordem Constitucional de 1967, percebemos que não só o Poder, mas todo o patrimônio era restrito e restritivo, representando culturalmente apenas a classe detentora do Poder, uma classe elitista e europeizada. O Poder político usurpado politicamente do povo pelo golpe de 1964 e, pelo “golpe dentro do golpe”, de 1968, restringia em um só instante o Poder e, por consequência, o acesso e a proteção aos demais bens culturais. Assim, a política tradicional do SPHAN, que é a mesma da ordem constitucional ante, não leva em consideração certas dimensões do patrimônio cultural brasileiro, como sua diversidade, assim como a importância e o papel na referência identitária e na apreensão do se fazer brasileiro desempenhado pelas diferentes formas de cultura popular14. Esse enfoque europeu sobre o patrimônio nacional sufoca a arejada diversidade cultural nacional, restando evidenciada, para Aloísio que a proteção patrimonial atuava de cima para baixo e, de certo modo, com uma concepção principalmente elitista. A igreja e o prédio monumental são bens culturais, mas de um nível muito alto. São o resultado mais apurado da cultura. (...) Pela própria razão de ser, uma atividade popular não tem consciência do seu valor. Quem faz uma igreja sabe o valor do que faz, mas quem trabalha couro, por exemplo, nem sempre15. Por tudo isso, Aloísio amplia a noção de patrimônio cultural, inserindo tudo sobre o signo do bem cultural, assim o patrimônio arquitetônico, associado à alta cultura, torna-se apenas uma espécie de bem cultural, tão importante e protegido quanto o fazer e a arquitetura popular. “Esses bens são valorizados não por uma suposta exemplaridade, mas como parte da vida cotidiana e como formas de expressão de diferentes segmentos da sociedade brasileira. 13 HÄBERLE, Peter. Nueve ensayos constitucionales y uma lección jubilar. Lima: Palestra Editores, 2004, p. 203 e 204. 14 Cultura popular para Aloísio abrangia “tanto as manifestações populares tradicionais quanto as suas intersecções com o mundo industrial urbano. Ficava de fora, apenas, a cultura de massa”. FONSECA, Maria Cecilia Londres. Patrimônio em processo: trajetória da politica federal de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ; IPHAN, 2005, p. 172. Importa, aqui ainda explicitar que a visão de Aloísio é geral não tecendo sobre o assunto um conceito técnico, daí trazermos a visão de Néstor García Canclini sobre o assunto a fim de possibilitar maior clareza. Para esse as culturas populares “se constituem por um processo de apropriação desigual dos bens econômicos e culturais de uma nação ou etnia por parte dos seus setores subalternos, e pela compressão, reprodução e transformação, real e simbólica, das condições gerais e específicas do trabalho e da vida”. CANCLINI, Néstor García. As culturas populares no capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 42. 15 MAGALHAES, Aloísio; Fundação Nacional Pró-Memoria (Brasil). E triunfo?: a questão dos bens culturais no Brasil . Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 1985, p. 221. 116 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições As formas da cultura popular são vistas como a fonte mesma de uma 'autêntica' identidade nacional” 16. O objetivo da nova política patrimonial, já a época, era conhecer, referenciar, e compreender as manifestações culturais populares a fim de preservar sua memória e fornecer elementos de apoio para seu desenvolvimento. Em 1979, Aloísio Magalhães foi nomeado diretor do IPHAN ao tempo em que ocorreu a unificação da política federal de proteção do patrimônio com a fusão do IPHAN, do CPH e do CNRC. O discurso da proteção do patrimônio imaterial em função da diversidade cultural nacional que já vinha se desenvolvendo desde o CNRC se revelou “compatível não só com o momento de abertura democrática dos últimos governos militares, como foi também encampado pela Nova República”17. A ampliação do patrimônio cultural, então, realizada por Aloísio Magalhães influenciou fortemente a Assembléia Constituinte de 1987, tanto que, no anteprojeto da subcomissão de Educação, Cultura e Esporte, estabeleceu-se que a cultura brasileira, resultado de tantas etnias, de caldeamentos, heranças culturais tão diversas, processos sócio-históricos tão desiguais e intermitentes – essa cultura é brasileira, é identificável como tal, traz unidade na pluralidade e nas contradições; não é um conjunto, um amontoado de elementos ou heranças, mas um sistema com personalidade, cara e alma própria, com autenticidade e funcionalidade, como qualquer outra cultura, apesar de tantas raízes, transferências, trocas, agressões e invasões. Preservar a memória e a identidade dessa cultura parece ser um dever de todo o povo, de sobrevivência, mas que deve contar com o reconhecimento e o esforço maior do poder público18. A influência de Aloísio Magalhães se torna mais evidente na justificativa da proposta do constituinte Octávio Elísio, em 22 de abril de 198719. O constituinte defendendo seu texto 16 GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A retórica da perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996, p. 56. 17 FONSECA, Maria Cecilia Londres. Patrimônio em processo: trajetória da politica federal de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ; IPHAN, 2005, p. 181. 18 BRASIL. Assembléia Nacional Constituinte (1987). Subcomissão da Educação, Cultura e Esportes. Anteprojeto. Relator: João Calmon. Brasília: Senado Federal. Centro Gráfico, 1987, p. 20. 19 O constituinte propôs como sugestão de norma constitucional, no art. § 2º, “é reconhecido o concurso de todos os grupos étnicos constitutivos da formação nacional, na sua participação igualitária e pluralística, para a expressão da cultura brasileira. Art. Para o cumprimento do dispositivo anterior, o Poder Público assegurará: I – o acesso aos bens culturais na integralidade de sua manifestações; II – a sua livre produção, circulação e exposição a toda a coletividade; III – preservação de todas as modalidades de expressão dos bens de cultura, bem como da memória nacional; IV – prestar assistência a artistas e artesãos, no interesse de preservar artes, técnicas e modos de fazerem extinção. (...) Art. São bens culturais os de natureza material e imaterial, individuais ou coletivos, portadores de referência à identidade nacional e à memória local – urbana ou rural. Incluindo as manifestações, os modos de fazer e de convívio, documentos, obras, locais e sítios de valor histórico, artístico, arqueológico ou científico e as paisagens antrópicas e naturais”. BRASIL. Assembléia Nacional Constituinte 117 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições afirma explicitamente que “a conceituação abrangente de bem cultural, contemplada no anteprojeto, pode encontrar a sua justificativa nas palavras de Aloísio Magalhães: 'na verdade, criavam-se, assim, as bases institucionais para o estabelecimento de duas vertentes distintas para o trato do bem cultural” 20. A já conhecida e institucionalizada vertente patrimonial e a vertente de produção, circulação e consumo de cultura. Esse último é o embrião da proteção do patrimônio imaterial. Para a proteção dos bens imateriais urge como defende o constitucionalista “outros modos de proteção e de ação além do já consagrado instituto do tombamento. Ademais, a constituição deve consagrar a figura da inventariação dos bens culturais, de natureza patrimonial ou de atividades de fazer (...)”21. Germina aqui o instituto que será posteriormente legislado no Decreto nº 3.551/00. Dispõe, então, que o inventário complementará o tombamento, devendo funcionar como novo instrumento protetivo, buscando registrar com as técnicas adequadas todos os bens e manifestações culturais de valor referencial para a memória nacional. “A inscrição no inventário seria reservada às manifestações reiterativas e dinâmicas, que não se enquadram em um sistema rígido de proteção, a exemplo do artesanato, do folclore, da arte e arquitetura populares, dos acervos científicos, do modos de fazer, lendas, crenças etc”. Essas idéias da Assembléia Nacional Constituinte ou foram implementadas direitamente na Constituição Federal (art. 215 e 216) ou foram postas em normas ordinárias (Decretos nº 3.551/00, Resolução nº 1, de 3 de agosto de 2006, normas estaduais e municipais etc) confirmando a proteção dos modos de criar, de manifestar e de fazer do povo brasileiro. A Carta de 88, estabeleceu que o Estado garantirá a todos o acesso às fontes da cultura nacional e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais, protegendo as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. Ao passo que o constituinte protegeu essas manifestações identitárias, alargou consequentemente o patrimônio cultural brasileiro, incluindo a referência de identidade, ação e memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, pois (1987). Subcomissão da Educação, Cultura e Esportes. Anteprojeto. Relator: João Calmon. Brasília: Senado Federal. Centro Gráfico, 1987, p. 37 e 38. 20 BRASIL. Assembléia Nacional Constituinte (1987). Subcomissão da Educação, Cultura e Esportes. Anteprojeto. Relator: João Calmon. Brasília: Senado Federal. Centro Gráfico, 1987, p. 38. 21 BRASIL. Assembléia Nacional Constituinte (1987). Subcomissão da Educação, Cultura e Esportes. Anteprojeto. Relator: João Calmon. Brasília: Senado Federal. Centro Gráfico, 1987, p. 38. 118 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições esses universos culturais abrigam circuitos de consumo, produção e difusão culturais organizados por meio de dinâmicas e lógicas próprias que diferem em muito dos demais circuitos consagrados de produção cultural e, ao mesmo tempo, a eles articulam-se importantes questões relativas ao desenvolvimento integrado e sustentável. A noção de patrimônio cultural imaterial vem, portanto, dar grande visibilidade ao problema da incorporação de amplo e diverso conjunto de processos culturais – seus agentes, suas criações, seus públicos, seus problemas e necessidades peculiares – nas políticas públicas relacionadas à cultura e nas referências de memória e de identidade que o país produz para si mesmo em diálogo com as demais nações. Trata-se de um instrumento de reconhecimento da diversidade cultural que vive no território brasileiro e que traz consigo o relevante tema da inclusão cultural e dos efeitos sociais dessa inclusão22. Assim, a Constituição de 1988 a fim de afastar o ranço autoritário dos anos anteriores buscou proteger os bens dos mais diversos grupos sociais e/ou étnicos nacionais reafirmando a pluralidade cultural brasileira. O momento de redemocratização nacional fez com que o principio da democratização dos bens culturais e a proteção de novos elementos da pluralidade cultural nacional fossem observados. A Constituição de 1988 deu um grande avanço ao incluir entre o patrimônio cultural nacional os bens imateriais, pois conforme realça Peter Häberle: (...) toda Constitución de um Estado constitucional vive em última instancia de la dimensón cultural. La proteción de los bienes culturales, las libertades culturales especiales, las cláusulas expressas sobre el 'patrimonio cultural' y los artículos generales sobre el Estado de cultura no constituyen sino las manifestaciones particulares de la dimensión cultural general de la Constitución. Cuando em su etapa evolutiva actual el Estado constitucional da efectividad, refina y desarolla em forma especial su protección de los bienes culturales, lo hace, em suma, al serviço de su identidad cultural23. Por fim, a proteção aos bens culturais imateriais implica em uma outra forma de perceber a nação, a identidade e o patrimônio. Ao invés de pensar as identidades nacionais como unas, homogêneas, “deveríamos pensá-las como constituindo um dispositivo discursivo que representa a diferença como unidade ou identidade. Elas são atravessadas por profundas divisões e diferenças internas, sendo 'unificadas' apenas através do exercício de diferentes formas de poder cultural24”. Podemos dizer, então, que hoje só se faz possível se vincular patrimônio a nação, se esse termo for plural, diverso, concebendo dentro dele todos os brasis, pois as identidades nacionais não podem mais ser vistas como uma representação, em bloco, 22 CASTRO, Maria Laura Viveiros de, FONSECA, Maria Cecília Londres. Patrimônio imaterial no Brasil: legislação e políticas estaduais. Brasília: UNESCO, 2008, p. 12. 23 HÄBERLE, Peter. op. cit., p. 5. 24 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro: DP & A, 2005, p. 62. 119 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições das pessoas, pois “as nações modernas são, todas, híbridos culturais” 25. As identidades nacionais, para que se possa ainda se trabalhar com esse conceito não podem subordinar “todas as outras formas de diferença e não estão livres do jogo de poder, de divisões e contradições internas, de lealdades e de diferenças sobrepostas26”. Nesse mesmo sentido, afirmava Gilberto Freyre, já em 1947, que o problema do Brasil “continua a ser o de combinar diversidade sub-regional com unidade nacional e esta com a continental ou a étnico-cultural27”, contudo “evidentemente é necessário um mínimo saudável de uniformidade cultural básica para que o Brasil permaneça uma confederação 28”. Os patrimônios culturais só podem ser vinculados à nação hoje para representar toda a nação, apenas contemplando a multiplicidade, o diverso e o altero em conformidade com a diversidade cultural da identidade brasileira. 4 Bem cultural imaterial Como ventilado no tópico anterior a Constituição de 1988 rompe com o regime autoritário anterior nos mais variados contextos da nova ordem estatal que se inicia e não foi diferente no campo do patrimônio cultural. O art. 216 refuta a proteção apenas dos bens de valor excepcional, representativos da elite – arte erudita – ou referendando apenas a tradição européia na formação de nossa matriz cultural. A nova ordem constitucional consagra a proteção de todos os bens que sejam referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Consagra-se, acima de tudo, o pluralismo cultural que é a designação para a resultante da atuação e interação dinâmica de todos os grupos sociais. Após toda essa evolução da elaboração do Projeto de Lei de Mario de Andrade até as discussões de Aloísio Magalhães no CNRC e no IPHAN, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu, em seu art. 216, que constituem o “patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade 25 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro: DP & A, 2005, p. 62. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro: DP & A, 2005, p. 65. 27 FREYRE, Gilberto. Interpretação do Brasil: aspectos da formação social brasileira como processo de amalgamento de racas e culturas . São Paulo: J. Olímpio, 1947, p. 149. 28 FREYRE, Gilberto. Interpretação do Brasil: aspectos da formação social brasileira como processo de amalgamento de raças e culturas . São Paulo: J. Olímpio, 1947, p. 152. 26 120 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições brasileira”. Os bens culturais desse patrimônio não são mais apenas os objetos físicos (documentos, monumentos, prédios etc) da ordem jurídica anterior, mas também os bens imateriais. A quase unanimidade da doutrina brasileira parte de uma concepção holística, sistêmica ou unitária de meio ambiente, na qual estão compreendidas as dimensões relativas ao meio ambiente natural, ao meio ambiente cultural e ao meio ambiente artificial. O meio ambiente, pois, é “a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas. A integração busca assumir uma concepção unitária do ambiente compreensiva dos recursos naturais e culturais”29. O meio ambiente, por conseguinte, entendido em toda a sua plenitude, engloba a natureza e as modificações nesta introduzidas pelo homem. Desta forma, para compreender o meio ambiente é tão importante a montanha, como a evocação mística que dela faça o povo. Alguns destes elementos existem independentemente da ação do homem: os chamamos de meio ambiente natural; outros são frutos da sua intervenção, e os chamamos de meio ambiente cultural30. A noção de meio ambiente, por conseguinte, é muito ampla, abrangendo tanto bens naturais quanto bens culturais. Estes são “coisas criadas pelos homens mediante projeção de valores, 'criadas' não apenas no sentido de produzidas, não só do mundo construído, mas no sentido de vivência espiritual do objeto”31. Preenchem o bem cultural um objeto material e um valor que lhe dá sentido. Assim, o bem cultural, em sentido jurídico, não se esgota no objeto material que o suporta, pois subsume também o valor resultante da incorporação. Nesse sentido, bens culturais são as “coisas criadas pelos homens mediante projeção de valores, 'criadas' não apenas no sentido de produzidas, não só do mundo construído, mas no sentido de vivência espiritual do objeto”32. Preenchem o bem cultural um objeto material e um valor que lhe dá sentido. Assim, o bem cultural, em sentido jurídico, não se esgota no objeto material que o suporta, pois subsume também o valor resultante da incorporação. Os bens culturais se distinguem pelo suporte sobre o qual recai o valor significante. Se esse amparo do valor é corpóreo, tangível, esse bem é material (monumentos, documentos 29 SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 2. SOUZA FILHO, Frederico Marés de. Bens culturais e proteção jurídica. Porto Alegre: Unidade Editorial, 1997, p. 9. 31 SILVA, José Afonso da. Ordenação constitucional da cultura. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 26. 32 SILVA, José Afonso da. Ordenação constitucional da cultura. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 26. 30 121 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições sítios arqueológicos etc). Em contrapartida, os bens culturais de natureza imaterial “são os que refletem valores em suporte não-materiais, tais são as crendices, cultos, danças, festas, que não compreendem produtos culturais apreensíveis fisicamente (...). Seu produto consiste especificamente no manifestar-se”33. Essa classificação dos bens culturais em material e imaterial, todavia, não é absoluta, pois “normalmente os aspectos tangíveis e intangíveis sempre se conjugam, ou seja, tais elementos não são coisas absolutamente estanques” 34. Patrimônio cultural imaterial, conforme o Decreto nº 3.551/00 35, compreende os bens imateriais, como os saberes, ofícios, festas, rituais, expressões artísticas e lúdicas, que, integrados à vida dos diferentes grupos sociais, configuram-se como referências identitárias na visão dos próprios grupos que os praticam. O patrimônio cultural imaterial é norteado, portanto, por intensivo viés antropológico, tendo, então, os instrumentos jurídicos, referentes aos bens imateriais, que ser vistos por essa lente. A Resolução nº 1, de 3 de agosto de 2006, do IPHAN 36, estabelece, de modo mais claro, termos conceituais do patrimônio cultural imaterial, a saber: (...) as criações culturais de caráter dinâmico e processual, fundadas na tradição e manifestadas por indivíduos ou grupos de indivíduos como expressão de sua identidade cultural e social; (...) toma-se tradição no seu sentido etimológico de 'dizer através do tempo', significando práticas produtivas, rituais e simbólicas que são constantemente reiteradas, transformadas e atualizadas, mantendo, para o grupo, um vínculo do presente com o seu passado. Contextualizada a discussão e definidos os limites teóricos do conceito de bem cultural imaterial, resta saber se o futebol pode ser considerado um bem cultural imaterial, podendo ante esse fato estabelecer a competência ambiental da matéria em discussão. 33 Ibid., p. 98. MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Tutela do patrimônio cultural brasileiro: doutrina, jurisprudência, legislação. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 57. 35 O Decreto nº. 3.551/00 instituiu o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial e criou o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial. 36 A Resolução nº. 1, de 3 de agosto de 2006, complementou o Decreto nº. 3.551/00. 34 122 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições 5 Considerações finais Colocadas todas essas questões e delimitado o conceito de bem cultural imaterial importa que se diga que o futebol pode ser considerado um bem cultural imaterial. O art. 216 da CF/88 é claro ao afirmar que constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem as formas de expressão e os modos de criar, fazer e viver. Uma primeira análise deve observar se o futebol é um bem cultural imaterial, tomado individualmente ou em conjunto, portador de referência à identidade, à ação, à memória de um dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira? Em um segundo momento, a questão é se o futebol se inclui entre as formas de expressão e os modos de criar, fazer e viver do brasileiro. A resposta as duas indagações é positiva. Sim, o futebol é portador de referência à identidade, à ação, à memória de alguns grupos formadores da sociedade brasileira e, sim também, para o fato de o futebol ser uma forma de expressão e um modo de criar, fazer e viver do brasileiro. Então o fato de o brasileiro gostar de jogar futebol e gostar de assistir futebol configura um bem cultural imaterial, é a forma de viver brasileira, sua expressão identitária. Podendo abranger tanto o fato de se assistir e torcer, quanto o fato de praticar o esporte. Sem incorrer no risco de tornar tudo patrimônio cultural imaterial e destarte enfraquecer o instituto e a noção de bem cultural imaterial, a decisão fortalece o instituto, possibilitando novas abordagens ao tema. A ação civil em comento é assaz interessante, justamente, porque subtrai a discussão do bem cultural imaterial da seara de política patrimonial e a insere na discussão processual, inovando a abordagem prática do tema. A análise da competência material não induz registro ou inventário do bem, impossibilitando qualquer investida sobre a discussão patrimonial, ou seja, a deferência a competência não induz proteção patrimonial, mas possibilita a ampliação do instituto e alarga a discussão do bem cultural imaterial em uma esfera não apenas preventiva, mas também defensiva. 123 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Bibliografia BRASIL. Assembléia Nacional Constituinte (1987). Subcomissão da Educação, Cultura e Esportes. Anteprojeto. Relator: João Calmon. Brasília: Senado Federal. Centro Gráfico, 1987. CANCLINI, Néstor García. As culturas populares no capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1983. CASTRO, Celso (Org.). Evolucionismo cultural: textos de Morgan, Tylor e Frazer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. CASTRO, Maria Laura Viveiros de, FONSECA, Maria Cecília Londres. Patrimônio imaterial no Brasil: legislação e políticas estaduais. Brasília: UNESCO, 2008. CUCHE, Denys. A Noção de cultura nas ciências sociais. São Paulo: Paz e Terra, 1992. DANTAS, Fernando Antônio de Carvalho. Base jurídica para a proteção dos conhecimentos tradicionais. In Revista CPC, v. 1, 2006. FONSECA, Maria Cecilia Londres. Patrimônio em processo: trajetória da politica federal de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ; IPHAN, 2005. FREYRE, Gilberto. Interpretação do Brasil: aspectos da formação social brasileira como processo de amalgamento de raças e culturas. São Paulo: J. Olímpio, 1947. FURTADO. Celso. 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É o caso do Município de Fortaleza, que já possui legislação prevendo o Imposto Predial Territorial Urbano Verde, um exemplo dentro da gama de incentivos que a Administração pode oferecer como forma de garantir o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e cumprir o dever constitucional de defendê-lo e preservá-lo, além de enfrentar um problema crescente das cidades brasileiras, qual seja, a destinação dos seus resíduos. PALAVRAS-CHAVE: Tributação ambiental. Incentivos Verdes. Resíduos sólidos. Imposto sobre Propriedade Territorial Urbana. ABSTRACT: Environmental matters have been a concern inclusively of the tributarist, who see the environmental tax as a way to incite conducts to reduce the impacts in the nature. In this context, the Government can develop policies that premiate people who do not pollute, through fiscal incentives. Under the analysis of the new law which estabilishes the National Policy of Solid Waste, will be presented some comments about how taxation can support the execution of those policies. It is the case of the city of Fortaleza, which already has a law instituting the Green Urban Property Tax, as an example among all the incentives that the State can offer in order to guarantee the fundamental right of an ecologically equilibrated environment and to accomplish the constitutional obligation of defending it and preserving it, besides, to face a crescent problem of the Brazilian cities, that is, the destination of their waste. KEY-WORDS: Environmental taxation. Green taxes. Solid Waste. Urban Property Tax. 1 Doutora em Direito Tributário pela PUC/SP. Mestre em Direito pela UFC. Professora e vice-coordenadora do Programa de de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC). Professora de Direito Tributário do Bacharelado em Direito da UFC. Líder do grupo de pesquisa Tributação Ambiental da Faculdade de Direito da UFC, vinculado ao CNPq. Procuradora da Fazenda Nacional – categoria especial. E-mail: [email protected]. 2 Aluna da graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC). Membro do grupo de pesquisa Tributação Ambiental da Faculdade de Direito da UFC, vinculado ao CNPq. E-mail: [email protected]. 1. A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Considerações iniciais O presente estudo tem por finalidade relatar a situação referente à política nacional dos resíduos sólidos e sua aplicabilidade no âmbito municipal, analisando as possibilidades de interferência da tributação ambiental no fomento das atividades ambientalmente corretas. Após a devida análise, se faz um estudo do caso concreto da lei do município de Fortaleza que propõe a redução do Imposto Predial Territorial Urbano para as pessoas que exerceram a reciclagem do lixo, propondo ao final um projeto de decreto regulamentar da referida lei, com consonância a atual Lei Nacional de Resíduos Sólidos, Lei nº 12.305, de 2 de agosto de 2010. A análise parte da descrição do atual contexto do ora chamado IPTU Verde de Fortaleza e aponta, ao final, possibilidades de sua ampliação em prol de uma nova cultura ambiental que deverá ser fomentada com estímulos fiscais relevantes. 2. O Estado de direito ambiental O meio ambiente, bem de uso comum do povo3, tem sido constantemente degradado pelo homem devido a sua incessante busca pelo desenvolvimento econômico. Predominava para um determinado grupo de países, do qual infelizmente o Brasil era líder, à época da Conferência das Nações Unidas em Estocolmo (1972)4, o entendimento de que os recursos naturais seriam infindáveis. Este grupo preconizava a idéia do “crescimento a qualquer custo” e de que, por serem nações subdesenvolvidas ou em desenvolvimento, não deveriam investir na proteção ao meio ambiente5. Entretanto, transformações nefastas como a poluição, a chuva ácida, a desertificação, o efeito estufa, o derretimento das geleiras e a excessiva produção de resíduos sólidos, não só em nosso País como em outros, trouxeram à reflexão de que o acelerado ritmo da produção e 3 Nesse sentido, FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 109: “O bem ambiental é, portanto, um bem de uso comum do povo, podendo ser desfrutado por toda e qualquer pessoa dentro dos limites constitucionais, e, ainda, um bem essencial à qualidade de vida. Devemos frisar que uma vida saudável reclama a satisfação dos fundamentos democráticos de nossa Constituição Federal, entre eles, o da dignidade da pessoa humana, conforme dispõe o art. 1º, III.”. 4 Ressalte-se que foi na Conferência de Estocolmo que se firmou o reconhecimento internacional de que “o meio ambiente humano é essencial para o bem-estar do homem e para o gozo dos direitos humanos fundamentais, inclusive o direito à vida”. In BIANCHI, Patrícia Nunes Lima. A (in)eficácia do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado no Brasil. Tese apresentada como requisito parcial à obtenção do título de doutora da Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2007, p. 205. 5 MILARÉ, Édis. Direito do ambiente: gestão ambiental em foco: doutrina, jurisprudência, glossário. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 59. 126 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições o consumismo excessivo da sociedade alteraram a face do planeta. O meio ambiente ecologicamente preservado atingiu o status de direito fundamental com o Estado Democrático de Direito6. Tanto que, após o surgimento da Lei 6.938/81 estabelecendo a Política Nacional do Meio Ambiente, veio a Constituição Federal de 1988, como um marco para o direito ambiental brasileiro, trazendo pela primeira vez na história constitucional brasileira, um capítulo específico dedicado à defesa do meio ambiente. Nela, o meio ambiente ecologicamente equilibrado passou a ser reconhecido como um direito fundamental material, porque escrito no texto constitucional, embora não integrante do rol elencado no título específico, ou seja, o Título II7 da Lei Maior 8. Segundo Sarlet, a expressão “direitos fundamentais” deve ser aplicada aos direitos humanos considerados mais importantes para uma sociedade e positivados nas constituições. Diz o autor: Não há como olvidar, neste contexto, que a opção do Constituinte, ao erigir certa matéria à categoria de direito fundamental, se baseia na efetiva importância que aquela possui para a comunidade em determinado momento histórico, circunstância esta indispensável para que determinada posição jurídica possa ser qualificada como fundamental.9 Destaque-se que a Constituição de 1998 consagrou a noção aberta de fundamentalidade dos direitos, ao estabelecer que devam ser tidos como tais não apenas aqueles nela expressamente positivados, mas também aqueles que dela possam ser extraídos por interpretação (regime e princípios por ela adotados), bem assim aqueles acaso decorrentes de tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte (art. 5º, o § 2º). O direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado restou expressamente positivado no caput do art. 225, da Carta Fundamental de 1988: “todos têm 6 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 27. ed. São Paulo. Malheiros, 2006, p. 118. Explica Silva que “ele é Democrático na medida em que há a submissão dos governantes à vontade popular; e de Direito porque há a obediência dos governantes à norma. Outrossim, é um Estado que deve observar os direitos individuais e sociais, assim como a separação dos poderes.” 7 O catálogo dos direitos fundamentais está estabelecido no Título II, da Constituição da República, que trata dos direitos e garantias fundamentais; Capítulo I, que cuida dos direitos e deveres individuais e coletivos. Neste catálogo estão consagrados direitos fundamentais das diversas dimensões. Com relação ao direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, estabelecido no caput do art. 225, da Constituição da República, direito de terceira dimensão, este se encontra localizado no texto constitucional, mas fora do título dos direitos fundamentais. 8 Neste sentido, SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2009. 9 Ibidem, p. 104. 127 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendêlo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Vem-se a concluir que o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado deriva do princípio da dignidade humana, sendo: [...] corolário do próprio direito à vida, indispensável a uma condição de sobrevivência digna; além do que, transcende os limites da individualidade ou mesmo da coletividade, porquanto é direito e dever de todos e, ao mesmo tempo, de cada um, não sendo possível determinar e individualizar os seus destinatários.10 Ressalte-se, ademais, que uma condição de sobrevivência digna advém dos valores mínimos fundamentais elencados no art. 6º, da Constituição Federal que devem ser prestados pelo Estado, mediante o recolhimento de tributos, para o desfrute de uma vida com dignidade11. O STF, aliás, reconhece a importância das condições necessárias e essenciais à sobrevivência digna e a possibilidade de intervenção do judiciário em face do Estado, com a intenção de assegurar a todos o acesso aos bens ambientais, ADPF 45, Relator Min. Celso de Mello, DJ, 4-5-2004 12. Porém, da leitura do artigo 225, além do direito antes exposto, advém o dever fundamental de “defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Seu § 1º elenca os deveres que são impostos ao Poder Público, já os parágrafos 2º e 3º estabelecem aqueles que devem ser cumpridos pela coletividade. Destarte, conforme determina o referido artigo, é dever de todos, Estado e sociedade, proteger e preservar o meio ambiente. Nas palavras de Germana Belchior: 10 CAVALCANTE, Denise Lucena e MENDES, Ana Stela Vieira. Constituição, direito tributário e meio ambiente. Revista Nomos. V. 28.2. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2008, p. 29-39. 11 FIORILLO, op. cit., p. 110. 12 Paradigmática a decisão monocrática proferida pelo Min. Celso de Mello na APDF 45. Ainda que ali não tenha havido decisão de mérito, o Relator expressamente afirmou – em ato judicial que mais vale pela posição doutrinária que assume do que pelo dispositivo que contém – a dimensão política da jurisdição constitucional e a possibilidade de controle judicial das políticas públicas, ainda mais quando se cuidar da implementação da garantia do mínimo existencial. Mais recentemente, o entendimento foi ratificado em julgado também da relatoria do Min. Celso de Mello (RE 436996/SP), reconhecendo direito subjetivo de acesso a uma vaga na rede pública para crianças de até seis anos de idade em creches e pré-escolas, igualmente sob a invocação da noção de mínimo existencial. Dados disponíveis no endereço eletrônico <http://www.stf.jus.br>. Também há referência em SARLET, Ingo Wolfgang e FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. In: SARLET, Ingo Wolfgang e TIMM, Luciano Benetti (Org.) Direitos Fundamentais: orçamento e reserva do possível. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 23. 128 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições [...] O homem, na condição de cidadão, torna-se titular do direito ao ambiente equilibrado e também sujeito ativo do dever fundamental de proteger o ambiente.[...] É interessante perceber que a sociedade acaba sendo sujeito ativo e passivo do direito-dever. Em outras palavras, todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e, como conseqüência, o dever de preservá-lo cabe também a todos. [...]13 O artigo 170 da Constituição de 1988, ao assegurar a livre iniciativa, coloca em seu inciso VI a defesa do meio ambiente como princípio da atividade econômica 14. No mesmo sentido, dispõe o artigo 186 sobre a função socioambiental da propriedade 15. Ressalte-se que a função social da propriedade é dever fundamental expresso no inciso XXIII do artigo 5º da nossa Lei Maior 16. Da combinação destes com o artigo 225, conclui-se que a “a Carta de 1988 adotou o “antropocentrismo alargado” porque considerou o ambiente como bem de uso comum do povo, atribuindo-lhe inegável caráter de macrobem.”17 Diante da análise mais acurada da finalidade dos artigos antes mencionados e diante da complexidade da atual sociedade, a doutrina tem falado na conformação do Estado à ficção de um novo Estado de Direito, o de Direito Ambiental18, bem explicado nas palavras de José Rubens Morato Leite: O Estado de Direito Ambiental, dessa forma, é um conceito de cunho teóricoabstrato que abarca elementos jurídicos, sociais e políticos na busca de uma situação ambiental favorável à plena satisfação da dignidade humana e harmonia dos ecossistemas. Assim, é preciso que fique claro que as normas jurídicas são apenas uma faceta do complexo de realidades que se relacionam com a idéia de Estado de 19 Direito do Ambiente” Depreende-se, entretanto, que a efetivação de um Estado de Direito Ambiental exige uma complexidade de mudanças de estrutura social20 e estatal que vislumbrem uma ação 13 BELCHIOR, Germana Parente Neiva. Hermenêutica e meio ambiente: uma proposta de hermenêutica jurídica ambiental para a efetivação do estado de direito ambiental. Dissertação de mestrado apresentada para obtenção do grau de mestre em direito da Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, 2009, p. 87. 14 Constituição Federal, artigo 170: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e da livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...) VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; (...)”. 15 Idem, artigo 186: “A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I – aproveitamento racional e adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; (...)”. 16 Idem, artigo 5º: (...) XXIII – a propriedade atenderá a sua função social; (...) 17 LEITE, José Rubens Morato. In Sociedade de risco e estado. Direito constitucional ambiental brasileiro. Org. José Joaquim Gomes Canotilho e José Rubens Morato Leite. 3ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 161.. 18 Ibidem, p. 156. 19 Ibidem, p. 169. 20 Bem arremata a questão da mudança social Raimundo Bezerra Falcão: “O sentido e a profundidade da mudança variam conforme as circunstâncias, e a mudança será tão mais marcante quanto mais altere as 129 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições conjunta na proteção do ambiente para as gerações presentes e futuras. O direito ao meio ambiente saudável, por ser um direito fundamental de terceira geração21, exige do Poder Público um agir estatal com vista a concretização dos direitos fundamentais. 22 Ao lado deste dispositivo constitucional, outras normas infraconstitucionais, como por exemplo, a Lei 6.938 de 31 de agosto de 1981 e a Lei 12.305 de 2 de agosto de 2010 surgem com a finalidade de preservação ambiental que, devidamente aplicadas dentro do mundo real, poderão propiciar mudança nos fatos sociais e condicionar sua viabilidade e utilidade social. Surge, assim, a tributação ambiental, como forma de instrumentalizar a adoção de posturas que reduzam o impacto ambiental. 3. A extrafiscalidade na defesa do meio ambiente Vive-se hoje em uma sociedade de risco 23 e o crescimento desmedido advindo da globalização trouxe problemas para o meio ambiente que podem ser remodelados com a finalidade de induzir ou estimular condutas que sejam caras aos interesses da coletividade. Por tal motivo, pode o Poder Público utilizar-se da tributação em processos e procedimentos de políticas públicas que tenham como finalidade a redução de impactos ambientais. Neste sentido, Luciano Timm24: estruturas e o funcionamento das formas societais ou dos processos que se desenvolvam no interior dessas formas.” FALCÃO, Raimundo Bezerra. Tributação e mudança social. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1981, p. 65. 21 Bastante conhecida a teoria das gerações dos direitos atribuída ao jurista tcheco Karel Vasak. Descreve este que os direitos de primeira geração são aqueles associados ao exercício da liberdade, os de segunda geração referem-se aos direitos econômicos, sociais e culturais e os de terceira geração correspondem àqueles de solidariedade, entendidos como os que se relacionam com o desenvolvimento, o meio ambiente hígido e a paz. Vale ressaltar, nesse instante, que há classificações outras. Paulo Bonavides, por exemplo, fala em direitos de quinta geração. BONAVIDES, Paulo. O direito à paz como direito fundamental de quinta geração. In: Revista interesse público, v. 8, n. 40, nov/dez, 2006. 22 JORGE NETO, Nagibe de Melo. O controle jurisdicional das políticas públicas: concretizando a democracia e os direitos fundamentais. Salvador: Editora Juspodivm, 2008. 23 José Rubens Morato Leite define sociedade de risco como “aquela que, em função de seu contínuo crescimento econômico, pode sofrer a qualquer tempo as consequências de uma catástrofe ambiental. Nota-se, portanto, a evolução e o agravamento dos problemas, seguidos de uma evolução da sociedade (da sociedade industrial para a sociedade de risco), sem, contudo, uma adequação dos mecanismos jurídicos de solução dos problemas dessa nova sociedade. Há consciência da existência dos riscos, desacompanhada, contudo, de políticas de gestão, fenômeno denominado irresponsabilidade organizada.”, op.cit., p. 152. 24 TIMM, Luciano Benetti. Qual a maneira mais eficiente de prover direitos fundamentais: uma perspectiva de direito e economia? In: SARLET, Ingo Wolfgang e TIMM, Luciano Benetti (Org.) Direitos Fundamentais: orçamento e reserva do possível. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 64. 130 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições O melhor mecanismo de justiça social é a tributação. [...] Somente um planejamento sério, que envolva profissionais da área de administração, economia e contabilidade, poderá permitir eficiência no emprego de recursos públicos (ou seja, como já dito, atingindo um maior número de pessoas com o mesmo recurso proveniente da tributação). No mesmo sentido, Paulo Amaral25: As atividades econômicas não-poluidoras deverão ser incentivadas por meio de instrumentos tributários e econômicos em detrimento das poluidoras como forma de reorientar as condutas dos agentes poluidores a adotarem novas e adequadas tecnologias limpas para reduzirem custos em seus processos de produção. Esse tipo de política econômica desenvolvida em nosso país diminuirá significativamente os custos sociais com a poluição ambiental, uma vez que o nível de bem-estar coletivo aumentará e, automaticamente, produzirá benefícios em termos de saúde pública. O estabelecimento de uma nova relação homem-meio ambiente, através de novos conceitos de ética, educação e racionalidade ambientais 26 é importante. Mas as mudanças sociais levam tempo para se efetivarem27. Por outro lado a recuperação de um dano ambiental traz custos muito altos ao Erário ou àquele a quem foi imputada a culpa 28 e, por vezes, nem sequer se consegue restaurar o dano ou, por outra, os impactos causados não se restringem ao âmbito local. É excessiva, no entanto, a carga tributária em nosso país, tanto para empresários, quanto para os cidadãos. Os incentivos fiscais 29 aparecem como forma altamente atraente, 25 AMARAL, Paulo Henrique do. Direito tributário ambiental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 51. A respeito da nova relação homem-meio ambiente, a que designa de pré-compreensão ecológica, BELCHIOR, op. cit., p. 92 e 143/156. 27 Raimundo Bezerra Falcão diz: “A aceitação da mudança está relacionada com a necessidade de mudar, com a possibilidade de proporcionar satisfação e com a utilidade esperada. Já a inércia, o arraigamento de hábitos e costumes, a desconfiança, as tradições assentes, o interesse de resguardar direitos, o sistema de Direito Positivo, a ignorância ou carência de conhecimentos, tudo isso labora no sentido de levantar obstáculos ao êxito da mudança. Assim sendo, a mudança se concretiza com maior e menor eficácia ou rapidez quando as forças que lhe são favoráveis superam as que se lhe opõem.”. Op. cit., p. 66. 28 Tal posicionamento leva-nos a lembrar do jarguão popular: “É melhor prevenir do que remediar”. Mais aprofundadas ainda as palavras de Terence Dornelles Trennepohl, quando expõe acerca da distinção entre os princípios da precaução e da prevenção: “O princípio da precaução tem aplicação mais abrangente que o da prevenção, haja vista a aplicação daquele ocorrer em momento anterior ao conhecimento das conseqüências do dano ambiental, enquanto este somente se dá em uma fase posterior, quando o risco se converte em dano.” TRENNEPOHL, Terence Dornelles. Incentivos fiscais no direito ambiental. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 52. 29 A Constituição Federal prescreve autorização para tais incentivos, em seu artigo 150, parágrafo 6º: “Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2º, XIII, g.”. 26 131 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições proporcionando ao Estado recursos para implementar políticas de proteção ao ambiente, além de estimular condutas ambientalmente corretas. O Estado, em obediência ao preceito constitucional de promover a preservação ambiental, mescla os sentidos arrecadatório e extrafiscal 30 do direito tributário para realizar uma diferenciação entre poluidores e não-poluidores, premiando os últimos31. A proteção ambiental via extrafiscalidade sugere a adoção de políticas públicas de planejamento tributário, onde os incentivos fiscais, segundo Norberto Bobbio, levem a um comportamento promocional32 do ordenamento jurídico. Essas políticas públicas que visam incrementar a preservação ambiental foram incorporadas originalmente em países da Europa33. Depois, política similar foi implantada nos Estados Unidos, no final da década de 1980 e consistia em um fundo ambiental chamado Superfund.34 Na Rússia também foram usados os fundos ambientais e na pós- União Soviética “têm sido uma fonte de financiamento substancial para a proteção do meio ambiente e o controle da contaminação.”35 Tais incrementos à preservação do ambiente são os “eco-impostos ou incentivos verdes, mecanismos legais capazes de fomentar ações de interesse geral da sociedade e financiar projetos a longo prazo”36 No Brasil, a tendência da aplicação da tributação ambiental, via incentivos fiscais tem sido praticada por alguns Estados e Municípios da Federação. 30 Raimundo Bezerra Falcão explica: [...] por extrafiscalidade, entender-se-á a atividade financeira que o Estado exercita sem o fim precípuo de obter recursos para seu erário, para o fisco, mas sim com vistas a ordenar ou reordenar a economia e as relações sociais, [...], op. cit., p. 48. 31 OLIVEIRA, José Marcos Domingues de. Direito tributário e meio ambiente. 3ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 59. 32 Diz Norberto Bobbio: “existem três modos de impedir uma ação não desejada: torná-la impossível, torná-la difícil e torná-la desvantajosa. De modo simétrico, pode-se afirmar que um ordenamento promocional busca atingir o próprio fim pelas três ações contrárias, isto é, buscando tornar a ação desejada necessária, fácil e vantajosa.” BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Barueri, São Paulo: Manole, 2007, p. 15. 33 TRENNEPOHL, op. cit., p. 82. 34 “[...] o Superfund foi implantado no fim da década de 1980 e aperfeiçoado em 1986, com recursos provenientes de um imposto aplicado sobre as indústrias químicas e de petróleo. Em julho de 2001, havia, 43.806 sítios contaminados e 1.235 deles constavam como prioridade máxima para o conselho diretor do fundo.” CALDERONI, Sabetai. Economia ambiental. In PHILIPPI JR., Arlindo ;ROMÉRO, Marcelo de Andrade e BRUNA, Gilda Collet (Editores). Curso de gestão ambiental. Barueri, SP: Manole, 2004, p. 601. 35 Ibidem, p. 601-602. 36 BRAUN, Ricardo. Incentivos Verdes – modelo de incentivos verdes para o desenvolvimento sustentável – instrumentos econômicos, eco-impostos, motivação social, gestão corporativa. E-book disponível no endereço eletrônico <http://incentivosverdes.wordpress.com>. Acesso em 13/09/2010, p. 10. Acesso em 13/09/2010. 132 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Terence Trennepohl cita exemplos de alguns incentivos brasileiros, como os relacionados: (1) com o do Imposto de Renda (IR), através da Lei 5.106/66, que permitia descontos do valor do imposto a pessoas físicas e jurídicas que investissem em florestamento e reflorestamento; (2) com o do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), sob o Decreto Federal 755/93, que estabelecia diferenciação nas alíquotas de veículos movidos a álcool e a gasolina; (3) com o do Imposto Territorial Urbano (ITR), por meio da Lei 9.393/96, que isentava da cobrança do imposto as áreas de reserva legal, de preservação permanente, dentre outras; (4) com o do ICMS ecológico, implementado em vários Estados, como Paraná, Minas Gerais e Mato Grosso do Sul e (5) com o do IPVA no Estado do Rio de Janeiro, com a Lei Estadual 948/95.37 Vejam-se, ainda, os incentivos ao Etanol, às energias “limpas”: biodiesel, energia solar, energia solar, dentre outras e as negociações feitas através do Mercado de Carbono nas Bolsas de Valores.38 Recentemente, vários Municípios brasileiros valendo-se do uso do IPTU, têm concedido descontos nas parcelas de cobrança do referido imposto quando da prática de condutas positivas em prol do meio ambiente. Podemos citar, como exemplo, os Município de Curitiba39 no Paraná, os Municípios de São Carlos40 e Araquara41, ambos em São Paulo, Natal42 no Estado do Rio Grande do Norte, Rio de Janeiro e Petrópolis, ambos no Estado do Rio, Lageado no Rio Grande do Sul e Vitória no Espírito Santo. 43 Nos Municípios citados, entretanto, são concedidos incentivos quando da preservação de áreas verdes no imóvel ou caso referidos imóveis tenham valor histórico, cultural, social ou ecológico. O Município de Fortaleza inovou, através da Lei Complementar nº 73, de 28 de dezembro de 2009, concedendo desconto de cinco por cento no valor do IPTU aos condomínios que façam a separação de resíduos sólidos, destinando-os para associações e/ou cooperativas de catadores de lixo. 37 TRENNEPOHL, op. cit., p. 83-84. CAVALCANTE e MENDES, op. cit., p. 39. 39 Lei do imposto imobiliário Prefeitura de Curitiba. Disponível <http://sitepmcestatico.curitiba.pr.gov.br/Secretarias/1/22/Anexos/LEI6202.pdf.>. Acesso em 05/09/2010. 40 IPTU Verde: prorrogado prazo para desconto. Disponível <http://www.saocarlos.sp.gov.br/index.php.noticias/2009/155673-iptu-verde-prorrogado-prazo-paradesconto.html>. Acesso em 05/09/2010. 41 Contribuintes já podem solicitar desconto do IPTU Verde. 02/02/2010. Disponível <http://www.araraquara.sp.gov.br/noticia/Noticia.aspx?IDNoticia=1357>. Acesso em 05/09/201. 42 Câmara Municipal de Natal. Lei nº 00301/09. Disponível <http:www.cmnat.rn.gov.br/busca_leis_visualizr_print.asp?tipo=LEIPROMULGADA&numero=00301/09>. Acesso em 06/09/2010. 43 BRAUN, Ricardo. Op. Cit., p. 49. 38 em em em em 133 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Surge a Lei Federal nº 12.305, de 2 de agosto de 2010, estabelecendo a Política Nacional de Resíduos Sólidos. Cumpre no presente trabalho analisar como a tributação pode intervir nas suas diretrizes. 4. Breve análise da nova lei dos resíduos sólidos Os resíduos sólidos no Brasil já vinham sendo vislumbrados desde a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, Lei n. 6.938/81, e da Lei n. 11.445/2007 que estabelece diretrizes nacionais para o saneamento básico. A nova Lei, por sua vez, estabelece a Política Nacional dos Resíduos Sólidos, objetivando uma gestão integrada e gerenciada dos resíduos, incluindo os perigosos, atribuindo responsabilidade aos geradores de resíduos (seja pessoas físicas ou jurídicas, de direito público ou privado), ao poder público e aos que participem do processo de gestão e gerenciamento.44 Ou seja, ela prevê um forte instrumento para sua efetivação, em se tratando do assunto, preservação do meio ambiente, é a gestão compartilhada de todos que fazem parte desse cenário. Enfatiza, também, o reaproveitamento, a reutilização, a redução dos resíduos e disposição final ambientalmente adequada de rejeitos45, vislumbrando a concessão de incentivos fiscais, financeiros e creditícios. Ressalte-se que, desde a época de seu projeto, era prevista a instituição de um fundo de apoio à reciclagem de resíduos. 46 Outro ponto forte da Lei é a participação de cooperativas de catadores no processo de gestão dos resíduos, prevendo, inclusive, sua inclusão social e sua emancipação econômica, mediante incentivos ou financiamento para Estados e Municípios que façam coleta seletiva com referidos agentes.47 44 Lei 12.305, de 02 de agosto de 2010, Art. 1º, § 1º. A legislação em referência ocupa-se de conceituar resíduos e rejeitos, para os fins que especifica. Assim, rejeitos são “...resíduos sólidos que, depois de esgotadas todas as possibilidades de tratamento e recuperação por processos tecnológicos disponíveis e economicamente viáveis, não apresentem outra possibilidade que não a disposição final ambientalmente adequada” (art. 3º, XV); ao mesmo tempo, define resíduos sólidos como “... material, substância, objeto ou bem descartado resultante de atividades humanas em sociedade, a cuja destinação final se procede, se propõe proceder ou se está obrigado a proceder, nos estados sólido ou semissólido, bem como gases contidos em recipientes e líquidos cujas particularidades tornem inviável o seu lançamento na rede pública de esgotos ou em corpos d‟água, ou exigia para isso soluções técnica ou economicamente inviáveis em face da melhor tecnologia disponível” (art. 3º, XVI). 46 CALDERONI, op. cit., p. 601. 47 Os pontos positivos e negativos da nova lei de resíduos sólidos. Disponível em <http://saúdefloripa33pj.wordpress.com/2010/08/12/os-pontos-positivos-e-negativos-da-nova-lei-de-residuos45 134 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Merecem destaque, ainda, a imposição que a nova legislação faz quanto a estruturação e a implementação de sistemas de logística reversa 48 e os planos nacional, estadual e municipal de resíduos sólidos, com a fixação de metas e normas para manejo e destinação final adequados49, planos estes que terão prazo de até quatro anos para implantação. Outras duas ótimas novidades: a previsão de eliminação de lixões e a proibição da importação de resíduos perigosos ou que causem danos ao meio ambiente, à saúde pública e animal e à sanidade vegetal. Fraquejou referida norma, entretanto, quando possibilitou a utilização de “recuperação energética” dos resíduos, em outras palavras, a incineração 50. Outro ponto fraco é que em seu texto não há previsão de um órgão específico responsável pelos resíduos sólidos e, devido, ser tão recente, ainda não possui decreto presidencial que a regulamente, sob pena de se tornar inócua.51 5. A situação e a legislação local da segregação dos resíduos sólidos A realidade que se apresenta em várias cidades brasileiras, inclusive na cidade de Fortaleza, é de desleixo com a exposição dos resíduos ou, como popularmente se chama, solidos>. Blog da 33ª Promotoria de Justiça da Capital – Ministério Público/SC. Acesso em 06/09/2010. 48 “Logística Reversa é um termo bastante genérico. Em seu sentido mais amplo, significa todas as operações relacionadas com a reutilização de produtos e materiais. Logística Reversa se refere a todas as atividades logísticas de coletar, desmontar e processar produtos e/ou materiais e peças usados a fim de assegurar uma recuperação sustentável (amigável ao meio ambiente).” DAHER, Cecílio Elias; SILVA, Edwin Pinto de la Sota e FONSECA, Adelaida Pallavicini. Logística reversa: oportunidade de redução de custos através do gerenciamento da cadeia integrada de valor. Disponível em <http://www.bbronline.com.br/upld/trabalhos/pdf/32_pt.pdf>. Acesso em 27/09/2010. 49 Resíduos sólidos: a regulamentação da nova lei e as expectativas do mercado. Disponível em <http://www.segs.com.br/index.php?view=article&catid=50%3Acat-demais&id=18601>. Acesso em 06/09/2010. 50 “A incineração, como técnica de eliminação de resíduos, é uma prática que existe há aproximadamente cem anos, [...] É bastante comum na literatura encontrar a denominação destruição de resíduos. Na realidade, a palavra destruição do ponto de vista formal não pode ser usada neste sentido, entretanto, é aceita em razão de seu uso disseminado em todas as línguas. De forma bem simplificada, os produtos orgânicos (comida, tecidos, plásticos) são compostos em ligações envolvendo carbono e hidrogênio (H); no incinerador acontece a oxidação (combustão) desses compostos, [...] A reação de combustão de produtos orgânicos normalmente libera calor, que é transferida para os gases e para o material sólido. [...] Provavelmente a parte mais crítica de um incinerador está no controle das emissões, seja de material particulado, seja de gases. [...] Os gases saem do incinerador com temperaturas na faixa de 800°C a 1.000°C. Assim, seu resfriamento é necessário para que o tratamento contra a poluição atmosférica seja feito. O resfriamento normalmente se faz em trocadores de calor, que, além de resfriar os gases, aproveitam o calor deles, transformando-os em energia ou vapor, que é usado para cobrir as despesas de incineração. O material particulado resultante é controlado por equipamentos como filtros de manga, precipitores eletrostáticos e lavadores venturi.” TENÓRIO, Jorge Alberto Soares e ESPINOSA, Denise Crocce Romano. Controle ambiental de resíduos. In PHILIPPI JR., Arlindo ;ROMÉRO, Marcelo de Andrade e BRUNA, Gilda Collet (Editores). Curso de gestão ambiental. Barueri, SP: Manole, 2004, p. 188-191. 51 Vide nota 47. 135 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições lixo, a céu aberto, às vezes, nas próprias calçadas. Trata-se de uma questão de educação ambiental e de responsabilidade social e do Estado. A preocupação com a destinação dos resíduos surgiu devido ao seu tamanho crescente nas cidades, comprometendo o meio ambiente. O desenvolvimento da população, o aumento do consumo, a maior disponibilidade de descartáveis, a reduzida durabilidade dos produtos postos no mercado levam à geração de volumes cada vez maiores e diversificados de resíduos, tornando mais caro e complexo seu tratamento. As conseqüências do acúmulo de lixo nas cidades põem em risco o ar, o solo, as águas superficiais e os lençóis freáticos. Ademais, verificam-se a proliferação de diversas doenças, o agravamento de problemas socioeconômicos, poluição visual e desvalorização da região, além, do mau odor local. O Município de Fortaleza, de certa forma, antecipou-se à nova Política Nacional de Resíduos Sólidos, quando estabeleceu o desconto no IPTU aos condomínios que instituíssem a segregação dos seus resíduos, destinando-os a associações e/ou cooperativas de catadores de lixo. Entretanto, a Lei Municipal restringiu tal concessão aqueles que apresentassem requerimento à Secretaria de Finanças do Município somente até 29 de fevereiro de 2010. Não tendo sido ainda regulamentada, deve-se retirar tal dispositivo, ampliando e motivando a participação de um maior número de contribuintes, o que beneficiará ainda mais a cidade de Fortaleza. Ademais, percebe-se que o valor concedido, apenas de cinco por cento, é muito baixo e não gera o estímulo devido, sugerindo que seja feito um estudo para que se aumente este valor para 10% (dez por cento). Portanto, o que se propõe é uma espécie de “isenção premial” do IPTU decorrente de uma adequada e necessária prática de reciclagem de resíduos sólidos. E mesmo que esta isenção cause algum impacto nas receitas orçamentárias ela será equilibrada pela econômica que se terá no pagamento que a Prefeitura de Fortaleza faz quando na coleta do lixo, que sendo mensurada em peso, terá esta medição diminuída pela exclusão dos resíduos entregues à reciclagem. Enfim, caberá ao Município fazer um estudo sobre este impacto da redução da receita prevista para o IPTU.52 52 Francisco Ewerton Sombra de Mesquita fez um estudo do IPTU de Fortaleza, analisando sua evolução da arrecadação e os impactos desta nas receitas correntes orçamentárias no período de 2005 a 2008, concluindo que: “[...] avaliando o IPTU em relação ao total das receitas correntes, ficou constatado que, a arrecadação de todos os impostos e taxas evoluiu ao longo dos anos analisados. Notou-se também que, dos itens analisados, o IPTU 136 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições E, considerando que referida Lei Municipal ainda não foi regulamentada, segue a proposição de Projeto de Decreto que regulamente, o mais breve possível, a lei em questão, desde logo, enfatizando a necessária alteração em relação ao percentual de 5%, devendo o mesmo passar para 10%, propondo um estímulo concreto para a mudança de cultura do povo fortalezense em relação à reciclagem dos resíduos sólidos. A referida proposta de regulamento encontra-se no apêndice deste artigo. 6. Considerações finais Há algumas gerações, a sociedade vem debatendo sobre os problemas ambientais e percebe-se que, ao estudarmos o assunto, nos deparamos com o dilema entre o meio ambiente e o desenvolvimento. Para uns prevalecerá o primeiro; para outros, o último. Na verdade, devemos encarar a importância de como harmonizá-los, já que ambos se complementam. Um não deve sobrepor-se ao outro, nem mesmo os fundamentos de seus defensores. Cabe a cada um de nós, a partir do grupo ao qual somos mais simpatizantes, fazermos a nossa parte. Impõe-se harmonização dos direitos fundamentais ao meio-ambiente ecologicamente equilibrado e à propriedade. A proposta aqui lançada diz com a utilização da tributação como instrumento para induzir exercício ambientalmente adequado do direito de propriedade. Não se pretende assentar que a tributação ambiental resolverá a questão por inteiro. Não se trata disso. O que se procurou demonstrar é que ela pode ser tida como mais um instrumento econômico hábil a obliterar os efeitos nocivos que os costumes da nossa sociedade causam ao meio ambiente. As políticas públicas que estimulem a proteção ambiental e a sustentabilidade local devem ser executadas em todas as esferas do Poder Público como forma de o Estado, juntamente com a sociedade, cumprirem o dever fundamental de defesa e preservação do ambiente. Abordou-se, conforme exposto, a maneira pela qual a nova legislação procura enfrentar a problemática dos resíduos sólidos nas cidades brasileiras e como, mais especificamente no Município de Fortaleza, a Administração tem procurado iniciar uma política ambiental pautada nas diretrizes da nova Política Nacional de Resíduos Sólidos, ocupa o 4º lugar em participação, correspondendo sua arrecadação, em média, a 4,30% do total das receitas correntes. [...] o IPTU ocupa o 2º lugar em participação, correspondendo sua arrecadação, em média, há 23,31% do total das receitas tributárias, ficando atrás apenas do ISS.” (In Anais – Prêmios SEFIN, 3ª ed. Fortaleza: Tiprogresso, 2009, p. 402-403). 137 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições aprovada recentemente pela Lei n. 12.305, de 2 de agosto de 2010. Percebe-se que a concretização de tais políticas dependem de apoio políticoinstitucional do Executivo e dos parlamentares que, após aprová-las, devem divulgá-las e estimulá-las, como forma de fazer crescer a participação e o espírito de solidariedade social da comunidade em geral. Os incentivos verdes são ações econômicas legais e dependem daquelas intenções políticas, que poderão fazer a participação da comunidade na coleta seletiva e reciclagem crescer. Entretanto, coleta seletiva e reciclagem implicam, além da participação dos geradores de resíduos53, em aportes financeiros. O incentivo ofertado não pode ser tão reduzido que não induza conduta, nem tão amplo que comprometa o equilíbrio orçamentário da Administração Pública. Em arremate, deve-se assinalar que, no caso específico do IPTU em Fortaleza, a pequena quantidade de inscritos para obtenção do incentivo concedido parece apontar no sentido de que o mesmo não foi suficiente para induzir novo comportamento, ambientalmente adequado. Não houve, ademais, ampla divulgação. Alcançar objetivos tão caros às futuras gerações de fortalezenses impõe o repensar da atuação da Administração Pública Municipal, nos moldes apontados. Referências bibliográficas AMARAL, Paulo Henrique do. Direito tributário ambiental. Tribunais, 2007. São Paulo: Revista dos BELCHIOR, Germana Parente Neiva. Hermenêutica e meio ambiente: uma proposta de hermenêutica jurídica ambiental para a efetivação do estado de direito ambiental. Dissertação de mestrado apresentada com requisito parcial à obtenção do grau de mestre em direito na Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, 2009. BIANCHI, Patrícia Nunes Lima. A (in)eficácia do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado no Brasil. Tese apresentada como requisito parcial à obtenção do título de doutora na Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2007. 53 Geradores de resíduos somos, no final das contas, todos nós, pessoas físicas e jurídicas, particulares ou públicas 138 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. São Paulo:Manole, 2007. BONAVIDES, Paulo. O direito à paz como direito fundamental de quinta geração. In: Revista interesse público, v. 8, n. 40, nov/dez, 2006. BRAUN, Ricardo. Incentivos Verdes – modelo de incentivos verdes para o desenvolvimento sustentável – instrumentos econômicos, eco-impostos, motivação social, gestão corporativa. E-book disponível no endereço eletrônico <http://incentivosverdes.wordpress.com. Acesso em 13/09/2010. CALDERONI, Sabetai. Economia ambiental. In PHILIPPI JR., Arlindo; ROMÉRO, Marcelo de Andrade e BRUNA, Gilda Collet (Editores). Curso de gestão ambiental. Barueri, SP: Manole, 2004. CAVALCANTE, Denise Lucena e MENDES, Ana Stela Vieira. Constituição, direito tributário e meio ambiente. Revista Nomos. V. 28.2. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2008, p. 29-39. FALCÃO, Raimundo Bezerra. Tributação e mudança social. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1981. FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 10ª edição. São Paulo: Saraiva, 2009. JORGE NETO, Nagibe de Melo. O controle jurisdicional das políticas públicas: concretizando a democracia e os direitos fundamentais. Salvador: Editora Juspodivm, 2008. LEITE, José Rubens Morato. Sociedade de risco e estado. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes e LEITE, José Rubens Morato (Org.). Direito constitucional ambiental brasileiro. 3ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010. MESQUITA. Francisco Ewerton Sombra de. Arrecadação do imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana (IPTU): estudo aplicado ao Município de Fortaleza. In: Anais – Prêmios SEFIN. 3ª ed., Fortaleza: Tiprogresso, 2009, p. 341 - 412. MILARÉ, Édis. Direito do ambiente: gestão ambiental em foco: jurisprudência, glossário. 6ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. doutrina, OLIVEIRA, José Marcos Domingues de. Direito tributário e meio ambiente. 3ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2007. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9ª edição. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2009. SARLET, Ingo Wolfgang e FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. In: SARLET, Ingo Wolfgang e TIMM, Luciano Benetti (Org.) Direitos Fundamentais: orçamento e reserva do possível. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 27ª edição. São Paulo. Malheiros, 2006. TIMM, Luciano Benetti. Qual a maneira mais eficiente de prover direitos fundamentais: uma perspectiva de direito e economia? In: SARLET, Ingo Wolfgang e TIMM, Luciano Benetti (Org.) Direitos Fundamentais: orçamento e reserva do possível. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. 139 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições TENÓRIO, Jorge Alberto Soares e ESPINOSA, Denise Crocce Romano. Controle ambiental de resíduos. In: PHILIPPI JR., Arlindo; ROMÉRO, Marcelo de Andrade e BRUNA, Gilda Collet (editores). Curso de gestão ambiental. Barueri, SP: Manole, 2004. TRENNEPOHL, Terence Dornelles. Incentivos fiscais no direito ambiental. São Paulo: Saraiva, 2008. Endereços eletrônicos consultados: <http://sitepmcestatico.curitiba.pr.gov.br/Secretarias/1/22/Anexos/LEI6202.pdf>. Acesso em 05/09/2010. <http://www.saocarlos.sp.gov.br/index.php.noticias/2009/155673-iptu-verde-prorrogadoprazo-para-desconto.html>. 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Regulamenta o artigo 2º da Lei Complementar nº 0073, de 28 de dezembro de 2009, que dispõe sobre a concessão de desconto de 5% (cinco por cento) no valor do IPTU aos condomínios que 140 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições instituam separação de resíduos sólidos e que destinem sua coleta a associações e/ou cooperativas de catadores de lixo. A PREFEITA DO MUNICÍPIO DE FORTALEZA, no uso das atribuições que lhe são conferidas pelo art. 83, inciso VI, da Lei Orgânica do Município, CONSIDERANDO o dever constitucional de defesa e preservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado; CONSIDERANDO as diretrizes da Nova Lei da Política Nacional de Resíduos Sólidos, Lei nº 12.305, de 2 de agosto de 2010; CONSIDERANDO a importância da separação dos resíduos sólidos no ambiente municipal; CONSIDERANDO a relevância da inclusão sócio-econômica dos catadores de lixo e de outras sociedades de reciclagem de materiais no âmbito da gestão de preservação ambiental da cidade, e; CONSIDERANDO o exemplo que deve ser transmitido à sociedade para levá-la a ser partícipe no processo de redução dos impactos ambientais; DECRETA: Art. 1º - A concessão de desconto de 5% (cinco por cento) no valor do IPTU aos condomínios residenciais, comerciais ou mistos que instituam a separação de resíduos sólidos. O benefício será aplicado à inscrição correspondente ao imóvel participante da coleta seletiva. Parágrafo Único: A separação de resíduos sólidos tem como objetivo a coleta seletiva de resíduos orgânicos e de resíduos inorgânicos, destinando-a a associações e/ou cooperativas de catadores de lixo ou, ainda, a outras sociedades de reciclagem. Art. 2º - Para fins do disposto neste decreto considera-se: I – coleta seletiva: método que envolve a seleção na fonte pelo gerador dos resíduos em componentes individuais, conforme sua constituição ou composição; 141 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições II - resíduos orgânicos ou lixo úmido: os restos de comida, detritos, cascas de alimentos, podas, lixo dos banheiros, varrição da casa e da rua, dentre outros que, após separação, são encaminhados para aterros sanitários ou em parte, usados para a fabricação de adubo orgânico; III – resíduos inorgânicos ou lixo seco: plásticos, madeira, vidro, papel, papelão, alumínio e metal, embalagens tipo longa vida, dentre outros que, após separação, possam ser reutilizados ou reciclados por associação e/ou cooperativas de catadores de lixo; IV – associações e/ou cooperativas de catadores de lixo: a agremiação ou união e/ou organização de várias pessoas formal e exclusivamente constituídas por estatuto de catadores de materiais recicláveis e que tenham a atividade de reciclagem como única fonte de renda; V – sociedades de reciclagem: instituição ou entidade de pessoas que tenham como atividade fim exclusivamente a reciclagem de materiais. Art. 3º - Os condomínios interessados em receber o beneficio da isenção parcial do IPTU deverão realizar cadastro na Secretaria do Meio Ambiente e Controle Urbano do Município de Fortaleza – SEMAM, bem como o pedido de adesão ao programa de coleta seletiva de resíduos sólidos, munidos dos seguintes documentos: I – Ata da Assembléia realizada com o fim de autorizar o cadastro e inclusão do condomínio no programa de coleta seletiva de resíduos sólidos, contendo a assinatura das unidades condominiais interessadas em participar do programa; II – Extrato para Simples Conferência de IPTU das unidades condominiais interessadas; III - Certidão Negativa de Tributos Municipais dos proprietários das unidades condominiais participantes. § 1º – A adesão do condomínio no programa de coleta seletiva de resíduos sólidos ficará condicionada à participação de, no mínimo, por um ano ininterrupto, 60% (sessenta por cento), das unidades condominiais no programa e somente as unidades participantes deverão gozar do benefício do desconto de 5% (cinco por cento) sobre valor do Imposto Predial Territorial Urbana. 142 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições § 2º – Por ocasião do cadastro a SEMAM disponibilizará: I - listas contendo os materiais e forma a serem segregados; II - relação das associações de catadores de materiais recicláveis e de outras sociedades de reciclagem cadastradas na SEMAM, objetivando a definição da associação ou outra sociedade de reciclagem que operacionalizará o programa junto ao condomínio, mediante formalização de Termo de Compromisso. Art. 4º - As associações e/ou cooperativas de catadores e as outras sociedades de reciclagem participantes do presente programa deverão possuir infra-estrutura física e logística para realizar a coleta nos condomínios, que serão definidos em Portaria pela SEMAM. Art. 5º - Os condomínios cadastrados deverão DOAR os resíduos segregados para a associação de catadores de materiais reciclados ou para a sociedade de reciclagem informada à SEMAN no ato do cadastro. § 1º – Caberá à associação de catadores ou a sociedade de reciclagem beneficiada recolher o material doado, de acordo com o disposto neste Decreto e no Termo de Compromisso firmado entre o condomínio e associação ou a sociedade de reciclagem, instrumento este que estabelecerá as condições para permanência no programa de coleta seletiva de resíduos sólidos, de acordo com os requisitos indicados pela SEMAM, através de Portaria, dentre os quais figurará obrigatoriamente o quantitativo mínimo de resíduos sólidos anualmente doados. § 2º – À associação de catadores ou à sociedade de reciclagem competirá emitir protocolos de recebimento dos resíduos sólidos, para fins de comprovação junto a Prefeitura de Fortaleza da efetiva participação do condomínio e suas unidades no programa, devendo certificar à SEMAM, no prazo de 05 (cinco) dias contados da solicitação da referida repartição, a destinação adequada dos resíduos recicláveis pelas unidades condominiais e atingimento do quantitativo anual mínimo de material doado obtida pelos imóveis adeptos da coleta seletiva. Art. 6º - Após a formalização da adesão do condomínio ao programa de coleta seletiva de 143 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições resíduos sólidos na SEMAM e ainda, comprovação por uma associação de catadores ou uma sociedade de reciclagem da destinação dos resíduos sólidos e atingimento do quantitativo mínimo anual estabelecido para doação de resíduos segregados pelo condomínio, conforme artigo 3º deste Decreto, a SEMAM emitirá o Certificado de Condomínio Verde atestando que o imóvel atende as exigências da coleta seletiva, providenciando o seu protocolo na Secretaria de Finanças do Município de Fortaleza, com a finalidade de propiciar o gozo do benefício do desconto no Imposto Predial Territorial Urbano – IPTU. § 1º - Somente o responsável pelo pagamento do IPTU poderá solicitar o benefício deste Decreto junto à SEMAM, devendo protocolar o pedido de adesão ou permanência no programa de coleta seletiva de resíduos sólidos até o último dia útil do mês de abril de cada ano, para obter o gozo do benefício no exercício seguinte. § 2º - A SEMAM deverá protocolar junto à Secretaria de Finanças do Município de Fortaleza – SEFIN até o último dia útil do mês de junho de cada ano, para gozo do benefício no exercício seguinte, o Certificado de Condomínio Verde, válido por 01 (um) ano, assinado pelo Secretário da SEMAM, contendo as inscrições de IPTU e endereço das unidades imobiliárias que deverão ser beneficiadas com o desconto de 5% (cinco por cento) sobre valor do Imposto Predial Territorial Urbana - IPTU. Parágrafo Único – Caso a adesão do condomínio no programa de coleta seletiva de resíduos sólidos atingir 100% (cem por cento) das unidades condominiais, a Prefeitura concederá desconto de 10% (dez por cento) na Contribuição de Iluminação Pública paga por cada unidade participante do programa no exercício subseqüente. Art. 7º - Caberá à Prefeitura o fornecimento dos coletores dos resíduos aos condomínios participantes do programa. Art. 8º - Para o cumprimento no disposto no artigo 1º, os condomínios deverão acondicionar, SEPARADAMENTE, os seguintes resíduos produzidos em suas dependências: 144 I. A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Resíduos inorgânicos ou lixo Seco (Papel, papelão, plástico, metal, dentre outros, exceto vidros que deverão ser acondicionados separadamente); II. Resíduos úmidos (restos de comida, cascas de alimentos, podas, lixo dos banheiros, varrição da casa e da rua, dentre outros); III. Resíduos da Construção Civil. Art. 9º - Fiscais da Prefeitura de Fortaleza visitarão os condomínios beneficiados por este Decreto, assim como as associações de catadores ou sociedades de reciclagem envolvidas no programa, para confirmação do funcionamento da coleta seletiva, competindo-lhes: 1. Fiscalizar os condomínios participantes, através de relatórios técnicos semestrais quanto ao cumprimento das exigências previstas, emitindo pareceres de manutenção ou suspensão do referido desconto; 2. Acompanhar, supervisionar e avaliar, através de relatórios semestrais de inspeção o engajamento das associações e/ou cooperativas de catadores de lixo ou sociedades de reciclagem participantes, emitindo parecer de manutenção ou suspensão da referida associação, cooperativa ou sociedade no programa da coleta seletiva; 3. Os relatórios e respectivos pareceres referidos nos itens anteriores deverão ser enviados à SEMAM, a fim de que tome as providências cabíveis definidas em Portaria. § 1º - Caso não se comprove que o condomínio cumpre as exigências da coleta seletiva, a Prefeitura cancelará o beneficio automaticamente. § 2º - Será excluída do programa a associação, cooperativa ou sociedade que não esteja cumprindo os requisitos para participação . § 3º - Na hipótese do responsável pelo pagamento do IPTU desistir de efetuar a separação de resíduos sólidos objeto deste Decreto, deverá apresentar pedido de cancelamento de participação no programa de coleta seletiva junto à SEFIN, tendo o cancelamento imediato do benefício. 145 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Art. 10 - Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário. PAÇO DA PREFEITURA MUNICIPAL EM FORTALEZA, aos ___ de __________ de _________ . Luizianne de Oliveira Lins PREFEITA DE FORTALEZA 146 PATRIMÔNIO NATURAL DA HUMANIDADE NO BRASIL Elizabeth Alice Barbosa Silva de Araújo1 RESUMO: A preocupação com a preservação do meio-ambiente é tema de interesse para todas as nações organizadas. Este trabalho pretende analisar os mecanismos internacionais de proteção ao meio-ambiente enquanto métodos de fomento ao desenvolvimento sustentável, notadamente a inscrição de bens naturais como patrimônio da humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Cultura, Ciência e Educação – UNESCO. Será analisado o impacto deste atributo para o país de origem. Existe um confronto entre a importância e universalidade de determinados sítios por seu significado para o meio-ambiente global e a questão da territorialidade de cada Estado, fenômeno este que adere à pós-modernidade. A soberania, e com esta os contornos dos países, vem se redesenhando ao longo da história da humanidade e enfrentam hoje uma adaptação mais profunda com a era da globalização, primeiramente com a globalização econômica, hoje também cultural e social. Como estudo de caso específico será analisada a questão da Floresta Amazônica Brasileira, patrimônio natural da humanidade de relevância inegável e centro do debate internacional sobre a liberdade de desenvolvimento e exploração econômica da área florestal e de sua biodiversidade pelo Brasil frente ao impacto ambiental produzido para todo o planeta. PALAVRAS-CHAVE: PATRIMÔNIO NATURAL DA HUMANIDADE, AMBIENTE, SOBERANIA NACIONAL, FLORESTA AMAZÔNICA. MEIO- ABSTRACT: The concern about preserving the environment is a topic of interest to all organized nations. This paper will study the mechanisms of international protection to the environment as methods of promoting sustainable development, notably the inclusion of natural assets as a world heritage by the United Nations on Culture, Science and Education UNESCO. It will analyze the impact of this attribute to the country of origin. There is a confrontation between the importance and universality of certain places by their significance for the global environment and the question of territoriality of each state, a phenomenon that adheres to post-modernity. The sovereignty, and with this the outlines of countries, has been redesigned along the history and today is facing its most profound adaptation to the era of globalization, first an economic globalization, nowadays also cultural and social. As a specific case, study will analyse the issue of the Brazilian Amazon Forest, world heritage of undeniable relevance and center of international debate about freedom of development and economic exploration of the forest and its biodiversity by Brazil against the environmental impact produced for all the planet. KEY-WORDS: NATURAL HERITAGE OF HUMANITY, ENVIRONMENT, NATIONAL SOVEREIGNTY, AMAZON FOREST. 1 Elizabeth Alice Barbosa Silva de Araujo é aluna do mestrado em Direito da Universidade Federal do Ceará e Auditora Fiscal do Trabalho. A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições INTRODUÇÃO A preservação de determinados espaços visando um meio ambiente equilibrado é de fundamental importância para a sobrevivência da humanidade tal como a conhecemos. A relevância do tema transcende fronteiras nacionais, ideológicas ou religiosas: é uma questão de sobrevivência. Resta óbvio que a questão ambiental não se restringe ao problema de certas regiões de forma pontual, o que se observa, entretanto, é que existem espaços ainda pouco modificados pelo ser humano e que, estrategicamente, se tornam um manancial de esperança e saúde para todos os povos. Ademais, tais espaços também assumem uma importância cultural específica que se alia à questão ambiental. A comunidade internacional passa então a se mobilizar através de entidades que congregam diversos Estados como a ONU – Organização das Nações Unidas, ou outras de caráter não-governamental. Estas instituições teriam como objetivo assegurar a preservação destes espaços inestimáveis para todos os povos. Apesar de extremamente justos os argumentos para uma convergência de esforços visando garantir o que denominamos “patrimônio natural da humanidade”, também é conveniente que se observe a plêiade de interesses envolvidos em todo o processo. Interesses econômicos, ecológicos e até de expansão territorial permeiam a questão do patrimônio mundial. Justifica-se a escolha do tema pela urgência em se estudar estes fenômenos oriundos da globalização cultural, social e econômica da contemporaneidade e do próprio interesse comum a todos os povos na viabilidade da vida na terra. Questiona-se se este não é o curso natural da história: voltar à pangéia. Não mais aquele imenso bloco de terra emersa, mas uma pangéia cultural e social, que tem como fundamento maior a questão ambiental, o sentimento de que tudo está conectado, fazendo com que o conceito de soberania nacional tal como o compreendemos hoje perca sua razão de existir a partir da frouxa delimitação territorial. Considerando-se esta globalização como realidade inexorável e incontrolável, resta realizar as adaptações necessárias para que não ocorra a exploração de grupos humanos originários de regiões menos favorecidas, justamente estes detentores da maior parte dos sítios naturais importantes, através da socialização de suas riquezas e seu território com desprezo às suas necessidades de desenvolvimento econômico. O objetivo deste trabalho é estudar o impacto das novas relações que se formam a partir do interesse mundial na preservação dos bens naturais considerados patrimônio natural 148 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições da humanidade dentro do conceito de soberania nacional. Especial atenção será voltada a questão dos bens naturais em países menos desenvolvidos. A pesquisa será do tipo bibliográfico e documental. Apresentar-se-á os bens considerados patrimônio natural da humanidade no Brasil. De forma especial, se observará a profunda transformação da soberania no século XXI, onde a formação de grandes blocos econômicos transnacionais evidencia a queda do mito da total independência política entre os Estados, e demonstrar os pontos polêmicos no tocante à ajuda internacional para a manutenção e preservação das riquezas naturais nos países periféricos. Por fim, apresentarse-á como estudo específico de caso a questão da Floresta Amazônica brasileira, sendo apresentadas as propostas de adaptação da legislação brasileira parra a proteção de seu território e soberania frente à voracidade de organismos internacionais e de outros Estados sobre seu potencial econômico. 1 O CONCEITO DE PATRIMÔNIO NATURAL DA HUMANIDADE A importância para as gerações presentes e futuras e características especiais de biodiversidade, originalidade e estética elevam determinados bens a uma categoria diferenciada. Estes bens, denominados de patrimônio natural da humanidade, são merecedores de proteção especial, não apenas pelo ordenamento jurídico pátrio, mas também pela comunidade internacional. Isto porque sua destruição ou deterioração enseja perdas culturais, sociais e ecológicas que comprometem a todos, independentemente de nacionalidade, religião ou ideologia. Esta repercussão mundial reverbera na apreciação jurídica destes bens, principalmente no que tange às relações internacionais, e na interferência de instituições e mesmo de outros Estados na independência de gerenciamento dos Estados soberanos sobre o mesmo. Em busca de um conceito de patrimônio da humanidade chega-se necessariamente aos organismos internacionais responsáveis pela catalogação destes bens. A Organização das Nações Unidas – ONU possui como uma de suas agência especializadas a UNESCO - United Nations Educational, Scientific and Cultural Organizacion ou Organização das Nações Unidas para a Cultura, Ciência e educação. Esta detém personalidade jurídica própria e o objetivo de contribuir para a paz mundial através da cultura, ciência e educação. Este órgão, com sede em Paris, foi fundado em 16 de novembro de 1945, e hoje promove identificação e salvaguarda do patrimônio mundial. Até março de 2010 a UNESCO contava com cento e noventa e três Estados-membros tendo o último, Ilhas Faroé, ingressado em seus quadros em outubro de 149 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições 2009. Este número comprova sua representatividade no contexto mundial. O conceito de patrimônio da humanidade incorpora duas grandes classes de bens: os culturais e os naturais. Os bens naturais independem do esforço humano para sua existência, sendo inclusive a atuação do homem, por vezes nefasta para sua manutenção e desenvolvimento. Ocorre, entretanto, que sua manutenção e preservação, devido exatamente a interferências anteriores ou atuais realizadas pelos seres humanos, exigem que hoje sejam adotadas medidas concretas que visem reverter ou, pelo menos, estagnar o avanço da deterioração destes espaços. O patrimônio natural compreende então o meio ambiente e todas as espécies animais e vegetais daquele sítio. Para Marcelo Abelha: ...Os componentes ambientais não existem apenas para servir ao homem. Pelo contrário, o homem faz parte desta cadeia, mas, pelo seu papel central, tem o dever de proteger a salubridade desses elementos que se integram e se interagem, justamente para assegurar a manutenção do equilíbrio do ecossistema, até porque se assim não o fizer será diretamente afetado por isso.2 Em busca de uma definição jurídica da expressão patrimônio observa-se sua evolução desde o direito romano, onde o pater reunia seus bens em uma universalidade, daí a expressão patrimônio para aquilo que estava sob o domínio do pater, nisto incluído seus bens materiais e sua família. A etimologia da palavra une o grego e o latim, pater significando chefe de família ou antepassados, em uma acepção mais ampla, e nomos, palavra originária do grego, se refere aos usos e costumes relacionados à origem de uma família ou cidade, relaciona-se então ao grupo social. O patrimônio, então, pode ser entendido como um legado deixado de uma geração para outra3. Este conceito vem evoluindo e perpassando por experiências agregadas, onde hodiernamente se dá maior destaque à função social da propriedade, o que desvincula o bem de uma ligação exclusiva com determinada pessoa. Fala-se então em patrimônio da humanidade, como aquele que não está mais sob o âmbito de atuação de alguém que sobre este detenha poder, mas de todos os seres humanos, segundo Luciano Lima “interessa para a definição jurídica de patrimônio visualizar-se a noção de que este instituto jurídico, não possui uma definição estática, prestando-se, desta forma, a ser moldado de acordo com cada contexto”4. Já se perdeu, portanto, o liame 2 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Instituições de Direito Ambiental. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 59. CARNEIRO. Neri P. Memória e Patrimônio: etimologia. Disponível em <http://www.webartigos.com/articles/21288/1/MEMORIA-E-PATRIMONIO-ETIMOLOGIA/pagina1.html> Acesso em 25 mai.2010. 4 RODRIGUES, Francisco Luciano Lima. Patrimônio Cultural: a propriedade dos bens culturais no Estado 3 150 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições individualista do instituto, devendo ser encarado dentro de novas premissas, diversas daquelas referentes ao direito de propriedade clássico. A definição de patrimônio universal da UNESCO está consolidada no que é mais um importante elemento para a valorização dos direitos humanos: a Convenção sobre a proteção do Patrimônio Mundial Cultural e Natural, aprovada em 1972. Nesta são definidos os conceitos de patrimônio cultural e natural da humanidade, que juntos, constituem o patrimônio universal. Em seu artigo segundo define o patrimônio natural. ARTIGO 2 Para os fins da presente Convenção, são considerados “patrimônio natural”: - os monumentos naturais constituídos por formações físicas e biológicas ou por conjuntos de formações de valor universal excepcional do ponto de vista estético ou científico; - as formações geológicas e fisiográficas, e as zonas estritamente delimitadas que constituam habitat de espécies animais e vegetais ameaçadas de valor universal excepcional do ponto de vista estético ou científico, - os sítios naturais ou as áreas naturais estritamente delimitadas detentoras de valor universal excepcional do ponto de vista da ciência, da conservação ou da beleza natural”5 O conceito, como se vê, é abrangente, desta forma há que se definir padrões para que um determinado patrimônio tenha valor “universal”. Para a UNESCO o que faz o conceito de patrimônio mundial excepcional é a sua aplicação universal. Os locais considerados patrimônio universal pertencem a todas as pessoas do mundo, independentemente do território onde estão localizadas. Uma vez identificados e formalmente inscritos perante a própria UNESCO irão gerar impactos jurídicos e econômicos. 1.1 Critérios de Escolha Para ser considerado patrimônio da humanidade, primeiro é preciso que o Estado Membro em cujo território esteja aquele sítio o candidate para tal condição. Após a apresentação este será submetido ao Comitê do Patrimônio Mundial (World Heritage Committee), órgão que está encarregado da efetivação da Convenção. Para a inclusão de um sítio na lista do Patrimônio natural este deve obedecer pelo menos a um destes critérios: 1) conter fenômenos naturais excepcionais ou áreas de beleza Democrático de Direito. Fortaleza: Universidade de Fortaleza, 2008, p.51. 5 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO CIÊNCIA E CULTURA – UNESCO. Convenção para a proteção do Patrimônio mundial, cultural e natural de 23/11/1971. Site UNESCO World Heritage Centre. Disponível em :< http://whc.unesco.org/archive/convention-pt.pdf>. Acesso em 23 mar.2010. 151 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições natural e estética de excepcional importância; 2) ser um exemplo excepcional representativo de diferentes estágios da história da Terra, incluindo o registro da vida e dos processos geológicos no desenvolvimento das formas terrestres ou de elementos geomórficos ou fisiográficos importantes; 3) ser um exemplo excepcional que represente processos ecológicos e biológicos significativos da evolução e do desenvolvimento de ecossistemas terrestres, costeiros, marítimos ou aquáticos e comunidades de plantas ou animais; 4) conter os mais importantes e significativos habitats naturais para a conservação in situ da diversidade biológica, incluindo aqueles que contenham espécies ameaçadas que possuem um valor universal excepcional do ponto de vista da ciência ou da conservação 6. A geóloga Simone Scifoni ressalta a necessidade da escolha criteriosa e técnica para o reconhecimento de um bem nesta situação, e evidencia que a inclusão na lista tem impacto importante no desenvolvimento turístico da região, o Estado membro proponente, então, há que demonstrar interesse e aptidão para a valorização e conservação deste patrimônio: O reconhecimento de um bem e sua conseqüente inclusão na Lista do Patrimônio Mundial é um procedimento complexo e rigoroso. Além de comprovar o valor universal e as condições de integridade, o proponente deve apresentar um plano de gestão para a área e os sítios devem contar, previamente, com uma proteção jurídica adequada em seu país de origem. Tal pedido passa por várias instâncias até a deliberação final: o Centro do Patrimônio Mundial verifica se a proposição está completa, o Icomos (Conselho Internacional de Monumento e Sítios) e a UICN (União Internacional para a Conservação da Natureza e de seus Recursos) avaliam tecnicamente o valor universal do bem, o escritório do patrimônio mundial, estuda as opiniões dos pareceristas e, finalmente, o Comitê do Patrimônio Mundial delibera pela inclusão ou não na Lista.7 A aprovação na lista traz vantagens para o Estado proponente, tanto do ponto de vista turístico e de visibilidade mundial quanto o acesso a fundos especiais. Sendo o país participante da UNESCO e possuindo sítios incluídos na lista de patrimônio da humanidade poderá requerer, para manutenção e proteção destes bens, a assistência internacional através do Fundo do Patrimônio Mundial (World Hritage Fund) que fornece cerca de quatro milhões de dólares anualmente para apoiar tais ações. Este fundo é composto por contribuições dos Estados-partes e de doações privadas. O Comitê do Patrimônio Mundial aloca fundos em função da urgência dos pedidos, sendo dada prioridade aos locais mais ameaçados. 6 Disponível em < http://www.universia.com.br/especiais/patrimonios_historicos/convencao.htm >. Acesso em 22 mai.2010. 7 SCIFONI, Simone. A Unesco e os patrimônios da humanidade: valoração no contexto das relações internacionais. Disponível em < http://www.anppas.org.br/encontro_anual/encontro2/GT/GT13/simone_scifoni.pdf >. Acesso em 22 mai.2020. 152 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições A Lista do Patrimônio Mundial comporta atualmente 162 (cento e sessenta e dois) sítios considerados patrimônios natural e 24 (vinte e quatro) mistos, naturais e culturais. 8 1.2 Patrimônio Natural da Humanidade no Brasil Os bens considerados patrimônio da humanidade estão protegidos pela Convenção sobre a Proteção do Patrimônio Mundial Cultural e Natural, aprovada pela Conferência Geral da UNESCO, em sua décima sétima reunião em Paris, em 16 de novembro de 1972. O Brasil aderiu à Convenção através do decreto 80.978 de 12 de dezembro de 1977 e atualmente possui 7 (sete) bens inscritos na Lista do Patrimônio Mundial como patrimônio natural, são estes: Parque Nacional de Iguaçu (1986); Parque Nacional da Serra da Capivara (1991); Mata Atlântica: Reservas do Sudeste e da Costa do Descobrimento (1999); Complexo de conservação da Amazônia Central (1991); Área de conservação do Pantanal (2000); Áreas protegidas do Cerrado: Chapada dos Veadeiros e Parque Nacional das Emas (2001) e Ilhas Atlânticas Brasileiras: Reservas de Fernando de Noronha e Atol das Rocas (2001). Como estudo de caso específico, iremos nos ater neste trabalho ao complexo de preservação da Amazônia Central. Este foi aprovado pela UNESCO em 02 de julho de 2003 e amplia a área do Parque Nacional do Jáu que havia sido inscrito no patrimônio no ano 2000. A área do complexo compreende área próxima a Manaus e aos Rios Negro e Solimões, englobando o Parque Nacional do Jáu, a estação ecológica de Anavilhanas, a reserva de desenvolvimento sustentável de Amanão e parte da de Mamirauá. A área total chega a seis milhões de hectares.9 2 UNIVERSALIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO NACIONAL A emergência dos direitos humanos de terceira geração, dentre estes o direito a um meio-ambiente equilibrado, cujos titulares não são individualizados, mas um grupo de pessoas ou até a humanidade inteira, exigem uma abordagem diferente e das próprias limitações territoriais de um país. A realidade mudou e o mundo chamado pós-moderno tem uma tendência natural a não respeitar fronteiras nacionais e nem conceitos absolutos. A grande evolução dos meios de comunicação de massa, a rede mundial de computadores (internet), o fluxo rápido de informações, a relativa facilidade de viagens internacionais, toda esta parafernália tecnológica e a própria consciência de que os fenômenos que interferem na 8 9 Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ue000114.pdf. Acesso em 23 abr 2010 Disponível em: http://www.socioambiental.org/nsa/detalhe?id=1108. Acesso em 23 de setembro de 2010. 153 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições ecologia reverberam por todo o planeta ocasionou a revisitação de conceitos num movimento que se denomina pós-modernismo. Este modelo sistematizado pelo filósofo Jean-François Lyotard se caracteriza pela troca das grandes verdades absolutas apregoadas primeiramente pela Igreja e depois pela razão por pequenas verdades mutantes que geram um novo modo de pensar. 10 Embora do ponto de vista formal a soberania esteja como base de todas as nações politicamente organizadas é inegável a interferência de outros Estados na política econômica e na dinâmica social destas nações. Isto se torna ainda mais evidente nos chamados países em desenvolvimento ou periféricos11 Demonstra-se aqui a importância da abordagem sobre a questão da soberania nacional em um estudo sobre o patrimônio da humanidade, principalmente no que tange ao patrimônio natural. As reservas naturais, principalmente as dotadas de biodiversidade impar são alvo de interesses que muitas vezes ultrapassam a questão da preservação para gerações futuras, se imiscuem fatores econômicos, de reserva de mercado e mesmo de preponderância política no cenário mundial. A própria questão da territorialidade pode ser afetada. Em estudo realizado sobre a proteção ambiental da Amazônia e a soberania nacional Juliana de Oliveira Jota Dantas sinaliza para a existência de duas correntes antagônicas. A primeira alega a necessidade da nova conformação do princípio da soberania tendo em vista a importância do bem jurídico tutelado, no caso específico o meio-ambiente natural, e a urgência em medidas concretas para impedir os danos ambientais. A segunda corrente advoga que estas medidas por vezes extrapolam a cooperação internacional, chegando a interferências políticas por razões diversas da proteção ambiental, como interesses econômicos que visam desqualificar o princípio da soberania nacional. 12 Paulo Bonavides entende ser a soberania das nações um óbice à soberania dos mercados, razão pela qual correntes globalizadoras e neo-liberais objetivam retirá-la das teorias de poder. A base justificadora dessa pretensão aniquiladora daquele conceito consiste em apontar uma realidade distinta, imposta por novos modelos associativos de mútua interdependência estatal, os quais, para ganharem eficácia e prevalência na estrutura globalizadora, buscam a todo transe remover e apagar e amortecer o conceito de soberania. 10 LYOTARD, Jean-François. The Postmodern Condition. Manchester: Manchester University Press, 1984. Terminologia utilizadazpelo Presidente norte-americano Ronald Reagan na década de 1980, que se referia ao novo arranjo político mundial, os países seriam classificados como centrais, periféricos e semi-periféricos ou em desenvolvimento ou emergentes. 12 DANTAS, Juliana Oliveira Jota. A Soberania Nacional e a Proteção Ambiental Internacional. São Paulo: Verbatim, 2009, p.12. 11 154 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições E tais diligências destrutivas da autodeterminação das Nações se fazem com muito empenho, porque a soberania nacional é óbice á soberania dos mercados. De titularidade internacionalizada e invisível, esta nova e dissimulada soberania de mercados executa o projeto recolonizador das gigantescas associações de capital, que ignoram por completo os direitos dos povos e das Nações periféricas a romper as cadeias do subdesenvolvimento e espancar as trevas da noite em que a globalização os mergulhou.13 Immanuel Kant na obra A Paz Perpétua, publicada em 1795, traz a tona conceitos atualmente debatidos. Para Kant um simples tratado não seria capaz de garantir a paz entre as nações. Ele propõe a criação de uma “liga das Nações” que formasse um contrato entre os Estados, embora não deva existir um ordenamento jurídico entre eles. A obra de Kant forma a base para o que hoje vivenciamos com a formação dos blocos de integração regional, a exemplo da União Européia. O objetivo primeiro, entretanto, foi o fortalecimento econômico e não a busca pela paz proposta por Kant, embora esta decorra daquela. A tendência é o surgimento de outros blocos de integração regional nos moldes da União Européia, sendo que no Brasil vivencia-se a experiência do MERCOSUL – Mercado Comum do Sul. Além destes blocos de integração se tem as organizações internacionais capitaneadas pela ONU cujo objetivo é a manutenção da paz, a organização das relações de produção e comércio e a defesa dos direitos humanos. Para Kant a paz perpétua repousa no campo do Direito, e para que esta ocorra devem surgir processos de integração entre as nações e organizações internacionais que promovam a paz entre os Estados. A sociedade deveria avançar para um Estado de civilização que possibilitasse a interação entre os interesses dos povos. Os entes soberanos fariam uma concessão de parcelas de sua autonomia dentro de um sistema de colaboração, inexistiria subordinação entre os Estados, sendo utilizada somente a cooperação. Neste livro Kant vê um direito cosmopolita em que o ser humano é cidadão do mundo 14 J.J.Gomes Canotilho comentando sobre o exercício em comum de alguns poderes soberanos na construção da União Européia, afirma que a aceitação de Portugal a integra-se numa comunidade supranacional resulta em duas conseqüências jurídico-constitucionais relevantes, que serão a restrição sofrida pela soberania do poder político na âmbito de validade da Constituição Portuguesa resultante da “partilha de poder” e a abertura de sua ordem jurídica ao direito comunitário da integração européia que implica em uma aplicação direta desta ordem em seu país.15 13 BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 7. Ed. Rev. Ampl. São Paulo: Malheiros, 2008,p.33. KANT, Immanuel - A Paz Perpétua. Tradução: Marco A. Zingano. Porto Alegre: L&PM, 1989. 15 CANOTILHO, J.J.Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição.7.ed. Coimbra: Almedina, 2006,p.367. 14 155 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Gilberto Bercovici abre debate sobre o constante estado de crise do Estado com uma pretensa superação da soberania, causadas por questões muito mais econômicas que políticas: O processo de mundialização econômica está causando a redução dos espaços políticos, substituindo a razão política pela técnica. Há um processo de tentativa de substituição dos governos que exprimem a soberania popular pelas estruturas de governance, cujos protagonistas são organismos nacionais e internacionais “neutros”(bancos, agencias governamentais “independentes”, organizações não-governamentais, empresas transnacionais, etc) e representantes de interesses econômicos e financeiros. A estrutura de governance, portanto, é formada por atores técnicos-burocráticos sem responsabilidade política e fora do controle democrático, cujo objetivo é excluir as decisões econômicas do debate políticos.16 Embora seja forçoso admitir que a união das nações é fruto de interesses econômicos, o discurso dos organismos internacionais tem como pauta a proteção dos direitos humanos como bem jurídico considerado mais importante pela comunidade mundial. As limitações a soberania tem se desenvolvido em nome da subordinação à ordem jurídica internacional, com vistas a evitar danos para a dignidade da pessoa humana. Na realidade, estes fenômenos globalizadores decorrem mais de elementos fáticos do que jurídicos. Não são criação dos meios acadêmicos, embora por estes sejam analisados, compilados e fundamentados, mas fruto de relações sociais que não podem mais ficar adstritas a fronteiras nacionais. A ampliação cultural do mundo pós-moderno, a busca por novos mercados e a consciência das próprias nações de que nem todos os problemas podem ser internamente resolvidos, dentre os quais a questão do meio-ambiente, convergem para soluções alternativas, como assevera o internacionalista Celso D. de Albuquerque Mello: As organizações internacionais que se desenvolveram no século XX, visam exatamente atender àquelas necessidades. A sociedade internacional dos nossos dias é completamente diversa da do século anterior em virtude de um fator principal: os Estados compreendem que existem certos problemas que não podem ser resolvidos por eles sem a colaboração dos demais membros da sociedade internacional. As organizações internacionais são as resultantes deste fator e é dentro delas que mais se sente a atuação das ideologias ou blocos sócio-culturais nas soluções dos mais diferentes problemas. É a nossa época caracterizada como a do associativismo internacional.17 No Ordenamento jurídico brasileiro a Soberania é um dos fundamentos da República 16 BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição: Para uma Crítica do Constitucionalismo. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p.334. 17 MELLO, Celso D.de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p.53. 156 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Federativa do Brasil (art.1º CF/1988). O conceito desta soberania, no entanto, vem se construindo e reinventando ao longo da história política mundial, pois reflete o ponto de vista de uma determinada época. Pode-se dizer que hoje atravessa uma fase delicada. A formação dos grandes blocos econômicos e o ambiente pós-moderno acarretam natural interferência da comunidade internacional nos costumes, na economia, na vida social e cultural de todos os países. Haveria então a necessidade de uma flexibilização da soberania, flexibilização esta que trará importantes conseqüenciais, notadamente para os países periféricos. 3 FLEXIBILIZAÇÃO DA SOBERANIA E OS PERIGOS DA UNIVERSALIZAÇÃO PARA PAÍSES DO 3º MUNDO Em palestra proferida pelo Ministro da Educação Cristovão Buarque nos Estados Unidos no ano de 2001, este foi indagado por jornalistas sobre a internacionalização da Amazônia, o interlocutor solicitou que o Ministro respondesse como humanista e não como brasileiro. Em discurso famoso e veiculado por jornais de todo o mundo Cristovão Buarque declarou que seria possível visualizar a internacionalização da Amazônia pelo risco de sua degradação ambiental, assim como das reservas de petróleo de mundo inteiro, por sua importância para o bem estar e desenvolvimento da humanidade. Assim também deveriam ser internacionalizadas as reservas financeiras mundiais, os principais museus, como o do Louvre, as grandes e belas cidades como Paris, Nova Iorque e outras. Por fim, de maneira ainda mais contundente, fala da necessidade de internacionalização das crianças de todo o mundo, que não tem acesso a escola, alimentação e moradia dignas 18. Em artigo veiculado em 1997 o jornalista Carlos Chagas chama a atenção para a questão da internacionalização da Amazônia. Segundo o autor a cobiça internacional sobre a região amazônica é antiga. Relata que o Capitão da Marinha dos Estados Unidos Mathew Ferry, em memorando de 1817 intitulado “Desmobilization of the Colony of Brazil" redesenhou o mapa da América do Sul de forma a criar um Estado Independente na região amazônica. Relata ainda a intenção de Abraam Lincoln que em 1862 propôs a criação de um Estado livre dos negros americanos localizado na Amazônia, sendo tal proposta rechaçada 18 Cristovam Buarque é engenheiro mecânico, formado pela Universidade Federal de Pernambuco, em 1966, e doutor em Economia pela Sorbonne, Paris, em 1973. Entre 1973 e 1979, trabalhou no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), em Washington, e desde 1979 é professor da Universidade de Brasília, da qual foi reitor de 1985 a 1989. Entre 1995 e 1998 governou o Distrito Federal e em 2002 elegeu-se senador pelo Distrito Federal. Assumiu o Ministério da Educação (MEC) em janeiro de 2003 e permaneceu no cargo até janeiro de 2004. É membro do Instituto de Educação da Unesco. Íntegra da palestra disponível em: http://www.lerpensamentos.com/2006/04/discurso-em-2001-de-cristovam-buarque.html. Acesso em 14 mai.2010. 157 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições pelos próprios negros da América do Norte.19 Chagas ainda relata frases de diversos dirigentes internacionais sobre a questão amazônica das quais destacamos: “Os países em desenvolvimento com imensas dívidas externas devem pagá-las em terras, em riquezas: Vendam suas florestas tropicais” (George W Bush - 2000); “O Brasil precisa aceitar uma soberania relativa sobre a Amazônia” (François Mitterrand -1989); “O Brasil deve delegar parte de seus direitos sobre a Amazônia aos organismos internacionais competentes” (Mikhail Gorbachev-1992). Ocorreu pronunciamento sobre o tema por parte do Presidente da República Brasileiro na abertura do 2º Encontro dos Povos das Florestas em 2007. Segundo reportagem de Tânia Monteiro publicada no jornal “O Estado de São Paulo”, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva criticou os países desenvolvidos por destruírem suas próprias florestas e agora pretenderem ditar regras de como preservar a Amazônia. "A Amazônia tem dono. Tem gente que pensa que lá não mora ninguém. Lá moram 23 milhões. Aquilo não é terra de ninguém. Nós queremos assumir a responsabilidade de fazer o que tem que ser feito: extrair riquezas, cuidar da sustentabilidade", declarou o presidente ainda que "Tenho me recusado a aceitar lições de qualquer governante de como o Brasil tem de preservar a sua floresta". Os dados trazidos pelo presidente, segundo a reportagem, mencionam que o Brasil hoje possui 29,5% das florestas do mundo, justamente porque os países desenvolvidos dizimaram suas matas. 20 Com base nestas declarações passamos a um estudo de caso específico de “patrimônio da humanidade” e a delicada controvérsia relativa à soberania nacional. 4 CASO CONCRETO BRASILEIRO: A FLORESTA AMAZÔNICA A importância ecológica da floresta amazônica para toda a humanidade é notória. Sua flora abrange mais de 30 mil espécies e a fauna, ainda sequer foi detalhadamente conhecida para que sejam fornecidos dados concretos21. Além disto, a bacia hidrográfica que a permeia garante a sobrevivência das espécies e influencia no clima mundial. Ocorre que reconhecer a importância de um determinado bem para a humanidade, difere de deixar de considerá-lo também um patrimônio nacional importante para o desenvolvimento social e econômico do Brasil. Ao realizar-se retrospectiva histórica da posse brasileira sobre o território da 19 CHAGAS, Carlos. Querem Internacionalizar a Amazônia. Artigo publicado na Revista Manchete em 05 de julho de 1997. Disponível em:< http://www.brasil.iwarp.com/chagas.htm>. Acesso em: 14 mai. 2010. 20 Disponível em <http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,,54496,0.htm>. Acesso em: 20 set.2010. 21 Dados disponíveis em:<http://www.aultimaarcadenoe.com/flamazonica.htm>. Acesso em 25 mai 2010. 158 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Amazônia o que se apresenta é o esforço dos portugueses, desde o final do século XVIII, para atrelar este território ao Brasil. No reinado de Dom José I, iniciado em 1750, Sebastião José de Carvalho e Melo, conhecido por Marquês de Pombal, foi responsável pela segurança daquela área. Foi nomeado governador da Capitania do Grão Pará Mendonça Furtado que desbravou aquelas terras e escreveu inúmeras cartas, sempre zeloso de manter a unidade da região.22 É certo que os primeiros donos da Amazônia, dela foram usurpados pelos portugueses. Ocorre que hoje, estes povos indígenas, embora conservem os traços culturais por vezes apartados da realidade nacional, são cidadãos brasileiros. A política nacional de assentamento dos povos indígenas, reconhecendo o pioneirismo destas comunidades e sua posse milenar do território amazônico vem criando reservas para moradia e desenvolvimento social e cultural destes povos. Aliás, a cultura indígena foi o que permitiu a conservação e existência da floresta amazônica até nossos dias. Prova disto é que a Europa e Estados Unidos da América, com cultura semelhante de acumulação de riquezas, dizimou quase completamente suas reservas florestais. Ao longo da história, desde aquela época, os olhos da comunidade mundial se voltaram para a Amazônia, muitas vezes com cobiça. Durante o regime militar, 1964 em diante, se adotou o slogan “integrar para não entregar”, numa referencia ao temor de se perder a Amazônia para outros países. Como a região era pouco povoada, os presidentes da ditadura militar adotaram uma série de medidas visando o povoamento da região. Uma destas grandes obras foi a rodovia transamazônica, que atravessaria todo o norte do país numa extensão de mais de cinco mil quilômetros. A grande rodovia nunca foi terminada, sendo que apenas cento e setenta e cinco dos cinco mil quilômetros chegaram a ser asfaltados. Outro grande projeto causado pela obsessão dos militares em perder a Amazônia foi a Zona Franca de Manaus, criada em 1967, que trouxe um grande número de fábricas, principalmente de eletrônicos, o que atraiu trabalhadores do país inteiro para a cidade de Manaus aumentando sua população de trezentos mil habitantes de 1967 para hum milhão e oitocentos mil em 2005. 23 Não se pretende aqui negar as dificuldades existentes para se gerenciar área de terra tão vasta e importante. Os próprios órgãos judiciais que possuem a competência legal para proteger o direito difuso a um meio-ambiente equilibrado na região amazônica, como o 22 PAIM, Gilberto. Amazônia Ameaçada: Da Amazônia de Pombal à soberania sobre ameaça. 2.ed. Brasília: Senado Federal, 2009, p.29. 23 TAMDJIAN, James Onnig e MENDES, Ivan Lazzari. Estudos de Geografia: o espaço geográfico do Brasil. São Paulo: FTD, 2008, p.122-123 159 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Ministério Público, encontram dificuldades em sua atuação. Dentre estes problemas se menciona a legislação profusa, prolixa e casuística, muitas vezes oriunda de instruções, resoluções, regulamentos e portarias. Como segundo problema existe a falta de apoio técnico, vez que a legislação ambiental é notadamente técnica e científica, e o Ministério público, como órgão jurídico, carece de profissionais nestas áreas em que por vezes é necessária a realização de exames laboratoriais, ou mesmo de um levantamento topográfico. Por fim se observa a desarticulação dos órgãos ambientais como o próprio IBAMA – Instituto Brasileiro de Recursos Naturais Renováveis e Meio Ambiente - que não informa ao Ministério Público as infrações administrativas que possuem repercussão na esfera penal para que possa ocorrer uma ação conjunta e eficaz para os dois órgãos.24 Hoje, o Brasil procura encontrar o ponto de equilíbrio em que se aproveitem os recursos econômicos da floresta garantindo a sua preservação. A ajuda internacional, embora importante, deve ser pautada pelo respeito às decisões desta nação dentro do conceito de desenvolvimento sustentável conforme exposto nos itens a seguir. 4.1 Propostas de adaptação legal para resguardar a soberania nacional A lei 5.709/71, nascida em plena ditadura militar no governo Médici, evidencia a preocupação dos governos militares com a questão da soberania nacional e da proteção da Amazônia. Como demonstrado acima, a comunidade internacional há muito se interessa pela região. O fenômeno da globalização acelerou ainda mais este processo. O aumento da venda de terras para estrangeiros na região e mesmo a grande circulação de não brasileiros em comunidades amazônicas leva a propostas de mudança na legislação ora vigente. Hoje existem dois projetos de lei para modificá-la, visando maior controle brasileiro sobre os investimentos de não nacionais na região. O controle sobre o mercado imobiliário rural tem perspectiva de se tornar ainda mais rígido. O primeiro é o Projeto de Lei do Senado de número 126/2009 que determina que estrangeiros não poderão ser proprietários de terras rurais que ultrapassem um décimo da área do município onde estão localizadas, a lei vigente limita a 25% desta área. Outro ponto relevante do projeto é o que pretende democratizar a autorização para vendas acima deste limite legal, que hoje fica a cargo do Presidente da República, e que passará a ser responsabilidade também do Congresso Nacional. Abaixo estão transcritos os pontos mais 24 VALENTE, Luiz Ismaelino. Atuação do Ministério Público em Defesa do Meio Ambiente na Amazônia, in Amazônia perante o Direito: Problemas Ambientais e Trabalhistas. Org: Robeto A.O. Santos e Wolf Paul. Belém: UFPa, 1995, p. 226. 160 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições relevantes para o debate do referido projeto. A lei 5.709/71 em seu artigo 12 assim dispunha: Art. 12 - A soma das áreas rurais pertencentes a pessoas estrangeiras, físicas ou jurídicas, não poderá ultrapassar a um quarto da superfície dos Municípios onde se situem, comprovada por certidão do Registro de Imóveis, com base no livro auxiliar de que trata o art. 10. § 1º - As pessoas da mesma nacionalidade não poderão ser proprietárias, em cada Município, de mais de 40% (quarenta por cento) do limite fixado neste artigo. § 2º - Ficam excluídas das restrições deste artigo as aquisições de áreas rurais: I - inferiores a 3 (três) módulos; II - que tiverem sido objeto de compra e venda, de promessa de compra e venda, de cessão ou de promessa de cessão, mediante escritura pública ou instrumento particular devidamente protocolado no Registro competente, e que tiverem sido cadastradas no INCRA em nome do promitente comprador, antes de 10 de março de 1969; III - quando o adquirente tiver filho brasileiro ou for casado com pessoa brasileira sob o regime de comunhão de bens. § 3º - O Presidente da República poderá, mediante decreto, autorizar a aquisição além dos limites fixados neste artigo, quando se tratar de imóvel rural vinculado a projetos julgados prioritários em face dos planos de desenvolvimento do País. Segundo o Projeto de Lei 126/2009, o limite para a Amazônia Lega passa a ser de um décimo da superfície para as pessoas de mesma nacionalidade, bem como fica clara a competência do Congresso Nacional para autorizar aquisições acima do limite fixado. Art. 12. ...................................................................................... § 1º As pessoas de mesma nacionalidade não poderão ser proprietárias de áreas rurais que, somadas, ultrapassem um décimo da superfície dos municípios onde estão situadas, devendo a comprovação ser feita na forma do caput deste artigo. § 2º Na Amazônia Legal, o limite de que trata o caput deste artigo reduz-se para um décimo da superfície dos municípios. § 3º Ficam excluídas da restrição deste artigo as aquisições de áreas rurais: I – inferiores a três módulos; II – que tiverem sido objeto de compra e venda, de promessa de compra e venda, de cessão ou de promessa de cessão, mediante escritura pública ou instrumento particular devidamente protocolado no cartório de registro competente, e que tiverem sido cadastradas no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) em nome do promitente comprador, antes de 10 de março de 1969; III – quando o adquirente tiver filho brasileiro ou for casado com pessoa brasileira sob o regime de comunhão de bens. § 4º Compete ao Congresso Nacional autorizar à pessoa física estrangeira a aquisição além dos limites de área fixados neste artigo, bem como à pessoa jurídica estrangeira a aquisição de área superior a cem módulos de exploração indefinida. (NR)” Outro projeto em tramitação é o de número 302/2009 com origem na Cãmara dos 161 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Deputados também restringe o acesso de estrangeiros às terras da Amazônia. Neste caso a propriedade de imóveis por estrangeiros iria se restringir a quinze módulos fiscais, estes módulos são definidos conforme legislação específica do INCRA- Instituto Nacional de Colonização e Reforma agrária. A exceção à regra irá depender de laudo emitido pelo INCRA e com a manifestação do Conselho de Defesa Nacional. Resta o questionamento a ser feito sobre a efetividade destas mudanças na legislação, como bem demonstrado anteriormente, a soberania de decisões de um Estado está em cheque na pós-modernidade. Estas mudanças talvez estanquem provisoriamente a quantidade de estrangeiros que circulam e exploram economicamente a região amazônica, mas dificilmente terão a capacidade de deter a influência destes na população local e mesmo suas atividades coordenadas através de diversas organizações não governamentais. Os envolvimentos de ordem econômica, social e cultural são maiores do que meros títulos de terra, até porque a propriedade do ponto de vista meramente formal não impede a real exploração dos recursos naturais. 4.2 A questão da Amazônia na legislação internacional Os países, como o Brasil, que possuem reservas naturais proeminentes debatem o seu direito ao desenvolvimento e ao aproveitamento de seus recursos. Ao passo que a comunidade internacional urge a necessidade de preservação para a garantia de toda a humanidade. Tais questões ficam então vinculadas ao direito internacional. Este repousa suas bases na garantia de coexistência entre os estados, na possibilidade de cooperação entre estes, no voluntarismo e na preservação da soberania nacional. Os dois grandes encontros mundiais que debateram as questões da ecologia e preservação do meio ambiente aconteceram em 1972 e 1990, respectivamente em Estocolmo e no Rio de Janeiro. Já na preparação da Convenção de Estocolmo os países periféricos temiam uma política preservacionista que interferisse no seu aproveitamento dos recursos naturais, trazendo altos encargos para se igualar aos desenvolvidos em matéria de concretizar normas de preservação. Por isto a sua resistência em uma política ambiental internacionalizada. Nestes países a qualidade ambiental depende de seu desenvolvimento econômico, pois proporcionando melhores condições de vida para a população as questões ambientais seriam tratadas dentro de um processo de desenvolvimento mais abrangente.25 25 DANTAS, Juliana de Oliveira Jota, op. cit., p.47. 162 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Como resultado dos apelos dos países periféricos a Declaração das Nações Unidas sobre o Meio ambiente, definiu um plano de ação que reconhece “as diferenças dos problemas ambientais entre as Nações, distinguindo-se as carências dos países desenvolvidos daquelas dos países em desenvolvimento”.26 Ficou estabelecido no princípio 21 da Declaração de Estocolmo que “Os Estados tem o direito soberano de explorar seus próprios recursos, de acordo com sua política ambiental, desde que essas atividades não prejudiquem o meioambiente de outros Estados ou de zonas fora da jurisdição nacional”. Esta declaração foi base para a redação do artigo 225 da Constituição da República de 1988, segundo o qual “todos tem o direito a um meio-ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.27 A conferencia de 1992, ocorrida no Rio de Janeiro trouxe enfoque ainda mais voltado para o meio-ambiente e o desenvolvimento econômico e social, buscando a erradicação da pobreza.28. Esta Conferencia das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento tratou da proteção da atmosfera, água doce, recursos marinhos, solo, conservação da biodiversidade, com também, erradicação da pobreza, qualidade de vida e proteção da saúde. O desafio era nortear o desenvolvimento econômico e social em respeito ao meio-ambiente. A comunidade mundial, então, procurou enfrentar a questão ambiental frente aos problemas sócio-econômicos.29 A declaração elaborada no Rio de Janeiro em 1992 manteve a linha da Declaração de Estocolmo quanto à questão da soberania frente ao desenvolvimento econômico e preservação ambiental: Princípio 2. Os Estados, em conformidade com a Carta das Nações Unidas e os princípios do Direito Internacional, tem o direito soberano de explorar seus recursos de acordo com suas próprias políticas ambientais e desenvolvimentistas, e a responsabilidade de assegurar que as atividades sob sua jurisdição ou controle não causem dano ao meio ambiente de outros estados ou de áreas além dos limites da jurisdição nacional. Princípio 3.O direito ao desenvolvimento deve ser exercido de tal forma que responda eqüitativamente às necessidades de desenvolvimento e ambientais das gerações presentes e futuras30 26 Ibdem, p.48. MILARÉ. Edis. Direito do Ambiente. 3.ed.rev.atual.amp. São Paulo:Revista dos Tribunais, 2004, p.915. 28 DANTAS, Juliana de Oliveira Jota, op. cit., p.49. 29 MILARÉ. Edis, op.cit.,p.932. 30 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO CIÊNCIA E CULTURA – UNESCO. Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Jun. 1992. Disponível em: < http://www.mma.gov.br/sitio/index.php?ido=conteudo.monta&idEstrutura=18&idConteudo=576> Acesso em 15 mai.2010. 27 163 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Tanto no encontro de 1972 em Estocolmo quando ainda de maneira mais pungente no Rio de Janeiro em 1992 se observou a preocupação quanto à questão do desenvolvimento econômico e do aproveitamento dos recursos naturais como forma de diminuir desigualdades sociais e regionais. No caso da floresta amazônica sabe-se que os valores de ganho econômico são incalculáveis, tanto na questão de pesquisas em medicamentos, cosméticos e outros produtos quanto no aproveitamento na agricultura e extrativismo. Como resultado dos intensos debates se adotou o conceito de desenvolvimento sustentável. Este conceito primeiramente presente no denominado Relatório Brundtland de 1987, publicado pela World Commission on Environment and Development diz que sustentável é o “desenvolvimento que satisfaz as necessidades do presente, sem comprometer a capacidade das gerações vindouras satisfazerem as suas próprias necessidades". 31 Na Rio-92 esta expressão foi oficializada como forma de reverter a degradação ambiental “mediante a consideração da variável ambiental nos processos de elaboração e implementação de políticas públicas e da adoção, em todos os setores, de medidas tendentes a garantir a compatibilização do processo de desenvolvimento com a preservação ambiental”. 32 Realmente, com os problemas enfrentados pelo Brasil, tornar a floresta Amazônica “intocável” seria uma grande utopia. Haveria ainda a desproporção entre países que se desenvolveram a custa de uma industrialização que destruiu suas riquezas naturais ambientais, mas que alçou seus cidadãos a uma qualidade de vida e de acesso a bens de consumo inalcançáveis para grande parte da população brasileira. Por outro lado, a preservação ambiental é também interesse da nação brasileira e resta positivada na Constituição da República. Concluindo o estudo de caso, se percebe no cenário político mundial a aposta no desenvolvimento sustentável e na cooperação internacional como formas de sopesar o desenvolvimento econômico com a preservação da floresta Amazônica, bem como de outros bens considerados patrimônio natural da humanidade. CONSIDERAÇÕES FINAIS Existem bens cuja importância transcende qualquer nacionalismo, e até mesmo outras questões de cunho ideológico. Embora se saiba que a inscrição oficial de um bem como 31 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS – ONU. Relatório da Comissão Bruntland:.Nosso Futuro Comum. Aprovado pela assembléia geral através da Resolução 42/1987. Disponível em http://www.mma.gov.br/sitio/index.php?ido=conteudo.monta&idEstrutura=18&idConteudo=501> Acesso em 15 mai.2010. 32 MILARÉ. Edis, op.cit.,p.932. 164 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições patrimônio da humanidade seja conseqüência de uma série de escolhas que perpassam dimensões técnicas e políticas, não se deixa de reconhecer que aqueles elencados possuem valor inestimável para todos os povos. Do ponto de vista da ciência jurídica, vem a relevo a questão da soberania, ou da flexibilização do conceito de soberania nacional, quando se permite a ingerência internacional sobre o patrimônio localizado no território de um país. É a outra face das facilidades de acesso a crédito internacional para o investimento em manutenção de um bem e o estímulo à indústria do turismo. Nasce o receio de que a ajuda de hoje se transforme em interferência de organismos internacionais e mesmo de outros Estados nas decisões sobre como se deve gerenciar riquezas naturais de um país. Considerar o perigo inexistente é o mesmo que fechar os olhos para toda a gama de interesses econômicos e políticos que norteiam, de fato, as relações internacionais. Maior prova disto é que os blocos transnacionais que ora se formam são fruto da necessidade de intensificação das relações comerciais e da disputa de novos mercados. Por outro lado, a força desta tendência de unificação, além de econômica, também é cultural e social. Decorre do pós-modernismo, da evolução da tecnologia da informação, e de tantos outros fenômenos que suprimem limites. O ser humano se torna cosmopolita, ele próprio não aceita enclausurar-se em seu país e em sua cultura. Daí porque as iniciativas de modificação na legislação brasileira visando estancar a presença de estrangeiros na Amazônia, pelo menos na condição de proprietários de vastas extensões de terra, talvez não cheguem ao objetivo almejado de proteção do patrimônio natural nacional frente à influência de outros países e culturas. Esta internacionalização aos poucos acarreta a quebra do conceito de soberania externa e é um movimento que dificilmente será estancado. De forma que, num futuro talvez não tão distante, deixe de existir esta estrutura baseada em estados soberanos. Retorna-se então à pangéia, desta vez social, econômica e cultural. Sendo o fenômeno da globalização é inexorável e natural, resta realizar adaptações durante o seu processo, para que não seja também opressor para os países menos desenvolvidos e seus cidadãos, retirando-lhes a oportunidade de desenvolvimento, e acentuando as desigualdades já existentes. Estas adaptações seriam muito mais afetas à relações de produção e consumo de forma sustentável do que mesmo a proposições legislativas, como as trazidas a cotejo neste artigo. 165 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições No estudo de caso escolhido, a floresta amazônica brasileira, se observa que a legislação internacional que normatiza o aproveitamento das reservas naturais tem base no conceito de desenvolvimento sustentável. Ou seja, a maneira com que hoje se desenha o cenário internacional ainda respeita as decisões tomadas pelo Estado membro detentor daquele bem. Os recursos naturais poderão ser aproveitados para fins econômicos desde que este desenvolvimento se dê de forma a permitir às gerações vindouras a preservação das riquezas naturais e culturais ainda existentes. Por fim, depreende-se que o a conformação mundial tende a modificação. Porém, durante este processo de adaptação, deve-se criar mecanismos que permitam aos povos e regiões menos favorecidas oportunidade de desenvolvimento sustentável compatível com a dignidade humana e com a preservação e promoção do meio-ambiente natural, garantindo a diminuição das desigualdades. REFERÊNCIAS BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição: Para uma Crítica do Constitucionalismo. São Paulo: Quartier Latin, 2008 BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 7. Ed. Rev. Ampl. São Paulo: Malheiros, 2008. BUARQUE, Cristovão. Entrevista concedida em 2001. Site Ler Pensamentos. Disponível em: http://www.lerpensamentos.com/2006/04/discurso-em-2001-de-cristovam-buarque.html. Acesso em 14 mai.2010. Acesso em 15 mai.2010. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7.ed. Coimbra: Almedina. CARNEIRO. Neri P. Memória e Patrimônio: etimologia. 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Eulália Emilia Pinho Camurça 1 RESUMO: O espaço virtual mudou a forma de se comunicar no mundo e conseqüentemente trouxe uma série de desafios jurídicos até porque o chamado “ciberespaço” é cheio de indeterminações. As experiências sobre as coisas misturam-se a imagens e a um emaranhado de fios e vivências em um instante. Será possível controlá-las, dominá-las, ordená-las? Alguns países tentam impor limites, mas será possível uma manipulação local numa conexão mundial? Além do controle de informações, há o paradoxo entre a liberdade de expressão, o direito à informação, e o direito autoral. Como resolver esta questão num ambiente em que a troca de dados é intermitente? É possível ter um espaço virtual sustentável ante a este paradoxo? São questões como estas que pautam este artigo. PALAVRAS-CHAVE: Propriedade intelectual. Direito à informação. Ciberespaço. Sutentabilidade. ABSTRACT: The virtual space has changed the way people communicate around the world and consequently brought a series of legal challenges specially because the so-called because "cyberspace" is full of indeterminacies. The experiences of things mix images, to a tangling of wires and experiences in an instant. Is it possible to control them, rank them? Some countries try to impose limits, but can you manipulate a local connection in the world? Beyond the control of information, there is the paradox between freedom of expression, the right to information and copyright. How to solve this issue in an environment where data exchange is intermittent? Can you have a sustainable virtual space in the face of this paradox? These are questions that have guided this article. KEY-WORDS: Intellectual Property. Right to information. Cyberspace. Sustentabily. 1 INTRODUÇÃO A sociedade da informação convive num mundo virtual em que um turbilhão de idéias, pessoas e paixões se encontram. O fluxo da comunicação pela internet consiste em mensagens e contextos compartilhados, reconstruções constantes. A partir dela é possível o acesso às mais distintas produções sejam elas em forma de texto ou imagem. Por isto há uma série de iniciativas que tem como objetivo dar limites para o uso de bens intelectuais por terceiros. A 1 Jornalista, advogada e mestranda em Direito pela Universidade Federal do Ceará. A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições questão é: qual o lugar da propriedade intelectual no mundo virtual? Isto porque com apenas um toque é possível ter um acesso quase irrestrito de conteúdos que podem ser baixados para o computador, sejam eles programas, livros, filmes, músicas. Sem a permissão do autor, o que se tornou hábito pode virar crime. Além do crime, há um outro problema a ser resolvido: como tornar o grande volume de informações sustentáveis? A quantidade de lixo virtual criado pela rede de computadores pode causar um sério problema ambiental neste mundo projetado? Quais leis locais podem ser devem ser aplicadas na esfera mundial? Os ambientes são sempre transitórios. Os sentidos construídos fazem com que a cada instante, uma nova interpretação modifique poucos instantes em que foi emitida. Não só as mensagens como também seus significados acabam por serem alteradas ao deslocarem-se de um autor a outro na rede, e de um momento a outro processo de comunicação. Para Lévy (1997), há uma constante mudança no ambiente de interpretação coletiva. Os itens de comunicação não são ligados linearmente, como em uma corda com nós, mas cada um deles, ou na maioria, estende suas conexões em estrela, de modo reticular. Navegar em um hipertexto significa portanto desenhar um percurso de uma rede que pode ser tão complicada como possível. Porque cada nó pode, por sua vez, conter uma rede inteira. (LÉVY, 1997, p.33). Nesta lógica comunicacional, a velocidade é quase incontrolável. O impacto de um clique sobre um botão pode levar menos de um segundo, mas pode causar diferentes reações em todo o mundo. O instantâneo faz com que a não-linearidade crie um novo sistema de escrita e uma nova modalidade de leitura, chamada navegação. Muita coisa mudou desde que foi criado o primeiro computador, o Eniac, nos anos 40, que pesava toneladas e ocupada um lugar interno de um prédio. Na década de setenta, jovens californianos criaram o computador pessoal. Teriam eles a idéia de onde se chegaria com aquelas máquinas? O problema não é a técnica em mas o uso que fazemos dela. Sejam consideradas como naturais ou como frutos da atividade humana, as mensagens, as idéias e os fatos, ao passarem de um ator para outro, transformam-se alternativamente em fins e meios, elementos objetivos da situação ou dispositivos a serem transformados ou substituídos. As coisas, todas as coisas, seguindo o espectro completo de suas significações e de seus efeitos, mediatizam desta forma as relações humanas. Eis porque, para Lévi, a atividade técnica é política, ou antes, cosmopolítica. Uma comunidade virtual pode se organizar por intermédio dos mais variados sistemas 169 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições de comunicação, repleta de paixões, projetos e conflitos. A virtualização subverte as narrativas clássicas, as unidades de tempo e de lugar não existem mais. Para Lévy (1997), a sincronização substitui a unidade de lugar e interconexão a unidade de tempo. Além destas mudanças existe a desterritorialização, passagens do interior ao exterior e vice-versa, num átimo: Os limites não são mais dados. Os lugares e os tempos se misturam, As fronteiras nítidas dão lugar a uma fractalização das repartições. São as próprias noções de privado e público que são questionadas... As coisas só têm limites claros no real. A virtualização, passagem à problemática, deslocamento do ser para a questão, é algo que necessariamente põe em causa a identidade clássica, o pensamento apoiado por definições, determinações, exclusões, inclusões e terceiros excluídos (LEVY, 1997, p. 25). Ainda existe a figura do hipertexto que hierarquiza e seleciona áreas de sentido, tece ligações entre essas zonas, conecta um texto a outros documentos e elementos. No contexto contemporâneo, que é alimentado pelas informações on line correndo por redes e mergulhando no ciberespaço, o texto dinâmico se reconstitui numa escala superior. Há ainda o outro elemento, a interface, um dispositivo que garante a comunicação entre dois sistemas informáticos distintos ou um sistema informático e uma rede de comunicação. Até mesmo o ato de leitura atualiza as significações de um texto, de uma informação, que já não se comporta como uma parte eliminável de criação. Desta forma os receptores da informação não apenas modificam as ligações mas acrescentam e modificam os nós, os textos, as imagens, e conectam um hiperdocumento e traçam relações hipertextuais. No ciberespaço, qualquer ponto é acessável a partir de qualquer outro. A partir de home pages e dos documentos on line, pode-se seguir, como afirma Lévy (1997), os fios de muitos objetos subjetivos. Para ele, no mundo digital, a distinção entre o original e a cópia perdeu qualquer pertinência. O ciberespaço mistura as noções de unidade, identidade e de localização. Assim, surge um fluxo vetorizado, metamórfico de informação. É como se a digitalização formasse um plano semântico em que todos possam produzir, retomar, modificar, dobrar diversamente, dobrar de novo... Assim, o consumo da informação não se torna destrutivo nem sua posse exclusiva. Neste contexto de criação quase intermitente, qual o lugar da propriedade intelectual? Na era do planeta unificado, dos conflitos mundializados, do tempo acelerado, das informações desdobradas, é preciso repensar os objetivos da propriedade intelectual. No ciberespaço há lugar para a exclusividade da criação? Os interesses não só dos 170 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições criadores, mas também dos investidores e usuários apontam para uma série de contradições. Fica o desafio para que a propriedade intelectual enquanto ciência jurídica, equilibre soluções para atender aos mais diversos atores. É possível manter o fundamento da propriedade baseada nos direitos naturais, nos direitos concorrências e comerciais apenas? Como balancear tantos interesses? O desafio que se coloca é harmonizar a eficiência econômica com a função social da propriedade intelectual, principalmente quando se tem em vista o direito à informação, que é tido como um direito humano. 2 MUNDOS VIRTUAIS COMPARTILHADOS Hoje se torna difícil dissociar as metáforas do sentido. Para Lévy (1997), nenhum tipo de conhecimento é independente do uso de tecnologias intelectuais. Então, quando se torna crime fazer um download, quando o criador intelectual tem seu direito ameaçado diante da liberdade de informação dos usuários da internet? Há de se ressaltar a atuação dos piratas, os quais, com pleno conhecimento da ilegalidade que cometem, se dedicam à reprodução e distribuição de produtos intelectuais. Porém no meio de toda essa compartimentação existe a chamada propriedade intelectual que protege as criações intelectuais. Dentro da abrangência do instituto na esfera internacional existe o TRIPs, “Trade Related Intellectual Property Rights” em vigor desde 1994 no Brasil. Nele, se incluem no gênero da propriedade intelectual não só obras literárias e artísticas, mas as intervenções em todos os domínios da atividade humana. A propriedade intelectual, portanto, aglutina tanto a proteção da propriedade industrial, quanto as propriedades literárias, artísticas, além de algumas outras proteções específicas. Para Barbosa (2009), a informação não pode ser considerada um bem público sob o prisma econômico pelo fato de ser consumida por várias pessoas ao mesmo tempo sem atenuação de suas características. Consolidando o objeto de proteção da propriedade intelectual como „bem intelectual‟, convém apontar que este bem pouco ou quase nada se diferencia do conceito de informação: A falta de consenso terminológico, a possibilidade de aprofundar aspectos adicionais às teorias ligadas ao direito de informação dificultam a dificuldade de tratar a propriedade intelectual como informação. Ademais, tratar propriedade intelectual como informação não é inovação, e, ainda que sob o enfoque mais limitado da transferência de tecnologia, seja, mais recentemente, englobando a propriedade dos bens pessoais. ( BARBOSA, 2009, p.33) O mercado de informações, como afirma Rachel Sztajn (1998), exige o reconhecimento da propriedade para a troca. Para ela, a relação entre propriedade privada e o mercado em um pólo e 171 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições a disponibilidade a riqueza no processo de produção da riqueza destinada ao mercado de outro demonstram que este só existe quando se reconhece a propriedade privada. Estas polaridades começaram de forma rudimentar ainda na antiguidade, quando a transmissão de informações privilegiadas não implicavam na existência de um sistema jurídico que as protegesse. Muitas eram limitadas a guerreiros ou sacerdotes e os mecanismos de proteção eram totalmente limitados. No período mercantilista, quando as descobertas científicas aceleraram a necessidade de proteção ao conhecimento, as informações passam do criador para o Estado, que deveria oferecer proteção e desenvolvimento de empreendimentos. O período industrial centralizou o conhecimento científico nas universidades européias. Neste período que os institutos do direito autoral e das marcas atingem maturidade. “O autor passa a ter mais interesse e possibilidade de maior controle na exploração de sua obra, assim como o empresário consegue comprovar a necessidade de proteção de seus sinais distintivos. O indivíduo consegue, por si, um controle maior sobre suas criações e investimentos”, ( BARBOSA, 2009, p.31). Já no mundo globalizado, onde não há mais territórios nas relações sociais, faz surgir a necessidade de os Estados promoverem o mercado de produtos e criações industriais de suas empresas. Torna-se preciso harmonizar a legislação da propriedade intelectual, seja através do estabelecimento de parâmetros mínimos de proteção, seja pelo intermédio de proteções diretas aos institutos de tutela à propriedade intelectual. No âmbito internacional, surgiram as manifestações que fundamentaram o desenvolvimento da complexa rede de tratados internacionais: a Convenção da União de Paris para a Proteção da Propriedade Industrial, depois a Convenção de Berna, para as criações literárias, que incentivou a criação da Convenção Universal dos Direitos Autorais. O então sistema de propriedade criado para sustentar a indústria começou a inovar diante das demandas tecnológicas. Passa-se a ter um novo paradigma voltado para a tecnologia e não mais para a produção. Assim, diante da internacionalização da propriedade intelectual, acontece o fenômeno da “desterritorialização”, a partir dos novos meios de comunicação, especificamente, a Internet, como afirma Octavio (1999). A partir da rede mundial, os indivíduos separados geograficamente podem ser unificar a partir de informações, independente da matizes que causam a união e o interesse entre eles. O período globalizado demanda um regime jurídico de proteção à propriedade intelectual que viabilize produtos de informação nos quais a materialização é basicamente presumida, e a matéria prima deixa de ser concreta, e a própria comercialização, em todas as suas etapas passa a ser virtual. (BARBOSA, 2009, p.38) 172 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições O elemento essencial da proteção é a patentiabilidade que protege as invenções, a novidade, a informação com características estéticas é protegida pelo direito autoral. Sob o ponto de vista social, para o autor, pode-se argumentar que a informação não protegida é um benefício já que pode não representar custo adicional a terceiros, porém sob o ponto de vista econômico pode representar um freio à inovação. São várias conseqüências de adotar a informação como fundamento da propriedade intelectual. Enquanto assistência jurídica dada aos produtos da capacidade inventiva, a propriedade intelectual consiste na assistência jurídica dada aos produtos criados pelos seres humanos. Ao mesmo tempo em que o autor tem direito a proteger sua obra requer que este receba remuneração pelas suas criações e impede que sejam feitas cópias ilegais de conteúdo produzido por ele. A legislação busca não só oferecer proteção à propriedade intelectual mas também dar acesso ao público às criações. Até porque existe uma função social da criação. O Código Penal Brasileiro não só prevê penas de detenção e reclusão como multa para quem reproduzir obra intelectual sem autorização com intuito de lucro direito ou indireto. É prevista ainda violação a partir de oferecimento ao público mediante cabo, fibra ótica ou qualquer sistema que possa recebê-la em um tempo ou lugar previamente determinados sem autorização expressa do artista, do intérprete ou executante, produtor ou quem os represente. A questão da proteção à propriedade intelectual transformou-se num paradoxo entre a legislação e a tecnologia. À medida que os programas ampliam as facilidades de fazer cópias, a legislação é alterada para levar em conta a nova realidade tecnológica. Quanto à segunda dificuldade, a lei define exceções e restrições à aplicação do ``copyright'' procurando manter um equilíbrio entre os interesses do autor, ou do seu representante, e da sociedade. Para Simon (2004), estas limitações têm a finalidade de preservar a função social da cópia e de garantir a disseminação da produção intelectual em situações em que o valor econômico imediato em jogo é relativamente pequeno. O autor afirma que, nos Estados Unidos, idéias não podem ser protegidas nem restritas a sua propagação. A proteção se limita à forma de expressá-las, às palavras usadas num texto, por exemplo. São cópias desta expressão que o autor pode restringir. Outra questão importante: diante do mundo virtual os princípios não são universais e refletem a refletindo a dificuldade de se criar consensos. 173 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições De fato, estes mecanismos e até mesmo os princípios envolvidos mudam de país para país. Na China, por exemplo, houve uma série de tentativas em se proibir a utilização de conteúdos pela Internet. As mudanças refletem a evolução tecnológica por um lado, mas refletem também os interesses do país ao longo do tempo, dada a sua posição de produtor ou de consumidor no mercado de propriedade intelectual. Em apenas um toque é possível copiar não só dados, mas também documentos, imagens, sons, filmes, bastam que estes estejam representados digitalmente. Assim, é viável fazer, a custos baixos, um número ilimitado de cópias sem nenhuma degradação de qualidade. A rede internet está protagonizando um fenômeno novo, sem precedentes na história da nossa civilização, cujas conseqüências consideramos potencialmente imprevisíveis no momento. Estamos nos referindo à criação cooperativa de bens de informação por centenas, às vezes milhares de autores que se comunicam através da Internet. (SIMOM, 2006, online). A informação exige não só tempo, mas esforços pessoais que custam caro. Além de técnica, de uma distribuição que envolve uma série de atores. Diante de tantos interesses industriais, econômicos e inclusive dos meios de comunicação é possível fazer um diálogo entre o direito à informação e o direito autoral? Num contexto as linguagens virtualizaram-se diante do tempo real, das coisas materiais, dos acontecimentos atuais e as situações em curso, são questões que se abrem e desembocam entre o tempo e eternidade na existência do virtual mas que demandam uma análise do direito autoral, da propriedade intelectual. 3 O PARADOXO ENTRE O DIREITO À INFORMAÇÃO E DIREITO AUTORAL A propriedade intelectual protege bens intelectuais que representam a informação, mas a propriedade intelectual não protege diretamente a informação. Para Keneth Arrow (1999) o significado da informação é uma redução na incerteza. A informação será então uma externalidade dentro de determinado processo. A primeira noção de liberdade de informação foi elaborada pela ONU, com a idéia de livre fluxo de informação na sociedade e não apenas àquelas detidas pelos órgãos públicos. O artigo 19 já traz a garantia não só da liberdade de se expressar e de dar opiniões, mas também de buscar informações por quaisquer meios, sem limites de fronteiras. A liberdade de informação está diretamente ligada ao fluxo de idéias e informações fundamentais a qualquer sociedade democrática. 174 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Vários países reconhecem o direito à informação como um direito fundamental e tribunais de destaque interpretam garantias reais de liberdade de expressão incluindo o direito à informação. “Na América Latina, as constituições tendem a se concentrar em um aspecto importante do direito à informação, a saber a petição de hábeas data, ou o direito de acesso à informação sobre a própria pessoa, esteja ela em posse de organizações públicas ou privadas e, conforme necessário, atualizar ou corrigir a referida informação” (MENDEL, 2009, p.26). Assim, ele ganha status de direito humano fundamental. Já em 1985 a Corte Interamericana de Direitos Humanos divulgou um parecer consultivo interpretando o artigo 13 e considerou que ao mesmo tempo em que é importante para o cidadão comum conhecer as opiniões dos outros e ter acesso a informação em termos gerais e ele também deve ter direito a emitir sua própria opinião. Em alguns países, os tribunais nacionais têm sido relutantes em aceitar que a garantia de liberdade de expressão inclua o direito de acesso à informação sob o controle do Estado. A Suprema Corte dos EUA, por exemplo, determinou que a Primeira Emenda à Constituição, que garante a liberdade de expressão e imprensa não estipula um direito de acesso a informações governamentais ou fontes de informações no âmbito de controle do governo. (MENDEL, 2009, p.25). Os Princípios de Liberdade de Expressão aprovados pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 2000 traz no preâmbulo que a garantia do acesso à informação mantida pelo Estado assegurará maior transparência e prestação de contas das atividades dos Governos e o fortalecimento das instituições democráticas. Os princípios ainda reconhecem o direito à informação determinando que toda pessoa deve ter direito ao acesso a informação sobre si e seu bens. Isto com presteza e sem ônus, independente se a mesma esteja em cadastros públicos ou privados. Determinam, ainda que o acesso à informação é um direito fundamental dos indivíduos e o Estado tem obrigação de garantir o pleno exercício deste direito. Dentre as limitações consideradas excepcionais estão aquelas já previamente definidas em lei na eventualidade de um perigo real e iminente que ameace a segurança nacional das sociedades democráticas. A Corte não só reconhece proteção ao emissor como também ao destinatário da informação. A informação pode significar tanto o conteúdo da informação, quanto o ato da comunicação. Quando se refere ao conteúdo, trata-se neste contexto, da idéia. Este é o primeiro aspecto que deve ser abordado pois a criação intelectual é indissociável de uma concepção inicial, ou seja, de uma idéia que é suporte para a obra intelectual. (BASSO, 2000, p.54). 175 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Para Barbosa (2009), a o grande problema está no fato de que as idéias não são protegidas. Assim, não é qualquer informação que faz com que ela seja considerada objeto merecedor de propriedade intelectual. O Direito trata a informação sob vários aspectos, no caso da criação intelectual não é protegida, mas a criação fixada como bem intelectual que pode ser objeto de um direito de propriedade intelectual. A própria Constituição Federal considera o direito à informação como uma espécie diferente de direito visto que a difusão dos veículos de comunicação relacionam-se ao Direito Público com o poder de informar e ser informado. José Afonso da Silva afirma que a liberdade de enviar e receber informações manifesta-se como um direito individual, mas atinge uma manifestação coletiva, especialmente quando o indivíduo pode transmitir publicamente informações pela Internet. Que informação não seria então passível de apropriação intelectual? No caso das informações jornalísticas que não podem ser monopolizadas. Para Razi (apud Barbosa, 2009), as implicações jurídicas da notícia jornalística podem ser avaliadas a partir de três elementos: a novidade e atualidade; o fato de ser voltada para o público em geral; a existência de forma específica. A necessidade de atribuir exclusividade à informação é evidente pelo simples fato de que a mesma tinha valor, e esse fato é avaliado em função do tempo e dos destinatários da informação. Quanto ao tempo, porque a informação é relevante naquele exato momento; quanto ao destinatário, porque se destina a pessoas que realizam uma negociação naquele mercado. ( BARBOSA, 2009, p.92). Alguns autores como Arrow (1984) consideram que é impossível conter a informação nos limites da propriedade intelectual. Assim, modificações superficiais e modificações podem manter a utilização das características essenciais da informação sem a utilização da expressão. Para R. Polk Warner ( apud Barbosa, 2009), é impossível compreender todas as características da criação a qualquer instituto. A idéia seria então tornar os canais de informação cada vez mais abertos. Isso pode ser considerado assim até porque "podemos dizer que quem não estiver conectado a essa rede mundial fica fora da vida social, econômica, científica, que desenrola em tempo real através dos caminhos da Internet" (ROVER, 2004, p. 29). Diante desta realidade, tem-se que o direito ao acesso deve ser assegurado a todos os cidadãos visto que "toda a pessoa que estiver excluída do espaço em rede, ficará impedida de exercer o controle sobre a administração pública, reproduzindo, no mundo virtual, as mesmas desigualdades do mundo corpóreo" (OLIVO, 2004, p.179). 176 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições É preciso acrescentar ainda o espaço transitório ocupado pela informação. Quando ela é lançada no ciberespaço, imediatamente é apreendida por uma série de receptores e não pode ser estocada por muito tempo em sua totalidade. Para Dantas (2002) não é possível armazenála, mas somente seus suportes como dados, nas formas de sinais gravados que serão informação e quando postos numa relação comunicativa: Uma vez que tenha comunicado, uma vez que tenha alcançado seu efeito útil, seu valor degrada-se quase instantaneamente. Informação não se estoca, embora o linguajar comum possa adotar expressões como „estoque de informação‟, „armazenamento de informação‟ e outra metáforas semelhantes que, a rigor, atrapalham a correta compreensão do fenômeno. (DANTAS, 2002, p.142). Quando no mundo virtual, a tecnologia muda o clássico conceito de território e muda a lógica de produção de conteúdos. Até mesmo obras reservadas a produção de alto custo, como o cinema, podem ser elaboradas e distribuídas a baixíssimo custo pela rede. Hoje os músicos chegam a lançar primeiro pela Internet, com acesso livre para os fãs, para depois imprimirem as músicas num compacto e encaminhar para as lojas. Assim, a tecnologia desafia o sistema jurídico, com novos cenários e elementos. Há então a necessidade de “recompensar o criador e, ao mesmo tempo, manter a concorrência e o incentivo a novas criações”, (BARBOSA, p.175). Para o autor, os institutos clássicos da propriedade intelectual foram criados em determinado contexto e voltados para situações específicas. Alterados os fatos então, mesmo com a permanência dos princípios, torna-se necessária a alteração das normas. Ele considera que existem três limites à vulnerabilidade tecnológica. Uma dela é de ordem temporal relacionada a algoritmos de criptografia cujo tempo para desvendar a combinação tornaria o empreendimento inviável. A outra vulnerabilidade seria de ordem econômica, porque exigiria alto custo de circunvenção. A última, seria a de ordem legal seria equivalente aos bloqueios tecnológicos cuja efetividade seria garantida por uma norma jurídica com sanção superior ao ato jurídico de infração. Numa outra ponta poderia-se ter como proteção a institutos existentes ou criar um direito híbrido para atender com eficiência à necessidade exclusiva para inovações. Para assegurar a eficácia do sistema como informação, a propriedade intelectual depende do correto balanceamento dos aspectos públicos e privados. O instrumento que permite tal estudo é o de poder se aventurar a dizer que nesse balanceamento está na solução de vários novos paradigmas . (BARBOSA, 2009, p.190). Considera-se então que em todas as áreas da propriedade intelectual os componentes que precisam ser equilibrados são as informações públicas e as condições para inovação. Até 177 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições porque novas tecnologias demandas novas informações, novos produtos e novas formas de produção. De que adianta tornar a informação privada diante do papel social que ela exerce? Torna-se necessário então criar um elemento balizador que não engesse o sistema, mas o torne eficaz. A cada instante surgem demandas sociais por informação que cria incentivos para a produção de mais informações. Desta forma, o sistema de propriedade intelectual precisa de limites e é preciso identificar se são informativas, quando voltadas para os meios de comunicação, ou não informativas, quando voltadas para a economia. Barbosa ( 2009) considera que as informações em domínio público podem ter valor e certamente são informativas, mas não representam custos sociais pelo fato de serem bens públicos, não rivais ou excludentes. Lévy (1997) considera que a informação e o conhecimento serão a principal fonte de riqueza. A transmissão de pensamento não é mais restrita a uma casta de especialistas mas a uma grande massa de pessoas levadas a aprender, transmitir e produzir conhecimentos de maneira cooperativa em sua atividade cotidiana. As informações passaram a constar entre os bens econômicos primordiais, o que nem sempre foi verdade. Os novos recursos chaves são regidos por duas leis que tomam pelo avesso os conceitos e os raciocínios econômicos clássicos: consumi-los não os destrói, e cedê-los não faz com que sejam perdidos... A economia repousa largamente sobre o postulado da raridade dos bens. A própria raridade se finda sobre o caráter destruidor do consumo, bem como sobre a natureza exclusiva ou privativa da cessão ou da aquisição.; Ora, uma vez mais, se transmito a você uma informação não a perco, e se a utilizo, não a destruo. (LÉVY, 1997, p.55). O autor considera que a informação e o conhecimento não são mais imateriais e sim desterritorializados , não estão mais presos a um suporte privilegiado. Isto faz com que o caractere distintivo da virtualidade seja o seu desprendimento do aqui e agora particular. Quando se utiliza uma informação, quando esta é interpretada e ligada a outras informações para fazer sentido, quando ela é utilizada para tomar uma decisão, ela é atualizada. Transforma-se. Ele considera que toda aplicação efetiva de um saber é uma resolução inventiva de um problema, uma pequena criação. Mesmo diante deste cenário a solução não seria a supressão do direito autoral, mas a abertura de seu conceito para que ele absorva os novos sistemas comunicacionais. Evocaria-se então a uma passagem de uma propriedade territorial rígida à redistribuição de flutuações desterritorializada, transformando a economia que passaria do valor de troca ao valor de uso. 178 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Para Lévy (1997, p. 67): “Uma guerra não é material nem imaterial, um amor, uma invenção, uma aprendizagem tampouco”. 4 CONCLUSÕES Diante desta realidade virtual que é ao mesmo tempo dinâmica, complexa e contraditória em que estão envolvidos diferentes atores e interesses envolvidos, é impossível encontrar uma resposta simples e definitiva. Os rumos futuros estão na dependência das experiências em curso e de outras que ainda devem vir. Inegavelmente, os rumos estão também na dependência das ações legislativas sobre o tema. A cada salto tecnológico, novos métodos de proteção devem ser criados e reconsiderados até porque não cabe só ao sistema jurídico proteger a propriedade intelectual, mas também garantir o processo e acesso à informações. Chega-se então ao paradoxo entre criar medidas tecnológicas que assegurem a exclusividade ou estabelecer proteção jurídica específica. Ao mesmo tempo em que o direito autoral tem escopo limitado, confere exclusividade por um longo período, no caso do Brasil, setenta anos após a morte do autor. Quando se trata do sistema jurídico da propriedade intelectual como informação, é preciso observar o fluxo que começa na criação e continua no mercado final. Não se pode reduzir o investimento em criações. Até porque no ciberespaço, a cada instante, os usuários contribuem para o processo de inteligência coletiva. A atualização ou consumo da informação gera uma pequena criação. Desta forma, o usuário das redes sociais, os consumidores, não apenas se tornam coprodutores da informação que consome, mas te também produtor cooperativa dos mundos virtuais, atua como agente de visibilidade. Por isso, a idéia não é abandonar os direitos de propriedade sobre todas as formas de bens, mas dar uma sofisticação ao direito autoral para que este possa ser um moderador entre a propriedade intelectual e o direito à informação no cieberespaço. Ao passo em que a informação é um substrato básico da propriedade intelectual, é preciso impor limites à esta na medida em que haja colisão entre o interesse de incentivo de um lado e a liberdade de expressão e o direito à informação de outro. Os defensores do instituto da propriedade não podem perder de vista que a distribuição de informações e de conhecimento é imprescindível não só para o desenvolvimento social da sociedade, mas também da plenitude democrática, uma vez que somente uma sociedade informada pode ser plenamente livre. Ademais, propicia maior eficiência na distribuição e a redução da 179 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições exclusividade o conhecimento. É preciso proteger o autor, mas também tutelar os direitos das pessoas que devem ser compatibilizados com as exigências do mundo contemporâneo que deseja a liberdade de informação e a livre circulação de dados. Hoje se torna difícil pensar o mundo sem Internet, a rede mundial já se incorporou a vida cotidiana. O grande desafio no plano, inclusive dos direitos fundamentais, é compatibilizar a lei de mercado, o direito autoral e o direito à informação. Caso o sistema de propriedade intelectual não tenha um sistema eficiente de divulgação das informações pode criar uma anomalia. É preciso se pensar a propriedade intelectual mais do que um instituto jurídico para ampliar riquezas, mas, acima de tudo, para produzir o bemestar social. No momento em que a informação é distribuída os institutos de propriedade intelectual acabam por desempenhar sua função social. Só assim é possível dar mais eficiência e sentido a este sistema. REFERÊNCIAS ARROW, Kenneth. The Economics of Information. Cambridge. Mass: Belknap Press of Harvard University Press, 1984. BARBOSA, Cláudio Roberto. Propriedade Intelectual: Introdução à propriedade intelectual como informação. Rio de Janeiro: Campus Jurídico, 2009. BASSO, Maristela. O direito internacional da propriedade intelectual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. DANTAS, Marcos. A lógica do capital-informação: A fragmentação dos monopólios e a monopolização dos fragmentos num mundo de capitalizações globais. Rio de Janeiro: Contraponto, 2002. IANNI, OCTAVIO. A sociedade global. 7.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. Rio de janeiro:Ed 34, 1997. LÉVY, Pierre. O que é o virtual? 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São Paulo: Malheiros, 1993. 180 O USO, A OCUPAÇÃO E O CONTROLE DA PROPRIEDADE URBANA: NOVAS PERSPECTIVAS SOBRE UM VELHO TEMA Fernando da Conceição Raposo PALAVRAS-CHAVE: Propriedade Urbana – Mercantilismo – Bem Transacionável - Solidariedade Intergeracional - liberdade. 1 INTRODUÇÃO Pode dizer-se que grande parte da acção humana baseia-se e assenta sobre um espaço denominado de “propriedade urbana”, nas valências de uso e ocupação. A urbanização que o mundo assistiu no último século é a prova de que este tema é o centro da actividade humana dos dias de hoje. O homem, desde que se encontrou como ser social caminhou para a urbanização da sua existência. Ao longo da história este processo de urbanização já assumiu várias formas e conteúdos. Mais recentemente assumiu-se (e bem) que a propriedade tem uma função social.... Entendo que tudo está correcto se esta função for acompanhada de um elevado sentido do direito à dignidade da pessoa humana, no respeito pelas suas virtudes e qualidades. Durante esse período a relação do homem com o uso, a ocupação e o controle da propriedade urbana, tem evoluído de forma diversa, acompanhando ou influenciando a evolução social e económica do próprio homem. Arquiteto, licenciado pelo Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Paraná (UFPR) em 1983. Curso de Pós Graduação em Estudos Urbanos e Habitação da Faculdade de Arquitectura da Escola Superior de Belas Artes de Lisboa (ESBAL) em 1984. Consultor de várias Autarquias na área da Renovação Urbana. Exercicio da actividade profissional nos ramos da arquitectura comercial, equipamentos públicos e urbanismo. e-mail: [email protected] A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Nos últimos 100 anos, principalmente nos países industrializados, essa relação foi marcada, pela democratização do acesso à propriedade e à tomada de consciência do seu uso no contexto do fenómeno de urbanização do planeta. Nos últimos 40 anos, a consciência de um equilíbrio ambiental e a democratização de muitas nações introduziu novos conceitos nessas relações. Hoje, em face do surgimento e acesso rápido a novas tecnologias, estamos a viver o advento de um novo conceito de cidade. Tecnologias essas que alteram a nossa relação com os meios de produção e com as comunicações, assim como as necessidades de produção e o consumo de energias. O aumento exponencial da população do planeta e o natural acréscimo de tensões sociais, assim como o acesso às novas tecnologias, está, a coberto da garantia dos direitos e liberdades das democracias, impondo o surgimento de uma sociedade hipervigilada com necessidades tremendas de segurança e controle da cidadania. As dinâmicas de uma eventual nova vaga mercantil no mundo, imporão novos relacionamentos com a propriedade. A necessidade de acompanhar as deslocalizações das empresas imporá novas regras ao uso e controlo da propriedade urbana, nomeadamente a privada. Essa tornar-se-á um peso insuportável, na medida em que o proprietário, correndo o risco de se tornar “propriedade” da sua propriedade1, poderá vir a encontrar-se cerceado da sua liberdade. 2 BREVE HISTÓRIA DA EVOLUÇÃO DO HOMEM ATÉ À PROPRIEDADE URBANA E SEU USO Há 30.000 anos o planeta é habitado por um único primata humanóide e a história do homem começa. Há 20.000 anos o homem instala-se no médio oriente. 1 “ o problema da propriedade é o de ela ficar proprietária do proprietário” Comentário de Agostinho da Silva sobre a propriedade. George Agostinho Baptista da Silva(Porto, 13 de Fevereiro de 1906-Lisboa, 3 de Abril de 1994) foi um filosofo, poeta e ensaísta português. O seu pensamento combina elementos de panteismo, milenarismo e ética da renúncia, afirmando a Liberdade, como a mais importante qualidade do ser humano. Agostinho da Silva pode ser considerado um filósofo prático e empenhado através da sua vida e obra, na mudança da sociedade. Instala-se no Brasil em 1947 onde participa e colabora na fundação de entre outras da Universidade de Santa Catarina e da Federal de Brasília. Foi assessor do Presidente Jânio Quadros. 182 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Há 10.000 anos o homem inventa 2 instrumentos revolucionários: a alavanca e o arco. Há 6.000 anos o homem agrupa-se em aldeias. Há 3.200 anos (aproximadamente), no Mediterrâneo, inicia-se a primeira Ordem Mercantil. E neste conceito de desenvolvimento e progresso, ainda nos encontramos. Nesse período surgem as cidades tal como as conhecemos: (Tiro; Sidon; Útica; Cartago; Gadis). Por essa altura Troia é vencida pelos Micénios (Cretenses). Desde esses primórdios, o controle e posse das cidades (propriedade urbana), assumem um interesse fundamental na Ordem Mercantil. Esse interesse tem evoluído e sido moldado, podemos assim considerar, com base no conteúdo ideológico da ordem mercantil que se apresentar mais vantajosa nesse momento do tempo. As questões religiosas são aqui, pode-se afirmar, parceiras da Ordem Mercantil. A Ordem Jurídica acompanha no estabelecimento das regras. A Ordem Social é o resultado. Curiosamente, num mundo onde a riqueza está cada vez mais concentrada no domínio de poucos, a propriedade, nomeadamente a urbana, assume um papel cada vez mais plural e acessível. A competitividade global assim o exige. Os Estados, tendenciosos a esta condição, por forma a conquistar a lealdade dos seus cidadãos, favorecendo a sua criatividade, a sua integração e mobilidade social, assim o impelem nesta fase de progresso. O Mercantilismo, na sua forma capitalista, foi suficientemente criativo ao democratizar o acesso à propriedade urbana. Atribuindo-lhe uma função social e transformando-a em moeda de troca dos seus interesses mais básicos, atingiu assim o seu propósito de transformar o território num imenso mercado. A partir do momento em que tudo é transaccionável, cria-se uma possibilidade de lucro. Os recursos são contudo finitos. E aqui coloca-se a questão do uso: Que uso? -: O mercantil? O social? O cultural? Mais uma vez coloca-se o perigo de a propriedade se apropriar do seu proprietário, principalmente no conteúdo que destingue o homem, que é o “sonho”. O direito à habitação e a uma existência digna não poderá nunca tornar-se refém de um direito à propriedade. 183 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Em 1776, Adam Smith aconselha aos governos que vendam os seus terrenos dominais para saldarem seus débitos. Assim, em muitas cidades, as áreas construíveis caem sob o controle exclusivo da especulação privada, e as exigências especulativas impõem a sua lei à cidade. Contudo, esta “conquista” desarticula definitivamente o fenómeno urbano. A lei natural que esteve na génese do surgimento das cidades e que representa a necessidade dos homens agruparem-se para ajudar-se mutuamente, defender-se e economizar recursos, esbate-se e perverte-se com o surgimento dos subúrbios e paradoxalmente com a desertificação do território. Este acesso à propriedade consome ainda, em muitos casos, 3/4 do dia do Homem. Este gasto é estéril e alienante. A revolução tecnológica da arquitectura ocorrida no primeiro quartel do sec. XX e que visava recuperar o espaço natural, transformou a Propriedade Urbana de m2 de território, em metros quadrados de pavimento construído e enclausurado, num desprezo total pelos sentimentos sociais, diminuindo de forma drástica o espaço vital do ser biológico. A planificação industrial da actividade de alojar, a coberto da recuperação do espaço natural, serviu meramente para rentabilizar o território e redefinir o conceito de Propriedade Urbana, proporcionando uma maior rentabilidade, conjuntamente com um maior controle e vigilância dos seus actores. Nos últimos anos temos assistido ao controlo de grandes extensões territoriais por parte de empresas privadas que nessa forma mercantil, a coberto de realizarem um qualquer “sonho”, transformam, com a conivência dos Estados, territórios rurais ou ainda naturais em territórios urbanos, na senda do lucro e da mais valia. Nesta questão, a compensação em “taxas” à “causa pública”, nomeadamente aos parceiros sociais, tem sido extremamente compensadora para a iniciativa. Aqui, os Estados, a coberto de estereótipos de progresso, apoiam e garantem o surgimento e crescimento destas organizações, servindo inclusive, muitas das vezes, para branqueamento de “lucros” de outras actividades paralelas. Este é acompanhado também, e frequentemente, de um progresso material das elites decisórias. Assim, compreende-se que não é à toa que a democratização do acesso à propriedade tenha tido início conjuntamente com o surgir das cidades-jardim nos países que lideraram a revolução industrial, exponentes máximos, que foram e são, da Ordem Mercantilista, 184 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições nomeadamente no Reino Unido e nos Estados Unidos da América do Norte. Essa realização, cativando enormes massas de mão de obra operária, conjuntamente com a despovoação dos campos, traduziu-se simbolicamente, para essas massas, no sonho desesperado de ser, se não livre, pelo menos senhor do seu destino. 3 O CASO PORTUGUÊS Em Portugal, à semelhança de muitos países em vias de desenvolvimento, uma tardia “revolução” industrial, proporcionou um crescimento desmesurado das cidades em face dos surtos migratórios das populações rurais. Estas, (também aqui) chegam às cidades em desvantagem cultural, (sem significar menor cultura), desprovidas de conhecimento urbano e ocupam os territórios com a ansiedade que lhes é permitida. Os poderes instituídos, autistas e confortavelmente instalados, não possuem espaço legal para abraçar e absorver, quanto mais impedir, estas pressões sociais (de que todos conhecemos sobejamente os resultados). Na falta do Estado, no cumprimento do seu papel regulador, os oportunistas e os especuladores, sempre atentos às oportunidades, ocupam esse papel na busca da mais rentável mais-valia. O resultado é o surgir de tensões sociais constrangedoras e o abandono da cidade tradicional para a ocupação de novos territórios nas suas imediações (há semelhança do ocorrido em outros países), ora por serem mais acessíveis, ora por oferecerem maior segurança e exclusividade. Paralelamente o poder económico, (novamente há semelhança do ocorrido em outros países), expulsa e substitui, em face de um maior lucro e poder concorrencial, o uso residencial pelos serviços na cidade tradicional. Com isso, o despovoamento da cidade ocorre. E com o despovoamento, a insegurança e o abandono patrimonial, por força da especulação, surge. As populações são aqui deserdadas da sua história. A consequência foi, como referimos, o surgimento no entorno de algumas cidades maiores, como Lisboa, de inúmeras áreas urbanas cuja propriedade, na impossibilidade de parcelamento sob um procedimento institucional e planificado, teve origem no parcelamento rural. 185 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Este tipo de propriedade urbana foi formado na ordem da posse, na medida em que essa posse era partilhada em "avos" por um determinado numero de proprietários, sobre um cadastro rural. Posteriormente essas áreas urbanizadas, de forma mais ou menos espontânea, ficaram conhecidas por “bairros clandestinos”. Em consequência e por forma a poder reordenar o território, classificavam-se essas áreas “informais” como “AUGI” (áreas urbanas de génese ilegal), tendo sido produzida uma série de legislação para acompanhar o processo de re-ordenamento do território e consequente requalificação dessas mesmas áreas, assim como regularizar de forma conveniente e juridicamente fiável, a posse da propriedade. Novamente e á semelhança do que aconteceu em muitos outros países no seu processo de desenvolvimento, foram testadas muitas experiências urbanísticas com vista à resolução do problema das expansões urbanas. Já mais recentemente foram criados regimes específicos, nomeadamente ao nível de enquadramentos legais, para áreas urbanas, que em face da rápida expansão de perímetros urbanos, tiveram como consequência a degradação das áreas mais antigas ou de outras áreas urbanas menos concorrenciais. Essas áreas, foram, mediante proposta das Administrações Locais, identificadas como “ACRRU” (área critica de renovação e reconversão urbanística). Com a criação de dinâmicas empresariais, vocacionadas directamente para a resolução desta problemática, nomeadamente com a criação de Sociedades de Renovação Urbanística, colocou-se nestas empresas o poder de gestão territorial dessas áreas especificas. Esta forma permite, inclusivamente, a iniciativa partir da “sociedade civil” ou da área estatal, aberta a parcerias com a área privada. Estes instrumentos legais permitem requalificar a cidade sob a égide da função social da propriedade urbana, assim como do princípio de solidariedade intergeracional. Esta gestão surge munida de instrumentos poderosos de controle e acesso à propriedade privada, nomeadamente o poder de impor coercivamente obras de reabilitação dos edifícios; expropriação em face do interesse público ou imposição de venda forçada com a finalidade de reabilitação. Partindo de um princípio de que a sociedade civil pode controlar estes mecanismos, estamos assim perante, (podemos teoricamente concluir, no contexto actual), uma das mais 186 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições puras formas de gestão democrática da cidade. Resta contudo saber, se essa sociedade está preparada para esta tarefa ou se o “Estado” já está preparado para abdicar desta função. Noutra perspectiva, a reforma ocorrida no sistema tributivo (da propriedade), na aplicação dos Impostos Municipais de Imóveis (IMI), aplicado directamente sobre o património imobiliário, com critérios, que no meu entender ao se revestirem de transparentes, por parte da Administração do Estado, são contudo pouco claros na matéria da sua construção, vêm validar o que eu chamo de nacionalização camuflada da propriedade urbana. Em muitos casos os valores são de tal maneira exagerados que, de uma contribuição à “causa pública”, passa-se a pagar uma renda ao Estado para se poder usufruir o que supostamente deveria ser propriedade privada. Assim, sem exagero, consuma-se a ideia de que ninguém é proprietário de coisa alguma, mas sim e somente um fiel depositário de toda uma actividade que assenta sobre o território do planeta. O que não deixa de ser uma verdade. Nessa conformidade e nesse pressuposto, a condição de fiel depositário acarreta responsabilidades intergeracionais acrescidas, nomeadamente ao nível da preservação da qualidade do meio ambiente e da história dos lugares. E é aqui que se forma, no meu entender, a função social da propriedade, ao nível da responsabilidade moral e da ética civilizacional. 4 A PROPRIEDADE URBANA: QUE FUTURO? Nos últimos 40 anos temos vindo a assistir à talvez maior revolução social que a humanidade assistiu depois da descoberta da Divindade Maior. Este, podemos assim dizer, é o advento do apogeu do Mundo Mercantilista. É sem margem para dúvida um período difícil. Assiste-se quase que impávido ao desmoronar da segurança das Nações e dos Estados. O Mundo, tal como o aprendemos na história, dá os primeiros passos para desaparecer. A revolução é tecnológica e não política. A política, neste caso, é de acompanhamento. Num mundo global, praticamente sem fronteiras, onde os Estados são já quase meras instituições de representação e onde a competitividade é a tábua de salvação das ainda identidades nacionais, a Humanidade tende a subjugar-se perante as necessidades básicas de 187 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições consumo. Nessa senda, a liberdade de movimentação é a vantagem. Assim, nas palavras de António Cícero 2“não há lugar para "utopias positivas" na modernidade. O único projecto colectivo que se pode ter é garantir a todos condições materiais mínimas para a fruição das liberdades individuais, das utopias subjectivas, características da modernidade”. O uso da Propriedade Urbana como moeda de troca e “Bem Transaccionável” é uma realidade. A última e ainda presente “crise económica” mundial é disso um exemplo. A família como elemento central da sociedade foi definitivamente posta em causa. Se nos países em vias de desenvolvimento o crescimento demográfico é uma realidade, nos países “ricos” o decréscimo demográfico é, em oposição, a “realidade”. Nessa conformidade, as garantias sociais e de acompanhamento da família estão sendo postas em causa. O “direito” à propriedade deixa de ser uma condição imperiosa para as sociedades emergentes, passando a ser uma moeda de troca e um peso de “valor” duvidoso na construção da própria existência. Este “valor” tanto mais é duvidoso quanto a preparação social e urbana dessas sociedades se encontra consolidada e assumida. Na maioria das vezes o processo de urbanização dos territórios faz-se à custa de populações, cultural e socialmente despreparadas. Com isto pretendo salientar que o processo de urbanização das sociedades emergentes não se resolve somente com a ciência urbanística de bem construir e ordenar o território, na procura de um melhor posicionamento das ruas e edifícios, distribuição das actividades humanas e sociais, na busca de um gozo sã e confortável das populações. O processo de “urbanização” das populações deverá passar por algo mais que os aspectos meramente físicos e mesmo jurídicos do território. A saúde da cidade depende em grande parte da saúde cultural, educacional, e consequentemente cívica das populações. A ocupação “consolidada” e legalmente garantida, preconizada no “direito de 2 Poeta e ensaísta, ANTÓNIO CICERO apresentou em Lisboa a palestra "Da actualidade do conceito de civilização", no encontro intitulado "O Estado do Mundo", organizado pela Fundação Gulbenkian, publicada em Portugal, no livro A Urgência da Teoria (Lisboa:Gulbenkian, 2007). 188 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições propriedade”, não é nem deverá ser vista como a sumula urbana. O acesso e a capacidade de usar culturalmente uma cidade é que fomentará a criatividade e a fará versátil ao ponto de a tornar concorrencial e vantajosa e com isso satisfazer os anseios da sua população. A capacidade de adaptação da cidade às dinâmicas mercantis do planeta é que a farão, dentro do possível, confortável e cumpridora do seu desígnio. Acredito que em face da cobertura dos riscos eminentes da precariedade, as empresas seguradoras assumirão o papel de proprietários majoritários no sec. XXI. Os riscos de aquisição e uso da propriedade, entre outros, têm de ser repartidos. 5 CONCLUSÃO A liberdade e não a igualdade traçarão a vantagem do “uso”, da “ocupação” e do “controle” da propriedade urbana como domínio do homem sobre a “divindade”, no caso a Natureza. BILIOGRAFIA "Qualquer opinião é uma eclipse; uma asserção condicional com a parte condicional omitida." (I.A RICHARDS) Para aventurarmo-nos num pensamento há que viver na consciência dos que nos antecedem, nos que nos acompanham e nos que nos contrariam. Há inúmeros livros e monografias que seria fastidioso enumerar; contudo estes são algumas referências que serviram e auxiliaram o conteúdo deste pequeno artigo. BENEVOLO, LEONARDO. Storia dell' Architettura Moderna. Bari: Editori Laterza, 1966. GROPIUS, WALTER. Bauhaus:Novarquitetura. São Paulo: Perspectiva Ed., 1972. JENCKS,CHARLES. Modern Movements in Architecture. Londres:1973,1985. 189 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições LE CORBUSIER. L'Urbanisme des Trois Établissements Humains. São Paulo: Perspectiva,Ed., 1976. ATTALI, JACQUES. Une Brève Histoire de l'Avenir. Paris:Lib. Arthème Fayarde, 2006. CICERO, ANTÓNIO. O Mundo Desde o Fim. Vila Nova de Famalicão:Quasi, 2009. PINHO, ROMANA VALENTE- O Essencial sobre Agostinho da Silva, Lisboa, 2006. 190 O PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE Germana Parente Neiva Belchior Ana Carolina Aguiar Carneiro RESUMO: Desde a sua origem até os dias atuais, é inconteste que o direito de propriedade passou por várias transformações, o que torna relevante o estudo de sua historicidade. O seu caráter absoluto durante o Estado Liberal se redimensiona para a necessidade de uma função social como proclama os ditames normativos do Estado Democrático de Direito. Por outro lado, diante da crise ambiental e da sociedade de risco, oriundas da quebra de paradigmas da velha ordem, o Direito Ambiental importa a teoria do risco de Beck, cuja manifestação do risco em abstrato se dá com o princípio da precaução. Nessa linha, o conteúdo da função social da propriedade merece discussão, uma vez que o meio ambiente é condição para a vida em suas variadas formas, o que faz a doutrina defender o fenômeno da ecologização da propriedade. O objetivo desse trabalho é, portanto, investigar como o princípio da precaução pode ser utilizado como instrumento de efetivação da função social da propriedade. A metodologia utilizada é bibliográfica, descritiva, exploratória, dialética com predominância indutiva. Verifica-se que a função social possui um conteúdo ambiental de forma a impor ao proprietário deveres de proteção ao meio ambiente sadio, cuja proteção não se encontra apenas na legislação infraconstitucional, mas na própria Lei Maior, ao abordar a função social da propriedade e o dever fundamental de preservação ambiental. É de concluir que, em virtude das incertezas científicas e da liquidez dos conceitos, o princípio da precaução se revela como um importante mecanismo de caráter instrumental e material para o preenchimento do conteúdo da função social da propriedade em defesa da sustentabilidade. PALAVRAS-CHAVE: PROPRIEDADE; FUNÇÃO SOCIAL; SUSTENTABILIDADE; PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO; EFETIVIDADE. ABSTRACT: Since the historical moment it appeared in society until the present age, it is evident that property law has faced significant changes, making the assessment of its historicity a relevant issue. The idea of property as absolute, that prevailed during Liberal State, was redimensioned in the model of State governed under the rule of law, in order to create the notion of social role of property. On the other hand, the disappearance of old paradigms is related to the environmental crisis in course and to the uprising of a risk society, taking Environmental Law to resort to the risk theory developed by Beck, for whom the precautionary principle is the result of the possible manifestation of risk. In this sense, the content of the notion of social role of property needs to be discussed, as environment is a precondition for life in general, taking scholars to defend the need for property to be used with ecological references. The aim of this paper is, therefore, to exam how the precautionary Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará. Professora de Hermenêutica Jurídica e Aplicação do Direito, Direito Ambiental e Ecologia da Faculdade Christus – Fortaleza. Pesquisadora do Projeto Casadinho (CNPQ-UFC-UFSC). Aluna do 9º semestre do curso de graduação em Direito da Faculdade Christus – Fortaleza, onde é bolsista do Programa de Iniciação Científica. A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições principle can be used as an instrument for effectivating the social role of property. Methodology used is bibliographical, descriptive, exploratory and dialectical, being also primarily inductive. The author puts in evidence the fact that the idea of social role of property comprises an environmental content, imposing to the holder of property duties aimed at protecting a healthy environment, with the rules related to this matter to be found not only in the ordinary body of laws, but also in the Constitution. The author comes to the conclusion that, due to scientific uncertainties and to the fluidity of ideas, the precautionary principle is a very important tool for relating the social role of property and the need for sustainability. KEY-WORDS: PROPERTY; SOCIAL ROLE; SUSTAINABILITY; PRECAUTIONARY PRINCIPLE; EFFECTIVENESS. INTRODUÇÃO Desde a sua origem até os dias atuais, é inconteste que o direito de propriedade passou por várias transformações, o que torna relevante o estudo de sua historicidade. O seu caráter absoluto durante o Estado Liberal se redimensiona para a necessidade de uma função social como proclama os ditames normativos do Estado Democrático de Direito. Por outro lado, diante da crise ambiental e da sociedade de risco, oriundas da quebra de paradigmas da velha ordem, o Direito Ambiental importa a teoria do risco de Beck, cuja manifestação do risco em abstrato se dá com o princípio da precaução. Nessa linha, o conteúdo da função social da propriedade merece discussão, uma vez que o meio ambiente é condição para a vida em suas variadas formas, o que faz a doutrina defender o fenômeno da ecologização da propriedade. O objetivo desse trabalho é, portanto, investigar como o princípio da precaução pode ser utilizado como instrumento de efetivação da função social da propriedade. A metodologia utilizada é bibliográfica, descritiva, exploratória, dialética com predominância indutiva. A importância desse estudo se revela na necessidade de se encontrar instrumentos que minimizem os efeitos da crise ambiental em todas as searas do Direito, pois se deve fazer uma reestruturação no Estado e no Direito, para que o meio ambiente seja amplamente protegido, uma vez sem um meio ambiente ecologicamente equilibrado não há como resguardar plenamente o direito à vida. Em um primeiro momento desse trabalho, será analisada a historicidade do direito de propriedade ao abordar sua evolução histórica, bem como seus avanços nas Constituições brasileiras. Em seguida, discute-se a função social e sua relação com o direito de propriedade, 192 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições passando para o último momento, ocasião em que serão estudadas a crise ambiental, a sociedade de risco, bem como a relação do princípio da precaução com a função ambiental da propriedade. 1 CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO DE PROPRIEDADE O direito a propriedade é muito antigo e, desde a sua origem até os dias atuais, passou por várias transformações, uma vez que a ciência jurídica é mutável, pois deve amoldar-se à sociedade na qual está vigendo. Portanto, antes de adentrar ao estudo da função social e do meio ambiente, faz-se necessário um levantamento histórico do direito de propriedade, para que se possa perceber com clareza a sua evolução na sociedade e dentro do ordenamento jurídico brasileiro para então entender seu contexto social. 1.1 A evolução histórica do direito de propriedade desde a antiguidade até a era contemporânea Na Antiguidade, os povos, mesmo que muito primariamente, já regulamentavam a propriedade como, por exemplo, os babilônios que no Código de Hamurabi impunham proteção absoluta para aquele direito. Durante a Grécia antiga, a propriedade era da família, haja vista que se acreditava que os antepassados tornavam-se deuses que protegeriam aquele determinado clã; logo, a terra na qual eles estavam enterrados deveria ser preservada pela família. 1 A propriedade, dessa forma, era absoluta e perpétua, pois se mostrava a necessidade de proteger a terra, considerada o altar dos deuses. Na Idade Média, que se iniciou com a queda do Império Romano, em 476 d.C., houve a multiplicidade da propriedade, momento em que a terra era dividida em feudos, os quais eram repartidos entre os vassalos e os senhores feudais. Esses últimos recebiam a terra do Estado e os primeiros cultivavam-na e adquiriam a posse de parte do feudo como uma contraprestação ao trabalho prestado e, também, como forma de proteção, mas a terra continuava a ser do patrono. Nessa época, permitiu-se a superposição de propriedades diversas sobre um único bem. 2 1 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 679-680. PÚPERI, Cyro Luiz Pestana. A função social, econômica e a preservação do meio ambiente como condição limitadora do direito de propriedade. Revista da AJURIS, Porto Alegre, ano 3 , n. 105, p. 91-134. 2 193 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições O período moderno foi marcado pela Revolução Francesa e pela Revolução Industrial, fatos que contribuíram para o extermínio do feudalismo, desencadeando a passagem do Absolutismo para o Estado Liberal. A Declaração dos Direitos do Homem de 1789 considera a propriedade como “inviolável e sagrada”. Nessa linha, o Código de Napoleão traz o caráter individualista e absoluto da propriedade, em seu artigo 544, ao afirmar que “o direito de gozar e de dispor das coisas da forma mais absoluta, desde que delas não se faça um uso proibido, pelas leis e regulamentos.” Na época contemporânea, a Constituição de Weimar, de 1919, foi um marco no que tange à evolução do conceito de propriedade, pois trouxe em seu texto a vinculação do direito de propriedade às obrigações de cunho social, ou seja, deixou-se para trás a ideia da propriedade absoluta para que surgisse o embrião de sua função social. 1.2 A historicidade do direito de propriedade nas constituições brasileiras Assim como na história mundial, a propriedade também sofreu diversas modificações nas constituições brasileiras, temática que será desenvolvida nesse tópico. A Constituição de 1824 (Constituição Imperial) protegia a propriedade em toda sua plenitude3, destacando a sua inviolabilidade, ou seja, a Carta Magna imperial aderiu ao movimento liberal presente à época, prevendo um direito de propriedade absoluto 4, como um típico direito fundamental de primeira geração.5 A Lei Maior de 1891 (Constituição Republicana) seguiu as diretrizes da constituição anterior ao abordar em seu texto a inviolabilidade do direito a propriedade 6, que seria mitigado apenas na hipótese de desapropriação por necessidade ou utilidade pública. Entretanto, foi com o surgimento da Constituição de 1934 que, pela primeira vez, foi previsto o vínculo da propriedade ao interesse social. 7 O legislador constitucional atentou-se 3 Artigo 179 da Constituição de 1824 – “A inviolabilidade dos Direitos Civis e Políticos dos Cidadãos Brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte. [...] XXII – É garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude. Se o bem publico legalmente verificado exigir o uso, e emprego da Propriedade do Cidadão, será ele previamente indenizado do valor dela. A Lei marcará os casos, em que terá que lograr esta única exceção, e dará as regras para se determinar a indenização.” 4 PÚPERI, op. cit., p. 91-134. 5 Voltar-se-á ao assunto dos direitos fundamentais em momento posterior. 6 Artigo 72 da Constituição de 1891 – “A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: [...] Parágrafo 17° – O direito de propriedade mantém-se em toda a sua plenitude, salva a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia.” 7 Artigo 113 da Constituição de 1934 – “A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XVII – É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o 194 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições para a necessidade da propriedade privada ser limitada tendo em vista um interesse maior, qual seja, o coletivo. Já a Constituição de 1937 excluiu de seu texto a possibilidade da limitação da propriedade pelo interesse social e coletivo 8, apenas assegurando a desapropriação nos casos de necessidade ou utilidade pública, semelhante ao previsto em 1981. Ao enaltecer o interesse público em detrimento do privado, a Carta de 1946 trouxe em seu corpo a limitação da propriedade em virtude do bem estar social. 9 Em seguida, destaca-se que a Constituição de 1967 foi a primeira a prever a expressão função social10 da propriedade, inserida nos princípios da ordem econômica. 11 Por fim, a Constituição de 1988 trouxe um avanço considerável no que tange ao direito de propriedade e sua função social, uma vez que não os previu apenas como fundamentos da ordem econômica, mas os colocou em um patamar acima, à luz do Estado Democrático de Direito, ao inseri-los no artigo 5°, XXII e XXIII12, dando um caráter de direitos fundamentais a esses institutos. 1.3 A relação jurídica da propriedade no contexto atual A propriedade, como discutido anteriormente, sofreu várias modificações ao longo da história e das constituições pátrias. Foram evoluções e retrocessos. Sua análise histórica é de suma importância para que se possa chegar ao conceito de propriedade hoje defendido e perseguido. Por muito tempo, propriedade baseava-se em uma relação do objeto com um sujeito, de interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar. A desapropriação por necessidade ou utilidade pública far-se-á nos termos da lei, mediante prévia e justa indenização. Em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção intestina, poderão as autoridades competentes usar da propriedade particular até onde o bem público o exija, ressalvado o direito à indenização ulterior.” 8 Artigo 122 da Constituição de 1937 – “A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no País o direito à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XIV – o direito de propriedade, salvo a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia. O seu conteúdo e os seus limites serão os definidos nas leis que lhe regularem o exercício; [...].” 9 Artigo 147 da Constituição de 1946 – “O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá, com observância do disposto no art. 141, § 16, promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos.” 10 Artigo 157 da Constituição de 1967– “A ordem econômica tem por fim realizar a justiça social, com base nos seguintes princípios: [...] III – função social da propriedade; [...].” 11 TEPEDINO, Gustavo. A função social da propriedade e o meio ambiente. Revista trimestral de direito civil. Rio de Janeiro, ano 09, n. 37, p. 127-148, jan./ mar. 2009. 12 Artigo 5º da Constituição de 1988 – “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XXII - é garantido o direito de propriedade; XXIII - a propriedade atenderá a sua função social; [...].” 195 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições forma simples e pontual. No entanto, a evolução socioeconômica impõe feixes nesta relação, uma vez que a diversidade em todas as esferas está cada vez maior. Assim, a relação jurídica da propriedade passa a ser composta por um sujeito ativo, - o objeto (propriedade) - e o sujeito passivo, que é composto pela universalidade de pessoas que devem respeitar o direito de propriedade. Sobre a relação jurídica da propriedade, expõe Carlos Roberto Gonçalves: A relação jurídica, segundo a citada teoria personalista, não pode existir entre pessoa e coisa, mas somente entre pessoas. O direito real, como os demais direitos, pressupõe sujeito, sujeito passivo e objeto. Constitui, pois, relação jurídica estabelecida entre o sujeito ativo (o proprietário, no caso do direito real de propriedade) e os sujeitos passivos, que são todas as pessoas do universo, que devem abster-se de molestar o titular.13 O artigo 1228 do Código Civil de 2002 traz em seu texto que o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa. Ocorre que esse uso deve se pautar pela função social da propriedade, não apenas por uma previsão do direito privado, mas por uma imposição constitucional. A Constituição de 1988 aborda em seu artigos 5°, XXII e XXIII, 170, incisos II e III, a previsão de que a propriedade deve obedecer a sua função social e ambiental, ou seja, o direito exercido pelo proprietário não pode mais ser absoluto e ilimitado, pois deverá respeitar os ditames constitucionais, tais como o direito dos trabalhadores, honrar com os tributos cobrados, contribuir para um meio ambiente ecologicamente equilibrado, dentre tantos outros que devem ser respeitados por quem se beneficia com a propriedade privada. Como se vê, a propriedade é protegida como forma de realização pessoal (direito à propriedade) e como instrumento para o exercício da atividade econômica (direito de propriedade). Portanto, pode-se dizer que propriedade privada é a relação jurídica entre os sujeitos ativos e passivos que tem como objeto uma coisa, que pode ser usada pelo proprietário da forma que melhor lhe aprouver. Entretanto, deve-se direcionar esse uso, de acordo com a função social e ambiental da propriedade, como proclamam os ditames normativos. 2 A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE Até o presente momento desse estudo, verifica-se que a propriedade deixou para trás um aspecto individualista e absoluto, passando a incorporar uma dimensão social, pelo qual se exige que o proprietário exerça sua vontade de forma a se adequar ao interesse da 13 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 9. 196 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições coletividade. Isto se deve à essência do Estado Democrático de Direito, pautada na prevalência do interesse público e do bem estar da sociedade sobre o interesse individual. Para que se possa entender com mais clareza essa limitação, bem como o redimensionamento que a função social e o meio ambiente impõem à propriedade, far-se-á um estudo mais aprofundado acerca dessa temática. 2.1 Elementos iniciais da função social A função social da propriedade está prevista na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5°, XXIII, quando proclama que a propriedade deverá atender a sua função social. Como se vê, a propriedade tem sua estrutura redimensionada pela função social, possuindo status de direito fundamental e como tal deve ter aplicabilidade imediata. Essa nova dimensão do direito de propriedade o limita, ou melhor, o autolimita, uma vez que exige do proprietário ações ou omissões que respeitem o direito coletivo. Entretanto, isso não quer dizer que o interesse do particular será sempre tolhido em prol da coletividade, uma vez que se deve analisar o caso concreto, pois o direito citado não é absoluto, devendo dar espaço para o exercício de outros direitos, como o desenvolvimento econômico. A função social da propriedade tem como fundamento a coexistência dos interesses individuais e sociais. Isso significa que o particular poderá exercer sua atividade, mas esta poderá sofrer limitação, pautando esse exercício de modo que não prejudique o ente coletivo como, por exemplo, deve-se utilizar a propriedade de modo que o meio ambiente esteja protegido. O direito de propriedade só estará conservado se for cumprida a função social. Muito se discute qual seria a relação da função social com a propriedade, se aquela seria apenas um dos aspectos da segunda ou se a função social seria a própria estrutura da propriedade. Acerca do tema, manifesta-se Perlingieri: [...] se considerarmos que a propriedade tem uma função social, o instituto permanece com uma situação subjetiva no interesse do particular, sendo, ocasionalmente, atribuída a sua função social ao proprietário. Se considerarmos que a propriedade é uma função social, a propriedade é atribuída ao proprietário já no interesse público ou coletivo.14 A função social é a estrutura e o fundamento de toda a propriedade. O direito de propriedade é a função social, cuja existência só será possível se ambas estiverem vinculadas. Uma vez desrespeitada, haverá a desapropriação do bem pelo poder público mediante indenização. Em outras palavras, a função social é o regime jurídico do direito de 14 PERLINGIERI, 1970 apud LEMOS, Patrícia Faga Iglecias. Meio Ambiente e Responsabilidade civil do proprietário: análise do nexo causal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 76. 197 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições 15 propriedade. Oportuna é a lição de Eros Grau: Importa, nestas condições - a verificação de que a propriedade deve cumprir uma função social - não apenas o rompimento da concepção, tradicional, de que a sua garantia reside exclusivamente no direito natural, mas também a conclusão - que enuncio - de que, mais do que meros direitos residuais (parcelas daquele que em sua totalidade contemplava-se no utendi, fruendi et abutendi na plena in re potestas), o que atualmente divisamos, nas formas de propriedade impregnadas pelo princípio, são verdadeiras propriedades - função social, e não apenas, simplesmente, propriedades. As metamorfoses quantitativas se fazem completas e, no desenho marcado pela contemplação de limitações ao exercício da propriedadee não, meramente, de limitações ao exercício da propriedade-, surgem novos institutos que não mais podem ser fidedignamente referidos como propriedades, mas que apenas encontram expressividade adequada quando indicados como propriedades - função social.16 (destaque no original) Portanto, não há como falar em uso, gozo, fruição da propriedade desvinculadas do conceito da função social, da proteção ao interesse coletivo, em detrimento do particular. Para que possa exercer plenamente seu direito, o proprietário deverá possuir mecanismos que não permitam que sua atividade e a utilização do bem possam ir de encontro à função social, maculando, assim, o direito de propriedade. 2.2 Classificação da função social Para cumprir a função social da propriedade, deve-se respeitar o ordenamento jurídico, pois esse se constitui como um todo unitário, ou seja, um sistema, no qual não se pode interpretar uma norma isoladamente. A interpretação deve ser realizada de forma a considerar todo o sistema normativo, conforme destaca Miguel Reale: Interpretar logicamente um texto de Direito é situá-lo ao mesmo tempo no sistema geral do ordenamento jurídico. A nosso ver, não se compreende, com efeito, qualquer separação a interpretação lógica e a sistemática. São antes aspectos de um mesmo trabalho de ordem lógica, visto como as regras de direito devem ser entendidas organicamente, estando uma na dependência das outras, exigindo-se reciprocamente através de um nexo que a ratio juris explica e determina.17 Dessa forma, para atender ao ditame constitucional da função social, é mister cumprir com as normas econômicas, pagar os tributos devidos em decorrência da posse do bem, honrar com os deveres trabalhistas, pautar sua atividade para a concretização de um meio ambiente ecologicamente equilibrado, dentre tantas medidas que o Estado pode elaborar para o preenchimento do seu conteúdo. Tendo em vista esse aspecto da função social, parte da doutrina faz uma classificação daquela, que é importante ser mostrada tendo em vista os objetivos desse trabalho científico. Classifica-se, pois, a função social em função social strictu sensu, função econômica e função 15 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2007. GRAU, Eros Roberto. Direito urbano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983, p. 66. 17 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 280. 16 198 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições 18 ambiental. A função social strictu sensu incidirá sobre o fator social, ou seja, sobre a coletividade. O proprietário deverá agir ou se omitir, de modo que não cause danos a direitos e interesses coletivos, como, por exemplo, respeitar os direitos dos trabalhadores, pagando suas verbas trabalhistas corretamente, não os explorar e dar a oportunidade a intervalos. O pagamento correto dos tributos que incidem na propriedade também está inserido no fator social, uma vez que o Poder Público se utiliza, em tese, dessas verbas para proporcionar melhorias e qualidade de vida para a população. A função econômica pode ser visualizada no pagamento dos tributos que incidem sobre a produção da propriedade19, pois esse fato faz com que o comércio seja alimentado, gerando mais empregos e, consequentemente, melhor qualidade de vida para a população, que poderá ter acesso a direitos básicos, como alimentação, saúde, educação, lazer, entre outros. Destaca-se, ainda, a função ambiental, que impõe ao proprietário que busque instrumentos para exercer sua atividade de modo que amenize os danos causados ao meio ambiente, minimizando os efeitos da crise ambiental hoje vivenciada. Não é preciso muito esforço para perceber que a proteção ambiental influencia todas as classificações citadas, uma vez que no aspecto social, as pessoas terão mais qualidade de vida e, no aspecto econômico, o Poder Público poderá investir em infra-estrutura e saúde, por exemplo, que também contribuem para um meio ambiente sadio. Percebe-se, pois, o quanto vantajosa é a função social e suas demais classificações; entretanto, deve-se dar especial atenção à função ambiental, na medida em que a crise ambiental está cada vez mais alarmante. 3 A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E A PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE Na última parte desse trabalho, serão discutidas a crise ambiental e a sociedade de risco de forma a analisar a influência que o princípio da precaução exerce na função social da propriedade. 3.1 Um olhar em torno da crise ambiental e da sociedade de risco Com o advento das revoluções liberais e industriais, a sociedade sofreu inúmeras modificações. A propriedade passou a ser absoluta e perpétua, e o capitalismo tornou-se o sistema econômico predominante da Idade Moderna, por meio do qual era prometida uma 18 19 PÚPERI, op. cit., p. 91-134. Ibid., p. 91-134. 199 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições melhor qualidade de vida e acesso, por todos, aos bens de consumo. Buscava-se a produção em massa, a aquisição do lucro e, consequentemente, o acúmulo do capital. A economia capitalista, portanto, criou a sociedade do consumo na vigência da modernidade, prometendo uma vida mais confortável, a partir das inovações tecnológicas advindas desse sistema. Ocorre que essa busca pela potencialização do lucro fez com que as indústrias utilizassem de modo desenfreado os recursos naturais existentes, acreditando que esses seriam inesgotáveis. Vale ressaltar que na época moderna defendia-se que o homem tinha total controle de suas ações, ou seja, que poderia prever todos os riscos e danos que estava causando. Entretanto, com o passar do tempo, verificou-se que existem alguns danos que o homem não tem mecanismos para medir, diante de sua imprevisibilidade, em virtude do risco em abstrato. A revolução industrial do século XVIII foi o embrião do que se chama hoje de sociedade de risco20, potencializada pelo desenvolvimento tecno-científico e caracterizada pelo incremento na incerteza quanto às conseqüências das atividades e tecnologias empregadas no processo econômico.21 A modernidade é mais uma das conseqüências geradas pelo Iluminismo, momento histórico marcado pela Revolução Francesa, acontecimento este que causou transformações irreversíveis na sociedade. Proclama-se, a partir de então, de forma mais incisiva, o racionalismo, o antropocentrismo clássico e o universalismo. Ilustra Touraine que esse período remonta à concepção clássica da modernidade, identificando-a com a racionalização. O autor francês sugere uma redefinição da modernidade como a relação entre razão e o sujeito, carregada de tensões, assim como racionalização e objetivação, ciência e liberdade. 22 Diante desse panorama, surgiu a sociedade pós-moderna, um reflexo do fracasso da modernidade, pois, ao fomentar o consumo e a produção de inovações tecnológicas sem pensar no impacto ambiental que poderiam causar, utilizaram-se desenfreadamente os 20 A teoria da sociedade de risco foi inicialmente fundamentada pelo sociólogo alemão Ulrick Beck, com a publicação da obra “La sociedad del riesgo”, em meados da década de 80. Segundo Beck, a sociedade de risco “designa uma fase no desenvolvimento da sociedade moderna, em que os riscos sociais, políticos, econômicos e individuais tendem cada vez mais a escapar das instituições para o controle e a proteção da sociedade industrial”. BECK, Ulrick. La sociedade del riesgo. Tradução de Jorge Navarro. Barcelona: Paidós, 1998, p. 24. 21 ROCHA, Leonel Severo. Uma nova forma para a observação do direito globalizado: policontextualidade jurídica e Estado Ambiental. In: Grandes Temas de Direito Administrativo: homenagem ao Professor Paulo Henrique Blasi. CARLIN, Volvei Ivo (org.). Campinas: Millennium, 2009, p.527. 22 TOURAINE, Alain. Crítica da modernidade. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1997. 200 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições recursos naturais existentes. Referido momento histórico, assim como uma dimensão ética do meio ambiente com o homem, na qual se utiliza ilimitadamente dos recursos naturais, influenciada pelo consumo exacerbado, é chamada de antropocentrismo clássico. Surge, pois, a sociedade de risco, de acordo com a proposta do sociólogo alemão Beck23, na qual o homem não consegue e não pode mais controlar o impacto da ciência no meio ambiente, de modo que se passou a ter receio com as inovações tecnológicas. Antes a sociedade era completamente aberta e receptiva para tudo que aparecia como novidade. Na pós-modernidade, o panorama mudou, pois já se percebe que a ciência pode ser (e é falha) e que, diante de tantas catástrofes que aconteceram, faz-se necessária muita cautela e análise quanto aos efeitos das descobertas científicas. Existe um agravante na sociedade de risco, que é a liquidez dos conceitos, defendida por Bauman.24 A sociedade não cultiva seus valores, hoje tudo é mutável, tudo é relativo. Um conceito que era dado como verdadeiro ontem, já não é mais hoje. Essa mutabilidade dos conceitos e valores é bastante preocupante, principalmente no que diz respeito ao risco ambiental, que poderá também ser modificado, tendo em vista os interesses econômicos e políticos. É visível a vinculação da sociedade de risco com a crise ambiental, na qual existem riscos que podem ser previsíveis e controlados, chamados concretos, amparados no Direito Ambiental no princípio da prevenção, como também existem aqueles em abstrato, que têm a possibilidade de ocorrer, protegidos no princípio da precaução. Esses últimos não podem ser previstos. 25 É inconteste, pois, a necessidade do Estado em proteger o meio ambiente, ainda mais porque a Constituição de 1988, em seu artigo 225, positivou o meio ambiente sadio como um direito fundamental.26 Além disso, o constituinte originário foi mais além ao prever que o meio ambiente ecologicamente equilibrado constitui-se como um dever do proprietário e de toda a coletividade. Com o surgimento da sociedade de risco e da crise ambiental, buscam-se, urgentemente, 23 BECK, op. cit. BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Tradução de Mauro Gama, Claudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. 25 LOPEZ, Tereza Ancona. Princípio da precaução e evolução da responsabilidade civil. São Paulo: Quartier Latin, 2010. 26 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 11. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2008. 24 201 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições instrumentos que possam amenizar ou neutralizar os impactos ambientais. 3.2 O meio ambiente como direito e dever fundamental Diante da crise ambiental e da sociedade de risco, verifica-se a necessidade de um Estado que valorize o meio ambiente e o proteja, pois ele é essencial para a sadia qualidade de vida e, por conseguinte, para a efetivação da dignidade da pessoa humana. A Constituição Federal, em seu artigo 22527, positivou o meio ambiente como um direito fundamental, pois, mesmo não constando no rol do artigo 5°, a proteção de um meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem como a uma sadia qualidade de vida, garantem o direito a saúde, a vida, entre outros, efetivando, assim, o princípio da dignidade da pessoa humana. Deve-se considerar o meio ambiente como uma das faces deste princípio-base da Constituição de 1988, como bem explica Ingo Sarlet: Nesse contexto, verifica-se ser de tal forma indissociável a relação entre a dignidade da pessoa e os direitos fundamentais que mesmo nas ordens normativas onde a dignidade ainda não mereceu referência expressa, não se poderá – apenas a partir deste dado – concluir que não se faça presente, na condição de valor informador de toda a ordem jurídica, desde que nesta estejam inerentes à pessoa humana. Com efeito, sendo correta a premissa de que os direitos fundamentais constituem – ainda que com intensidade variável – explicitações da dignidade da pessoa, por via de consequencia e, ao menos em princípio, em cada direito fundamental, se faz presente um conteúdo ou, pelo menos, alguma projeção da dignidade da pessoa.28 Portanto, ao conferir o status de princípio fundamental ao meio ambiente, o constituinte originário garantiu proteção a outros direitos essenciais para a existência dos seres humanos que fazem parte e concretizam o princípio da dignidade da pessoa humana. Os direitos fundamentais podem ser divididos em gerações ou dimensões, que têm a função de distinguir o momento histórico-jurídico, no qual o direito passou a ser tutelado. A primeira geração é composta pelos direitos de liberdade, ou seja, os direitos civis e políticos, que impõem ao Estado uma omissão, não podendo intervir nas liberdades do indivíduo. É o chamado status negativo de Jellinek, pelo qual a esfera das liberdades do indivíduo não está sob a tutela do Estado.29 Os direitos fundamentais de segunda geração são os chamados direitos de igualdade que correspondem aos direitos econômicos, sociais e culturais. O Estado não deve ser omisso, 27 Artigo 225 da Constituição Federal – “Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.” 28 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 89. 29 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 24 ed. São Paulo: Malheiros, 2009. 202 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições agindo de forma prestacional a garantir esses direitos aos indivíduos. Chamam-se status positivo, pois as pessoas têm o direito de exigir do Estado prestações positivas. 30 A terceira geração é composta pelos direitos coletivos, ou seja, aqueles que não pertencem ao indivíduo em si, mas a toda a coletividade (grupo de pessoas indeterminado), de modo que essa é a titular do direito, devendo o Estado proteger aquela e não o ser humano de forma isolada. Essa geração é composta pelo direito ao meio ambiente, à qualidade de vida, à autodeterminação dos povos, à defesa do consumidor, entre outros.31 O meio ambiente sadio é um dos princípios mais expressivos dessa última geração, pois a partir da proteção que lhe é dada, protege-se também a vida e a saúde. Por isso, o Estado tem o dever de obter mecanismos que minimizem os impactos negativos no meio ambiente. Nessa linha, constata-se que o meio ambiente ecologicamente equilibrado é um dever fundamental, pois o artigo 225 da Constituição Federal dispõe que o Poder Público tem o dever de defendê-lo e preservá-lo, para as presentes e as futuras gerações.32 Vale ressaltar que o artigo 5°, §1°33 confere aos direitos fundamentais eficácia imediata, ou seja, uma vez positivadas, não precisam de nenhuma regulamentação posterior que os torne eficazes. Portanto, a administração pública tem a obrigação de garantir que as normas referentes ao meio ambiente ecologicamente equilibrado sejam imediatamente aplicadas dando a elas máxima eficácia. O fundamento para tais atribuições do Poder Público é que, como direito de terceira geração, o equilíbrio do meio ambiente deve ter primazia sobre os direitos individuais, pois limitará a ação dos particulares, visando um benefício maior, o do bem-estar da sociedade. A coletividade também tem, de acordo com o princípio da solidariedade, o dever de proteger aquele direito. 3.3 O princípio da precaução e a função ambiental da propriedade Na era moderna, pensou-se que o homem tinha o controle de tudo e, por isso, poderia controlar suas ações e ter a verdadeira noção dos efeitos que estava produzindo. O risco abstrato foi percebido pela sociedade de risco, que verificou que o homem não podia controlar 30 Ibid. TEIXEIRA, Orci Paulino Bretanha. O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. 32 Ibid. 33 Artigo 5° da Constituição Federal de 1988 – “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: Parágrafo 1° - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.” 31 203 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições todas as consequências que suas ações produziriam na natureza. Com o advento da pós-modernidade, surgiu a sociedade de risco, na medida em que existem danos ambientais que não podem ser previstos, bem como o homem não tem como controlar as conseqüências de todas as suas ações. A crise ambiental fica cada vez mais alarmante como reflexo do descaso com a natureza e, por conseguinte, com a dignidade da pessoa humana. O princípio da precaução surge com a finalidade de proteger o risco que ainda não ocorreu. Não existe a certeza de que o dano será concretizado. Portanto, por meio desse princípio, existindo incerteza quanto à ocorrência de um prejuízo ao meio ambiente, deve-se aplicar o citado princípio, pois o interesse coletivo, representado pelo bem estar da sociedade a partir de um meio ambiente ecologicamente equilibrado deve prevalecer sobre o interesse do particular. No entanto, é importante ressaltar que a aplicação desse princípio não pode ser baseada em qualquer incerteza, mas sim quando houver uma dúvida plausível de que aquela ação poderá gerar danos ao meio ambiente ou à saúde humana, como por exemplo, a utilização de alimentos transgênicos, pois não se sabe qual é o seu potencial danoso. 34 Impõe, dessa forma, um meio de gerenciamento de riscos, cujo controle de aplicação, segundo Alexandra Aragão, dá-se por meio de “princípios gerais de gestão de riscos: proporcionalidade, não-discriminação, coerência, análise das vantagens e encargos e análise de evolução científica”. 35 Revela-se como “uma garantia material de realização efectiva do princípio do nível mais elevado de protecção ecológica”. 36(Destaque no original) Além da dimensão material, o citado princípio também conquista um viés instrumental, ao impor a utilização de medidas e de técnicas disponíveis para minimizar o dano ambiental, não obstante sua previsibilidade. Esse princípio tem uma enorme importância para o meio ambiente, pois quando a natureza sofre um dano, ela nunca se recuperará totalmente, mesmo que seja recriado o ambiente, reflorestadas as árvores, nunca mais aqueles recursos naturais serão os mesmos. A precaução é aplicada para que, diante de uma incerteza científica de dano, possa-se proteger o 34 ABREU, Lígia Carvalho. A análise do risco no contexto do princípio da precaução. Direito e Ambiente. Lisboa, ano I, n. 1, p. 159-170, out./dez. 2008. 35 ARAGÃO, Maria Alexandra de Sousa. O princípio do nível elevado de protecção e a renovação ecológica do direito do ambiente e dos residuos. Coimbra: Almedina, 2006, p. 264. 36 Ibid., p. 265. 204 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições 37 meio ambiente, pois na dúvida , esse deve prevalecer. Sobre o tema, expõe Teresa Lopez: [...] Princípio da precaução é aquele que trata das diretrizes e valores do sistema de antecipação de riscos hipotéticos, coletivos ou individuais, que estão ameaçar a sociedade ou seus membros com danos graves e irreversíveis e sobre os quais não há certeza científica; esse princípio exige a tomada de medidas drásticas e eficazes com o fito de antecipar o risco suposto e possível, mesmo diante da incerteza.38 Destaca Aragão que o princípio da precaução não “é um princípio de medo ou de irracionalidade”, como apontam alguns doutrinadores. Ao contrário, defende a autora lusitana que a precaução se trata “de um princípio racional e tipicamente fundado na responsabilidade pelo futuro”. Diante dos riscos, é preciso a construção de um “Plano B”, pois o “Plano A” não se revela mais suficiente para atender às necessidades da sociedade hodierna. 39 A Constituição brasileira de 1988 previu em seu artigo 5°, incisos XXII e XXIII, a garantia ao direito de propriedade vinculado a sua função social. Com o advento do Código Civil de 2002, percebeu-se uma prevalência do interesse público sobre o privado, prevendo também que a propriedade deveria cumprir com a sua função social. O artigo 1228 da citada lei civil dispõe: Artigo 1228 - O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que seja injustamente a possua ou a detenha. § 1º. O direito de propriedade deve ser exercitado em consonância com suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas. (destacado) Diante da leitura do dispositivo supracitado, verifica-se uma revolução no direito de propriedade, uma vez que a mesma deve atender a sua função social, ou seja, só se pode falar em direito de propriedade, se mencionar a função social e ambiental. Essas não se caracterizam como um ônus para o proprietário, mas sim fazem parte da própria estrutura da propriedade, podendo até dizer que a função social faz parte do regime jurídico da propriedade.40 Observe-se que não se trata de mera previsão formal da função social da propriedade, como prescrita no Código Civil de 1916. A atual lei civil detalha a função social da propriedade, na medida em que vincula o direito de propriedade à proteção à flora, à fauna, à 37 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Protecção do ambiente e direito de propriedade: crítica de jurisprudência ambiental. Coimbra: Coimbra, 1995. 38 LOPEZ, op. cit., p. 103. 39 ARAGÃO, Maria Alexandra de Sousa. Princípio da precaução: manual de instruções. Revista do Centro de Estudos de Direito do Ordenamento, do Urbanismo e do Ambiente (RevCEDOUA), n. 11, Faculdade de Direto da Universidade de Coimbra, p. 9-53, Coimbra, 2008, p. 14-15. 40 SILVA, op. cit. 205 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições preservação das belezas naturais, à manutenção do equilíbrio ecológico e a preservação patrimônio histórico e artístico, assim como o uso da propriedade em consonância com as determinações da legislação ambiental. Trata-se de verdadeira atribuição de função ambiental à propriedade, que pode ser definida como a restrição do exercício do direito de propriedade ao “conjunto de atividades que visam garantir a todos o direito constitucional de desfrutar um meio ambiente equilibrado e sustentável, na busca da sadia e satisfatória qualidade de vida, para a presente e futuras gerações”.41 Oportuna a lição de Guilherme Figueiredo ao afirmar que “o que parece inadmissível, no exame da dimensão ambiental da função social da propriedade, é ignorar que esse princípio integra o direito de propriedade e é dotado de eficácia plena.” 42 (destaque no original) O Código Civil traz uma cláusula aberta em prol do meio ambiente ao assegurar que a função ambiental deve ser garantida também de acordo com a legislação especial e não apenas com os componentes trazidos na redação literal do diploma normativo. A cláusula tem dupla dimensão, impondo o dever negativo de evitar prejuízo a terceiros e à qualidade do meio ambiente e o dever positivo de adotar práticas que preservem a saúde do meio ambiente. Dessa forma, o princípio da precaução se manifesta na função ambiental da propriedade como instrumento para a sua efetivação, pois a precaução analisará as ações que poderão ou não causar danos ao ambiente, devendo ser aplicada nos casos em que houver uma incerteza científica plausível quanto ao potencial de determinada ação gerar um prejuízo. Ocorre que o meio ambiente, suas dimensões, conceitos e objeto, estão em constante transformação, em virtude da liquidez dos conceitos e das incertezas científicas, estando, assim, aberto para as alterações que a sociedade sofre, por isso chamado de cláusula aberta, como assim ensina Orci Teixeira: [...] esta fundamentabilidade decorre do fato de serem os direitos fundamentais elementos basilares da Constituição, o que permite a abertura para outros direitos não constantes de seu texto. Diante dessa condição, o direito ambiental brasileiro é um sistema aberto e em evolução, o que impede o seu engessamento e a 41 SANT´ANNA, Mariana Senna. Planejamento urbano e qualidade de vida: da Constituição Federal ao plano diretor. In Direito Urbanístico e Ambiental. DALLARI, Adilson Abreu; DI SARNO, Daniela Campos Libório (coord.). Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 153. 42 FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de. A propriedade no Direito Ambiental. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 95. 206 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições cristalização de seus princípio e conceitos. E, em razão da sua finalidade, o núcleo do direito fundamental ao ambiente sadio – a sadia qualidade de vida – determina as suas dimensões ou dupla perspectiva.43 A partir dessa característica do direito ambiental, pode-se concluir que a mesma incide sobre a função ambiental da propriedade, no que diz respeito à aplicação do princípio da precaução, pois aquela também é uma cláusula aberta, que poderá ter seu conteúdo alterado. À medida que o Direito evolui de forma a se adequar ao contexto social, o princípio da precaução revela-se como um agente que preencherá não apenas as lacunas, mas o próprio conteúdo da função ambiental. É de notar, ainda, que a precaução é utilizada não apenas em seu caráter instrumental, mas também substancial, ou seja, de acordo com o caso concreto irá avaliar se há incerteza jurídica plausível, verificando se a propriedade está ou não cumprindo com sua função ambiental. Em verdade, quanto mais se estuda a propriedade e o meio ambiente, como institutos jurídicos, percebe-se uma relação reflexiva e complexa entre eles, na medida em que um provoca transformações estruturais e qualitativas no outro. CONCLUSÃO O direito ao meio ambiente sadio é caracterizado no direito brasileiro como um direito fundamental de terceira geração, do qual decorrem inevitáveis restrições ao exercício do direito de propriedade. Referidas limitações ocorrem porque o meio ambiente sadio também se revela como um dever fundamental, o que acarreta na necessidade do atendimento a obrigações negativas e positivas ao proprietário. Verifica-se que a função social possui um conteúdo ambiental de forma a impor ao proprietário deveres de proteção ao meio ambiente sadio. Em virtude das incertezas científicas e da liquidez dos conceitos, o princípio da precaução se revela como um importante mecanismo de caráter instrumental e material para o preenchimento do conteúdo da função social da propriedade em defesa da sustentabilidade. Como se vê, a imbricada relação da propriedade com o meio ambiente demanda intensa investigação científica. Trata-se de um conjunto de feixes com obrigações, deveres, institutos, valores, tudo interligado de forma complexa, uma vez que a sustentabilidade se torna uma função essencial do direito de propriedade, podendo a mesma ser materializada por meio de uma típica função ambiental da propriedade. 43 TEIXEIRA, op. cit. 207 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições O princípio da precaução, um dos basilares do Direito Ambiental, ao lidar com um risco abstrato oriundo das incertezas científicas, agirá para a efetivação da função ambiental da propriedade, pois o direito ao meio ambiente é aberto, ou seja, está em processo de transformação e evolução, podendo modificar o conteúdo dos seus institutos. É de se verificar, pois, que a precaução preencherá, de acordo com o caso concreto, não apenas as lacunas existentes na função social, mas o próprio conteúdo da função ambiental da propriedade de forma a analisar se a mesma está ou não sendo cumprida pelo proprietário com vistas a alcançar a sustentabilidade. REFERÊNCIAS ABREU, Lígia Carvalho. A análise do risco no contexto do princípio da precaução. Direito e Ambiente. Lisboa, ano I, n. 1, p. 159-170, out./dez. 2008. ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 8.ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005. ARAGÃO, Maria Alexandra de Sousa. O princípio do nível elevado de protecção e a renovação ecológica do direito do ambiente e dos residuos. Coimbra: Almedina, 2006. ______. Princípio da precaução: manual de instruções. Revista do Centro de Estudos de Direito do Ordenamento, do Urbanismo e do Ambiente (RevCEDOUA), n. 11, Faculdade de Direto da Universidade de Coimbra, p. 9-53, Coimbra, 2008. BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. 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Embora o modelo neoliberal tenha alcançado a hegemonia no mundo, não conseguiu solucionar os graves problemas sociais, culturais e econômicos da humanidade, o que resulta na necessidade da atuação positiva do Estado para a efetivação dos direitos humanos, das oportunidades sociais e do acesso aos espaços públicos de discurso e de poder, como forma de conter as erosões do meio ambiente e da cultura. Nessa direção a Constituição brasileira de 1988, inspirada na doutrina dos direitos humanos, proclamou no artigo 225 que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Ao fazê-lo instituiu um novo paradigma no tocante à propriedade privada, adequado às necessidades deste inicio de século. Com efeito, não mais é possível viver como se fossemos a última geração sobre a terra. Precisamos estabelecer um novo compromisso com o planeta em que vivemos. PALAVRAS-CHAVE: Meio Desenvolvimento sustentável. ambiente; Propriedade privada; Diversidade cultural; ABSTRACT: The evolution of the concept of private property incorporating principles of public policy, so that the contemporary conception of this important legal principle can only be designed taking into account the environmental dimension of the property should have and has, within a development perspective, guaranteeing compliance to a healthy environment and cultural diversity among peoples. Although the neoliberal model reached the hegemony on the world, it couldn't solve the serious social, cultural and economic problems of the humanity, what results in the necessity of the positive action of the State to the effectuation of the human rights, the social opportunities and the access of the public spaces of speech and power, as a way of contain the erosions of the environment e culture. In this direction the Brasilian Constitution of 1988, inspired by the doctrine of human rights, proclaimed in Article 225 that everyone is entitled to an ecologically balanced environment. In so doing established a new paradigm about private property, appropriate to the needs of this beginning of century. Indeed, it is no longer possible to live as if we were the last generation on earth. We need to establish a new commitment to the planet we live on. KEY-WORDS: Environment, Private property, Cultural diversity, Sustainable development. 1 Mestre e Doutoranda em Direito - Universidade Gama Filho – Rio de Janeiro. Professora de Direito Ambiental da Pós-graduação Latu Sensu da Unaés-Anhanguera. Advogada em Campo Grande-MS. E-mail: [email protected]. A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições INTRODUÇÃO Ao introduzir a obra “A condição humana”, Arendt (1997, p. 9) menciona o lançamento ao universo do satélite que, durante algumas semanas, girou em torno da terra “segundo as mesmas leis de gravitação que governam o movimento dos corpos celestes”, embora não fosse sol, lua ou estrela. Para Arendt (1997), este evento, à época (1957), ultrapassa em importância todos os outros, até mesmo a desintegração do átomo. O curioso, porém, segundo a historiadora, é que a reação não foi de orgulho nem assombro ante a enormidade da força e proficiência humanas, mas alívio, por ter sido dado o “primeiro passo para libertar o homem de sua prisão na terra”. Hoje, decorridos mais de meio século deste acontecimento, o desejo da humanidade de “não permanecer para sempre presa a terra”, adquire status de urgência, não mais na perspectiva triunfalista de superação da natureza, mas na de possibilidade de sobrevivência da espécie racional, ante a destruição iminente do ambiente em que vivemos. Hobsbawn (1995, p. 562) alerta que “as forças geradas pela economia tecnocientífica são agora suficientemente grandes para destruir o meio ambiente, ou seja, as fundações materiais da vida humana”. Mooney (2002, p. 29), por sua vez, elege como “grande conflito” de nosso tempo, o fato de que o formidável avanço tecnológico não impediu a concentração da riqueza nas mãos de um sexto da população mundial: “que tem se beneficiado do progresso científico, tecnológico e da apropriação da maior parte dos recursos naturais finitos, deixando para a maioria a degradação do meio ambiente e a ampliação do fosso entre pobres e ricos”. Nesse contexto, o presente artigo tem por escopo analisar o processo de concentração da “expansão exponencial de nossa capacidade tecnológica” (HOBSBAWM, 1995, p. 564), nas mãos de uma minoria, que relega a maioria da humanidade às poluídas periferias das grandes cidades, verificando em que medida pode continuar a ser considerada válida a já clássica visão acerca da garantia dos direitos fundamentais da pessoa humana, em especial os direitos humanos de primeira geração (BOBBIO, 1992), o direito à vida e à liberdade, enquanto vinculados a um “não agir” do Estado, a uma atuação negativa do ente estatal. Para desenvolver esta reflexão, estabelecemos como paradigma analítico a hipótese de que a propriedade privada, um dos pilares de sustentação do modo de produção capitalista, não mais pode ser considerada como um valor absoluto, só estando legitimada quando contemplada sua dimensão ambiental. 211 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições 2 DESAFIOS DA HUMANIDADE E DO ESTADO CONTEMPORÂNEO Neste inicio de século, a humanidade depara-se com um inolvidável paradoxo: se, de um lado, o modelo neoliberal alcançou a hegemonia no mundo ocidental, de outro lado, as desigualdades sociais, econômicas e culturais aprofundam-se, apontando para a necessidade da atuação positiva do Estado, até mesmo para a garantia de direitos que, até então, acreditava-se dependentes da omissão estatal, como é o caso do direito à liberdade. Sem (2000, p. 54) apresenta estudos empíricos discorrendo sobre o que chamou de “liberdades instrumentais”, que seriam aquelas que contribuem, direta ou indiretamente, para as liberdades globais que as pessoas têm para viver como desejariam, e, dentre estas, destaca as oportunidades sociais: Oportunidades sociais são as disposições que a sociedade estabelece nas áreas de educação, saúde, etc., as quais influenciam a liberdade substantiva de o individuo viver melhor. Essas facilidades são importantes não só para a condução da vida privada (como por exemplo, levar uma vida saudável, livrando-se de morbidez evitável e de morte prematura), mas também para uma participação mais efetiva em atividades econômicas e políticas. Por exemplo, o analfabetismo pode ser uma barreira formidável à participação em atividades econômicas que requeiram produção segundo especificações ou que exijam rigoroso controle de qualidade (uma exigência sempre crescente no comércio globalizado). Sem (2000, p. 58) aponta o Japão como exemplo pioneiro de intensificação do crescimento econômico por meio da oportunidade social, através da educação básica e, a seguir, traça um paralelo entre o desenvolvimento na China e na Índia. Destaca os resultados notáveis alcançados pela primeira em grande parte pelo investimento na educação, que levou a população da China, assim como de outros países asiáticos, ao aproveitamento das oportunidades econômicas oferecidas por um sistema de mercado propício. O direito à educação, no entanto, apresenta-se à humanidade ainda como um desafio, um objetivo a ser perseguido. Nesse sentido, importante foi o reconhecimento do direito à educação como integrante do “direito ao desenvolvimento” pela Conferência Mundial dos Direitos Humanos, realizada em Viena, de 14 a 25 de junho de 1993, um “direito universal, inalienável, e parte integrante dos direitos humanos fundamentais” (Artigo 10 da Carta de Viena). Nesse tocante, Alves (2007, p. 29) destaca que os Estados Unidos vinham votando sistematicamente contra a inclusão do direito ao desenvolvimento entre aqueles considerados fundamentais. A flexibilização desta postura possibilitou a inclusão do conceito de que “a pessoa humana é o sujeito central do desenvolvimento”, e de que “a falta de desenvolvimento 212 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições não pode ser invocada para justificar limitações aos (outros) direitos humanos reconhecidos internacionalmente” na Declaração de Viena. O século XXI tem suscitado este debate acerca da necessidade da atuação positiva do Estado, inclusive no tocante à garantia daqueles direitos que pareciam depender do “não agir” do Estado para que pudessem ser efetivados. Esse é o pano de fundo da discussão proposta por Owen M. Fiss (2005), na obra “A ironia da liberdade de expressão”, quando nos convida a repensar o papel do Estado na garantia do direito à liberdade de expressão, e nos alerta que a omissão pode significar um “efeito silenciador” da voz de grupos considerados minoritários na sociedade, o que fere de morte a diversidade e a o pluralismo do debate público (FISS, 2005, p. 48-49). A questão não é simples, pois a regulação estatal em matéria de liberdade de expressão pode resultar em um ingrediente de arbitrariedade na escolha do Estado quanto ao discurso de um grupo, em detrimento do outro. Eu acredito que algo mais está envolvido, todavia. O Estado não está tentando arbitrar os interesses discursivos dos vários grupos, mas, ao contrário, está tentando estabelecer precondições essenciais para a autogovernança global, assegurando que todos os lados sejam apresentados ao público. Se isso pudesse ser realizado simplesmente pelo fortalecimento os grupos desfavorecidos, o objetivo do Estado seria alcançado. Mas nossa experiência com programas de ação afirmativa e outros similares nos ensinou que a questão não é tão simples. Algumas vezes nós devemos reduzir as vozes de alguns para podermos ouvir as vozes dos outros. A intervenção do Estado em matéria de direitos fundamentais, portanto, é bastante delicada, havendo uma linha tênue entre a possibilidade de coexistência dos princípios de direitos fundamentais, especialmente quando parecem estar em rota de colisão dois ou mais princípios. Esta discussão segundo Dworkin (1978, p. 44), “é hoje o coração das Constituições”, e é dentro dessa abordagem que pretendemos contribuir com a reflexão acerca da aparente dicotomia entre o direito à propriedade e os princípios constitucionais ambientais. 3 A PROPRIEDADE E O MEIO AMBIENTE O direito à propriedade, com efeito, foi concebido nos séculos XVII, XIX e início do século XX dentro de uma visão não intervencionista do Poder Público, que somente deveria agir para proteger os titulares da propriedade privada, um dos pilares mais importantes, verdadeiro sustentáculo do sistema capitalista. O direito civil, historicamente, tem servido à 213 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições proteção dos interesses do proprietário, de tal forma, que Paolo Grossi chegou a apontar o Código como um dos mitos jurídicos da modernidade, um verdadeiro “catecismo” da grande antítese jusnaturalista, a mais grave e pesada antítese da história do direito moderno. Segundo Grossi (2004, p. 129), “se o Código fala a alguém, esse alguém é a burguesia que fez a revolução e que finalmente realizou a sua plurissecular aspiração à propriedade livre da terra e à sua livre circulação”. E, prossegue: O Código fala ao coração dos proprietários é, sobretudo, a lei tuteladora e tranqüilizadora da classe dos proprietários, de um pequeno mundo dominado pelo „ter‟ e que sonha em investir as próprias poupanças em aquisições fundiárias (ou seja, o pequeno mundo da grande comédie balzaquiana) (GROSSI, 2004, p. 129). Desde sua gênese, esse Código faz emergir um fenômeno, contraditório em sua pretensão finalística, que seria a de realizar o projeto da burguesia, de pleno acesso à titulação da propriedade. Com o passar do tempo, o Código não pôde mais fazer ouvidos mouros à constitucionalização do direito civil, de modo que a intervenção estatal sobre o instituto da propriedade passa a ser cada vez mais significativa, até que hodiernamente a função social está sendo apontada pelos doutrinadores como verdadeiro “atributo da propriedade”. Nesse diapasão, é importante refletir até que ponto a “função social” atribuída à propriedade pela Constituição Federal de 1988 enquanto direito fundamental, tem influenciado concretamente a atuação do Estado, verificando se este tem definido um marco regulatório, tendente à efetivação do que está proclamado no artigo 225 da Constituição Federal, no sentido de que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”. Quais medidas têm sido adotadas nessa direção? Estariam os latifundiários sofrendo limitações concretas impostas pelas normas de proteção ambiental? Benjamin (2006) alerta quanto à sagacidade dos proprietários, ao reagirem contra os efeitos que o artigo 225 da Constituição Federal vem produzindo no instituto jurídico da propriedade privada: Os degradadores descobriram que, em vez de procederem com atos frontais de desrespeito às normas ambientais existentes, lhes era mais fácil e lucrativo espoliar o meio ambiente simplesmente brandindo seu direito de propriedade, fazendo uso da técnica – no mais, absolutamente legítima – da desapropriação indireta. [...] Em torno dessa matriz patológica de conduta, estima-se que só o Estado de São Paulo já tenha sido condenado em mais de 2 bilhões de dólares, montante que certamente daria para adquirir, a preços de mercado, boa parte das unidades de conservação do Brasil! [...] Por que e como chegamos a esse extremo de descaso para com o patrimônio público (recursos financeiros e ambientais)? Quais as condições materiais, humanas e normativas que propiciaram a utilização 214 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições capciosa (em alguns casos, verdadeiramente criminosa) de institutos jurídicos tão importantes como o direito de propriedade e a desapropriação indireta? A atuação do Estado no que se refere à tutela ambiental da propriedade, portanto, reclama muito mais do que atuações pontuais referentes à autorização para a instalação de atividades de impacto ambiental considerável, ou a instituição de unidades de proteção, ultrapassando em larga escala o que se tem feito no tocante à aplicação e à fiscalização das normas ambientais. Atualmente, percebemos que a proteção ao meio ambiente, cujo equilíbrio ecológico mereceu salvaguarda constitucional, passou a integrar o próprio conceito de propriedade, como corolário da função social que a propriedade obrigatoriamente deve ter e tem, conforme registrou Gama (2008, p. 51): A idéia da função social como uma limitação à propriedade, portanto, não deve mais ser reconhecida como correta. Hoje, com base nos arts. 5º., XXIII, 170,III, 182, parágrafos 2º. e 4º., 184 e 186, da Constituição Federal, deve-se reconhecer que a função social integra a propriedade; a função social é a propriedade, e não algo exterior ao direito de propriedade. E, uma vez não cumprida a função social, o direito de propriedade será esvaziado (grifos nossos). Avançando ainda mais nessa linha de argumentação, defendemos a idéia de que também passa a integrar o conceito de propriedade, enquanto espécie do gênero função social, um novo conceito: a função ambiental. Isto em decorrência da adoção pelo sistema constitucional do principio de que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, cabendo ao Estado e à sociedade o dever de preservá-lo para as presentes e futuras gerações. A constitucionalização dessa matéria impõe um novo modo de apropriação de bens, conforme destaca Ayala (2010, p. 293): A obrigação de defesa do meio ambiente e a função social da propriedade condicionam a forma de valoração dos bens para a finalidade de apropriação. Definem uma nova modalidade de apropriação dos bens, que complementa o sentido econômico, fazendo com que seja integrada à dimensão econômica uma dimensão que poderia ser chamada de dimensão de apropriação social. [...] Nessa perspectiva, qualquer relação de apropriação deve permitir o cumprimento de duas funções distintas: uma individual (dimensão econômica da propriedade), e uma coletiva (dimensão socioambiental da propriedade). Esta dimensão socioambiental da propriedade, é um dos mais importantes desafios que estão colocados para o Estado e para a sociedade contemporânea, não podendo estar restrito às ações de secretarias especificas de defesa do meio ambiente, nos âmbitos estadual e municipal, mas devendo irradiar sobre todas as políticas públicas a serem implementadas nas diversas esferas governamentais, em especial a política educacional. Não se pode admitir que, na atualidade, os currículos oficiais deixem de contemplar a problemática ambiental. Também 215 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições não se pode justificar a aquisição da propriedade, ou sua manutenção, sem que a dimensão ambiental esteja contemplada. Nesse sentido, prossegue Ayala (2010, p. 293): O principio da função social da propriedade se superpõe à autonomia privada, que rege as relações econômicas, para proteger os interesses de toda a coletividade em torno de um direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Somente a propriedade privada que cumpra a sua função social possui proteção constitucional. Daí ser forçoso concluir que o desrespeito ao meio ambiente deslegitima o sistema de apropriação, abrindo-se toda uma gama de possibilidades tanto para a sociedade quanto para o Estado, no que se refere ao não exercício da função ambiental da propriedade privada. Esta dimensão socioambiental justifica-se, dentre outros argumentos, porque a degradação ambiental e o aniquilamento da diversidade cultural são faces de uma mesma moeda, na qual o planeta e a humanidade sempre saem como perdedores. 4 DEGRADAÇÃO AMBIENTAL E CULTURAL A degradação do meio ambiente caminha a passos largos, na medida em que avança o processo de globalização, derrubando as fronteiras da diversidade cultural entre os povos, uniformizando-se o modo de expressão dos sentimentos humanos. Compõe-se um amálgama no qual vão se perdendo os valores que diferenciam as nações, reduzindo-se a multiplicidade do mundo social a uma unidade que se pretende global. O fim das disputas ideológicas que marcaram o século XX levou à hegemonia do neoliberalismo, o que faria supor que o “fim da história”, anunciado por Francis Fukuyama (1989), ao menos no sentido hegeliano do tema, desembocaria em um período de tranqüilidade no cenário mundial, resultando em mais desenvolvimento e mais paz social. Não foi, no entanto, o que ocorreu. Os ataques suicidas a alvos civis nos Estados Unidos da América, no dia 11 de setembro de 2001, e que culminaram com a derrubada das chamadas “Torres Gêmeas”, símbolo da prosperidade americana, parece ter exposto uma ferida da chamada “ordem mundial” (ALBUQUERQUE, 1995). O desemprego atingiu índices inimagináveis na Europa e nos EUA, e a concentração de renda nos países periféricos continua a relegar milhares de pessoas a um estado de absoluta miséria. Nessa conjuntura, o instituto da propriedade privada, enquanto pilar de sustentação do modelo neoliberal vem sofrendo significativos abalos. No segundo volume da obra “O capital” Marx (1994, p. 885) já alertava que a economia política confunde duas espécies muito distintas de propriedade: a que se baseia sobre o trabalho do próprio produtor, e a sua antítese direta: a que se fundamenta na exploração do trabalho alheio, e concluía que esta só cresce sobre o túmulo daquela. Segundo o autor alemão, cuja obra continua a ser um 216 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições importante referencial no estudo das ciências humanas e sociais, na “velha” Europa, a expropriação do trabalhador de suas condições de trabalho, estabelecendo-se a coexistência entre capital e trabalho assalariado, foi possível graças a um contrato social de espécie muito peculiar, através do qual a humanidade adotou um método simples para incentivar a acumulação do capital, dividindo-se em proprietários de capital e proprietários de trabalho. Nas palavras de Marx (1984, p. 885), “em suma, a massa da humanidade expropriou-se a si mesma, imolando-se à acumulação do capital”, o que seria resultado de um entendimento voluntário, de uma combinação. O capitalismo, no entanto, em sua fase neoliberal utiliza novas formas de sobrevivência, porém, sem alterar o modo de produção que possibilita a concentração das riquezas e, em especial, da propriedade privada, nas mãos de poucos. Faz parte da globalização a instituição de um “padrão de consumo” que atravessa fronteiras geográficas, e parece uniformizar o que se produz, o que se usa e o que se sonha. A diversidade cultural está sendo atingida nesse processo, conforme destaca Mooney (2002, p. 27): Talvez alguém se surpreenda pelo fato de que o desaparecimento de espécies e sistemas siga pelo mesmo caminho que a perda de línguas, cultura e conhecimento. Na realidade, surpreendente seria se não fosse assim. Essas erosões do meio ambiente e da cultura nunca poderiam ocorrer se não fossem precedidas por uma erosão da equidade. As conclusões de Mooney estão fundamentadas em dados assustadores, dentre os quais destacamos os seguintes: Não menos de 4000 e possivelmente até 90.000 espécies são extintas a cada ano; As selvas tropicais estão desaparecendo a um ritmo de quase 1% ao ano; a diversidade genética das culturas está desaparecendo a um ritmo de aproximadamente 2% ao ano; [...] Estamos destruindo os solos pelo menos 13 vezes mais rapidamente do que o tempo necessário para recuperá-los; a cada ano se extinguem 2% das línguas do planeta; mais de 80% de todos os livros traduzidos são traduzidos para apenas quatro línguas européias [...] (MOONEY, 2002, p. 27). Com efeito, a deterioração cultural e ambiental têm sido traços marcantes do mundo atual, no qual podem ser vislumbrados muitos cenários de aniquilação, conforme alertou Henderson (1996, p. 12), que vão “desde holocaustos nucleares e biológicos até ameaças mais lentas e insidiosas, tais como lixo tóxico, a decadência urbana, a desertificação e a mudança do clima”. No Brasil, a situação não é diferente. Dias (2002, p. 20) aponta como exemplo disso o que vem ocorrendo no Distrito Federal: em apenas 40 anos de existência, sua cobertura vegetal foi reduzida a apenas 15%, e as conseqüências desse “crescimento” desregrado são: “escassez de água projetada, clima hostil (no período seco a umidade do ar chega a apenas 8%), desemprego, exclusão social e violência”. 217 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições O avanço da degradação é sustentado pelo modo de produção atualmente vigente nos países ocidentais, favorecido pelo “analfabetismo ambiental”, que, segundo Dias (2002, p. 85)[2] “representa a maior ameaça à sustentabilidade da civilização humana”, e o antídoto possível compreende necessariamente a atuação do Estado e, mais que isso, a atuação da comunidade internacional. A internacionalização da questão ambiental está pautada na Agenda Internacional, conforme destacou Alves (2007, p. 2): As razões que levaram à aceitação generalizada da questão do meio ambiente como tema global são fáceis de apreender. A camada de ozônio, o ar que respiramos, os mares internacionais não têm fronteiras. A degradação ambiental dentro de um território, além de ameaçar a população local, ultrapassa facilmente os limites traçados em qualquer documento político-diplomático. O desflorestamento incontrolado e a desertificação, assim como a poluição atmosférica, dispõem de „extraterritorialidade‟ por sua própria natureza. Dentro deste contexto, emerge a necessidade de um novo e urgente tratamento a ser dispensado pelo Estado à relação existente entre meio ambiente e propriedade privada. Muitos dos problemas enfrentados na atualidade em relação a danos ambientais decorrem do uso irresponsável dos recursos naturais pelos proprietários. Benjamin (2006, p. 7) destaca o que chamou de “promiscuidade” ontológica e legal entre os dois institutos: De fato, direito de propriedade e meio ambiente são institutos interligados, como que faces de uma mesma moeda; nesse sentido, não seria incorreto dizer-se que o Direito Ambiental é fruto de uma amálgama do Direito das Coisas com o Direito Público. Com isso queremos mostrar que qualquer tutela do meio ambiente implica sempre interferência (não necessariamente intervenção, como abaixo veremos) no direito de propriedade. Interferência essa que, no sistema jurídico brasileiro, mais do que meramente facultada ou tolerada, é, na origem constitucional, imposta, tanto para o Poder Público (trata-se de comportamento vinculado), como para o particular (é comportamento decorrente de função); eis o fundamento da inafastabilidade das obrigações ambientais. Esta necessidade está a justificar a relevância do tema proposto neste artigo: a dimensão ambiental que o Estado deve dispensar à propriedade neste início de milênio, estabelecendo um novo paradigma para a propriedade privada. Não há mais como se pensar o instituto jurídico da propriedade, enquanto mero direito de usar, gozar e dispor; há que se reconhecer que a propriedade deve ser, necessariamente, plasmada nos princípios que norteiam o direito ambiental, daí propormos como conceito de propriedade: a faculdade do uso, gozo e disposição da terra de acordo com as normas de proteção ambiental. Este novo paradigma apresenta-se como indispensável para a sobrevivência da espécie humana sobre a terra, a fim de que possamos sobreviver nesta já tão sofrida “casa planetária” (SÉGUIN, 2002, 218 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições p. 16). 5 O FENÔMENO DA PUBLICIZAÇÃO DA PROPRIEDADE O direito civil, historicamente, tem se apresentado como “o mais difícil a ser controlado nas malhas do poder” (GROSSI, 2004, p. 114). Mas, ainda assim, vem sofrendo mudanças significativas, que merecem ser aqui assinaladas, sob uma perspectiva histórica. Logo após a Revolução Francesa, surgiram dois importantes movimentos, que pareciam inconciliáveis entre si: o das codificações, que contribuiu para a primazia do interesse privado sobre o interesse público, e que representava, naquele momento, uma vitória da burguesia, em sua tentativa de empoderamento e de aquisição da propriedade privada, até então reservada à nobreza; e o da constitucionalização, encarregado de limitar a esfera de atuação do Estado. Nesse contexto, Estado e propriedade privada eram dois institutos jurídicos situados em pólos opostos: o Estado, no âmbito do direito público; a propriedade, no do direito privado. Bobbio (1995, p. 13) destaca que, através do uso constante e contínuo das expressões direito público e privado, esta acabou por se transformar em uma das “grandes dicotomias”, distinção da qual se pode demonstrar a capacidade de dividir um universo em duas esferas, conjuntamente exaustivas. E, prossegue: Um dos eventos que melhor do que qualquer outro revela a persistência do primado do direito privado sobre o direito público é a resistência que o direito de propriedade opõe à ingerência do poder soberano, e, portanto ao direito por parte do soberano de expropriar (por motivos de utilidade pública) os bens do súdito. Mesmo um teórico do absolutismo como Bodin considera injusto o príncipe que viola sem motivo justo e razoável a propriedade de seus súditos, e julga tal ato uma violação das leis naturais a que o príncipe está submetido ao lado de todos os outros homens (BOBBIO, 1995, p. 23). Nesse momento, a esfera privada adquire grande relevância em relação à esfera pública, e o Estado é reduzido ao mínimo. Mas, a reação a essa concepção liberal vem com grande força na segunda metade do século XX, trilhando o caminho inverso ao da emancipação da sociedade civil em relação ao Estado, cuja intervenção na regulação da economia e dos comportamentos individuais passa a ser reclamada, na esteira dos ventos que sopram do Leste e sob a influência das idéias do Welfare State. A liberdade de contratar e o direito de propriedade passam a ser limitados por princípios considerados de ordem pública (PEREIRA, 1997, p. 13-14), ocorrendo o fenômeno da publicização do direito privado, e, nesse movimento, a relativização do direito de propriedade. 219 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições A esfera do direito privado vê-se como que “invadida” por princípios de ordem pública, e, nesse contexto, emerge a “agonia”[3] do Código Civil, e a “crise” de seus tradicionais institutos, dentre os quais, a propriedade privada. Savatier (1959, p. 286) chega a enxergar nesse processo uma prolètarization do direito privado, uma associação interessante entre idéias essencialmente liberais com outras socializantes. O Estado adquire especial relevância, passando a ter o dever de prestar obrigações específicas, especialmente no que se refere à saúde e à educação (LOPEZ y LOPEZ, 1996)[4]. Mais recentemente, no âmbito do direito brasileiro, a partir da Constituição de 1988, o Estado passa a ter, também, a obrigação positiva de garantir a todos o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. E é nessa perspectiva que se mostra imprescindível entender o fenômeno de publicização do direito civil, que abrange o instituto jurídico da propriedade privada, a partir do qual esta passa a ser inserida no contexto de sua obrigatória função social, sem a qual não mais pode subsistir. A dicotomia entre o direito público e o privado vem sendo relativizada (TRABUCCHI, 1973)[5], e alguns doutrinadores chegam até mesmo a sugerir a unificação dos dois ramos do direito, tendo como sustentáculo a Constituição, que passaria a regular diretamente as relações privadas (PERLINGERI, 1997, p. 54)[6]. Outros propõe a visão do fenômeno jurídico a partir de dois focos centrais de força normativa, distintos, mas não estanques entre si[7]. A esse respeito, Barroso (2010, p. 60) assevera: O debate jurídico e filosófico da atualidade deslocou-se da diferenciação formal entre direito público e direito privado para uma discussão mais ampla, complexa e sutil acerca das esferas pública e privada na vida dos povos e das instituições. A percepção da existência de um espaço privado e de um espaço público na vida do homem remonta à Antiguidade, no mínimo ao advento da polis grega. Aristóteles já afirmava a diferença de natureza entre a cidade, esfera pública, e a família, esfera privada. A demarcação desses dois domínios tem variado desde então, no tempo e no espaço, com momentos de quase desaparecimento do espaço público e outros que em sua expansão opressiva praticamente suprimiu valores tradicionais da vida privada. As constituições modernas influenciam e sofrem a influência dessa dicotomia, que guarda, no entanto, algumas dimensões metajuridicas, isto é, fora do alcance do Direito. O tema merece uma reflexão interdisciplinar. A Constituição brasileira foi extremamente influenciada por esse movimento de supremacia do poder público sobre o privado, e ousou regular assuntos anteriormente adstritos à esfera individual, como é o caso da família, da criança e do adolescente e da propriedade privada. Não bastasse isso, os princípios constitucionais passaram a “condicionar a própria leitura e interpretação dos institutos de direito privado. A dignidade da pessoa humana assume sua dimensão transcendental e normativa” (BARROSO, 2010, p. 60). E, na 220 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições medida em que a pessoa humana, para viver a sua dignidade, precisa de um meio ambiente ecologicamente equilibrado, o exercício do direito à propriedade privada, só pode ocorrer na medida em que atenda à função social e ambiental. Pontuar esse debate é, portanto, importante para a compreensão das transformações sofridas pelo instituto jurídico da propriedade privada ao longo dos dois últimos séculos, de modo que atualmente o direito de propriedade só pode ser entendido enquanto plasmado no direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. A Constituição brasileira, nesse tocante, é exemplo vivo desta afirmativa: no Titulo VII, capítulo 1, que trata dos “princípios gerais da atividade econômica”, o artigo 170 destacou que a ordem econômica tem por fim assegurar a existência digna, conforme os ditames da justiça social, devendo ser observados princípios, dentre os quais, o da propriedade privada (inciso II) e o da função social da propriedade (inciso III). Conciliar-se estes princípios, no entanto, não é tarefa fácil, ainda mais quando se fala, a um só tempo, de propriedade privada e justiça social, a cujo respeito busca-se a opinião de Canotilho (1999, p. 241): Estado de justiça social é aquele em que se observam e protegem os direitos, incluindo os direitos das minorias, onde haja equidade na distribuição de direitos e deveres fundamentais e na determinação da divisão de benefícios da cooperação em sociedade e que exista igualdade de distribuição de bens e igualdade de oportunidades. Pelos ensinamentos de Canotilho, num país onde há violenta concentração de renda, como o Brasil, não se pode afirmar que há justiça social. O termo “função social” já aparecia nas Cartas anteriores. O constituinte de 1988, no entanto, especificou o conteúdo jurídico do tema, ao menos no tocante à propriedade rural, quando, no artigo 186, afirmou que “a função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I - aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores”. Ao relacionar a função social da propriedade com a preservação do meio ambiente, o legislador constitucional atribuiu a ela um novo conteúdo, subordinado a interesses daqueles que não são proprietários, como asseverou Tepedino (1999, p. 280): A propriedade não seria mais aquela atribuição de poder tendencialmente plena, cujos confins são definidos externamente, ou, de qualquer modo, em caráter predominantemente negativo, de tal modo que, até uma certa demarcação, o proprietário teria espaço livre para suas atividades e para a emanação de sua senhoria sobre o bem. A determinação do conteúdo da propriedade, ao contrário, dependerá de centros de interesses extraproprietários, os quais vão 221 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições ser regulados no âmbito da relação jurídica de propriedade (grifos nossos). Neste novo cenário, a propriedade aparece como direito condicionado e limitado, sendo possível até mesmo a desconsideração da personalidade jurídica do proprietário, no caso concreto, face à indivisibilidade do meio ambiente. A Constituição, com efeito, reconheceu o meio ambiente como um bem jurídico autônomo, de caráter difuso, uma vez que “ele não se funda em um vínculo jurídico determinado, específico, mas em dados genéricos, contingentes, acidentais e modificáveis” (BULOS, 2001, p. 1228). Do ponto de vista jurídico, a definição supera o sentido econômico da expressão, segundo a qual “bens são coisas suscetíveis de apropriação pelo homem e legalmente alienáveis, economicamente apreciáveis” (ALBUQUERQUE, 1999, p. 96). Ao instituir o meio ambiente como “bem de uso comum do povo”, o caput do artigo 225 da Constituição Federal, utilizou uma expressão do Código Civil de 1916, atribuindo a ela, no entanto, segundo Machado (1994, p. 48), sentido diferente daquele abraçado pelo direito privado “porque se criou um tertium genus, ou seja, um bem que não é público nem particular”. Essa terceira espécie de bem se denomina bem ambiental, que, segundo Bulos (2001, p. 1228), é aquele que ultrapassa a esfera particular: O que se pretendeu dizer é que o meio ambiente constitui um bem jurídico próprio, diferente daquele ligado ao direito de propriedade. Um industrial, por exemplo, pode ter uma fazenda onde a sua fábrica foi instalada. Porém não poderá queimar as árvores ali presentes, sob pena de comprometer a qualidade do ar atmosférico. Então, de quem é o ar que se respira? É do industrial? É dos seus empregados? Claro que não. É de todos, simultaneamente. [...] Por isso, quando o dispositivo menciona “bem de uso comum do povo”, o faz na acepção restrita, porque sua dimensão ecológica extrapola o direito de propriedade, tomado no seu sentido clássico de o sujeito usar, gozar e dispor da coisa como preferir (grifos nossos). O exemplo citado por Bulos (2001) está muito bem colocado. Partindo da mesma situação nele retratada, passamos a discorrer sobre outros aspectos, eis que o industrial, não só não poderá queimar as árvores ali presentes, como, se for necessário desmatar a área na qual a fábrica será instalada, precisará abrir um processo pedindo autorização para tanto à secretaria estadual responsável pela execução das políticas ambientais, ou ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - IBAMA[8], dependendo do caso. Paralelamente, precisará abrir outro processo específico, com vistas à obtenção da licença prévia[9], que dirá se o local escolhido é ambientalmente viável, e se a concepção do empreendimento é adequada. De posse da Licença Prévia, pedirá a Licença de Instalação, instruindo o processo específico com os projetos de engenharia, contendo o Sistema de 222 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Controle Ambiental e o Plano de Auto-monitoramento das atividades industriais. Após estar com a fábrica edificada, e com as instalações em perfeitas condições de funcionamento, o industrial precisará abrir um processo específico para a obtenção da Licença de Operação, que é a única que lhe dá poderes para o exercício da atividade. Tudo de acordo com o art. 225 da CF e a Resolução no. 237/96 do Conselho Nacional do Meio Ambiente - CONAMA. Vejamos, portanto, as etapas do procedimento administrativo que possibilitará ao industrial instalar a sua fábrica: processo de Autorização para desmatamento; processo de licença prévia; processo de licença de instalação; processo de licença de operação. O proprietário terá que instruir seu pedido com mapas contendo: a locação da reserva legal, as áreas de preservação permanente, a justificativa técnica demonstrando que, do ponto de vista do meio ambiente, a área escolhida, é a mais viável. É o ritual que a legislação atualmente exige do proprietário para o exercício do direito de propriedade, no exemplo citado, demonstrando que a propriedade atualmente sofre consideráveis limitações, decorrentes dos princípios constitucionais da função social e da função ambiental, cuja inobservância pode levar até mesmo à perda do direito de propriedade. Nesse sentido, é o parecer de Pinto Junior e Farias (2005, p. 20): Portanto, interpretando a Constituição à luz desses princípios, resta claro que deve necessariamente sofrer a desapropriação a propriedade cuja exploração não respeite a vocação natural da terra, degradando o seu potencial produtivo, que não mantenha as características próprias do meio natural, que agrida a qualidade dos recursos ambientais, não contribuindo para a manutenção do equilíbrio ecológico da propriedade, que desrespeite as relações de trabalho, que não seja adequada à saúde e à qualidade de vida dos que nela laboram e das comunidades vizinhas. No regime do art. 225 da Constituição Federal, o meio ambiente pertence a todos, tratando-se de um bem indivisível. O planeta, de fato, representa um todo, no qual cada ecossistema ganha amplitude. Na medida em que o proprietário viola uma parte desse todo, o conjunto inteiro é atingido, o que legitima a ação do Estado na fiscalização e sanção, podendo chegar até mesmo à desapropriação indireta. Esta a concepção que foi abraçada pela Constituição Federal em vigor no Brasil, e, mais tarde, pelo Código Civil de 2002[10], conferindo à propriedade privada uma nova dimensão. A Constituição Federal Brasileira está concatenada com essa realidade, na qual o instituto da propriedade privada não mais pode ser dissociado da função ambiental, não apenas como ideal utópico, mas como conteúdo material inerente ao próprio domínio. 223 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições 6 O PAPEL DA SOCIEDADE CIVIL: PROPOSIÇÕES. A Constituição Federal de 1988 atribuiu não só ao Estado, mas também à sociedade civil, o dever de preservar o meio ambiente. A discussão acerca do papel da sociedade civil, no entanto, pressupõe verificar a legitimidade da própria democracia representativa, cuja crise não se pode negar, como asseverou Amaral (2001, p. 19): A sociedade de massas, fenômeno da última metade do século findo, ao impor, por necessidade de sua lógica, o império da mediação, revelou à luz do sol a ilegitimidade da democracia representativa. Esse vício deriva da intercorrência do poder econômico, desde sempre, e, de último, do poder político dos meios de comunicação de massas, monopolizados ou oligopolizados, apartando o representante da vontade do representado, anulando o poder da vontade autônoma do cidadão, seja a vontade individual ou particular, seja a vontade decisória do representante, seja a vontade geral (volonté générale), de fonte rousseauniana. A democracia representativa, com efeito, está longe dos ideais da democracia participativa, cabendo aqui registrar a dicotomia identificada por Amaral (2001, p. 22) entre o pensamento de Rosseau, para quem os institutos de representação implicam “na dissolução do conceito de vontade popular, compreendida como expressão de unidade, soberania e governo” e a teoria de Montesquieu, que valorizava sobremaneira a vontade (individual) do representante. Delimitar-se qual é, e onde repousa a vontade coletiva numa sociedade de massas, no entanto, é tarefa árdua, porque esta vontade sofre marcantes influências, e até mesmo manipulações da mídia e de grupos detentores dos canais onde ocorre o discurso público (FISS, 2005)[11]. Habermas (1997) aponta a existência de uma esfera pública vinculada à mídia, em que existem dois tipos de estruturas: as que bloqueiam o intercâmbio horizontal de posicionamentos espontâneos e, portanto, o uso das liberdades comunicativas; e aquelas que se fazem valer da autoridade do público que se posiciona. As primeiras fazem com que o espectador fique passível perante o coletivo, que passa a tutelar seu mundo de representação: [...] a imagem das massas em movimento cedeu lugar à imagem dos telespectadores integrados eletronicamente [...] Assim, as imagens do estado total desapareceram, permanecendo, entretanto intacto o potencial destrutivo de um novo tipo de massificação (HABERMAS, 1997, p. 93). Estas, por sua vez, ao contrário, fazem valer a autoridade do público que se expressa, legitimando a esfera pública como espaço de poder, no qual se movimenta a sociedade civil, através de ações comunicativas esclarecedoras e determinantes de um posicionamento crítico (HABERMAS, 1997, p. 97): Quando um público entra em movimento ele não marcha, mas oferece um espaço de liberdades comunicativas anarquicamente desprendidas. Nas estruturas das 224 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições esferas públicas simultaneamente descentradas e porosas, os potenciais críticos podem ser agrupados, ativados e reunidos. Para isso, é necessária uma base de sociedade civil. Movimentos sociais podem então conduzir a atenção para determinados temas e dramatizar certos aportes. Nesse caso a relação de dependência da massa para com o líder populista se inverte: os atores na arena passam a dever sua influência à anuência de uma galeria exercitada na crítica. Impõe-se, no entanto, questionar como se dá a participação dos indivíduos nos espaços públicos. Ela existe? É consciente e ampla? A modernidade trouxe no seu bojo um desencantamento, apontado por Arendt (1993, p. 302) como responsável pela perda do espaço da política na vida dos indivíduos. Há uma crise de valores, um mundo incerto que, segundo a autora, está diretamente relacionado com a perda de desenvolvimento da condição humana, que se divide entre vita activa e vita contemplativa (ARENDT, 1993, p. 315). Na vita activa estão presentes três atividades fundamentais: a primeira, ligado ao labor (labor), está diretamente relacionada com a reprodução biológica dos homens; a segunda, ligada ao trabalho (work), é o meio pelo qual o ser humano cria coisas extraídas da natureza; já a terceira, a ação (action), reside no pensamento filosófico, o lugar do assombro, “afastando-se da questão de „o que‟ uma coisa é e de que tipo de coisa deve ser produzida para a questão de „como‟ e através de que meios e processos ela veio a existir e pode ser reproduzida”. A prevalência desta esfera da action sobre as outras, segundo a autora, é a “única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria” (ARENDT, 1993, p. 15) correspondendo à condição humana de pluralidade: [...] ao fato de que homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo. Todos os aspectos da condição humana têm alguma relação com a política; mas esta pluralidade é especificamente a condição [...] de toda vida política. Arendt traça o retrato de uma época em que todos os valores foram subvertidos, consubstanciando-se uma ruptura com a tradição, que é retomada para a compreensão da condição humana, num mundo em que “as coisas podem se transformar em qualquer coisa” e em que as fronteiras que separam a civilização da barbárie “mostram-se frágeis, incertas e sem garantias” (TELLES, 1990, p. 27). Tanto Arendt quanto Habermas trabalham com o poder da linguagem e da comunicação na formação da esfera pública participativa. E é esta participação, em última análise, que confere legitimidade à atuação do poder público. Em matéria ambiental, a sociedade civil tem exercido um papel preponderante para a definição do novo paradigma da propriedade privada, fundado na proteção ao meio ambiente, influenciando as ações governamentais, e colocando na pauta da Agenda Internacional a questão do meio ambiente, muitas vezes a contragosto de governos e de poderosos grupos econômicos. Assim como as empresas multinacionais e transnacionais atravessam as 225 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições fronteiras, também a sociedade civil tem conseguido criar redes internacionais de apoio às questões de proteção ao meio ambiente enquanto direito fundamental. É o caso do Greenpeace[12], Human Rights Watch[13], Peta[14], dentre outros. Estas organizações governamentais têm sido referência no que tange à proteção ambiental. A ação da sociedade civil, no entanto, não tem sido suficiente para garantir a efetivação da proteção ambiental já definida nos espaços públicos. No caso do licenciamento ambiental, por exemplo, tivemos a oportunidade de exercer a gerência de controle ambiental do Instituto de Meio Ambiente Pantanal, responsável pelo licenciamento ambiental das atividades potencialmente poluidoras no estado de Mato Grosso do Sul, entre os anos de 2002 a 2003. Naquela oportunidade, observamos, dentre outros fenômenos, a significativa disparidade entre os procedimentos de licenciamento adotados por cada município, e também entre os estados, o que dificulta o conhecimento, a apreensão de todas as normas que vigem sobre o tema, nas diferentes localidades. Outro relevante problema que observamos, foi a reduzida participação da sociedade civil nas audiências públicas, às quais muitas vezes compareciam tão somente empregados trazidos pelas empresas empreendedoras, de outras unidades já instaladas no mesmo município ou em municípios vizinhos. E é visando a ampliação da participação desta sociedade civil, que elaboramos algumas proposições para o novo momento que se desenha. São elas: a) a uniformização dos procedimentos de licenciamento ambiental em todo o território nacional, possibilitando um controle mais eficaz da sociedade civil sobre este importante instrumento de política ambiental, já que as exigências que cada estado ou município impõe ao licenciamento ambiental, por não serem homogêneas, dificultam o controle da tramitação dos processos administrativos referentes às atividades que estão sendo licenciadas. b) convocação para as audiências públicas realizadas no decorrer dos processos de licenciamento ambiental, mediante carta-convite (custeada pelos empreendedores, com base no princípio do poluidor-pagador) a ser distribuída aos estudantes, nos locais em que haja cursos de ensino médio ou universitário de áreas atinentes à gestão ambiental, como biologia, engenharia ambiental, geologia, agronomia, dentre outros. c) que os órgãos públicos priorizem a fiscalização nos empreendimentos que não se submeteram ao processo de licenciamento ambiental. Esta última proposição se justifica porque, impossibilitado de fiscalizar todos os empreendimentos em funcionamento, há 226 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições estados e municípios que priorizam a fiscalização dos empreendimentos já licenciados, ensejando que aqueles que procuram espontaneamente o órgão encarregado do licenciamento ambiental para se regularizar, acabam sendo sempre fiscalizados, enquanto aqueles empreendimentos que não se licenciam, muitas vezes ficam “a salvo” da fiscalização. CONSIDERAÇÕES FINAIS A Constituição Federal promulgada no Brasil em 1988, inspirada na doutrina dos direitos humanos, proclamou, no art. 225, que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”. Ao fazê-lo, instituiu um novo paradigma, adequado às necessidades deste início de século. Com efeito, não mais é possível viver como se fossemos a última geração sobre a terra. É preciso “repensar” o processo de produção e de circulação de riquezas e o padrão de consumo no mundo atual, que vem uniformizando o “modo de ser” humano, nas diferentes culturas, ferindo a diversidade na mesma medida em que avança a degradação ao meio ambiente. Para tanto, é necessário entender o fenômeno da publicização do direito privado e, via de conseqüência, do instituto jurídico da propriedade, a fim de entender de que modo a dimensão ambiental passou a integrar o conceito contemporâneo de propriedade privada. A Constituição brasileira atribuiu ao Estado e à sociedade civil um papel ativo na defesa e preservação do meio ambiente. Tem sido a mobilização desta sociedade, organizada em entidades civis, que, embora enfrentando consideráveis dificuldades de acesso aos espaços onde ocorre o debate público, não sendo governos e nem partidos políticos, sentam-se, sem serem convidadas, à mesa em que se definem os destinos da humanidade, impondo a inserção na pauta internacional da discussão acerca dos direitos humanos fundamentais e da proteção ao meio ambiente, indispensáveis enquanto paradigma analítico do sistema jurídico atual. Para ampliar a atuação da sociedade civil, é que propomos a uniformização dos procedimentos de licenciamento ambiental em todo o território nacional, possibilitando um controle mais eficaz da sociedade civil sobre este importante instrumento de política ambiental, e a convocação para as audiências públicas realizadas no decorrer dos processos de licenciamento ambiental, mediante carta-convite (custeada pelos empreendedores, com base no princípio do poluidor-pagador) a ser distribuída aos estudantes, nos locais em que haja cursos de ensino médio ou universitário de áreas atinentes à gestão ambiental. 227 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições REFERÊNCIAS ALBUQUERQUE, Fabíola Santos. Direito de Propriedade e meio ambiente. Curitiba: Juruá, 1999. ALBUQUERQUE, José Augusto Guilhon. A ONU e a nova ordem mundial. Palestra realizada no Colóquio “A Carta de São Francisco: 50 anos depois”. 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A partir desse evento, aprimorou-se a concepção de educação ambiental, incorporando as dimensões socioeconômicas, política, cultural e histórica, considerando as condições e estágio de cada país, sob uma perspectiva histórica (DIAS, 2002, p. 85). [3] A expressão “agonia” do Código Civil é utilizada por Orlando Gomes para retratar a perda da força normativa do Código Civil, em decorrência do fenômeno da “constitucionalização”, a partir do qual a Constituição passa a ser o centro de gravidade de todo o sistema jurídico, que anteriormente era ocupado pelo Código (GOMES, 1985, p. 9). [4] O autor enfrenta a questão dos reflexos que a noção de Estado social produziu no âmbito dos sujeitos 230 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições privados, destacando a mudança radical no enfoque até então conferido ao direito privado, [5] Embora não tenha apresentado uma proposta para a superação da dicotomia público/privado, o autor aponta para a necessidade de uma relativização da dicotomia entre ambos, uma vez que a distinção não viria em uma linha reta e constante, e estaria sujeita à mudanças no tempo e no espaço, segundo as tendências sociais e políticas (TRABUCCHI, 1973, p. 9. [6] O autor destaca a importância do princípio da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais, consagrados na Constituição, e que devem refletir no âmbito das relações privadas. [7] Esta a proposta de RAISER, que propõe a imagem de uma única elipse, com dois pólos de irradiação distintos, o público e o privado, um em cada extremidade. [8] IBAMA é o órgão responsável, em nível federal, pelo licenciamento de grandes projetos de infra-estrutura que envolvam impactos em mais de um estado e nas atividades do setor de petróleo e gás na plataforma continental. [9] O licenciamento ambiental é uma obrigação legal prévia à instalação de qualquer empreendimento ou atividade potencialmente poluidora ou degradadora do meio ambiente. [10] O parágrafo primeiro do artigo 1228 demonstra que o Código Civil de 2002 está em consonância com o artigo 225 da CF, ao dispor expressamente que: “O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas”. [11] O autor assevera que “a entrega do controle do discurso público a regras puramente de mercado acaba por excluir a voz daqueles que não detêm um quinhão no mercado da comunicação social”. O público em geral, portanto, acabaria por só ter acesso aos conteúdos e versões apresentados pelos controladores da chamada “grande mídia” (FISS, 2005, p. 8). [12] No site oficial do Greenpeace, encontramos a seguinte autodefinição: “O Greenpeace é uma organização global e independente que atua para defender o ambiente e promover a paz, inspirando as pessoas a mudarem atitudes e comportamentos. Investigando, expondo e confrontando crimes ambientais [...]”. Disponível em: <http://www.greenpeace.org/brasil/pt/quemsomos>. Acesso em: 26 ago. 2010. [13] A organização, segundo informações de seu site oficial, assim se define: Human Rights Watch is one of the world‟s leading independent organizations dedicated to defending and protecting human rights. By focusing international attention where human rights are violated, we give voice to the oppressed and hold oppressors accountable for their crimes. Disponível em: < http://www.hrw.org/en/about>. Acesso em: 26 ago. 2010. [14] People for the Ethical Treatment of Animals (PETA), with more than 2 million members and supporters, is the largest animal rights organization in the world. Disponível em: <http://www.peta.org/about>. Acesso em: 26 ago. 2010. 231 O CONDOMINIO COMO PARADIGMA? MEIO-AMBIENTE, REGIÕES URBANAS E FEDERAÇÕES ESTATAIS: SUSTENTAR E RESPONSABILIZAR A PARTILHA Paulo Castro Seixas1 1 INTRODUÇÃO A hipótese que este texto apresenta é a de estão a surgir novos tipos de propriedade, ao mesmo tempo que muitas experiências se vão realizando a requerer conceptualização e que tais processos são função da mudança de paradigma face às instituições que se tornam centrais e, especificamente, ao papel dos valores de Igualdade e Liberdade e como eles são adstritos a tais instituições. Tal situação implica desafios às políticas públicas e a reconceptualização do que actualmente chamamos Democracia. Pretende-se identificar novas formas de relação entre instituições tipicas da construção moderna (a propriedade, a família, o Estado) e instituições tipicas da construção pós-moderna (meio-ambiente; regiões urbanas e federações (estatais ou outras) no respeito pelos direitos humanos). Na construção moderna, a propriedade, a família e o Estado constituem-se como fundamentos da igualização: todos os indivíduos devem ter alguma propriedade, todos são parte de uma família, todos estão integrados num Estado e assim todo o mundo é reconhecivelmente „Moderno‟ se adopta a lógica da propriedade, da família e a do Estado. No entanto, em situação de crise (porventura poder-se-iam apontar algumas na era moderna), o carácter igualizador perde sentido e a crise do paradigma moderno que se instalou desde a 2ª metade do século XX revela isso mesmo. Por várias razões (que tentamos referir abaixo) as instituições igualizadoras da modernidade passaram a ser percepcionadas em função do valor da liberdade: faço o que quero com a minha propriedade; tenho (ou não tenho sequer ) a família que quero e o Estado faz o que quer no limite das suas fronteiras (e, por vezes mesmo, para além delas). Esta valorização da Liberdade face à igualização ocorre ao mesmo tempo que vão surgindo novas instituições, umas de forma mais conceptual outras de forma empírica: o meio ambiente; as regiões urbanas, os direitos humanos. Propomos que estas são as instituições que sustentam um novo paradigma de igualização num mundo emergente: todo o mundo é/está em vias de ser reconhecível em função do meio-ambiente, das regiões urbanas (no sentido lato) e das federações (de estados 1 CAPP – ISCSP. Universidade Técnica de Lisboa. A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições mas não necessariamente) no respeito pelos direitos humanos. Tal igualização é o que possibilita a (tendencial) livre circulação planetária de pessoas, a expansão das indústrias transnacionais e do turismo...mas é essa também a nova relação necessária com o local num período de alterações climáticas e de pico do petróleo. A perda de sentido igualizador das instituições modernas não foi completa, razão pela qual podemos encontrar formas sociais que se constituem como hibridas entre as instituições modernas e as pós-modernas. Tal questão poder-nos-ia levar, também, a entrar na discussão da relação entre sobre-modernidade e pós-modernidade, ou seja a problemática da definição da situação actual como a continuação do projecto moderno a uma outra escala ou como uma quebra desse projecto em função de uma nova etapa, pós-moderna. Não entraremos nesta discussão, no entanto a existência de formas de propriedade que agregam sentidos modernos e sobre ou pós-modernos e os seus conflitos é um sinal dos nossos tempos que torna complexa a visão do futuro que estamos a construir. Propõe-se, então, seguindo Magalhães (2007) mas não apenas num quadro de relações internacionais, que o Condomínio possa ser entendido como paradigma da mudança. Paradigma mesmo na mudança de paradigma. O direito de propriedade interactua em interesses com o direito do meio-ambiente; a família interactua em interesses com o direito da diversidade cultural; o Estado interactua em interesses com os direitos humanos… A solução que parece ir-se construindo parece seguir o paradigma do condomínio. O Condominio, enquanto instituto jurídico, remonta ao Código napoleónico (1804), no entanto é na segunda metade do século XX e, principalmente a partir dos anos 60, que tal regime de propriedade conquistou exponencialmente as nossas cidades e os nossos modos de vida. Com vários nomes (co-propriété em França; Condominium ou Condo nos Estados Unidos; Strata Titles na Austrália; etc), trata-se de um tipo de relação entre a res publica e a res privada relativamente recente ( por exemplo nos Estados Unidos é em 1958 que surge a primeira legislação sobre condomínios e só em 1960 é que surge o primeiro condomínio, em Portugal em 1955, na Austrália em 1961…). O que propomos é que a noção de Condomínio, mais do que o seu regime jurídico estrito, é um paradigma para o desafio em termos de políticas públicas que enfrentamos na relação entre propriedade e meio ambiente; entre família e diversidade cultural; entre Estado e Direitos Humanos. Da consciência dos „limites ao crescimento‟ (Clube de Roma) à noção de Património 233 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Comum da Humanidade (UNESCO); da obsessão pelo Copyright à invenção do „Creative Comons‟; da Web 1.0 à Web interactiva 2.0 (dos Wiki, blogs e redes sociais) e, mesmo semântica; da passagem da cidade de bairros e residências à região urbana da „cidade genérica‟ de condomínios; da defesa dos Direitos Humanos à ingerência Humanitária e à ideia de uma governância global de „cidadãos peregrinos‟ e „cidadãos cosmopolitas‟, regulado por uma constituição urbana („Carta Mundial do Direito à Cidade‟); dos Estados fechados westfalianos à confederação de Estados aberta e em contínua negociação e à confederação sem Estados… Em todos (e outros mais) exemplos o que podemos, porventura, constatar é que o paradigma do Condomínio vai fazendo o seu caminho. 2 A MUDANÇA DE PARADIGMA INSTITUCIONAL: RAZÕES E TEMPOS Resumamos, para já, num esquema, o que colocamos em discussão: Os princípios igualizadores modernos (Propriedade, Família e Estado) oposeram-se a um princípio de liberdade clânica ou mesmo individual, ao mesmo tempo que com o qual viveram e do qual se aproveitaram; da mesma maneira, as instituições igualizadoras pós-modernas opõem-se ao princípio de liberdade estatal e organizacional com o qual, ainda assim, convivem e do qual se aproveitam. Esta é, talvez uma simplificação da relação entre novas formas de regulação e o liberalismo, o que implicaria também uma discussão acerca das relações internacionais: entre o „realismo político‟, o „institucionalismo‟ e a „cultura mundial‟ (Seixas, 2006) Institui ções Princípio de liberdade Modernas ções Princípio Pós- de Liberdade Modernas Princípio igualizador individuais (autocracias), clãnicas (oligocracias) ou outras, autárcicas ou/e coloniais/imperiais Princípio igualizador Institui Autonomias Proprieda Família Estado de Autonomias estatais, organizacionais (empresas) ou outras, autárcicas ou/e coloniais/imperiais MeioAmbiente Regiões urbanas Federações - Direitos humanos 234 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições A passagem de um paradigma a outro radica numa consciência lenta de que as alterações lá ou aqui, globais ou locais estão inextrincavelmente interligadas. Assim, neste novo paradigma, ao invés de nos centrarmos numa parte (a especialização científica) sem uma concepção do todo e ao invés de exigirmos uma certeza (a prova científica) temos de ter uma concepção do todo ainda que com a noção de uma contínua incompletude e temos de actuar, ainda que com uma contínua incerteza. Em suma, de uma concepção positivista e de simplicidade passamos a uma emergente e de complexidade (Santos, 1987 e Morin, 1991). Seguindo esta lógica, e tendo em conta a proposta de sistemas ou esferas de Pardo Díaz (1995) seguida também por Magalhães (2007: 16), podemos conceber a vida em função de três esferas: a Biosfera, a Sociosfera e a Tecnosfera. Pardo Díaz define cada uma destas esferas da seguinte forma: O primeiro sistema ou esfera em que o ser humano se encontra imerso é a Biosfera. Esta grande sistema d epontes funcionais e interdependentes compreende uma fina zona da terra, na qual se incluem as camadas baixas da atmosfera, estratos superiores da litosfera, e os seres vivos, incluída a espécie humana, interactuando entre si e com o ambiente. Em segundo lugar estaria a Sociosfera, o sistema artificial de instituições desenvolvido pelo ser humano, para gerir as relações da comunidade e com os outros sistemas. Este sistema – soma das instituições socio-políticas, sócioeconómicas evoluiu ao longo de séculos de história e, como é evidente, nele se encontra o Direito. Por outro lado, as relações. Por outro lado, as relações com os outros sistemas e em particular com a Biosfera, levam-se a cabo através de estruturas concretas. Algumas dessas estruturas constituem a Tecnosfera, como um sistema criado pelo ser humano e submetido ao seu controle. Compreenderia os aglomerados urbanos de aldeias, cidades, centros industriais e de energia, redes de transporte e comunicação, canais e vias fluviais, explorações agrícolas etc... (Pardo Díaz cit in Magalhães, 2007: 16) Ora, a nossa proposta neste texto relaciona-se, directamente, com estas três esferas. De facto, o Meio-Ambiente é um outro nome para a Biosfera, as Federações (Estatais ou outras) constituem um novo modelo no âmbito da Sociosfera e as Regiões Urbanas um novo modelo no quadro da Tecnosfera. Falhada que foi a crença numa Biosfera inesgotável e a crença numa Tecnosfera de soluções, resta reconsiderar o „padrão de relações‟ que criámos e encontrar um relacionamento entre as três esferas que seja sustentável, ou seja, não comprometa as próximas gerações. A mudança de paradigma e o surgimento de novas instituições igualizadoras é atribuível as várias razões e tal percurso tem diversos momentos. Ainda que seja possível, certamente, várias sistematizações, consideramos que três razões inter-relacionáveis são bastante claras para explicitar a mudança: 1. Uma mudança da escala espaço-temporal; 235 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições 2. A expansão do capitalismo; 3 A EVOLUÇÃO DAS POLÍTICAS DEMOCRÁTICAS. 1. Quanto à mudança de escala espaço-temporal, é claro que ela é um fato Moderno, facilmente historiada pelo menos desde o século XVIII (com os enciclopedistas e a emergência da noção de „humanidade‟) mas que data, porventura, mesmo do inicio da era Moderna, da 1ª globalização, com o Tratado de Tordesilhas, de 1498, que divide o planeta entre dois países, evidenciando já a percepção de encolhimento espacial do planeta que se experienciou massivamente no fim do século XX. O que aconteceu na segunda metade do século XX é que tal fato se concretizou quer pela via da exponenciação das transações socioeconómicas e políticas internacionais, quer pela via da percepção generalizada de tal encolhimento do espaço função da revolução das telecomunicações e transportes. Esta mudança de escala espaço-temporal praticada e percepcionada criava problemas económicos e políticos. O que se tinha aceite como princípio igualizador na Europa (com Westfalia) não vigorava para as demais partes do mundo, vivendo-se assim segundo uma lógica esquizofréncia que aceitava dois princípios: a propriedade, família e Estado como princípios igualizadores na europa e, ao mesmo tempo, o Estado (ou agentes em seu nome) como instituição que corporizava uma liberdade expansionista colonial e mesmo imperial fora da Europa. Ou seja, a propriedade, a família e o Estado eram princípios igualizadores para uns mas não para outros. É a mudança de escala espaço-temporal que possibilita colocar em questão as instituições que estabeleciam um determinado equilíbrio entre igualdade e liberdade e que passaram a ser caracterizadas em função de uma liberdade ilegitima por um lado, ao mesmo tempo que se impunha o alargamento do seu valor de igualização a todo o Planeta. Assim, a Propriedade, a família e o Estado são ao mesmo tempo instituições de liberdade ilegitima (porque coloniais) e instituições em que se investe para a igualização „moderna‟ nos novos países/Estados: esse paradoxo é ainda vivido por vários países pós-coloniais, evidenciando fracturas internas de difícil conciliação. Para complexificar a situação, as novas instituições igualizadoras sobre ou pósmodernas (Meio-ambiente; regiões urbanas e direitos humanos) são concebidas (no Sul como no Norte) como atentados contra o equilíbrio igualizador mas libertário das instituições modernas ou mesmo como processos de neo-colonialismo. 236 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições 2. A expansão do capitalismo é uma outra razão fundamental para a mudança das instituições igualizadoras. Todas as instituições acabaram por ser invadidas pela mercadorização, como foi descrito nos anos 60 por Debord (c1967, 1991) e, depois, por muitos outros. Por um lado a mercadorização hegemónica, ao possibilitar que o capitalismo alargasse a todas as esferas a lógica do mercado, levou a uma pluralidade de configurações do capital (económico, social, cultural) e a uma profunda sobreposição de grupos sociais ao longo do século XX que colocou em causa a própria noção de classes sociais, passando-se a falar de „estilos de vida‟. Assim, todas as instituições da modernidade, para além do valor de uso, passaram a ter um valor de troca. A família era um modelo social de sustentação intergeracional com base na produção. O modelo social passou para o Estado, os filhos deixaram de ser entendidos como „braços‟ agrícolas de um clã alargado para serem entendidos na relação entre investimento e consumo instrumental ou emocional ou, mesmo, como elementos de vínculos temporários e residuais. A propriedade que era parte integrante da noção de família, em função do conceito de „Casa‟, abrangendo esta quer as pessoas quer as propriedades e os próprios instrumentos de produção, perdeu primeiro esse valor de uso e logo o único valor que adquiriu foi o valor de troca, muitas vezes mesmo esse muito baixo. O Estado foi talvez o último a começar a soçobrar mas é isso que está a acontecer na mesma altura em que escrevemos, constituindo esse soçobrar um momento de todo um processo genealógico de outra entidade. De facto, em 1945 existiam cerca de 50 Estados e no final do século XX o número dos mesmos passou para 200, tendo, assim, quadruplicado. No entanto, cerca de 24 2 daqueles 50 Estados estão agora agregados na confederação que a União Europeia constitui. Ou seja, ao mesmo tempo que surgiram novos Estados, uma parte substancial dos antigos Estados criaram um modelo novo entre o super-estado e o supra-estado (Smith, 1995). 3. Quanto à evolução das políticas democráticas, as políticas públicas foram alternando entre uma perspectiva liberal (que enfatizou e enfatiza a liberdade individual) e uma perspectiva socialista – e, depois, social-democrata (que restringe a liberdade em função da igualdade). Os dois processos referidos anteriormente (escala e mercadorização) tornam-se, assim, uma questão de remodelação institucional. Ainda que – mesmo que de formas diferentes - quer o liberalismo, quer o socialismo fossem internacionalistas, o Estado era, em última análise, sempre a principal fronteira. A social-democracia – e, especificamente, o 2 Uma vez que as repúblicas bálticas (a Estónia, Letónia e Lituânia) eram repúblicas socialistas soviéticas e que a eslováquia e a República Checa eram uma só em 1945. 237 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições modelo social europeu – funcionaram dentro de um Estado. Mas tal já não é possível... nem demográfica, nem económica, nem politicamente. No momento em que escrevemos, em vários Estados da Europa, a governação e as próprias eleições têm hipotecadas a sua actuação e a liberdade de voto em função das empresas de rating e dos peritos de organismos internacionais (como a U.E, a OCDE, o FMI). Ao mesmo tempo que tal situação leva a uma descrença cada vez maior no sistema político e no contrato que ele era suposto legitimar entre governados e governantes (notando-se, aliás, inflexões para os extremos do espectro partidário em eleições), há uma vontade de aprofundar as políticas democráticas no sentido da participação dos cidadãos. A situação presente, de crise global, é aquela em que as diversas „modernidades alternativas‟ que foram ensaiadas ao longo de mais de meio século começam a ter possibilidade de criar audiências e seguidores não só entre as classes médias dos países desenvolvidos, o que é inédito, mas numa escala que poderá levar a uma mudança de paradigma nos modos de vida nos tempos próximos. As três razões apontadas fizeram estilhaçar um regime sócio-político sustentado na divisão planetária entre Nós e Outros, num contrato normativo e lesivo em que à igualização do Nós equivalia uma liberdade sobre os Outros, tidos como num sistema de igualização mais baixo. Ou seja a igualização, no respeito do direito à propriedade, Família e Estado numa parte do planeta, foi feita na aceitação da liberdade face à outra parte, implicando tal a ausência de tais direitos para esses Outros. A ruptura que nos anos 60 assistimos nos sistemas coloniais teve um efeito imediato nas ex-colónias mas o efeito sobre os ex-colonizadores só agora está a atingir o seu ponto máximo. Assim, a mudança sócio-espacial de um paradigma Moderno Estatal e Colonial para um paradigma Pós-Moderno Global e Estatal (ver Seixas, 2007) implica novas instituições Socio-espaciais de igualização como o Meio-Ambiente, as Regiões Urbanas e as Federações (Estatais ou outras) legitimadas nos Direitos Humanos. Podemos dizer que há momentos que evidenciam tal evolução e, ainda que qualquer cronologia seja parcial e incompleta, ela é também, por isso mesmo, uma forma de construirmos sentido do caminho percorrido e a percorrer. Assim, apresentamos abaixo alguns conceitos que podem caracterizar esse sentido. 1. Da consciência dos Limites do Crescimento à Sustentabilidade e ao Condominio da Terra 2. Do Condominio da Cidade Genérica à Carta Mundial do Direito à Cidade e aos Planos de Transição Urbana 238 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições 3. Dos Direitos Humanos à Ingerência Humanitária e à Governância Global 1. Em 1972 o Clube de Roma institui o conceito de Limites do Crescimento e, em função disso, em 1987 o conceito de Desenvolvimento Sustentável torna-se central e tal implica gerir os „padrões de relação‟ entre a Biosfera, a Sociosfera e a Tecnosfera, o que tem sido tentado pelas diferentes Conferências e Tratados ao longo das duas últimas décadas procurando-se uma gestão para um „Condomínio da Terra‟ em construção, conceito proposto por Magalhães (2007) para uma nova ordem mundial. 2. O instituto legal do condominio terá a sua origem no código napoleónico ainda que só a partir da segunda metade do século XX se tenha começado a generalizar como enquadrador do modo de vida urbano e, especificamente, a partir dos anos 60. A „Cidade Genérica‟, conceito instituído por Rem Koolhaas em é uma cidade de condominios. O „Direito à cidade‟, conceito instituído por Lefebvre em 1968 esteve na origem da „Carta Mundial do Direito à Cidade‟ apresentada em 2004 como uma constituição urbana, implicando a cidade como instituição do direito a ter direitos, numa obrigação da cidade para a inclusão. Em função de um percurso que começa em 2001, e em função da consciência das alterações climáticas e das consequências do pico do petróleo, Rob Hopkins em 2006 torna-se co-fundador do „Transition Town‟ Totness em 2006 instituindo o movimento da „Transição‟ e das „cidades em transição‟ (Portal de Transition Sidney). 3. A Declaração Universal dos Direitos Humanos é de 1948 mas é só em 1967 que se dá a primeira ingerência humanitária. Face à situação de guerra no Biafra, uma província da Nigéria, o conflito de interesses entre o direito de soberania e os direitos humanos é derimido na prática, pela primeira vez, em favor destes últimos. A governância global vai-se instituindo, primeiro porventura em função de um humanitarismo de baixa intensidade, centrado na segurança e na saúde, com as intervenções internacionais das novas gerações de ONG internacionais e pela coordenação da ONU. A gestão global pela Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) da não proliferação das armas nucleares e da OMS relativa ao AIDS (VIH-SIDA), ao sindrome respiratório agudo (SARS), à gripe das aves e à gripe A são também importantes referentes. É possível que a governância internacional, através do fortalecimento dos poderes da ONU venham a originar uma lógica de „Condominio da Terra‟ na acepção de Magalhães (2007) mas também é bastante possível que haja um distanciamento entre os poderes 239 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições internacionais e mesmo nacionais face às comunidades locais, entregues à sua propria resiliência e criando. Neste sentido serão as cidades-condominio e as comunidadescondominio e as suas redes internacionais de tipo digital que serão o centro da governância planetária. 4 NOVOS CONDOMINIOS E FEDERAÇÕES TRANS-HUMANAS? O que procurámos caracterizar neste texto é, de uma forma simplista e provisória, a transição social que implica um novo ecossistema, um novo modo de vida, uma nova ideologia, mesmo um novo tipo psicológico em formação. Ainda que não tivéssemos ainda caracterizado cada um destes aspectos considerámos que há uma mudança de paradigma institucional (da Propriedade, Família e Estado para Meio-Ambiente, Regiões Urbanas e Federações, Estatais ou outras) que, em si mesmo revela uma nova relação entre Biosfera, Sociosfera e Tecnosfera e apresentámos algumas das razões e tempos de tal mudança. Ora tal mudança parece colocar o Condominio e a Federação de Condominios como modelo transversal que vai da experiência comunitária local, às novas definições de cidade em transição e à nova forma de gerir as relações internacionais. Neste último ponto, apresentamos, segundo o critério do âmbito da consciência e confederação crescente, as experiências de novas comunidades e os desafios de um direito dos comuns. Estas experiências constituem processos de socialização descontinuos no espaço e no tempo mas unidos em função dos problemas comuns, ainda que diversos, inerentes a uma transição socio-ambiental global que estamos a viver. A aprendizagem parece ser a de encontrar um contínuo coerente entre âmbitos socioambientais diferenciados, desde a simples situação de „Co-Habitação‟ à „Rede Global‟, ao mesmo tempo que em cada nível se procura a sustentabilidade local-global e presente-futuro, num novo equilíbrio entre biosfera, sociosfera e tecnosfera que implica uma nova organização social, uma nova ideologia e um novo tipo psicológico. Apresentemos, então, num primeiro momento, aqueles que terão iniciado a „nova história‟ para, num segundo momento, caracterizarmos os casos em que a noção de condominio e federação de condominios está em curso. 4.1. A visionária, o crítico e o jurista 240 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições É claro que caracterizar o início de uma nova história é sempre um exercício mítico mas é, ao mesmo tempo, a única forma de criarmos um sentido. O objectivo aqui é propor que o Condomínio é o paradigma da mudança de paradigma e, neste sentido, podemos dizer que tudo terá começado com uma Visionária, Mirra Alfassa, um Crítico, Garrett Hardin, e um Jurista, Arvid Pardo. Mirra Alfassa, chamada „A Mãe‟, foi a fundadora de Auroville, a „cidade da madrugada‟. A „Mãe‟ escreveu: “Auroville wants to be a universal town where men and women of all countries are able to live in peace and progressive harmony, above all creeds, all politics and all nationalities. The purpose of Auroville is to realise human unity.” (Mother, 2004: 188). Auroville, a primeira e única experiência urbana internacionalmente legitimada e ainda em funcionamento votada à „unidade humana‟ na diversidade e à „transformação da consciência‟ surgiu a Alfassa nos anos 30. Nos anos 60 a Sociedade Sri Aurobindo propôs a Mirra a construção da cidade, a qual foi apoiada pelo governo da Índia e, em 1966, pela UNESCO numa resolução que passou por unanimidade. Auroville, construída no Sul da Índia foi fundada a 28 de Fevereiro de 1968 como uma „cidade universal‟ para a emergência de uma humanidade transicional: “Humanity is not the last rung of the terrestrial creation. Evolution continues and man will be surpassed. It is for each individual to know whether he wants to participate in the advent of this new species. For those who are satisfied with the world as it is, Auroville obviously has no reason to exist.” The Mother, 1966 (Portal de Auroville) A inauguração de Auroville fez-se numa cerimónia que juntou 5000 pessoas de 124 nações, as quais trouxeram terra das suas nações, a qual foi misturada e guardada numa urna de mármore, colocada agora no ponto focal do anfiteatro. Ao mesmo tempo, a „Mãe‟ apresentava a carta de 4 pontos de Auroville: 1. Auroville belongs to nobody in particular. Auroville belongs to humanity as a whole. But to live in Auroville, one must be a willing servitor of the Divine Consciousness. 2. Auroville will be the place of an unending education, of constant progress, and a youth that never ages. 241 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições 3. Auroville wants to be the bridge between the past and the future. Taking advantage of all discoveries from without and from within, Auroville will boldly spring towards future realisations. 4. Auroville will be a site of material and spiritual researches for a living embodiment of an actual Human Unity. (The Mother, 2004: 193-194) Auroville foi planeada para 50.000 pessoas, sendo uma cidade em 2010 ainda em crescimento com 2.160 habitantes de 45 países de todas as classes sociais, com uma média de idades de cerca de 30 anos e com um terço de indianos. É uma cidade em que nem política, nem religião nem a maior parte da propriedade privada exite sendo que todas as casas pertencem à cidade (Hugller, 2005) e na qual se pretende chegar/educar para uma consciência humana superior, quer dizer una e planetária, na sua diversidade. Assim, Auroville terá sido e é a primeira cidade em que a relação meio-ambiente / região urbana / federação planetária se pretendeu e se pretende identificar como novo quadro humano para um novo tempo. Garrett Hardin foi o Crítico que, em 1968, publicou o celebre artigo „The tragedy of commons‟ na revista science. Hardin considera que há “uma classe de problemas humanos aos quais se pode chamar “problemas sem solução técnica”‟, considerando-se que “Uma solução técnica pode ser definida como aquela que requer uma mudança apenas nas técnicas das ciências naturais, implicando pouco ou nada na mudança dos valores humanos ou ideias de moralidade.” (Hardin, 1968: 1243). O que Hardin nos diz é que sempre que existe um espaço colectivo tal espaço é pensado e usado na externalizaçao das desvantagens/custos e na potenciação das vantagens pessoais. No seu artigo Hardin centra-se na população e na fertilidade, no entanto apresenta também o mesmo argumento quando se refere aos oceanos ou aos parques nacionais e sua relação com a poluíção. A finitude do mundo com que nos deparamos faz com que o espaço não seja a solução („Space is no escape‟). Assim, a „tragédia da propriedade colectiva‟ é a de nos vermos a actuarmos sem remorsos em direcção à ruína ou mesmo à morte („freedom in a commons brings ruin to all‟). E uma vez que em muitos casos o espaço colectivo não pode ser privatizado e tão pouco a regulação administrativa é fidedigna (quem vigia os que vigiam?), a única solução apontada por Hardin parece ser a educação: “Education can counteract the natural tendency to do the wrong thing, but the inexorable succession of generations requires that the basis for this knowledge be constantly refreshed”. E a educação deve passar a mensagem de que „a liberdade é o reconhecimento da 242 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições necessidade‟ , limitando, assim, a actuação face ao espaço colectivo. Em última análise, a solução é a educação para a responsabilidade social mas, como refere Hardin, “The social arrangements that produce responsibility are arrangements that create coercion, of some sort” e, assim, considera que “The only kind of coercion I recomend is mutual coercion, mutually agreed upon by the majority of the people affected”. Ou, de uma forma conclusiva: “Individuals locked into the logic of the commons are free only to bring on universal ruin once they see the necessity of mutual coercion, they become free to pursue other goals”. Assim, parece ficar claro que o que é colectivo só se poderá como tal em função de uma contínua educação e coerção mútua. É, sem dúvida, essa a função das comunidades que se têm constituído e crescido desde os anos 60 e que serão objecto de análise no ponto seguinte. Finalmente, o Jurista: Arvid Pardo. Arvid Pardo tem uma história de vida que é, em si mesma, um modelo de cidadão-peregrino e de cidadão do mundo. Filho de um maltês e de uma sueca que faleceram quando ainda era jovem, foi educado por um tio italiano que foi diplomata, embaixador no Brasil, União Soviética, Alemanha e Vaticano, locais onde Pardo acabou por passar os períodos em que não estava a estudar. Fluente em italiano, inglês, francês, sueco e espanhol, diplomou-se em História e doutorou-se em Direito Internacional. A II Grande Guerra apanhou-o em actividades clandestinas anti-fascistas, tendo sido preso por Mussolini. Quando libertado, acabou por ser preso e condenado à morte pela Gestapo e colocado na prisão de alexzanderplatz em Berlim. Em 1945 é libertado pela Cruz Vermelha mas quando o exército vermelho entrou em Berlim foi interrogado e, de novo, preso. Finalmente libertado caminhou até às linhas aliadas e acabou por chegar a Londres sem dinheiro algum. Começou, então, a sua carreira, primeiro como empregado de mesa, depois como secretário, tendo finalmente entrado para o Secretariat of the Technical Assistance Board, instituição que antecedeu a UNDP e foi representante na Nigéria e Equador. Em 1964 foi nomeado Representante Permanente de Malta nas Nações Unidas pelo país tornado recentemente independente e que ele tinha visitado apenas brevemente. E é nesta qualidade que a 17 de Agosto de 1967, na agenda da 22ª sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, Arvid Pardo solicita que seja incluído o seguinte item: “Declaration and treaty concerning exclusively for peaceful purposes of the sea bed and of the ocean floor, underlying the seas beyond the limits of present national jurisdiction, and the uses of their resources in the interests of mankind”3. Ainda que as emendas proposta ao texto tenham eliminado 3 Declaração e tratado sobre a reserva exclusiva para fins pacificos do leito do mar e do fundo do oceano 243 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições qualquer pretensão à mudança da lei positiva e a resolução 2340 que decorreu da proposta de Pardo tenha implicado demasiados compromissos, Arvid Pardo tornou-se um dos fundadores do instituto do Património Comum da Humanidade. Referir Mirra Alfassa, Garret Hardin e Arvid Pardo e as suas actuações no período charneira de 1966 a 1968 é falar de uma nova história e de como ela se começou a contar, uma história de visão e consciência planetária que institui cada pessoa e cada local como global, uma história de responsabilidade sustentada pela necessidade numa coerção mútua de acordo mútuo de uma educação comunitária constante e, finalmente, uma história de uma legislação capaz de instituir regras de gestão dos espaços colectivos planetários. É claro que estes personagens têm uma genealogia que os ultrapassa mas representam versões modernas de narrativas que foram contadas desde sempre, quer pelas sociedades tradicionais nos seus mitos, que por personagens que fazem parte da nossa história (Jesus; Buda; Emmanuel Kant; Gandhi e outros). 4.2. Experiências condominiais e federativas As experiências condominiais são as mais diversas e, por isso, relativamente difíceis de caracterizar. No entanto, estamos perante um novo movimento social cujas redes se criam pela web, utilizando, exactamente, as novas plataformas de conhecimento colectivo (a web 2.0 e os seus blogs, wikis, etc) para se expandir. Ou seja, a Federação socio-política faz-se de forma não territorial, ao contrário do que acontece com os Estados. Finalizaremos este artigo apresentando algumas das experiências em função do seu carácter já estruturado em „redes‟ ou „federações‟, ou seja, em que as experiências de base se foram estruturando, estando-se exatamente nas duas últimas décadas a agregar-se num nível transnacional. Em função disso, também os serviços de informação, aconselhamento e apoio ao desenvolvimento de comunidades ecológicas e sustentáveis se têm vindo a desenvolver (ver, por exemplo, a Fellowship for Intentional Community e o Sustainable Communities Online). O FIC (Fellowship for Intentional Community) surgiu em 1994 e lista comunidades intencionais do planeta de forma alfabética, por países (em 75 países diferentes) e também por tipos de comunidade (ecovilas; comunas; cohabitação; cooperativas e cristãs) num total de 2580 subjacentes a águas situadas além dos limites actuais da jurisdição nacional, e sobre a utilização dos seus recursos em beneficio da humanidade” (adoptámos a tradução feita por Magalhães, 2007: 51-52) 244 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições comunidades, sendo os países com maior número os Estados Unidos, com 1799, o Canada com 146, o Reino Unido com 99 e Austrália com 80. Estas confederações, federações e centros de serviços associados a comunidades intencionais, revelam todo um conjunto de políticas públicas que não são mais controladas pelos Estados em que as comundiades se encontram mas antes por mecanismos locais, translocais e transnacionais nos quais estas comunidades se encontram envolvidas. Apresentemos, então, sumariamente, quatro federações de diferentes tipos que poderão evidenciar uma tendência para a qual a pesquisa em novas políticas publicas deverá estar atenta. a) A co-habitação (Cohousing Network) b) As comunidades egualitárias (Federation of Egalitarian Communities) c) As eco-vilas (Global Ecovillages Network) d) As cidades em transição (Transition Network) 1. A co-habitação ou „cohousing‟ surgiu na Dinamarca no inicio dos anos 60, havendo actualmente cerca de 150 agregados de co-habitação em todo o mundo. A co-habitação é um sistema que responde às necessidades decorrentes do isolamento social e da crónica falta de dinheiro e tempo. Com várias instalações e comodidades comuns (frigorificos, máquinas de lavar, aquecimento, paineis solares, etc), e inclusivé o uso comum de terra para produção agrícola,o objectivo é encorajar a partilha e uma vida mais comunitária, ecológica e sustentável (Hodgon e Hopkins, 2010). O primeiro projecto de cohousing surgiu com Bodil Graae, que escreveu um artigo de jornal intitulado "Children Should Have One Hundred Parents" e que reuniu 50 famílias no projecto Sættedammen na Dinamarca em 1967, o mais antigo projecto de cohabitação moderno conhecido no mundo (cohousing na Wikipedia). A co-habitação é um tipo de empreendimento muito adoptado em situações urbanas e está representado em redes nos Estados Unidos (The cohousing association of United States), no Canada (Canadian cohousing network), no Reino Unido (The UK cohousing network) e na Nova Zelândia (Eco-Village, and Cohousing Association of New Zealand). 2. A Federação das Comunidades Igualitária (FEC) é uma rede de grupos comunais espalhados pela América do Norte que variam em tamanho e âmbito e que vão desde pequenos agregados agrícolas passando por comunidades de tipo vila e grupos de casas 245 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições urbanas. A rede foi fundada em dezembro de 1976 quando a primeira assembléia foi realizada na Comunidade de East Wind no Missouri. A organização foi originalmente inspirada pelas redes de apoio mútuo que Kat Kinkade observou entre os kibutzim israelitas. As idéias iniciais iam da cooperação em empréstimos e intercâmbio de trabalho à partilha das competências em construção existentes na comunidade na ajuda a pessoas de baixos rendimentos e, eventualmente, centrar-se na divulgação como atividade principal (Portal da FEC). A FEC é actualmente composta por seis comunidades como membros titulares e um número de Comunidades aliadas e Comunidades em Diálogo. Todas as comunidades FEC são cooperativas de produção e a FEC segue 7 princípios e em que cada comunidade 1) mantém a terra, trabalho, rendimento e outros recursos em comum; 2) assume responsabilidades pelas necessidades dos seus membros, recebendo os produtos do seu trabalho e distribuindo estes e todos os outros bens egualmente ou de acordo com as necessidades; 3) pratica a nãoviolência; 4) usa a forma de decisão em que todos os membros têm uma igual oportunidade de participar, quer por consenso, voto directo ou direito de apelo ou rejeição; 5) actua activamente para estabelecer a igualdade de todas as pessoas e não permite a discriminação com base na raça, classe, credo, origem étnica, idade, sexo, orientação sexual ou identidade de género; 6) actua para conservar os recursos naturais para as gerações presentes e futuras, enquanto luta pela melhoria contínua da consciência e prática ecológicas; 7) cria processos para a comunicação e participação grupal e proporciona um ambiente que apoia o desenvolvimento das pessoas4(Portal da FEC). 3. As ecovilas surgiram como conceito depois de um relatório elaborado por Robert e Diane Gilman em 1991 sobre os melhores exemplos de comunidades sustentáveis em todo o mundo que surgiram desde os anos 60 ou, porventura, tendo origens ainda mais recuadas. A partir de tal relatório, emerge a definição de ecovila: “Ecovila é um assentamento de escala humana, multi funcional, no qual as atividades humanas são integradas sem danificação ao mundo natural, de forma a apoiar o desenvolvimento humano saudável, podendo continuar no futuro indefinido.” Em 1987 é criada a Gaia Trust A partir de 1995, a partir de um encontro nas comunidades sustentáveis da Findhorn Foundation (Norte da Escócia), o conceito de ecovilas é lançado globalmente e a GEN- Global Ecovillages Network ganha forma. partiu da organização Gaia Trust da Dinamarca, uma organização criada em 1987. O sistema das ecovilas evidencia toda a fileira de consciência e âmbito confederativo crescente ao mesmo 4 Tradução minha 246 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições tempo que mantém a relação local-global em cada nível. Ou seja, o movimento das ecovilas inclui pequenas comunidades agregadas numa Zonas regionais mundiais (Gen- Europe; ENA, para as Américas e Genoa, para Ásia e Oceania) e, por sua vez, numa rede global (a GEN), sendo que cada um destes níveis implica uma relação local-global, num equilibrio entre biosfera, sociosfera e tecnosfera. 4. O movimento de „Transição‟ é o mais recente e, porventura, aquele com um crescimento mais evidente e também o que evidencia uma relação mais forte e estruturada com as políticas públicas. O portal da Transition Sidney revela alguns aspectos da história do movimento. Desde 2001 Rob Hopkins ensinava um curso de Sustentabilidade Prática em Kinsale, na Irlanda, e em 2005, o visionamento do filme The End of Suburbia leva-o a organizar a conferência “The Challenge and Opportiunity of Peak oil” e a propor aos seus alunos um „Plano de Acção para o Declinio Energético‟ para a cidade de Kinsale para ser apresentado à comunidade e autoridades locais. A comunidade e as autoridades locais, associados à universidade, procuraram trabalhar e expandir e implementar o plano criar uma agenda estratégia para uma pegada ecológica urbana menos dependente da energia fossil. Terá sido o primeiro Plano Estratégico Urbano de Transição (Portal da Transitionsidney). Em 2006, Rob Hopkins muda-se para Totness, em Devon, Inglaterra, para fazer um doutoramento na universidade de Plymouth e em 2008 é lançado a obra Transition Handbook e em 2010 Transition in Action, um Plano de Acção para o declinio energético para Totness. Neste momento, o movimento de transição está em forte implantação na Europa, Estados Unidos e Austrália, como se pode confirmar pelo mapa das Iniciativas de Transição na Transition Network, contando 326 „iniciativas de transição‟ até Novembro de 2010. O facto do movimento de transição ter surgido, por um lado a partir da universidade e ter estabelecido uma ligação imediata com a comunidade e as autoridades locais e, por outro lado, ter-se centrado numa lógica urbana e de políticas públicas para a escala de uma cidade, são, porventura, factores relevantes para o seu exito. A tendência da relocalização da economia e de uma combinação rural-urbano de muito maior sinergia é, com o movimento de transição, proposta, pela primeira vez para ser reflectida e implementada a partir e sem sair das cidades e tal fez toda a diferença. Para além disso, este movimento tem características cosmopolitas e parece ter grandes possibilidades de agregar os interesses das camadas médias. 247 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições 5 PERSPECTIVAS Procuramos apresentar neste texto uma mudança de paradigma, especificamente propondo que as instituições modernas da propriedade, família e Estado estão a ser substituídas por novas instituições, como sejam o meio-ambiente, as regiões urbanas e as federações (estatais ou outras). Indicámos algumnas razões e tempos de tal mudança e lançámos a pergunta do Condominio como paradigma na mudança de paradigma. Magalhães (2007) tinha já lançado tal ideia mas no campo de uma nova ordem global instituida pela coerção e acordo mútuo (para usar uma expressão de Hardin, 1968) entre Estados numa nova ordem mundial que possibilitasse maior protagonismo à ONU. Não invalidando tal possibilidade top-bottom, procurámos antes neste texto evidenciar, de forma exploratória, a pluralidade e a riqueza de processos condominiais e os seus processos de confederação e federação global segundo critérios não territorial mas antes filosóficos diversos, ainda que, porventura agregáveis num quadro ideológico ecológico e criativo de carácter comunitário. A impotância de tal quadro e da sua realidade global não é consentânea com o seu menosprezo académica, implicando uma atenção a Sociedade Civil Global que se vai criando e investigação na área das Novas Políticas Públicas que de tal Sociedade Civil vão emergindo. BIBLIOGRAFIA Debord, Guy. C1967, 1991. A sociedade do espectáculo. Lisboa: Mobilis in mobile Hardin, Garrett. 1968. The tragedy of commons. Science, Vol. 162, 13 December 1968. www.sciencemag.org Hodgson, Jacqi e Hopkins, Rob (scripted and edited). 2010. Transition in Action. Totness and District 2030. An Energy Descent Action Plan. Totness, Edited by Transiton Town Totness Huggler, Justin. 2005. No drink. No drugs. No politics. No religion. No pets... So is this Utopia? London, The Independent. Em linha: http://www.independent.co.uk/news/world/asia/no-drink-no-drugs-no-politics-no-religion-nopets-so-is-this-utopia-503292.html Jackson, Ross & Jackson, Hildur. 2004. Global Ecovillage Network Village 1990-2004. Em linha: http://www.gaia.org/mediafiles/gaia/resources/HJackson_GEN-History.pdf Magalhães, Paulo. 2007. O Condominio da Terra. Das alterações climáticas a uma nova concepção juridica da planeta. Coimbra, Almedina Morin, Edgar. 1991. Introdução ao pensamento Complexo. Lisboa: Instituto Piaget Pureza, José Manuel (Org.). 2001. Para uma cultura da Paz. Coimbra, Quarteto 248 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Santos, Boaventura de Sousa. 1987. Um discurso sobre as ciências. Porto: Afrontamento Seixas, Paulo Castro. 2006. O Humanitário como cultura global?. In Fronteiras da tolerância, Pró-Dignitat, Lisboa Paulo Castro Seixas. 2007. A Urbanização nas Regiões Desenvolvidas e nas Regiões em Desenvolvimento. In Horta, Ana Paula Beja (Coord.) Manual de Sociologia Urbana. Capítulo VI, Ed. Universidade Aberta, Lisboa Smith, Anthony D. 1995. Supra ou super nacionalismo? Cap 5 in Smith, Anthony D. 1995. Nações e nacionalismo numa era global. Oeiras: Celta Editora The Mother. 1980, 2004. Words of the Mother. Volume 13 Collected Works of the Mother. Pondicherry, Published by Sri Aurobindo Ashram Publication Department WEBGRAFIA Auroville - http://www.auroville.org/ Gaia Trust - http://www.gaia.org/ Transition Sidney (História do Movimento de Transição Urbana) http://www.transitionsydney.org.au/tscontent/history-transition-town-movement - Cohousing Association of United States - http://www.cohousing.org/ Canadian cohousing network - http://www.cohousing.ca/ The UK cohousing network - http://www.cohousing.org.uk/ Eco-Village, and Cohousing Association of New Zealand - http://www.converge.org.nz/evcnz/ Federation of Egalitarian Communities - http://thefec.org/ Global Ecoville Network - http://gen.ecovillage.org/ Sustainable Communities Online - http://www.sustainable.org/ Fellowship for Intentional Communities - http://fic.ic.org/ Transition network - http://www.transitionnetwork.org/ 249 O DIREITO DE PROPRIEDADE SOB O VIÉS GARANTISTA Sérgio Urquhart Cademartori 1 Isabela Souza de Borba2 RESUMO: Diante da atual conjuntura social, das mudanças conceituais constatadas ao longo do tempo pela Teoria do Direito, o tema propriedade tem sido revisitado e exige da comunidade acadêmica a elaboração de novos estudos acerca desse instituto marcado desde a Antiguidade. Para tanto, invoca-se, no presente trabalho, a Teoria do Garantismo Jurídico, do italiano Luigi Ferrajoli, para esclarecer o que se pode entender hoje por direito à/de propriedade, concepção que tende a ser reescrita. Esse estudo somente torna-se possível a partir da análise histórica do conceito de propriedade, que enseja, necessariamente, a passagem, ainda que breve, pela Antiguidade, Idade Média, Modernidade e pelo Estado Contemporâneo, este último assinalado pelos efeitos da globalização e pelas mudanças estruturais ocorridas no campo do Direito. Assim, em meio às diversas outras abordagens que consagram a propriedade enquanto direito inerente aos indivíduos, elegeu-se o Garantismo como marco teórico para o estudo do tema proposto, o qual se limita à compreensão da propriedade no Constitucionalismo contemporâneo. PALAVRAS-CHAVE: Propriedade; Constitucionalismo; Garantismo INTRODUÇÃO O presente estudo tem por desígnio analisar o instituto propriedade, elencado no ordenamento jurídico pátrio na categoria atinente aos direitos fundamentais, assegurados, indistintamente, a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no país. A problemática do tema propriedade emerge a partir dos novos contornos cogitados em relação a esse instituto no seio da sociedade globalizada e, no campo do Direito, com a concepção de Constitucionalismo, adotada diante das constituições irrompidas após a Segunda Guerra Mundial, as quais são marcadas por características fortes, principalmente, no sentido de garantia dos direitos fundamentais, seja por atuação positiva ou negativa do Estado, em oposição às cartas próprias do Estado Legislativo ou Liberal, do século XIX. Ainda é possível conceber a propriedade como um direito fundamental ou esse 1 Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professor titular da graduação e Curso de PósGraduação da UFSC. 2 Mestranda em Filosofia, História e Teoria do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (CPGD/UFSC). A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições instituto deve ser inserido em outra categoria? Para responder a esse questionamento invocase a Teoria do Garantismo Jurídico de Luigi Ferrajoli, Doutor em Direito e professor titular de Teoria do Direito da Universidade de Roma. No entanto, como condição de possibilidade para este estudo, forçosa a reconstrução histórica da propriedade. Ou seja, parte-se da premissa de que somente é possível compreender os contornos desse instituto se regressarmos à sua origem. Logo, na primeira parte do trabalho, a análise ficará voltada à propriedade, em Grécia e Roma antigas, no feudalismo da Idade Média, na Modernidade dos liberais do século XVII e XVIII, e, por fim, no Estado Contemporâneo, considerada, ainda, a realidade brasileira. Assim, talvez seja possível oferecer singela contribuição à Teoria do Direito, pois não raras são as dúvidas e embates travados atualmente em torno da propriedade, já que os contextos político, social, econômico e jurídico ganharam novos contornos e ensejam respostas para questionamentos como o proposto nesse trabalho. 1 Antiguidade: a matriz da propriedade privada. Antes de qualquer demarcação da origem do instituto propriedade, necessário conceituar o que, por ora, é objeto deste trabalho. Em Dicionário de política, Norberto Bobbio define a origem etimológica do termo: “O substantivo Propriedade deriva do adjetivo latino proprius e significa: „que é de um indivíduo específico ou de um objeto específico (nesse caso, equivale a: típico daquele objeto, a ele pertencente), sendo apenas seu‟”. E segue o autor: “o conceito que daí emerge é o de „objeto que pertence a alguém de modo exclusivo‟, logo seguido da implicação jurídica: „direito de possuir alguma coisa‟, ou seja, „de dispor de alguma coisa de modo pleno, sem limites‟” (BOBBIO, 1998, p. 1031). O conceito de propriedade foi formulado ao longo dos tempos, acompanhando o desenvolvimento das sociedades. No entanto, a concepção que se tem hoje a respeito do instituto pouco se assemelha às primeiras notas surgidas a respeito do termo. Não se pode extrair da Antiguidade uma definição de propriedade que corresponda ao conceito formulado no mundo contemporâneo. No entanto, com base em investigações históricas é possível identificar alguns pontos de convergência entre o que se entende por propriedade hoje e os fatos sociais que deram as linhas mestras para o desenvolvimento e aprimoramento do instituto. 251 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições A Antiguidade, sem dúvida, foi o período que marcou as primeiras noções em torno do instituto. Embora o fundamento não fosse legal, como se apresenta hoje, a propriedade já vinha delineada nos Códigos de Hamurabi, Manu e mesmo no Decálogo. Nos dois primeiros documentos, condenava-se o roubo em proteção à propriedade; no Decálogo, o oitavo mandamento previa como violação à lei moral a ofensa à propriedade, ao lado da ofensa à vida, à castidade e ao caráter. De Fustel de Coulanges extrai-se a origem da propriedade na crença politeísta de Roma e Grécia antigas. Segue-se, conforme o autor, que a propriedade era uma instituição vinculada diretamente à família e, sobretudo, à religião. Essa vinculação decorria do fato de que cada família tinha domínio sobre o lar e sobre os antepassados, que eram considerados deuses daquele grupo de pessoas unidas por laços de parentesco. Cultuava-se, nos lares, a veneração aos deuses da família e acreditava-se num puro vínculo material entre eles e o solo, já que ali estabeleciam a morada e dali não poderiam ser transferidos. Essa estreita relação definiu o vínculo entre a propriedade e a família, impondo a esta a obrigação de não se afastar do lar, zelar e cultuar os deuses domésticos, que fincavam naquele lugar a sua morada permanente (COULANGES, 2005, p. 46). Nesse contexto, a propriedade não era vista como um direito atribuído a uma única pessoa; o direito de ter propriedade sobre a terra, sobre o lar, era inerente à família e fundavase tão somente em questões de cunho religioso. A separação de cada propriedade por marcos geográficos surgiu, então, da ideia de que os deuses (antepassados) de cada família deveriam estar situados em localidades separadas por uma determinada distância. Com a delimitação de cada porção de terra pertencente a uma família, as propriedades tornaram-se, literalmente, privadas e, sobretudo, invioláveis. Sob essa concepção, apareceram as primeiras edificações: “as paredes eram levantadas em redor do lar para o isolar e defender, e pode-se dizer que a religião ensinou o homem a construir a primeira casa com os gregos. Nesta casa a família é senhora e proprietária; a divindade doméstica será quem assegurará o seu direito. A casa está consagrada pela presença perpétua dos deuses; a casa é o templo que os guarda” (COULANGES, 2005, p. 47). O fato de a religião ser considerada o fundamento do direito de propriedade nessa época conferiu às terras a condição de invioláveis. Todavia, ao mesmo, tempo determinava a 252 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições inalienabilidade. Sob o fundamento religioso, a propriedade não poderia ser alienada, pois não pertencia a um indivíduo, mas à sua família, de modo que não se aceitava dispor daquela parcela de terra. No entanto, com a Lei das Doze Tábuas, passou-se a admitir a alienação das terras, mas o fundamento religioso não desapareceu, já que àquele que se desfazia do seu lar eram cominadas severas penas, como a perda da cidadania. Também em decorrência da religião não se permitia a expropriação por dívida, uma vez que a propriedade era concebida como um local sagrado, de culto e veneração aos deuses domésticos. Assim, o devedor deveria pagar suas dívidas com o próprio corpo, “a terra, em hipótese alguma, o acompanha na escravidão” (COULANGES, 2005, p. 53). Em certo período da Antiguidade, como visto, a propriedade, ao menos no que tange à terra, fundava-se em valores religiosos, o que, no entanto, não excluiu a dogmática civilística delineada pelos romanos em relação a esse instituto. Em Roma, os objetos passíveis de propriedade, inicialmente, foram divididos em res mancipi e res nec mancipi. Dentre as res mancipi, destacavam-se a terra e os instrumentos destinados à produção agrícola, sendo que tais bens somente poderiam ser transferidos a outrem mediante ato solene; por outro lado, quanto ao ramo das res nec mancipi, tal formalidade era despicienda, a transferência da propriedade das coisas móveis, dinheiro, animais, ocorria por simples tradição (CARDOZO, 2006, p. 96). As mudanças decorrentes da expansão do Império Romano enfraqueceram a economia familiar e agrária que predominava até então, arrogando à sociedade uma concepção de cunho individualista. Considerada a necessidade de propiciar o acúmulo de riquezas, sucederam-se uma série de mudanças na estrutura social: abandonou-se a antiga divisão entre res mancipi / res nec mancipi, para instituir, especificamente com a Lei das Doze Tábuas, a classificação que perdura até hoje entre coisas móveis, imóveis e semoventes. Após o reconhecimento da propriedade quiritária aos cidadãos de Roma 3 e da propriedade pretoriana aos pretores4, no período imperial, os romanos, movidos pelo sentimento de conquistas e pelo desígnio comum de acumular riquezas, passaram a conceber o direito de propriedade como um direito absoluto, atribuído como privilégio apenas a algumas classes sociais. 3 Segundo Francisco Cardozo Oliveira, “o caráter formal do direito romano permitiu ao ius civile disciplinar propriedade quiritária, onde o proprietário devia ser cidadão romano e que somente era transferida pelo ato solene da mancipatio”. (CARDOZO, 2006, p. 98). 4 Assinala-se, ainda, as propriedades peregrina e provincial, que, assim como a pretoriana, eram inferiores à quiritária, mas também regiam-se pelo ius civile. 253 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Todavia, alguns autores acentuam que o direito de propriedade, em Roma, nunca foi ilimitado: “embora sempre reconhecida como o maior poder de uma pessoa sobre um objeto, nunca o direito de propriedade entre os juristas da Cidade Eterna se revestiu de um caráter absoluto, ilimitado. Caio já se encarregava de confirmar esta afirmação, ao conceituar a propriedade como jus utendi et abutendi, quatemus juris ratio patitur. Assim é que o direito haveria de ser usufruído consoante uma razão de direito” (FRANCISCO, 1991, p. 18). No mesmo sentido, Christiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, ao tratarem sobre os direitos reais, expõem que desde o início da civilização romana é possível identificar a submissão da propriedade ao interesse social, em que pese as marcantes diferenças entre a propriedade romana e a moderna.5 Ponderadas as ressalvas, no direito romano, além de absoluto o direito de propriedade era considerado exclusivo e perpétuo. Absoluto, porque o titular do direito tinha, e ainda hoje tem, o poder de usar e dispor do modo que melhor lhe aprouver (utendi, fruendi et abutendi6). Exclusivo, no sentido de que é oponível a todos, tem cunho erga omnes. E perpétuo, pois tem duração ilimitada, ou seja, a propriedade subsiste independentemente do exercício do direito pelo titular, até que sobrevenha causa legal extintiva (MOREIRA, 1986, p. 40). A concepção de propriedade típica do direito romano, fundamentada no absolutismo, na exclusividade e na perpetuação, foi a que perdurou até a noção moderna idealizada em torno do instituto, de viés primordialmente individualista. Nesse sentido, esclarece John Gilissen: “todas estas distinções desaparecem, de resto, progressivamente no Baixo Império, tendo sido, portanto, a concepção individualista da propriedade quiritária aquela que se estendeu a todo o Império romano e a que os juristas da Baixa Idade Média e, sobretudo, dos sécs. XVII e XVIII encontrarão nos textos de Direito romano para sobre eles construírem a 5 “Embora muitos intérpretes do direito romano tenham interpretado que a propriedade em Roma era absoluta, Maria Cristina Pazella revela que desde o início do processo de civilização da sociedade romana pode se observar a clara submissão do exercício da propriedade ao interesse social. Explica a culta jurista que „a submissão do exercício da propriedade à sociedade toda evidencia o privilégio do princípio da humanidade sobre os demais princípios do direito, o que permite que se afaste também o individualismo como característica da propriedade romana, pois mesmo quando exercida individualmente, a propriedade romana sempre esteve sujeita ao interesse social‟. De qualquer forma, pouco há de comum entre a propriedade romana e a propriedade moderna”. (FARIAS; ROSENVALD, 2008. p. 172) 6 Acerca dessas três matrizes conceituais extraídas do direito romano, elucida José Cretella Júnior: “Jus utendi é o direito de usar a coisa, como, por exemplo, o direito do proprietário de construir sobre o seu terreno, o de montar animal de sua propriedade, o de utilizar-se dos trabalhos escravos. Jus fruendi é o direito de usar não propriamente a coisa, mas o direito de aproveitar os frutos e os produtos da coisa. [...] Jus abutendi é o direito que tem o proprietário de abusar da coisa, dispondo dela como melhor lhe aprouver, inclusive destruindo-a, isto é, alterando-lhe a „substantia rerum‟ (incendiar casas, matas; abater árvores; matar animais ou escravos)”. (CRETELLA JÚNIOR, 1995. p. 173) 254 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições teoria moderna da propriedade individualista” (GILISSEN apud MATTOS, 2001, p. 105). Com a Idade Média, o instituto ganha novos contornos em virtude da alteração da estrutura econômica. Irrompe o feudalismo, que põe à queda a concepção romana individualista do direito de propriedade, a qual, no entanto, ressurgiria mais tarde. 2 Idade Média: o feudalismo e a releitura necessária do conceito de individualista de propriedade. Na era feudal, o desaparecimento do comércio e a consequente mudança na estrutura econômica redimensionaram o direito de propriedade. A economia baseada na troca, a produção fundamentada na agricultura de subsistência e a política feudal 7 redefiniram a concepção de propriedade individualista própria do direito romano para recuperar-lhe um certo caráter coletivo. O movimento que ensejou a mudança política e econômica teve origem com o enfraquecimento do Império Romano e a retirada dos cidadãos da cidade para a área rural, onde se estabeleciam junto aos seus escravos que, mais tarde, viriam a ser chamados de servos. Passados os anos, a sociedade feudal foi estruturada em classes fixas: clero, nobreza, servos, e, ainda, os vassalos. Embora sejam despiciendas maiores informações a respeito da estrutura de classes no sistema feudal, é fundamental entender a relação entre os senhores feudais, que pertenciam à nobreza, e seus vassalos, a quem era concedida parte das terras a fim de assegurar um espaço no sistema de produção agrícola. O vínculo estabelecido entre os senhores e seus vassalos assinala as primeiras noções a respeito do domínio direto e domínio útil. 8 No mesmo vértice, Aroldo Moreira assinala que, na Idade Média, a propriedade se caracterizava por uma duplicidade de domínio – fato que implicou na quebra da unidade evidenciada no direito romano – e, ainda, pela existência de vínculos, ônus e encargos 7 No Feudalismo, diante da inexistência de uma autoridade central, a política ficou a cargo dos senhores feudais, que exerciam poder sobre os seus camponeses, restringido-lhes a liberdade e impondo-lhes deveres. Nesse sentido: “o proprietário de terras assume poderes políticos sobre os camponeses que trabalham nas suas terras, impondo uma série de limitações às suas liberdades pessoais. Assim, o modo de produção escravista é substituído pelo feudal: ao escravo sucede o servo, que goza de uma liberdade pessoal parcial, da Propriedade parcial dos meios de produção (instrumentos de trabalho, animais) e de uma certa autonomia na gestão da sua pequena empresa agrícola”. (BOBBIO, 1998, p. 1.033). 8 “A apropriação material da terra constituía a centralidade da vida social e econômica. O domínio se desdobrava em duas esferas distintas: a do domínio útil, que servia à apropriação material do colono, e a do domínio do titular ou proprietário, no caso, o senhor feudal. Na relação entre o colono e o senhor feudal, a instituição do domínio compreendia unidade política e de produção. O domínio exprimia a relação política de poder entre o colono e o senhor feudal e também propiciava ao colono integrar-se ao sistema econômico através da atividade agrícola. A cisão entre domínio útil e domínio do titular reduziu o direito de propriedade ao seu aspecto de titularidade formal, esvaziada pela atividade do colono de trabalhar na terra”. (OLIVEIRA, 2006, p. 103). 255 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições predominantemente sobre a terra. “Na Idade Média tem-se um processo de desintegração da propriedade, com o desdobramento das faculdades entre o titular e o domínio e o efetivo possuidor” (MOREIRA, 1986, p. 63-75). Uma das causas de esvaziamento do caráter individual e exclusivo atribuído à propriedade pelo direito romano, foi justamente a distinção entre domínio útil (do vassalo) e direto (do senhor). A propriedade deixava de ser individual e exclusiva, à medida que o senhor concedia aos vassalos escolhidos parte de suas terras para que pudessem produzir o necessário para subsistência. Como o senhor era o proprietário, ele poderia conceder as terras a quem lhe conviesse, auferindo lucro pelos excessos da produção agrícola. Esse lucro, por outro lado, supria a necessidade de dispor das terras como forma de comércio, ou seja, o sistema de vassalagem excluía a mercantilização da propriedade, o que também vem a se opor às práticas romanas. Não foi apenas a divisão dos domínios que deu nova feição ao instituto da propriedade. A doutrina filosófica cristã de Santo Tomás de Aquino contribuiu sobremaneira para o abandono do caráter absoluto atribuído à propriedade pelos romanos. Para Aquino, a propriedade seria um direito natural cuja titularidade seria conferida tão somente a Deus; o único domínio verdadeiramente absoluto pertenceria a Deus e as riquezas advindas da propriedade deveriam ser, necessariamente, postas à disposição dos pobres (BOBBIO, 1998, p. 1033). O fato de a propriedade assumir novos traços, principalmente no tocante ao sistema de vassalagem – domínio útil e direto –, abriu espaço para considerações em torno da posse e das ações possessórias. A propriedade era reservada ao senhor, porém, a posse das terras ficava a cargo dos camponeses. Sobre a ascensão da posse nessa época, destaca José D‟Amico Bauab: “Na organização feudal tiveram grande amplitude as ações possessórias. Nessa fase intermediária da propriedade, o princípio dominante era o de que „não há terra sem senhor‟, transferindo-se a propriedade das mãos do Estado para as dos senhores, constituindo-se o grosso da população apenas de posseiros, donde a necessidade de se garantirem, aos barões e aos feudatários, as prestações devidas e a posse dos territórios” (BAUAB, 1991, p. 120). Recorda-se, outrossim, que durante a Idade Média investiu-se pouquíssimo em aprimoramento das técnicas utilizadas na produção agrícola, uma vez que os camponeses eram limitados a produzir para sua subsistência, de modo que toda produção excedente, como já mencionado, deveria ser repassada ao senhor das terras. Nessas condições, não seria 256 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições espantoso constatar o desestímulo dos que atuavam cotidianamente na produção e, por outro lado, mas ao mesmo tempo, o ressurgimento da ideia de acúmulo de riquezas por parte dos senhores feudais. A relação de poder entre as classes aliada ao excedente auferido pelos senhores feudais deu chão à economia capitalista que viria a preponderar tempos depois. Nessa linha de raciocínio, a ciência jurídica muito se aprimorou com o sistema prevalente na Idade Média, a obra dos consiliadores, juristas da época, é reconhecida por Franz Wiacker como precursora da moderna dogmática do direito privado. Os consiliadores exploraram instituições e disciplinas que não haviam sido estudadas pelo direito romano, dentre as quais o direito patrimonial da família e o direito da utilização da terra. Com discurso diferente daqueles utilizados pelos glosadores, os consiliadores partiam para outros métodos dialéticos, em que as fontes eram interpretadas de maneira mais livre. “São exemplos conhecidos desta técnica a dedução da proteção da marca e da firma a partir dos interdictos possessórios; do domínio directo e do domínio útil (dominium directum e utile) a partir de categorias romanas totalmente diferentes, o direito de retracto familiar ou a comunhão de adquiridos a partir do direito dotal justinianeu” (WIACKER, 2004, p. 83). Segundo Francisco Cardozo Oliveira, “o feudalismo e o pensamento filosófico medieval contribuíram de forma decisiva para a concepção de propriedade, que se consolidou na modernidade. As mudanças nos fundamentos do direito de propriedade privada moderno, na verdade, podem ser encontradas na Idade Média, ainda que seus efeitos, em razão da passagem do modelo econômico feudal para o modelo econômico liberal, tenham se tornado perceptíveis quando rompida a ordem feudal e instaurada a ordem econômica do capitalismo” (CARDOZO, 2006, p. 103). Embora tenha contribuído significativamente para a elaboração da atual dogmática de direito privado – principalmente em relação à tutela da posse –, no que tange à propriedade, a concepção jurídica medieval aos poucos foi sendo abandonada para ceder lugar ao novo modelo econômico que acenava ao pensamento liberal do Estado Moderno: o capitalismo. Regressou-se, assim, à propriedade individualista.9 9 Acerca disso, oportunas as linhas escritas por José Maria Lasalle Ruiz: “partiendo del trabajo que iniciaron los glosadores, desde la Baja Edad Media se fue elaborando una nueva mentalidad propietaria que, contradiciendo la visión reicentrista y comunitarista medieval, fue paulatinamente erosionando su objetividad hasta convertir al sujeto en el centro de la relación propietaria. Lentamente se abrió camino una estructura más simple y absoluta que laminó la complejidad de la estructura de la propiedad medieval. Fundándose en un individuo que se descubre esencialmente propietario de sí mismo gracias al domínio de su voluntad, la cosa quedó sometida a la potencia activa del sujeto: a un dominium sui que descansaba sobre la concurriencia de un ánimo del sujeto, tal y como el pensamiento franciscano de la segunda mitad del siglo XIII legitimó intelectualmente”. (RUIZ, 2001, p. 28). 257 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições 3 O direito de propriedade no Estado Moderno Na Idade Moderna, com o incremento da atividade comercial e a conseqüente especulação da propriedade10, houve uma regressão ao individualismo 11. O direito de propriedade adquiriu um caráter subjetivo, onde o ponto de partida era a individualidade do proprietário. Aliado ao comércio e à especulação, principalmente da propriedade imobiliária, temse a formação dos Estados nacionais e a ideia de soberania enfatizada por Jean Bodin, segundo o qual a propriedade era fundamento da própria soberania estatal (FRANCISCO, 1991, p. 19). No mesmo período, a propriedade foi inserida, também, na dimensão do direito público, com a ideia de exploração econômica, que passou a abranger não apenas as terras, mas o subsolo, o espaço aéreo e as águas, bens estratégicos para a sobrevivência da comunidade política (FRANCISCO, 1991, p. 21). Com as mudanças políticas e econômicas ocorridas no seio da sociedade, o direito de propriedade foi tomando diferentes proporções. Por ser um instituto antigo e que dá respaldo a uma gama de opiniões, não poderia ficar de fora das discussões filosóficas, políticas e jurídicas travadas pelos pensadores iluministas e jusnaturalistas. Nesse contexto, pode-se mencionar as contribuições oferecidas por John Locke, Thomas Hobbes, Rousseau, Léon Duguit, Pierre-Joseph Proudhon, entre outros12, que cuidaram de estudar esse direito, conferindo-lhe nova feição. No Segundo Tratado sobre o Governo, John Locke concebe a propriedade como um direito anterior ao próprio Estado13, que se adquire pela constante labuta do homem. Para 10 A esse respeito: “Em um salto no tempo, alcançamos o iluminismo e o jusnaturalismo, como marcos de irrupção do formato clássico do direito de propriedade nos séculos XVIII e XIX. A ideologia liberal e individualista representa o triunfo da racionalidade humana e de sua vocação para a liberdade. Portanto, concede-se ao sujeito de direito a possibilidade de manifestar livremente a sua vontade, em um contexto econômico propício à circulação do capital. Nesta vertente, o contrato e a propriedade triunfam como os dois grandes pilares do direito privado”. (FARIAS; ROSENVALD, 2008, p. 173). 11 Segundo Norberto Bobbio, “concepção individualista significa que primeiro vem o indivíduo (o indivíduo singular, deve-se observar), que tem valor em si mesmo, e depois vem o Estado, e não vice-versa, já que o Estado é feito pelo indivíduo e não este é feito pelo Estado”.11 (BOBBIO, 2004. p. 56). 12 Cumpre assinalar que, embora não se ignore a contribuição de Karl Marx e Friedrich Engels, o presente estudo não cuidará de analisar a abordagem do materialismo histórico a respeito da propriedade. Busca-se, aqui, fazer um retrospecto desse instituto, a partir da clássica divisão adotada pela Historiografia, a fim de que seja possível traçar as características que a propriedade assume hoje, com o Constitucionalismo e a Teoria Garantista. 13 Nesse sentido: “O pensador liberal Locke se recusara a reconhecer no contrato social a origem da propriedade. Na sua teoria, a propriedade era anterior à sociedade; a propriedade tinha como base a necessidade natural e o trabalho. O direito à propriedade seria anterior à sociedade civil, mas não inato. Sua origem residiria na relação concreta entre o homem e as coisas, através do processo de trabalho”. (MATTOS, 2001 , p. 96). 258 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Locke, ninguém possui originalmente o domínio sobre alguma coisa de tal forma que possa considerá-la privada por natureza. A propriedade, embora concebida como um direito préexistente ao Estado, deve ser adquirida por algum meio. Assim: “Podemos dizer que o trabalho de seu corpo e a obra produzida por suas mãos são propriedade sua. Sempre que ele tira um objeto do estado em que a natureza o colocou e deixou, mistura nisso o seu trabalho e a isso acrescenta algo que lhe pertence, por isso o tornando sua propriedade” (LOCKE, 1994, p. 97). Por outro lado, “a mesma lei da natureza que nos concede dessa maneira a propriedade, também lhe impõe limites” (LOCKE, 1994, p. 100). Segundo essa máxima, somente pode ser considerado propriedade aquilo que cada homem conquista para sua existência, por obra de seu trabalho. O desperdício é alheio à concepção de propriedade formulada por Locke, pois o excedente não pertenceria ao proprietário, mas, sim, aos demais membros da comunidade. Ao passo que Locke concebeu a propriedade como direito natural, absoluto, préexistente à sociedade, os contratualistas Thomas Hobbes14 e Jean-Jacques Rousseau15 ocuparam-se de entender o instituto como um direito que surge somente a partir da fundação da sociedade política, sendo, portanto, uma concessão da coletividade (FRANCISCO, 1991, p. 20). Segundo Francisco Cardozo Oliveira, o fundamento da propriedade liberalindividualista da modernidade tem origem na fusão entre a concepção de propriedade baseada na laboriosidade individual do homem – Locke – e o atributo da vontade individual como elemento indispensável para o apossamento no mundo do que é exterior à pessoa, como sugere Immanuel Kant, em Metafísica dos Costumes (OLIVEIRA, 2006, p. 108). A cristalização da propriedade como direito individual do homem ocorreu por conta da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, onde tal instituto foi expressamente institucionalizado nos moldes delineados por Locke: “Art. 17. Como a propriedade é um 14 Conforme J. G. A. Pocock, “Hobbes operou no âmbito da jurisprudência natural. Ele mostrou indivíduos agindo e, e a partir de, um estado de natureza, estendendo seu poder sobre as coisas uns contra os outros, e até mesmo adquirindo tal posse e direito sobre as coisas uns contra os outros, e até mesmo adquirindo tal posse sobre os direitos que podiam transferi-los a um soberano que eles instituíam no ato da transferência. Seus indivíduos movem-se do pré-possessivo ao possessivo, do pré-político ao político, do pré-humano ao humano” (POCOCK, J. G. A., 2003, p. 144). 15 Rousseau, ao tratar sobre o “domínio real”, não se distancia da ideia de Locke, de que a propriedade é fruto do trabalho: “Em geral, para autorizar sobre um terreno qualquer direito de primeiro ocupante, são necessárias as seguintes condições: [...] que apenas seja ocupada a área de que se tem necessidade para subsistir; [...] que se tome posse dela, não em virtude de uma vã cerimônia, mas pelo trabalho e pela cultura, único sinal de propriedade que, à falta de títulos jurídicos, deve ser respeitado por outrem”. (ROUSSEAU, p. 32). 259 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado, a não ser quando a necessidade pública legalmente comprovada o exigir e sob condição de justa e prévia indenização”. Mais tarde, o Código Napoleônico, de 1804, descreveu a propriedade como sendo o “direito de gozar e dispor das coisas de maneira mais absoluta, desde que delas não se faça uso proibido pelas leis e regulamentos” (art. 544). Todavia, esse caráter eminentemente individualista do direito de propriedade, assinalado por Locke e inscrito nos mencionados diplomas, foi questionado pelo socialista francês Pierre-Joseph Proudhon, na obra “O que é propriedade?” (1840). Proudhon encarou a propriedade como “roubo” e, com base nisso, reformulou as características até então atribuídas ao instituto. De acordo com Proudhon, “a propriedade, segundo a sua razão etimológica e as definições da jurisprudência, é um direito fora da sociedade; é evidente que se os bens de cada um fossem bens sociais as condições seriam iguais para todos e seria contradição dizer: a propriedade é um direito que o homem possui ao dispor de uma propriedade social da maneira mais absoluta. Assim, se estamos associados para a liberdade, igualdade, segurança, não o estamos em relação à propriedade; assim, se a propriedade é um direito natural, esse direito natural não é social mas anti-social. Propriedade e sociedade são coisas que repugnam uma à outra: é tão impossível unir dois proprietários como juntar dois ímanes pelos pólos semelhantes. É preciso que a sociedade pereça ou então elimine a propriedade” (PROUDHON, 1975, p. 44). A repulsa do autor em relação à propriedade aproxima-o, por outro lado, da posse. Conclui, ele, que a posse é um direito capaz de se harmonizar com a sociedade, ao passo que a propriedade seria o suicídio da sociedade; aquela estaria dentro do direito, enquanto esta seria o mal da terra (PROUDHON, 1975, p. 246). Proudhon foi um dos autores que revolucionaram a ideia de propriedade no Estado moderno. Contestou o fato de a propriedade estar inserida no contexto dos direitos naturais consagrados na Constituição da França de 1973 – liberdade, igualdade, propriedade e segurança – e concluiu que o instituto se sobrepõe à sociedade, pois foge à razão e volta-se ao despotismo. Esse viés radical deu vazão a novas reflexões sobre o tema. Léon Duguit, anos mais tarde, propôs algumas notas a respeito do que hoje se entende por função social da propriedade. Para este jurista francês, “a propriedade deve ser compreendida como uma 260 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições contingência, resultante da evolução social; e o direito do proprietário, como justo e concomitantemente limitado pela missão social que se lhe incumbe em virtude da situação em que se encontra” (DUGUIT apud MATTOS, 2001, p. 102). Assim como Proudhon refletiu sobre a propriedade a partir do princípio da igualdade, Duguit encontrou também nesse princípio o vetor de sua tese. A igualdade era ponto de partida e, ao mesmo tempo, de chegada, uma vez que deveria informar toda a ordem econômica, política, social e jurídica, à vista de garantir igualdade de condições e de oportunidades aos cidadãos. Ainda que a igualdade fosse ponto de convergência entre os dois pensadores, ao invés de conceber a propriedade como um instituto contrário à sociedade, Duguit provocou uma nova inflexão, abrindo caminhos para a função social da propriedade. Essa noção informou a sistematização do direito civil ocorrida no século XX. Segundo Orlando Gomes, “no mundo moderno, o direito individual sobre as coisas impõe deveres em proveito da sociedade e até mesmo no interesse dos não-proprietários” (GOMES, 1999, p. 111). À medida que se impuseram limitações ao proprietário em prol do bem comum, o direito de propriedade assumiu nova feição. O caráter absoluto foi necessariamente relativizado pela função social da propriedade. A lei passou a regular os direitos do proprietário em virtude das novas exigências sociais e da própria política liberal que orientava a racionalidade econômica. Como consequência prática dessa mudança estrutural do conceito, anota-se a desapropriação da propriedade privada em favor do bem comum. Há, notadamente, uma inversão de valores, o público passa a se sobrepor ao privado e essa concepção se mantém viva nas constituições do segundo pós-guerra, como a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. A regulação do direito de propriedade, à toda evidência, foi um dos traços marcantes no que se refere ao Estado Moderno. As limitações impostas aos proprietários em razão do interesse público não sugeriram apenas a mencionada inversão de valores, mas permitiram que o direito de propriedade andasse de mãos dadas com a realidade social. Esse é um dos fatores de maior relevância para o período contemporâneo, em que as novas exigências sociais determinam a necessária reformulação do conceito. 4 O direito de propriedade no Estado Contemporâneo: a mudança de paradigma e a problemática ambiental. No Período Contemporâneo, o direito de propriedade vem sofrendo uma série de 261 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições alterações substanciais, que ensejam, necessariamente, a revisão do conceito e, principalmente, do paradigma até então firmado sobre as bases de uma política e economia liberais. O ordenamento jurídico brasileiro mantém incólumes os traços individuais da propriedade marcados na modernidade pela concepção liberal de John Locke. Nesse sentido, o art. 1.228 do Código Civil de 2002 retoma a ideia de que a propriedade é o direito de usar, gozar e dispor da coisa, assim como o direito de reavê-la do poder de quem a possua ou detenha injustamente. Oportunas as palavras de Christiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald: “A propriedade é um direito complexo, que se instrumentaliza pelo domínio, possibilitando ao seu titular o exercício de um feixe de atributos consubstanciados nas faculdades de usar, gozar, dispor e reivindicar a coisa que lhe serve de objeto (art. 1.228 do CC). A referida norma conserva os poderes do proprietário nos moldes tradicionais” (FARIAS; ROSENVALD, 2008, p. 176). A propriedade, tal como exposta no Código Civil, vincula-se à ideia de domínio preservada desde a antiguidade. Sem dúvida, a noção de domínio revela-se de suma importância para solucionar certas espécies de conflitos emergidos na sociedade. Todavia, a codificação do individualismo liberal, ao mesmo tempo, mantém estática a substância da propriedade. A complexa condição da sociedade pós-moderna exige mudança estrutural, ou seja, a propriedade deve ser concebida como instituto dinâmico e não estático. O que parece fundamental num dado momento da história e numa determinada civilização pode não ser fundamental em outras épocas e em outras culturas, sendo impossível atribuir fundamento absoluto a direitos historicamente relativos (BOBBIO, 2004, p. 18). Neste contexto, exige-se uma reformulação do próprio fundamento do direito de propriedade. Talvez não seja o caso de simplesmente abandonar a ideia que se volta ao domínio, mas de construir um estudo que permita entender esse direito com base em fundamentos exigidos pela sociedade atual, fazendo com que o direito ande de mãos dadas com a realidade. Questão prática que torna forçosa a revisão do paradigma são, hoje, os sistemas de autorregulação surgidos nos mais diversos segmentos da sociedade. Não fica de fora a propriedade, cujos estudos caminham no sentido de encontrar um fundamento pautado na 262 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições coletividade e não apenas na histórica relação indivíduo-Estado, à medida que a sociedade clama pela redução das desigualdades. Esse viés que precisa ser construído e explicado pela comunidade acadêmica. Nesse norte, José Isaac Pilati alerta que o traço individualista da propriedade invadiu espaços que antes pertenciam ao coletivo: terras indígenas, reservas naturais e outras desse jaez no Brasil. Contudo, esse absolutismo jurídico que cerca o instituto vem sendo questionado e relativizado pelos novos modelos de autorregulação, os quais refletem o caráter pluralístico das atuais sociedades nos texto constitucionais (PILATI, 2009, p. 97). O mesmo autor, ao referir-se à propriedade na pós-modernidade, divide-a em dois pólos: a propriedade comum, prevista no Código Civil; e as propriedades especiais, que relativizam o indivíduo como interlocutor mediante titularidades coletivas e também relativizam o objeto, que, além dos bens corpóreos, passa a abranger situações jurídicas partilhadas coletivamente (PILATI, 2009, p. 98). Evidenciada a nova face do direito de propriedade, de cunho eminentemente coletivo, convém ingressar na problemática da sua função social, à medida que se trata de um bem coletivo, cujo titular é a sociedade em sua mais ampla extensão. Não é preciso maior esforço teórico para saber que uma das mais importantes contribuições para a preservação ambiental é justamente a função social da propriedade elaborada por Léon Duguit. Embora a Declaração dos Direitos do Homem (1783) já dispusesse acerca da restrição dos direitos do proprietário em proveito de necessidade pública, o pensamento liberal da época, em certa medida, esvaziava a intenção do legislador, pois, sobretudo, prevalecia o interesse individual e absoluto do proprietário. Hoje, a situação é outra. A constante preocupação com o meio ambiente, por exemplo, diante das recorrentes ameaças de tragédias globais leva à necessidade de um controle mais rígido das propriedades privadas, que se opera sob o fundamento da função social da propriedade. Como visto acima, remanesce, ainda, a questão relativa ao correto enquadramento do direito de propriedade. Deve ser lembrado que o mesmo aparece arrolado no elenco de direitos e garantias individuais de nossa Constituição. Em consequência, do ponto de vista topológico, não há dúvida de que a intenção do constituinte era enquadrá-lo como direito fundamental. Mas, será o direito de propriedade materialmente um direito fundamental? Uma possível resposta adequada a essa questão pode ser aquela fornecida pela Teoria Garantista, a 263 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições partir da concepção de direitos fundamentais abraçada por Ferrajoli. Assim, impõe-se, antes de mais nada, explorar a definição garantista dos direitos fundamentais, para, após, cotejá-la com as reflexões do autor italiano sobre o tema da propriedade. 5 A definição formal de direitos fundamentais Ferrajoli prefere adotar uma definição formal (não topológica) dos direitos fundamentais, dado o substancial valor heurístico da mesma, já que ela permite obviar discussões sobre a enumeração daqueles, o que traz questões alheias à área da teoria geral do direito: para ele, são direitos fundamentais todos aqueles direitos subjetivos que correspondem universalmente a todos os seres humanos enquanto dotados do status de pessoas, de cidadãos ou pessoas com capacidade de fato (FERRAJOLI, 2001; p.19). Por sua vez, define o direito subjetivo como qualquer expectativa positiva (de prestações) ou negativa (de não sofrer lesões) atribuída a um sujeito por uma norma jurídica, e o status como sendo a condição de um sujeito, prevista por uma norma jurídica positiva, como pressuposto de sua idoneidade para ser titular de situações jurídicas e/ou autor dos atos que são exercício das mesmas; por último, a universalidade é relativa à classe dos sujeitos a quem sua titularidade está normativamente reconhecida (FERRAJOLI, 2001; p. 20). Como ele demonstra, são evidentes as vantagens oportunizadas por uma definição formal: visto que a mesma prescinde de circunstancias de fato, é válida para qualquer ordenamento com independência dos direitos fundamentais previstos ou não no mesmo, inclusive nos ordenamentos totalitários ou pré-modernos. Portanto, possui o valor de uma definição pertencente à teoria geral do direito (FERRAJOLI, 2001; p. 21) Além disso, é ideologicamente neutra. Assim, é válida qualquer que seja a filosofia jurídica ou política adotada: positivista ou jusnaturalista, liberal ou socialista, e inclusive antiliberal e antidemocrática (FERRAJOLI, 2001; p. 21) Apesar disso, esse caráter formal da definição não impede que seja suficiente para nela identificar-se a base da igualdade jurídica e o caráter inalienável e indisponível dos interesses subjacentes aos mesmos, interesses que coincidem com as liberdades e as demais necessidades de cujas garantias dependem a vida, a sobrevivência, a igualdade e a dignidade humanas (idem). A partir dessa definição formal, Ferrajoli estabelece uma classificação dos direitos fundamentais empregando os critérios de cidadania e capacidade de fato, o que vai determinar o estabelecimento de quatro categorias básicas desses direitos: 264 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições 1) direitos da personalidade: pertencem a todos 2) direitos de cidadania: atribuíveis somente aos cidadãos 1) direitos primários ou substanciais : pertencem a todos 2) direitos secundários ou instrumentais: somente às pessoas com capacidade de fato. Cruzando os dois critérios teremos 4 classes de direitos: 1) direitos humanos : direitos primários das pessoas concernentes a todos os seres humanos (ex: vida, integridade, liberdade, direito à saúde e educação, garantias penais e processuais); 2) direitos públicos: direitos primários reconhecidos somente aos cidadãos (direito ao trabalho em certos casos, assistência em caso de inabilitação para o trabalho); 3) direitos civis: direitos secundários atribuídos a todas as pessoas com capacidade de fato (poder negocial, liberdade contratual, liberdade de empresa direito de postular em juízo e todos os potestativos nos quais se manifesta a autonomia privada e se funda o mercado); e 4) direitos políticos: direitos secundários reservados somente aos cidadãos com capacidade de fato (votar e ser votado) (FERRAJOLI, 2001; pp. 22-23) 6 A posição dos direitos patrimoniais na Teoria Garantista Luigi Ferrajoli, coerente com a sua definição – e conseqüente classificação – dos direitos fundamentais, exclui do rol dos mesmos os direitos patrimoniais. De fato, expõe ele a existência de uma diferença radical de estrutura entre essas duas classes de direitos. A confusão, para ele, reside no fato de que, em nossa tradição jurídica, a expressão “direito subjetivo” tem sido empregada para abrigar tanto os direitos inclusivos quanto exclusivos, tanto universais quanto singulares, tanto disponíveis quanto indisponíveis, sendo os primeiros herança do jusnaturalismo contratualista e os segundos legado da tradição romanista (FERRAJOLI, 2001; p. 25). Utiliza como ponto de partida de suas reflexões três afirmações: de início, a célebre passagem de Locke, no Segundo tratado sobre o governo, em que este postula como direitos fundamentais justificadores do contrato social a vida, a liberdade e a propriedade; de outra banda, o artigo 2º da Declaração de 1789 – que enuncia como direitos fundamentais a 265 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições liberdade, a propriedade e a resistência à opressão; e por último a manifestação de T. H. Marshall, sociólogo norteamericano, quem, em sua obra Cidadania e classes sociais, abrange como direitos civis tanto a liberdade quanto a propriedade (FERRAJOLI, 2001; p. 29). Essa confusa mistura entre direitos de liberdade e direitos de propriedade é atribuída pelo professor italiano ao caráter polissêmico da expressão “direito de propriedade”, que abrange, tanto em Locke quanto em Marshall, de um lado o direito a ser proprietário e a dispor dos direitos de propriedade, subsumíveis à classe de direitos civis, e de outro o concreto direito de propriedade sobre um bem determinado. Na história do pensamento ocidental, isto dará lugar a duas lamentáveis confusões: de um lado, a elevação da propriedade ao mesmo nível da liberdade, operada pelo liberalismo; e, inversamente, a desvalorização das liberdades no pensamento marxista, igualadas à propriedade como “direitos burgueses” (FERRAJOLI, 2001; p 30). Na tentativa de esclarecer essa confusão, Ferrajoli debruça-se sobre quatro grandes diferenças estruturais entre as duas classes de direitos: a primeira consistente no fato de que os direitos fundamentais – incluídos aí além da vida e liberdades, o direito de adquirir e dispor dos bens objeto da propriedade – são universais, no que diz com seus titulares, enquanto os direitos patrimoniais – direito de propriedade, outros direitos reais e de crédito – são singulares, dada a possibilidade de determinação de seu ou seus titulares. Assim, conclui-se que uns são inclusivos, estabelecendo a base da igualdade jurídica, enquanto que outros são exclusivos, já que se exercem com exclusão de todas as outras pessoas, fundando situações de desigualdade (FERRAJOLI, 2001; p 30). A segunda diferença tem a ver com as próprias características dos direitos fundamentais: são estes indisponíveis, inalienáveis, intransigíveis e personalíssimos, enquanto que o direito de propriedade são disponíveis, negociáveis e alienáveis. Estes são acumuláveis; os direitos fundamentais não o são. Nas palavras do autor: “No cabe llegar a ser jurídicamente más libres, mientras que sí es posible hacerse jurídicamente más ricos.” (FERRAJOLI, 2001; p 31). A indisponibilidade dos direitos fundamentais é tanto ativa, isto é, são inalienáveis pelo seu titular, quanto passiva, o que quer dizer que não estão ao alcance nem do Estado nem do mercado (FERRAJOLI, 2001; p 32). De seu lado, a terceira diferença, decorrente da segunda, é a de que, ao ser disponíveis os direitos patrimoniais, estão os mesmos sujeitos a vicissitudes, ou seja, a ser constituídos, modificados ou extintos por atos jurídicos (contratos, testamentos etc.) enquanto 266 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições que os direitos fundamentais dão-se ex lege. Isto quer dizer que enquanto os direitos fundamentais são normas, os direitos patrimoniais são predispostos por normas (FERRAJOLI, 2001; p 33). O jurista italiano designa as normas que estatuem direitos fundamentais como normas téticas, as quais dispõem imediatamente as situações expressadas por elas; de outro lado, as normas que predispõem situações jurídicas – típicas da esfera dos direitos patrimoniais – são chamadas de normas hipotéticas (FERRAJOLI, 2001; p 34). Finalmente, a quarta diferença reside em que, enquanto os direitos patrimoniais são, por assim dizer-se, horizontais, os direitos fundamentais são verticais, e isto num duplo sentido: a) enquanto as relações jurídicas dos titulares de direitos patrimoniais são de tipo civilista, as relações dos titulares de direitos fundamentais são do tipo publicista, no sentido que se entretém com o Estado; b) enquanto os direitos patrimoniais – de propriedade ou de crédito – estabelecem proibições de lesão (no caso dos direitos reais) ou obrigação de satisfação (no caso do direito de crédito), os direitos fundamentais correspondem a proibições ou obrigações a cargo do Estado, ocasionando sua violação a declaração de invalidade do ato ou lei que a ocasionou (idem). 7 A crítica de Danilo Zolo à concepção de Ferrajoli As reflexões de Ferrajoli sobre a propriedade privada são alvo de crítica por parte de seu conterrâneo Danilo Zolo, quem arrola os seguintes argumentos para vulnerar a teoria daquele: a) A defesa do liberalismo da propriedade privada não é fruto de um equívoco semântico, como quer Ferrajoli, mas uma das categorias mais coerentes e reflexivas da sua ideologia política (FERRAJOLI, 2001; p. 86). De outro lado, Marx nunca criticou a propriedade em si mesma, mas a propriedade privada dos meios de produção (FERRAJOLI, 2001; p. 89). b) Os direitos de liberdade também atuam (ou podem atuar) como fatores de desigualdade: o que produz desigualdade são algumas liberdades fundamentaiscomo a autonomia negocial, a liberdade de associação e de imprensa, a liberdade de in iniciativa econômica no setor de comunicação de massas (ele cita o caso Berlusconi) – cujo exercício pode produzi um poder político, econômico e comunicacional de forte acumulação (FERRAJOLI, 2001; p. 91). c) Deveriam excluir-se da categoria de direitos fundamentais os direitos patrimoniais? Isto seria plausível se fossem respeitadas duas condições: 1) que não 267 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições se violem formas de propriedade preciosas para o indivíduo (domicílio, objetos pessoais, pequenas poupanças etc.); e 2) que se tenha presente que numa economia de mercado a restrição na área de direitos patrimoniais somente é concebível se não supuser redução da proteção jurídica às regras do intercambio econômico e financeiro. d) Assim, talvez uma via alternativa seria a redução da cota de renda individual e de bens particulares das pessoas em troca de uma maior disponibilidade de recursos sociais e ambientais, lazer e autodeterminação pessoal (FERRAJOLI, 2001; p. 92). 8 A crítica de Mario Jori De seu lado, Mario Jori entende que há três aspectos problemáticos nas noções de direitos fundamentais/patrimoniais: a) aqueles referidos à noção de universalidade; b) à noção de disponibilidade, e c) às garantias (FERRAJOLI, 2001; p. 119) No que diz com a universalidade, Jori critica que a concepção formal da mesma às vezes aparece em contradição com passagens da obra de Ferrajoli nas quais este denota um valor eticamente positivo para a igualdade substancial, o que leva este último a considerar como mais importantes, enquanto valor ético, os direitos fundamentais do que os direitos patrimoniais (FERRAJOLI, 2001; pp. 119-120). No tocante à disponibilidade, Jori considera equívoca a posição de Ferrajoli quanto à mesma, de vez que essa categoria não é suficientemente vigorosa para fundar a diferença entre direitos fundamentais e patrimoniais: com efeito, diz ele, os direitos fundamentais podem ser objeto de atos diposicionais, tais como o suicídio ou a auto-mutilação (FERRAJOLI, 2001; pp. 120-126). Por último, ao abordar a questão das garantias, Jori observa que não existe diferença substancial entre as garantias dos direitos fundamentais e aquelas dos direitos patrimoniais. Isto porque estes direitos encontram suas garantias na proteção e no valor ético do direitoi de propriedade sobre a coisa x ou no direito de crédito x (FERRAJOLI, 2001; p. 129). Ademais, as constituições modernas reservam a posição de direitos invioláveis tanto aos direitos fundamentais quanto aos patrimoniais, por considerá-los igualmente merecedores de proteção constitucional (FERRAJOLI, 2001; p. 130). 9 A réplica de Ferrajoli 268 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Luigi Ferrajoli responde às críticas dirigidas à sua construção teórica de direitos patrimoniais – enquanto formal e substancialmente diferentes dos fundamentais – esclarecendo, dentre outras categorias, a sua concepção de “disponibilidade” (FERRAJOLI, 2001; pp. 160-161). Quanto a esta, diz ele que não é a mesma coisa a disponibilidade de um direito fundamental (por exemplo, ser privado da liberdade) do que um ato de disposição (entendido como “qualquer decisão que seja causa de um direito patrimonial”). Assim, o que é disponível é um direito patrimonial (FERRAJOLI, 2001; pp. 160-161). Além disso, a expressão “ato de disposição” alude à liberdade ativa, isto é, aos atos de autonomia privada associados pelas normas aos efeitos de constituição, modificação e extinção de um direito patrimonial (FERRAJOLI, 2001; p. 161). Uma segunda crítica contestada por Ferrajoli diz respeito ao que ele denomina de “equívoco semântico” da confusão entre os direitos a converter-se em proprietário e exercer os direitos de propriedade, de um lado, e de outro o direito de propriedade de que cada um é titular sobre determinados bens. De fato, enquanto os primeiros são universais (porque atribuíveis a todos, independentemente de idade, ou exercíveis como direitos de autonomia por aqueles com capacidade de exercício), os últimos não são fundamentais, já que são direitos sobre os próprios bens, dos quais cada um é titular exclusivo (FERRAJOLI, 2001; p. 165). Com efeito, cada um é titular de seus próprios bens com exclusão de todas as outras pessoas, e neste sentido, tal situação jurídica funda a desigualdade. Recorde-se que aqui o critério é puramente formal (universalidade x titularidade exclusiva). 10 O desenvolvimento teórico das reflexões de Ferrajoli em Principia Iuris Em sua opus magna de 2007 (FERRAJOLI, 2007, pp. 759 ss.) o autor italiano salienta as quatro diferenças entre direitos fundamentais e direitos patrimoniais já esboçadas na obra anteriormente referida. Assim, diz ele que a primeira diferença entre essas duas classes de direitos reside no fato de que os direitos fundamentais são direitos universais – no sentido lógico de que dizem respeito a todos igualmente sobre a base da simples identidade de cada um como pessoa, cidadão ou como sujeito com capacidade de exercício (ou de fato) – enquanto que os direitos patrimoniais – reais e de crédito – são direitos singulares no sentido igualmente lógico da quantificação existencial de seus titulares. Dessa forma, os primeiros são inclusivos, enquanto os segundos são exclusivos, ou seja, se exercem excludendi alios (FERRAJOLI, 2007; p. 761). Adverte o autor para o fato, sempre enfatizado por ele, de que essas diferenças são 269 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições estruturais, formais, independentes, portanto, de seu conteúdo, já que tanto os direitos patrimoniais quanto muitos dos direitos sociais tem conteúdo econômico. (idem). A segunda diferença diz com a disponibilidade dos direitos patrimoniais, enquanto os direitos fundamentais caracterizam-se pela sua indisponibilidade, ou seja, subtraídos ao mercado e inderrogáveis por decisões públicas (FERRAJOLI, 2007, p. 762). A terceira diferença, conseqüência da anterior, refere-se às causas que originam as duas classes de direitos: os direitos fundamentais consistem imediatamente em regras heterônomas (precisamente em regras tético-deônticas) não alteráveis pelo seu exercício nem pela sua violação. São, portanto, ex lege e não ex contractu. Já os direitos patrimoniais, dada a sua disponibilidade, não são diretamente conferidos por normas, mas pressupõem normas (hipotético-deônticas) as quais hipoteticamente os predispõem como efeitos dos atos por elas previstos como causas (FERRAJOLI, 2007, pp. 762-763). A quarta diferença, de seu lado, consiste no fato de que, enquanto os direitos patrimoniais são do tipo horizontal – já que as relações entre seus titulares são do tipo civilista – os direitos fundamentais são verticais, eis que, dado o fato de que vinculam antes de tudo o Estado, constituem relações de tipo publicista. (idem). Todas estas diferenças vêm apontar para uma diversidade maior entre direitos fundamentais e patrimoniais: com efeito, como diz Ferrajoli, os direitos fundamentais são iguais não só no sentido de que dizem respeito a todos, mas também no sentido de que dizem respeito invariavelmente e normativamente de igual forma e em igual medida. Os direitos patrimoniais são pro sua vez desiguais, continua o autor, no duplo sentido de serem contingentes e mutáveis por causa dos acontecimentos aos quais se subordinam, seja pelos titulares, seja pelos conteúdos (FERRAJOLI, 2007, p. 764). 11 A propriedade como direito real e como direito civil Após definir os direitos reais como direitos patrimoniais absolutos, que tem os bens por objeto e consistentes na expectativa de sua não lesão (FERRAJOLI, 2007, p. 767), o autor italiano dedica-se a examinar a importante distinção entre o direito de propriedade como direito real patrimonial e a propriedade enquanto direito civil fundamental. No uso corrente, essas duas noções – a propriedade enquanto “ilimitado e exclusivo domínio de uma pessoa sobre uma coisa”, segundo a clássica definição de Savigny, e a propriedade como direito de adquirir e de dispor dos bens de propriedade – são costumeiramente confundidas. É esta ambivalência do termo “propriedade” – unida aos seus usos metafóricos e persuasivos 270 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições (quando se fala da propriedade da própria pessoa, ou do próprio corpo, ou da própria liberdade) – a que é responsável pelos seus diversos deslocamentos semânticos: a assimilação da propriedade sobre bens determinados aos direitos de liberdade enquanto propriedade de si mesmo e, de outro lado, aos direitos civis de autonomia, quais sejam, os de dispor dos próprios bens. Da propriedade enquanto direito real e enquanto direito civil é, no entanto, agora possível identificar tanto as diferenças estruturais quanto os nexos que se dão entre elas (FERRAJOLI, 2007, p. 769). As diferenças estruturais são as mesmas que separam os direitos fundamentais dos patrimoniais. Os direitos civis de autonomia, inclusive até aquele de adquirir e dispor dos próprios bens, são direitos fundamentais, e como tais universais e indisponíveis, isto é, atribuíveis a todos enquanto pessoas com capacidade de exercício e diretamente dispostos pelas normas tético-deônticas que os prevêem. Pelo contrário, os direitos reais, antes de tudo a propriedade sobre bens determinados, são direitos patrimoniais, e como tais singulares e disponíveis, isto é, atribuíveis aos seus titulares com exclusão dos outros e predispostos como efeitos das normas hipotético-deônticas que prevêem os atos que deles são causa. Trata-se por isso de duas classes de direitos não apenas diferentes, mas estruturalmente contrários (FERRAJOLI, 2007, PP. 769-770). Graças a essas relações de contrariedade diminuem as ambigüidades que afetam o termo propriedade no uso cotidiano. Quando se fala – como, por exemplo, no art. 2º da Déclaration de 1789, ou no Segundo tratado de Locke, ou mesmo na tipologia de Marshall – do “direito de propriedade” como um “direito natural” ou “do homem” ou “civil” ou “de cidadania” ou mesmo “fundamental”, no nível do direito de liberdade, alude-se elipticamente ao primeiro destes direitos, que, com respeito ao segundo é por assim dizer um meta-direito: ou seja, um direito fundamental porque atribuível a todos enquanto pessoas, totalmente diferente dos direitos reais sobre bens determinados graças àquele adquiridos ou alienados; assim como é diferente do direito fundamental de imunidade contra lesões indevidas à integridade pessoal o direito de crédito ao ressarcimento de um dano à própria integridade concretamente ocorrido por um ato ilícito (FERRAJOLI, 2007, p. 770). Entre as duas classes de direitos existe, no entanto, também um nexo. Os direitos reais e os direitos patrimoniais, em geral, são disponíveis graças à titularidade dos direitos civis de autonomia, por cujo exercício, consistente em atos negociais, podem aqueles ser produzidos, modificados, transferidos ou extintos; o que pelo contrário é excluído pelos direitos fundamentais, ao quais não são negociáveis, no sentido de que jamais têm seu título 271 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições ou causa num negócio jurídico, mas sempre numa fonte normativa (FERRAJOLI, 2007, pp. 770-771). CONCLUSÃO Como se viu, o direito de propriedade, consagrado em nossa Carta como um direito fundamental, merece ser objeto de análise mais pormenorizada, como aquela oferecida pelas reflexões de Ferrajoli, para uma melhor compreensão do instituto. Com efeito, para o autor italiano, o direito de propriedade deve distinguir-se do direito à propriedade, sendo aquele um direito subjetivo comum e este um direito fundamental, dado que este último reúne as características exigidas do ponto de vista formal para a sua fundamentalidade, ao contrário daquele. De outra banda, deve, ainda, ser diferenciado o direito à disposição dos próprios bens, que é também um direito fundamental, do direito de alguém sobre um determinado bem, que se constitui em direito civil comum. Assim, a correta interpretação do disposto no inciso XXII do art. 5º da Constituição da República exige uma postura restritiva e analítica como pressuposto da compreensão do instituto. REFERÊNCIAS BOBBIO, Norberto et. al. Dicionário de política. 11. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998. _________, A era dos direitos. Trad. de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de Direito Romano. 19. ed. 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WIACKER, Franz. História do direito privado moderno. Trad. de 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004. 273 PARTE II MEIO AMBIENTE A IMPORTÂNCIA DA PROTEÇÃO DA BIODIVERSIDADE BRASILEIRA PARA GARANTIR O ACESSO À SAÚDE Tarin Frota Mont‟Alverne 1 Denise Almeida de Andrade2 RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo confirmar a necessidade de se estatuir normas regulamentadoras para a repartição dos benefícios oriundos da utilização da biodiversidade, haja vista a discrepância de interesses e realidade dos países megadiversos (ricos em biodiversidade, a exemplo do Brasil) e dos países detentores de biotecnologia (a exemplo dos Estados Unidos e países europeus). Na verdade, existem os mecanismos de acesso e repartição de benefícios estabelecidos no artigo 15 da Convenção da Biodiversidade, no entanto, tal artigo não garante a repartição justa e equitativa dos benefícios decorrentes da utilização da biodiversidade e, por isso, encontra-se em negociação um regime internacional sobre o acesso e a repartição de benefícios no âmbito desta Convenção com o intuito de dar efetividade à tais instrumentos. Neste contexto, percebe-se que o acesso à saúde no Brasil pode ser incrementado a partir da existência e do efetivo cumprimento de normas que objetivem proteger a biodiversidade brasileira. Para desenvolver a presente pesquisa, utilizouse, primordialmente, de levantamento bibliográfico, com a análise de livros e periódicos nacionais e internacionais, bem como a verificação de documentos concernentes ao tema. Percebe-se a partir dos esforços envidados que a proteção da biodiversidade brasileira, por meio do cumprimento de normas que pugnem pela repartição de benefícios, é condição relevante para se garantir o acesso à saúde. PALAVRAS-CHAVE: Biodiversidade. Regulamentação. Saúde. Direitos Fundamentais. Medicamentos. ABSTRACT: This study aims to confirm the need to establish the standards for regulating the distribution of benefits from the management of biodiversity, given the discrepancy of interests and reality of mega-diverse countries (rich in biodiversity, such as Brazil) and the countries that hold biotechnology (like the United States and European countries). In fact, there are mechanisms for access and benefit-sharing set out in Article 15 of the Biodiversity Convention, however, this article does not guarantee fair and equitable sharing of benefits arising from biodiversity use and, therefore, is in negotiation an international regime on access and benefit sharing under the Convention on Biological Diversity in order to give effect to such instruments. In this context, it is clear that access to health care in Brazil can be increased from the existence and effective enforcement of rules that aim to protect Brazil's biodiversity. To develop this research, we used primarily a literature review, the analysis of 1 Professora Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da UFC (Capes/PNPD). Doutora em Direito Internacional do Meio Ambiente pela Universidade Paris V e Universidade de São Paulo. Mestre em Direito Internacional Público pela Universidade Paris V. 2 Advogada. Mestre em Direito Constitucional pela UNIFOR. Professora do curso de Direito da UNIFOR e da Faculdade Christus. A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições books and national and international journals, as well as verification of documents concerning this topic. It can be seen from the efforts to protect Brazil's biodiversity, through the enforcement of norms that advocates the sharing of benefits is a relevant condition for ensuring access to health. KEY-WORDS: Biodiversity. Standards. Health. Fundamental rights. Drugs. INTRODUÇÃO A proteção da biodiversidade é um tema de extrema complexidade, pois engloba diferentes questões: meio ambiente, comércio, saúde, relações internacionais, propriedade intelectual, conhecimentos tradicionais... Estamos, indubitavelmente, diante de uma problemática que não é apenas jurídica ou cientifica, pois está imbricada com aspectos econômicos, éticos, sociais e políticos. A biodiversidade é sem dúvida uma das grandes questões do século XXI, pois é importante tanto pela manutenção do equilíbrio ambiental, quanto pelo seu valor econômico, que atualmente é evidenciado pela evolução da biotecnologia. O acesso aos recursos genéticos e a repartição de benefícios deles advindos são conceitos bastante recentes. Desde a adoção da Convenção sobre a biodiversidade (CDB) em 1992, por se tratar de uma Convenção-Quadro, novas diretrizes normativas e operacionais têm sido adotadas, sobretudo pelos governos de países em desenvolvimento, a fim de tornar mais concretos os dispositivos da CDB. Contudo, a regulamentação sobre este assunto não é fácil, devido à diversidade de interesses dos vários países envolvidos, bem como das diversas facetas do tema em questão. Atualmente, a biodiversidade e as questões conexas ocupam um lugar importante na agenda política de muitos Estados. As regras sobre o acesso à biodiversidade variam de um país para outro e as leis não são claras, sendo então, simplesmente, insuficientes para negociar a repartição de benefícios. Desde a ratificação da CDB pelo Congresso Nacional, em 03 de fevereiro de 1994, até o ano de 2001, não havia legislação acerca do acesso e da repartição dos benefícios oriundos do uso da biodiversidade ainda no País, pois o principal instrumento jurídico nacional de proteção da biodiversidade ainda é a Medida Provisória n º 2.186-16, que somente foi editada em 23 de agosto de 2001. 276 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Passados nove anos da publicação desta MP, o Brasil não recebe os benefícios econômicos advindos da exploração da biodiversidade nacional, em decorrência do uso de mecanismos de exploração e de pesquisas ilegais, da adoção de medidas nacionais insuficientes, da dificuldade de fiscalização inerente à própria natureza das atividades bioprospectoras. Além disso, é claro que a regulamentação de um tema de tal relevância pela via de um instrumento como uma Medida Provisória é precária, dando lugar a uma insegurança jurídica. Na verdade, aguarda-se, desde 2002, o encaminhamento do Projeto de Lei sobre a matéria pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional. Como se observa, o Estado brasileiro ainda não cumpriu com sua função legislativa sobre o tema. Neste sentido, a ausência de um arcabouço jurídico claro e efetivo tem permitido, ou até mesmo incentivado, a ocorrência de significativas controvérsias sobre a questão, como acusações de apropriação ilícita da biodiversidade brasileira. É de suma importância que o Brasil apresente instrumentos jurídicos adequados para regular o acesso e a repartição de benefícios de forma justa e equitativa, uma vez que a falta de regras claras para as atividades de bioprospecção e o hábito de conduzi-las de maneira informal contribuem para o acesso desordenado e, em alguns casos, ilegal dos componentes da diversidade biológica3. Diversos casos já foram divulgados pelo Ministério do Meio Ambiente, nos quais empresas de várias nacionalidades que utilizaram a biodiversidade brasileira para a produção irregular de medicamentos, solicitando registro de patentes sem respeitar a soberania à biodiversidade estabelecida pela CDB. É diante deste contexto, que se indica que a população brasileira acaba não tendo acesso aos “produtos”, oriundos da biodiversidade nacional, pois as normas nacionais e internacionais de propriedade intelectual não garantem a repartição de benefícios entre os países fornecedores e usuários da biodiversidade, como o pagamento de royalties e/ou a transferência de tecnologia. A questão que se coloca é clara: se os países que detêm o know how biotecnológico não dispõem da megadiversidade que Estados como o brasileiro tem, as relações entre esses Estados deveriam apontar para uma prática cooperativa e solidária. Todavia, o que se vem percebendo é uma predominância dos interesses dos países desenvolvidos. 3 Esse tipo de atividade ilegal deu origem ao termo “biopirataria”. 277 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições É nesta medida que se maximiza a importância de se regular a repartição de benefícios oriundos da utilização da biodiversidade, defendendo-se um regime internacional apto a albergar de forma equitativa essas relações. Dentre os vários matizes que envolvem a biotecnologia e suas repercussões junto ao conceito e à efetivação do direito à propriedade, apresenta-se a problemática concernente aos medicamentos. Diz-se isto porque a área da saúde congrega, quase que paradoxalmente, dois vieses bem distintos, pois de um lado tem-se os interesses eminentemente financeiros(laboratórios, indústrias farmacêuticas multinacionais, unidades de saúde privadas etc.) e de outro a preocupação com o bem-estar coletivo. Há que se admitir, para que se tenha um diálogo objetivo e produtivo, que nos dias atuais não se pode negar o intuito de se obter lucro quando se desenvolve atividades ligadas à saúde. Diante disto, tem-se que buscar contemplar ambos os interesses, quais sejam: o do mercado e o da coletividade, cabendo diretamente aos Estados esse mister de encontrar um ponto de equilíbrio. Neste sentido: Em primeiro lugar, a área da saúde constitui um dos espaços econômicos mais dinâmicos de acumulação de capital e de inovação, cuja compreensão se mostra essencial para pensar políticas de promoção e de desenvolvimento (Gelijns & Rosemberg, 1995). Em segundo lugar, atualmente é reconhecido o caráter sistêmico que envolve a geração de inovações de produtos, de processos e organizacionais na área da saúde (Albuquerque & Cassiolato, 2000). Essa área alia grande possibilidade e necessidade de inovação (difusão da biotecnologia, de novas formas de organização dos serviços, etc.) com uma forte dimensão social, que requer a mobilização de um amplo aparato regulatório e institucional. Em terceiro lugar, a despeito de toda a crise do Estado keynesiano e de bem-estar, a saúde continua sendo uma das áreas de maior intervenção estatal, tanto no setor de serviços (Médici, 1998) quanto nas atividades científicas e tecnológicas (Gelijns & Rosemberg, 1995).(GADELHA;QUENTAL; FIALHO: on line). Compõem esse contexto as dificuldades, das mais diversas ordens, envolvendo medicamentos, a saber: os biológicos de alto custo, os medicamentos “órfãos”, a falta, injustificada, de incentivo à pesquisa com fitoterápicos, a não proteção adequada dos princípios ativos que compõem novos medicamentos etc. Desta forma, objetiva-se demonstrar a importância da regulamentação das atividades concernentes à utilização da biodiversidade brasileira para se potencializar ganhos à população de países com menor poder econômico e político (a exemplo da brasileira), em 278 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições especial, no que se refere ao direito à saúde a partir do acesso a medicamentos. 1 EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE DIREITO À SAÚDE E O ACESSO A MEDICAMENTOS ORIUNDOS DA BIODIVERSIDADE O conceito de saúde, ao longo dos tempos, sofreu diversas transformações, tendo evoluído pari passu com todos os demais aspectos que compõem a sociedade. Desde a Antigüidade Clássica, alguns estudiosos buscavam melhor caracterizar a saúde no intuito de, a partir de suas pesquisas, contribuírem para o incremento da qualidade de vida dos indivíduos. No século XX, findas as duas grandes guerras mundiais, não podia mais prescindir de atividades que resgatassem a dignidade da pessoa humana, que visassem à melhoria da qualidade de vida e que pregassem a prosperidade, a solidariedade e a convivência pacífica entre os povos. As perdas humanas, financeiras e estruturais advindas de anos de conflitos foram enormes e a reconstrução dos países diretamente atingidos, bem como dos demais Estados do mundo, perpassaria necessariamente por vários aspectos. A economia e a infra-estrutura dessas nações foram decisivas para a retomada das atividades estatais essenciais, mas a revitalização dos países estava adstrita ao resgate da solidariedade, da dignidade e do respeito entre os povos, aspectos frontalmente atingidos durante uma guerra de proporções mundiais. Após a Segunda Grande Guerra, atividades desenvolvidas pela ONU fomentaram a publicação da Declaração Universal dos Direitos do Homem 4, em 1948, documento que até os dias atuais desempenha papel fundamental na luta pelo fortalecimento da dignidade da pessoa humana como paradigma das relações entre os povos. A percepção de direito à saúde acompanhou as modificações do conceito de saúde, o qual se apresentou bem mais completo no momento em que superou as demais definições tidas até aquele momento, afastando a ideia de que a ausência de doenças era sinônimo de saúde, ao tempo em que a definia como um conjunto de bem estar físico, psíquico e social. A Organização Mundial da Saúde – OMS, constituída em 1946, prevê em seu texto constitutivo que o direito à saúde é direito de todo indivíduo, asseverando, in verbis: “a posse do melhor estado de saúde que o indivíduo pode atingir constitui um dos direitos fundamentais de todo ser humano”5, iniciando suas atividades, efetivamente, em 1948. 4 A Declaração Universal dos Direitos do Homem foi aprovada por meio da uma resolução durante a III Seção Ordinária da Assembléia Geral das Nações Unidas realizada em Paris aos 10 de dezembro de 1948. 5 Excerto extraído do texto da Constituição da Organização Mundial de Saúde. 279 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Esclarece, no ponto I, que “Saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade”. 6 A partir daí, o caminho trilhado pelos Estados na busca pela efetivação do direito fundamental à saúde vem guardando estreita semelhança com o conceito de saúde preconizado pelas entidades internacionais, em especial, pela Organização Mundial da Saúde - OMS. Desta forma, para se garantir o gozo do melhor estado de saúde aos indivíduos, fazse necessário assegurar seu bem-estar físico, psíquico e social, não havendo nenhuma prioridade entre esses três aspectos, vez que o ser humano é analisado como um conjunto complexo de características e necessidades, todas igualmente relevantes. O final da Segunda Guerra Mundial foi um marco no processo evolutivo do conceito de saúde, visto que o indivíduo passou a ser considerado sujeito de direitos, portador de interesses próprios e não mais um objeto do Estado. Percebe-se, pois, que o aprimoramento do conceito de saúde em meio à comunidade internacional desencadeou uma busca pela adequação dos ordenamentos jurídicos nacionais a este novo paradigma, os quais passaram a entendê-lo em consonância com a proposta da Organização Mundial da Saúde – OMS, consagrando que ter saúde é desfrutar de bem-estar físico, psíquico e social. No âmbito interno, a Constituição Federal de 1988 de conteúdo denso e composição analítica afigurou-se como uma iniciativa sem precedentes no Direito brasileiro. Inaugurou-se uma nova ordem jurídica constituindo-se o Brasil em um Estado Democrático de Direito, fundamentado na dignidade da pessoa humana, tendo como paradigma a busca pelo respeito e pela efetivação dos direitos fundamentais. Ingo Wolfgang Sarlet, dissertando sobre esta relação entre direitos fundamentais e dignidade humana, afirma: Se, por um lado, consideramos que há como discutir – especialmente na nossa ordem constitucional positiva – a afirmação de que todos os direitos e garantias fundamentais encontram seu fundamento direto, imediato e igual na dignidade da pessoa humana, do qual seriam concretizações, contata-se, de outra parte, que os direitos e garantias fundamentais podem, com efeito, ainda que de modo e intensidade variáveis, ser reconduzidos de alguma forma à noção de dignidade da pessoa humana, já que todos remontam à idéia de proteção e desenvolvimento das pessoas, de todas as pessoas [...].(SARLET: 2002, p. 83-84). Desta forma, perceber o direito à saúde como um direito fundamental positivado na 6 Definição de saúde presente no texto da Constituição da Organização Mundial da Saúde – OMS. 280 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Constituição brasileira significa alçá-lo à condição singular de elemento fundante do sistema jurídico nacional e sua efetivação impõe-se como instrumento para a legitimação da existência do Estado. O artigo 6º da Constituição Federal de 1988 ao preconizar: “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, à assistência aos desamparados, na forma desta Constituição” (grifo nosso), na medida em que erige este direito à condição de fundamental, confere aplicação imediata aos dispositivos relacionados ao direito à saúde. Note-se a consonância das iniciativas e conceitos presentes no sistema jurídico pátrio com as orientações e parâmetros propostos pela Organização Mundial da Saúde. Essa paridade é essencial para a efetivação do direito fundamental à saúde, pois a uniformização de entendimento favorece a agregação de forças 7 e viabiliza ações conjuntas, que apresentam maior eficiência. Incumbe, pois, ao Estado envidar todos os esforços necessários à efetivação deste direito que passa a ser uma prerrogativa de todos os cidadãos brasileiros. Esclareça-se que a ineficiência do Estado não está tendo como anteparo apenas as limitações de cunho financeiro, mas também a inobservância de preceitos garantidos constitucionalmente e ratificados pela ordem jurídica internacional, em especial quando se trata de discussões que envolvem a repartição de benefícios oriundos da biodiversidade. Neste sentido, Ieda Cury arremata: “a extensão a todos os povos dos benefícios dos conhecimentos médicos, psicológicos e afins é essencial para atingir o mais elevado grau de saúde”.(grifou-se). (CURY: 2005, p. 43). Desta forma, à luz dos preceitos da Constituição Federal de 1988 e do atual conceito de saúde, e conhecendo-se a realidade do sistema de saúde brasileiro, devem-se apontar alternativas que auxiliem na adequação das práticas de saúde a este novo panorama. Nesta medida, é que se discute a atual problemática da biodiversidade, no que se refere, especialmente, a repartição de benefícios que envolvam a produção de medicamentos. Diz-se isto, pois esse aspecto da saúde tem estado, quase que totalmente, sob a responsabilidade da iniciativa privada, por meio das indústrias farmacêuticas, as quais vêm demonstrando compromisso com a lucratividade e monopólio de conhecimento. 7 Fala-se, neste sentido, de força política, econômica, social e institucional. 281 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Gadelha, Quental e Fialho asseveram: A indústria farmacêutica tem como atividade final a produção de medicamentos, utilizados pela sociedade no tratamento de doenças ou outras indicações médicas. A produção de medicamentos envolve quatro estágios principais: pesquisa e desenvolvimento (P&D) de novos fármacos; produção industrial de fármacos; formulação e processamento final de medicamentos; e comercialização e distribuição por intermédio de farmácias e outros varejistas, e das unidades prestadoras de serviços de saúde (Frenkel et al., 1978). (GADELHA;QUENTAL; FIALHO: on line). Faz-se necessário, pois, perceber que a demanda por medicamentos é uma conseqüência do exercício do direito à saúde, que objetiva garantir o bem-estar das pessoas, que se sobrepõe aos interesses da iniciativa privada, bem como de países estrangeiros. Não obstante, a par dessa preocupação com a demanda de medicamentos, observase, no conjunto dos países desenvolvidos e sob uma outra vertente, uma forte política industrial e de inovação, envolvendo a montagem de uma ampla e complexa infra-estrutura de C&T em saúde (Gelijns & Rosemberg, 1995), a defesa forte da legislação de propriedade intelectual em nível internacional (a exemplo das negociações na Organização Mundial do Comércio) e esforços de toda natureza para o acesso aos mercados mundiais e para a redução das barreiras tarifárias e não tarifárias aos produtos farmacêuticos, além de outros mecanismos, como subsídios à pesquisa industrial e permissão de fusão de grandes empresas líderes visando à competitividade internacional. Assim sendo, podemos concluir que nos países avançados observa-se, em termos gerais, certa convergência das necessidades do sistema de saúde com as do sistema de inovação, o que torna o sistema de inovação em saúde dinâmico, compatibilizando a demanda social com o desenvolvimento empresarial, a despeito das tensões inerentes à área da saúde. (GADELHA;QUENTAL; FIALHO: on line). Percebe-se, então, que há um tensionamento de forças, a partir da polarização de interesses entre os Estados. Todavia, tem-se percebido uma tendência a manutenção do status quo, que, atualmente, prejudica países megadiversos e prioriza os interesses das nações desenvolvidas. Os países megadiversos não participam diretamente das pesquisas com fármacos em seus níveis mais avançados, e em razão disto, raramente são beneficiários dos resultados obtidos. Há uma incontestável concentração das indústrias farmacêuticas em países desenvolvidos: Desde a década de 70 a indústria farmacêutica brasileira é dominada por empresas multinacionais, que respondem por cerca de 80% do mercado nacional (Queiroz, 1993). Apenas uma empresa de capital nacional, a Aché, figura entre as dez maiores companhias farmacêuticas atuando no País, sendo as demais filiais de empresas multinacionais. (GADELHA; QUENTAL; FIALHO: on line). 282 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Essa realidade que acaba por criar um oligopólio, que, em tempos de economia globalizada, apresenta benefícios para aqueles que detêm maior poder/ingerência econômica e política. Neste sentido: “As empresas líderes na indústria farmacêutica estão sediadas nos Estados Unidos e na Europa (Alemanha, Suíça, França e Reino Unido, principalmente)”. (GADELHA; QUENTAL; FIALHO: 2003). A questão primordial a ser enfrentada, então, é a discrepância entre o que é fornecido pelos países megadiversos e o retorno recebido dos países detentores de biotecnologia, haja vista a potencialidade dessa megabiodiversidade, conforme as palavras de João Calixto: Esse imenso patrimônio genético, já escasso nos países desenvolvidos, tem na atualidade valor econômico-estratégico inestimável em várias atividades, mas é no campo do desenvolvimento de novos medicamentos onde reside sua maior potencialidade A razão dessa afirmação é facilmente comprovada quando se analisa o número de medicamentos obtidos direta ou indiretamente a partir de produtos naturais. (CALIXTO:2003). Um significativo percentual dos princípios ativos que compõem os medicamentos atuais é extraído da natureza, o que coloca o Brasil 8 numa condição de “fornecedor de matéria-prima”: Estima-se que 40% dos medicamentos disponíveis na terapêutica atual foram desenvolvidos de fontes naturais: 25% de plantas, 13% de microrganismos e 3% de animais. Somente no período entre 1983-1994, das 520 novas drogas aprovadas pela agência americana de controle de medicamentos e alimentos (FDA), 220 (39%) foram desenvolvidas a partir de produtos naturais. (CALIXTO:2003). Todavia, essa condição brasileira “privilegiada” não lhe garante gozo e fruição de benefícios correspondentes, demonstrando a premência de se impor novos paradigmas para a discussão sobre a propriedade intelectual e a biodiversidade. As normas sobre propriedade intelectual, discutidas no âmbito dos organismos internacionais, bem como no plano interno brasileiro, são insuficientes para garantir o equilíbrio dessas relações, o que acaba por comprometer o livre exercício de direitos, a exemplo do direito à saúde. Na verdade, não é inadequado a extração e o fornecimento de material biológico que vise o incremento da qualidade de vida e da saúde das pessoas, o que se coloca em pauta é a premência de que essas atividades efetivamente se consubstanciem em instrumentos de efetivação de direitos fundamentais no Brasil. 8 Ao se falar de Brasil se está tratando dos países megadiversos. 283 2 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições A IMPLEMENTAÇÃO DO TERCEIRO OBJETIVO DA CDB COMO GARANTIDOR DO ACESSO AOS MEDICAMENTOS Garantir a repartição justa e equitativa dos benefícios decorrentes da utilização dos recursos genéticos é o terceiro objetivo da CDB. Tal objetivo é de extrema relevância para os países em desenvolvimento que têm grande parte da biodiversidade mundial, mas não se beneficiam de forma justa e eqüitativa dos benefícios derivados da exploração de seus recursos. Por isso, desde 1992, novas diretrizes normativas e operacionais têm sido adotadas sobretudo pelos governos de países em desenvolvimento, comunidades locais, instituições públicas e privadas, bem como por indivíduos a fim de tornar mais concretos os dispositivos dessa Convenção. Deve-se ressaltar que o debate é altamente complexo e envolve, principalmente, o artigo 8 (j), o artigo 15 («Acesso aos recursos genéticos »), o artigo 16 (« Acesso e transferência de tecnologia») e o artigo 19 (« Gestão de biotecnologia e repartição de benefícios ») da CDB que mobilizou tais esforços nacionais. A CDB, ao consagrar o princípio da plena soberania dos Estados sobre seus recursos biológicos, condiciona a legitimidade (e, por conseguinte, a legalidade) das atividades de bioprospecção à estrita observância das prescrições normativas estabelecidas no interior de cada Estado nacional, em cuja circunscrição territorial sejam tais atividades realizadas, ou de onde seja extraído material orgânico objeto das atividades de bioprospecção (arts.15.5 e 19.3 CDB). Assim, deve-se dar uma resposta a uma possível e instigante indagação sobre se não teria sido mais que suficiente a existência e a atuação de todo o arsenal de normas jurídicas nacionais, que já existem no interior de vários ordenamentos jurídicos nacionais, para regular o acesso aos recursos genéticos e a repartição de benefícios deles advindos. Pode-se observar que a adoção de medidas em nível nacional está sendo considerada insuficiente para que o acesso aos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados em território nacional seja facilitado, mediante a justa e equitativa repartição de benefícios. Ademais, ocorre que a quase-totalidade dos países megadiversos9 vêm sendo, 9 Denominação dada a qualquer uma das 17 nações mais ricas em biodiversidade do mundo. Além do Brasil, fazem parte dos Megadiversos, a África do Sul, Bolívia, China, Colômbia, Congo, Costa Rica, Equador, Filipinas, Índia, Indonésia, Madagascar, Malásia, México, Peru, Quênia e Venezuela. A Declaração de Cancún de 284 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições repetidas vezes, violados e alijados dos benefícios econômicos advindos da exploração da biodiversidade nacional, em decorrência do uso de mecanismos de exploração e de pesquisas ilegais. Por serem, em sua maioria, países periféricos e subdesenvolvidos, a exploração é substancialmente agravada, por não disporem tais nações de elementos mínimos de salvaguarda de suas riquezas biológicas, ou seja: por não disporem de condições materiais e técnicas eficientes e capazes; por inexistirem ou serem insuficientes os mecanismos legais de contenção e fiscalização; e, ainda, pelas dificuldades de controle inerentes à própria natureza das atividades bioprospectoras. Neste sentido, são necessárias medidas em âmbito internacional. Desde a aprovação das Diretrizes de Bonn10, o debate vem evoluindo no tocante à necessidade de criação de um regime internacional e um passo importante dado neste debate foi a adoção do Plano de Implementação da Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável (Joanesburgo, 2002), no qual incluiu-se a determinação de que deveria ser negociado, no contexto da CDB, um regime internacional sobre a repartição de benefícios resultantes da utilização de recursos genéticos. De fato, tem-se avançado (de forma lenta) nas negociações. Diante desta situação de incertezas, no tocante ao acesso e a repartição de benefícios, a busca de soluções se impõe. Chegar a um acordo sobre um texto aceitável tanto para os governos dos países pobres em biodiversidade, do mundo industrializado, como para os países em desenvolvimento, ricos em biodiversidade, torna o processo inesperadamente longo, difícil e contencioso. Em despeito disto, deve-se encontrar um equilíbrio entre tais interesses, evitando um conflito, bem como a falência de qualquer proposta de regime. Variadas questões são oriundas do fato de que as leis nacionais são imprecisas, incapazes de solucionar as problemáticas relacionadas a este tema, como a 16/2001, Medida Provisória n º 2.186- por este motivo se evidencia a necessidade de um regime internacional. Mas será que poderá ocorrer um consenso entre os países em via de desenvolvimento e os países desenvolvidos? Se existir um equilíbrio de interesses entre os países, como encontrar uma solução ideal para a propriedade intelectual no âmbito da biodiversidade? Como resolver um possível conflito entre tais países? Como garantir a efetividade de tal regime?... As negociações sobre o novo regime internacional ainda são muito polarizadas. É Fevereiro de 2002, criou o Grupo dos Países Megadiversos Afins como um mecanismo para promover uma agenda comum relativa à conservação e uso sustentável da diversidade biológica. 10 Decisão VI-24 aprovada durante a Conferencia das Partes VI em Haia (Holanda) em 2002. 285 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições difícil prever o resultado das negociações e vários estudos estão em curso ou ainda serão desenvolvidos neste ano. Tudo está sobre a mesa para negociar um novo regime internacional na próxima reunião da Conferência das Partes (COP) da CDB, que se realizará em Nagoya no Japão em 2010. Destaca-se que tal questão interessa a outras organizações internacionais, como a Organização Mundial do Comércio (OMC), a Organização para alimentação e agricultura (FAO), a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), Organização Mundial de Saúde (OMS) e suscita um debate sem precedentes em nível regional e nacional. Em outras palavras, existe uma multiplicidade de negociações paralelas sobre acesso e repartição de benefícios oriundos da utilização da biodiversidade. Por conseguinte, a Conferência das Partes (COP) da CDB já reconheceu a necessidade de prosseguir os trabalhos sobre esta questão em colaboração com estas e outras organizações. É importante sempre conjugar os efeitos das atividades desenvolvidas no âmbito da CDB e os efeitos de outras convenções e acordos internacionais e regionais relacionados à biodiversidade. Além do terceiro objetivo da CDB ora apresentado, o debate sobre a questão do acesso e da repartição de benefícios encontra-se presente na OMC através das discussões sobre o ADPIC11, na FAO por meio do Tratado Internacional sobre recursos fitogenéticos para a alimentação e agricultura e na OMPI, especificamente no âmbito do Comitê Intergovernamental sobre propriedade intelectual, recursos genéticos, conhecimentos tradicionais e folclore. Ressalte-se que a Organização Mundial da Saúde – OMS não tem se apresentado para o debate de forma contundente. Sabe-se que o Departamento de Proteção do Ambiente Humano da OMS tem discutido sobre a importância de se proteger a biodiversidade como instrumento de proteção da vida humana. Nesse sentido, as palavras de Maria Neira, diretora do Departamento para a Proteção do Ambiente Humano da OMS “A saúde humana possui uma forte ligação com a saúde dos ecossistemas, que atendem a várias das nossas necessidades mais básicas”.(WWF:on line). Todavia, a discussão deve ser mais produtiva, pois se há a indicação de que a proteção da biodiversidade interfere diretamente na qualidade da saúde humana, a OMS 11 Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio (Acordo Trips ou Acordo ADPIC). 286 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições deveria expandir o diálogo para além da defesa genérica e abstrata desta biodiversidade, apontando que os medicamentos são instrumentos garantidores da saúde dos indivíduos e que todos os esforços devem ser envidados para que cada vez mais se possa assegurar o acesso aos resultados de pesquisas, quer envolvam fitoterápicos quer envolvam medicamentos tradicionais, que utilizem insumos da biodiversidade brasileira. Por isso, o debate sobre o regime internacional sobre o acesso e a repartição de benefícios deve levar em consideração o papel desses elementos internacionais que existem fora da convenção. É evidente que qualquer regime internacional ABS 12 dependerá do conhecimento dos organismos e de acordos nacionais e internacionais, pois é improvável que se alcance os objetivos da CDB se as negociações forem exclusivamente baseadas num tratado, acordo ou organização em particular. Na verdade, implementar o terceiro objetivo da CDB é tarefa complexa, mas necessária, pois se de um lado se encontra resistência pelas diferenças de interesses e pelo desequilíbrio de forças entre Estados, de outro já se percebeu ser imprescindível a superação desses impasses para que se consiga avançar em pesquisas e em qualidade de vida. Garantir o acesso e a repartição justa e equitativa de benefícios é, pois, uma forma de se efetivar direitos das mais diversas ordens, e no estudo em análise, tem-se o acesso aos medicamentos, que pode ser incrementado a partir da implementação do terceiro objetivo da CDB, confirmando o compromisso dos Estados com a promoção da saúde e o bem-estar dos indivíduos. CONCLUSÃO É de suma importância, então, que o Brasil apresente de forma efetiva instrumentos jurídicos para a proteção da biodiversidade, uma vez que a falta de regras claras para as atividades de bioprospecção e o hábito de conduzi-las de maneira informal contribuem para o acesso desordenado e, em alguns casos, ilegal aos componentes da diversidade biológica. Observa-se, pois, que a ausência de um arcabouço jurídico claro e efetivo tem permitido, ou até mesmo incentivado, a ocorrência de importantes controvérsias sobre a questão, como acusações de apropriação ilícita da biodiversidade brasileira. Concluiu-se que a ausência de uma implementação efetiva do terceiro objetivo da 12 O regime sobre acesso e repartição de benefícios também é conhecido como regime ABS (access and benefit sharing). 287 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições CDB, no que se refere ao manejo dos benefícios oriundos da biodiversidade brasileira, pode gerar repercussões específicas, como a limitação de acesso a insumos relacionados à saúde. Neste sentido, a biodiversidade poderá desempenhar um papel de reequilíbrio da riqueza existente no mundo, fazendo com que diferenças na qualidade de vida, mediante o acesso a medicamentos, entre nações ricas e nações pobres sejam progressivamente eliminadas para garantir que as trocas existentes entre detentores de tecnologia e os possuidores da biodiversidade não sigam o mesmo rumo da iniqüidade econômica que tem marcado a história mundial. Neste contexto, torna-se fundamental o desenvolvimento de ações internacionais que objetivem agregar valor aos componentes da biodiversidade, que visem dar suporte à exploração ordenada da diversidade biológica. REFERÊNCIAS AUBERTIN, C. e BOISVERT, V. Les droits de la propriété intellectuelle au service de la biodiversité. Une mise un œuvre bien conflictuelle. Natures Sciences Sociétés, 1998, p. 1-16. AUBERTIN, C. e VIVIEN, F.-D. Les enjeux de la Biodiversité. Paris : Economica, 1998, 112p. CALIXTO, João, B. Biodiversidade como fonte de medicamentos. Ciência e Cultura, vol. 55, nº 3, São Paulo, July/Sept. 2003. Disponível em: http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-7252003000300022. Acesso em: 17.08.2010. COMO a perda de biodiversidade afeta a mim e as outras pessoas? WWF. Disponível em: http://www.wwf.org.br/informacoes/especiais/biodiversidade/consequencias_perda_biodivers idade/. Acesso em: 08 set. de 2010. CURY, Ieda Tatiana. 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Revue international et stratégique. n°60, hiver 2005-2006, p.149-158. 288 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições KATE, K. T. e LAIRD, S. A. The Commercial Use of Biodiversity: Access to Genetic Resources and Benefit- Sharing. Londres : Earthscan, 2000, 398p. MALJEAN-DUBOIS, S. Biodiversité, biotechnologies, biodiversité: le droit international désarticulé. Journal du Droit International. 2000, n°4, p.949-996. MOREIRA, E. A tutela jurídica dos recursos genéticos brasileiros e a proteção ao conhecimento tradicional. 1999. Dissertação de Mestrado em Direito. Pontifica Universidade Católica de São Paulo, 249p. NOIVILLE, C. Ressources Génétiques et droit. Essai sur les régimes juridiques des ressources génétiques marines. Paris: Pédone, 1997, 481p. PLATIAU, A. F. e VARELLA, M. D. (org.). Diversidade biológica e conhecimentos tradicionais. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2004, 369p. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. 289 A CONVERGÊNCIA ENTRE OS DIREITOS DE PROPRIEDADE E AO MEIO AMBIENTE SADIO: A CESSÃO DE USO DAS ÁGUAS DA UNIÃO PARA A PRODUÇÃO DE PESCADO NO BRASIL João Luis Nogueiras Matias1 João Felipe Nogueira Matias2 RESUMO: Com o escopo de ampliar a produção de pescado, o Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA) tem realizado a cessão de uso de águas de domínio da União para fins de aquicultura, submetendo o procedimento aos regramentos ambientais necessários. O procedimento enseja que as águas de domínio da União exerçam a sua efetiva função social, tanto pela ampliação da oferta de alimentos como pela geração de renda aos necessitados, sendo verdadeiro exemplo de convergência dos direitos de propriedade e ao meio ambiente sadio. PALAVRAS-CHAVE: Meio ambiente; Direito de propriedade; Convergência. ABSTRACT: With the scope to increase fish production, the Ministry of Fisheries and Aquaculture has made a procedure to the use of Federal Government waters. The procedure entails the waters under federal jurisdiction to exercise their social function, both by expanding the supply of food and income generation for the needy, being a true example of the convergence property rights and the environment healthy. KEY-WORDS: Environment; Property law; Convergence. 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS O direito de propriedade é condicionado, na forma da Constituição de 1988, ao uso adequado do bem, principalmente do ponto de vista ambiental, forma de atendimento de sua função social. 1 Doutor em Direito pela Faculdade de Direito do Recife da Universidade Federal de Pernambuco - UFPE (2003). Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP (2009). Coordenador do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará – UFC. Juiz Federal. 2 Secretário Nacional de Aqüicultura do Ministério da Pesca. Mestre em Aqüicultura (UFC). Doutorando em Aquicultura (UFC). A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições O direito ao meio ambiente sadio é caracterizado no direito brasileiro como um direito fundamental de terceira geração, do qual decorrem inevitáveis restrições ao exercício do direito de propriedade, consubstanciadas na necessidade do atendimento a obrigações negativas e positivas. A necessária conciliação entre ambos os direitos tem ensejado novas formas de utilização de recursos naturais, como é exemplo a utilização das águas da União para fins de criação de pescado. No presente trabalho, firmados os pressupostos, a caracterização do perfil funcionalizado do direito de propriedade e do direito ao meio ambiente sadio, será exposta a experiência de concessão de uso das águas da União para a produção de pescado, como exemplo de convergência entre ambos os direitos. 2 PROPRIEDADE NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: A FUNÇÃO SOCIAL A definição do direito de propriedade como direito subjetivo, absoluto, baseado apenas nos interesses do proprietário não mais se justifica na ordem jurídica brasileira, a teor do previsto nos artigos 5º, caput e incisos XXII e XXIII, e 170, incisos II e III, da Constituição Federal, e do artigo 1228, parágrafo 1º, do Código Civil. 3 A dupla previsão do direito de propriedade na Constituição Federal atende a objetivos diferentes, sendo protegida a propriedade como forma de realização pessoal (direito à propriedade) e como instrumento para o exercício da atividade econômica (direito de propriedade). Inicialmente, no caput do artigo 5º, é previsto o direito à propriedade, como forma de realização pessoal do indivíduo, em concepção ético-jurídica, cujo objetivo é “assegurar ao ser humano – com os bens ou graças aos bens atribuídos a ele enquanto pessoa – tenha oportunidade de criar, expandir e consolidar a própria personalidade”. 4 3 Artigo 5º da Constituição Federal – “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XXII – é garantido o direito de propriedade; XXIII – a propriedade atenderá a sua função social.” Artigo 170 – “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] II – propriedade privada; III – função social da propriedade.” Artigo 1228 do Código Civil “[...] Parágrafo 1º - O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.” 4 TOMASETTI JÚNIOR Alcides. A propriedade privada entre o direito civil e a constituição. Revista de Direito 291 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Nos demais dispositivos, o direito de propriedade é assegurado como instrumento para o exercício da atividade econômica. Mas o que significa atribuir função social à propriedade? A resposta é dada na lição de Caio Mário: [...] certo é que a propriedade cada vez mais perde o caráter excessivamente individualista que reinava absoluto. Cada vez mais se acentuará a sua função social, marcando a tendência crescente de subordinar o seu uso a parâmetros condizentes com o respeito aos direitos alheios e às limitações em benefício da coletividade. 5 É particularmente importante, para a compreensão do tema, pelos novos parâmetros que permite fixar, o artigo 1228, do Código Civil pátrio. 6 Flagrantes, no dispositivo, as restrições ao direito de propriedade, o uso dos bens é “condicionado às suas finalidades econômicas e sociais”, conforme o expresso texto legal, sendo defesos ao proprietário atos que não lhe tragam qualquer comodidade ou utilidade e/ou que objetivem prejudicar terceiros. A idéia de função social, no direito brasileiro, expressa através de princípio constitucional, é conformadora do direito de propriedade, integrante de sua estrutura, delineada como relação jurídica complexa, implicando deveres instrumentais que permitem a realização dos objetivos eleitos pelo constituinte, vinculando o legislador infraconstitucional e o intérprete. A função social da propriedade, portanto, conforma o direito de propriedade, estabelecendo padrões para o seu exercício, que deve ser concretizado tendo em vista os interesses sociais. 7 Mas quais interesses sociais? Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro – RDM, São Paulo: Malheiros (Nova Série), ano XLI, n.126, p.123-128, abr./jun. 2002. 5 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Direito civil – alguns aspectos da sua evolução. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p.79. 6 “Artigo 1228 – O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha. Parágrafo 1º - O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas. Parágrafo 2º - São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem. Parágrafo 3º - O proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por necessidade ou utilidade pública ou interesse social, bem como no de requisição, em caso de perigo iminente. Parágrafo 4º - O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nele houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante. Parágrafo 5º- No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores”. 7 Perlingieri acentua o caráter não apenas negativo da função social da propriedade, mas de promoção dos valores da ordem jurídica. PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil 292 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Tais interesses são os eleitos pelo legislador constituinte: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, fundada na dignidade da pessoa humana e nos valores sociais do trabalho e na livre iniciativa, a teor dos artigos 1º e 3º, da Constituição Federal. A propriedade funcionalizada é meio para o alcance dos fins antes descritos. Instrumentalmente, é posta a funcionalidade da propriedade, competindo aos operadores do direito a sua concretização, cabendo ao Poder Judiciário coibir os excessos e zelar pela efetivação dos valores constitucionalmente eleitos. A propriedade deixa de ser direito individual e passa a ser moldada pelos princípios da ordem econômica, que tem por escopo assegurar a todos existência digna. Contemporaneamente, há grande debate sobre a natureza jurídica da propriedade, sendo certo que deixou de ser direito subjetivo, absoluto, estando sujeito a limites expostos na lei e em razão da necessária funcionalidade que a cerca. Tratá-la como direito subjetivo, do que decorre feixe de poderes de usar, gozar, dispor e reivindicar a coisa, vinculado à função social, parece ser inadequado em razão da incompatibilidade dos termos, o que em verdade, pressuporia uma nova conceituação de direito subjetivo. O novo contexto pressupõe a definição de propriedade como relação jurídica complexa, em que as limitações ao exercício do direito decorrem de sua própria estrutura, da qual advêm deveres em relação a terceiros proprietários ou não proprietários. 8 Trata-se de relação de caráter patrimonial, porque dirigida a interesses econômicos; absoluta, no sentido de que acarreta dever geral de abstenção e, por fim, complexa, em razão dos vários vínculos que se entrelaçam, criando pluralidade de direitos e obrigações entre as partes. 9 Nos contornos da noção de propriedade, destaca-se o poder jurídico concedido ao proprietário, oposto de forma ampla a toda a coletividade, exercido sobre a coisa, mas ponderado pelos exatos limites firmados pelo ordenamento. Desta forma, pode-se conceituála, em sintonia com seu caráter histórico, como vínculo jurídico entre o proprietário e a coletividade em relação a um bem, com forma própria de aquisição, modo de uso, gozo e disposição, assim como deveres e limitações, definidos pelo ordenamento jurídico. constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. 8 LOUREIRO, Francisco Eduardo. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. 9 A doutrina tradicional defende a impossibilidade de existência de relação jurídica complexa quando um dos pólos é indeterminado, o que deve ser relativizado já que a determinação do sujeito é importante para o exercício de relação jurídica subjetiva não como pressuposto de sua existência. 293 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Atualmente, é consenso que a apropriação de bens é importante instrumento de realização pessoal, de concretização de interesses individuais, mas sujeita à compatibilidade com os outros interesses protegidos pelo ordenamento. Leonardo Mattietto, em auxílio à idéia, destaca que a propriedade contemporânea não é uma, “não sendo correto reduzir a sua dogmática a um instituto monolítico, cabendo antes, perfilhar um conjunto de situações jurídicas complexas, compreensíveis não apenas dos poderes, mas também de deveres, que envolvem a titularidade dos bens”. 10 11 Em suma, contemporaneamente, essa é a feição que adota o direito de propriedade, “passa a caracterizar-se como espécie de poder-função, uma vez que, desde o plano constitucional, encontra-se diretamente vinculado à exigência de atendimento da sua função social”. 12 3 O DIREITO AO MEIO AMBIENTE SADIO COMO DIREITO FUNDAMENTAL NO BRASIL Na ordem jurídica contemporânea, ao lado da previsão de direitos que objetivam proteger os indivíduos pela mera condição de seres humanos, assume destacada importância a previsão de direitos que tem por finalidade a proteção de toda a coletividade. É nesse contexto que surgem os direitos de titularidade coletiva, intitulados pela doutrina de direitos fundamentais de terceira geração. Tais direitos consagram o princípio da solidariedade social, englobando o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, o 10 MATTIETTO, Leonardo. A renovação do direito de propriedade. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 42, n.168, p.189- 196, out./dez. 2005, p.193. 11 Com todos os avanços percebidos na evolução do direito de propriedade, muitos ainda são os questionamentos acerca de sua real adequação à realidade brasileira. Joaquim Falcão combate o conceito jurídico de propriedade, inclusive com a nova feição que lhe assegura o Código Civil, que considera incapaz de resolver os problemas de nossa realidade. Baseado na questão das favelas e loteamentos irregulares, a moradia ilegal dos grandes centros urbanos, onde, em mais de dois milhões de domicílios, os moradores não conseguem provar a condição de proprietários, aponta que duas são as maneiras que temos mal enfrentado o problema: “Primeiro, por meio do conceito jurídico tradicional de direito de propriedade, inclusive o do novo Código Civil. Esta legislação não chega às favelas. É dos ricos. Tem sido atenuada com institutos jurídicos como a bem intencionada usucapião urbana, introduzida pela Constituição de 1988. Mas esta solução, aprisionada por entraves burocráticos até agora intransponíveis, também não se revela solução de massa à altura da nossa urgência social. A segunda é a solução da violência, adotada por alguns movimentos sociais, especialmente no campo, que nos afasta da democracia e do Estado de direito”. FALCÃO, Joaquim. Novo direito de propriedade. Conjuntura Econômica, Brasília, v.60, n.10, p.35, out. 1986. 12 MIRAGEM, Bruno. O artigo 1228 do Código Civil e os deveres do proprietário em matéria de preservação do meio ambiente. Cadernos do Programa de Pós-graduação em Direito da UFRS, Porto Alegre, v.III, n.VI, p.21-45, maio 2005. 294 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições direito à uma saudável qualidade de vida, ao progresso, à autodeterminação dos povos, entre outros direitos difusos. Apesar de preservar sua dimensão individual, tais direitos têm como característica a sua titularidade coletiva, sendo, muitas vezes, indefinida ou indeterminável, 13 transcendendo o individual e o coletivo. O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito de terceira geração, pois é assegurado à pessoa humana e é garantido pelo Poder Público como fundamental, sobrepondo-se aos direitos de natureza privada. Trata-se de direito que não se confunde nem com os direitos individuais nem com os direitos sociais, pois não tem uma feição garantística nem prestacional e pressupõe a atuação do poder público, caracterizando-se não como um direito contra o Estado mas em face do mesmo. 14 O direito ao meio ambiente alcançou patamar de direito fundamental da pessoa humana, conforme previsto no art. 22515, caput, da Lei Maior, apesar de não previsto no art. 5º, CF/88, na medida em que o § 2º, do art. 5º, traz uma abertura de todo o ordenamento jurídico nacional ao sistema internacional de proteção aos direitos humanos e aos direitos decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Constituição. O direito ambiental brasileiro é um sistema aberto e em evolução, o que impede o seu engessamento e a cristalização de seus princípios e de seus conceitos. 16 Na lição de Medeiros, “existe uma dupla perspectiva quando ao conteúdo dos direitos fundamentais, os quais podem ser considerados tanto direitos subjetivos individuais como elementos objetivos fundamentais da comunidade”. 17 A questão ambiental ainda goza de relevo especial na missão de tutelar e de desenvolver o princípio da dignidade humana ou como desdobramento imediato da coresponsabilidade geracional. Sampaio anuncia que “pode-se falar no Brasil de um direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, assim como se pode referir a 13 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 53. 14 SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 52. 15 ”Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. 16 TEIXEIRA, op. cit., p. 86. 17 MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Meio Ambiente: Direito e Dever Fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado: 2004, p. 85. 295 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições uma ordem ambiental que completa e condiciona a ordem econômica e que, por topologia, integra-se na „ordem social´.” 18 Nesse sentido, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado deve ser garantido tanto às gerações presentes quanto às gerações futuras. Para a implementação deste direito são previstos princípios e instrumentos no seio da legislação ambiental brasileira, que podem e devem nortear a atuação do Estado na tutela do meio ambiente. 19 4 DIREITOS DE PROPRIEDADE E AO MEIO AMBIENTE SADIO: A NECESSÁRIA HARMONIA O Código Civil Brasileiro de 2002 adota o novo perfil do direito de propriedade, na forma do que é previsto no parágrafo 1º, do artigo 1228: Artigo 1228 - O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que seja injustamente a possua ou a detenha. § 1º. O direito de propriedade deve ser exercitado em consonância com suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas. Observe-se que não se trata de mera previsão formal da função social da propriedade, como prescrita no Código Civil de 1916. A atual lei civil detalha a função social da propriedade, na medida em que vincula o direito de propriedade à proteção à flora, à fauna, à preservação das belezas naturais, à manutenção do equilíbrio ecológico e a preservação patrimônio histórico e artístico, assim como o uso da propriedade em consonância com as determinações da legislação ambiental. Trata-se de verdadeira atribuição de função ambiental à propriedade, que pode ser 18 SAMPAIO, José Adércio Leite. Constituição e Meio Ambiente na Perspectiva do Direito Constitucional Comparado. Princípios de Direito Ambiental na Dimensão Internacional e Comparada. SAMPAIO, José Adércio Leite; WOLD, Chris; NARDY, Afrânio (orgs.). Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 98. 19 Muito se tem discutido acerca do direito à informação ambiental, como forma de fiscalizar não só os atos do Poder Público, mas também dos particulares, na medida em que o meio ambiente equilibrado se revela não como um direito difuso, mas também enquanto dever, acarretando em obrigações diversas. VILLANUEVA, Claudia. Derecho de acceso a la información ambiental, antecedentes internacionales y legislación nacional. In DEVIA, Leila (coord.). Nuevo Rumbo Ambiental. Buenos Aires, Madrid: Ciudad Argentina, 2008, p. 326. 296 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições definida como a restrição do exercício do direito de propriedade ao “conjunto de atividades que visam garantir a todos o direito constitucional de desfrutar um meio ambiente equilibrado e sustentável, na busca da sadia e satisfatória qualidade de vida, para a presente e futuras gerações”.20 O Código Civil traz uma cláusula aberta em prol do meio ambiente, ao assegurar que a função ambiental deve ser assegurada também de acordo com a legislação especial e não apenas com os componentes trazidos na redação literal do diploma normativo. A cláusula tem dupla dimensão, impondo o dever negativo de evitar prejuízo a terceiros e à qualidade do meio ambiente e o dever positivo de adotar práticas que preserve a saúde do meio ambiente. Por meio da função ambiental da propriedade é promovida, em cada caso, a conciliação entre o exercício do direito de propriedade e a proteção ao meio ambiente e à biodiversidade. 5 A EXPERIÊNCIA DE CONCESSÃO DE ÁGUAS DA UNIÃO PARA A PRODUÇÃO DE PESCADO É certo que tem havido um grande incremento da produção mundial de pescados. Segundo a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO, 2009), no ano de 2006, foram produzidas 106 milhões de toneladas destinadas ao consumo humano. De todo esse total, 43% (quarenta e três por cento) resultam da atividade de aqüicultura, o que importa em um montante aproximado de 45,5 milhões de toneladas. As perspectivas para o futuro são bem mais amplas. Até 2030 está prevista uma produção de 150 milhões de toneladas de pescado. O consumo mundial de pescados per capita (16,6 kg/habitante/ano) em 2007 foi o mais alto da História, é baseado em tal dado que se projeta a constante ampliação da demanda, o que impulsiona novos investimentos e estudos sobre a matéria. No Brasil, de acordo com o MPA (2010), a produção de pescados em 2009 foi de 1.240.813 toneladas (um milhão, duzentos e quarenta mil, oitocentos e treze toneladas), sendo 20 SANT´ANNA, Mariana Senna. Planejamento urbano e qualidade de vida: da Constituição Federal ao plano diretor. In Direito Urbanístico e Ambiental. DALLARI, Adilson Abreu; DI SARNO, Daniela Campos Libório (coord.). Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 153. 297 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições a produção aqüicola referente a 33,5 % (trinta e três vírgula cinco por cento) do total, ou seja, 415.649 toneladas (quatrocentos e quinze mil, seiscentos e quarenta e nove toneladas). A produção aqüicola brasileira é dividida em aqüicultura continental e aqüicultura marinha, representando a aqüicultura continental 337.353 t (trezentos e trinta e sete mil, trezentos e cinquenta e três toneladas) equivalente a 81,16 % (oitenta e um vírgula dezesseis por cento) da produção aqüícola do país. A produção brasileira da aqüicultura marinha foi de 78.296,4 t (setenta e oito mil, duzentos e noventa e seis vírgula quatro toneladas), o que equivale a 18,84 % (dezoito vírgula oitenta e quatro por cento) da produção aqüícola do país. A expressiva produção da aqüicultura continental é dividida pelas diversas regiões do país, conforme exposição do gráfico que se segue: Produção Aquícola Continental no Brasil por Região (2009) 60.004,90; 18% 35.782,30; 11% 67.643,30; 20% Norte Nordeste Sudeste Sul 115.083,50; 34% Centro Oeste 58.839; 17% Há grande potencial de aumento da produção de pescado no Brasil por meio da aqüicultura continental, sobretudo pela cessão de uso de águas de domínio da União para fins de aquicultura.21 21 “Artigo 20, da CF: São bens da União: (...) III – os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais. (...)” “Artigo 26, da CF: Incluem-se entre os bens dos Estados: I – as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvas, neste caso, na forma da Lei, as decorrentes de obras da União. 298 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Trata-se de inovadora iniciativa do Ministério da Pesca e Aquicultura que busca possibilitar novos usos da propriedade da União, ensejando a produção de alimentos em bens cujo uso inicial era restrito à oferta de água. É evidente que a iniciativa promove a melhor utilização do potencial dos bens da União, especialmente, lagos e rios, oportunizando que exerçam, de forma efetiva, a função social que lhes é atribuída. Como forma de tornar concreto o novo uso dos bens, foram criados parques e áreas aquícolas, destacando-se os seguintes parques e respectiva capacidade de suporte (produção sustentável): Itaipu-PR: 12 mil toneladas ; Castanhão-CE: 32 mil toneladas ; Furnas-MG: 80 mil toneladas; Três Marias-MG: 55 mil toneladas ; Tucuruí-PA: 14 mil toneladas e Ilha Solteira-SP: 72 mil toneladas. É prevista uma capacidade de suporte de 265.000 toneladas/ano (duzentos e sessenta e cinco mil toneladas por ano), somente nestes parques aquícolas. Além dos parques aqüicolas citados, 150 (cento e cinquenta) áreas aquícolas isoladas estão espalhadas por águas de domínio da União, com uma capacidade de suporte de 100 mil toneladas/ano (cem mil toneladas por ano). Somadas as 415.000 mil ton/ano (quatrocentos e quinze mil toneladas por ano) equivalentes a produção em 2009, às 265.000 mil ton/ano (duzentos e sessenta e cinco mil toneladas por ano) produzidas nos parques aqüícolas e mais 100.000 ton/ano (cem mil toneladas por ano) produzidas nas áreas aquícolas isoladas, a produção brasileira pode alcançar o total de 780.000 ton/ano (setecentos e oitenta mil toneladas por ano), possibilitando um considerável incremento da produção de alimentos nos próximos anos. É certo que há enorme potencial a ser explorado, o que pode gerar novos parques e áreas aquícolas, como se observa no mapa que se segue: (...)” 299 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Além da maior oferta de alimentos, a experiência de incentivo à produção de pescado realizada pelo Ministério da Pesca e Aquicultura tem acarretado maior geração de renda, uma vez que a licitação para a cessão de uso das águas da União para fins de aqüicultura privilegia a cessão não onerosa (gratuita) aos pequenos produtores (renda familiar de até cinco salários mínimos e moradores da região de entorno dos lagos). O marco legal do processo de concessão de outorga de águas é o Decreto 4895/03, que disciplina todo o roteiro de cessão, desde o pedido inicial do empreendedor até a sua finalização. Este Decreto é importante em razão de disciplinar a análise dos pedidos de cessão, conciliando a atuação de diversos órgãos como a ANA – Agência Nacional das Águas (responsável pela outorga); o IBAMA - Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis e os órgãos estaduais do meio ambiente (OEMA´s, responsáveis pelo licenciamento ambiental); a Marinha do Brasil (responsável pela análise de segurança de tráfego aquaviário); Secretaria de Patrimônio da União (SPU), que como gestora dos bens da União, cede essas águas de domínio da União ao MPA, para que este efetive a cessão. 300 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições 6 CONCLUSÕES O direito de propriedade é marcado por sua dimensão histórica, sendo certo que, na atualidade, o seu exercício é vinculado ao atendimento da função social, tal como previsto no artigo 170, da Constituição Federal do Brasil. A função social da propriedade impõe que o exercício das prerrogativas de proprietário seja compatibilizado com a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, o que, por si só, já evidencia a necessidade de equacionamento das questões ambientais. O Código Civil de 2002 especifica a função social da propriedade prevista na Constituição Federal, disciplinando no parágrafo primeiro do artigo 1228, o modo de exercício do direito de propriedade. Trata-se de cláusual aberta, que impõe, de forma clara, a necessidade de preservação do meio ambiente, estabelecendo, assim, uma verdadeira função ambiental da propriedade. A experiência atual de cessão de águas de domínio da União para fins de aquicultura realizada pelo Ministério da Pesca tem demonstrado como é possível, na prática, novas formas de aproveitamento dos recursos naturais, tornando mais eficiente o seu uso, proporcionando considerável ampliação de alimentos e de geração de renda. REFERÊNCIAS FAO. The State of World Fisheries and Aquaculture 2008. Roma, 2009. 176p. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. São Paulo: Saraiva, 1988. LOUREIRO, Francisco Eduardo. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. MATTIETTO, Leonardo. A renovação do direito de propriedade. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 42, n.168, p.189- 196, out./dez. 2005. MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Meio Ambiente: Direito e Dever Fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado: 2004. MIRAGEM, Bruno. O artigo 1228 do Código Civil e os deveres do proprietário em matéria de preservação do meio ambiente. Cadernos do Programa de Pós-graduação em Direito da UFRS, Porto Alegre, v.III, n.VI, p.21-45, maio 2005. MPA. Produção Pesqueira e Aquícola – Estatística 2008 e 2009. Ministério da Pesca e Aquicultura, Brasília, 2010. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Direito civil – alguns aspectos da sua evolução. Rio de Janeiro: Forense, 2001. 301 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições PEREIRA, Maria Fernanda Pires de Carvalho. Sobre o Direito à Vida e ao Meio Ambiente frente aos Princípios da Dignidade da Pessoa Humana e da Razoabilidade. In: ROCHA, Cármen Lúcia Antunes (coord). O direito à vida digna. Belo Horizonte: Fórum, 2004. PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. SANT´ANNA, Mariana Senna. Planejamento urbano e qualidade de vida: da Constituição Federal ao plano diretor. In Direito Urbanístico e Ambiental. DALLARI, Adilson Abreu; DI SARNO, Daniela Campos Libório (coord.). Belo Horizonte: Fórum, 2007. SAMPAIO, José Adércio Leite. Constituição e Meio Ambiente na Perspectiva do Direito Constitucional Comparado. Princípios de Direito Ambiental na Dimensão Internacional e Comparada. SAMPAIO, José Adércio Leite; WOLD, Chris; NARDY, Afrânio (orgs.). Belo Horizonte: Del Rey, 2003. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. TOMASETTI JÚNIOR Alcides. A propriedade privada entre o direito civil e a constituição. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro – RDM, São Paulo: Malheiros (Nova Série), ano XLI, n.126, p.123-128, abr./jun. 2002. 302 CONCENTRAÇÃO DE RENDA, ACESSO À PROPRIEDADE E SUBDESENVOLVIMENTO: UM OLHAR OBRE A AGRICULTURA FAMILIAR NO BRASIL Juliana Cristine Diniz Campos* RESUMO: Este trabalho tem por objeto o direito fundamental à propriedade, considerado como instrumento fundamental no processo de desenvolvimento humano, ao dar condições de qualidade de vida e bem-estar aos indivíduos. Associa-se a noção de subdesenvolvimento com a privação de direitos básicos. Indica-se, na história do direito de propriedade, as principais transformações de significado do seu objeto. Analisa-se as possibilidades de transformação estrutural do direito através da reorganização das relações de propriedade no campo, a partir do investimento na agricultura familiar. Compreende-se a agricultura familiar como política setorial associada à reforma agrária, capaz de transformar o modelo de exploração da propriedade rural, a partir da ressignificação da função social em face do cuidado com a sustentabilidade. PALAVRAS-CHAVE: SUBDESENVOLVIMENTO, PROPRIEDADE, ESTRUTURAS JURÍDICAS, AGRICULTURA FAMILIAR. ABSTRACT: This paper analyzes the civil right to property, as the most important mechanism in the human developing process, considering its possibilities in improving life quality and welfare of human beings. In the introduction, we make an association between the undevelopment and lacking of human rights. In the second section, we indicate, by analyzing the history of the right to property, the most important transformations in its meaning, as a fundamental aim of the subjects. We investigate the possibilites of law structural transformations, considering that the state should reorganize the property relations in the country by investing in family farming. We comprehend the family farming as a politic related to the redistribution of the land, able to transform the economic model of agriculture exploitation. KEY-WORDS: UNDEVELOPMENT, PROPERTY, LAW STRUCTURES, FAMILY FARMING. * Doutoranda em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professora de Direito Urbanístico e Direito Agrário na Faculdade 7 de Setembro (CE). E-mail: <[email protected]>. A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições INTRODUÇÃO Somos constantemente levados a encarar a ampliação do acesso ao direito de propriedade no Brasil a partir da perspectiva jurídica, ou seja, como resultado lógico do processo de intervenção do estado no domínio econômico, a partir do reconhecimento político dos direitos econômicos, sociais e culturais. Nesse contexto, o direito à propriedade, tradicionalmente associado às liberdades públicas clássicas, seria, ao mesmo tempo, flexibilizado, a fim de adaptá-lo às exigências de um uso funcional e interessante à comunidade, e expandido – quanto à sua titularidade – à grande massa de indivíduos que simplesmente não tem acesso à terra urbana ou rural. Embora o raciocínio não esteja equivocado, é preciso ressaltar que aspectos da estrutura econômica peculiares às grandes nações originárias de dominação colonial têm indicado um paradoxo que interfere diretamente no modo de distribuição do direito à propriedade: o crescimento econômico está, via de regra, associado ao crescimento da pobreza, a partir de um movimento de concentração de renda ao inverso 1. É possível afirmar, portanto, que a ascensão e consolidação do estado social no Brasil – no plano jurídico – pouco ou nada tem adiantado para impedir o processo de concentração de renda associado, diretamente, à concentração de terras e ao aumento dos conflitos fundiários 2. Uma possível resposta a esse paradoxo se encontra na análise da dinâmica econômica do período que sucede a revolução industrial, em que o desenvolvimento da técnica de massificação da produção ocasionou um impulso na acumulação do capital, gerando a reserva responsável pelo processo de concentração da terra. Comparato critica esse movimento, ao afirmar que os povos se aproximam fisicamente uns dos outros por força do vertiginoso progresso técnico, mas ao mesmo tempo dissociam-se, drasticamente, por efeito da crescente desigualdade econômica, social e política3. Como fazer frente a esse paradoxo, superando a desigualdade na distribuição dos 1 SALOMÃO FILHO, Calixto. Monopólio Colonial e Subdesenvolvido. In: BERCOVICI, Gilberto; BENEVIDES, Maria V. M.; MELO, CLaudineu de. (orgs.). Direitos Humanos, Democracia e República: Homenagem a Fábio Konder Comparato. São Paulo: Quartier Latin, 2009, pg. 159-206. 2 Neves menciona o processo de esvaziamento da força normativa do direito constitucional, ao afirmar que o efeito negativo da constitucionalização simbólica induz a uma ausência generalizada de orientação das expectativas normativas conforme as determinações dos dispositivos da Constituição. Para o autor, ao texto constitucional falta, então, normatividade no plano da eficácia. In: NEVES, Marcelo. A Constitucionalização Simbólica. São Paulo: Martins Fontes, 2007, pg. 92. 3 COMPARATO, Fábio Konder. Ética: Direito, Moral e Religião no Mundo Moderno. São Paulo: Cia das Letras, 2006, pg. 433. 304 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições direitos humanos fundamentais? Esta a pergunta de fundo deste trabalho, onde buscaremos analisar o direito de propriedade como eficaz instrumento de conservação ou transformação das estruturas sociais, conforme a orientação do Direito. Para atender a este objetivo, é possível considerar um modelo de análise das instituições jurídicas que associe aspectos de direito e de economia a partir de uma perspectiva que não a da famigerada law and economics. Enquanto esta escola mostra-se preocupada com os efeitos econômicos dos processos de aplicação do direito, a partir da noção de que os direitos têm custos e influem na alocação dos recursos e, como tal, precisam de um substrato de recurso que lhes dê efetividade, favorecendo a maximização da riqueza 4; a perspectiva estruturalista busca explicar os modos de organização do direito a partir das estruturas econômicas para, então, propor alternativas adequadas ao problema do subdesenvolvimento, considerado o problema central das democracias periféricas. A preocupação primordial não é, portanto, a de pensar um direito que seja economicamente viável, mas a de compreender como as instituições jurídicas têm possibilitado a perpetuidade da dependência econômica e impedido o pleno exercício de direitos básicos, associados à qualidade de vida e à liberdade. Para Salomão, de acordo com a perspectiva estruturalista, é nas estruturas internas criadas a partir da herança colonial (de dependência, sem dúvida) que devem ser identificados os problemas a serem resolvidos 5. A propriedade, como instituição diretamente associada à riqueza, tem um papel fundamental nesse processo. Neste trabalho, procuramos demonstrar como, na história econômica do Brasil, a configuração do direito de propriedade serviu para possibilitar a consolidação do sistema monopolista, ocasionando o crescimento da desigualdade, da pobreza e, conseqüentemente, da concentração fundiária, associada ao movimento de industrialização e urbanização vividos no Brasil ao longo do século XX. Uma orientação metodológica inicial se faz necessária para que se fixe os referenciais de análise deste artigo, especificamente no campo conceitual, no que diz respeito à associação entre propriedade, concentração de renda e subdesenvolvimento. Para tanto, iniciaremos com a análise da noção contemporânea de desenvolvimento como liberdade e de como os direitos humanos têm um papel instrumental nesse processo 6; passaremos à exposição do argumento 4 POSNER, Richard. Problemas de Filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007, pg. 477. SALOMÃO FILHO, Op. cit., pg. 160. 6 Para Sem, o desenvolvimento pode ser visto como um processo de expansão das liberdades reais que as 5 305 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições que associa a estrutura monopolista colonial à concentração de riqueza 7; seguindo para a análise do histórico do direito de propriedade no Brasil, especificamente no que tange à abrangência de sua titularidade, seja no plano constitucional, seja no infraconstitucional. 1 DIREITOS FUNDAMENTAIS E SUBDESENVOLVIMENTO Os direitos fundamentais apresentam-se como tema base do constitucionalismo ocidental desde a sua primeira fase, com as revoluções liberais do século XVIII. Enquanto, através das cartas de direitos, cuidava-se de um problema primário, o de positivação, de garantia normativa de uma série de pretensões de classe não reconhecidas, com as constituições democráticas surgidas após a segunda guerra mundial a questão se desloca para o problema da efetividade (ou falta material) dos direitos básicos. Embora não seja correto afirmar que o questionamento da efetividade veio da inteira superação do problema da positivação, é possível afirmar que as sociedades ocidentais convenceram-se da necessidade de realização da igualdade material como condição para o desenvolvimento8. Dias esclarece que o desenvolvimento é vital na eliminação das causas estruturais de privações, violações e abusos aos direitos humanos 9. Passa-se a considerar que os direitos humanos, além de um problema jurídico, são fundamentalmente um problema econômico. Por isso, a fim de compreender como o direito de propriedade tem favorecido o subdesenvolvimento nas democracias periféricas, é preciso definir, de antemão, dois pontos principais: a) a efetividade dos direitos fundamentais é dependente, principalmente, de fatores econômicos, além da positivação jurídica; b) o conceito de desenvolvimento é fundamental para a condução da mudança estrutural, como referencial ético-político das concepções de liberdade, bem-estar e qualidade de vida. Uma visão estritamente economicista consideraria que a alocação eficiente de recursos pessoas desfrutam. In: SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Cia das Letras, 2000, pg. 17. 7 SALOMÃO FILHO, Calixto; FERRÃO, Brisa Lopes de Mello; RIBEIRO, Ivan César. Concentração, Estruturas e Desigualdades: As Origens Coloniais da Pobreza e da Má Distribuição de Renda. São Paulo: IDCID, 2008, pg. 15. 8 No plano internacional, é curioso observar que, após a criação da ONU, em 1945, observou-se um movimento de contínua especialização dos documentos sobre direitos humanos. Busca-se positivar aspectos específicos de direitos particularizados, colaborando na criação de uma cultura de paz e de proteção aos direitos do homem. 9 DIAS, Clarence. Educação em Direitos Humanos como Estratégia para o Desenvolvimento. In: 306 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições seria suficiente para a superação do problema da desigualdade, levando ao desenvolvimento humano. Entretanto, essa concepção desconsidera um aspecto ético fundamental, remetido ao campo da política, que ganha sua importância: o que se entende por desenvolvimento? Quais os objetivos que se busca alcançar com uma melhor distribuição da riqueza? Como conceito transversal na política, na economia e no direito, o desenvolvimento foi redefinido e recebeu uma estrutura normativa extraída da área de direitos humanos definida internacionalmente10. Ao superar a associação exclusiva ao crescimento econômico, o sentido do desenvolver desloca-se para a noção de qualidade de vida e bem-estar. É nessa questão inicial que o conceito de desenvolvimento como liberdade desenvolvido por Sen pode nos ajudar. O economista traz uma concepção de desenvolvimento estreitamente associada à ideia de liberdade e, por conseguinte, aos direitos fundamentais como um todo. Isso porque, para o autor, o desenvolvimento pode ser visto como um processo de expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam11. Os elementos que impedem a concretização da liberdade são justamente aqueles bens tutelados pelas normas de direitos fundamentais, em todas as suas dimensões. Esclarece: O desenvolvimento requer que se removam as principais fontes de privação de liberdade: pobreza e tirania, carência de oportunidades econômicas e destituição social sistemática, negligência de serviços públicos e intolerância ou interferência excessiva de Estados repressivos. [...] A ligação entre liberdade individual e a realização do desenvolvimento social vai muito além da relação constitutiva – por mais importante que ela seja. O que as pessoas conseguem positivamente realizar é influenciado por oportunidades econômicas, liberdades políticas, poderes sociais e por condições habilitadoras como a boa saúde, educação básica e incentivo e aperfeiçoamento de iniciativas.12 Embora essa afirmação nos pareça, a primeira vista, auto-evidente – e o discurso jurídico sobre os direitos fundamental tem cuidado de explorá-la à exaustão – o direito ainda é operado argumentativamente com topoi referentes à concepção liberal de direitos fundamentais: direitos sociais como normas programáticas, impossibilidade de controle jurisdicional de políticas públicas sob o argumento da reserva do possível, orçamento público como norma indicativa não vinculante ao gestor, etc. O desenvolvimento, compreendido como processo de superação das restrições a direitos (liberdades), encontra-se estreitamente associado, no plano valorativo, ao princípio jurídico da dignidade humana, a partir da perspectiva do reconhecimento do outro como igual 10 DIAS, Clarence. Op. cit., pg. 104. SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Cia das Letras, 2000, pg. 17. 12 SEN, Amartya. Op. cit., pgs. 18-19. 11 307 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições em direitos. Compreende-se um direito – e, também, o processo econômico – mais inclusivo, a partir do qual se busca a consagração, através da solidariedade, de uma partilha comum da dignidade humana13. Para Stiglitz, o desenvolvimento diz respeito a transformar a vida das pessoas, não apenas as economias14. A noção de solidariedade mostra-se, portanto, primordial para o remodelamento das estruturas jurídicas e sociais, na medida em que o desenvolvimento dependerá, necessariamente, da redução da distância real entre ricos e pobres. A ideia de esforço comum é salientada por Comparato, que indica três dimensões da solidariedade: nacional, internacional e intergeracional. Para o autor: O vínculo de solidariedade entre todos os que compõem politicamente o mesmo povo de um Estado determinado está na origem do conjunto dos direitos fundamentais de natureza econômica, social e cultural15. Mostra-se indispensável, portanto, associar o direito de propriedade à noção de desenvolvimento, na qualidade de meio de garantir os direitos fundamentais como um todo, superando, definitivamente, o modelo liberal das instituições associadas ao direito, a partir da perspectiva do princípio da solidariedade e da dignidade da pessoa humana. Nessa perspectiva, a propriedade é considerada riqueza materializada e, como direito, é entendida como acesso a essa riqueza – seu relacionamento com os direitos econômicos, sociais e culturais é manifesta. Os contínuos ciclos de concentração de recursos e de perpetuação do subdesenvolvimento acabaram por ser mantidos pelas instituições jurídicas voltadas à propriedade, que sempre privilegiaram o aspecto negativo do direito, isto é, a proteção da exclusividade. A riqueza, nessa visão do desenvolvimento como processo integrado de expansão das liberdades substantivas, tem a função de oferecer aos indivíduos as capacidades de viver como gostariam, determinando a qualidade de vida. A concentração da riqueza tem o condão de privar um número expressivo de pessoas das condições de liberdade, ocasionando um processo de exclusão e intensificação da desigualdade social16. Pensar a propriedade a partir de uma perspectiva positiva envolve a consideração de meios jurídicos de distribuição da riqueza e, por consequência, do acesso à propriedade. Uma proposição normativa transformadora demanda, de início, uma compreensão dos 13 COMPARATO, Fabio K. Op. cit., pg. 570. STIGLITZ, Joseph. Globalização: Como dar certo. São Paulo: Cia das Letras, 2007, pg. 123. 15 COMPARATO, Fabio K. Op. cit., pg. 579. 16 SEN, Amartya. Op. cit., pg. 31. 14 308 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições condicionantes estruturais históricos, para qual se pretende colaborar com este trabalho. 2 O DIREITO DE PROPRIEDADE DA COLÔNIA À REPÚBLICA A análise da história do direito de propriedade requer cuidados metodológicos no que tange ao próprio conceito da instituição jurídica. Isso porque os conceitos jurídicos não podem ser afastados do seu chão e do seu tempo 17. É certo que a propriedade permanece tutelada como direito no plano constitucional desde a Constituição Imperial de 1824, em seu artigo, mas o significado da noção de propriedade transformou-se substancialmente do período colonial ao advento do estado do bem-estar, com a Constituição Federal de 1988. É preciso estar atento, portanto, aos condicionamentos culturais à expressão “propriedade” e ao que constitui o objeto tutelado pelo assim denominado direito de propriedade através da legislação. A ideia do ter tem sido tratada, desde o advento da Modernidade, como uma realidade imutável, única, naturalizada. Isto é, faz parte da natureza das coisas o homem ser proprietário, numa relação de pertencimento marcada pela absolutidade. Sendo o direito uma realidade cultural, essa relação tem por característica sua plasticidade, sendo passível de mudança. Nesse sentido, pode-se observar uma transformação significativa da noção de propriedade na passagem do estado liberal ao estado social. Neste ponto, cuidaremos de demonstrar como, através dos dispositivos normativos, essa mudança se deu, sendo certo que a mudança nem sempre constitui uma transformação para melhor, não se podendo falar, em termos de história, em uma evolução contínua e permanente para o bem. A formação do sistema fundiário brasileiro remete ao período colonial, com a instituição do regime sesmarial, no ano de 1548. Através desse instituto, grandes porções de terra do território colonial, as capitanias hereditárias, eram confiadas a um aristocrata, denominado capitão donatário. Segundo Nozoe: O acompanhamento da legislação fundiária vigente durante em que o período o Brasil esteve sob o domínio de Portugal deixa à mostra a precariedade da situação jurídica da propriedade fundiária, mesmo daquelas recebidas legalmente por mercê 17 STAUT JÚNIOR, Sérgio Sahid. Cuidados Metodológicos no Estudo da História do Direito de Propriedade. In: Revista da Faculdade de Direito, UFPR, v.42, pg. 155. 309 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições da Coroa18. A regulação da propriedade no período mostrava-se dispersa, sem a coesão própria das regulações da era moderna. É certo ressaltar que ainda em fins de século XIV, não se tinha como postulado das ordens jurídicas a organização sistemática de leis, como resultado de uma vontade estatal ordenadora, ideia só desenvolvida e colocada em prática com o movimento legalista francês, no período pós revolução francesa. A tradição do direito legal, organizado e coeso é, portanto, uma criação recente, revelando-se a precariedade jurídica com que o direito de propriedade era tratado na colônia. O instituto das sesmarias – identificado como marco da estrutura de latifúndio do Brasil – foi experimento em Portugal já em 1375, por ocasião da grande crise alimentar provocada pela peste, cujo decréscimo demográfico gerou o despovoamento do campo. A relação do donatário com a terra não era de propriedade total, mas de posse qualificada, na medida em que a Coroa permanecia com o domínio absoluto do território. A ocupação do território através do regime sesmarial mostrou-se dispersa, marcada pela ausência do Estado e pela falta de interesse econômico inicial da aristocracia portuguesa. Segundo Furtado, os traços de maior relevo do primeiro século da história americana estão ligados a essas lutas em torno de terras de escassa ou nenhuma utilização econômica 19. Poucas capitanias geraram um povoamento significativo e não se pode falar em interiorização expressiva do território até o período da mineração, já nos séculos XVIII e XIX. Ressalta-se o caráter concentrador desse sistema de distribuição de terra, que dividiu o imenso território da colônia em apenas 14 capitanias hereditárias. A nota da concentração de terra – diretamente associada ao monopólio no desenvolvimento da atividade econômica inicialmente extrativista e posteriormente agrária – é perceptível na realidade jurídica brasileira desde a Colônia, através da herança de regime de propriedade com ares feudais. Em 1822, com a independência política da colônia em relação à metrópole, tem-se a inauguração da fase denominada “regime das posses”, marcada pela ausência de regulação jurídica das relações de propriedade fundiária. Isso porque as ordenações do reino (manuelinas e, posteriormente, filipinas) não podiam mais ser aplicadas em território brasileiro, por força do rompimento político com a metrópole. A falta de criação legal pelo 18 NOZOE, Nelson. Sesmaria e Apossamento de Terras no Brasl Colônia. In: Economia, Brasília (DF), v.7, n.3, set/dez de 2006, pg. 589. 19 FURTADO, Celso. A Formação Econômica do Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 2007, pg. 28. 310 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições período de 28 anos marcou a origem de um outro problema grave do campo no Brasil: a omissão do estado e a violência como instrumento de resolução dos conflitos agrários. O poder econômico, portanto, auxiliado pela força bruta, sobrepunha-se ao poder jurídico, ausente o Poder Público ainda incipiente. O marco da regulação do direito de propriedade no período Imperial deu-se com a criação da Lei de Terras, em 1850 (lei nº 601). Criada para solucionar uma situação de completa anomia, a lei de terras cuidou de reconhecer as posses de fato, conforme dá conta o seu artigo 5º, que dispõe do seguinte modo: São legitimadas as posses mansas e pacíficas, adquiridas por occupação primaria, ou havidas do primeiro occupante, que se acharem cultivas, ou com principio de cultura, e morada, habitual do respectivo posseiro, ou de quem o represente. A associação com o regime notarial Torrens20 – instituído no Brasil através do Decreto 451-B, em 1890 e atualmente em desuso – demonstra a preocupação institucional com a regularização fundiária, feita sem maiores cuidados com a distribuição igualitária da terra. Os grandes latifundiários responsáveis pela empresa agrária tiveram sua posse reconhecida pelo direito superveniente, com maior força dada pelo registro da propriedade com força absoluta. O Código Civil de 1916 regulou o direito de propriedade tal qual a doutrina liberal o concebia em suas características de perpetuidade, exclusividade e individualidade. Tratava-se de um direito absoluto, para o qual a ordem jurídica construiu uma sofisticada trama de institutos de direito material e processual voltados à sua preservação e tutela. No plano constitucional, tem-se que todas as constituições – da Imperial em 1824 à democrática de 1988 – garantiram o direito de propriedade, elevado ao status de direito humano individual. Maior destaque têm as constituições de 1934; 1946 e 1988, pelas transformações de significado que proporcionaram ao conceito de propriedade, a partir de uma mudança do próprio modelo de estado. A carta de 1934 é identificada como reflexo, no Brasil, da constituição alemã de 1919, a famigerada Constituição de Weimar, marco do estado social no Ocidente. Tem-se o primeiro dispositivo constitucional limitador ao direito de propriedade, a partir da previsão de seu artigo 113, alínea 17, que condicionava o uso ao atendimento do bem comum. A partir da década de 30 do século XX, no Brasil, observa-se um movimento para construção da reforma agrária, intensificada pela Constituição Federal de 1946, a primeira carta a utilizar a expressão bem-estar social como condicionante do direito de propriedade, em seu artigo 147. 20 O registro Torrens faz presunção juris et de jure de propriedade, não admitindo prova em contrário. 311 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Em 1962, tem-se a edição da lei da desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária (lei federal nº 4.132), seguida do Estatuto da Terra, em 1964 (lei nº 4.504), o que demonstra o movimento legislativo voltado à regulação das relações de propriedade no espaço do campo21. Num intervalo de dois anos, tem-se a criação de importante instrumento de redistribuição de terra por meio da intervenção do estado – a desapropriação por interesse social – e do principal corpo normativo de direito agrário no Brasil, o Estatuto da Terra, com a função de fixação conceitual e regulação geral da propriedade rural. A instituição do Imposto Territorial Rural, o ITR, representou o instrumento de natureza tributária, como tentativa de equilibrar as desigualdades na concentração da riqueza enquanto propriedade. Nesse aspecto, merece-se destaque a observação inicial deste artigo: nem mesmo o forte arcabouço normativo motivado pela transformação do estado foi suficiente para o movimento expressivo de redistribuição da riqueza, em face da não aplicação sistemática dos dispositivos legais. Há, assim, uma profunda distância entre o processo de positivação e o processo de reorganização da atividade econômica, refletindo a ineficácia das normas sobre direito agrário nas décadas finais do século XX. A omissão estatal foi, assim, determinante para a perpetuação das relações de exclusão à propriedade da terra no Brasil. Segundo Sen e Kliksberg, uma grande parte dos problemas de privação surge de termos desfavoráveis de inclusão e de condições adversas de participação, e não do que se poderia chamar, sem forçar o termo, de um caso de exclusão22. Assim, verifica-se que, muito embora haja a base normativa sólida garantidora do processo de redistribuição da terra, constitutivas de “inclusão”, a falta do direcionamento das estruturas acaba por esvaziar a eficácia do bloco de normas. A Constituição Federal de 1988 foi, nesse aspecto, o diploma mais expressivo em termos de regulação da propriedade. Ao garanti-la como direito fundamental – impassível, portanto, de supressão – o constituinte teve o cuidado de, já no inciso seguinte, instituir sua conformação: a propriedade deve atender à sua função social (incisos XXII e XXIII do artigo 5º). 21 O conceito de “campo” para o fim de aplicação do direito agrário não é estritamente geográfico. Para o Estatuto da Terra, tem-se o critério econômico, considerando-se propriedade rural aquela onde se desenvolva atividades consideradas agrárias, como a agricultura, a pecuária, o extrativismo, a agroindústria, entre outras. O conceito de campo deve estar associado ao espaço em que determinado tipo de relações sociais são organizadas, a partir da presença de um fator determinante: a propriedade. 22 SEN, Amartya; KLIKSBERG, Bernardo. As Pessoas em Primeira Lugar: A Ética do Desenvolvimento e os Problemas do Mundo Globalizado, tradução de Bernardo Ajzemberg e Carlos Eduardo Lins da Silva. São Paulo: Cia das Letras, 2010, pg. 35. 312 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Tendo a atenção de instituir dois capítulos específicos sobre a organização da propriedade em sua dimensão objetiva – como expressão material da riqueza, a Constituição sistematizou tanto a política agrícola como a política urbana, ambos no título referente à ordem econômica e financeira. A grande inovação deve-se, sobretudo, à densificação do conceito aberto de função social, já no artigo 186 da Constituição. O dispositivo desdobrou o conceito de função social em três dimensões, interligadas e interdependentes: a econômica, a social e a ambiental. Para a constituição, a propriedade atende a sua função social quando se verifica: o aproveitamento racional e adequado; a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; a observação das disposições que regulam as relações do trabalho; e a exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e trabalhadores. Também abertas, as expressões constitucionais foram complementadas pela Lei da Reforma Agrária (Lei Federal nº 8.629 de 1993), que define, em seu artigo 9º, o que constitui, objetivamente, os critérios definidos no artigo 186 da Constituição. A carta teve, ainda, o mérito de diferenciar a política agrícola da reforma agrária, como atuações complementares. Considerada agricultura a atividade econômica da maior importância, a política agrícola tem a função primordial de dirigir o desenvolvimento da produção no campo, inclusive no que tange ao aproveitamento das terras ociosas, a critério do programa de reforma agrária. Alçada ao status de objetivo constitucional, a reforma agrária tem a função básica de incluir milhares de agricultores rurais historicamente excluídos do acesso à terra, através da desapropriação dos imóveis improdutivos seguida da colonização. Tem-se, com a Constituição Federal de 1988 e as normas supervenientes, a construção de todo um sistema normativo de direito agrário hábil a favorecer a transformação das estruturas, a partir da democratização no investimento no campo. Para tanto, é necessário uma mudança de perspectiva nas funções da ordem jurídica, superando um modelo compensatório por um modelo transformador. 3 DA COMPENSAÇÃO À TRANSFORMAÇÃO PELO DIREITO: A FUNÇÃO DA PROPRIEDADE NA ESTRUTURA SOCIAL Segundo Sen e Kliksberg, em meio à atual crise, que é reveladora de deficiências 313 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições históricas estruturais, parece ter chegado a hora de reabrir definitivamente o debate sobre qual mundo queremos23. Sendo a propriedade uma relação de pertencimento24, é possível pensar numa reorganização de seu modelo, a partir da definição prévia das necessidades do grupo, passíveis de serem atendidas com o melhor aproveitamento e distribuição da riqueza. O direito de propriedade foi forjado pelo ideário moderno como direito individual cujo fundamento é a própria naturalização das necessidades humanas. Considerada a melhor modo de aproveitamento da riqueza disponível, a apropriação individual surge como postulado indiscutível, reconhecido positivamente em todas as constituições revolucionárias e nas cartas supervenientes no mundo ocidental. A propriedade, todavia, quando “dessacralizada”, oferece um primado do objetivo sobre o subjetivo, ou seja, considerada mais que o domínio de um indivíduo sobre um bem, é tida como condição básica para o exercício dos demais direitos 25, um ponto materializador da dignidade humana. Sua redistribuição é, ao mesmo tempo, uma condição para a ética do desenvolvimento e componente estrutural que favorece a melhor distribuição da riqueza. O principal efeito estrutural negativo da concentração da propriedade é a drenagem dos recursos dos outros setores da economia, gerando um déficit no investimento e uma crescente concentração do poder econômico, afetando a distribuição da renda e condicionando todo o mercado de trabalho. Para Salomão: O grau de concentração e, por consequência, os pardos de pobreza e de desigualdade observados entre as diversas regiões do Brasil e de outras ex-colônias podem ser rastreados até episódios da ocupação colonial e mesmo encontrados em atividades econômicas de desenvolvimento mais recente26. A propriedade rural, diretamente relacionada aos processos de criação de riqueza e de acumulação de capital, deve receber um tratamento jurídico especial se o objetivo é a consolidação de uma transformação das estruturas econômicas que motive níveis cada vez mais elevados de bem-estar e desenvolvimento humano. Isso porque: Antes de o direito de propriedade constituir poder de troca do proprietário, é poder de uso – repete-se – e poder de uso que, a par de não interessar somente a ele, mas a todos quanto possam ser afetados pelo exercício do referido direito, está pressionado por urgências inadiáveis. Ao uso imediato do seu bem próprio, pois, corresponde um “uso mediato” de toda a 23 SEN, Amartya; KLIKSBERG, Bernardo. Op. cit., pg. 13. STAUT JÚNIOR, Sérgio Sahid. Op. cit., pg. 158. 25 Sen identifica esta como uma visão ecumênica dos direitos humanos, que os compreendem como interdependentes. SEN, Amartya; KLIKSBERG; Bernardo. Op. cit., pg. 34. 26 SALOMÃO FILHO, Calixto; FERRÃO, Brisa Lopes de Mello; RIBEIRO, Ivan César. Concentração, Estruturas e Desigualdades: As Origens Coloniais da Pobreza e da Má Distribuição de Renda. São Paulo: IDCID, 2008, pg. 19. 24 314 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições comunidade, direta ou indiretamente atingida pela eficácia do direito de 27 propriedade. Assim, um dos mecanismos jurídicos que podem funcionar como estímulo para a diversificação do investimento, desconcentrando os processos de acumulação de riqueza, é a utilização do crédito rural, instrumento de política agrícola previsto no artigo 187, inciso I da carta constitucional. O Estado poderia, assim, através de uma intervenção no domínio econômico, proporcionar o maior acesso aos recursos que possibilitem o investimento na agricultura familiar, ocasionando uma distribuição dos recursos capaz de fazer frente a séculos de concentração de riqueza. Ao que parece, a transformação da propriedade rural no que tange à sua função sócioambiental é dependente dos usos e práticas da economia no campo. A compreensão de que a produção agropecuária deve satisfazer a demanda de mercado sem perder de vista a sustentabilidade da produtividade da terra é fundamental. A agricultura familiar, ao estimular o desenvolvimento de uma relação direta entre homem e campo, produtor e riqueza, mostra-se interessante na medida em que uma nova ética de produção passa a se desenvolver, baseada na percepção direta da dependência da manutenção dos índices de produtividade do solo, fundados na preservação e no manejo de estratégias de uso menos predatórias. Segundo Schneider, a emergência da expressão “agricultura familiar” emergiu no contexto brasileiro a partir de meados da década de 199028. A criação do PRONAF, em 1996, intitulado Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar, motivou a inclusão do tema na agenda pública federal, inserida no contexto de ampliação das políticas públicas relacionadas à reforma agrária. Em estudo realizado pelo INCRA juntamente com a FAO 29, buscou-se desmistificar a agricultura familiar, normalmente associada à baixa produtividade. Considerado o meio de exploração do campo mais apropriado à preservação do meio ambiente, a agricultura familiar não se apresenta como uma prioridade em termos de investimento público no Brasil, dada a imensa desproporção dos recursos aplicados na agricultura familiar e na agroindústria. Considerando que a reforma agrária é, no Brasil, uma prioridade constitucional, seu objetivo é proporcionar a redistribuição do acesso à propriedade, o que só é possível com a 27 ALFONSIN, Jacques Távora. O Acesso à Terra como Conteúdo de Direitos Humanos Fundamentais à Alimentação e à Moradia. Porto Alegre: Fabris, 2003, pg. 176. 28 SCHNEIDER, Sérgio. Teoria Social, Agricultura Familiar e Pluriatividade. In: Revista brasileira de Ciências Sociais, vol.18, no.51, São Paulo, fev., 2003. 29 BRASIL. Novo Retrato da Agricultura Familiar: O Brasil Redescoberto. Brasília, 2002. Disponível em: www.incra.gov.br/fao. 315 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições política de investimento complementar ao processo de assentamento posterior às desapropriações. Uma alternativa é a instituição de formas de coletivização da produção, através do regime do cooperativismo. A lei da reforma agrária (Lei Federal nº 8629/93) institui a organização em cooperativas como a primeira opção no que tange à organização da atividade no assentamento. Apesar disso, o cooperativismo pressupõe o espírito de associação, nem sempre presente nas relações sociais no campo, o que indica a necessidade do trabalho de acompanhamento educativo do agricultor: transformando a realidade da produção, é possível fazer frente aos grandes proprietários, induzindo um mercado mais competitivo, onde a riqueza possa ser melhor distribuída. CONCLUSÕES Este trabalho teve por objeto do direito de propriedade, no que tange à sua função no processo de desenvolvimento, a partir da visão dos direitos humanos como pretensões interdependentes e complementares. Estabeleceu-se como pressuposto que o desenvolvimento necessita de uma orientação ética e diz respeito ao aprimoramento das condições de bem-estar e de acesso às liberdades que os indivíduos desfrutam. O Estado, nesse processo, tem a função de equilibrar as desigualdades socioeconômicas de base, dando condições ao processo de equiparação das liberdades. O subdesenvolvimento é compreendido, portanto, como uma condição de privação, de ineficácia de direitos. Nessa dinâmica, a propriedade é tida como direito-base, na medida em que é através da riqueza que a efetividade dos demais direitos pode ser observada. A propriedade dá condições a que os sujeitos desfrutem da qualidade de vida, representando a riqueza materializada. No Brasil, tem-se que o direito de propriedade é historicamente concentrado, em face do sistema fundiário baseado no latifúndio e na exploração de culturas para exportação, em larga escala. Demonstrou-se como o processo de transformação do direito tem favorecido uma mudança no conceito de propriedade, a partir de uma associação ao bem comum e à função social. 316 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Apesar das mudanças no plano jurídico, verifica-se que pouco se tem feito em termos de intervenção estatal, ocasionando uma não aplicação sistemática dos dispositivos normativos. Como alternativas, propõe-se uma mudança na própria lógica de produção, através da redistribuição do investimento, a ser focado na agricultura familiar, organizada através do sistema do cooperativismo, capaz de promover um mercado mais competitivo, com a consequente redução progressiva do poder econômico. REFERÊNCIAS ALFONSIN, Jacques Távora. O Acesso à Terra como Conteúdo de Direitos Humanos Fundamentais à Alimentação e à Moradia. Porto Alegre: Fabris, 2003. BRASIL. Novo Retrato da Agricultura Familiar: O Brasil Redescoberto. Brasília, 2002. Disponível em: www.incra.gov.br/fao. COMPARATO, Fábio Konder. Ética: Direito, Moral e Religião no Mundo Moderno. São Paulo: Cia das Letras, 2006. DIAS, Clarence. Educação em Direitos Humanos como Estratégia para o Desenvolvimento. FURTADO, Celso. A Formação Econômica do Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 2007. NEVES, Marcelo. A Constitucionalização Simbólica. São Paulo: Martins Fontes, 2007. NOZOE, Nelson. Sesmaria e Apossamento de Terras no Brasl Colônia. In: Economia, Brasília (DF), v.7, n.3, set/dez de 2006, pg. 587-605. POSNER, Richard A. Problemas da Filosofia do Direito, tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2007. SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade, tradução Laura Teixeira Motta. São Paulo: Cia das Letras, 2000. SEN, Amartya; KLIKSBERG, Bernardo. As Pessoas em Primeira Lugar: A Ética do Desenvolvimento e os Problemas do Mundo Globalizado, tradução de Bernardo Ajzemberg e Carlos Eduardo Lins da Silva. São Paulo: Cia das Letras, 2010. SALOMÃO FILHO, Calixto. Monopólio Colonial e Subdesenvolvimento. In: BERCOVICI, Gilberto; BENEVIDES, Maria V. M.; MELO, CLaudineu de. (orgs.). Direitos Humanos, Democracia e República: Homenagem a Fábio Konder Comparato. São Paulo: Quartier Latin, 2009, pg. 159-206. SALOMÃO FILHO, Calixto; FERRÃO, Brisa Lopes de Mello; RIBEIRO, Ivan César. Concentração, Estruturas e Desigualdades: As Origens Coloniais da Pobreza e da Má Distribuição de Renda. São Paulo: IDCID, 2008. SCHNEIDER, Sérgio. Teoria Social, Agricultura Familiar e Pluriatividade. In: Revista brasileira de Ciências Sociais, vol.18, no.51, São Paulo, fev., 2003. STAUT JÚNIOR, Sérgio Sahid. Cuidados Metodológicos no Estudo da História do Direito de Propriedade. In: Revista da Faculdade de Direito, UFPR, v.42, pg. 155-170, 2005. 317 O POVO INDÍGENA ANACÉ E O COMPLEXO INDUSTRIAL E PORTUÁRIO DO PECÉM: TESSITURAS SOCIOAMBIENTAIS DE UM “ADMIRÁVEL MUNDO NOVO”1 Luciana Nogueira Nóbrega2 Martha Priscylla Monteiro Joca Martins3 RESUMO: Nos últimos anos, as comunidades que vivem em São Gonçalo do Amarante e Caucaia, municípios da região metropolitana de Fortaleza, Ceará, vem sendo impactadas pela construção do uma série de empreendimentos na área de infraestrutura e indústrias primárias, como siderúrgicas, termelétricas e refinaria, integrantes de um projeto denominado Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP). Dentre as comunidades afetadas, um grupo, em especial, tem resistido ao processo de implantação do CIPP, reivindicando a identidade étnica Anacé e relações diferenciadas com o território, o que pressupõe outros modelos de uso e gestão dos recursos naturais. Nesse contexto, a presente pesquisa se insere, visando conhecer a história (ainda não contada) que envolve a construção do Complexo Industrial e Portuário do Pecém, uma história sobre propriedade, território e modelos de desenvolvimento socioambientalmente (in)sustentáveis. Ao contarmos essa história, pretendemos identificar e 1 Admirável Mundo Novo (Brave New World na versão original em língua inglesa) é um livro escrito por Aldous Huxley e publicado em 1932 que narra um hipotético futuro onde as pessoas são pré-condicionadas biologicamente e condicionadas psicologicamente a viverem em harmonia com as leis e regras sociais, dentro de uma sociedade organizada por castas. [...]. O personagem Bernard Marx sente-se insatisfeito com o mundo onde vive, em parte porque é fisicamente diferente dos integrantes da sua casta. Num reduto onde vivem pessoas dentro dos moldes do passado uma espécie de "reserva histórica" - semelhante às atuais reservas indígenas onde se preservam os costumes "selvagens" do passado (que corresponde à época em que o livro foi escrito), Bernard encontra uma mulher oriunda da civilização, Linda, e o filho dela, John. Bernard vê uma possibilidade de conquista de respeito social pela apresentação de John como um exemplar dos selvagens à sociedade civilizada. Para a sociedade civilizada, ter um filho era um ato obsceno e impensável, ter uma crença religiosa era um ato de ignorância e de desrespeito à sociedade. Linda, quando chegada à civilização foi rejeitada pela sociedade. O livro desenvolve-se a partir do contraponto entre esta hipotética civilização ultra-estruturada (com o fim de obter a felicidade de todos os seus membros, qualquer que seja a sua posição social) e as impressões humanas e sensíveis do "selvagem" John que, visto como algo aberrante cria um fascínio estranho entre os habitantes do "Admirável Mundo Novo". Aldous Huxley escreveu, mais tarde, outro livro, chamado Retorno ao Admirável Mundo Novo, sobre o assunto: um ensaio onde demonstrava que muitas das "profecias" do seu romance estavam a ser realizadas graças ao "progresso" científico, no que diz respeito à manipulação da vontade de seres humanos. (Informação disponível em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Admir%C3%A1vel_Mundo_Novo>; acesso em 16 Set 2010). Na obra de Huxley os “selvagens” são vistos como “o outro”, exóticos mantidos em reservas para o deleite de turistas de castas consideradas como superiores, em uma sociedade em que o progresso da ciência, ou o projeto de desenvolvimento apontado pelas teorias e práticas consideradas como científicas, é o que determina o modo de vida social. A analogia aqui esboçada expressa, de modo exagerado e caricatural, as construções da sociedade contemporânea de modelos de desenvolvimento que, ainda que se declarem autosustentáveis ambientalmente, inviabilizam modos de vida tradicionais e empobrecem populações, em nome de pressupostos técnico-científicos aliados a grupos de interesses econômicos e sociais, que se impõem como hegemônicos. 2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará - UFC. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Atualmente, pesquisa sobre direitos territoriais dos povos indígenas, interculturalidade e pluralismo jurídico. E-mail: [email protected]. 3 Mestranda da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará - UFC. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Atualmente pesquisa a atuação de advogados(as) populares na concretização do direito a terra e ao território. E-mail: [email protected]. A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições caracterizar os conflitos vivenciados pelo povo Anacé, ao tempo em que buscamos chegar a uma “moral da história”: as contribuições que esse caso podem nos oferecer na compreensão da temática sobre projetos de desenvolvimento e meio ambiente, entendido em sua perspectiva natural e cultural. Com base em pesquisas bibliográficas, documentais e de campo, pudemos perceber que os conflitos que envolvem a construção do CIPP e os Anacé não são apenas sobre a posse ou propriedade de um dado território, mas situam-se, principalmente, no campo do simbólico, da definição de modelos de desenvolvimento e de projetos de futuro, nas formas de produzir e gerir os recursos naturais. Na luta para permanecer no território tradicionalmente ocupado, os Anacé nos indicam a importância de voltar o nosso olhar para o local, para as contribuições que os saberes gestados a partir da vivência concreta podem oferecer, inclusive, para pensarmos em projetos coletivos de futuro. PALAVRAS-CHAVE: Território – desenvolvimento – justiça ambiental RESUMEN: En los últimos años, las comunidades que viven en São Gonçalo do Amarante y Caucaia, la región metropolitana de Fortaleza, Ceará, se ha visto afectada por la construcción de una serie de empresas en el ámbito de las infraestructuras y las industrias primarias, tales como fábricas de acero, centrales eléctricas y refinerías miembros de un proyecto denominado Complejo Industrial y el Puerto (CIPP). Entre las comunidades afectadas, un grupo, en particular, ha resistido el proceso de implementación CIPP, afirmando la identidad étnica Anaco y diferentes relaciones con el territorio, lo que requiere otro tipo de uso y manejo de los recursos naturales. En este contexto, la presente investigación se inscribe en el objetivo de conocer la historia (aún no cuentan), que consiste en la construcción del Complejo Industrial y el Puerto, una historia acerca de la propiedad, los patrones de desarrollo territorial y socioambiental (in) sostenible. Al contar esta historia, tenemos la intención de identificar y caracterizar los conflictos vividos por el pueblo Anaco, el momento en que tratamos de llegar a una "conclusión": las contribuciones que este caso nos puede ofrecer en la comprensión de los proyectos de desarrollo temático y el medio ambiente, entendida en su punto de vista natural y cultural. Basado en la literatura de investigación, documental y la investigación de campo, nos dimos cuenta de que los conflictos que involucran la construcción de la CIPP y Anaco no son sólo acerca de la posesión o propiedad de un territorio determinado, pero se encuentran principalmente en el campo de lo simbólico la definición de modelos y proyectos de desarrollo para el futuro, las formas de producción y gestión de los recursos naturales. En la lucha por permanecer en los territorios tradicionalmente ocupados, el Anaco nos muestran la importancia de volver la mirada a la escena a las aportaciones que el conocimiento gestado a partir de la experiencia concreta puede ofrecer, incluso a pensar en proyectos colectivos para el futuro. PALABRAS_CLAVE: Planificación – desarrollo – la justicia ambiental Introdução Nos últimos anos, as comunidades que vivem em São Gonçalo do Amarante e Caucaia, municípios da região metropolitana de Fortaleza, Ceará, vem sendo impactadas pela construção do uma série de empreendimentos na área de infraestrutura e indústrias primárias, 319 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições como siderúrgicas, termelétricas e refinaria, integrantes de um projeto denominado Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP). Dentre as comunidades afetadas, um grupo, em especial, tem resistido ao processo de implantação do CIPP, reivindicando a identidade étnica Anacé e relações diferenciadas com o território, o que pressupõe outros modelos de uso e gestão dos recursos naturais. Ao se contrapor às desapropriações e expulsões de famílias do território, o povo Anacé se vale de estratégias diversas e engloba outros sujeitos na luta pela demarcação do seu território, no resgate e na reelaboração de sua memória e história, e na proposição de um saber próprio, que é local. Nesse contexto, a presente pesquisa se insere, visando conhecer a história (ainda não contada) que envolve a construção do Complexo Industrial e Portuário do Pecém, uma história sobre propriedade, território e modelos de desenvolvimento socioambientalmente (in)sustentáveis. Ao contarmos essa história, pretendemos identificar e caracterizar os conflitos vivenciados pelo povo Anacé, ao tempo em que buscamos chegar a uma “moral da história”: as contribuições que esse caso podem nos oferecer na compreensão da temática sobre projetos de desenvolvimento e meio ambiente, entendido em sua perspectiva natural e cultural.4 Para tanto, combinamos a pesquisa bibliográfica e documental, a partir de autores de diversos ramos do conhecimento, com a pesquisa de campo, procurando focar nossos estudos nas temáticas relativas ao socioambientalismo 5 e aos direitos territoriais e culturais. 4 Essa noção ampla de meio ambiente foi consignada pela Constituição de 1988. De acordo com a Carta Magna, meio ambiente constitui não só os aspectos naturais, intocáveis pelo homem, como a serra, o rio, a lagoa, mas também os bens culturais, como o patrimônio histórico, paisagístico, artístico, os modos de ser e fazer das populações e outros. Carlos Frederico Marés reforça e aprofunda essa compreensão, estabelecendo que: “o meio ambiente, entendido em toda a sua plenitude e de um ponto de vista humanista, compreende a natureza e as modificações que nela vem introduzindo o ser humano. Assim, o meio ambiente é composto pela terra, a água, o ar, a flora e a fauna, as edificações, as obras de arte e os elementos subjetivos e evocativos, como a beleza da paisagem ou a lembrança do passado, inscrições, marcos ou sinais de fatos naturais ou da passagem de seres humanos. Desta forma, para compreender o meio ambiente é tão importante a montanha, como a evocação mística que dela faça o povo”. (MARÉS DE SOUZA FILHO, Carlos Frederico. Bens culturais e proteção jurídica. Porto Alegre: Unidade Editorial da Prefeitura, 1997, p. 9). 5 Nas palavras de Juliana Santilli, “o socioambientalismo foi construído com base na idéia de que as politicas públicas ambientais devem incluir e envolver as comunidades locais, detentoras de conhecimentos e de práticas de manejo ambiental. Mais do que isso, desenvolveu-se com base na concepção de que, em um país pobre e com tantas desigualdades sociais, um novo paradigma de desenvolvimento deve promover não só a sustentabilidade estritamente ambiental – ou seja, a sustentabilidade de espécies, ecossistemas e processos ecológicos – como também a sustentabilidade social – ou seja, deve contribuir também para a redução da pobreza e das desigualdades sociais e promover valores como justiça social e equidade”. (SANTILLI, Juliana. Socioambientalismo e novos direitos. São Paulo: Peirópolis, 2005, p. 34). 320 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições 1 Uma história a ser contada: os Anacé e o Complexo Industrial e Portuário do Pecém A criação do Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP) não é um projeto recente na agenda política do Estado do Ceará. Ainda em 1985, a Petrobrás 6 anunciou o intuito de construir uma nova refinaria no Nordeste7 do Brasil, iniciando uma disputa entre os estados nordestinos pelo empreendimento. De acordo com Jakson Alves de Aquino, “em 1987, estudos conduzidos pela Petrobrás indicavam o Ceará, seguido pelo Maranhão, como os estados mais adequados para instalação da refinaria”. 8 No entanto, tendo em vista razões econômico-financeiras, o projeto de construção de outra refinaria no Nordeste foi adiado para a segunda metade da década de 1990. Dos estados em disputa, Pernambuco detinha as maiores chances de aquinhoar o empreendimento por já contar com o Complexo Industrial e Portuário de Suape, enquanto o Estado do Ceará demandaria gastos adicionais com a ampliação do Porto do Mucuripe, em Fortaleza, para a instalação da refinaria. 9 Devido a mobilizações de políticos cearenses, a Petrobrás indicou, em maio de 1995, que o local mais viável para a instalação da refinaria era o município de Paracuru 10, no Ceará, município vizinho de São Gonçalo do Amarante. Na mesma época, começou a se cogitar a implantação de uma infra-estrutura portuária no Pecém, distrito de Caucaia, na Região Metropolitana de Fortaleza. Conforme pronunciamento do Secretário Estadual de Transporte, Energia, Comunicações e Obras (SETECO), “as confirmações e perspectivas de descobertas de novos poços de petróleo no litoral de Paracuru e a infra-estrutura portuária do Pecém a se implantar, criam condições para a Petrobrás tomar uma decisão favorável com relação à instalação da Refinaria no Estado”. 11 6 “A Petrobras - Petróleo Brasileiro S/A é uma empresa de capital aberto (sociedade anônima), cujo acionista majoritário é o Governo do Brasil (União). É, portanto, uma empresa estatal de economia mista. Fundada em 3 de outubro de 1953 e sediada no Rio de Janeiro, opera hoje em 27 países, no segmento de energia, prioritariamente nas áreas de exploração, produção, refino, comercialização e transporte de petróleo e seus derivados, no Brasil e no exterior. [...]. Em janeiro de 2010, passou a ser a quarta maior empresa de energia do mundo, [...] em termos de valor de mercado, segundo dados da consultora PFC Energy.” (Informação disponível em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Petrobras>; acesso em 2 set. 2010). Apresenta-se em seu site oficial como: “Somos uma empresa de energia que alia a expansão dos negócios ao compromisso com o desenvolvimento sustentável.” (Informação disponível em <http://www.petrobras.com.br/pt/>; acesso em 2 set. 2010). 7 Essa região já contava com um complexo petroquímico em Camaçari, na Bahia. 8 AQUINO, Jakson Alves. Processo decisório no Governo do Estado do Ceará (1995-1998): o porto e a refinaria. 2000. 131f. Dissertação (Mestrado em Sociologia), Departamento de Ciências Sociais e Filosofia, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2000, p. 102. 9 Conforme Aquino, à época, a construção de outro porto no Ceará ainda não era cogitada (AQUINO, Jakson Alves. op. cit., 2000). 10 Jornal Diário do Nordeste, de 28/05/1995. 11 MAIA JÚNIOR, Francisco Queiroz apud AQUINO, Jakson Alves. op. cit., 2000, p. 104. 321 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições As promessas de construção da refinaria, no entanto, não foram concretizadas. Os impasses políticos e a crise fiscal pelas quais o Estado brasileiro passou na década de 1990 foram apontados como os motivos pelos quais o projeto de uma refinaria financiada pela Petrobrás não saísse do papel. Não obstante, o Estado do Ceará visando criar condições para sua instalação e obter vantagens comparativas significativas com relação aos demais Estados do Nordeste, investiu pesadamente na construção de um Complexo Industrial e Portuário no Pecém. Nesse sentido, Jakson Aquino escreve: A desistência da Petrobrás não significou o fim da disputa política entre os estados por uma refinaria. Apesar de não ser mais o Estado quem construiria a refinaria, ele ainda tinha um papel a desempenhar no estabelecimento da infraestrutura que torna uma unidade da federação mais atraente do que as demais para o capital privado. A disputa política deixou de ser por uma refinaria e pela infraestrutura necessária à sua implantação e concentrou-se na oferta de incentivos fiscais e na busca de financiamento estatal para a melhoria da infra-estrutura (no caso do Ceará, construção de um complexo industrial e portuário).12 Paralelo à refinaria, o Complexo Industrial e Portuário do Pecém já ganhava forma com o projeto de construção de um porto e a instalação de uma siderúrgica, atrativos, conforme as expectativas do governo estadual, para acomodar um pólo metal-mecânico e um petroquímico. Em 1996, foi assinada a ordem de serviço para a construção do Porto do Pecém. A área destinada a sua implantação e de outros empreendimentos que compunham o CIPP, no entanto, era ocupada por inúmeras famílias, as quais começaram a ser desapropriadas a partir daquele ano. Devido a esse fato, foi realizada uma audiência pública, no Pecém, promovida pela Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento do Semi-Árido e de Direitos Humanos e Cidadania, da Assembléia Legislativa do Ceará. Jakson Aquino relata que: Participaram representantes de vários órgãos do Governo Estadual, de ONGs [organizações não governamentais] e líderes comunitários de localidades impactadas pelas obras de construção do Porto. A reunião iniciou-se com a apresentação do futuro CIPP por representantes do Governo. Foi ressaltado que o projeto não se limita a uma obra de engenharia civil; trata-se de um projeto de desenvolvimento regional, envolvendo o trabalho de várias Secretarias de Governo. No entanto, logo que se iniciaram as intervenções de pessoas das comunidades atingidas, as discussões se concentraram nas questões fundiárias: desapropriações e reassentamentos de famílias. Os moradores presentes, alguns exaltados, reclamavam da forma como eram feitas as desapropriações: “... [os moradores foram expulsos] de seus sítios com falsas promessas de indenização. Porque a única coisa que toda essa gente quer e tem para o seu sustento, de suas famílias, são os coqueiros, cajueiros, e seus canteiros. Ali nasceram, aprenderam a plantar e é só o que sabem fazer. Se os tirarem de cima das suas propriedades, eles morrerão. Portanto, peço a todos: não acreditem neles, porque eles não querem bem a vocês; eles querem os 12 AQUINO, Jakson Alves. op. cit., 2000, p. 106. 322 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições bens de vocês!”.13 A fala acima acerca do modo como as desapropriações foram realizadas para a implantação do Complexo Industrial e Portuário do Pecém é corroborada com a análise de Araújo: Com o CIPP, várias comunidades, entre Caucaia e São Gonçalo do Amarante (Pecém), residentes no espaço, futuro território industrial, foram retiradas compulsoriamente e mediante ação violenta do Estado, que se fez valer de decreto governamental de desapropriação, de força policial e judicial para retirar cerca de 14 400 famílias somente em Pecém. Diante da forma como ocorreram, as primeiras desapropriações para a construção do CIPP passou a ocupar páginas e páginas da memória coletiva da população impactada com as obras. Muitos(as) moradores(as) lembram que a postura das entidades governamentais era no sentido de apresentar a proposta como consumada, sem muita margem para negociação. Falava-se com as comunidades utilizando-se de termos15 e linguagem que inviabilizava a compreensão do significado da proposta16. Assim, as vistorias nos imóveis para fins de desapropriação eram feitas sem que as famílias tivessem conhecimento do que se tratava. Lideranças afirmam que, nessa época, muitos(as) moradores(as), por só saberem “desenhar o nome”, assinaram laudos de vistoria e avaliação do imóvel acreditando que se tratava de cadastro para percepção de benefícios governamentais. A falta de diálogo e de informações caracterizou esse processo 17. Tais afirmações são reiteradas por Araújo: “o cadastramento das 13 Idem, p. 113. ARAÚJO, Ana Maria Matos. Urbanização litorânea nordestina: os casos de Pecém e do Arpoador – Ceará. Artigo apresentado no XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais, Caxambu, 2008, p. 4. 15 Certos termos técnicos, por exemplo, restritos a compreensão de determinados grupos sociais e/ou profissionais. 16 Os Anacé falam a língua portuguesa, bem como os representantes das entidades. O que nos referimos aqui é sobre as expressões e as construções lingüísticas que não se atentaram, na ocasião, para a cultura do e as précompreensões em que está inserido o povo Anacé. O inverso também pode ocorrer. Em nossas incursões de campo em Curral Velho (comunidade tradicional de pescadores(as) e marisqueiras(os) localizada em AcaraúCeará), os(as) moradores(as) falavam-nos sobre o espaço e os seus modos de produção utilizando-se de expressões e construções que não se conectavam com nossas experiências e vivências, sendo-nos, portanto quase incompreensíveis. Ainda que todos falassem a língua portuguesa, tivemos que lhes pedir para nos explicar o que queriam dizer a fim de que houvesse uma comunicação inteligível entre nós. Ver relatos sobre estas incursões em JOCA, Priscylla; NÓBREGA, Luciana. Direito à Terra, ao Território e ao Meio-Ambiente do „Povo do Mangue‟: „vivemos em Curral Velho mas não queremos viver encurralados‟. Apresentado no III Simpósio Internacional sobre Propriedade e Meio Ambiente e III Encontro Temático do Projeto Casadinho realizado em abril de 2010 em Fortaleza, Ceará, Brasil, no prelo. JOCA, Priscylla; NÓBREGA, Luciana. Populações tradicionais, território e meio ambiente: um estudo sobre a carcinicultura e a comunidade de Curral Velho – Acaraú/Ceará. Apresentado no XIX Encontro Nacional do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós Graduação em Direito-CONPEDI (GT Sociologia e Antropologia Jurídicas), realizado em junho de 2010 na Universidade Federal do Ceará (UFC), em Fortaleza, Ceará, no prelo. 17 Os espaços de “diálogo” criados pelo Governo do Estado do Ceará, como o Grupo de Trabalho do Pecém, 14 323 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições propriedades a serem desapropriadas surpreendeu os primeiros moradores contatados, desavisados das intenções governamentais. Os anos seguintes foram vividos em um clima tenso, carregado de medo, incertezas e revoltas da população atingida”. 18 instituído pelo Decreto N° 24.496, de junho de 1997, cumpriam muito mais um papel formal, não constituindo efetivamente um espaço de disponibilização de informações, avaliação dos projetos e mediação entre o Governo e as comunidades impactadas pelo CIPP. Durante todo o processo de instalação do Complexo, as comunidades não tiveram acesso nem discutiram os projetos relacionados ao Complexo nem tampouco lhes foi colocado à disposição a opção de não-construção dos empreendimentos ou a busca de outras localidades e/ou tecnologias que mitigassem o impacto ambiental (natural e social). Essa postura governamental não deferiu de outros casos de implementação de projetos que potencialmente causam danos ambientais de elevada magnitude. De acordo com Severino Soares Agra Filho, “raros são os casos em que o governo, acompanhando a percepção da sociedade civil, recomenda e garante a revisão do projeto em termos estruturais ou de localização. A ocorrência desses casos somente se viabiliza quando há uma convergência dos questionamentos dos movimentos ecológicos com as demais representações sociais, e os conflitos representam desgastes políticos eleitoreiros na região sob intervenção”. (AGRA FILHO, Severino Soares. Os conflitos ambientais e os instrumentos da política nacional de meio ambiente. In: ZHOURI, Andréa; LASCHEFSKI, Klemens (Orgs.). Desenvolvimento e conflitos ambientais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, p. 354). 18 ARAÚJO, Ana Maria Matos, 2008, p. 6. Um fato, entretanto, chamou a atenção inclusive do órgão responsável pelas desapropriações, o Instituto de Desenvolvimento Agrário do Ceará (IDACE). Entre as famílias deslocadas compulsoriamente havia um expressivo número de posseiros e moradores, sendo o número de proprietários (conforme a legislação em vigor) bastante reduzido. Dos 437 imóveis cadastrados em São Gonçalo do Amarante e em Caucaia, havia, no geral, uma alta expressão de posseiros (30%) e de moradores (53%), contra poucos proprietários (17%). Isso sugeriu, à primeira vista, uma relação de produção tradicional na agricultura, acompanhada de um processo generalizado de não legalidade da posse da terra (IDACE. Plano de reassentamento de Pecém. Fortaleza, 1997, p. 10). A situação fundiária em São Gonçalo do Amarante e Caucaia, conforme descrito no documento oficial, não diferia, entretanto, da realidade de populações tradicionais, indígenas e quilombolas, as quais, salvo raríssimas exceções, não detém a titularidade do território que ocupam tradicionalmente. A relação que esses grupos possuem com o território não é de propriedade, no sentido exclusivista, titularizado; sua relação se expressa no dia-a-dia, nos modos de ser, fazer e produzir, no conhecimento acerca dos ciclos naturais do lugar e no sentimento de pertença assentado na plena convicção de uma continuidade história com o território que foi dos antepassados. Nesse sentido, não há uma preocupação dessas comunidades em titularizar o seu domínio sobre os territórios que ocupam. Essa preocupação só passa a surgir com a chegada de projetos de desenvolvimento, do turismo de massa, de indústrias e outros empreendimentos que passam a ameaçar a permanência dessas populações do território que ocupam. Paralelo a isso, importa também ressaltar o modo como se constituiu a propriedade privada no Brasil. Desde o período da colonização brasileira, passando pelas Sesmarias, pela lei de Terras no Brasil (1850), pelo Estatuto da Terra (1964), pelo Processo Constituinte de construção da função social da propriedade da Constituição Federal de 1988 e pela própria Constituição Brasileira atual, percebe-se que houve uma expropriação de índios, negros e brancos pobres da terra em um processo que, por outro lado, implicou na concentração de terras em poucas mãos. Sem nos ater a um passado distante, a Lei de Terras de 1850, exemplificativamente, impôs um modelo de modelo de acesso à terra, no Brasil, dispondo que ficariam doravante "proibidas as aquisições de terras devolutas por outro título que não seja o de compra", representando o não reconhecimento de índios, quilombolas e populações tradicionais ao território, a indicar que as terras ocupadas por esses grupos passaram a serem negociadas em balcões cartorários. Desenvolvemos melhor essa idéia em: JOCA, Priscylla; NÓBREGA, Luciana. JOCA, Priscylla; NÓBREGA, Luciana. O Olhar de Advogados(as) Populares: o direito a terra e a pluralidade de movimentos sociais. In: Marcos Wachowicz; João Luis Nogueira Matias. (Org.). Direito de propriedade e meio ambiente: novos desafios para século XXI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2010. JOCA, Priscylla; NÓBREGA, Luciana. A Práxis de Advogados(as) Populares na Luta pela Terra e pelo Território. Artigo aprovado no XIX Congresso Nacional do CONPEDI a ser apresentada em outubro de 2010, em Florianópolis, Santa Catarina. Para aprofundar-se sobre o assunto vide em: MARÉS, Carlos Frederico. A Função Social da Terra. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003. GOMES, Flávio dos Santos; REIS, João José. Roceiros, camponeses e garimpeiros quilombolas na escravidão e na pós-emancipação. In: STARLING, Heloisa Maria Gurgel; RODRIGUES, Henrique Estrada; TELLES, Marcela (orgs.). Utopias Agrárias. Belo Horizonte: UFMG, 2008. GUIMARÃES, Alberto Passos. Quatro Séculos de Latifúndio. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. MORISSAWA, Mitsue. A História da Luta pela Terra e o MST. São Paulo: Expressão Popular, 2001. 324 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições A primeira onda das desapropriações, nos anos de 1995 a 1999, teve como saldo centenas de famílias expulsas da terra, sendo algumas alojadas nos assentamentos de Novo Torém, Forquilha e Monguba, que se situam em outros municípios cearenses, tais como Paracuru (Ceará). Nesse período, diversas organizações civis e religiosas de Fortaleza foram solicitadas a prestar apoio às famílias atingidas. Assim, inicialmente a Pastoral do Migrante e a Pastoral da Terra, e, posteriormente, também o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), passaram a atuar na área, apoiando as iniciativas dos(as) moradores(as) atingidos(as) pelo Complexo Industrial e Portuário do Pecém. A organização comunitária para permanecer no território de seus antepassados, impactado pelo Complexo Industrial e Portuário do Pecém, obteve diferentes resultados: algumas comunidades não resistiram diante de um processo violento, mediante pressões de muitas ordens e dimensões; outras permaneceram lutando e rompendo com a passividade. O movimento de resistência diante das desapropriações e remoções de famílias possibilitou que, no processo de luta, muitas famílias começassem a recontar algumas histórias. Histórias que os pais e avós haviam lhes contado, mas que, pelo medo, foram sendo enterradas na memória. Histórias dos encantados, das danças, dos rituais, das curas, dos massacres, das resistências foram sendo “escavadas” 19 e percebidas como comuns ao grupo: o pai de um havia contado a mesma história que a avó de outro.20 19 Utilizamos a imagem de uma “escavação” para falar do processo de emergência étnica no Nordeste, inspirados na vivência dos índios Tremembé de Almofala, no município de Itarema, Ceará. Umas das histórias contadas pelos Tremembé para explicar o seu processo de retomada da identidade étnica tem a ver com a Igreja Nossa Senhora da Conceição de Almofala. Os Tremembé contam que, durante muitos anos, a igreja ficou soterrada por uma grande duna, que deixara descoberta apenas uma parte da torre principal. Com o tempo, as areias da duna começaram a se movimentar, tornando visíveis outras partes da igreja. Nesse momento, os moradores de Almofala se reuniram e começaram a desenterrá-la, cavando com as próprias mãos. O processo que levou a desenterrar a igreja também levou ao encontro dos atuais Tremembé com os antigos, com os antepassados. Embora a igreja estivesse ali, foi preciso cavar para que ela emergisse. Nesse sentido, foi preciso que os Tremembé escavassem sua memória, encontrando semelhanças entre as histórias comuns, para que iniciasse a emergência étnica. 20 Nas entrevistas realizadas com os membros da etnia Anacé, observamos um relato recorrente: a narrativa do massacre da Lagoa do Banana. Em entrevista realizada por Sérgio Brissac, Jonas Alves Gomes, o Cacique Jonas Anacé, narrou o que ouvia de seu pai acerca do massacre: “O governo mandou seus soldados pra matar todos os índios. E a lagoa se tingiu de sangue. Os sobreviventes fugiram pra estes lados de cá: Japuara, Salgada, Bolso, Matões.” Outro relato coletado, do Sr. Pedro Pereira da Silva, de 65 anos de idade, pescador, morador de Matões, aponta que “na era dos três oito (1888) o governo mandou dizimar os índios. A lagoa ficou vermelha da cor de sangue. Quem me contou foi meu amigo Manuel Grosso, já falecido, que morava na Japuara, e ouviu a história do seu pai.” Por fim, Francisco Ferreira de Moraes Júnior, o Júnior Anacé, conta que “ouvi da minha tia Maria Freire, que o seu pai contava que na era dos três oito foi uma época de grande seca. Chegou uma tropa de cavalos e detonou várias bombas lá e aí matou muita gente, muitos índios Anacé, junto à Lagoa do Banana. Seus corpos foram jogados dentro da lagoa, que virou um mar de sangue da noite pro dia. Os que escaparam, apavorados com tanta violência fugiram para as matas da região: Japuara, na linha da Serra dos Caborés; Santa Rosa, no pé da Serra dos Gatos; Matão, hoje Matões, Coqueiros e Bolso. Também o meu avô, um dia, nós amarrando cebola debaixo de um cajueiro, falou pro meu pai, ele disse: 'tome muito cuidado com isso, não pode contar pra ninguém, tem que guardar segredo: nós somos desse povo, dos índios'. Depois fiquei sabendo que o 325 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Nesse processo de escavação, a identidade Anacé foi sendo percebida, reconstruída e ressignificada. A “viagem da volta” do grupo étnico, a que se refere João Pacheco de Oliveira21, propiciava uma tessitura de histórias, memórias e reelaborações que afirmavam uma identidade e uma origem comuns, re-ligando os antepassados (“os troncos velhos”) às gerações atuais (“as pontas de rama”). Desnaturalizando a condição de “mistura”, os Anacé passaram a propor não um exercício nostálgico de retorno ao passado, desconectado do presente, mas uma atualização histórica que não anula o sentimento de referência à origem, mas antes reforça a resolução simbólica e coletiva de se redescobrir “pontas de rama”.22 Mas por que os Anacé só se apresentaram como povo indígena após o início da implantação do Complexo do Pecém?23 Buscando responder a esse questionamento, Sérgio Brissac24 aponta que: [...] não é de se estranhar que a emergência da afirmação étnica dos Anacé tenha se dado a partir do risco de serem removidos de suas terras. Na verdade, não haveria porque essa afirmação étnica ter se dado antes, quando eles estavam tranqüilos em suas terras e a carga semântica relacionada ao designativo “índio” era propulsora somente de estigma e preconceito.25 [...] Até recentemente, a estratégia de sobrevivência para os Anacé era ocultar sua identidade indígena, assim como hoje – após a virada histórica produzida pelo reconhecimento pela Carta Constitucional de 1988 do direito dos povos indígenas à diversidade cultural e à sua terra tradicionalmente ocupada – é a afirmação da sua identidade. Nesse sentido, valendo-se do direito à auto-definição, exposto na Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho 26, os Anacé se afirmam enquanto grupo diferenciado município de São Gonçalo até 1940 era chamado Anacetaba, a Taba dos Anacé”. (BRISSAC, Sérgio. A etnia Anacé e o Complexo Industrial e Portuário do Pecém. Parecer Técnico n° 01/08. Ministério Público Federal, Fortaleza, 2008, p. 4-5). 21 OLIVEIRA, João Pacheco de. Uma etnologia dos “índios misturados”? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais. In: OLIVEIRA, João Pacheco de (org.). A viagem da volta: etnicidade, política e reelaboração cultural no Nordeste indígena. 2. ed. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2004 22 OLIVEIRA, João Pacheco de. op. cit., 2004. 23 A data de apresentação da demanda por regularização da terra indígena Anacé, conforme consta nos arquivos da Fundação Nacional do Índio, é de 22 de setembro de 2003. 24 BRISSAC, Sérgio. 2008, p. 13. 25 Os processos de negação da identidade étnica no Ceará foram bastante marcantes. As políticas adotadas pelos aldeamentos e pelo Diretório Pombalino buscavam desarticular e desqualificar as formas culturais de sobrevivência e organização dos povos indígenas, impedindo-os de exercitar suas práticas tradicionais. Como objetivo de integrá-los ao mundo dos não-índios, a estratégia da mestiçagem visava encaminhar os índios ao desaparecimento. Assim, diversos documentos oficiais da província passaram a afirmar a extinção dos índios, vez que “podiam ser confundidos com a população em geral”. Ao atestar a extinção dos índios, estava aberta a possibilidade de o poder local apropriar-se dos seus territórios. Essa negação é manifestada na fala das lideranças indígenas que mencionam um tempo em que a auto-afirmação étnica poderia conduzir, inclusive, à morte. Nesse sentido, a estratégia dos povos indígenas para sobreviver foi negar essa identidade, embora as histórias e os modos de produzir e viver fossem repassados às gerações seguintes por meio da tradição oral. Com a Constituição de 1988, a história começa a ser recontada. A fala do pajé Luís Caboclo, índio Tremembé de Almofala, Itarema/CE, retrata bem isso: “Houve um tempo que para nós viver, nós precisava calar. Hoje, para nós viver, a gente precisa falar”. 26 O direito à auto-identificação está consignado no parágrafo 2º do art. 1º da Convenção n. 169 da OIT: “a consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para 326 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições ao tempo em que se articulam com o movimento indígena no Estado do Ceará. A consciência de que constituem um povo indígena parte das relações peculiares que os Anacé tecem com o território que habitam; de uma memória coletiva que os interliga a uma população de origem pré-colombiana; das danças, ritos e tradições reconhecidas por eles como indígenas; e de uma matriz simbólica peculiar: a “corrente dos encantados”. A corrente de índios ou corrente dos encantados é um dos elementos reiteradamente presentes nas narrativas entre os Anacé. Segundo Antonio Freire de Andrade, Anacé de Matões, em entrevista ao jornal Porantim, os índios que morreram na luta se encantaram e assim “surgiu a corrente dos encantados que vai do Gregório ao Morro do Sirica. Passa por cima do Jirau, Baixa das Carnaúbas, Baixa da Almeixa e aí „brenha‟ na mata. Quem tiver força e poder de receber, é só passar por baixo. Eles dão força, ajuda”.27 Alguns dos encantados, portanto, seriam os antepassados dos atuais Anacé que, ao morrer, se encantaram, passando a povoar as matas de seu território tradicional. Como se constata, a relação dos Anacé com os seus ancestrais é entretecida com a relação que eles mantêm com o território que ocupam: uma relação permeada pelo sagrado. A corrente dos encantados tem uma materialidade geográfica, física. Não se trata de uma construção apenas metafórica, mas essas linhas, esses encantados estão, para os Anacé, fisicamente encravados no território por eles reivindicado. Durante esse período de articulação e mobilização dos(as) moradores(as) de São Gonçalo do Amarante e Caucaia que passaram a se reconhecer como povo indígena Anacé 28, houve uma suspensão na onda de desapropriações nessa região. Logo após a instalação dos primeiros empreendimentos, impasses políticos e pressões de outros estados para receber as indústrias acabaram “atrasando” a conclusão do CIPP. Mas a luta dos Anacé não se encerrou com as desapropriações no final dos anos 1990. Em janeiro de 2007, o Governo Federal instituiu, por meio do Decreto nº 6.025, de 22 de janeiro de 2007, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), o qual, segundo o art. 1° do Decreto, constituía-se de medidas de estímulo ao investimento privado, ampliação dos determinar os grupos aos quais se aplicam as disposições da presente Convenção”. 27 PICANÇO, Marcy. A luta do povo Anacé em meio ao complexo industrial do CE. Jornal Porantim, dezembro de 2006, p. 6. 28 Interessante destacar que, nesse mesmo período, moradores(as) de outras comunidades que não eram diretamente impactadas com os projetos do Complexo Industrial e Portuário do Pecém passaram a se reivindicar também como indígenas da etnia Anacé. Essas comunidades, em articulação com a população Anacé impactada pelo CIPP, passaram a lutar pelo reconhecimento de um território contínuo que integra as aldeias de Japura, Santa Rosa, Matões, Bolso e outras. 327 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições investimentos públicos em infra-estrutura e voltadas à melhoria da qualidade do gasto público e ao controle da expansão dos gastos correntes no âmbito da Administração Pública Federal. 29 Com o apoio intensivo do Governo Federal, por meio dos recursos do PAC, o projeto do Complexo Industrial e Portuário do Pecém foi retomado. Em 19 de setembro de 2007, o governador do Estado do Ceará publicou, no Diário Oficial, o Decreto n° 28.883/2007, o qual declarara de utilidade pública para fins de desapropriação e implantação das obras e serviços do Parque Industrial do Pecém uma poligonal equivalente a 335 km2, entre os municípios de São Gonçalo do Amarante e Caucaia, área superior ao projeto inicial do Complexo Industrial e Portuário. As razões da ampliação na área destinada ao CIPP são descritas no texto do Decreto: Considerando que a instalação do complexo Industrial-Portuário do Pecém, em fase de implantação, tem por finalidade criar novas perspectivas de desenvolvimento para o Estado, independentemente das suas condições climáticas; Considerando que a implantação de um parque industrial, baseado em novas e modernas instalações portuárias, dotará o Estado de um importante pólo irradiador de desenvolvimento sustentável; Considerando ainda que o empreendimento gera a necessidade de áreas de terra disponíveis para aquela finalidade, com repercussão significativa no meio sócio-econômico do Estado do Ceará. O Programa de Aceleração do Crescimento retomou proposta de instalação de uma refinaria de petróleo na região do Pecém. Aliado à refinaria, outros empreendimentos vieram a se somar no contexto do CIPP, tais como: retroporto (edificações situadas em terra firme), Ferrovia Transnordestina, gasoduto, ampliação de vias rodoviárias, em especial, BRs, termelétricas a carvão mineral e Transposição do rio São Francisco.30 Diante disso, iniciou-se uma nova fase de desapropriações na região de São Gonçalo 29 Conforme consta no endereço eletrônico oficial do Programa de Aceleração do Crescimento: “está em curso no Brasil um modelo de desenvolvimento econômico e social, que combina crescimento da economia com distribuição de renda e proporciona a diminuição da pobreza e a inclusão de milhões de brasileiros e brasileiras no mercado formal de trabalho. A economia nacional reúne indicadores macroeconômicos e sociais positivos que apontam - como poucas vezes em sua história - para a possibilidade de aceleração do crescimento econômico, mantendo a inflação em níveis baixos. A política econômica do governo federal conseguiu estabilizar a economia, criar um ambiente favorável para investimentos, manter o princípio da responsabilidade fiscal, reduzir a dependência de financiamento externo, ampliar substancialmente a participação do Brasil no comércio internacional e obter superávits recordes na balança comercial. Agora é possível caminhar em direção a um crescimento mais acelerado e de forma sustentável, uma vez que a economia brasileira tem grande potencial de expansão. E tal desenvolvimento econômico deve beneficiar a todos os brasileiros e brasileiras e respeitar o meio ambiente. O desafio da política econômica do governo federal é aproveitar o momento histórico favorável do país e estimular o crescimento do PIB e do emprego, intensificando ainda mais a inclusão social e a melhora na distribuição de renda. Para tanto, o governo federal criou o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que tem como um dos pilares, a desoneração de tributos para incentivar mais investimentos no Brasil”. Disponível em http://www.brasil.gov.br/pac/medidas-institucionais-e-economicas/. Acesso em 12 de ago. 2010. 30 Informações disponíveis em http://www.brasil.gov.br/pac/relatorios/estaduais/ceara-1/ceara-10o-balancojaneiro-a-abril-de-2010. Acesso em 13 de ago. 2010. 328 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições 31 do Amarante e Caucaia . Embora essa fase tenha sido levada a cabo pelos órgãos estaduais de forma semelhante à ocorrida nos anos de 1996 a 1999, ou seja, sem garantir o direito à informação às populações impactadas, diferenciou-se dessa pela resistência dos moradores, principalmente, daqueles que já se identificavam como povo indígena Anacé. Nesse sentido, diversas estratégias passaram a ser usadas pelo grupo étnico, tais como: a) articulação com o movimento indígena estadual e nacional32; b) articulação com outros grupos e movimentos sociais impactados por projetos de desenvolvimento 33; c) pedidos de realização de audiência pública perante a Assembléia Legislativa do Estado do Ceará 34; d) articulação com a Rede Nacional de Advogados Populares, que passou a acompanhar as demandas do povo Anacé35; e) articulações com grupos de pesquisa e extensão das Universidades Estadual e Federal do Ceará (Grupo Grãos – UECE; Núcleo Trabalho, Meio Ambiente e Saúde para a Sustentabilidade – TRAMAS e o Projeto de Extensão Centro de Assessoria Jurídica Universitária – CAJU – ambos da UFC); f) formulação de representações junto ao Ministério Público Federal (MPF) no Ceará, que passou a acompanhar, por meio do 31 Sobre essa nova fase de desapropriações no Pecém, Sérgio Brissac menciona que “a partir do mês de setembro de 2008, depois da inauguração do gasoduto do Pecém, o IDACE iniciou um trabalho de cadastro dos moradores de Bolso e Matões. Visitaram várias casas, cadastrando famílias, medindo terrenos e inclusive fazendo avaliações e informando aos moradores o preço avaliado dos imóveis e benfeitorias. Tudo isso tem motivado uma mobilização crescente dos Anacé [...]”. (BRISSAC, Sérgio. op. cit., 2008, p. 15). 32 Nesse sentido, em 22 de setembro de 2007 ocorreu a I Assembléia do Povo Indígena Anacé, a qual reuniu os povos Tapeba, Pitaguary, Potiguara, Tabajara, Tremembé, Xucuru Kariri, Anacé para discutir o tema “Terra e impacto ambiental”, oportunidade em que foram analisados os inúmeros empreendimentos que estão instalados em terras indígenas, em especial, construção de estradas, usinas siderúrgicas, transposição do Rio São Francisco, entre outras. 33 Mencionamos, exemplificativamente, o II Seminário Brasileiro contra o Racismo Ambiental, realizado em 23 a 25 de março de 2009, em Fortaleza/CE. Na oportunidade, os(as) pesquisadores(as) e movimentos sociais articulados em torno da Rede Brasileira de Justiça Ambiental se dirigiram a São Gonçalo do Amarante e Caucaia para conhecer a dimensão dos impactos socioambientais do CIPP e se solidarizarem com a luta Anacé. O caso do Povo Anacé aqui retratado está mapeado no Mapa da Injustiça Ambiental e Saúde No Brasil, em <http://www.conflitoambiental.icict.fiocruz.br/index.php?pag=selecao&cod=45>; acesso em 15 Set 2010. “Este Mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e Saúde no Brasil é resultado de um projeto desenvolvido em conjunto pela Fiocruz e pela Fase, com o apoio do Departamento de Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador do Ministério da Saúde. Seu objetivo maior é, a partir de um mapeamento inicial, apoiar a luta de inúmeras populações e grupos atingidos/as em seus territórios por projetos e políticas baseadas numa visão de desenvolvimento considerada insustentável e prejudicial à saúde por tais populações, bem como movimentos sociais e ambientalistas parceiros”. Informação disponível em < http://www.conflitoambiental.icict.fiocruz.br/index.php>; acesso em 15 Set 2010. 34 Cita-se, nesse sentido, a audiência pública realizada na Assembléia Legislativa, em 9 de março de 2009, que contou com a presença dos índios Anacé, do chefe do Núcleo de Apoio Local da FUNAI, do Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa e de Procuradores da República no Ceará. 35 Por meio da Rede Nacional de Advogados(as) Populares (RENAP), Luciana Nóbrega, que compunha a Rede, passou a acompanhar as demandas do povo indígena Anacé, a partir de setembro de 2008, quando ocorreu a II Assembléia do Povo Indígena Anacé. O trabalho desempenhado em conjunto com o grupo étnico consistia em uma assessoria ao movimento indígena, englobando a solicitação de audiências públicas, o acompanhamento de processos administrativos perante o Ministério Público Federal no Ceará, participação de reuniões, assembléias e outros momentos de articulação do movimento. Esse contato anterior de uma das pesquisadoras com os Anacé, permintiu-nos ter acesso às informações necessárias para compreender a dimensão do conflito envolvendo o povo indígena e o Complexo Industrial e Portuário. 329 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições analista pericial em Antropologia, os conflitos e as demandas do povo Anacé, com mais proximidade36; g) ouvir os mais velhos e reescrever sua própria história, retomando práticas e memórias que haviam sido encobertas pelo medo da discriminação e do massacre colonizador37, h) incorporação das reflexões socioambientais, passando a demonstrar outras formas de desenvolvimento possíveis, levadas a cabo pela produção de hortaliças, pelo manejo sustentável de folhas, raízes e sementes para a produção de remédios caseiros; i) pela construção da Escola Diferenciada Direito de Aprender do Povo Anacé, entre outros. Dentre as representações protocoladas perante o MPF no Ceará, uma merece destaque pelos seus desdobramentos. Trata-se de denúncia sobre possível desapropriação das terras da comunidade indígena Anacé de São Gonçalo do Amarante e Caucaia, por conta da ampliação do empreendimento Portuário do Pecém, pólo petroquímico e metalmecânico, pólo siderúrgico e refinaria, na qual se solicita o envio de um Grupo de Trabalho para identificação e delimitação da Terra Indígena Anacé. A referida denúncia foi proposta em 18 de julho de 2008, recebendo o n° Procedimento Administrativo (PA) 1.15.000.001301/2008-38.38 36 Ilustrando a afirmação, dos anos de 2003 a 2009, foram apresentadas pelos índios Anacé 13 representações, denúncias e solicitações perante o Ministério Público Federal no Ceará, originando 13 processos administrativos que tramitam perante o Parquet federal. Dados obtidos em http://www2.prce.mpf.gov.br/prce/pr/pesquisaprocessual/pesquisa-processual/, utilizando a palavra-chave “anacé”. Acesso em 20 de agosto de 2010. Destaque-se que, mesmo antes das representações propostas, o Complexo Industrial e Portuário do Pecém já era alvo de questionamentos pelo MPF. A legalidade das obras do CIPP começou a ser questionadas judicialmente em novembro de 1999, quando o Ministério Público Federal ajuizou a ação civil pública n. 1999.81.00.022638-8, com um pedido de suspensão das obras do Complexo Industrial e Portuário do Pecém. A principal alegação era da nulidade dos licenciamentos da obra, já que a Semace (Superintendência Estadual do Meio Ambiente), usurpando a competência do Ibama (Instituto do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis) concedeu licenças para a construção de empreendimentos antes que estivesse sido elaborado o Estudo e o Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) para o conjunto do Complexo. Destaque-se, a fim de se compreender o impacto ambiental, em suas dimensões natural, social e cultural, incluindo-se a participação de populações atingidas, “a Rede Brasileira de Justiça Ambiental estabeleceu como um de seus objetivos principais o desenvolvimento de metodologias de „avaliação de equidade ambiental‟ como alternativas aos métodos tradicionais, como os EIAS/RIMAS [...]. Considera-se que estes últimos têm sido incapazes de retratar a injustiça ambiental contida em determinados projetos, servindo, implicitamente, à legitimação de ações e impactos inaceitáveis, se considerados apropriadamente as dimensões socioculturais” (ACSELRAD, Henri; AMARAL MELLO, Cecilia Campello do; BEZERRA, Gustavo das Neves. O que é Justiça Ambiental. Rio de Janeiro: Garamond, 2009, p. 34-35). 37 Dentre essas práticas que foram retomadas, uma em especial merece atenção. Trata-se da retomada da dança de São Gonçalo, que havia ficado 19 anos sem ser feita. Em 2007, o grupo de dança Anacé recebeu o prêmio Culturas Indígenas, edição Xicão Xucuru, outorgado pelo Ministério da Cultura, através da Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural. 38 Anteriormente a essa denúncia, uma série de outras haviam sido protocoladas. Na primeira, em 28 de julho de 2003, os Anacé redigiram um documento, entregue à 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, em Brasília, no qual afirmam: “há muitas décadas passadas, nossas regiões, pegando de Gregório a Olho d‟Água e de Matões a Acende Candeia; tudo era mata e essas matas eram habitadas por uma grande tribo. A tribo dos Anacé. [...] Na plena certeza de que somos índios, queremos pedir a demarcação do nosso território tradicional”. Esse documento, encaminhado ao MPF no Ceará, gerou o PA n° 0.15.000.001257/2003-15. Em virtude desse PA e de outro a ele apensado, o PA 0.15.000.001394/2003-41, o MPF recomendou à FUNAI, em 11 de setembro de 2003, que fosse constituído um Grupo de Trabalho (GT) para proceder a identificação e delimitação da terra indígena Anacé. Até o final do ano de 2009, no entanto, a 330 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições No âmbito do aludido PA, foi elaborado, em 7 de novembro de 2008, o Parecer Técnico n° 01/08, intitulado “A etnia Anacé e o Complexo Industrial e Portuário do Pecém”, pelo analista pericial em Antropologia do Ministério Público Federal. Nele constam: a) relatos acerca do massacre na Lagoa do Banana; b) as relações de parentesco e apadrinhamento entre as famílias Anacé; c) a ameaça de destruição de referências simbólicas para os índios Anacé em virtude da construção do CIPP, a exemplo do Cemitério do Cambeba. 39; d) a descoberta de peças arqueológicas no local reivindicado pelos índios Anacé e a postura deles como guardiães do patrimônio arqueológico; e) a II Assembléia do Povo Anacé, realizada em 18 de outubro de 2008, na qual os índios presentes afirmaram unanimemente que lutarão pela demarcação de sua terra40; f) As atividades produtivas a que se dedicam os Anacé em seu território tradicional. De acordo com o Parecer, o que é corroborado com a nossa vivência de campo, há um número significativo de pequenos agricultores, que se dedicam sobretudo ao cultivo de hortaliças –segundo eles são os maiores produtores de cheiro-verde e alface da região metropolitana de Fortaleza. Também trabalham na lavoura de subsistência, cultivando mandioca, feijão, milho, macaxeira, batata-doce e jerimum. Alguns trabalham na criação de gado bovino e caprino, outros são pescadores artesanais. Há também funcionários públicos: professores, agentes de saúde e auxiliares de serviços gerais, além dos aposentados e pensionistas. Há os assalariados que trabalham nas indústrias da região como mecânicos, pedreiros, carpinteiros e serventes. Vários deles tem atuado como mão de obra não especializada nas obras do CIPP, principalmente em serviços de terraplanagem e na instalação da tubulação do gasoduto. A progressiva inserção deles na economia regional, com a realização de atividades comuns à população de baixa renda da região, não modifica, entretanto, o vínculo peculiar que têm com o seu território, tal como podemos observar na articulação do sentido de seu território a partir de suas narrativas, sua vivência ritual e interações sociais.41 O Parecer conclui pela auto-compreensão dos Anacé como grupo social distinto da sociedade envolvente e que se identifica como povo indígena; e indica a necessidade de o Governo do Estado se abster de realizar qualquer procedimento de desapropriação, até que Fundação Nacional do Índio não havia publicado portaria instituindo o GT. 39 Para os Anacé, o cemitério é um local sagrado, pois é o local em que uma importante liderança, o índio Cambeba, faleceu. Depois dele, passou a ser costume entre o grupo étnico que outras pessoas fossem enterradas próximas à pitombeira, árvore que marca o lugar em que o índio Cambeba faleceu. O Jornal O Povo também noticiou, em 26 de junho de 2008, matéria intitulada Índios temem destruição de cemitério, na qual relata o temor dos índios de ver seus locais sagrados destruídos. 40 Na relação dos Anacé com o seu território, importante destacar que, dentre as áreas reivindicadas, encontramse áreas de preservação ambiental, tais como as Estações Ecológicas I e II do Pecém e a APA do Lagamar dos Cauípe, que se sobrepõem ao território reivindicado por eles. Mesmo cientes de que a inserção dessas áreas pode implicar em uma demora maior no processo de demarcação, já que ampliam a área a ser demarcada, os Anacé estão dispostos a lutar por essas áreas já que consideram que a sua existência na contemporaneidade se deve ao modo como eles se relacionaram com as Estações Ecológicas e com o Lagamar, por eles denominado de “Pai Lagamar”. 41 BRISSAC, Sérgio. op. cit., 2008, p. 19-20. 331 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições sejam feitos estudos de identificação e delimitação da terra indígena Anacé por Grupo de Trabalho nomeado pela FUNAI. Em 12 de novembro de 2008, diante da demora da Fundação Nacional do Índio em iniciar os trabalhos de demarcação da terra indígena Anacé e da iminência de desapropriação do povo que habita tradicionalmente área declarada de utilidade pública para fins de desapropriação para a construção do CIPP, o Ministério Público Federal resolveu recomendar (Recomendação n° 59/08) ao Governador do Estado do Ceará a suspensão de qualquer atividade visando a desapropriação de terrenos na área identificada até que se realizassem os estudos de identificação e delimitação da terra indígena pela FUNAI. A recomendação, entretanto, não surtiu o efeito esperado. O Governo do Estado questionou a metodologia aplicada para no Parecer Técnico n° 01/08, não reconhecendo a presença indígena na área. Nesse sentido, foi elaborado um novo estudo, o Parecer Técnico n° 01/09, assinado pelo Prof. Dr. Jeovah Meireles, da UFC, pelo analista pericial do MPF no Ceará, Sérgio Brissac e pelo analista pericial da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, Marco Paulo Schettino. O Parecer, com pouco mais de 130 páginas, incorporou a discussão socioambiental, buscando compreender as relações estabelecidas entre o clima, os elementos ambientais disponíveis na área ocupada tradicionalmente pelos Anacé e os modos de ser, fazer e produzir desse povo indígena. De acordo com caracterizações do Parecer, a área reivindicada pelos Anacé é uma área de tabuleiro pré-litorâneo, que se caracteriza pela presença de sedimentos areno-argilosos, sujeitos a chuvas esporádicas e violentas, formando amplas faixas de leques aluviais, o que lhe confere parâmetros hidrogeológicos diferenciados: Esta unidade de paisagem, quando analisada com seus componentes intimamente integrados com os demais ecossistemas – rios Anil e Cauípe, seus afluentes aos sistemas lacustres, diversidade de solos, cobertura vegetal, condições climáticas locais, relevo plano – e às atividades produtivas das comunidades tradicionais, evidenciou recursos ambientais fundamentais para a continuidade das práticas produtivas. Por outro lado, esses componentes ecológicos mostraram-se de elevada fragilidade quando analisados de modo a serem apropriados para instalação e operação das indústrias projetadas para o CIPP.42 O parecer segue mencionando que: 42 MEIRELES, Antonio Jeovah de Andrade Meireles; BRISSAC, Sérgio; SCHETTINO, Marco Paulo Fróes. O povo indígena Anacé e sua terra tradicionalmente ocupada. Parecer Técnico n° 01/09. Ministério Público Federal, Fortaleza, 2009, p. 49-50. 332 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Aliadas às propriedades geológicas, geomorfológicas e pedológicas que definem com precisão a geofácies de tabuleiro arenoso, estão representadas as melhores condições ecodinâmicas naturais da TI [terra indígena], favorecendo a conservação de um excelente conjunto de indicadores de elevada qualidade ambiental – solos com satisfatório conteúdo de matéria orgânica, cobertura vegetal arbórea, excelente zona de carga para o aqüífero, recursos hídricos subterrâneos disponíveis, arranjo paisagístico diversificado, setores com mata de tabuleiro exuberante e potencial de uso sustentado pela comunidade indígena Anacé. [...] A implantação dos equipamentos relacionados com o CIPP promoveu danos socioambientais ao geossistema ambiental caracterizado pelo Tabuleiro Prélitorâneo. Estas intervenções foram realizadas na área tradicionalmente ocupada pelos Anacé que, em grande parte, não levaram em conta a permanência da comunidade indígena e a qualidade ambiental dos sistemas de usufruto ancestral. As ações relacionadas com a implantação e operação das industrias promoveram a degradação da mata de tabuleiro (utilizada para a caça e coleta de sementes) e das lagoas e riachos e de áreas antes utilizadas para atividades de subsistência (vazantes utilizando as “levadas” e as lagoas). Foram implantadas sobre Áreas de Preservação Permanente (APPs). Para a terraplanagem e soterramento das lagoas e riachos, várias famílias foram retiradas e extintos os sistemas ambientais de usufruto indígena.43 (grifos nossos) Mesmo diante de tantos impactos socioambientais, não foram verificadas medidas mitigadoras para minimizar ou corrigir os danos provocados pelas indústrias em processo de implantação e em operação. Inexistem áreas de replantio de vegetação nativa, de recomposição das matas ciliares e das lagoas e riachos soterrados.44 Conforme narrado pelo estudo, os danos ambientais e às atividades de usufruto da etnia Anacé serão agravados com a continuidade das ações previstas no Plano Diretor do CIPP, principalmente porque a quase totalidade dos empreendimentos, tais como rodovias, ferrovias, sistema de correias para transporte, termoelétricas, siderúrgicas, e outras, encontrase inserida no território com maior diversidade de ecossistemas e que tradicionalmente é utilizado pelos índios Anacé. Dentre esses impactos cumulativos foram mencionados: a) incremento da impermeabilização do solo; b) extinção e fragmentação dos sistemas hídricos superficiais representados pelas lagoas e riachos; c) desmatamento de extensas áreas de vegetação de tabuleiro; d) danos pedológicos; e) comprometimento da biodiversidade; f) danos socioambientais às comunidades tradicionais e étnicas. 45 Desse modo, conclui: 43 MEIRELES, Antonio Jeovah de Andrade Meireles; BRISSAC, Sérgio; SCHETTINO, Marco Paulo Fróes. op. cit., 2009, p. 51-52. 44 Idem, p. 62. 45 Idem, p. 55-59. Caracterizando os danos socioambientais ao povo Anacé, o Parecer ressalta as atividades de subsistência relacionadas ao plantio de roçados, hortaliças e mandioca, realizadas através de práticas agrícolas relacionadas com o manejo e conservação do solo. Exemplifica: “Sistemas pedológicos com baixa fertilidade (terreno denominado de “arisco” pelos Anacé) são adubados por produtos organicos, utilizando a “bagana da carnaúba” (derivado do extrativismo vegetal, após o beneficiamento da palha). Nas áreas úmidas o controle da água (período mais chuvoso e com maior vazão nos córregos) é realizado por práticas de plantio em terraços com cavas que drenam o excesso para o leito dos riachos. Foram evidenciados roçados de milho e feijão e nos canteiros de hortaliças. Nas áreas de várzea a boa fertilidade do solo, associada à disponibilidade de água, 333 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Pela complexidade dos ecossistemas ambientais definida no Tabuleiro Pré-litorâneo e a diversidade dos usos tradicionais evidenciada durante as atividades de campo e relatada pelos Anacé, a área destinada ao CIPP não é compatível com a fragilidade e vulnerabilidade dos ecossistemas e com o modo de vida tradicional das populações. As áreas de preservação permanente (APP) foram degradadas pelas indústrias e, de acordo com o Plano Diretor, projeções de continuidade do processo de ocupação dos ecossistemas – sobre os setores de várzea, lagoas, riachos, e mata arbórea do tabuleiro – e das áreas utilizadas pelos índios, irão certamente agravar os danos ambientais definidos, Observou-se que, durante a instalação das primeiras indústrias, as comunidades foram tratadas pelos empreendedores como passivo ambiental, evidente pela necessidade de realocação de suas áreas tradicionais, para a continuidade do processo de industrialização. 46 Assim, considerando os danos socioambientais de elevada magnitude com a instalação do Complexo Industrial e Portuário do Pecém, o Parecer indica possibilidades de alternativas locacionais não distantes do Porto do Pecém, mas fora da zona de Tabuleiro Pré-litorâneo, local de ocupação tradicional dos índios Anacé. Diante da pressão para a continuidade das obras do CIPP e da iminência de novas desapropriações, o Ministério Público Federal no Ceará, com base no parecer supra-citado, ajuizou, em 10 de dezembro de 2009, a Ação Civil Pública n° 0016918-38.2009.4.05.8100, perante a 10° Vara Federal no Ceará, questionando as irregularidades na implantação do CIPP, requerendo tutela jurisdicional no sentido de determinar ao Estado do Ceará que: a) se abstenha de realizar qualquer ato desapropriatório na área reivindicada pelos Anacé, b) se abstenha de proceder remoção de indivíduos, c) não se executem quaisquer obras na área decorrentes de licenças prévias ou de licenças de instalação, como medida de reguardo do território Anacé frente à implementação dos projetos do CIPP; d) que seja assegurada a continuidade dos trabalhos de identificação, delimitação e demarcação da Terra Indígena Anacé. A relação dos Anacé com o território habitado tradicionalmente se contrapõe ao CIPP, como território portuário regional e industrial metropolitano, atendendo a lógica de reprodução ampliada do capital mundial. O que está em jogo nesse conflito não é só o domínio sobre o território, seja ele identificado como propriedade ou como posse, mas principalmente um projeto de definição do uso sobre o território e os seus elementos socioambientais. favorece o desenvolvimento de atividades de agricultura de subsistência durante todo o ano”. (pág. 62). Além desses usos, a água é utilizada para o lazer e para usos domésticos, já que as casas possuem poços artesianos e cacimbas. Nesse sentido, devido ao fato de os lençóis freáticos serem bastante rasos e o solo muito permeável, a contaminação desses mananciais pelas indústrias do CIPP (que afetará a qualidade da água) ou a impermeabilização do solo e a drenagem da água (que afetarão a quantidade) certamente conduzirão essas áreas utilizadas para cultivo entre os Anacé a degradação ambiental, com reflexos diretos na qualidade e na possibilidade de vida das comunidades tradicionais na região. 46 Idem, p. 59-60 334 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições 2 Um caso de racismo ambiental? O conflito em torno do território reivindicado pelos índios Anacé e sobre o qual se pretende construir um Complexo Industrial e Portuário faz-nos refletir sobre a possibilidade de caracterizá-lo como um caso de racismo ambiental. A temática do racismo ambiental, presente atualmente na fala de diversos movimentos sociais, remonta a luta do movimento negro norte-americano, a partir da década de 1980. Nessa época, diversos grupos passaram a denunciar que depósitos de lixo ou indústrias poluentes costumavam se concentrar em áreas habitadas pela população negra, fazendo com o que os impactos socioambientais onerassem essa população de forma desproporcional e desigual se comparados com os suportados pelos demais membros da sociedade. Isso significava que a população mais afetada pelas desigualdades sociais era também a mais impactada pelos resultados ambientalmente degradantes do processo produtivo. 47 Ao articular injustiça social com degradação ambiental, o movimento negro deu visibilidade a uma relação nem sempre tão visível, apontando a impossibilidade de separar os problemas ambientais da distribuição desigual de poder nas sociedades capitalistas, o que implica também em uma distribuição desigual dos recursos naturais. Nesse sentido, a grande contribuição dessa nova concepção foi desnaturalizar a lógica que impõe às populações mais vulneráveis socialmente os ônus ambientais do modelo de desenvolvimento implementado nos países. Ou seja, demonstrou que o fato desses grupos serem mais impactados ambientalmente decorre de uma lógica política que orienta a distribuição desigual dos impactos ambientais e o acesso aos recursos naturais, levada a cabo por um modelo de desenvolvimento excludente e predatório. Nesse sentido, Juliana Malerba aponta: Não é difícil constatarmos a partir da própria experiência de luta dos movimentos sociais, que são os grupos vulnerabilizados e de menor renda os que vivem em áreas de risco, próximos a indústrias poluentes e que, em geral, são os primeiros que se vêem privados do acesso aos recursos de que dependem para viver graças à instalação de grandes projetos de exploração mineral, de geração de energia, de 48 plantio de monocultivos etc. 47 De forma mais específica, Selene Herculano e Tânia Pacheco narram que “em torno de 1978, a população negra de Warren County, Carolina do Norte, iniciou um movimento contra um aterro de resíduos tóxicos de bifenil policlorado. Pouco a pouco, o protesto foi crescendo, até que, em 1982, uma grande manifestação levou a centenas de prisões e ampliou para além das fronteiras do estado o debate sobre a questão. Mais: a disseminação da denúncia e dos debates culminou com a descoberta de que três quartos dos aterros de resíduos tóxicos da região sudeste dos Estados Unidos estavam localizados em bairros habitados por negros”. (HERCULANO, Selene; PACHECO, Tania. Introdução: “racismo ambiental”, o que é isso? In: HERCULANO, Selene; PACHECO, Tania (Orgs.). Racismo ambiental. I Seminário Brasileiro sobre racismo ambiental. Rio de Janeiro: Projeto Brasil Sustentável e Democrático: FASE, 2006, p. 26-27). 48 MALERBA, Juliana. A luta por justiça socioambiental na agenda feminista: visibilizando alternativas e fortalecendo resistências. In: ARANTES, Rivane; GUEDES, Vera (Orgs.). Mulheres, trabalho e justiça 335 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições A partir das denúncias formuladas pelo movimento negro, outras populações étnicas e comunidades ao redor do mundo começaram a se perceber também como vítimas desse processo excludente e desigual de distribuição dos impactos ambientais, passando a denunciar casos de concentração das injustiças sociais e ambientais que recaiam de forma implacável sobre esses grupos. Contrapondo-se ao que chamaram de racismo ambiental, essas comunidades, discriminadas por sua origem ou cor, passaram a reivindicar justiça socioambiental49. Juliana Malerba, esclarecendo o conceito de justiça ambiental, afirma: Esse conceito estabelece que todos os grupos sociais, independentemente de sua origem, renda, classe social, sexo, raça ou etnia, devem participar integralmente do processo de decisão sobre o acesso e uso dado aos recursos naturais, de forma a garantir a proteção equânime em relação aos potenciais danos ambientais e à saúde que as atividades propostas para serem implementadas em seus territórios possam causar.50 Lutando por justiça ambiental, as comunidades e grupos étnicos passaram a propor uma mudança na distribuição do poder sobre os recursos naturais, demonstrando outras formas de se relacionar com o território, pautadas em diferentes modos de viver, de organizar e de produzir. Esses diferentes olhares e compreensões acerca da natureza são completamente desconsiderados nos projetos de desenvolvimento pensados para um território que representa a casa, a morada e a expressão de uma existência diferenciada de povos indígenas, quilombolas, pescadores artesanais, ribeirinhos, agricultores/as familiares. Esses projetos de desenvolvimento, que incluem barragens, mineradoras, siderúrgicas, monocultivos, a pretexto de gerar emprego e renda, são acompanhados por alterações na forma de ocupação e uso do território, desestruturando atividades tradicionais, promovendo a expulsão de agricultores familiares, desmatamento exploração da mão de obra.51 Diante disso, afirma Malerba, “são ignoradas e invisibilizadas as alternativas sustentáveis de gestão dos recursos que são feitas socioambiental. Recife: SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia, 2010, p. 14. 49 Grande parte desses grupos e comunidades, no Brasil, estão articulados em torno da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, criada em 2002 e que agrega, além de movimentos sociais, setores acadêmicos e organizações da sociedade civil. Em 2005, foi criado no âmbito da Rede, um Grupo de Trabalho de Combate ao Racismo Ambiental. Dentre os objetivos do grupo estão o de dar visibilidade à relação entre racismo e desigualdades ambientais, desenvolvendo ações que buscam fortalecer as lutas, lideradas, sobretudo, por populações tradicionais, indígenas e quilombolas, contra o racismo e as injustiças ambientais no Brasil. Para saber mais, ver www.justicaambiental.org.br. 50 MALERBA, Juliana. op. cit., 2010, p. 16-17. 51 Os diversos exemplos, no Brasil, de implementação desses projetos de desenvolvimento levaram estudiosos como Rivane Arantes a concluir que “os projetos de desenvolvimento implementados pelos governos, orientados e custeados pelas instituições financeiras multilaterais (BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento, FMI – Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial, etc.), sob o pretexto de combater a pobreza, e pelo interesse e metodologia apenas baseados no econômico, não fizeram mais do que ampliar as condições de exploração das pessoas e das fontes naturais, precarizando ainda mais a vida dessas, e ampliando o fosso da miséria”. (ARANTES, Rivane Fabiana de Melo. Movimento de Mulheres e lutas socioambientais: experiências e desafios para o feminismo. In: ARANTES, Rivane; GUEDES, Vera (Orgs.). Mulheres, trabalho e justiça socioambiental. Recife: SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia, 2010, p. 89). 336 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições por esses grupos e que poderiam representar, inclusive, respostas reais à crise ambiental constantemente expressa pela mídia e tão presente no discurso hegemônico”. 52 Assim, para além de visibilizar os impactos desiguais resultantes do processo produtivo, os movimentos tecem críticas ao modelo de desenvolvimento vigente, um modelo que é tratado como um programa de governo e não como um direito humano; um modelo restrito ao campo da economia, limitado ao crescimento econômico sem distribuição de riqueza; um modelo ditado por grandes corporações e subtraído da decisão da sociedade. Um modelo que é enunciado como se fosse o único possível e pensável. Nesse contexto, se situa o conflito entre os índios Anacé e o Complexo Industrial e Portuário do Pecém. Sob o argumento da geração de emprego e renda e a alavancada do Estado do Ceará do seu sono eterno de subdesenvolvimento, busca-se implementar um projeto pautado na construção de indústrias de grande impacto ambiental, como siderúrgicas, refinarias e termelétricas a carvão mineral, viabilizadas pela construção de uma infraestrutura que inclui porto, rodovias e água em abundância para matar a sede das indústrias, vinda da transposição do Rio São Francisco. No entanto, como se não bastassem os impactos “naturais”, a área da construção do CIPP representa a mesma área em que vive um grupo que se auto-identifica como Anacé, que tem relações diferenciadas com esse território. Essas relações são pautadas no manejo sustentável dos recursos, no conhecimento profundo dos ciclos naturais, na compreensão do lugar como morada dos antepassados, na produção de hortaliças, nas farinhadas, nas danças e outras atividades. A fome, a miséria não era algo que eles conheciam. Isso que os Anacé fazem de seu cotidiano, ressignificando suas tradições, criando e recriando projetos coletivos de futuro, sem perder a referência do/no território, é o que eles chamam de desenvolvimento. O caso Anacé é complexo, pois exemplifica um conflito ambiental territorial, cujo conceito, de acordo com Andréa Zhouri e Klemens Laschefki, envolve: a sobreposição de reivindicações de diversos segmentos sociais, portadores de identidades e lógicas culturais diferenciadas, sobre o mesmo recorte espacial – por exemplo, área para a implementação de uma hidrelétrica versus territorialidades da população afetada. A diferença em relação aos conflitos sobre a terra é que os grupos envolvidos apresentam modos distintos de produção dos seus territórios, o que se reflete nas variadas formas daquilo que chamamos de natureza naqueles recortes espaciais.53 52 MALERBA, Juliana. op. cit., 2010, p. 16. ZHOURI, Andréa; LASCHEFSKI, Klemens. Desenvolvimento e conflitos ambientais; um novo campo de investigação. In: ZHOURI, Andréa; LASCHEFSKI, Klemens (Orgs.). Desenvolvimento e conflitos ambientais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, p. 23. 53 337 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Para os Anacé, a comunidade e o território, com suas características físicas, representam uma unidade que garante a produção, a reprodução e a ressignificação do seu modo de vida, algo que resulta numa forte identidade com o espaço onde se vive. O território por eles habitado não é uma abstração fora da experiência vivida, mas é o lugar da casa, é a fonte de sustento, é a morada dos encantados, é o lugar onde eles/elas produzem sua existência diferenciada. Esses distintos modos de perceber o território implicam em uma incompatibilidade em se sobrepor, sobre o mesmo lugar, os projetos do CIPP e a área reivindicada pelos Anacé. É por esse motivo que o governo do Estado declarou de utilidade pública parte da área tradicionalmente ocupada pelos Anacé. No entanto, é preciso destacar que, devido à forte relação com esse território, o deslocamento ou a remoção do grupo, como pretendido para a implantação do CIPP, não implicaria em uma simples perda da terra, mas em uma perda da base material e simbólica sobre a qual se erigem os modos de socialização do povo Anacé. 54 Como aponta Andréa Zhouri e Klemens Laschefski, “muitas vezes a nova localização, com condições físicas diferentes, não permite a retomada dos modos de vida nos locais de origem, sem contar o desmoronamento da memória e da identidade centradas nos lugares”. 55 As diferentes compreensões sobre o território e o modo como os custos da implantação de um projeto de desenvolvimento estão recaindo de forma desigual e desproporcional sobre uma população já discriminada pela sociedade por sua origem étnica é o que nos faz crer que o caso Anacé se trata de um exemplo de racismo ambiental, na medida em que, de acordo com Selene Herculano e Tania Pacheco, “o racismo ambiental não se configura apenas através de ações que tenham uma intenção racista, mas igualmente através de ações que tenham um impacto racial, não obstante a intenção que lhes tenha dado origem”.56 54 Nesse sentido, está presente em muitas narrativas de lideranças Anacé relatos sobre a perda da referência material e simbólica provocada com as primeiras desapropriações (1996 a 1999). Muitos(as) moradores(as), principalmente os(as) mais idosos(as), morreram no deslocamento para os reassentamentos de Novo Torém, Monguba e Forquilha. Outros(as), mesmo tendo sido desapropriados(as), não conseguiram permanecer nas suas novas casas e voltaram para o território reivindicado como tradicionalmente ocupado. O desejo e o direito de permanecer nesse local são reivindicados em face da desterritorialização e da retirada do território conduzida por outrem. Refletindo sobre esses processos, Andréa Zhouri e Raquel Oliveira mencionam que “a resistência centrada nos lugares [...] demonstra que esses grupos empreendem em suas lutas o esforço para deixarem a condição passiva que os transforma em objetos dos movimentos de outrem (do capital), passíveis de deslocalização e relocalização, segundo a migração das vantagens comparativas”. (ZHOURI, Andréa; OLIVEIRA, Raquel. Quando o lugar resiste ao espaço: colonialidade, modernidade e processos de territorialização. In: ZHOURI, Andréa; LASCHEFSKI, Klemens (Orgs.). Desenvolvimento e conflitos ambientais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, p. 443). 55 HERCULANO, Selene; PACHECO, Tania. op. cit., 2006, p. 25. 56 ZHOURI, Andréa; LASCHEFSKI, Klemens. op. cit., 2010, p. 25. 338 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições 3 À guiza de uma conclusão: o que os Anacé podem nos ensinar... A realidade apontada no presente artigo e vivenciada pelo povo Anacé, em São Gonçalo do Amarante e Caucaia, impactado pela instalação do Complexo Industrial e Portuário do Pecém, faz-nos refletir sobre o modo como os grandes projetos de desenvolvimento tem sido implementados no Brasil. O caso Anacé não é o único exemplo nesse sentido, mas ele é emblemático para demonstrar que esses projetos chegam de maneira estranha à dinâmica que orienta os desejos, as expectativas e os interesses dos grupos locais, desconsideram outras formas de desenvolvimento e de alternativas gestadas nos territórios, negligenciam impactos e transformam as comunidades apenas em receptáculos dos passivos ambientais. Para além de exemplificar um extenso rol de casos de racismo ambiental, é preciso perceber o que podemos aprender com os Anacé. Como buscamos visibilizar, há diversas lógicas de compreensão sobre os territórios. Muitas delas, focadas nas comunidades ribeirinhas, de pescadores artesanais, indígenas e quilombolas, diferem do pensamento hegemônico que se impõe sobre esses grupos, modificando os seus modos de ser e fazer e estabelecendo novas ordens a pretexto de trazer “desenvolvimento”. Essas comunidades, contudo, tem seus próprios processos de desenvolvimento. Elas não ficam estanques nas paredes de museus, atrasadas em um tempo histórico longíquo pelo qual a sociedade ocidental já passou. Elas trazem outras relações com o território, com o meio ambiente e com os demais, indicando para nós uma necessidade de se aprender com o “saber local”.57 À semelhança do que ocorreu com os Anacé, Andréa Zhouri e Raquel Oliveira mencionam que: Muitos processos de territorialização hoje em curso são processo de luta pelo significado e pela apropriação do meio ambiente (quilombolas, indígenas, vazanteiros, geraizeiros etc.) contra a apropriação global pelo capital, que transforma territórios sociais em espaços abstratos, ou seja, lugares em espaços que contém recursos naturais para a exploração capitalista. Entretanto, os grupos sociais sujeitados à desterritorialização não são vitimas passivas e expressam outras formas de existência nos lugares. Reivindicam direito à memória e a sua reprodução social. E são eles que dizem que nem tudo é fadado a virar espaço de apropriação abstrata pelo capital [...]” (p. 445) A defesa do lugar, do enraizamento e da memória destaca a procura por autodeterminação, a fuga da sujeição dos movimentos hegemônicos do capital e a reapropriação da capacidade de definir seu próprio destino. A direção desses movimentos [...] insiste em nomear os lugares, em definir-lhes seus usos legítimos, 57 GEERTZ, Clifford. O saber local. Trad. Vera Mello Joscelyne. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 2009, p. 249-356. 339 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições vinculando a sua existência à trajetória desses grupos. Não é uma luta pela fixidez dos lugares, mas sim pelo poder de definir a direção da sua mudança”. (p. 445) Nesse sentido, a grande contribuição que os Anacé podem nos dar é fazer-nos refletir sobre a diversidade de modos de pensar o mundo e nele projetar o futuro. A discussão que se apresenta está no campo da própria definição dos projetos de desenvolvimento. É preciso pensar o desenvolvimento, não tomando como base reflexões coloniais 58 de um só desenvolvimento possível, o ocidental capitalista. É preciso pensar desenvolvimento, pensar meio ambiente, pensar propriedade e territorialidades a partir do local. 59 Compreender o conflito que envolve os Anacé exige-nos um esforço no sentido de estranhar os conceitos hegemônicos de meio ambiente como recurso natural a ser explorado, de território como cenário da intervenção a ser promovida pelos projetos de desenvolvimento e de um desenvolvimento como caminho único na direção capitalista de acumulação e pilhagem de recursos sem distribuição. A resistência Anacé, centrada no território, este considerado como uma construção ao mesmo tempo simbólica, social e material, suporte do seu ser coletivo no mundo, é também uma proposição por novas formas de compreender a realidade. Nesse sentido, os Anacé coadunam-se com o expressado por alguns autores, para quem é preciso romper com as formas globocêntricas de ver o mundo e propor novos parâmetros de reflexão do pensar, pautados em um conhecimento baseado no lugar e 58 Aníbal Quijano diferencia colonialismo de colonialidade. Para o autor. “colonialidade é um dos elementos constitutivos e específicos do padrão mundial do poder capitalista. Sustenta-se na imposição de uma classificação racial/étnica da população do mundo como pedra angular do referido do padrão de poder e opera em cada um dos planos, meios e dimensões, materiais e subjetivos, da existência social quotidiana e da escala societal”. Já o colonialismo “refere-se estritamente a uma estrutura de dominação/exploração onde o controle da autoridade política, dos recursos de produção e do trabalho de uma população determinada domina outra de diferente identidade e cujas sedes centrais estão, além disso, localizadas noutra jurisdição territorial”. (QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENEZES, Maria Paula (Orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010). Não obstante colonialidade e colonialismo não se confundirem, é inegável que a ideologia que sustentou o colonialismo enquanto relação política, foi a relação desigual de saberes e poderes, fundada na classificação social e na exclusão do Outro. 59 Sobre esse tema, ler MIGNOLO, Walter. Histórias locais / projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. Acerca das relações entre local e global, Andréa Zhouri e Raquel Oliveira mencionam que “a crítica ao global – como força que oprime e explora – só pode ser efetuada a partir do local, onde o conhecimento é possível e as trincheiras da resistência estão em curso” (ZHOURI, Andréa; OLIVEIRA, Raquel. op. cit., 2010, p. 443). No mesmo sentido, acrescentam que “diante do exposto, entendemos a necessidade de se colocar o desafio, a um só tempo intelectual e político, de resgatar os processos locais, incorporando novos marcos e categorias de análise aos processos globais. Assim, da perspectiva que orienta esta reflexão, o global não impediria o sentimento de enraizamento, o desejo de permanecer no lugar, com a salvaguarda da memória, da identidade e da vontade de se fixar, de criar raízes. Esses sentimentos [...] também apontam para a resistência ao avanço do espaço – quer dizer, do capital – nos lugares – locus da vivencia e da história [...]” (ZHOURI, Andréa; OLIVEIRA, Raquel. op. cit., 2010, p. 444). 340 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições fundamentado na experiência. Algo semelhante ao que Boaventura de Sousa Santos chama de “dupla ruptura paradigmática”. Nesse novo paradigma, escreve Andréa Zhouri e Raquel Oliveira: as categorias de lugar e territorialidade ganham novos contornos e tonalidades ao se colocarem como contraponto não provinciano e emancipador às categorias colonizantes/colonizadoras forjadas a partir de pretensas posições globais (por exemplo, desenvolvimento sustentável e governança ambiental). [...] Esse novo conjunto de reflexões denuncia as categorias do pensamento que aprisionam o olhar a partir de um referencial da modernidade – que seria eurocêntrico, global e masculino, centrado nos processos do capital, do espaço, da abstração.60 O significado de território proposto pelos Anacé acentua um caráter histórico e simbólico. Mais do que o cenário, o lugar onde se vive, se produz e se reconstrói é o território onde ocorrem as dinâmicas sociais que conectam o passado ao presente, esferas de pertencimento que tornam possíveis a construção de identidades no tempo contemporâneo É nesse território que se dá a retomada de controle sobre o próprio destino, sendo o suporte do presente e a referência que orienta projetos coletivos de futuro. Referências bibliográficas ACSELRAD, Henri; AMARAL MELLO, Cecilia Campello do; BEZERRA, Gustavo das Neves. O que é Justiça Ambiental. Rio de Janeiro: Garamond, 2009. AGRA FILHO, Severino Soares. Os conflitos ambientais e os instrumentos da política nacional de meio ambiente. In: ZHOURI, Andréa; LASCHEFSKI, Klemens (Orgs.). Desenvolvimento e conflitos ambientais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. ARANTES, Rivane Fabiana de Melo. Movimento de Mulheres e lutas socioambientais: experiências e desafios para o feminismo. In: ARANTES, Rivane; GUEDES, Vera (Orgs.). 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Rio de Janeiro: Paz e 60 ZHOURI, Andréa; OLIVEIRA, Raquel. op. cit., 2010, p. 442. 341 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Terra, 1989. HERCULANO, Selene; PACHECO, Tania. Introdução: “racismo ambiental”, o que é isso? In: HERCULANO, Selene; PACHECO, Tania (Orgs.). Racismo ambiental. I Seminário Brasileiro sobre racismo ambiental. Rio de Janeiro: Projeto Brasil Sustentável e Democrático: FASE, 2006. Instituto de Desenvolvimento Agrário do Ceará (IDACE). Plano de reassentamento de Pecém. Fortaleza, 1997. JOCA, Priscylla; NÓBREGA, Luciana. Direito à Terra, ao Território e ao Meio-Ambiente do „Povo do Mangue‟: „vivemos em Curral Velho mas não queremos viver encurralados‟. Apresentado no III Simpósio Internacional sobre Propriedade e Meio Ambiente e III Encontro Temático do Projeto Casadinho realizado em abril de 2010 em Fortaleza, Ceará, Brasil, no prelo. __________. 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Examina o programa oriundo do Estado do Amazonas, maior representante da Floresta Amazônica no país e primeiro Estado a regulamentar o pagamento por serviços ambientais, o manejo sustentável através de suas populações, e as políticas implementadas de PSA's. PALAVRAS-CHAVE: Meio ambiente, Serviços ambientais, Economia, Floresta Amazônica. ABSTRACT: The work conceptualizes, classifies and enumerates the environmental services, emphasizing the way in which can be applied in the Amazon. It's payment for environmental services - PES - as an instrument developed by the environmental economy, aiming at the efficient allocation of natural resources. Conceptualizes the Payments for Environmental Services and policies REDD - Reducing Emissions from Deforestation and Degradation, and how it must be reverted to traditional populations. Analyze the Draft Federal Law 5586/2009, and their innovations towards REDD projects. Examines the program from the State of Amazonas, the largest representative of the Amazon rainforest in Brazil and first state to regulate the payment for environmental services, through sustainable management of their populations, and the existing policy of PES's. KEYWORDS: Environment, Environmental services, Economy, Amazon rainforest. 1 INTRODUÇÃO As tecnologias e os serviços estão cada vez mais voltados a um mundo equilibrado, e exemplos são o que não faltam neste início de século XXI; energias alternativas, sustentabilidade, e o direito regendo tudo isso é a prova da preocupação do homem com o * Graduando em Direito pela UFMA – Universidade Federal do Maranhão, e aluno-pesquisador do NEA – Núcleo de Estudos Ambientais, desta IES. A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições meio em que vive, e com as futuras gerações que aqui habitarão. A crescente devastação das florestas e o uso inadequado e irracional dos recursos naturais, e da propriedade, fez emergir a necessidade de criação de instrumentos para proteção destes bens da vida. Nesta linha surgem os instrumentos econômicos para a conservação, sendo que o pagamento por serviços ambientais é um deles. Os ecossistemas (florestas, cerrados, manguezais, recifes, etc) oferecem à humanidade uma variedade de produtos e serviços no âmbito local, nacional e mundial. É necessário então uma breve distinção entre produtos e serviços ambientais: os produtos ambientais são aqueles produtos oferecidos pelos ecossistemas que são utilizados pelo ser humano para seu consumo ou para serem comercializados, tais como madeira, frutos, peles, carne, sementes, medicinas, entre outros, e constituem uma base de sustentação e fonte de renda importante para a Sociedade; já os serviços ambientais são serviços úteis oferecidos pelos ecossistemas para o homem, como a regulação de gases (produção de oxigênio e sequestro de carbono), belezas cênicas, conservação da biodiversidade, proteção de solos e regulação das funções hídricas. Ou seja, são elementos que passam a ser economicamente valorados a partir da incorporação da noção de escassez dos recursos naturais. Dentro dos ecossistemas, um bom exemplo são as florestas nativas da Amazônia, que oferecem serviços fundamentais para a humanidade, como a participação na regulação do clima e a conservação da biodiversidade. Portanto, é imprescindível o homem encontrar formas de proteção, manejo e uso das florestas nativas que assegurem geração de renda, aprimoramento da qualidade de vida dos moradores, e a manutenção dos serviços ambientais. Está amplamente demonstrado que a exploração indiscriminada e não responsável dos produtos da floresta gera uma degradação contínua dos habitats naturais e silvestres, provocando uma diminuição sensível dos serviços ambientais com consequências econômicas e sociais importantes. Nos últimos anos foram desenvolvidos e legalmente normatizados formas e mecanismos de exploração dos produtos florestais que diminuem o impacto sobre as florestas. Também foram criadas áreas protegidas (Unidades de Conservação e Terras Indígenas) como forma de regulamentar o acesso indiscriminado aos recursos florestais. Paralelamente foram definidos mecanismos de controle, como o licenciamento, e de repressão (multas, etc) para monitorar e eventualmente sancionar quem não respeite estas regras de acesso e uso. Porém, constata-se a impossibilidade física e institucional dos poderes públicos em controlar e fiscalizar o acesso e uso da floresta em territórios extensos como o do 345 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Amazonas. Ao mesmo tempo, constata-se que as práticas de "manejo" têm custo adicional que prejudica a comercialização dos "produtos limpos". É importante ressaltar que enfrentar o desmatamento ilegal torna-se preemente, diante do quadro de mudanças climáticas que se agrava, e se constitui em um desafio imposto não apenas ao poder público, mas também à sociedade brasileira, alcançando ademais a comunidade internacional, ante a contribuição dada pelo desmatamento e a degradação das florestas tropicais para o aquecimento global. 1 É nesse contexto que surge o Pagamento por Serviços Ambientais – ou Ecológicos, como muitos preferem – não baseado na repressão, mas no envolvimento, no incentivo e na compensação, que tem se revelado como alternativa que abre inúmeras possibilidades, dentre as quais o emprego do REDD – redução de emissões por desmatamento e degradação, que pode contribuir significativamente para promover a transição de uma economia de exploração predatória para uma economia de baixo carbono. Da necessidade de proteção jurídica ao meio ambiente, com o combate a degradação ambiental e objetivando o equilíbrio ecológico, foram surgindo em todos os países as legislações ambientais. No entanto, essa legislação apresenta-se bastante variada, dispersa e confusa. Se por um lado têm-se normas ambiciosas, de base ecológica, que tentam relacionar os elementos envolvidos na situação para normatizar uniformemente as regras relativas ao meio ambiente, por outro é possível observar normas que constituem simples adequações da legislação sanitária e higienista do século XIX e também da que em outras épocas, protegiam a paisagem, a fauna e a flora. E não se pode dissociar o direito da biodiversidade do direito das populações tradicionais. As sociedades tradicionais se diferenciam sob o ponto de vista cultural. Reproduzem historicamente seu modo de vida, de forma mais ou menos isolada, com base na cooperação social e relações próprias com a natureza. Neste sentido, desempenham um papel fundamental na sustentabilidade ambiental de áreas protegidas. 1 IRIGARAY, C. T. J. H. O pagamento por serviços ecológicos e o emprego de REDD para contenção do desmatamento na Amazônia. In: Congresso Internacional de Direito Ambiental, 14., 2010, São Paulo. Anais... p. 65. 346 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições 2 ECONOMIA AMBIENTAL A Economia Ambiental e a Economia Ecológica são correntes metodológicas que buscam interpretar o problema ambiental e determinar ações que busquem resultados eficientes, partindo de considerações acerca das características de tais recursos. De acordo com os fundamentos da Economia Ambiental, os recursos naturais não são finitos, o que faz com que não existam maiores preocupações acerca da impossibilidade de manutenção do ritmo das atividades produtivas. Segundo Roberta Fernanda de Souza, a principal discussão proposta pela Economia Ambiental se refere ao desenvolvimento de mecanismos que objetivem a alocação eficiente dos recursos naturais. Para tal corrente teórica, os mecanismos de mercado podem ser aplicados com vistas à determinação de alocações eficientes dos recursos naturais. 2 A valoração econômica de ativos ambientais (VEAA) constitui um conjunto de métodos e técnicas cuja finalidade é estimar valores monetários (preços) para bens ambientais. O valor econômico de determinado bem corresponde ao valor que o indivíduo está disposto a pagar por sua existência e por demais benefícios extraídos de sua manutenção e extração. 3 O valor econômico total (VET) dos ativos ambientais, segundo Tietenberg, pode ser dividido em três componentes, a saber: a) valor de uso (VU) – reflete o uso direto dos recursos ambientais, como exemplo, temos o valor dos peixes retirados dos rios, a madeira retirada da floresta, a água extraída para a irrigação, a beleza de uma cena conferida por uma bela vista; b) valor de opção (VO) – reflete a disposição das pessoas a utilizar o recurso no futuro, deixando de utilizá-lo no presente; c) valor de não-uso (VNU) ou valor de existência (VE) – tem-se como o valor derivado da satisfação que as pessoas obtêm pelo simples fato de que um recurso natural existe e está sendo preservado.4 A Economia Ecológica parte do princípio de que, além de alocar de forma eficiente os recursos, conforme defendido pela Economia Ambiental, um sistema econômico deveria tratar da distribuição justa e da escala de utilização desses recursos. A mesma reconhece a importância da existência dos mercados, mas não lhe atribui a capacidade de refletir todos os desejos da sociedade. Defende também a idéia de que a não regulação dos mercados seria 2 SOUZA, Roberta Fernanda da Paz de. Economia do meio ambiente: aspectos teóricos da economia ambiental e da economia ecológica. Disponível em: <http://www.sober.org.br/palestra/9/282.pdf> Acesso em: 26 ago 2010. 3 FARIA, R.C., NOGUEIRA, J.M. Método de valoração contingente: aspectos teóricos e empíricos Apud SOUZA, Roberta Fernanda da Paz de. Op. Cit. 4 TIETENBERG, T. Environmental and Natural Resource Economics Apud SOUZA, Roberta Fernanda da Paz de. Op. Cit. 347 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições inadequada para a alocação de bens e serviços providos da natureza. Uma das grandes inovações da Economia Ecológica é a proposição de que a economia é um subsistema que faz parte de um ecossistema natural global fechado e que há ocorrência de trocas de materiais e energia entre o subsistema e o sistema global (que geram efeitos sobre ambos os componentes do sistema). A caracterização da economia como um subsistema aberto – onde ocorrem trocas de materiais e energia entre o subsistema e o sistema global - que faz parte de um ecossistema natural global fechado, o que refuta a ideia da economia convencional de que a economia seria o todo e a natureza apenas uma parte dele. De acordo com Roberta de Souza: Quando se dá esse passo, evidencia-se que qualquer decisão de utilização dos recursos por esse subsistema acarreta em perda para outra parte do sistema, ou seja, incorre-se em custos de oportunidade. Assim, o processo decisório quanto a utilização ou não dos recursos naturais se torna mais complexa, já que a utilização para um fim pode impedir o uso futuro para outros fins. Tal proposição impõe a ideia de limites às trocas realizadas entre esse subsistema e o ecossistema global, que é o responsável pela oferta dos recursos que entram no subsistema econômico (material e energia) e capaz de absorver (ou não) os resíduos liberados pelo mesmo. A relação complementar entre o ecossistema e a economia torna-se evidente. Por isso, as dimensões da economia dependem dos limites ecossistêmicos, revelando a necessidade de se estabelecer uma escala ótima de produção, que levaria a uma escala ótima de utilização dos recursos naturais (seja como matéria-prima ou serviços ecossistêmicos).5 Discutidos, pois, todos estes conceitos de economia ambiental, tem-se em mente que a conservação dos recursos naturais e, principalmente, das relações existentes entre os membros que constituem o ecossistema (inclusive o homem) faz com que se torne possível a convivência harmônica entre os mesmos. Além disso, a redução da geração de externalidades, que também são causas da redução do bem-estar não-econômico da sociedade, depende da conscientização sobre reais impactos causados pela má utilização do patrimônio ambiental. 2.1 Economia e Pagamento por serviços ambientais Parte da doutrina de pesquisadores ambientais define os PSA como PSE, ou seja, Pagamento por Serviços Ecológicos, em vez de serviços ambientais. Irigaray esclarece-nos que isso ocorre dada sua conotação mais específica relativamente à natureza dos serviços que se pretende recompensar. O equívoco que se pretende corrigir, decorre da tradução convencionada, na América Latina, para a expressão inglesa Payments for ecosystem services, convertida em pagamento por serviços ambientais, o que amplia demasiadamente seu conteúdo, 5 afastando-se da dimensão ecológica implícita na expressão “serviços SOUZA, Roberta Fernanda da Paz de. Op. Cit.. 348 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições 6 ecossistêmicos”. Assim, por exemplo, tecnicamente uma floresta plantada com espécies exóticas, como o eucalipto, presta serviços ambientais, que incluem desde o sequestro de carbono, como a própria utilização econômica da madeira, todavia, esse serviço não pode ser considerado como um serviço ecológico, ou mesmo ecossistêmico que mereça ser compensado financeiramente. Neste artigo será mantida o entendimento da corrente majoritária, que usa o termo “serviços ambientais”. A melhor definição do PSA foi dada pelas Nações Unidas, na Avaliação Ecossistêmica do Milênio: “Serviços ecossistêmicos são os benefícios que as pessoas obtém dos ecossistemas. Entre eles se incluem serviços de provisões como, por exemplo, alimentos e água, serviços de regulação como controle de enchentes e de pragas, serviços de suporte como o ciclo de nutrientes que mantém as condições para a vida na Terra, e serviços culturais como espirituais, recreativos e benefícios culturais”. 7 Quando se fala de Pagamento por Serviços Ambientais é útil entender o que significa esse pagamento para quem recebe e para quem paga. O PSA pode ser pensado como uma maneira de envolver os moradores da floresta no controle dos recursos naturais da floresta. Nesse caso, os moradores recebem um "pagamento contratual" para um serviço de sensibilização e fiscalização. Poderiam ser considerados nessa categoria os Agentes Ambientais Voluntários. Outra forma de pensar o PSA consiste em compensar a perda da competitividade ou da remuneração devido o respeito as regras de manejo (custo adicional) ou de proteção (dentro de Unidades de Conservação). Poderia ser considerado nessa categoria um PSA para extratores madeireiros que, por lei, devem elaborar um plano de manejo para extrair madeira. Fala-se então de "compensação". Também se pode pensar no PSA como sendo uma forma de recompensa aos usuários da floresta que adotem voluntariamente regras ou práticas dedicadas a manter os serviços ambientais. Poderiam ser considerados nessa categoria os moradores que decidam implementar sistemas agro-florestais (SAF) ou reflorestamento. Falar-se-ia então de "gratificação". Daí infere-se as três linhas de PSA; pagamento, compensação e gratificação, que não podem ser confundidas. Mas o mais importante é que não há uma modalidade de pagamento por serviços ambientais, na realidade estamos diante de um instrumento econômico de gestão 6 IRIGARAY, C. T. J. H. Op. Cit. Ecosystems and Human Well–being. Disponivel em: <www.millenniumassessment.org> Acesso em: 25 ago 2010. 7 349 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições ambiental, ainda em construção, caracterizado por uma generalidade, que pode se desdobrar em diversos mecanismos, ou sistemas. Há pesquisadores, como Waage 8, que dizem haver quatro tipos de sistemas de pagamento por serviços ambientais. São eles: a) sistemas de pagamento público para terras privadas e proprietários florestais visando manter ou aumentar os serviços do ecossistema; b) abertura de negociação entre compradores e vendedores sob um regulamento no nível dos serviços de ecossistemas a serem prestados; c) ofertas privadas auto organizadas em que os beneficiários individuais de serviços de ecossistema contrata diretamente com os prestadores desses serviços, e d) eco-rotulagem dos produtos que assegura aos compradores que os processos de produção envolvidos têm um efeito neutro ou positivo sobre os serviços do ecossistema. Logicamente, quem deveria receber o PSA é quem faz o esforço de manter os serviços ambientais, seja o morador da floresta, uma empresa usuária da floresta, ou o próprio poder público. Quem deve pagar está diretamente vinculado a quem recebe os benefícios dos serviços ambientais. Alguns dos serviços ambientais sendo usufruídos por todos (ex: estabilização do clima mediante sequestro de carbono), seria lógico que todos contribuam financeiramente para remunerar os que se esforçam para manter estes serviços. Alguns exemplos de serviços ambientais objeto de pagamento são: I – Sequestro de carbono: por exemplo, uma indústria que não consegue reduzir suas emissões de carbono na atmosfera paga para que produtores rurais possam plantar e manter árvores; II – Proteção da biodiversidade: por exemplo, uma fundação paga para que comunidades protejam e recuperem áreas para criar um corredor biológico (ou ecológico); III – Proteção de bacias hidrográficas: por exemplo, os usuários das rio abaixo pagam para que donos de propriedades rio acima adotem usos da terra que limitem o desmatamento, a erosão, os riscos de enchente etc; IV – Beleza cênica: por exemplo, uma empresa de turismo paga para que uma comunidade local não realize caça numa floresta usada para turismo de observação da vida silvestre.9 Vejamos agora alguns exemplos de modalidades de PSA aplicadas no país. O ICMSEcológico, que existe no Brasil desde 1988, no qual os estados devem repassar uma parcela 8 Apud IRIGARAY, C. T. J. H. Op. Cit. Fonte: Portal da Madeira Manejada. Disponível <http://www.florestavivaamazonas.org.br/servicos_ambientais> Acesso em 26 ago 2010. 9 em: 350 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições de 25% do valor do Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços - ICMS aos municípios; em alguns Estados foi criado mais recentemente o ICMS-ecológico, que permite que 5% desse repasse seja direcionado segundo critérios ambientais (existência de Unidades de Conservação, qualidade de sua gestão,...). Nesse esquema, o recurso vem do contribuinte (pagando o ICMS), e quem recebe esse recurso é o município. Os Créditos por redução certificada de emissões de gases de efeito estufa (RCE), também chamado de "Desenvolvimento Limpo" (MDL), permite a uma empresa que emite mais do que a sua quota (estabelecida no protocolo de Quioto), comprar, via mercado, "crédito de carbono" de outra empresa ou projeto que consiga emitir menos do que a sua quota ou que sequestra carbono (MDL). Esse mecanismo não esta destinado a atividades limpas já estabelecidas. 10 Há também o Programa de Desenvolvimento Socioambiental da Produção Familiar Rural (PROAMBIENTE), adotado pelo Governo Federal desde 2003, que permite a remuneração de Serviços Ambientais prestados à sociedade brasileira e internacional, tais como redução do desmatamento, seqüestro de carbono atmosférico, restabelecimento das funções hidrológicas dos ecossistemas, conservação, preservação da biodiversidade, conservação dos solos, redução da inflamabilidade da paisagem, troca de matriz energética e eliminação de agroquímicos. Ainda na gama de exemplos louváveis a serem citados, Rodrigo Fernandes das Neves assegura-nos: O Acre é o primeiro Estado brasileiro que avançou nas discussões sobre o PSA, prestados por áreas de floresta. Nesse Estado, a Lei Chico Mendes autoriza o executivo a subsidiar o quilo de borracha natural produzida por seringueiro, de forma a agregar valor ao seringal nativo. O repasse dos recursos, contudo, não pode ser feito diretamente aos seringueiros, mas a uma associação ou cooperativa, ao qual os mesmos devem ser filiados. Este mecanismo foi criado para contornar a falta de estrutura legal que permita ao poder público transferir fundos públicos, ou captar recursos do setor privado nacional e internacional, para o pagamento direto por serviços ambientais.11 Porém existem certos empecilhos aos programas de PSA, tai como a a impossibilidade legal de se remunerar, de forma direta, aqueles que contribuem para a conservação dos ecossistemas. Isso faz com que sistemas regulamentares de PSA, no Brasil, dependam, em grande parte, de uma estratégia política e de uma ação de Estado. A criação de instrumentos econômicos, que alterem os custos de oportunidade das atividades conservacionistas, aliada a mecanismos alternativos de repasse dos recursos, como o existente no Acre, é um exemplo de como, em certas circunstâncias, o PSA pode representar uma forma direta de aplicação de Gestão e Política Ambiental. O objetivo do PSA não é de substituir as 10 Idem. NEVES, R. F. Das. PSA e REDD na política ambiental acreana. In: Congresso Internacional de Direito Ambiental, 14., 2010, São Paulo. Anais... p. 328. 11 351 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições atividades produtivas, mas incentivar práticas conservacionistas nessas atividades. Está relacionado a um plano de desenvolvimento baseado na conservação, na agregação de renda e no fornecimento de serviços ambientais. 2.2 Economia e as novas tendências da Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação – REDD As emissões de carbono decorrentes de desmatamento são as maiores responsáveis pelas emissões ocorridas no Brasil; caso semelhante ao de outros países que possuem remanescentes de florestas tropicais. Por conta disso, em 2005, durante a COP 11, realizada em Montreal, um grupo de oito países liderados pela Costa Rica iniciaram estudos sobre o REDD (Reduce Emissions for Deforestation and Degradation), ou Redução de Emissões para o Desmatamento e Degradação. A ideia é criar valores econômicos para as propriedades de floresta em pé, ou para o desmatamento evitado, termo que é preferido. Assim como em outros mercados e pagamentos por serviços ambientais, o poluidor poderá compensar suas emissões comprando créditos de quem ainda tem o que conservar. Diferentemente do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo - MDL, que não inclui as florestas naturais remanescentes, REDD vai além de Kyoto quando propõe compensações financeiras aos proprietários de matas naturais, que se prontificam a proteger suas florestas por 60 anos, ganhando durante todo este período. REDD pode vir a ser uma alternativa rentável para reduzir o desmatamento. Pode tornar-se uma versão do “Mercado Justo” em MDL, que negocia qualquer tipo de sequestro de carbono, seja por monocultura como o de eucalipto, por exemplo. Diferentemente, REDD propõe evitar queimadas e, ao manter as florestas, assegurar os serviços ambientais que estas oferecem. Representa, assim, um “investimento do bem”, ao proteger de maneira integral o patrimônio natural da Terra.12 Devido a isto, REDD é um mecanismo para evitar a emissão de carbono, fazendo parte, assim, da Convenção do Clima, e não da Biodiversidade, apesar de tratar de florestas e sua respectiva conservação, porém é pertinente a ambas. Na verdade, pode vir a representar um dos mais promissores caminhos para a proteção da biodiversidade. Embora o REDD, que na versão da ONU pode levar de cinco a dez anos para se consolidar enquanto instrumento econômico destinado a reduzir o desmatamento e a degradação das florestas, esteja ainda em construção, algumas experiências pilotos confirmam 12 PADUA, Suzana. O que é REDD (Redução de emissão por desmatamento e degradação) e o que pode representar para a conservação de nossas florestas? Disponível em: <http://www.oeco.com.br/suzanapadua/18264-oeco26975> Acesso em: 29 ago 2010. 352 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições o perfil desse mecanismo como uma forma de compensação para os países que reduzirem as taxas de desmatamento abaixo das linhas de base nacionais históricas. Em 2007, o Plano de Ação de Bali13, reconheceu a necessidade de uma abordagem ampla para mitigar as mudanças climáticas. De acordo com esse documento, as ações devem incluir: “Abordagens políticas e incentivos positivos para questões relacionadas à redução das emissões provenientes de desmatamento e degradação florestal em países em desenvolvimento”. A Noruega, p. ex., criou um fundo, doando 500 milhões de dólares/ano para ser investido no desmatamento evitado. Naturalmente que existem inúmeras alternativas para implementar esse mecanismo, com diversas estratégia para medição e compensação das reduções nas emissões. Uma síntese dessas discussões estão sumariadas em “O Pequeno Livro Vermelho do REDD” 14 que consolida o marco referencial para entender as propostas já existentes. O Brasil tem se posicionado contra o desmatamento evitado ou a criação de um mercado, temendo riscos à soberania nacional. Prefere acreditar na possibilidade de um fundo que permita ao governo proteger melhor nossas florestas. Mesmo acreditando que muitos seriam capazes de atitudes nobres basicamente pelo princípio ético que essas doações representem, permanecer nesta postura nos coloca com chapéu na mão, pedindo esmola voluntária de quem quiser doar. Uma proposta desenvolvida por um grupo de ONGs contempla um esquema de “reduções compensadas” que prevê uma compensação, através de um mercado global de carbono, para os países que comprovarem uma redução no desmatamento abaixo de uma linha de base preestabelecida, considerando um nível histórico medido de desmatamento. Nessa proposta a compensação se efetivaria após a medição da redução das emissões, através de sensoriamento remoto, levantamento de campo e/ou inventários florestais. Porém, é necessário que se ressalte uma crítica feita à política de REDD, formulada por um eclético grupo de ambientalistas, empresários, indígenas e executivos do Banco Mundial (BIRD). A sigla se refere à Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação, um mecanismo financeiro que poderá garantir recursos para quem desmatou no passado, mas vem conseguindo reduzir a taxa de derrubada de florestas – diminuindo, assim, a emissão de gases-estufa na atmosfera. O problema é que precisa existir recursos que recompensem também países e comunidades que já estão preservando, fazendo manejo sustentável e até 13 IRIGARAY, C. T. J. H. Op. Cit. PARKER, C., MITCHELL, A., TRIVEDI, M., MARDAS, N. The Little REDD+ Book. Global Canopy Foundation 2009. Disponível em português no site <www.littleREDbook.org> Acesso em: 29 ago 2010. 14 353 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições expandindo suas florestas. “Uma das principais críticas que se faz ao REDD é que ele acaba premiando quem mais desmatou e pode ser injusto com quem mais preservou”, assim esclarece o pesquisador Roberto Smeraldi. 15 Quem desconfia do REDD enxerga uma perversidade no mecanismo. Ele premiará, com recursos financeiros, quem conseguir diminuir suas taxas de desmatamento, e assim, reduzir a emissão de gases-estufa – uma espécie de Bolsa-Desmatamento, segundo seus críticos mais ácidos. Por esta lógica, Estados campeões de desmatamento, como o Mato Grosso, que reduzissem a derrubada no futuro, seriam recompensados; mas Estados até agora campeões na preservação, como o Amazonas, não ganhariam nada. 16 Outros desafios devem ser suplantados para uma correta e equilibrada aplicação dos princípios do REDD. Em termos gerais, pode-se enumerar os seguintes: 1) a falta de definição quanto aos direitos de posse e uso de recursos, 2) falta de planejamento do uso da terra, 3) existência de incentivos financeiros para conversão de florestas, 4) Reforma institucional mais ampla dos órgãos envolvidos na gestão ambiental, 5) falta de cumprimento das leis florestais. A esses fatores totalmente pertinentes à realidade brasileira, somam-se os desafios de governança provenientes de uma abordagem nacional contábil do carbono ao REDD, o que inclui, 6) a necessidade no desenvolvimento de uma estratégia nacional de REDD, 7) a distribuição equitativa de benefícios, 8) a criação de uma responsabilização nacional pelo REDD e uma infraestrutura para lidar com créditos e 9) a definição de linhas de base, monitoramento e verificação de inventários.17 Desse último ponto exposto adentramos em uma questão de interesse deste trabalho; a propriedade e suas implicações em políticas ambientais de grande monta. A situação fundiária na Amazônia brasileira, para se usar como exemplo, é caótica; existem aproximadamente 235 milhões de hectares de terras devolutas, pendentes de regularização. No caso do REDD, a falta de títulos, a grilagem, a ocupação ilegal de terras públicas, e criam um ambiente de confusão e violência no campo, consequentemente aumenta o riscos de qualquer projeto de REDD. Uma segurança do direito à terra é indispensável para garantir a permanência das 15 Roberto Smeraldi é diretor da ONG Amigos da Terra – Amazônia brasileira e um dos co-presidentes do chamado Diálogo das Florestas. Disponível em: <http://www.amigosdaterra.org.br/> Acesso em: 05 set 2010. 16 Portal EcoDebate. Disponível em: <http://www.ecodebate.com.br/2008/10/09/reducao-de-emissoes-pordesmatamento-e-degradacao-redd-incentivos-para-preservacao-sao-falhos-dizem-liderancas/> Acesso em: 01 set 2010. 17 IRIGARAY, C. T. J. H. Op. Cit. 354 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições floresta e do carbono nela sequestrado, o que não significa necessariamente a garantia de um título, mas também o reconhecimento e proteção das ocupações tradicionais, salvaguardando assim, os interesses dos grupos vulneráveis. Especialmente no caso dos povos indígenas e comunidades tradicionais, como quilombolas, cabe observar que, embora tenham seus direitos resguardados pela Constituição Federal, eles enfrentam problemas com a falta de demarcação de suas terras, o que gera litígios com os ocupantes do entorno que não hesitam em invadir essas áreas especialmente protegidas, mesmo quando demarcadas. 3 O PL 5586/2009 E SUAS INOVAÇÕES NOS PROJETOS DE REDUÇÃO DE EMISSÕES POR DESMATAMENTO E DEGRADAÇÃO Este Projeto de Lei Federal n. 5586/2009 18, de autoria do Deputado Lupércio Ramos do PMDB do Amazonas, apresentado na Câmara dos Deputados, em julho de 2009, que propõe, como novidade neste cenário, a instituição da redução certificada de emissões do desmatamento e da degradação (RCEDD) como título representativo de uma unidade padrão de gases de efeito estufa, correspondente a uma tonelada métrica de dióxido de carbono (CO2) equivalente, em área afetada à preservação florestal. Este PL foi estruturado para incentivar a conservação de estoques florestais em projetos locais privados mediante mecanismo muito similar ao regime do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo19 em que uma parte interessada (no caso o projeto limita aos proprietários privados de terras com florestas) apresenta à autoridade designada pelo Poder Executivo um projeto de redução de emissões desenvolvido de acordo com metodologia estabelecida em regulamentação e se habilita ao registro de um volume definido de Carbono mediante a emissão de RCEDD. As RCEDDs constituem-se em títulos transacionáveis nos mercados de crédito de carbono O PL em apreço já tramitou pela Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural da Câmara dos Deputados tendo sido aprovado na forma do relatório do deputado Celso Maldner do PMDB de Santa Catarina. O PL estabelece que podem ser afetadas à preservação para fins de habilitação à emissão de RCEDD as seguintes áreas florestais: a) de Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) legalmente instituída; b) de reserva legal instituída voluntariamente sobre a 18 Veja a íntegra da tramitação do PL em: <http://www.camara.gov.br/internet/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=441407>. Acesso em: 15 set 2010. 19 O MDL – Mecanismo de Desenvolvimento Limpo – é um dos mecanismos de flexibilização criados pelo Protocolo de Quioto para auxiliar o processo de redução de emissão de gases do efeito estufa (GEE) ou de captura de carbono. 355 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições vegetação que exceder os percentuais exigidos pela Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965, que instituiu o Código Florestal20; c) mantidas sob regime de servidão ambiental; e d) de área de preservação permanente instituída voluntariamente em dimensões excedentes às exigidas pela Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965, que instituiu o Código Florestal. Um parecer a cerca do referido PL foi elaborado a pedido do IDPV – Instituto “O Direito por um Planeta Verde”21, de autoria do seu Diretor de Assuntos parlamentares, André Lima 22, diz-nos: O Projeto tem um mérito importante que é o de buscar regulamentar atividade que já vem sendo desenvolvida principalmente (mas não somente) na Amazônia Brasileira em projetos privados espalhados e sem qualquer articulação ou integração. A regulamentação da matéria é fundamental para dar credibilidade ao REDD. Vale dizer que hoje mais de 50% das emissões brasileira de CO2 são oriundas de desmatamento e degradação florestal 4 de sorte que para que o Brasil alcance as metas propostas no artigo 12 da Lei Federal nº 12.187/0923 que trata da Política Nacional de Mudanças Climáticas será absolutamente necessário que o governo federal defina em conjunto com os Estados da federação uma estratégia ousada de redução de desmatamentos e consequentemente das emissões de CO2 derivadas.24 O que este projeto visa é que iniciativas como as políticas públicas implantadas pelo Estado do Amazonas, infra, não sejam atos isolados neste país. O projeto de REDD deve ser um dos instrumentos que compõem uma estratégia nacional para alcance das metas estabelecidas na Lei Federal 12.187/09, que é de redução entre 36,1 e 38,9%% das emissões projetadas até 2020. Sem uma estratégia nacional básica não faz sentido regulamentar REDD por lei e apenas para permitir que projetos locais desarticulados possam ocorrer beneficiando muito poucos atores sociais relevantes no contexto da conservação das florestas e do combate aos desmatamentos e queimadas ilegais. Sobre isso, o parecer esclarece-nos: “somente haverá compensação financeira para REDD se houver reduções de desmatamento na escala nacional, ou seja, de nada adianta um ou vários bons projetos locais se a conta (taxa) nacional de desmatamento fechar no negativo 20 Um novo Código Florestal está em processo de tramitação, precisando ainda ser votado no Congresso Nacional. 21 Disponivel em: <www.planetaverde.org/clima/documentos>. Acesso em: 15 set 2010. 22 André Lima (OAB-DF 17878) é Coordenador de Políticas Públicas do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia. 23 “Art. 12. Para alcançar os objetivos da PNMC, o País adotará, como compromisso nacional voluntário, ações de mitigação das emissões de gases de efeito estufa, com vistas em reduzir entre 36,1% (trinta e seis inteiros e um décimo por cento) e 38,9% (trinta e oito inteiros e nove décimos por cento) suas emissões projetadas até 2020. Parágrafo único. A projeção das emissões para 2020 assim como o detalhamento das ações para alcançar o objetivo expresso no caput serão dispostos por decreto, tendo por base o segundo Inventário Brasileiro de Emissões e Remoções Antrópicas de Gases de Efeito Estufa não Controlados pelo Protocolo de Montreal, a ser concluído em 2010. 24 Parecer sobre o Projeto de Lei Federal n. 5586/2009 que trata dos Projetos de Redução de Emissão por Desmatamento e Degradação. Disponível em: <www.planetaverde.org.br>. Acesso em: 15 set 2010. 356 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições (se houver aumento de desmatamento em relação ao nível de referência adotado)”.25 Há um outro conceito de interesse, tanto para o momento em discussão, quanto para o direito ambiental em si; a governança ambiental. Governança 26 é um termo-chave na implementação de políticas ambientais e de desenvolvimento. Uma boa governança seria capaz de aumentar a eficiência e a legitimidade na elaboração e na operação dessas políticas. Porém, muitos projetos calcados na tentativa de instituir e se valer de condições ideais de governança têm apresentado impasses estruturais. Por outro lado, mesmo diante de evidentes limitações, os critérios considerados necessários para a boa governança se multiplicam. Essa dinâmica, que amplia o fosso entre o discurso e a prática no tratamento da questão ambiental, vem se reproduzindo e ampliando ao longo do tempo.27 Sem investimento real em governança ambiental (pelos estados e pelo governo federal) e sem respaldo à legislação florestal federal não haverá segurança mínima aos potenciais investidores, nacionais ou estrangeiros, em ações de REDD. As mudanças no código florestal propostas pela bancada ruralista no Congresso e a omissão do governo federal em relação às demandas das carreiras ambientais e dos governos estaduais em relação aos seus órgãos de meio ambiente constituem hoje, ao lado da crise econômica internacional e da falta de regulação sobre o tema na convenção de Clima, o maior obstáculo à captação de recursos em escala no mercado internacional de carbono florestal. Se é verdade que é preciso investir em mecanismos econômicos para valorizar a floresta em pé como forma de induzir a conservação de florestas e de inibir o desmatamento, é verdade também que é preciso fortalecer a governança florestal. O Parecer guia-nos por este mesmo caminho, a saber: O papel dos estados da federação é chave, pois de acordo com a Lei de Gestão de Florestas Públicas (Lei Federal 11.248/06) são os Estados os principais responsáveis pela fiscalização, monitoramento e o licenciamento de desmatamento, manejo florestal e transporte de produtos florestais. Se a gestão florestal está centrada nos estados eles serão determinantes na governança ambiental sobre o tema e no desenho da estratégia nacional de REDD. Não é razoável deixar somente as ações de controle 25 Idem. Governança consiste em: distribuição de poder entre instituições de governo; a legitimidade e autoridade dessas instituições; as regras e normas que determinam quem detém poder e como são tomadas as decisões sobre o exercício da autoridade; relações de responsabilização entre representantes, cidadãos e agências do Estado; habilidade do governo em fazer políticas, gerir os assuntos administrativos e fiscais do Estado, e prover bens e serviços; e impacto das instituições e políticas sobre o bem-estar público. Quando o conceito de governança é estendido à esfera do desenvolvimento sustentável e das políticas ambientais, emprega-se a expressão governança ambiental. Trata-se, na verdade, apenas de uma delimitação temática do conceito. 27 FONSECA, Igor Ferraz da; BURSZTYN, Marcel. A banalização da sustentabilidade: reflexões sobre governança ambiental em escala local. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/se/v24n1/a03v24n1.pdf>. Acesso em: 16 set 2010. 26 357 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições sob a responsabilidade dos Estados sem que eles possam complementar sua estratégia com mecanismos econômicos. Além disso, cada estado brasileiro, mesmo dentre das mesmas regiões ou Biomas como é o caso da Amazônia, possui realidades socioeconômicas, geográficas, ecológicas e culturais distintas, sendo necessário que a estratégia de REDD seja adaptada a realidade sub-nacional. É o caso, por exemplo, das diferenças entre os Estados de Mato Grosso e Amazonas, em que o MT foi responsável por mais de 50% de todo desmatamento nos últimos 10 anos e o Amazonas é hoje responsável sozinho por 50% de toda floresta. As dinâmicas de ocupação, os vetores de desmatamento, as densidades demográficas, as realidades fundiárias, as categorias sociais que ocupam os territórios a serem usados de forma sustentável ou preservados também se diferenciam muito de um estado para o outro mesmo dentro da Amazônia Brasileira.28 Percebamos como o REDD é uma política de peso, e que precisa urgentemente da regulamentação, haja vista ser um mecanismo econômico que atua em prol da floresta e em prol das populações tradicionais. Porém, um dos principais temores referentes ao REDD é o de que ao compensar os atores que detém florestas o mecanismo pode estimular a especulação e a grilagem de terras na Amazônia inclusive em detrimento de populações tradicionais e povos indígenas cujos direitos fundiários não tenham ainda sido reconhecidos pelo Estado. O Brasil, nesse ponto, é superior, pois já tem salvaguardado o direito dessas populações assegurados; tema que será melhor debatido no item seguinte. 3 O TRATAMENTO DADO ÀS POPULAÇÕES TRADICIONAIS, E AS POLÍTICAS AMBIENTAIS DO ESTADO DO AMAZONAS Primeiramente é útil conhecermos um pouco deste gigante bioma amazônico, para que só então partamos para o entendimento de seus povos e suas soluções apresentadas. Em dados, a Amazônia ocupa cerca de 8 milhões de Km², correspondentes a quase 65% da área do Brasil; possui o maior rio do mundo; e, o mais importante para este trabalho, cerca de 48 bilhões de tCO (Toneladas de Monóxido de Carbono) estocadas, o que equivale a 5 anos de emissões globais de Gases do Efeito Estufa, os GEEs. A biodiversidade gera outros dados espantosos: 1/3 de todas as espécies do planeta; 40000 espécies de plantas superiores catalogadas; 2500 espécies de peixes; 1000 de aves; e um detalhe interessante, em um única árvore da Amazônia foram identificadas 95 espécies de formigas – 10 a menos do que existem na Alemanha toda.29 Os serviços ambientais proporcionados pela Floresta Amazônica vão desde a manutenção de chuvas na América Latina, passando pela manutenção da maior biodiversidade 28 Parecer sobre o Projeto de Lei Federal n. 5586/2009. Dados colhidos no sítio do Portal Amazônia, e na Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do Estado do Amazonas. Disponível em: <http://portalamazonia.globo.com/pscript/amazoniadeaaz/artigoAZ.php?idAz=134>, <http://www.geomatica.ita.br/purus/wmeebhge/apresentacoes/WMEEBHGE_SDS_CECLIMA.pdf> Acesso em: 15 set 2010. 29 358 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições do mundo, até a oferta de remédios naturais, alimentos, materiais de construção e utensílios domésticos para as populações da floresta, cerca de 150 mil famílias, e aos municípios vizinhos. O Estado do Amazonas e seus povos tradicionais são os protagonistas dessa história. É o maior estado brasileiro, e possui 39% da Floresta Amazônica; 98% da cobertura florestal ainda se encontra preservada e tem cerca de 64 etnias indígenas, segundo dados da Secretaria de Meio Ambiente amazonense. Mas vale ressaltar que o termo populações tradicionais não se aplica somente aos povos indígenas, mas sim “à existência de populações capazes de utilizar e ao mesmo tempo conservar os recursos do meio ambiente em que vivem”, segundo definição do IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais. 30 A ideia de Populações Tradicionais está essencialmente ligada à preservação de valores, de tradições, de cultura. As populações tradicionais são, portanto, dinâmicas, estão em constante mudança, em sintonia com as mudanças que ocorrem na região e que chegam até elas. Estas mudanças não descaracterizam o tradicional, desde que sejam preservados os principais valores que fazem dela uma população conservadora do meio ambiente. Dois aspectos importantes devem ser levados em conta por quem trabalha com populações tradicionais: primeiro, fazer com que elas não se sintam excluídas, marginalizadas, pelo fato de terem um sistema econômico e de vida diferentes. Segundo, que as pessoas passem a incorporar o fato de serem populações tradicionais como uma opção, como uma forma positiva de vida. O dinamismo destas populações deve levar a tal incorporação, como também a assimilar o que de positivo possam ter outro grupos humanos, sem perder os valores que fazem a essência da sua tradição. Para a política ambiental amazonense, um tripé de valores foi feito: a) a floresta vale mais em pé do que derrubada; b) as populações locais são os verdadeiros guardiões da terra; e c) pobreza e ineficiência na educação são os grandes vetores do desmatamento. A partir daí foi feita uma série de incentivos visando a valoração dos produtos e serviços ambientais, e seus respectivos produtores – o povo e a mata – e os principais são: isenção de ICMS sobre produtos florestais não madeireiros e o financiamento para projetos ambientais de pequena escala. Houve também, como parte dessa valoração, um aumento considerado do número de áreas protegidas no Estado, que em 2002 tinham apenas 12 áreas protegidas, e em 2009 já eram computadas 41 áreas, totalizando aproximadamente 83 milhões de hectares, cerca 51% 30 Disponível em: <http://www.ibama.gov.br/resex/pop.htm> Acesso em: 5 set 2010. 359 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições 31 do estado. Foram criados também 3 órgãos estaduais; o CEUC – Centro Estadual de Unidades de Conservação; o CECLIMA – Centro Estadual de Mudanças Climáticas32; e a Fundação Amazônia Sustentável, responsável pelo programa Bolsa Floresta. O Programa Bolsa Floresta é estruturado da seguinte maneira: os serviços ambientais responsáveis pelo clima, biodiversidade e carbono, supracitados, geram mecanismos financeiros que dão origem aos benefícios, estes, por sua vez, combatem a pobreza e garatem a manutenção dos serviços ambientais, contribuindo, assim, para a redução de emissões por desmatamento e degradação. Cada família inscrita no programa recebe a quantia de R$ 50,00/mês, e cada comunidade recebe em torno de R$ 4000/ano. Em julho de 2006 foi criado o programa de REDD da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Juma, atingindo 322 família de 22 comunidades; visando a validação de 3,6 bilhões de tCO no período entre 2006 e 2016, de acordo com os padrões da CCBA - Climate, Community & Biodiversity (ou Clima, Comunidade e Biodiversidade)33; com ele, as famílias que vivem na RDS Juma e ajudem a conservar o meio ambiente receberão R$ 60 por mês. Uma outra iniciativa interessante que foi adotada pelo Estado do Amazonas é o Programa Zona Franca Verde (ZFV) de desenvolvimento sustentável, que foi iniciado em 2003, com geração de emprego e renda aliado à conservação da biodiversidade. Representa o compromisso do Estado com a melhoria da qualidade de vida da população do interior e, ao mesmo tempo, com a proteção ao extraordinário patrimônio natural do Amazonas: as florestas, rios, lagos, igarapés e campos naturais. Promove, entre outros, o manejo florestal (madeireiro e não madeireiro) sustentável, assim como a criação e viabilização de Unidades de Conservação. Assim como já explicitado anteriormente, há gargalos jurídicos quem impedem a implementação de projetos e programas de PSA e REDD amazônicos, tais como a legalização fundiária, que é o grande problema da Amazônia; o estabelecimento de acordos legais entre as partes interessadas (pagador e recebedor de benefícios financeiros); e necessidade de documentação civil por parte dos contratuantes, pois que poucos comunitários tradicionais possuem tais documentos em dia. Irigaray lembra-nos: É certo que a sustentabilidade ambiental e social das políticas para reduzir o 31 Dados apresentados pelo CEUC – Centro Estadual de Unidades de Conservação do Estado do Amazonas. Lei Estadual n. 3.244 de abril de 2008, do Estado do Amazonas. 33 Disponível em: <http://www.socioambiental.org/uc/4774/noticia/55338> Acesso em: 5 set 2010. 32 360 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições desmatamento depende do envolvimento de todas as partes interessadas, especialmente daqueles que vivem na floresta ou em seu entorno. A participação pode contribuir significativamente para garantir que o potencial de co-benefício de REDD (tais como a redução da pobreza, a proteção dos direitos humanos, a conservação da biodiversidade, a prestação de outros serviços ecológicos) seja maximizado e os potenciais impactos negativos evitados ou minimizados. No caso da participação pública há de se reconhecer que esta constitui um dos princípios fundamentais do direito ambiental, consagrados internacionalmente, e fortemente amparada no ordenamento nacional.34 Vejamos agora, de acordo com fontes da Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do Estado do Amazonas – SDS, as cinco propostas de inclusão dos serviços ambientais e REDD no plano estadual. 1 – Estabelecer metas de redução de desmatamento compartilhadas com o governo federal e estados amazônicos, considerando competências constitucionais e legais; 2 – Estabelecer valor econômico para as florestas com base no pacto federativo (pagamento por serviços ambientais, mercado de carbono e compensações florestais); 3 – Estabelecer estratégias de captação de recursos compensatórios pela conservação das florestas, redução de emissões por desmatamento e degradação florestal, em cooperação com os estados na gestão territorial e florestal; 4 – Criar um Fundo ou discutir critérios de repartição de benefícios junto ao Fundo Amazônia em áreas de alta e baixa pressão de desmatamento; e 5 – Os instrumentos legais e financeiros devem reconhecer e garantir os direitos dos povos indígenas, comunidades locais, populações tradicionais, agricultores familiares, produtores rurais, florestais, empresariais e agrícolas, entre outros. 35 A partir daí foram criados o Plano Estadual de Prevenção e Combate ao Desmatamento e o Plano de Ação Climática, todos vinculados ao CECLIMA/SDS. O primeiro e principal objetivo fora a implementação do Projeto de Pagamento por Serviços Ambientais no Mosaico de Unidades de Conservação do Apuí – AM, que incluirá, a partir do segundo semestre de 2010, promover educação ambiental e capacitações sobre mudanças climáticas e serviços ambientais aos atores locais do projeto; desenvolver estudos técnicos sobre serviços ambientais, PSA e Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação florestal na área do projeto; e criar mecanismos financeiros, tal qual outros projetos assinados pela SDS, para garantir a sustentabilidade das famílias e comunidades da área.36 No que se refere à segurança quanto a propriedade do imóvel, ou mesmo do carbono nele existente, a situação da Amazônia é dramática e a violência no campo, o trabalho 34 IRIGARAY, C. T. J. H. Op. Cit. Disponível em: <www.ceclima.sds.am.gov.br> Acesso em: 06 set 2010. 36 Disponível em: <www.ceclima.sds.am.gov.br> Acesso em: 06 set 2010. 35 361 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições escravo, a invasão de terras públicas e os crimes ambientais revelam a ausência do Estado, que dificilmente será contornada apenas com a outorga de títulos de propriedade. As políticas públicas implementadas para enfrentar esse problema contemplam a execução de um amplo programa de regularização fundiária, fundamentado na controvertida Lei 11.952, de 25 de junho de 2009.37 A iniciativa, que recebeu do Greenpeace a pecha de “Programa Nacional de Aceleração da Grilagem”, pois premia os latifundiários que desmataram ilegalmente terras públicas, ignora aspectos ambientais relevantes de um bioma que constitui patrimônio nacional. Embora não exista na mencionada Lei qualquer referencia à regra constitucional prevista no art. 225 § 5º38, “é certo que nenhuma alienação de terras públicas na Amazônia poderá ser considerada juridicamente perfeita, sem a prévia manifestação dos órgão ambientais relativamente à inexistencia de interesse na conservação da área alienada.” 39 No que se refere à falta de planejamento do uso da terra, a questão passa não apenas pela aprovação de um zoneamento ambiental na região, mas sobretudo na utilização do zoneamento para o licenciamento das propriedades rurais na Amazônia que considere não apenas a existência de reserva legal e APPs, mas que condicione e utilização econômica do imóvel com respeito à variável ambiental. Todos esses aspectos estão associados à fragilidade e ineficiência das políticas ambientais existentes para conter o desmatamento na Amazônia; se por um lado, as taxas de desmatamento tiveram uma redução significativa nos últimos anos, não existe nenhuma garantia de que essa tendencia persistirá se a conjuntura econômica for favorável ao agronegócio. 40 Estes são os bons, e os maus, exemplos do Estado do Amazonas, que aqui foram mostrados, porém ensejam ainda muita discussão. É certo que muitas dessas iniciativas deveriam ser levadas a outras partes do país, e do mundo. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Não há um conceito jurídico claro, tampouco uma política oficial para valorização dos serviços ambientais compatível com a relevância que o tema tem para o desenvolvimento sustentável de um país que possui mais de 50% de seu território coberto por florestas, cerrados, caatinga, pantanal, pampas, mangues, dentre outros ecossistemas altamente relevantes para os processos ecológicos essenciais à manutenção da qualidade de vida humana. 37 Dispõe sobre a regularização fundiária das ocupações incidentes em terras situadas em áreas da União, no âmbito da Amazônia Legal; altera as Leis n. 8.666 de 21 de junho de 1993, e 6.015, de 31 de dezembro de 1973. 38 O referido parágrafo 5° tem a seguinte redação: § 5º - São indisponíveis as terras devolutas ou arrecadadas pelos Estados, por ações discriminatórias, necessárias à proteção dos ecossistemas naturais. 39 IRIGARAY, C. T. J. H, VIEIRA, Giselle F. e SILVA, Lygia M. Rosa. Regularização Fundiária na Amazônia: a lei e os limites. Revista de Estudos Sócio-Jurídico-Ambientais Amazônia Legal, n. 5. Cuiabá: EditUFMT, 2009. 40 Idem. 362 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Após os avanços mostrados pelo Estado do Amazonas, festejamos a diminuição nos índices de desmatamento na Amazônia que alcançaram o patamar mais baixo das últimas duas décadas, todavia o desmamento segue um ritmo ainda inaceitável e, se não contido, pode levar à destruição da floresta num curto espaço de tempo. Irigaray assevera-nos que “por isso mesmo, o pagamento por esses serviços ecológicos prestados constitui importante alternativa jurídico-política para conter o desmatamento e a degradação desse patrimônio natural e adicionalmente melhorar a condição de vida da população local” 41. Para as populações tradicionais, que vivem da floresta, é um reconhecimento da função ecológica que desenvolvem e um incentivo para que possam permanecer vivendo de atividades extrativistas não impactantes, porém tendo algum retorno para a própria sobrevivência. Os estados brasileiros já deviam estar com suas legislações atualizadas, e os mecanismos de PSA ativos, como pretende o PL n. 5586/2009. A prova de que todos devem estar trabalhando é que o bioma da Caatinga está sendo seriamente ameaçado pela desertificação, e a situação nesta região do nordeste do país, que já sofre com a falta de chuvas, pode se agravar ainda mais. Já foi citado neste trabalho, e vale a pena o ressalte, de tudo aquilo que têm impedido o manejo dos mecanismos de PSA e REDD, entre eles: a grilagem de terras públicas, a violência e o trabalho escravo na fronteira agrícola, os conflitos legislativos, a reduzida implementação da normas ambientais, a deficiência no controle e fiscalização das atividades ilegais e os incentivos econômicos à conversão da floresta para usos alternativos do solo (pecuária e agricultura). Reverter esse quadro pressupõe, portanto, não apenas medidas de comando-e-controle42 e ajustes do gerenciamento ambiental no setor florestal, mas também medidas econômicas que possibilitem o realinhamento de incentivos econômicos em favor da conservação dos ativos florestais e a estruturação de uma economia de base florestal com o fomento de meios de subsistência alternativos atraentes para as populações tradicionais. REFERÊNCIAS IRIGARAY, C. T. J. H. O pagamento por serviços ecológicos e o emprego de REDD para contenção do desmatamento na Amazônia. In: Congresso Internacional de Direito Ambiental, 14., 2010, São Paulo. Anais... São Paulo: Imprensa Oficial, 2010. p. 65-88. NEVES, R. F. Das. PSA e REDD na política ambiental acreana. In: Congresso Internacional de Direito Ambiental, 14., 2010, São Paulo. Anais... São Paulo: Imprensa Oficial, 2010. p. 325-342. 41 42 IRIGARAY, C. T. J. H. Op. Cit. Termo usado por Irigaray. 363 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições IRIGARAY, C. T. J. H, VIEIRA, Giselle F. e SILVA, Lygia M. Rosa. Regularização Fundiária na Amazônia: a lei e os limites. Revista de Estudos Sócio-Jurídico-Ambientais Amazônia Legal, n. 5. Cuiabá: EditUFMT, 2009. SOUZA, Roberta Fernanda da Paz de. Economia do meio ambiente: aspectos teóricos da economia ambiental e da economia ecológica. 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Parecer sobre Projeto de Lei Federal nº 5586/20091 que trata dos Projetos de Redução de Emissões por Desmatamento e DegradaçãoFlorestal (Redd). Disponivel em: <www.planetaverde.org.br/clima/documentos> Acesso em: 15 set 2010. 364 OS CONFLITOS RESULTANTES DO USO DA ÁGUA DAS FONTES SUBTERRÂNEAS PARA ABASTECIMENTO HUMANO: ESTUDO DE CASO DA FONTE GUARIBAS EM CRATO-CE Márcia Maria dos Santos Souza 1 RESUMO: O presente artigo tem por objeto apresentar as dificuldades enfrentadas quanto ao uso de água subterrânea, Fonte Guaribas, para fins de abastecimento humano, abordando aspectos legais da dominialidade à luz da legislação vigente na época imperial e da Constituição Federal, abordando ainda aspectos ambientais da intervenção antrópica na área de estudo. Após relato sobre os problemas vivenciados pela comunidade e a atuação das instituições públicas, busca-se verificar a efetividade das ações dos poderes constituídos e apresentar alternativa ao uso sustentável do referido corpo hídrico. PALAVRAS-CHAVE: Acesso, Água subterrânea, Dominialidade, Direitos, Conflitos. ABSTRACT: This article intends to present the difficulties encountered in the use of groundwater Source Guaribas, for purposes of drinking, discussing legal aspects of dominion in the light of current legislation in the imperial era and of the Federal Constitution, also addressing the environmental aspects of intervention anthropogenic in the study area. After reporting on the problems experienced by the community and the performance of public institutions, we seek to verify the effectiveness of the actions of the constituted authorities and provide sustainable alternative to the of that water resource. KEY-WORDS: Access, Groundwater, Dominion, Rights, Conflicts. 1 INTRODUÇÃO A gestão dos recursos hídricos tem sido um tema palpitante numa época em que a sociedade passa a ter consciência da escassez desses recursos e ao mesmo tempo caminha para a compreensão de que, sendo a água um bem integrante do meio ambiente, o seu acesso passa a ser direito das presentes e também das futuras gerações. 1 Advogada, assessora jurídica do Conselho de Políticas e Gestão do Meio Ambiente, especialista em Direitos Humanos Fundamentais pela URCA, especialista em Gestão Integrada de Recursos Hídricos em Bacias Hidrográficas pela UFC. A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Nesse sentido o acesso a água em especial a água subterrânea em condições que viabilizem a satisfação das necessidades prementes do ser humano, é estudada como um direito humano fundamental. A despeito do tema sentimo-nos instigados a pesquisá-lo, sobretudo pela situação peculiar existente na Região do Cariri, em especial no Município de Crato, visto que os costumes alicerçaram a prática da venda das águas das fontes situadas em terrenos de particulares, através do sistema de mediação denominado “telhas”, o que fez gerar o sentimento social de apropriação dos recursos hídricos e a concretização por ato formal desse sentimento nos cartórios locais. Os antecedentes históricos dessa prática remontam ao ano de 1854 quando foram editadas as resoluções provinciais n.º 640 e 645, ambas de 17 de janeiro de 1854. Considerando que a Constituição de 1988 e a Lei de Política Nacional dos Recursos Hídricos datada de 1997 estabelecem um novo sistema de gerenciamento dos recursos hídricos, onde a apropriação pelo particular é vedada e ao Estado é conferido o poder/dever de gerenciar esses recursos para o bem da coletividade, procuramos confrontar essa nova ordem constitucional e legal ao Código das Águas de 1934 que previa e possibilitava a apropriação, inclusive das águas das fontes, pelo particular. Após a análise dos instrumentos legais buscamos identificar se hodiernamente na região do Cariri, mais precisamente no município de Crato, ainda subsistem conflitos pelo uso das águas das fontes e então nos deparamos com o caso da comunidade residente no Sítio Guaribas. Antes, porém, de discorrer sobre o caso em si direcionamos o trabalho ao estudo da Outorga, visto que, tal instrumento de gestão tem por escopo autorizar o uso dos recursos hídricos nos casos previstos em lei, dentre eles a captação de água subterrânea para fins de abastecimento humano. Analisamos a legislação existente no Estado do Ceará, cuja política estadual de recursos hídricos foi instituída em 1992, ou seja, antes mesmo que o Governo Federal, através do poder competente, editasse a Lei n.º 9.433/97, Lei que instituiu a Política Nacional dos Recursos Hídricos. Compreendidos os aspectos legais e conceituais da outorga, voltamo-nos à análise do caso concreto, que dizia respeito justamente ao embate travado no Sítio Guaribas pelo uso da água da fonte através do sistema de captação de água para fins domésticos. 366 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Esse é o ponto alto do trabalho onde procuramos discorrer sobre as tentativas de resolução do problema extrajudicialmente, inclusive com a instigação do representante do Ministério Público Estadual, o qual tem limitado sua interferência no caso, no âmbito processual, ou seja, nos limites em que a demanda foi proposta em juízo. Buscamos como método de pesquisa fazer levantamento bibliográfico acerca do tema e no que pertine ao caso concreto entrevistar os dirigentes da Associação Prol Desenvolvimento Guaribas, a advogada que acompanha o processo na via judicial e ao mesmo tempo colher dados dentro da comunidade através do método da observação sobre as formas de consecução de água para as necessidades básicas. Visando ainda conhecer a fonte Guaribas fizemos pesquisa junto à Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos – COGERH, para coletar dados referente a vazão e aspectos atinentes ao pedido de outorga formulado pela Associação Guaribas. Da mesma forma fizemos trabalho de campo no Sítio Guaribas com a finalidade específica de conhecer a fonte, medir sua atual vazão e refazer a identificação geográfica usando o aparelho de GPS, todavia, quanto a este último intento não foi possível, visto que o aparelho apresentou defeito. Nesse caso usamos os dados apresentados pela Secretaria de Recursos Hídricos do Estado no instrumento de concessão de outorga. A visita à fonte foi também importante para alertar neste trabalho a situação de degradação ambiental ocorrida naquele espaço fundamental à manutenção do aqüífero. Sem alternativas para executar as atividades domésticas em suas residências, já que não têm água encanada, as mulheres da comunidade usam diretamente a água da fonte para lavar roupas e tomar banho. Verificamos que a área que é instituída por lei como Área de Preservação Permanente tem sido usada de forma insustentável e as marcas deixadas pelos visitantes e usuários é evidente, como os lixos inorgânicos espalhados no entorno da fonte. Essa situação só reforça a necessidade de uma ação urgente dos poderes competentes no que tange ao gerenciamento das águas da fonte guaribas, posto que, a demanda judicial interposta pela comunidade em 2004 até hoje tramita na justiça sem qualquer sinal de que o processo vai chegar ao fim com uma solução que assegure o acesso a água através do sistema de abastecimento nas residências e ao mesmo tempo possibilite o equilíbrio do ecossistema. 367 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições 1.1 Localização geográfica A Fonte Guaribas, objeto do presente estudo, está localizada na Chapada do Araripe, mais precisamente no Município de Crato-CE localizado na região Sul do Ceará e faz parte da Bacia do Rio Salgado. A localização geográfica foi feita com base nos dados fornecidos pela Secretaria dos Recursos Hídricos constantes no instrumento de Outorga e consiste: LAT 9201714, LOG 9201714. A vazão, conforme dados constantes no Relatório Golder Pivot datado de 05/12/2003, é de 2m3/h. 1.2 Aspectos acerca da área de preservação da fonte Guaribas Aos oito de fevereiro de 2008 fizemos uma pesquisa de campo no local da fonte com os técnicos da COGERH2 fazendo a medição baseada no método volumétrico, o que resultou numa vazão de 2,5m3/h. É importante ressaltar que este período da pesquisa ocorreu numa época em que as chuvas têm sido constantes na região, o que pode ter aumentado o volume da vazão em razão da maior recarga do aqüífero. Observamos no decorrer da visita à fonte Guaribas a realização de atividades corriqueiras como lavagem de roupa e banho, em área tida por lei como de Preservação Permanente. Da mesma forma a entrada e a saída constante dos usuários na APP deixa as marcas firmadas por restos de resíduos, lixos, inorgânicos, tais como restos de roupas, plásticos, papel e outros. Indagamos às mulheres ali presentes se não havia outra alternativa para lavar as várias roupas estendidas na vegetação que correspondia à mata ciliar, entretanto, ouvimos a resposta de que nenhuma delas possuía água encanada em casa e que a distância daquela fonte para as suas residências, obrigava-as a trazer o considerável volume de roupas para ser lavada ali mesmo. Indagamos ainda sobre qual a água usada para elas e suas famílias beberem e todas disseram que era daquela fonte. Esse contra-senso em relação a intervenção em area de preservação permanente nos instiga a discorrer sobre as cautelas que devem ser tomadas em relação às áreas de preservação permanente, Calheiros 3 discorre: 2 COGERH é a Companhia de Gestão de Recursos Hídricos do Ceará criada por meio da Lei Estadual n.º 12.217 de 18 de novembro de 1993. 3 CALHEIROS, Rinaldo de Oliveira et al. Preservação e Recuperação das Nascentes. Piracicaba: Comitê das 368 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições A área adjacente à nascente (APP) deve ser toda cerca a fim de evitar a penetração de animais, homens, veículos, etc. Todas as medidas devem ser tomadas para favorecer seu isolamento, tais como proibir a pesca e a caça, evitando-se a contaminação do terreno ou diretamente da água por indivíduos inescrupulosos. Quando da realização de alguma obra ou serviço temporário, deve-se construí fossas secas a 30m, no mínimo, mantendo-se uma vigilância constante para não haver poluição da área circundante à nascente. É curioso pensarmos na aplicação da legislação ambiental acerca da proteção aos recursos hídricos, bem como na efetivação do princípio do Desenvolvimento Sustentável propalado pela Conferência das Nações Unidas ocorrida no Rio de Janeiro em 1992 quando a comunidade não dispõe dos meios necessários para realizar suas atividades diárias no âmbito do lar. É importante lembrar que o acesso à água potável é também pressuposto ao exercício da dignidade humana e que a preocupação com a proteção e defesa do meio ambiente não está dissociada da sadia qualidade de vida a que o ser humano faz jus. 1.3 Conflito pelo uso da água A escassez dos recursos hídricos ou a ineficiência do seu gerenciamento aliada a disparidade social, reflexo do injusto sistema econômico e social que norteia as relações hodiernas, podem gerar conflitos pelo uso da água ou em decorrência deste, comprometer o sagrado direito de acesso ao referido recurso, comprometendo assim a efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana, cerne e fundamento do estado democrático de Direito. Em âmbito nacional se pode citar os reiterados confrontos existentes entre os movimentos oriundos da sociedade civil e os órgãos estatais nos embates relacionados às construções de barragens, para fins de aproveitamento energético do potencial hídrico. Nesse sentido Zen4 relata conflitos existentes nas regiões norte e sudeste do Brasil, ao discorrer sobre o tratamento que as populações ribeirinhas recebem, segundo ele, quando estão organizadas e em luta pela garantia dos seus direitos: [...] Em 2004 uma comunidade inteira atingida pela barragem de Candonga, em Minas Gerais, passou por essa situação. Na Vila de São Sebastião do Soberbo, dezenas de famílias resistiram durante semanas contra as investidas da polícia militar com apoio da Polícia Federal para efetuar o despejo de todos. No final, com aumento do efetivo policial ocupando a vila, as famílias não puderam conter as retroescavadeiras que destruíram suas casas. Perto dali, no dia 08 de março de 2005, 35 pessoas ficaram feridas durante a realização de uma audiência pública para discutir a construção da barragem de Jurumirim, no Município do Rio Casca. Bacias Hidrográficas dos Rios PCJ – CTRN, 2004, p. 24. 4 Direitos Humanos no Brasil, 2005. Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos.2005, p.56. 369 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Mulheres e crianças foram espancadas pela polícia, que também manteve presos por um dia, seis pessoas apontadas como líderes do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). No estado do Pará, tropas do Exército com autorização para agirem como polícia, chegaram a ser utilizadas no mês de março de 2005, para “proteger” as instalações da Usina Hidrelétrica de Tucuruí, Pará, que há duas décadas expulsou duas mil pessoas de suas terras, a maioria sem reparação até hoje. Mais recentemente no dia 05 de outubro de 2005, 50 policiais invadiram e destruíram completamente um acampamento de agricultores próximo ao Rio Canoas, na região atingida pela Barragem de Campos Novos em Santa Catarina. Após esta ação, a tropa dirigiu-se a outro acampamento localizado próximo ao canteiro de obras da usina, onde houve confronto e um agricultor foi preso. No Estado do Ceará, especificamente na região do Cariri os conflitos que envolvem os recursos hídricos decorrem também de uma prática iniciada na época desde 1854, onde se estabeleceu um sistema de alocação de direito de água das fontes, pautado na medição com base na unidade denominada “telhas5”. KEMPER6 cita o exemplo da fonte Batateiras, cujas águas foram apropriadas por particulares em sua maioria, agricultores que moravam ao longo do Rio Batateiras e que concordaram em alocar uma certa quantidade de água para cada propriedade a fim de evitarem os conflitos pelo uso. A prática da venda das telhas d‟água terminou sendo formalizada nos cartórios de registro de imóveis do município, muito embora, tal atitude fosse incompatível a legislação brasileira, visto que já no Código das Águas de 1934, estabelecia que toda água no polígono das secas é de propriedade pública. Em dissertação de Mestrado elaborada por SABIÁ7 identificamos que o cerne da partilha das águas na Região do Cariri antes da edição do Código de 1934 tinha guarida em instrumentos normativos provinciais, mormente, Resoluções Provinciais n.ºs 640 e 645 ambas de 17 de janeiro de 1854. A partir da edição da Resolução Provincial n.º 640 estabeleceu-se horários aos proprietários de terras beneficiadas pela passagem da água da fonte batateiras com o fito de assegurar a todos os foreiros a igualdade de direitos das águas das nascentes, indicada na referida lei, como “patrimônio da Câmara”. No ano seguinte o juiz municipal substituto Afonso de Albuquerque de Melo manda proceder auto de partilha da água do Rio Batateira, alimentado pela fonte batateira, admitindo 5 Telhas: antiga unidade de vazão portuguesa que consiste em um tubo de 18cm de diâmetro com uma inclinação de 1:1000. 6 KEMPER, E. Karin, GONÇALVES, José Yarley de Brito, BEZERRA, Francisco William Brito. Um sistema Local de Gerenciamento e Alocação de Água – O caso da Fonte Batateira no Cariri. 7 SABIÁ, Rodolfo José. Gerenciamento das Fontes do Cariri, uma perspectiva integrada e multidisciplinar, Dissertação de Mestrado UFC. 370 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições de forma expressa e oficial o direito de propriedade das referidas águas. Nesse cenário observamos claramente que o direito de propriedade dos imóveis trazia, na visão jurídica da época imperial, o direito de propriedade das águas oriundas das fontes, gerando o mercado das águas na região do Cariri cearense. Os conflitos, porém, não se restringem apenas ao uso das águas das fontes, uma vez que também na região do Cariri a gestão das águas dos açudes Tomaz Osterne e Manuel Balbino, foi estudado por STUDART8 e “considerado como o caso de maior número de construção de obras hidráulicas ao longo do rio Carás”. Como o foco da pesquisa centra-se na gestão das águas subterrâneas, especificamente água das fontes, faz-se relevante discorrer sobre o caso objeto de estudo. No município de Crato, especificamente no Sítio Guaribas, cuja fonte foi devidamente identificada no item anterior, o conflito fez-se realidade quando oitenta e duas famílias residentes na referida localidade, unidas em associação legalmente reconhecida, lançaram mão dos instrumentos legais com o objetivo de assegurar o acesso a água para abastecimento humano. Segundo Cícero Luciano Ferreira Alves, vice-presidente da Associação em Prol do Desenvolvimento Rural de Guaribas, em 2000, a associação decidiu lutar por melhores condições de vida buscando primordialmente o acesso a água encanada, visto que, os residentes no sítio Guaribas necessitavam do precioso líquido para as necessidades básicas, contudo, só dispunham do acesso a água através de latas d‟água, carrinhos de mão e animais de carga, como o jumento, sendo essa água colhida da Fonte Guaribas, localizada em terreno de propriedade privada. A Associação tomou conhecimento do Projeto São José, cujo objetivo era canalizar água para as famílias carentes das comunidades rurais, e através do então presidente foi buscar os recursos necessários para a implementação. Foram liberados aprovados e liberados pelo Estado R$ 100.694,35 (cem mil seiscentos e noventa e quatro reais e trinta e cinco centavos) com o objetivo de implantar um sistema para captação de água tratada e hidrometrada a partir da perfuração de poço profundo 8 PINHEIRO, Maria Inês Teixeira, CAMPOS, José Nilson B., STUDART , Ticiana M. de Carvalho, SILVA, Arnaldo Pinheiro. Conflito pelo Uso da Água no Estado do Ceará: Estudo de caso do Vale do Rio Carás. Acesso em:07/02/2008 http://www.deha.ufc.br/ticiana/Arquivos/Publicacoes/Congressos/2005/Conflitos_de_uso_da_agua_Ceara_SILU SBA_30_03_2005.pdf 371 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições e com capacidade de beneficiamento de oitenta e duas famílias. Embora a comunidade seja atualmente formada por 120 famílias, segundo dados do Programa de Saúde de Família do Município de Crato, a implementação do Projeto São José iria solucionar o problema de mais da metade da comunidade e a proposta, segundo o atual vice-presidente da associação era expandir com a consecução de mais recursos. Acontece que após três perfurações na localidade Guaribas, a equipe de geólogos da CAGECE9 e da SOHIDRA10, concluíram que não seria possível a captação de água através da perfuração de poços para fins de abastecer a comunidade, visto que os poços perfurados não apresentavam água. A partir de tal constatação e não existindo corpos hídricos mais próximo onde a comunidade pudesse satisfazer as necessidades diárias e vitais, a associação buscou novamente as instituições do Estado ou a ela vinculadas, no intuito de solucionar o problema da falta de água. Foi então que a COGERH e engenheiros da CAGECE, colaboraram no processo identificando as fontes existentes na Chapada do Araripe, chegando então a fonte guaribas, a qual poderia suprir as necessidades vitais das famílias, obedecidas os critérios constantes na Outorga. Instigada a conceder outorga de uso de água da Fonte Guaribas em prol da comunidade, a Secretaria de Recursos Hídricos do Estado concedeu o benefício aos 12 de agosto de 2003. São estes os elementos da Outorga conferida 11: ELEMENTOS DA OUTORGA: VALIDADE: 10 ANOS MODALIDADE DA OUTORGA: Autorização de uso PERÍODO DA OUTORGA: agosto de 2003 a agosto de 20013 VOLUME OUTORGADO: 12000m3 VAZÃO OUTORGADA: 0,36 l/s TEMPO DE APLICAÇÃO DA VAZÃO OUTORGADA: 15 horas/dias 7 dias semana FINALIDADE DO USO DA ÁGUA: Abastecimento humano A outorga tem por escopo assegurar o acesso a água respeitando os aspectos 9 CAGECE é a Companhia de Água e Esgoto do Ceará criada sob a forma de empresa de economia mista por meio da Lei Estadual n.º 9.499 de 20 de julho de 1971. 10 SOHIDRA é a Superintendência de Obras Hidráulicas criada por meio da Lei Estadual n.º 11.380 de 15 de dezembro de 1987 e é vinculada à Secretaria de Recursos Hídricos do Ceará. 11 Dados oriundos do Instrumento de Outorga da Secretaria de Recursos Hídricos do Estado. 372 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições quantitativos e qualitativos e ainda as prioridades estabelecidas na lei de política nacional de recursos hídricos, assim, em princípio a situação apresentada poderia estar resolvida, não fosse pelo impasse que aconteceria em seguida. Ao tentar adentrar na propriedade onde está situada a fonte Guaribas, os moradores, os engenheiros da CAGECE e o empreendedor responsável para realizar um novo levantamento topográfico com vistas a implementação do projeto de captação de água, foram surpreendidos com a resistência do dono do terreno, visto que este alegou, segundo os moradores, ser proprietário da terra onde está situada a fonte de guaribas e já fazer uso da água da mesma para fins de irrigação e, portanto, não permitiria a realização das obras necessárias à captação, visto que isto também causaria impacto ambiental. Gerado o conflito pelo uso da água da fonte guaribas a associação enveredou pelas vias administrativas junto ao Ministério Público local, no intuito de dirimir o problema de forma amigável, não logrando êxito. Por fim ajuizaram ações judiciais acautelatória e ordinária, com a contratação de advogada particular, com o objetivo de ver solucionado o problema. Neste ponto faz-se indispensável discorrer sobre o papel do Ministério Público nas demandas que envolvem interesses de uma coletividade determinada em busca do acesso a um bem juridicamente tutelado e constitucionalmente classificado como bem essencial a sadia qualidade de vida, no caso a água. Não se poderia deixar de questionar o fato de o representante do MPE, cônscio do conflito de interesse envolvendo a questão do acesso a água, ter deixado a comunidade à mercê da situação, quando frustrada as tentativas de acordo junto ao DECON de Crato. Em artigo publicado na Revista do Ministério Público Cearense, o promotor Marcus Vinicius Amorim de Oliveira 12, discorre justamente sobre o poder/dever de intervenção do Ministério Público nos conflitos que têm por escopo “defender a existência de um direito subjetivo de acesso aos recursos hídricos”. Embora trate especificamente da experiência vivida na Comarca de Irauçuba-CE, onde as ligações irregulares na adutora do Açude Jerimum foram o mote para a interposição de ação civil pública, os fundamentos utilizados pelo Promotor e Justiça no caso por ele narrado poderiam também servir de base para a defesa dos interesses da comunidade Guaribas. 12 http://www.acmp-ce.org.br/revista/ano4/n10/artigos02.php acesso em 06/02/2008 373 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Isto porque, dentre outros argumentos citados para robustecer a legitimidade do Ministério Público em impetrar Ação Civil Pública com a finalidade proteger a ordem jurídica e o patrimônio público, e o acesso a água de forma lídima, democrática e justa, são mencionados os arts. 127 e 129 da Constituição Federal que assim exaram: Art. 127 - O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Art. 129 - São funções institucionais do Ministério Público: III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos; Desta feita, parece-nos que a Constituição Federal ao traçar as funções do Ministério Público deixou evidente que os interesses difusos e coletivos, assim como os interesses sociais, isto é, os interesses da coletividade, podem e devem ser defendidos pelo representante do órgão ministerial. Especificamente no caso, objeto de estudo, verifica-se a inércia do representante do MPE, o que impulsionou a associação a buscar a tutela jurídica do Estado por meio de advogada particular. 1.4 A demanda judicial na busca pela pacificação do conflito de interesse O fim do direito, como leciona Ihering13 é a paz, entretanto, o meio que serve para consegui-lo é a luta. Ao referir-se a este instrumento de conquista o autor deixa claro que não quer fazer apologia a discórdia e ao espírito de emulação, mas que invoca a necessidade da luta naqueles casos em que a agressão ao direito representa um desrespeito à pessoa humana. A água como mencionado anteriormente é um bem indispensável à existência e à vida digna, assim sendo e diante da frustração em dirimir o conflito pelo uso de forma extrajudicial, a Associação Guaribas, valendo-se dos instrumentos que o Estado dispõe, legitimamente interpôs Ação Judicial contra o proprietário do imóvel, com o objetivo de conseguir edificar em terreno de sua propriedade obra hidráulica que possibilitasse a captação de água da Fonte Guaribas para abastecimento humano. Em princípio foi ajuizada Ação Cautelar Inominada registrada sob n.º 2003.0012.8042-8 com pedido de liminar com o objetivo de assegurar o uso da água da fonte 13 IHERING, Rudolf Von. A Luta pelo Direito. São Paulo: MartinClaret, 2001. 374 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições pelos moradores, o que foi, segundo o processo consultado, deferido pelo juízo da 4ª vara da Comarca de Crato aos 24/11/2005, tendo sido deixado para a demanda principal a discussão acerca da implantação do sistema de abastecimento de água. Como dita a lei processual civil a interposição de ação cautelar deve ser sucedida no prazo máximo de 30 (trinta) dias contados da efetivação da medida cautelar, de ação principal, sob pena de perda de sua eficácia. 14 Assim, foi interposta perante o mesmo juízo Ação Ordinária registrada sob n.º 2004.0001.6427-9, aos 16 de fevereiro de 2004. Verifica-se no processo referente a ação ordinária, que aos 25 de novembro de 2005, a magistrada da 4ª vara concedeu em sede de antecipação de tutela autorização para a imediata execução e construção do sistema de captação da água da fonte, visto que a advogada da associação juntou aos autos, prova da concessão dos recursos provenientes do Projeto São José, outorga para captação da água para abastecimento humano e ainda laudos dos órgãos ambientais competentes, como IBAMA, COGERH, CAGECE, manifestando-se no sentido de não vislumbrar empecilho de ordem ambiental a execução da obra, ao passo que a SAAEC 15 informou não ter “competência técnica para informar sobre possível impacto ambiental que por ventura ali venha ocorrer”. A questão é que a antecipação de tutela conferida foi condicionada ao pagamento de caução no valor de R$ 78.670,71 (setenta e oito mil seiscentos e setenta reais e setenta e um centavos) pela entidade autora, com base, segunda a excelentíssima juíza no saldo remanescente dos recursos proveniente do Projeto São José e com vistas a assegurar a contracautela ao possível desrespeito às recomendações prescritas no relatório técnico. Segundo a comunidade foi impossível prestar a caução imposta, visto que de tais recursos ela não dispunha. Não é objeto deste trabalho analisar os instrumentos processuais utilizados pela causídica que interpôs as ações judiciais, nem tampouco, adentrar no mérito das decisões firmadas pela juíza ou nos pareceres emitidos pelo representante do MPE já na fase judicial, mesmo porque tal enfoque resultaria numa pesquisa eminentemente processual e doutrinária, ensejando aprofundamento jurídico acerca de reflexões sobre as ações propostas e sobre os atos jurisdicionais praticados. Assim, reportamo-nos aos dias atuais para verificar o andamento do processo. 14 15 ART. 808, I CPC. Fonte: Processo n.º 2003.0012.8042-8 oriundo da 4ª vara da Comarca de Crato-CE, fls. 17. 375 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Aos 28 de novembro de 2007, o Sr. Cícero Luciano Ferreira Lopes, que à época da interposição das ações judiciais era o presidente da associação e, portanto, seu representante legal, foi intimado da seguinte decisão: a parte autora deverá especificar o pedido formulado na petição inicial, ou seja, o pedido feito aos 16/02/2004, e “adequá-lo aos termos da pretensão ordinária, considerando-se, inclusive, o reclamado e decidido em sede cautelar”. Na mesma decisão a digna magistrada enumera os pedidos formulados pelo Promotor de Justiça, os quais vão desde ao pedido de anulação dos atos decisórios realizados no processo antes da citação do requerido, ou seja, anulação dos atos decisórios praticados antes do dia 29/05/2006, data da juntada ao processo da peça de Contestação firmada pelo demandado, até o chamamento ao processo, através de litisconsórcio passivo, dos demais proprietários do imóvel onde se localiza a fonte guaribas, dentre outros pedidos, cuja apreciação a magistrada optou por decidir após a manifestação da parte autora. Em síntese, o processo permaneceu até o final de 2007 sem uma decisão definitiva e a comunidade até a data da pesquisa de campo, isto é, 08/02/2008, permanece sem ter água encanada, valendo-se dos carrinhos de mão para buscar a água da fonte, das latas de água na cabeça e da boa vontade do proprietário do terreno da fonte Guaribas, posto que o direito de propriedade privada assegurado pela constituição, no caso concreto, ainda não encontrou sintonia e equilíbrio com o direito fundamental ao acesso a água para fins de abastecimento humano. Passaram-se, portanto, três anos de demanda judicial, os recursos conseguidos com o Estado através do Projeto São José, tiveram que ser devolvidos em agosto de 2006. Os representantes da Associação alegam que já procuram o Bispo, o Prefeito da cidade, outros promotores de justiça da comarca e várias entidades, contudo, a situação permaneceu sem resolução até a época da pesquisa de campo realizada, não obstante a demanda tenha ganhado espaço na veiculação de jornais e revistas âmbito estadual e nacional. Foi impossível durante mais de quatro anos de batalha judicial, exercitar o lídimo direito de acesso a água de forma digna, através do abastecimento doméstico. Tal situação faz crescer a descrença da comunidade do Sítio Guaribas nas instituições públicas, em especial a última instância por eles procurada, qual seja, o Poder Judiciário. 376 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições CONCLUSÃO O presente artigo prestou-se a apresentar as dificuldades enfrentadas pela coletividade e pelas instituições públicas quanto ao uso de água subterrânea situada em terreno particular para fins de abastecimento humano. O relato partiu da apresentação de um estudo de caso da fonte Guaribas, localizada no Município de Crato-CE. Além do relato acerca do caso foram observados em pesquisa de campo os aspectos ambientais do referido corpo hídrico, assim como o início e desfecho de tentativa de solução do conflito de interesse, analisando-se o papel do Ministério Público na fase extrajudicial e a sua competência para atuar nos conflitos que envolvem interesses difusos e coletivos. Da mesma forma foram analisados os processos judiciais oriundos do litígio pelo uso da água da fonte Guaribas, buscando-se compreender a efetividade das decisões na solução do caso concreto. Da apresentação do caso concreto e da análise no suporte teórico utilizado no decorrer do estudo, infere-se o seguinte: 1) embora as leis ambientais sejam enfáticas quanto a necessidade de proteção e conservação das matas ciliares e da não intervenção na área de preservação permanente, o uso direto da água da fonte Guaribas tem sido feito de forma inadequada com comprometimento qualitativo e quantitativo para o aqüífero, o que evidentemente demanda ação integrada dos órgãos ambientais não apenas na fiscalização, mas também na realização de programas ou projetos de educação ambiental com a comunidade do entorno; 2) o uso sustentável dos recursos naturais, especificamente da água, também está relacionado ao dever do Poder Público em fornecer acesso digno a esse recurso, visto que dele depende também o exercício da dignidade humana; 3) o Ministério Público tem o poder/dever de agir nos conflitos que envolvem comunidades pelo direito de acesso a água visto que a Constituição Federal determinou que é função institucional do mesmo, promover inquérito civil e ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos; 4) a interposição de demandas judiciais para solução do conflito não assegurou a implementação de um sistema de captação da água da fonte Guaribas, nem trouxe à comunidade perspectiva positiva em relação a atuação do Poder Judiciário, tendo sido frustrado o direito de acesso digno a água da comunidade para abastecimento humano; 377 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições 5) o uso pela água das fontes no Estado do Ceará desafia os poderes constituídos, na medida em que não se tem claramente assegurado à população o acesso à água das fontes situadas em propriedade privada, para fins de abastecimento humano. O poder legislativo precisa se sensibilizar e propor a servidão obrigatória para estes casos, a exemplo do já acontece com os proprietários de terras contíguas aos espelhos das águas de açude construídos pelo poder público ou com participação do Estado, como preceituado no art. 325 da Constituição Estadual. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, Guilherme de Assis, Perrone-Moisés (orgs). Direito Internacional dos Direitos Humanos. São Paulo : Atlas, 2002. ARAGÃO, Selma Regina. Direitos Humanos. Rio de Janeiro : Forense, 1990. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro : Campus, 1992. ________, Locke e o Direito Natural. Brasília: Universidade de Brasília, 1997. BOFF, Leonardo. Princípio-Terra: A volta à terra como pátria comum. São Paulo: Ática, 1995. BRASIL, Constituição. Constituição da República Federativa do Brasil, ed. 19ª. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2002. CALHEIROS, Rinaldo de Oliveira et al. Preservação e Recuperação das Nascentes. 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Na sequência é desenvolvida a norma e procedimento de concessão de patentes de OGMs, que se resume ao sistema simplificado determinado pelo Tratado de Cooperação em Matéria de Patentes (PCT), trazendo como exemplo a patente do algodão transgênico Cry1Ab. Diante disso, verificam-se as controvérsias e efeitos negativos dessas patentes, que podem ser visualizados na economia, cultura, meio ambiente e direito do consumidor, os quais são examinados por meio de exemplos fáticos e exame da legislação, para, ao final, concluir pela apropriação indevida dos recursos naturais e seus reflexos éticos. PALAVRAS-CHAVE: Patente, proteção de cultivares, biodiversidade, direito dos agricultores. ABSTRACT: This article discusses the intellectual property of the transgenics in Brazil, throughout documentary and doctrinal research and electronics sites of national government agencies and intergovernmental institutions. The brief introduction about focuses on the Brazilian legislation of intellectual property, including the internationals treaties ratified by the country, with emphasis on the Law of Industrial Property and Law of Cultivar Protection (Plant Act). Follow the introduction, it is shown the rules and procedures to issue patent to the GMOs, which is resumed to a simplified system established by the Patent Cooperation Treaty – PCT. An example of a patent issued to a transgenic cotton (Cry1Ab) is provided. The controversies and negative effects generated by those patents can be verified in economy, cultural, environment and consumer law, which are examined throughout phatic examples and legislation analysis. Raised arguments provide enough evidence to conclude that there are a misappropriation of the natural resources and concerning ethic implications. KEYWORDS: Patent, cultivar protection, biodiversity, farmer‟s rights. * Formada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR). Mestranda em Direito Ambiental na Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Bolsista CAPES. ([email protected]) ** Formado em Agronomia pela Universidade de Passo Fundo (UPF/RS). Mestre em Fitotecnia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Doutorado em Genética pela University of California, Davis (UCDavis, USA) e Bolsista do CNPq ([email protected]) A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições INTRODUÇÃO A biotecnologia, apesar de sugerir ser uma ciência moderna, tem sua origem em conhecimentos primitivos, a exemplo da produção de queijos, vinhos, cervejas e pães. Essa ciência desenvolve-se a partir das técnicas do DNA recombinante, da engenharia genética e demais métodos de melhoramento. De acordo com Rubens Onofre Nodari e Miguel Pedro Guerra (2004, p. 111) a expressão biotecnologia foi utilizada pela primeira vez pelo engenheiro húngaro Karl Ereky, com a finalidade de designar todas as linhas de trabalho pelas quais os produtos são produzidos a partir de uma matéria-prima com a ajuda de organismos vivos. Umas das principais e mais polêmicas criações da biotecnologia foram os organismos geneticamente modificados ou transgênicos, que têm a finalidade de alterar geneticamente plantas, animais e microrganismos, atribuindo-lhes novas características. Entretanto, desde o seu surgimento, os transgênicos foram foco de diversas discussões e incongruências, uma vez que estão envoltos de incertezas científicas, especialmente no que se refere aos efeitos causados ao meio ambiente e à saúde humana, por meio da produção e consumo desses organismos e seus derivados. Os transgênicos também podem ser objeto de pedidos de patentes, garantindo altíssimos lucros aos seus detentores, onerando outros setores, como no caso de patenteabilidade de plantas geneticamente modificadas. Nesse caso, além de arrecadação financeira por meio da venda de sementes, o titular da patente ainda tem o direito de receber royalties pelo uso da tecnologia de que detêm o monopólio. O presente trabalho tem início com uma breve descrição acerca dos organismos geneticamente modificados, com ênfase nas plantas. Além do relato quanto à maneira em que as primeiras sementes transgênicas foram inseridas no Brasil, bem como as variedades que podem ser encontradas nos país, a partir das liberações autorizadas pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança. Em seguida, faz-se uma abordagem histórica acerca da legislação sobre propriedade intelectual no Brasil, incluindo os tratados internacionais, devidamente ratificados e internalizados pela legislação nacional. De forma específica, traz as normas e processamento para a concessão de patentes de transgênicos, a qual se resume no sistema simplificado definido pelo Tratado de Cooperação em Matéria de Patentes (PCT), exemplificando com o pedido de patente do algodão transgênico Cry1Ab. 382 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições A partir da análise legislativa e do procedimento utilizado para a concessão de patentes, são examinados os efeitos e as controvérsias geradas no âmbito econômico, cultural, ambiental e no direito do consumidor, por meio de exemplos fáticos. Para, finalmente, concluir pela apropriação indevida dos recursos naturais, bem como seus reflexos na ética. 1 TRANSGÊNICOS Os transgênicos - também conhecidos por organismos geneticamente modificados ou apenas por sua sigla OGMs - referem-se a plantas, animais ou microrganismos alterados geneticamente, por meio das técnicas do DNA recombinante, sendo-lhes atribuídas novas características, em geral impossíveis de serem adquiridas de forma natural. A primeira divulgação acerca da existência comercial de organismos geneticamente modificados no mundo deu-se em 1978, com a produção em laboratório de insulina humana, a partir das técnicas do DNA recombinante. Desde então diversos foram os microrganismos geneticamente modificados desenvolvidos, contribuindo para diversas áreas, como: indústria farmacêutica, indústria têxtil, polpa de papel e celulose, etc. Quanto aos animais transgênicos sustenta-se a ideia de garantir maior segurança alimentar e benefícios nutricionais, através de animais que produzam leite, carnes e ovos de maior qualidade e de forma acelerada, por exemplo. No entanto, até o momento, os animais transgênicos têm sido obtidos para viabilizar a produção de substâncias de uso terapêutico, no leite ou animais cobaias para fins de pesquisa. Entretanto, os avanços mais significativos e preocupantes surgiram a partir da criação de plantas geneticamente modificadas. No Brasil, as primeiras plantações de soja ocorreram em 1996, por meio de sementes adquiridas de forma clandestina da Argentina, tanto que ficaram conhecidas como “soja maradona”, em homenagem ao jogador de futebol, por serem pequenas, precoces (rapidamente florescem) e argentinas. Agricultores, como Beno Arns, do Rio Grande do Sul, adquiriram as sementes por meio de sua troca - como é culturalmente realizado entre os agricultores - desconhecendo a sua ilegalidade e fruto de polêmicas que ainda estavam por surgir. A partir de denúncias à Polícia Federal, em outubro de 1998, foi feita a primeira apreensão de soja transgênica no Rio Grande do Sul, quando já se estimava que passavam de 30% o total da área irregularmente cultivada em todo o estado (GASPAR, 2003). Após inúmeras polêmicas e a judicialização da soja no Brasil, por meio de medidas em 383 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições 1 caráter de urgência , abriu-se precedentes ao investimento e criação de novas variedades de plantas geneticamente modificadas, tanto que, até agosto de 2010, já foram liberados pela CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança): 5 pedidos de soja transgênica, 6 de algodão transgênico e 12 de milho transgênico 2. Uma das mais recentes variedades de planta transgênica - tolerante a herbicidas (do grupo químico das imidazolinonas) - aprovada pela CTNBio é a chamada soja transgênica brasileira, Soja CV127, desenvolvida pela EMBRAPA Soja em parceria com a alemã BASF, para efeito de liberação no meio ambiente, comercialização, consumo e quaisquer outras atividades relacionadas a esse OGM e progênies dele derivados. Segundo o parecer técnico, “considerando os critérios internacionalmente aceitos no processo de análise de risco de matérias-primas geneticamente modificadas é possível concluir que a Soja CV127 é tão segura quanto seus equivalentes convencionais” 3. Como já mencionado, os transgênicos envolvem plantas, animais e microrganismos, mas devido à polêmica e a variedade de plantas transgênicas liberadas no Brasil (21 estavam registradas em 17/09/20104), este será o principal enfoque deste trabalho, abrangendo, ainda, a contestável legalização de sua patenteabilidade. Tal limitação, como se verá, envolve controvérsias e polêmicas, uma vez que gera o monopólio de minorias empresariais, detentoras de altíssimos lucros. 2 A PROPRIEDADE INTELECTUAL E A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA A Constituição Federal de 1988, de forma genérica, garante o direito de propriedade a todos, nos termos do artigo 5º, caput e inciso XXII5. O atual Código Civil prevê ser proprietário aquele que tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha, nos termos do artigo 1.228, 1 Os plantios de soja transgênica foram legalizados pelo Presidente da República Luís Inácio Lula da Silva, em caráter emergencial, por meio da Medida Provisória 113, de 26 de março de 2003 - convertida na Lei nº 10.688/2003 -, que autorizava o plantio e a comercialização da soja transgênica da safra de 2003. Em ato contínuo, foi sancionada a Medida Provisória 131, de 25 de setembro de 2003 e a Medida Provisória 223, de 14 de outubro de 2004 - convertidas nas Leis nº 10.814/2003 e 11.092/2005, respectivamente -, autorizando o plantio e a comercialização da soja transgênica no Brasil das safras de 2004 e 2005. Essas medidas emergenciais foram por diversas vezes questionadas, pois se tratam de atos que interferem nos direitos de toda a coletividade, que podem trazer prejuízos ao meio ambiente e à saúde humana em longo prazo. 2 Informação encontrada no site da CTNBio: http://www.ctnbio.gov.br/index.php/content/view/12482.html 3 Processo nº 01200.000010/2009-06, deferido na 129ª Reunião Ordinária da CTNBio, em 10 de dezembro de 2009. 4 http://www.agricultura.gov.br 5 CF, art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) XXII – é garantido o direito de propriedade.. 384 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições caput. Ressalte-se, no entanto, que esses dispositivos tratam de norma geral no que se refere à propriedade, sendo ela corpórea ou incorpórea, móvel ou imóvel. O direito à propriedade abrange a propriedade intelectual, a qual se refere tão somente aos bens incorpóreos, também chamados de imateriais. Estes resultam da capacidade intelectual humana e, portanto, não constituem corpo (matéria), não sendo palpáveis e visíveis. A propriedade intelectual, juntamente com o direito do autor, é espécie do gênero propriedade industrial, a qual é considerada pela legislação brasileira como bem móvel 6. O direito de propriedade intelectual foi reconhecido e assegurado no Brasil em 1830, quando D. Pedro I decretou uma lei, em 28 de agosto, concedendo privilégios àquele que conseguisse descobrir, inventar ou melhorar algo útil para a indústria, além de um prêmio a quem o introduzisse na indústria estrangeira. Em 1882, D. Pedro II promulgou a Lei nº 3.129, de 14 de outubro de 1882, que regulava a concessão de patentes aos autores de invenção ou descoberta industrial (INPI, 2007). De acordo com Marcelo Dias Varella (1997) a legislação da propriedade intelectual ganhou relevo com a Convenção de Paris, de 1883, da qual o Brasil é o quarto país signatário. Essa Convenção surgiu da necessidade de proteção internacional da propriedade intelectual, que se tornou evidente quando expositores estrangeiros se recusaram a participar do Salão Internacional de Invenções em Viena, em 1873, porque tinham medo que suas ideias fossem roubadas e exploradas comercialmente em outros países (WIPO, s.d.). Além disso, deu origem ao, hoje, chamado Sistema Internacional da Propriedade Industrial, que tem por objetivo a harmonia internacional dos diferentes sistemas jurídicos acerca da propriedade intelectual. Em 1934 foi promulgado o Decreto nº 24.507, de 29 de junho de 1934, que regulamentava a concessão de patentes de desenho ou modelo industrial, para o registro do nome comercial e do título de estabelecimentos, objetivando reprimir a concorrência desleal. Em 27 de agosto de 1945 foi criado o Código de Propriedade Industrial, pelo Decreto-lei nº 7.903, regulando os direitos e obrigações concernentes à propriedade industrial. E, em 21 de outubro de 1969, por meio do Decreto-lei nº 1.005, o mencionado código passou a estabelecer a proteção dos direitos relativos à propriedade industrial por meio da concessão de privilégios de invenção, de modelos industriais e de desenhos industriais; concessão de registros de 6 Lei nº 9.279/96, art. 5º Consideram-se bens móveis, para os efeitos legais, os direitos de propriedade industrial. Lei nº 9.456/97, art. 2º. A proteção dos direitos relativos à propriedade intelectual referente a cultivar se efetua mediante a concessão de Certificado de Proteção de Cultivar, considerado vem móvel para todos os efeitos legais (...)”. 385 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições marcas de indústria, de comércio e de serviço; de títulos de estabelecimento e de expressões ou sinais de propaganda; repressão a falsas indicações de proveniências e repressão à concorrência desleal. Entretanto, em 21 de dezembro de 1971, foi instituído um Novo Código de Propriedade Industrial, através da Lei nº 5.772 (INPI, 2007). O histórico legislativo, acerca da propriedade industrial no Brasil, teve intensa influência internacional, sendo possível citar alguns tratados, que ratificados pelo país, vieram a integrar a legislação brasileira e o procedimento de patentes, como o PCT e o TRIPS. O PCT - Patent Cooperation Treaty (TCP - Tratado de Cooperação de Patentes) foi estabelecido em 19 de junho de 1970, em Washington (EUA), com o objetivo de desenvolver um sistema de patentes e de transferência de tecnologia (WIPO, s.d.). No Brasil, o PCT só entrou em vigor em 1978 (devido a sua especial importância para o desenvolvimento do tema nesse trabalho, este acordo internacional será trabalhado em capítulo próprio). Já o TRIPS Trade-Related Aspects of Intellectual Property (ADPIC - Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio), resultado da 8ª Rodada do Uruguai do GATT7, realizada no período de 1986 e 19938, representa uma tentativa de regular e proteger bens imateriais no mundo, em razão da expansão da circulação de mercadorias gerada pela globalização da economia, que trouxe como consequência a pirataria. De acordo com o TRIPS, seus membros podem considerar como não patenteáveis as plantas e animais, salvo microrganismos e processos essencialmente biológicos para a produção de plantas ou animais, excetuando-se os processos não-biológicos e microbiológicos. Ainda assim, será concedida a proteção de variedades vegetais, seja por meio de patentes, seja pode meio de um sistema sui generis eficaz ou pela combinação de ambos (artigo 27, item 3, “ b”). Diante do surgimento de normas internacionais acerca da propriedade intelectual, novas interpretações e discussões sobre assunto foram desenvolvidas. Assim, após 5 anos de conflitos e polêmicas, foi aprovada e publicada no Brasil a atual Lei de Propriedade Industrial, Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996 e, posteriormente, a Lei de Proteção de 7 GATT - General Agreement on Tariffs and Trade (Acordo Geral sobre Pautas Aduaneiras e Comércio): foi estabelecido em 1947, com a finalidade de harmonizar as políticas aduaneiras dos Estados signatários. Foi a base da criação da OMC - Organização Mundial do Comércio (WTO - World Trade Organization) com sede em Genebra, na Suíça. Tem por objetivo ajudar os produtores de bens e serviços, exportadores e importadores, à conduzir os seus negócios, através de acordos negociados e assinados pela maioria das nações do mundo comercial (WTO, s.d.). 8 O TRIPS foi incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto nº 1.355, de 30 de dezembro de 1994. 386 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Cultivares, Lei nº 9.456, de 25 de abril de 1997. Essas duas normas fundamentam as espécies de proteção intelectual admitidas no Brasil: proteção por patentes e proteção por cultivares. Tais normas são apresentadas como importantes instrumentos de proteção ao acesso à “biodiversidade” brasileira 9. Todavia, o próprio texto legislativo afirma que a proteção dos direitos relativos à propriedade industrial (que engloba a propriedade intelectual, conforme já mencionado), por meio destes instrumentos, considera o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do país (art. 2º, Lei nº 9.279/96), não sendo mencionado em quaisquer de seus dispositivos, de maneira expressa, a finalidade de proteção à biodiversidade. Diante dos efeitos visualizados na prática, especialmente quando relacionados às patentes de plantas transgênicas, subsiste a falsa ideia de proteção à biodiversidade, verificase o predomínio dos interesses econômicos das minorias (multinacionais detentoras dessa tecnologia) e privilégios comerciais, resultando no monopólio de plantações de certas variedades. A Lei de Propriedade Industrial permite apenas a patente de microrganismos geneticamente modificados, sendo inadmissível que plantas e animais, ou parte destes, venham a ser apropriados por meio das patentes. Neste sentido prevê o artigo 18 da Lei nº 9.279/96 que: Art. 18. Não são patenteáveis: (...) III - o todo ou parte dos seres vivos, exceto os microorganismos transgênicos que atendam aos três requisitos de patenteabilidade - novidade, atividade inventiva e aplicação industrial - previstos no art. 8º e que não sejam mera descoberta. Parágrafo único. Para os fins desta Lei, microorganismos transgênicos são organismos, exceto o todo ou parte de plantas ou de animais, que expressem, mediante intervenção humana direta em sua composição genética, uma característica normalmente não alcançável pela espécie em condições naturais. Conforme a lei expressamente prevê, para obter o título de proteção por patente é 9 Nesse sentido, a seguinte citação: “As principais normas referem-se à proteção intelectual, dando ensejo ao patenteamento de microrganismos transgênicos e à legislação de proteção de cultivares, uma forma sui generis de propriedade intelectual, para plantas; referem-se ainda à biossegurança, no tocante à segurança biológica, tanto em âmbito laboratorial quanto para liberação de organismos geneticamente modificados no meio ambiente; referem-se, enfim, ao acesso à biodiversidade brasileira, um dos temas mais importantes ao se tratar do desenvolvimento sócio-econômico de países pobres, mas ricos em biodiversidade, no próximo século”. (VARELLA, 1997) 387 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições necessário preencher os seguintes requisitos: novidade, atividade inventiva e aplicação industrial. Portanto, para que algo possa ser objeto de patente, ele deve corresponder a uma invenção destinada a um processo industrial, tendo uma aplicação prática. Essa invenção (atividade inventiva) será considerada nova (novidade), quando não estiver compreendida no estado da técnica, ou seja, não estiver acessível ao público antes da data de depósito do pedido de patente (art. 11, §1º, Lei nº 9.279/96). A respeito da patente de microrganismos, Marcelo Dias Varela (1997) conclui que se o pesquisador simplesmente identifica, isto é, isola um microrganismo que já existia na natureza, ele está apenas o descobrindo. Mas, se alterar geneticamente e chegar a um novo ser (um novo ser vivo) - que não existia antes e que não viria a existir com a evolução natural das espécies - será considerado invenção. Ressalte-se que a própria Lei de Propriedade Industrial define os microrganismos transgênicos como organismos, de forma genérica. Entretanto, não traz qualquer conceito de fácil entendimento aos operadores do direito. Tratando-se de organismos geneticamente modificados, abrangidos pela ciência denominada biotecnologia moderna, a lacuna deixada pela Lei de Propriedade Industrial poderia ser preenchida com o conceito definido pela Lei de Biossegurança, a qual define organismo como “toda entidade biológica capaz de reproduzir ou transferir material genético, inclusive vírus e outras classes que venham a ser conhecidas” (art. 3º, I, Lei nº 11.105/2005)10. Além da proibição do artigo 18, transcrito acima, também é possível mencionar outra limitação determinada pela Lei de Propriedade Industrial, prevista no artigo 10, IX, que afirma não ser considerada invenção (nem modelo de utilidade) “o todo ou parte de seres vivos naturais e materiais biológicos encontrados na natureza, ou ainda que dela isolados, inclusive o genoma ou germoplasma de qualquer ser vivo natural e os processos biológicos naturais”. Apesar dessa proibição de patenteabilidade das plantas, o ordenamento jurídico brasileiro, adotando um sistema sui generis, traz norma específica ao setor agrícola, através da proteção de cultivares11, admitida pela, já mencionada, Lei nº 9.456/97. Segundo este diploma 10 É relevante mencionar que a antiga Lei de Biossegurança, Lei nº 8974/1995 (em vigor antes da publicação da Lei de Propriedade Industrial) já definia organismo como “toda entidade biológica capaz de reproduzir e/ou de transferir material genético, incluindo vírus, príons e outras classes que venham a ser reconhecidas” (art. 3º, I). 11 O conceito de “cultivares” pode ser retirado da própria legislação, qual seja: a variedade de qualquer gênero ou espécie vegetal superior que seja claramente distinguível de outras cultivares conhecidas por margem mínima de descritores, por sua denominação própria, que seja homogênea e estável quanto aos descritores através de gerações sucessivas e seja de espécie passível de uso pelo complexo agroflorestal, descrita em publicação 388 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições legal, para que o titular tenha o direito de proteção também é necessário que cumpra alguns requisitos, tais como: distinguibilidade, denominação própria, homogeneidade e estabilidade. Esses requisitos são avaliados a partir de “descritores” que concentram um conjunto de características suficientes para descrever uma cultivar específica. Neste sentido, Marcelo Dias Varella (1997) afirma que: A planta deve ser claramente distinta das demais cultivares conhecidas, o que é verificado pelo seu conjunto de descritores. Assim, é essencial que a diferença com relação à cultivar de que se pede a proteção seja claramente distinta para evitar que se modifique alguma característica insignificante da planta e se obtenha a proteção. Estável é a planta que, "reproduzida em escala comercial, mantenha a sua homogeneidade através de gerações sucessivas". Logo, se a produtividade da planta cai rapidamente, como nos híbridos, a cultivar não é estável e, portanto, não pode ser protegida. Em suma, as duas modalidades, apesar de parecerem semelhantes, apresentam características que as distinguem, sendo estas sintetizadas no quadro abaixo: PROTEÇÃO POR PATENTES PROTEÇÃO DE CULTIVARES Requisitos para a proteção: novidade, Requisitos para a proteção: distinguibilidade, atividade inventiva e aplicação industrial. denominação própria, homogeneidade e estabilidade. Responsável pela administração das patentes: Responsável pela administração do registro: INPI, vinculado ao Ministério da Indústria e Ministério da Agricultura. Comércio. Não admite o desenvolvimento de pesquisas Admite que se desenvolvam pesquisas a a partir de uma variedade protegida, sem a partir de uma variedade protegida, sem a autorização do titular da patente. autorização do seu titular. Proíbe-se a formação de campos de replantio Permite o uso de campos de replantio para para a formação de sementes pelo agricultor. formação de sementes pelo agricultor. Todo e qualquer agricultor que utilize o Isenta os pequenos agricultores do objeto da patente, deve pagar royalties por pagamento dos direitos de propriedade direito de propriedade intelectual. intelectual. especializada disponível e acessível ao público, bem como a linhagem componente de híbridos (art. 3º, IV, Lei nº 9.456/97). 389 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável: relatos e proposições Prazo de proteção: prazos variáveis. Em Prazo de proteção: 20 anos geral, 15 anos – exceto videiras, árvores frutíferas, árvores florestais e árvores ornamentais. De qualquer forma a proteção de patentes e a proteção de cultivares estão muito próximas em sua essência, pois ambas garantem o monopólio da comercialização do produto protegido, ao titular da proteção. Ocorre que, o texto das leis em análise é criticado pelos operadores do direito, ante a falta de uma disciplina jurídica sistêmica, no seguinte sentido: No contexto das normas disciplinadoras da propriedade intelectual, verifica-se que a proteção da Biotecnologia encontra-se prevista tanto na Lei de Propriedade Industrial, quanto no contexto da Lei de Proteção de Cultivares. Sendo assim, não existe uma disciplina jurídica sistematizada e nem sistemática, no referencial normativo para a proteção da Biotecnologia. As normas ou os dispositivos encontram-se esparsos, o que dificulta para o aplicador do direito compreender a forma pela qual a proteção da biotecnologia se efetiva no País. Além do mais, conforme verificado, as incidências de termos inerentes à Biologia no contexto normativo, culminam por dificultar o trabalho do profissional do direito. (NERO, 2005, p. 359) Além da mencionada legislação, específica acerca da propriedade intelectual, a atual Lei de Biossegurança (Lei nº 11.105/2005) determina a proibição de patentes de tecnologias genéticas de restrição d