A EFETIVAÇÃO DO DIREITO DE PROPRIEDADE PARA O

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Coordenadores
Marcos Wachowicz
João Luis Nogueira Matias
A EFETIVAÇÃO DO DIREITO DE
PROPRIEDADE PARA O
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL:
relatos e proposições
Fundação Boiteux
Florianópolis
2010
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
D598 A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
[Recurso eletrônico] / Marcos Wachowicz, João Luis Nogueira Matias
(coordenadores). – Florianópolis : Fundação Boiteux, 2010.
1 CD-ROM
Inclui bibliografia
ISBN: 978-85-7840-020-0
1. Direito de propriedade. 2. Direito ambiental. 3. Empresas – Ética
profissional. 4. Economia – Aspectos morais e éticos. 5. Meio ambiente.
I. Wachowcz, Marcos. II. Matias, João Luis Nogueira.
CDU: 347.78
Catalogação na publicação por: Onélia Silva Guimarães CRB-14/071
Editora Fundação Boiteux
Conselho Editorial
Luiz Carlos Cancellier de Olivo
João dos Passos Martins Neto
Eduardo de Avelar Lamy
Horácio Wanderley Rodrigues
Miriam Marques Moreira Reibnitz
Secretária executiva
Thálita Cardoso de Moura
Capa, projeto gráfico
Studio S
Diagramação e revisão
Germana Parente Neiva Belchior
[email protected]
Endereço
UFSC – CCJ - 2º andar – Sala 216
Campus Universitário – Trindade
Caixa Postal: 6510 – CEP: 88036-970
Florianópolis – SC
E-mail: [email protected]
Site: www.funjab.ufsc.br
2
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
SUMÁRIO
PREFÁCIO.................................................................................................................................................................8
PARTE I – PROPRIEDADE..................................................................................................................................10
CONSIDERAÇÕES QUANTO À GERAÇÃO DE ENERGIA NO BRASIL E SUA REPERCUSSÃO NOS
DIREITOS CONSTITUCIONAIS NA PROPRIEDADE, MORADIA E MEIO AMBIENTE................................11
Alfredo Chaia Mattos Neves
Natália Cardoso Marra
NOVOS PARADIGMAS DA CONSTRUÇÃO CIVIL NO SÉCULO XXI: PELA IMPLEMENTAÇÃO DE
POLÍTICAS PÚBLICAS DE INCENTIVO ÀS CONSTRUÇÕES VERDES........................................................ 28
Ana Afif Mateus Sarquis Queiroz
Fernanda Castelo Branco Araújo
O IPTU PROGRESSIVO NO TEMPO E OS PRINCÍPIOS DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E DA
PRESERVAÇÃO DO MEIO AMBIENTE...........................................................................................................51
Carlos Araújo Leonetti
IPTU AMBIENTALMENTE ORIENTADO: UMA ANÁLISE SOB A PERSPECTIVA CONSTITUCIONAL A
PARTIR DA PROPOSTA DE REFORMA TRIBUTÁRIA AMBIENTAL (PEC 353/2009)....................................65
Carolina Sena Vieira
Flávia Koerich Mafra
Ubaldo César Balthazar
A EXPANSÃO URBANA E A INFLUÊNCIA NAS ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS: O CASO DE
FORTALEZA............................................................................................................................................................85
3
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Daniela Maia Saboia Moura
Armando Elísio Gonçalves Silveira
É O FUTEBOL UM BEM CULTURAL IMATERIAL? UMA ANÁLISE CRÍTICA DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA
AMBIENTAL Nº 994.09.013383-3.........................................................................................................................110
David Barbosa de Oliveira
TRIBUTAÇÃO AMBIENTAL: POSSIBILIDADES DE INTERVENÇÃO NAS DIRETRIZES DA POLÍTICA
NACIONAL DOS RESÍDUOS SÓLIDOS.............................................................................................................125
Denise Lucena Cavalcante
Iasna Chaves Viana
PATRIMÔNIO NATURAL DA HUMANIDADE NO BRASIL............................................................................147
Elizabeth Alice Barbosa Silva de Araújo
CIBERESPAÇO E PROPRIEDADE INTELECTUAL: COMO PROMOVER UM DESENVOLVIMENTO
SUSTENTÁVEL DA INFORMAÇÃO?.................................................................................................................168
Eulália Emília Pinho Camurça
O USO, A OCUPAÇÃO E O CONTROLE DA PROPRIEDADE URBANA: NOVAS PERSPECTIVAS SOBRE
UM VELHO TEMA................................................................................................................................................181
Fernando da Conceição Raposo
O PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DA FUNÇÃO SOCIAL DA
PROPRIEDADE......................................................................................................................................................191
Germana Parente Neiva Belchior
Ana Carolina Aguiar Carneiro
A DIMENSÃO AMBIENTAL DA PROPRIEDADE PRIVADA...........................................................................210
Giselle Marques de Araújo
4
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
O CONDOMÍNIO COMO PARADIGMA? MEIO-AMBIENTE, REGIÕES URBANAS E FEDERAÇÕES
ESTATAIS: SUSTENTAR E RESPONSABILIZAR A PARTILHA.................................................................... .232
Paulo Castro Seixas
O DIREITO DE PROPRIEDADE SOB O VIÉS GARANTISTA..........................................................................250
Sérgio Urquhart Cademartori
Isabela Souza De Borba
PARTE II – MEIO AMBIENTE...........................................................................................................................274
A IMPORTÂNCIA DA PROTEÇÃO DA BIODIVERSIDADE BRASILEIRA PARA GARANTIR O ACESSO À
SAÚDE....................................................................................................................................................................275
Denise Almeida de Andrade
Tarin Cristino Frota Mont'alverne
A CONVERGÊNCIA ENTRE OS DIREITOS DE PROPRIEDADE E AO MEIO AMBIENTE SADIO: A
CESSÃO DE USO DAS ÁGUAS DA UNIÃO PARA A PRODUÇÃO DE PESCADO NO BRASIL.................280
João Luis Nogueira Matias
João Felipe Nogueira Matias
CONCENTRAÇÃO DE RENDA, ACESSO À PROPRIEDADE E SUBDESENVOLVIMENTO: UM OLHAR
SOBRE A AGRICULTURA FAMILIAR NO BRASIL..........................................................................................303
Juliana Cristine Diniz Campos
O POVO INDÍGENA ANACÉ E O COMPLEXO INDUSTRIAL E PORTUÁRIO DO PECÉM: TESSITURAS
SOCIOAMBIENTAIS DE UM “ADMIRÁVEL MUNDO NOVO”......................................................................318
Luciana Nogueira Nóbrega
Martha Priscylla Monteiro Joca Martins
SERVIÇOS AMBIENTAIS, POPULAÇÕES TRADICIONAIS E ECONOMIA AMBIENTAL: PROJETO DE
LEI
FEDERAL N°
5586/2008
QUE
TRATA DOS
PROJETOS
DE
REDD
E
O
EXEMPLO
AMAZONENSE......................................................................................................................................................344
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A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Luís Pedro Oliveira S. Rodrigues
OS CONFLITOS RESULTANTES DO USO DA ÁGUA DAS FONTES SUBTERRÂNEAS PARA
ABASTECIMENTO HUMANO: ESTUDO DE CASO DA FONTE GUARIBAS EM CRATO-CE...................365
Márcia Maria dos Santos Souza
A PROPRIEDADE INTELECTUAL DOS TRANSGÊNICOS NO BRASIL.......................................................381
Patrícia Santos Précoma Pellanda
Rubens Onofre Nodari
O COMÉRCIO INTERNACIONAL DE CRÉDITOS DE CARBONO.................................................................413
Renata de Assis Calsing
A
FUNÇÃO
AMBIENTAL
DA
PROPRIEDADE
COMO
GARANTIDORA
DOS
DIREITOS
FUNDAMENTAIS..................................................................................................................................................430
Sarah Carneiro Araújo
Tarin Cristino Frota Mont'alverne
TERRA, ÁGUA E PODER: A CONCENTRAÇÃO FUNDIÁRIA E HÍDRICA NO SEMIÁRIDO BRASILEIRO
COMO ORIGEM DOS CONFLITOS SOCIAIS ...................................................................................................448
Stella Maris Nogueira Pacheco
Francisco Carlos Mourão Neto
TERRA INDÍGENA E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL.......................................................................469
Thais Luzia Colaço
A INTERFERÊNCIA DO ZONEAMENTO AMBIENTAL NO DIREITO DE PROPRIEDADE EM PROL DO
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL DAS CIDADES..................................................................................484
Thalita Maria Tomaz de Sousa
Ana Jamille Tomaz Viana
Mirna Nunes Mineiro
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A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
PRÁTICAS
ECONÔMICAS
SOLIDÁRIAS:
UMA
FACETA
DO
DESENVOLVIMENTO
SUSTENTÁVEL.....................................................................................................................................................500
Theresa Rachel Couto Correia
Monique Tavares de Figueiredo
A PROPRIEDADE URBANA E A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA SOB O ENFOQUE SUSTENTÁVEL:
CONTORNOS PRÁTICOS NA LEI N° 11.977/09 NO ÂMBITO DE CURITIBA/PR.........................................513
Vivian Carolina Koerbel Dombrowski
A FUNÇÃO SÓCIO-AMBIENTAL DA PROPRIEDADE AGRÁRIA ANTE O DESENVOLVIMENTO
SUSTENTÁVEL.....................................................................................................................................................540
William Paiva Marques Júnior
7
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
PREFÁCIO
A obra “A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições” é resultado das discussões realizadas durante o IV Simpósio
Internacional de Propriedade e Meio Ambiente e o IV Encontro Temático do Projeto
Casadinho. O evento reuniu em Fortaleza pesquisadores dos Programas de Pós-Graduação em
Direito da Universidade Federal do Ceará e da Universidade Federal de Santa Catarina, bem
como convidados de outras instituições parceiras do Brasil e de Portugal.
Estamos no sexto e último livro oriundo do Projeto Casadinho, financiado pelo CNPQ,
cujos trabalhos demonstram a necessária convergência entre o direito de propriedade e o
direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Os três primeiros foram produtos dos
eventos anteriores, o quarto na temática de Tributação Ambiental e o quinto, publicado
recentemente, como resultado do primeiro Workshop Internacional com o título “Propriedade e
Meio Ambiente: da inconciliação à convergência”, ocorrido em dezembro deste ano, no
Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa (ISCSPUTL).
O presente ivro foi dividido em duas partes de acordo com o enfoque dado pelos
autores: na primeira, encontram-se reunidos os estudos com uma maior evidência no Direito
de Propriedade e, no segundo momento, são contemplados os trabalhos com predominância no
Direito Ambiental.
Os pesquisadores apresentam resultados práticos dos estudos
desenvolvidos ao longo dos dois anos do Projeto Casadinho, o que demanda uma relação
inafastável entre os direitos de propriedade e ao meio ambiente sadio.
Todos as metas invocadas no projeto inicialmente aprovado pelo CNPQ foram
conquistadas. O Programa não consolidado (UFC) obteve conceito 4 na última avaliação
realizada pela CAPES,
bem como o Programa consolidado (UFSC) retrata maturidade
internacionalmente reconhecida. Aliás, os resultados do Projeto foram além do esperado,
assumindo efeitos além mar, o que estimula os pesquisadores à continuidade da pesquisa.
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A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Que possamos comemorar o sucesso do “casamento” da tradição do Programa de PósGraduação em Direito da UFC com a maturidade do Programa de Pós-Graduação em Direito
da UFSC.
João Luis Nogueira Matias
Professor do Curso de graduação e Pós-graduação em
Direito na Universidade Federal do Ceará – UFC
Marcos Wachowicz
Professor do Curso de graduação e Pós-graduação em
Direito na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC
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PARTE I
PROPRIEDADE
CONSIDERAÇÕES QUANTO À GERAÇÃO DE ENERGIA NO BRASIL E SUA
REPERCUSSÃO NOS DIREITOS CONSTITUCIONAIS DA PROPRIEDADE,
MORADIA E MEIO AMBIENTE
Alfredo Chaia Mattos Neves1
Natália Cardoso Marra 2
RESUMO: O Brasil é um país privilegiado naturalmente e possui várias fontes de geração de
energia. Ocorre que a produção nacional de energia elétrica se baseia em usinas hidrelétricas.
A construção dessas usinas implica em grande impacto sócio-ambiental, visto que a
desapropriação de enormes terrenos ocasiona a perda da propriedade, da moradia e da
identidade de várias famílias, além da submersão de áreas naturais. A vasta utilização do
instrumento da desapropriação, mediante a outorga da Agência Nacional de Energia Elétrica,
sob o argumento da utilidade pública, acaba por desestimular, de certa forma, a pesquisa que
promova o desenvolvimento de formas alternativas de energia que prejudiquem em menor
extensão os direitos sociais, humanos e constitucionais. Esse trabalho visa descrever a
situação atual do Brasil quanto a produção de energia, os direitos à propriedade e ao meio
ambiente e o instrumento da desapropriação, para, a partir da conceituação e descrição desses
sob a ótica do princípio da sustentabilidade, demonstrar a necessidade de mudanças no
arcabouço jurídico e político brasileiro.
PALAVRAS-CHAVE: Desapropriação; Utilidade pública; Propriedade; Meio ambiente;
Energia.
ABSTRACT: Brazil is a country naturally privileged and have multiple sources of power
generation. Occurs that domestic production is based on hydropower. The construction of
these plants requires a large socio-environmental impact because the expropriation of land
caused the enormous loss of property, housing and identity for several families, including the
sinking of natural areas. The extensive use of the instrument of expropriation, including
directly by the National Agency of Electrical Energy, on the grounds of public utility
ultimately discourage research that promotes the development of alternative energy sources
that harm to a lesser extent the social, human and constitutional. This paper aims to describe
the current situation in Brazil regarding energy production, property rights and the
environment and the instrument for the expropriation from the conceptualization and
description of these from the perspective of the sustainability principle to demonstrate the
need for changes in legal framework Brazilian politician.
1
Advogado da Omega Energia Renovável S.A. Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais - PUC Minas. Especialista em Direito Processual pelo Instituto de Educação Continuada - IEC da
PUC Minas. E-mail: [email protected].
2
Advogada, Especialista em Administração Pública e Gestão Urbana pela PUC Minas e em Direito Ambiental
pelo CAD, pesquisadora do grupo de planejamento urbano participativo do Núcleo Jurídico de Políticas Públicas
da PUC Minas, coordenado pela professora Marinella Machado Araújo, estudante do 2o período do curso de
Geografia do UNI BH, mestranda em Processos Políticos Sociais, Articulações Interinstitucionais e
Desenvolvimento Local do Centro Universitário UNA. E-mail: [email protected]
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
KEY-WORDS: Expropriation; Utilities; Property; Environmental; Energy.
1 PROPEDÊUTICA
A Declaração Universal dos Direitos Humanos dispõe no seu artigo XVII que toda
pessoa tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros, e que ninguém será
arbitrariamente privado da sua.
O instituto jurídico da desapropriação é um instrumento utilizado pela Administração
Pública para a aquisição de imóveis mediante a saída compulsória de pessoas das suas
respectivas propriedades e o pagamento de indenização justa.
À primeira vista, a leitura dos parágrafos acima retrata um paradoxo. Um direito
fundamental sendo lesado por uma norma constitucional, principalmente porque a
Constituição da República de 1988 - CR/88 trata, em seu artigo - art., 5o tanto da garantia do
direito de propriedade quanto da possibilidade de desapropriação nos casos previstos em lei.
Em casos de utilidade pública, por exemplo, pode-se ocorrer a desapropriação de uma
propriedade particular para e implementação de um benefício em prol da coletividade. Porém,
por vezes, a utilidade pública deverá ser sopesada diante das condições factuais, sejam elas
sociais, ambientais, econômicas e/ou políticas.
Na atualidade, já foram desenvolvidas várias formas de geração de energia limpa e
sustentável. No Brasil, de um modo geral, a energia é produzida por hidrelétricas, e para a
construção de hidrelétricas, podem ser inundadas enormes áreas onde existem residências,
cidades inteiras, atividades agropecuárias e áreas de mata com grande diversidade biológica.
A luta de proprietários contra desapropriações em determinadas áreas pode salvar a
devastação de florestas e o habitat de animais silvestres, além de incentivar o
desenvolvimento sustentável de energia, por meio de investimentos em novas metodologias
de geração de eletricidade.
Esse trabalho visa caracterizar a desapropriação, a propriedade, a utilidade pública e a
relevância do meio ambiente no contexto atual, de modo a possibilitar reflexões no campo da
produção de energia elétrica no país.
2 A GERAÇÃO DE ENERGIA ELÉTRICA NO BRASIL
O Brasil é um país privilegiado, pois nele se encontram as mais diversas matérias
primas e muitos recursos naturais. Ocorre que a exploração desses recursos e matérias primas
12
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
acaba muitas vezes ocorrendo de modo a não possibilitar a preservação da natureza.
As maiores geradoras de energia no Brasil são as centrais hidrelétricas. Existem cerca
de 866 usinas em operação, onde é gerada 76,09% de toda a energia do país (ANEEL, 2008).
Ainda que existam outras formas de se gerar energia elétrica (biomassa, gás natural, eólica,
dentre outras) estas todas juntas produzem menos que a metade da energia elétrica produzida
por hidrelétricas.
Esse é um processo histórico. Devido ao potencial hídrico do país, ao grande número de
rios e volume de água, tradicionalmente a produção de energia foi pautada na instalação de
centrais hidrelétricas. O grande problema da construção dessas usinas é a quantidade de
terrenos que são submersos por represamento de água. Cidades inteiras podem desaparecer do
mapa, milhares de pessoas e animais têm que ser removidos, incontáveis espécies de plantas
correm o risco de desaparecerem sob as águas.
O impacto sócio-ambiental dessas centrais pode ser enorme, e deve ser controlado. Para
tanto, deve-se melhor trabalhá-lo, pois identidades são perdidas a partir da remoção de
pessoas.
2.1 Possibilidades de geração de energia elétrica limpa
Como já dito, o Brasil, com dimensões continentais, possui uma vasta amplitude de
fontes naturais capazes de gerar energia elétrica. Essencial ao desenvolvimento econômicosocial do país, o acesso à energia elétrica já é realidade para aproximadamente noventa por
cento da população brasileira 3, e o governo brasileiro, em todas as suas esferas (federal,
estadual e municipal), vem envidando esforços para que se aumente cada vez mais este
percentual.
Para tanto, necessária foi, e será, a criação de formas institucionais e programas de
incentivo capazes de viabilizar o investimento na geração de energia elétrica em todas as suas
possibilidades - mediante a utilização dos potenciais hídricos, eólicos, do petróleo e seus
derivados, da biomassa, do urânio, dentre outras fontes possíveis de se gerar energia elétrica.
Destaca-se, portanto, a predominância de fontes de energia primária, aquelas provenientes de
fontes naturais. Mesmo assim, em dados fornecidos pela EPE - Empresa de Pesquisa
Enérgica, vinculada à ANEEL - Agência Nacional de Energia Elétrica, aproximadamente 8%
da energia elétrica consumida no Brasil, em 2009, foi produzida em outros países e
importada; energia esta também primária (EPE, 2010, p.14).
3
Disponível em: cgu.unicamp.br/energia2020/papers/paper_Poppe.pdf Acesso dia: 14/09/2010
13
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Dentro deste panorama, sabe-se que a energia elétrica hidráulica, ou seja, gerada a partir
de água doce, dos cursos de água, corresponde, repita-se, a 76,9% de toda a energia gerada e
ofertada no território brasileiro (EPE, 2010, p.14). Tal dependência cria uma série de
preocupações, sejam elas econômicas, sociais e/ou ecológicas, mas destaca-se por uma
produtividade, pode-se dizer, limpa de energia elétrica.
Com o advento do século XXI, iniciou-se uma consciência pela utilização de fontes
renováveis limpas para a geração de energia elétrica, haja vista os impactos ambientais
irreversíveis causados por aquelas que não renováveis, findáveis na natureza, tais como as
provenientes da combustão do gás natural, do metano, do carvão, do diesel e outros derivados
de petróleo, que liberam imensas quantidades de gás carbônico, dentre outros elementos
extremamente tóxicos.
As fontes renováveis limpas assim são denominadas por serem provenientes de matéria
prima que possibilita a sua utilização por diversas vezes em uma cadeia de geração de energia
elétrica, e/ou que permita reiterada vezes a sua utilização, e, principalmente, por não lançarem
no meio ambiente gases ou resíduos tóxicos, capazes de prejudicar o meio ambiente em todas
e quaisquer qualidades.
No caso da energia elétrica hidráulica, propiciada pelas hidrelétricas, as águas, que
atravessam as turbinas e fazem gerar a energia, retornam aos seus lugares de origem por meio
de condensação e liquefação, ou seja, evaporam, transformando-se em nuvens, produzindo-se
chuvas. Não só isso, mas utilizando-se somente da forca mecânica produzida pela água, as
hidrelétricas possuem a vantagem ambiental de emitir nenhum resíduo, ou gás tóxico.
Contudo, podem trazer diversas repercussões ambientais, até mesmo no que concerne à
propriedade de terras, pois afetam áreas cuja ocupação humana se tornam um fator crítico.
2.2 Das Centrais Hidrelétricas
A construção de uma central hidrelétrica é um processo por demais complexo, que
envolve diversas áreas do conhecimento em prol de um único sentido: gerar energia elétrica
dentro dos padrões legais. E a complexidade variará principalmente pela potência de energia
gerada correspondente á central hidrelétrica:
A Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) adota três classificações: Centrais
Geradoras Hidrelétricas (com até 1MW de potência instalada), Pequenas Centrais
Hidrelétricas (entre 1,1 MW e 30 MW de potência instalada) e Usina Hidrelétrica de
Energia (UHE, com mais de 30 MW). (ANEEL, 2008, p. 53)
14
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Essa classificação interfere diretamente em outra, que se identifica pela existência ou
não de reservatório; este, depende inteiramente da topografia local. Para a construção de uma
hidrelétrica, seja ela em qualquer de suas potências acima explanadas, necessário é o estudo
das condições do rio cuja instalação será realizada. Tal estudo é denominado como inventário,
melhor, estudo de inventário hidrelétrico.
O Estudo de Inventário Hidrelétrico é a etapa em que se determina a melhor forma
de aproveitamento do potencial hidrelétrico de uma bacia hidrográfica ao estabelecer
a melhor divisão de queda, aquela que propicie um máximo de energia ao menor
custo, associado a um mínimo de efeitos negativos sobre o meio ambiente e
considerando uso múltiplo da água. Isso corresponde ao aproveitamento ótimo do
potencial hidráulico tratado no § 3º do art. 5º da Lei nº 9.074, de 07 de julho de
1995.(SUGAI, SANTOS JUNIOR, MACHADO, xxx)
A partir de então, será possível identificar qual tipo de reservatório, se é que o mesmo
seja necessário, será adotado na construção da respectiva hidrelétrica. Pois bem, aqui se
adentra na maior problemática ambiental desses tipos de empreendimentos geradores de
energia elétrica, uma vez que, para a construção de um reservatório, seja ele de qual tamanho
for, afetar-se-á as propriedades ribeirinhas, que serão inundadas nos limites dos projetos de
construção do empreendimento.
Quando não há população nessas regiões, as preocupações apenas contornam a fauna e
flora local, que deverão ser realocadas, na medida do possível, dentro dos parâmetros legais e
ambientas adequados. Contudo, nem sempre só esses são os problemas. Os deslocamentos da
população, não muito freqüente, mas preocupantes, quando necessários, devem ser
atentamente analisados e planejados, respeitando-se tanto o direito da propriedade, como o
direito de um meio ambiente saudável. Tal análise certamente contribuirá para a
(não)aceitação de um projeto hidrelétrico com reservatório.
Existem casos emblemáticos. A construção do reservatório da maior usina hidrelétrica
do mundo, a Three Gorges Dam, localizada na China, ocasionou o deslocamento de 500 mil a
1 milhão de pessoas, para fins de viabilização de um potencial energético de
aproximadamente 18.200 MW. No Brasil, podem-se mencionar dois casos: a submersão de
grande parte da cidade de Guadalupe, no estado do Piauí, pela represa da hidrelétrica Boa
Esperança, bem como o deslocamento de cerca de 60 mil pessoas devido ao reservatório da
hidrelétrica de Sobradinho, na Bahia (LEITE, 2007, P. 261-262).
15
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Daí, se tem mas das maiores preocupações ambientais no Brasil. Como já dito, a matriz
energética brasileira é essencialmente hidráulica, devido à abundância natural do recurso
água. Quando necessária a construção de um reservatório, dever-se-á atentar para as
conseqüências ambientais a serem causadas no local, sopesando princípios, dentre eles, o
direito à propriedade, e ao meio ambiente. Como elemento conector, o desenvolvimento, em
caráter sustentável, deverá ser o norte deste jogo de pesos e contrapesos, onde o
desenvolvimento econômico e social sofrerá interferências drásticas diante de fatores
ambientais.
Os impactos ambientais decorrentes da construção de uma hidrelétrica são definitivos e
irreversíveis. Dessa forma, durante a fase do projeto do empreendimento, são definidos
programas de mitigação ou compensação de são implantados durante a construção e operação
da hidrelétrica.
Com este entendimento, podemos tratar especificamente das propriedades ribeirinhas
afetadas pelos empreendimentos hidrelétricos, pois fato é que suas terras serão inundadas para
a construção de reservatórios, quando necessário. Dessa forma, os impactos deverão ser
estudados, e soluções deverão ser criadas para amenizá-los.
3 O DIREITO DE PROPRIEDADE
O Código Civil Brasileiro, em seu artigo 1228, descreve o direito de propriedade como
a faculdade do proprietário de usar, gozar, dispor da coisa, e de reavê-la do poder de quem
injustamente a detenha.
A importância da propriedade privada emergiu quando o mercado passou a considerar
os homens não por sua nobreza, mas pelo valor de seus bens acumulados e sua capacidade de
acumular cada vez mais. Conforme afirma Marés (2003), a própria liberdade almejada pela
Revolução Francesa se tratava da liberdade de dispor livremente de seus bens e contratar. As
terras são vistas como bens de produção e poder de troca, não como bens de poder de uso. Por
um viés patrimonialista, não há o que se questionar quanto à intensidade, o tamanho e o modo
do exercício do direito da propriedade, já que ser proprietário implica em poder de compra.
A propriedade já foi considerada como um direito absoluto, não susceptível a qualquer
interferência. Atualmente, a CR/88 prevê no seu artigo 5o que todos são iguais perante a lei,
garantindo-se a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do
direito à propriedade, nos termos dos incisos do mesmo artigo. No inciso XXII é assegurado o
direito de propriedade e o XXIII afirma que a propriedade atenderá a sua função social. Com
16
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
a assunção da função social o exercício do direito de propriedade passou a ter limites
determinados por lei (artigo 1128 do Código Civil Brasileiro, e artigos 2o e 8o do Estatuto da
Cidade - Lei nº. 10.257, de 10 de julho de 2001) e pela própria CR/88 (artigos 182 e 183).
Obrigações de não fazer que restringem as faculdades do proprietário, são comuns no
direito civil, especialmente nas leis de uso e ocupação do solo, delimitando a altura de
prédios, o coeficiente de aproveitamento de terrenos, impondo como limite o direito dos
vizinhos. Já as obrigações de fazer são mais recentes no campo jurídico, e derivam do
Estatuto da Cidade e da função social.
Para Marés (2003) a função social se baseia no cumprimento de alguns requisitos: o
aproveitamento racional da terra, a preservação do meio ambiente, a obediência às obrigações
trabalhistas e uma exploração que favoreça o bem estar de todos os envolvidos.
A função social impõe ao direito de propriedade deveres, cujo não cumprimento implica
na perda da proteção da propriedade, impõe limites ao poder absoluto do proprietário,
relevando a importância do direito de igualdade e o princípio da dignidade da pessoa humana.
O direito de propriedade remete ao dever do exercício efetivo da posse sobre a coisa. O
proprietário deve fazer valer os seus poderes e faculdades no sentido do bem comum (LEAL,
1998, p.127). A função social não visa à limitação da propriedade, mas à garantia do exercício
desse direito conforme o interesse coletivo da sociedade.
A posse de acordo com Caio Mário da Silva Pereira (2005) é o exercer sobre uma
coisa poderes ostensivos, conservando-a e defendendo-a como se sua fosse, mesmo não tendo
propriedade sobre a coisa. O exercício efetivo da posse representa a efetivação da função
social da propriedade, o que descarta qualquer tipo de desapropriação sansão conforme a
prevista no Estatuto da Cidade.
O direito da propriedade defendido na CR/88 e na Declaração Universal dos Direitos
Humanos não pode sofrer interferências caso cumpra com a função social e não fira nenhuma
disposição legal. A exceção para essa situação é a necessidade de desapropriação
fundamentada no interesse público.
O direito de propriedade não se resume ao simples poder de compra e troca, mas à
possibilidade de produção e uso do imóvel, para moradia, lazer, plantio, pecuária e outros
fins. A desapropriação não significa somente a transmissão da propriedade de um bem em
troca de indenização porque implica em mudanças na vida pessoal e profissional de todos os
expropriados mais na mudança do ecossistema local.
17
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Segundo Ilse Scherer-Warren (2005, p.79) “o uso e a apropriação do espaço na
sociedade capitalista moderna tem se relacionado cada vez mais estreitamente com o processo
de reprodução do capital”.
A execução de projetos de grande escala no Brasil (como a construção de centrais
hidrelétricas) implica em uma considerável ocupação territorial, que pode se dar em espaços
desocupados, habitados ou ricos em biodiversidade.
É recente a preocupação com as conseqüências sociais derivadas de grandes projetos de
engenharia. Essas conseqüências devem ser diagnosticadas frente aqueles que são afetados
direta (pessoas removidas compulsoriamente) ou indiretamente, por meio de reflexos. A
necessidade de adquirir licenças ambientais já é institucionalizada, mas os problemas sociais
ainda não são devidamente avaliados (SCHERER-WARREN, 2005).
O interesse do capital, tendo em vista o crescimento e a necessidade de acumulação e
progresso, faz uso do solo e dos recursos naturais sob a égide da utilidade pública. A ideologia
da modernização justifica a desapropriação contanto que essa possibilite a realização de obras
que permitam o “desenvolvimento” e legitima a “ideologia da redenção”, na qual é prioridade
tudo o que corresponda com o interesse público geral, como é o caso do desenvolvimento
(SCHERER-WARREN, 2005).
Os custos ambientais e sociais podem ser minimizados, apesar de inevitáveis, e a
conjuntura global é que nos dará as pistas de como deveremos solucionar as questões sócioambientais a serem enfrentadas.
Restam os questionamentos: quais devem ser os custos ambiental e social para que estes
se sobressaiam ao interesse público geral? Há de fato um limite para esses custos, um valor
que impeça a implantação de obras que favoreçam o desenvolvimento? Deve haver um valor
máximo ou dificilmente será incentivado o investimento de recursos na produção alternativa
de energia, comprovadamente possível de ser aplicada em substituição a processos de geração
de energia que causam muitos danos ambientais e sociais.
A análise do custo-benefício no caso em questão é realizada de acordo com a
racionalidade do capital e sob a ótica dos custos sociais intrínsecos às populações atingidas
como onde essas vivem, como vivem e do que vivem. A recompensa material oferecida pela
indenização não cobre os desgastes sofridos pela população. As medidas de compensação
ambiental não neutralizam os danos ambientais. Não são avaliados os múltiplos significados
do espaço (SCHERER-WARREN, 2005).
18
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Como os processos de desapropriação da propriedade das pessoas afetadas pela
construção de hidrelétricas são autoritários e compulsórios, ainda que legais, não representam
legitimidade frente às comunidades atingidas. Por essa razão os expropriados sentem seus
direitos violados e não são violados apenas os direitos dos expropriados, mas de toda a
coletividade, pois a área atingida pela hidrelétrica afeta enormes extensões territoriais o que
pode incluir locais de beleza cênica ou repletos de matas e animais o que lesa o meio
ambiente e fere o art.225 da CF/88.
3.1 O instrumento da desapropriação
De acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello (2005), à luz do direito positivo, a
desapropriação se define como o procedimento pelo qual o Poder Público, fundado em
necessidade pública, utilidade pública ou interesse social, compulsoriamente despoja alguém
de um bem certo, adquirindo-o para si mediante o pagamento de indenização prévia, justa e
pagável em dinheiro, salvo quando o imóvel Para Pereira (2005) a desapropriação realiza a
cessação da relação dominial para o dominus e a integração da res ao acervo estatal de modo
que assim, a desapropriação não é uma compra e venda, porque é forçada, mas um ato de
direito público que gera a transferência de domínio. Ao ter sua terra desapropriada, o
proprietário recebe um preço pela mesma, de modo que a perda da proteção da propriedade
não cause mais danos ao proprietário particular.
A desapropriação para reforma agrária não pode ser efetivada sobre a pequena e a média
propriedades rurais, assim definidas em lei, desde que o proprietário dessas não seja dono e
outro imóvel. A propriedade produtiva também não pode ser objeto de reforma agrária
(MELLO, 2005), mas essas podem ser objeto de desapropriação por utilidade pública como a
construção de represas para hidrelétricas, justamente a qualidade que se quer discutir.
O argumento político da desapropriação corresponde à supremacia do interesse coletivo
sobre o privado quando esses são incompatíveis e se refere ao domínio que o Estado dispõe
sobre todos os bens existentes no seu território (MELLO, 2005).
O fundamento constitucional encontra-se nos arts. 5o, XXIV, 182 e 184 da CR/88. Já o
infraconstitucional reside em leis e decretos lei que tratam da necessidade e utilidade pública
(dentre eles, a Lei 4.132, de 10 de setembro de 1962, e o decreto-lei 1.075, de 22 de janeiro de
1970).
De acordo com o decreto-lei 3.365, de 21 de junho de 1941 (artigo 5º), as hipóteses para
desapropriação por utilidade pública são: segurança nacional; salubridade pública; assistência
19
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
pública; exploração ou conservação de serviços públicos; abertura, conservação ou
melhoramento de vias ou logradouros públicos; reedição ou divulgação de obras ou invento
de natureza científica, artística ou literária; preservação ou conservação de monumentos
históricos e artísticos, dentre outros.
São hipóteses de desapropriação por interesse social, dentre outras, conforme o artigo 2º
da Lei 4.132: o aproveitamento de todo bem improdutivo ou explorado sem correspondência
com as necessidades de habitação, trabalho e consumo dos centros de população a que deve
servir ou possa suprir por seu destino econômico; o estabelecimento e a manutenção de
colônias ou cooperativas de povoamento e trabalho agrícola, a construção de casas populares,
a proteção do solo e a proteção de cursos e mananciais de água e de reservas florestais.
Para Mello (2005, p. 812) a “declaração de utilidade pública é o ato através do qual o
Poder Público manifesta sua intenção de adquirir compulsoriamente um bem determinado e o
submete ao jugo de sua força expropriatória”. A União, os Estados, os Municípios e o Distrito
Federal podem fazer referida declaração. A Agência Nacional de Energia Elétrica também
possui competência para declarar imóveis como de utilidade pública - artigo 10 da Lei 9.074,
de 07 de julgo de 1995 - quando esses são necessários para a implantação de instalações de
concessionários, permissionários e autorizados de serviços de energia elétrica.
Todavia nem todos os serviços de energia elétrica autorizados são de utilidade pública,
como nos casos em que a energia gerada será utilizada somente pelo próprio produtor, ou seja,
é de interesse exclusivo dos autorizados - artigo 7o, incisos I e II, da Lei 9.074/95. Nesses
casos não há o que se falar em desapropriação.
Na declaração de utilidade pública devem constar a manifestação pública da vontade de
submeter o bem à força expropriatória do Estado, o fundamento legal em que se embasa o
poder expropriante, a destinação específica a ser dada ao bem, a identificação do bem a ser
expropriado (MELLO, 2005).
Os efeitos da utilidade pública para Mello (2005) são: submeter o bem à força
expropriatória do Estado; fixar o estado do bem (condições, benfeitorias existentes, etc);
conferir ao Poder Público o direito de penetrar no bem a fim de fazer verificações e medições;
dar início ao prazo de caducidade da declaração (cinco anos).
Nos casos das hidrelétricas, os procedimentos necessários para obtenção de declaração
de utilidade pública para fins de desapropriação das áreas abrangidas pela implantação de
instalações de geração de concessionários, permissionários ou autorizados de energia elétrica
20
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
estão previstos na Resolução ANEEL nº 259, de 09 de junho de 2003. A Licença Prévia
Ambiental ou manifestação favorável do órgão responsável pelo licenciamento aprovando a
execução do empreendimento ou, ainda, posição atualizada sobre o processo de licenciamento
ambiental, são fatores de suma importância para a obtenção da qualidade de utilidade pública,
haja vista a interferência direta no direito de propriedade alheio.
Não são poucos os casos de desapropriação de propriedades inteiras, ou parte delas,
para a implantação de uma central hidrelétrica. No que tange às Pequenas Centrais
Hidrelétricas – PCH, o instrumento é menos agressivo, pois em grande parte dos
empreendimentos, as cotas de inundação são baixas, ocasionando o alagamento de áreas
pouco expressivas, ou, até mesmo, de nenhuma área, dependendo do planejamento e
condições topográficas do rio. Contudo, tratando-se de empreendimentos de grande porte
(Usinas Hidrelétricas), a situação pode ser bem diferente.
Como já explanado, caso desapropriado, o afetado terá direito a uma indenização justa,
pois lhe será retirada uma parte de terras. O problema ocorre quando a parte de terras é
utilizada para atividades econômicas, muitas vezes para subsistência, bem como para
moradia. As regiões ribeirinhas são extremamente habitáveis devido aos vastos benefícios
propiciados por um rio: irrigação, abastecimento, pesca etc. Muitas famílias estabelecem sua
residência nesta região, formando-se pequenas, médias e grandes comunidades. Traços
culturais se formam, e nem sempre as indenizações são suficientes.
Em 2002, tivemos um caso emblemático com a construção da Usina Hidrelétrica de
Aimorés. Uma cidade inteira, Ituêta, de Minas Gerais, foi relocada, em virtude da inundação
para o enchimento do reservatório. Parte de Resplendor, cidade também de Minas Gerais, foi
afetada pelo mesmo reservatório, obrigando o consórcio construtor, formado pela Vale do Rio
Doce e a Companhia Energética de Minas Gerais - CEMIG, reconstruírem todas as condições
de morabilidade destas áreas atingidas. Mesmo com as indenizações dadas aos moradores, e
com o cumprimento de várias normas ambientais, muitos moradores se sentiram prejudicados
devido às alterações das terras, pois já vinham desenvolvendo atividades agropecuárias desde
o início do século passado.
O depoimento de Frederico Carlos Ortlieb, um dos moradores da região de Ituêta, que
foi removido de sua propriedade rural onde a família vivia desde 1913, demonstra bem o que
se passa com as pessoas que são lesadas no seu direito de propriedade e na sua identidade:
“Não temos terra para vender. Não há dinheiro que pague o suor derramado nesse chão.”
21
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
(FILHO, 2000, p.24). Segundo Tim (2000, p. 24), os moradores removidos dessa área
preservavam uma mata, combatiam os incêndios do período da seca, zelavam pelo meio
ambiente, mas tiveram que assistir à inundação de suas casas, plantações, áreas preservadas e
raízes familiares.
A situação torna-se menos grave quando somente parte de propriedades são afetadas,
cuja forma de relocação se torna mais fácil devido à pouca alteração do estado das terras.
4 O DIREITO AO MEIO AMBIENTE SAUDÁVEL
Devido à relevância do tema, a CR/88 possui um capítulo próprio para a tratativa do
meio ambiente. O caput do art. 225 dispõe que:
Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso
comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público
e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras
gerações. (BRASIL)
Diante do exposto no artigo acima transcrito, fica claro que o meio ambiente é um fator
essencial para a boa qualidade de vida dos cidadãos, ou seja, não está de modo algum
dissociado dos direitos sociais. Desse modo deve o mesmo ser devidamente preservado.
De acordo com Milaré (2009, p.154) o meio ambiente é um fator diretamente implicado
no bem-estar da coletividade, e por essa razão deve ser protegido dos excessos quantitativos e
qualitativos da produção econômica que afetam a sustentabilidade e dos abusos das liberdades
que a CR/88 confere aos empreendedores.
O artigo 170 da CR/88 trata da ordem econômica e afirma que essa deve ser
implementada conforme os ditames da justiça social, observados alguns princípios, como o da
soberania nacional, da propriedade privada, da função social da propriedade, da defesa do
meio ambiente, da redução das desigualdades regionais e sociais. A partir da interpretação
desse artigo é possível constatar que os grandes empreendimentos, como a instalação de
hidrelétricas, devem observar preceitos constitucionais como a preservação do meio ambiente
e da propriedade privada, o que reforça a idéia de que ao ser avaliada a possibilidade de
ocupação de terras, de desapropriação esses preceitos devem ser analisados. Inclusive, a
degradação ambiental representa o descumprimento da função social da propriedade.
Como todo direito fundamental o direito ao ambiente ecologicamente equilibrado é
indisponível. A CR/88 trata da preservação do meio natural como um dever do Poder Público
22
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
e não mera faculdade o que representa que existe a obrigação de zelar, preservar e defender a
natureza. O cidadão também não é mais simples titular de um direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado. Esse passa a ter a titularidade do dever de defender e preservar
assim como o Poder Público.
A implantação de qualquer atividade ou obra efetiva ou potencialmente degradadora
deve submeter-se a uma análise e controle prévios (MILARÉ, 2009, p.373). Qualquer projeto
de desenvolvimento interfere no meio ambiente. O homem hoje depende da exploração de
vários recursos naturais, mas essa exploração e os projetos de desenvolvimento não podem
ocorrer à revelia, mas controlados e avaliados.
Neste intuito, a Constituição de 1988 cria uma articulação entre os estados-membros e a
União4, criando uma competência concorrente para legislar sobre questões relativas à
preservação do meio ambiente. Dessa forma, as legislações ambientais passam tanto pela
esfera federal, como estadual, o que possibilita maior adequação de quaisquer projetos que
interfiram de modo degradante na natureza tornando-os um modelo ecologicamente adequado
e viável.
Como instrumentos capazes de avaliar os impactos ambientais e impedir a instalação de
empreendimentos que gerem danos irreversíveis e insustentáveis à natureza, foram criados
pela CR/88 institutos jurídicos, dentre eles o Estudo Prévio de Impacto Ambiental (EPIA),
bem como, já na legislação federal, as Avaliações de Impactos Ambientais (AIA), as Licenças
Ambientais, os Estudos de Impactos Ambientais (EIA) e os Relatórios de Impactos
Ambientais (RIMA). O RIMA é de suma importância porque facilita a promoção da
participação popular, principalmente na fiscalização, pois relata os dados pesquisados para o
EIA em um linguagem mais acessível para leigos e a sociedade civil em geral. A participação
popular é essencial para a preservação ambiental, pois são poucos os fiscais do Estado para
realizar respectiva fiscalização e os cidadãos acompanham de perto o que ocorre em várias
localidades que podem estar sendo degradadas (MILARÉ, 2009).
5 O PRINCÍPIO DA SUSTENTABILIDADE
O princípio da sustentabilidade surge a partir dos processos de globalização e
degradação ambiental e social. Esse princípio se desenvolve como um limite para a
reorientação da humanidade e da produção. Demarca uma nova geração da racionalidade,
fundamentada na reflexão sobre o crescimento econômico adotado pelo modelo capitalista
4
Art. 24, inc. VI
23
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
que nega a natureza, e que é capaz de prejudicar a sobrevivência humana. O desenvolvimento
sustentável pode ser definido como “um processo que permite satisfazer as necessidades da
população atual sem comprometer a capacidade de atender as gerações futuras” (LEFF, 2001,
p.19).
Segundo Sachs (2008), o conceito de sustentabilidade atual ultrapassa as barreiras
econômicas, pois pouco adianta multiplicarmos a riqueza material, se a mesma não adota
critérios de igualdade, equidade e solidariedade. E quando se apresenta tais critérios, os
mesmos devem ser entendidos em uma conjuntura social, ambiental, territorial, econômica e
política. Estes são os cinco pilares do desenvolvimento sustentável.
a-Social, fundamental por motivos tanto intrínsecos quanto instrumentais, por causa
da perspectiva de disrupção social que paira de forma ameaçadora sobre muitos
lugares problemáticos do nosso planeta;
b-Ambiental, com as suas dimensões )os sistemas de sustentação da vida como
provedores de recursos e como “recipientes” para a disposição de resíduos);
c-Territorial, relacionado à distribuição espacial dos recursos, das populações e das
atividades;
d-Econômico, sendo a viabilidade econômica a conditio sine qua non para que as
coisas aconteçam;
e-Político, a governança democrática é um valor fundador e um instrumento
necessário para fazer as coisas acontecerem; a liberdade faz toda a diferença.
(SACHS, 2008, p.15-16)
A sustentabilidade se baseia na construção de um novo paradigma econômico fundado
no respeito às leis da natureza. É sob essas condições que foram propostos e ratificados todos
os princípios propostos na Declaração de Estocolmo sobre o Ambiente Humano (junho de
1972), na Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (junho de 1992) e na
Carta da Terra (março de 2000) onde se apresentou moldes de um desenvolvimento
sustentável da humanidade indissociáveis das questões de preservação do meio ambiente.
Ocorre que o discurso sustentável ainda não é bem utilizado e costuma ser explorado sob
finalidade que visa simplesmente à manutenção da ordem pública por meio da legitimação
dos processos de produção frente à crise ambiental. O ecodesenvolvimento é efeito de
marketing para maquiar a utilização dos recursos naturais e os impactos ambientais dos
grandes empreendimentos. Prega-se, nesse caso, o crescimento econômico orientado pelo
livre mercado, tendo a tecnologia como aliada para a redução dos desgastes gerados no meio
ambiente. Essa idéia é paradoxal, já que a tecnologia é uma das grandes consumidoras dos
24
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
recursos naturais, além de gerar muitos resíduos sólidos.
De todo, independentemente da forma como vem sendo feito o uso do princípio da
sustentabilidade, esse é um princípio que pode sim favorecer a preservação do meio ambiente
e uma mudança nas políticas e pedagogias de educação ambiental dos cidadãos. A democracia
participativa e a racionalidade ambiental são trabalhadas pela sustentabilidade.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
É fato, já de conhecimento popular, que a contínua degradação do meio ambiente no
Brasil e no mundo podem causar a extinção da raça humana. Para criar uma consciência de
que é necessária uma nova visão de consumo e de novos processos produtivos, foi elaborado
o princípio da sustentabilidade.
A efetivação de respectivo princípio é capaz de promover uma revolução na educação
ambiental e na mobilização social. Esses dois aspectos são essenciais para uma mudança no
comportamento das pessoas e do próprio Poder Público para que ações e investimentos sejam
empregados na execução de projetos que preservem o meio ambiente e que o utilizem de
modo sustentável, respeitando as leis da natureza.
O desenvolvimento econômico é imprescindível. Com ele, a demanda por energia
elétrica inevitavelmente aumenta; surgem novas empresas; aquelas que já existem, aumentam
suas capacidades; cidadãos que não tinham acesso à energia elétrica passam a ter e aqueles
que já a tinham, aumentam o seu consumo, com o fatal (e não controlável) avanço da
tecnologia. Dessa forma, a educação ambiental e a mobilização social são os instrumentos
capazes de tornar efetivo o princípio da sustentabilidade através da criação de uma nova ética
que oriente os valores e comportamentos sociais para os objetivos de sustentabilidade
ecológica e equidade social.
O desenvolvimento sustentável trata da necessidade de se buscar novas formas de
exploração dos recursos naturais para que a natureza seja preservada para as futuras gerações.
A CR/88 torna constitucional o compromisso com o princípio da sustentabilidade no seu
artigo 225. Dessa forma não é uma faculdade do Poder Público e de todos os brasileiros zelar
pelo meio ambiente, mas um direito seguido de um dever.
Hoje existem várias fontes de energia e diversos tipos de usina. Essa variedade de
possibilidades deve ser estudada e executada para sejam ocasionados danos menores e se
possível, reversíveis. Faltam investimentos em pesquisa e tecnologia, capazes de proporcionar
uma melhoria nas formas de geração de energia elétrica, ou seja, que promovam o
25
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
desenvolvimento sustentável. Todavia, novos empreendimentos para geração de energia estão
sendo implantados, sendo um mediante a utilização de energia da maré, cinco de fonte
fotovoltaica, noventa e oito de fonte eólicas, duzentas e oito termelétricas e trezentas e seis
hidrelétricas (ANEEL).
Questões de âmbito social também devem ser observadas na implantação de
empreendimentos de usinas hidrelétricas, por exemplo. Direitos constitucionais como o
direito à propriedade, à moradia e ao meio ambiente não podem ser deixados à revelia em prol
do mercado e da produção de bens de consumo. O princípio da sustentabilidade não pode ser
maquiado e utilizado sob a ótica que o mercado requer.
O uso de instrumentos como o da desapropriação somente devem ser autorizados
quando já foi feita uma avaliação quanto à melhor forma de se gerar energia. Esses não
podem ser aplicados para a realização de obras que prejudicam direitos constitucionais
fazendo uso da fundamentação da utilidade pública sendo que havia alternativas menos
danosas para a natureza e a sociedade. Desse modo a instalação de usinas hidrelétricas
somente pode ser feita a partir da análise de qual forma de produção de energia é a mais
sustentável para o caso em específico. Após a conclusão quanto ao modo de gerar energia
devem ser realizadas as avaliações de impacto ambiental e todas as demais que a legislação
requer.
A desapropriação não pode ser conseguida de forma muito simples ou essa acaba
desmotivando o investimento em pesquisas e desenvolvimento de fontes alternativas de
energia. Os impactos da desapropriação na sociedade são marcantes. É importante a busca por
formas de geração de energia que não ocupem um espaço enorme como a geração por água.
A questão tratada neste texto não visa argumentar contra o desenvolvimento tecnológico
ou contra a produção de energia, mas demonstrar a necessidade de políticas que busquem
aplicar novas formas de produção de energia que gerem menos impactos sócio-ambientais.
Não deve ser omisso que as normas jurídicas também precisam mudar de modo a
intensificar a fiscalização e sobre os grandes empreendimentos e desapropriações. A análise
dos aspectos sociais deve ser melhor explorada nas avaliações de impacto, assim como a
participação popular. A avaliação de impacto ambiental deve estar atenta não somente aos
impactos causados pelos empreendimentos avaliados, mas também a quais empreendimentos
podem ser construídos ao invés do modelo proposto para que sejam reduzidos os resultados
negativos e gerada uma soma positiva entre utilidade pública e danos sócio ambientais.
26
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
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SCHERER-WARREN, Ilse. Redes de Movimentos Sociais. 3a ed. São Paulo: Edições
Loyola, 2005.
27
NOVOS PARADIGMAS DA CONSTRUÇÃO CIVIL NO SÉCULO XXI: PELA
IMPLENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE INCENTIVO ÀS CONSTRUÇÕES
VERDES
Ana Afif Mateus Sarquis Queiroz
Fernanda Castelo Branco Araujo 
RESUMO: O presente artigo tem por escopo examinar, sem pretender esgotar o tema, as
inovações mais relevantes no âmbito da construção civil voltadas à utilização sustentável da
propriedade urbana por meio de uma abordagem científica que passa entre, além e através de
diferentes disciplinas, evidenciando a transdisciplinaridade do tema em comento. O estudo
aborda, inicialmente, a nova orientação do uso da propriedade frente ao dever de proteção ao
meio ambiente, ressaltando a função socioambiental da propriedade urbana. Em um segundo
momento, enfatiza-se a necessidade de sustentabilidade das construções, apresentando-se os
chamados “prédios verdes” e os sistemas de certificação ambiental presentes no Brasil (LEED
e AQUA). A terceira parte do trabalho analisa aspectos positivos das construções
ambientalmente orientadas, tais como o marketing ambiental, a econômica operacionalidade
dessas edificações a longo prazo e os benefícios socioambientais que acarretam. Por fim,
verifica-se a possibilidade de utilização dos “prédios verdes” como base para implementação
de políticas públicas, sobretudo através da tributação ambiental, expondo-se o papel do
Estado diante de uma nova realidade de mercado consumidor.
PALAVRAS-CHAVE: “Construções Verdes”, Sustentabilidade, Políticas Públicas.
ABSTRACT: This article seeks to examine the most important innovations in the
construction industry aimed at the sustainable use of urban property, through a scientific
approach that passes between, beyond and across different disciplines, highlighting how
transdisciplinary the theme under discussion is. The study focuses, initially, the new guidance
on the use of property because of the duty of environment protection, highlighting the socioenvironmental function of urban property. In a second step, it is showed the need for
sustainable buildings, demonstrating the “green buildings” and the environmental certification
systems used in Brazil (LEED and AQUA). The third part examines the positive aspects of
environmentally oriented constructions, such as the green marketing, the economic operation
of these buildings and the long-term social and environmental benefits that they entail.
Finally, there is the possibility of using “green buildings” as enforcement of public policies,
mainly through environmental taxation, exposing the role of the state facing a new reality in
the consumer market.
KEY WORDS: “Green Buildings”, Sustainable, Public Politics.
1
Alunas do 9º semestre do Curso de Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará – UFC.
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
1 INTRODUÇÃO
A construção civil no Brasil tem demonstrado, nos últimos anos, considerável
aquecimento, sobretudo em função do projeto do governo federal “Minha Casa, Minha Vida”
e das obras de infraestrutura necessárias à realização da Copa do Mundo de 2014 e das
Olimpíadas de 2016. O Produto Interno Bruto (PIB) do setor, no segundo trimestre deste ano,
apresentou, em relação ao ano passado, recorde histórico de alta (16,4%)2.
Por outro lado, os impactos ambientais causados pela construção civil são
impressionantes. O setor responde por até 40% da emissão de gás carbônico direta ou
indiretamente em todo o mundo. No Brasil, as construções consomem em média 21% de toda
a água tratada, 42% da energia produzida e geram 70% dos resíduos3, o que demonstra quão
negativa ela tem sido ao meio ambiente, que, por sua vez, trata-se de bem difuso
constitucionalmente tutelado e cuja proteção traduz-se em imperativo essencial à própria
sobrevivência humana.
Nesse contexto, e levando em consideração que o texto constitucional também impõe
que a proteção ambiental seja desempenhada pelo Poder Público e por particulares, de forma a
garantir o desenvolvimento sustentável, o que pode ser entendido como “suprir as
necessidades do presente sem afetar a habilidade das gerações futuras de suprirem as próprias
necessidades”4, nasce para toda e qualquer atividade que compõe a sociedade o dever de
buscar efetivar o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Com efeito, a necessária educação ambiental começa a se difundir entre todos os setores
da economia, gerando, inclusive, uma mudança de paradigma na forma de consumir da
população. A partir daí, surgem as construções sustentáveis, as quais buscam aliar
competitividade ao uso de técnicas e produtos que atenuem os impactos ambientais dos
empreendimentos imobiliários, desde a construção até a manutenção.
Observe-se que não se busca, no presente estudo, abordar todas as perspectivas
possíveis no que se refere aos desdobramentos das construções sustentáveis no âmbito
nacional, mas tão somente propor a utilização paramétrica dos critérios adotados pelos
sistemas de certificação com expressão no Brasil para a elaboração e implementação de
políticas públicas voltadas à proteção do meio ambiente. Desse modo, a atenção se volta à
2
Conforme divulgado na edição de 17 de setembro de 2010, do Jornal Diário do Nordeste.
CASADO, Marcos. Green Buildings: a onda de “prédios verdes” chegou definitivamente ao país. Revista
Construção e Mercado, São Paulo, nº89, p. 23, dez. 2008.
4
Relatório Brundtland. Disponível em pt.wikipedia.org/wiki/Relatório_Brundtland. Acesso em 15 de set. 2010.
3
29
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
demonstração dos processos de certificação ambiental, dos requisitos exigidos para a
obtenção dos “selos verdes” e dos benefícios socioambientais que os “prédios verdes”
representam.
Assim, partindo-se da apresentação das normas legais e principiológicas influentes no
direito de propriedade atual, serão analisadas as construções sustentáveis, propondo-se, ao
final, medidas públicas de fomento à disseminação desse novo conceito, a fim de auxiliar na
viabilização do uso ambientalmente orientado da propriedade urbana.
2 A NOVA ORIENTAÇÃO DO USO DA PROPRIEDADE FRENTE AO DEVER DE
PROTEÇÃO
DO
MEIO
AMBIENTE:
FUNÇÃO
SOCIOAMBIENTAL
DA
PROPRIEDADE URBANA
Inicialmente, importa situar o leitor acerca dos aspectos relevantes do atual conceito de
propriedade, apresentando-se, a partir de breve digressão histórica, como o cumprimento da
função social passou a fazer parte dos deveres do proprietário.
O direito de propriedade caracteriza-se por sua historicidade. Configura-se em
conformidade com os períodos históricos, para que possa adequar-se aos direitos considerados
merecedores de tutela jurídica de cada época.
A partir das Constituições Mexicana de 1917 e Alemã (Weimar) de 1919, que
inauguraram o que ficou conhecido como estado de direito social, sua disposição passou a
voltar-se à realização da justiça social. Esse novo parâmetro do direito de propriedade surgiu
após os abusos de individualismo verificados com o fim da Revolução Francesa, marco inicial
do ideário liberal. Nesse período, os indivíduos, preocupados em garantir a propriedade
privada, encararam-na como um direito absoluto e exclusivo, esquecendo-se da coletividade
que com ela interagia.
No entanto, a sociedade contemporânea demandava, mais do que um Estado
formalmente social, um Estado no qual o Poder Público e a população participassem
efetivamente na construção de uma nova realidade social, o que fez nascer o estado
democrático de direito, caracterizado no Brasil, nas palavras de Matias (s/d), pela
funcionalização dos direitos à criação de uma sociedade livre, justa e solidária 5.
A Constituição Federal de 1988 traduziu este novo paradigma, através da apresentação
de rol extenso de direitos fundamentais que demonstram a solidariedade como fator essencial
5
MATIAS, João Luís Nogueira. Historicidade do direito de propriedade: a marcha rumo à humanização. p. 6
(texto não publicado).
30
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
à vida em sociedade. No que concerne ao direito de propriedade em geral, é nítida a limitação
da liberdade individual do proprietário em prol dos interesses sociais, como se pode constatar
nas normas dos artigos 5º, XXIII e 170, III.
Neste ponto, cabe fazer uma observação: a simples realização de condutas negativas
relacionadas ao direito de propriedade se trata de mera limitação ao seu exercício (fator
externo). O cumprimento da função social da propriedade, mais do que isso, requer uma
conduta positiva do proprietário, com a finalidade de propiciar o máximo de benefício à
coletividade. Destarte, é possível encarar a função social como parte da própria essência do
conceito de propriedade, que se soma às tradicionais faculdades de usar, gozar, dispor e
reivindicar, atuando de forma a nortear todas elas.
Desta feita, com esteio no pensamento de Chaves e Rosenvald 6, pode-se afirmar que:
A função social consiste em uma série de encargos, ônus e estímulos que formam
um complexo de recursos que remetem o proprietário a direcionar o bem às
finalidades comuns. Daí a razão de ser a propriedade comumente chamada de poderdever ou direito-função.
Contudo, a partir da tomada de consciência do alarmante estágio de degradação
ambiental em que a Terra se encontra, a tutela do meio ambiente começou a ser vista como
indispensável para garantir a qualidade de vida e a própria sobrevivência humana. A
Constituição Federal de 1988 elevou o direito ao meio ambiente equilibrado à condição de
direito fundamental, dispondo, em seu art. 225 que “todos têm direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de
vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para
as presentes e futuras gerações”.
Por figurar no ápice do ordenamento jurídico pátrio, a tutela ambiental irradia-se por
todos os ramos da sociedade, de modo a orientar a atuação do Poder Público e limitar a
vontade dos particulares. Ademais, o meio ambiente consiste em direito difuso, cuja
titularidade ultrapassa o indivíduo, o que impede que ele seja apropriado por qualquer pessoa
ou instituição.
O meio ambiente é definido no art. 3°, I da Lei n° 6.938/81, que dispõe sobre a Política
6
FARIAS, Christiano Chaves de; ROSENVALD, Nélson. Direitos Reais. 5. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2008. p. 205.
31
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Nacional do Meio Ambiente, como “o conjunto de condições, leis, influências e interações de
ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”.
Deste modo, consiste num bem composto não só dos recursos naturais, mas também de todo o
produto da atuação humana na Terra, como o patrimônio cultural, o espaço urbano e mesmo o
meio ambiente do trabalho7.
Dessa forma, não se mostra mais satisfatório falar apenas em função social da
propriedade, no sentido de abalizamento do direito de propriedade a fim de consolidar os
direitos sociais. Forçoso compreender que, diante da gravidade do problema ambiental que se
nos afigura, o proprietário deve agir de modo a buscar cumprir também uma função ambiental
da propriedade.
Esta nova perspectiva traz em seu bojo a idéia de submissão do direito de propriedade
às normas de proteção legal do meio ambiente e vem sendo instituída no ordenamento
jurídico brasileiro a partir do Código Civil de 2002. O diploma legal, embora não tenha
utilizado expressamente o termo função socioambiental da propriedade, traduz com nitidez,
no §1° do art. 1.228, a imposição ao proprietário de exercer o direito de propriedade com a
preocupação de preservar o meio ambiente e atender às demandas sócio-econômicas:
§1º O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as finalidades
econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o
estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio
ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e
das águas.
Do mesmo modo, o texto constitucional, com a alteração sofrida através da Emenda
Constitucional n° 42/2003, disciplina a função social e a defesa do meio ambiente como
princípios gerais da ordem econômica:
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre
iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da
justiça social, observados os seguintes princípios:
III - função social da propriedade;
[...]
VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme
7
De acordo com Franco Giampietro apud Celso Antônio Pacheco Fiorillo (2010, p. 73) “meio ambiente do
trabalho caracteriza-se pelo complexo de bens imóveis e móveis de uma empresa ou sociedade, objeto de direitos
subjetivos privados e invioláveis da saúde e da integridade física dos trabalhadores que a freqüentam”.
32
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e
prestação.
Feita essa breve explanação acerca da função socioambiental da propriedade, notório
que este poder-dever, por ser incidente em toda e qualquer espécie de propriedade, relativiza
tal direito fundamental sob diversos aspectos. Para fins de nosso estudo, analisaremos sua
influência no direito de propriedade urbana.
O artigo 182, CF/88 condiciona a atuação do proprietário urbano aos ditames do plano
diretor, ao afirmar que a política de desenvolvimento urbano “tem por objetivo ordenar o
pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus
habitantes”, e que a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às
exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.
Desse modo, é através do plano diretor que o Município intervém na política urbana
para garantir o desenvolvimento das funções sociais da cidade. Este, por sua vez, deve seguir
o disposto na Lei n° 10.257/01 (Estatuto de Cidade), que estabelece normas gerais sobre o uso
da propriedade, regulamentando o dispositivo constitucional no que concerne à função social
e ambiental da propriedade urbana.
O Estatuto da Cidade, logo no parágrafo único de seu artigo 1º, deixa transparecer o
escopo de proteção ambiental a que se dispõe: “estabelece normas de ordem pública e
interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da
segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental”.
A seu turno, o último plano diretor do Município de Fortaleza, que entrou em vigor em
2 de fevereiro de 2009, elenca a função social da propriedade dentre os princípios da Política
Urbana e condiciona o seu cumprimento ao desenvolvimento da função socioambiental, a
qual, qual conforme §3° do art. 3°, é alcançada quando a propriedade, cumulativamente:
I - for utilizada em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos,
bem como do equilíbrio ambiental;
II - atenda às exigências fundamentais deste Plano Diretor;
III - assegurar o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de
vida, à justiça socioambiental e ao desenvolvimento das atividades econômicas;
IV - assegure o respeito ao interesse coletivo quanto aos limites, parâmetros de uso,
ocupação e parcelamento do solo, estabelecidos nesta Lei e na legislação dela
decorrente;
V - assegurar a democratização do acesso ao solo urbano e à moradia;
33
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
VI - não for utilizada para a retenção especulativa de imóvel.
As duas legislações responsáveis pela regulamentação do direito de propriedade urbana
possuem papel fundamental na garantia de efetividade das demandas sociais e ambientais da
sociedade atual. Cabe a elas o desafio de conciliar os direitos fundamentais da dignidade da
pessoa humana, do meio ambiente e da propriedade, de modo a “alcançar a harmonia entre o
bem-estar da população e a necessária premissa da conservação do meio ambiente saudável” 8.
3 NECESSIDADE DE SUSTENTABILIDADE DAS CONSTRUÇÕES
A Construção Civil, setor da economia executor de obras que atuarão como edificações
empresariais, públicas e sobretudo residenciais, é o responsável pela concretização do direito
de propriedade, estando submetido ao plano diretor e, conseqüentemente, ao dever de
cumprimento da função socioambiental da propriedade urbana.
No entanto, a realidade tem revelado que, ao contrário do que as normas apregoam e a
degradação ambiental impõe, ele tem atuado como grande vilão do desenvolvimento
sustentável. Conforme dados da revista Atitude Sustentável9, com base em estatísticas do
Green Building Council Brasil, do Ministério de Minas e Energia e da Agência Nacional de
Águas:
cerca de 45% do consumo de energia e uma proporção parecida de emissão de
carbono mundialmente têm origem em edifícios mal planejados ou mal-isolados
termicamente; no Brasil, o consumo de energia elétrica em edificações responde por
cerca de 42% do consumo total de energia elétrica; o setor urbano é responsável por
26% do consumo de toda água bruta do país e a construção civil responsável por
16% de toda a água potável.
Por outro lado, em razão da crescente conscientização do homem acerca das questões
ambientais que se levantam na atualidade, o controle e gerenciamento ambiental começam a
ganhar relevo na administração de algumas organizações do ramo, o que as leva a incluir a
preservação do meio ambiente em seu planejamento estratégico.
8
NEGÓCIO, Carla Daniela Leite; CASTILHO, Ela Wiecko Volmer de. Meio Ambiente e Desenvolvimento:
uma interface necessária. In: Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável. THEODORO, Suzi Huff,
BATISTA, Roberto Carlos e ZANETI, Izabel (coord.). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 62.
9
RIBEIRO, Gustavo. Minha casa sustentável. Revista Atitude Sustentável. Curitiba, n. 2, p 32, 2010.
34
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
10
Segundo Reinaldo Dias , quando essa preocupação ultrapassa o objetivo de diminuição
de custos e riscos relacionados às sanções legalmente previstas para a reparação dos danos
ambientais causados, nasce, a partir daí, uma cultura ambiental, que, ao se espalhar por toda a
empresa, a forma como o ambiente externo é encarado modifica-se, passando este a ser um
componente que influi significativamente na competitividade da empresa e nas decisões
tomadas pelo seu quadro de dirigentes.
As construtoras passam, então a projetar e executar as construções sustentáveis, que se
apresentam como mecanismo de conciliação entre o meio ambiente e a propriedade privada.
Os empreendimentos que se enquadram neste conceito adotam uma série de práticas e
materiais na preparação, durante a construção e na manutenção da obra depois de concluída
com a finalidade de alcançar uma edificação que não danifique a natureza ou o patrimônio
cultural, e que busca contribuir, ainda, para a melhoria da qualidade de vida daqueles que a
utilizam, seja para fins de moradia ou como meio de trabalho.
3.1 Os “prédios verdes”
O conceito de construções sustentáveis traduz-se num conjunto indeterminado e flexível
de medidas, orientadas a partir do pressuposto de uso ambientalmente responsável de tudo
aquilo que de alguma forma relaciona-se à construção e utilização de edificações. No intuito
de elaborar padrões predefinidos de classificação de obras ambientalmente orientadas, têm se
formado, nos últimos anos, várias organizações que emitem certificados para edifícios
comerciais, institucionais e residenciais, os quais estão sendo chamados de “prédios verdes”.
A certificação ambiental, ou selo verde, é, ao mesmo tempo, instrumento de gestão de
empresas e preservação ambiental e deve ser compreendida sob o contexto da economia de
mercado atual. Ela permite que o sistema de gerenciamento da organização busque uma
otimização do desempenho ambiental de suas atividades, processos e produtos, além de
representar rígido controle do processo de melhoria do ciclo de vida dos materiais utilizados e
dos impactos ambientais negativos.
Os certificados mais conhecidos ao redor do mundo atualmente são: LEED –
Leadership in Energy and Environmental Design, HQE - Haute Qualité Environnementale,
HK BEAM – Honk Kong Building Environmental Assessment Method e BREEAM – Building
Research Establishment Environmental Assessment Method. No entanto, apenas os dois
10
DIAS, Reinaldo. Gestão Ambiental: responsabilidade social e sustentabilidade. 1ª ed. São Paulo: Atlas, 2009.
35
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
primeiros têm sido adotados no Brasil, razão pela qual serão analisados mais detalhadamente
neste estudo.
3.2 Sistemas de Certificação Ambiental presentes no Brasil: Leed e Aqua
O selo LEED é uma certificação do Green Building Council Institute – GBCI,
organização sem fins lucrativos com sede nos EUA, obtida como resultado da análise
documental de novos empreendimentos, edificações em reforma, ou mesmo bairros e
comunidades. Conforme informações prestadas pela arquiteta Daniela Corcuera11, para a
obtenção do sistema LEED vigente, faz-se necessário alcançar um mínimo de 40 pontos,
numa escala que chega a 110, distribuídos em requisitos que se enquadram em sete categorias:
implantação sustentável, eficiência hídrica, energia e atmosfera, materiais e recursos, conforto
ambiental, inovação e projeto, e créditos regionais. As certificações variam entre prata, ouro e
platina, a depender da quantidade de pontos obtida.
O procedimento de certificação se dá através do preenchimento de formulários,
planilhas e envio de documentação digitalizada na plataforma on-line do GBCI. No entanto, a
profissional assevera que “a certificação é concedida a edifícios de alta performance
ambiental e energética, ou seja, não contempla uma análise dos aspectos sociais” 12 da região,
fator que revela uma falha do sistema, uma vez que tais condições são de elevada importância
para a viabilidade econômica do empreendimento.
Cumpre advertir, ainda, que, embora esteja previsto para o final deste ano a conclusão
do projeto de regionalização do certificado LEED para o Brasil13, a classificação ainda toma
por base as condições climáticas, geográficas e culturais da região do globo terrestre norte
americana, as quais não se adéquam perfeitamente as características ambientais do território
brasileiro, tampouco do semi-árido cearense.
Por sua vez, a HQE, de origem francesa, lançou recentemente uma versão adaptada às
especificidades brasileiras, intitulada Alta Qualidade Ambiental – AQUA. Segundo
informações contidas no sítio eletrônico da Fundação Vanzolini, responsável pela adequação
do certificado, este consiste num “processo de gestão do projeto visando obter a qualidade
11
CORCUERA,
Daniela.
Sistema
Leed.
Disponível
em
http://www.revistasustentabilidade.com.br/comercial/sistema-leed/?searchterm=LEED. Acesso em 18 de
set.2010.
12
Ibid.
13
GBC Brasil. Certificação. Disponível em http://www.gbcbrasil.org.br/pt/index.php?pag=certificacao.php.
Acesso 18 de set.2010.
36
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
ambiental de um empreendimento de construção ou de reabilitação”14. Ele pode ser
concedido a empreendimentos residenciais e comerciais, públicos ou particulares, desde que
alcancem uma qualificação no padrão mínimo de bom em quatorze critérios de desempenho
ambiental, relacionados aos impactos ambientais causados no canteiro de obras, na
implantação da construção e no seu término, bem como a requisitos de conforto e saúde do
usuário.
Em entrevista à revista Sustentabilidade 15, Manuel Carlos dos Reis Martins, engenheiro
e auditor da Fundação Vanzolini e coordenador executivo da certificação, explica que o
processo ocorre em etapas fiscalizadas por auditorias presenciais e independentes entre si. A
primeira fase ocorre durante o planejamento do empreendimento (programa), a segunda após
a conclusão dos projetos da obra (concepção), e por último, tem-se a fase de realização,
quando a obra já foi concluída, a fim de verificar a real observância dos critérios de
desempenho.
Em todo o Brasil, até agosto deste ano, 19 empreendimentos possuíam a certificação
LEED e outros 192 estavam em processo de certificação 16. Quanto ao certificado AQUA, 23
processos foram iniciados, sendo que 15 certificados já foram emitidos 17. No Ceará, há apenas
uma obra em construção com uma espécie provisória do selo LEED, a qual foi concedida em
junho do corrente ano18.
Percebe-se assim, que os selos verdes cumprem o papel de facilitadores da compreensão
e da aplicação prática do conceito de construções sustentáveis, podendo ser adotados em toda
e qualquer propriedade. Desse modo, utilizar essas certificações como parâmetro para a
elaboração de políticas públicas, mostra-se instrumento eficaz de implementação do direito
fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado estatuído no diploma
constitucional.
14
CASAGRANDE, Bruno. Fundação Vanzolini: Desenvolvimento de Negócios - Processo Aqua. Disponível em
http://www.processoaqua.com.br/pdf/ApresentacaoConsolidada200510%20.pdf. Acesso em 18 set. 2010.
15
Revista Sustentabilidade. Fundação Vanzolini apresenta certificação ambiental Aqua. Disponível em
http://www.revistasustentabilidade.com.br/noticias/certificacao-aqua-para-empreendimentos-sustentaveis-e-aprimeira-nacional. Acesso em 18 de set. 2010.
16
BARBOSA, Vanessa. Construções Sustentáveis ganham mercado no Brasil. Disponível em
http://portalexame.abril.com.br/meio-ambiente-e-energia/noticias/construcoes-sustentaveis-ganham-mercadobrasil-589607.html. Acesso em 17 de set. 2010.
17
CASAGRANDE, op. cit.
18
Portal
Jornal
Diário
do
Nordeste.
C.
Rolim
recebe
certificação.
Disponível
em
http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=823055. Acesso em 18. set. 2010.
37
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
4 ASPECTOS POSITIVOS DAS CONSTRUÇÕES AMBIENTALMENTE CORRETAS
Para se adequar aos requisitos e determinações exigidas pelos sistemas de certificação
ambiental citados, as “construções verdes” devem utilizar produtos e serviços que viabilizem
uma menor agressão ao meio ambiente, desde o processo de construção da edificação até sua
manutenção, compensando os danos que o meio ambiente tem sofrido com o crescimento
desordenado das cidades e, conseqüentemente, da construção civil.
Tais construções, a priori, podem parecer desinteressantes aos empresários, na medida
em que a utilização de recursos inovadores, em regra, significa aumento considerável dos
custos da obra, o que pode acarretar diminuição nos lucros. No entanto, a sociedade, de forma
crescente, vem exigindo das empresas maior responsabilidade social e compromisso com a
preservação do meio ambiente, de modo que, cada vez mais clientes se disponibilizam a pagar
um preço mais elevado pela responsabilidade ambiental que o empreendimento representa.
Diante dessa alteração, a construção civil começa a demonstrar que está se adequando
aos conceitos de sustentabilidade. Com efeito, no contexto mundial de promoção da
preservação ambiental, as empresas devem realmente se adaptar a nova realidade ou se
tornarão ultrapassadas em poucos anos.
4.1 O marketing ambiental
As pressões públicas e a preocupação com o meio ambiente estão mudando a maneira
de se fazer acordos e negócios por todo o mundo. Os novos consumidores estão aumentando a
demanda por produtos e serviços ambientalmente corretos oferecidos por organizações
socialmente responsáveis.
As empresas não são cobradas somente por sua filosofia, mas também por suas
estratégias de investimentos e ações diárias efetivas voltadas à preservação do meio ambiente,
com o fito de agradar o novo mercado consumidor, aumentando vendas e locações, e manter
um bom relacionamento com os órgãos ambientais defensores de projetos sustentáveis.
Segundo o engenheiro e gerente técnico do Green Building Council Brasil, Marcos
Casado19, “os mais jovens estão começando a exigir de seus fornecedores uma postura mais
correta em relação ao meio ambiente, desenvolvendo um dos maiores desafios corporativos
deste milênio: o consumo consciente”.
Todas essas mudanças de parâmetros na construção civil têm se tornado uma importante
19
CASADO, Marcos. Green Buildings: a onda de prédios verdes chegou definitivamente ao país. Revista
Construção e Mercado, São Paulo, nº89, p. 23, dez. 2008.
38
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
ferramenta educacional e de comunicação com o consumidor, além de criar parâmetros de
qualidade para o mercado.
4.2 Operacionalidade com maior eficiência e menores custos
Os “prédios verdes” não se caracterizam por um modismo da construção civil, mas, sim,
por uma necessidade ambiental de um mundo em crise, com receio de colapso da
disponibilidade de seus recursos naturais, diante do estágio preocupante de degradação
ambiental a que chegamos.
Via de regra, a execução de um projeto de edifício sustentável implica em utilização de
materiais de alto grau de sofisticação e tecnologia, o que requer maior investimento financeiro
inicial. Nos Estados Unidos, estudos estatísticos indicam que são gastos em média de 1% a
7% a mais nessas edificações. No Brasil, há uma tendência de se gastar de 5% a 10% a mais
em edifícios comerciais e 2 a 4% a mais nos residenciais 20.
No entanto, o retorno econômico a médio e longo prazo é certo e evidente, tanto em se
tratando da diminuição dos assustadores dados de agressão ao meio ambiente, quanto em
relação à economia feita pelos usuários da obra depois de concluída. Em geral, uma
construção verde pode reduzir em 30% o consumo de energia, em 50% o consumo de água,
em 35% as emissões de gás carbônico e até a totalidade do descarte de resíduos 21.
Com a redução das principais despesas do cotidiano do prédio, a taxa de condomínio
tende a diminuir de forma considerável, o que torna os “prédios verdes” mais atrativos a seus
usuários. Ademais, o valor patrimonial do empreendimento se mantém valorizado ao longo do
tempo, na medida em que utiliza materiais mais dispendiosos na sua construção, mas que
promovem uma efetiva economia a longo prazo, de maneira que os custos para adquiri-los são
suavizados pela economia gerada após a conclusão da obra.
As condições de conforto, saúde e estética também são requisitos importantes para o
julgamento de uma construção verde. Tais critérios colaboram para o aumento da
produtividade daqueles que trabalham no local, pois promovem um agradável meio ambiente
de trabalho, deixando funcionários satisfeitos em realizar suas atividades nesse tipo de
estabelecimento.
Assim, um ambiente de trabalho equilibrado e causador de bem-estar influencia
20
SANTOS, Altair. prédios verdes: o que é isso? Disponível em http://www.cimentoitambe.com.br/massacinzenta/predio-verde-o-que-e-isso/. Acesso em 16 de set. 2010.
21
CASADO, op. cit., p. 17.
39
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
diretamente na produção das empresas e no aprendizado em caso de instituições de ensino. O
arquiteto Volker Hartkopf, professor titular do curso de arquitetura da Universidade Carnegie
Mellon, nos Estados Unidos, afirma que “os projetos de edifícios verdes são mais caros. Aos
poucos, porém, as companhias estão percebendo que o investimento compensa a médio e
longo prazo, em termos de redução de custos e ganhos de produtividade dos funcionários” 22.
Nos “prédios verdes”, também há um maior gerenciamento das fontes poluidoras
externas e internas, como emissão de gás carbônico e descarte de resíduos, para que não
prejudiquem o meio ambiente e nem os freqüentadores e usuários da edificação, além de
preservar indiretamente a qualidade de vida dos vizinhos da edificação.
4.3 Benefícios Socioambientais
Com a união de consumidores satisfeitos, empresas socialmente compromissadas e um
mercado de negócios consciente, o meio ambiente é beneficiado nos mais variados aspectos.
Nos “prédios verdes”, a energia proveniente de usinas hidroelétricas (água), usinas
térmicas (queima de combustível) ou usinas nucleares (fissão e fusão de átomos) é utilizada
de forma racional e planejada. Em alguns casos, a edificação chega a ser até mesmo
energeticamente auto-sustentável, pois a quantidade de energia de que necessita pode ser
produzida através de placas solares ou de aerogeradores implantados no próprio edifício.
Embora cada “prédio verde” possa seguir um modelo singular de gestão de energia, o
consumo reduzido de um empreendimento não significa necessariamente uma menor
produção de energia por parte das fontes energéticas tradicionais. Para atingir um patamar
considerável de diminuição da demanda de energia, é fundamental que tais atitudes sejam
implementadas em larga escala na construção civil.
A água, por sua vez, é um recurso natural não renovável, reconhecido atualmente como
risco natural. Sua preservação influi no compromisso constitucional de um meio ambiente
equilibrado para as presentes e futuras gerações. O uso diário da água nas atividades dos
“prédios verdes”, desde o processo de sua construção, é ambientalmente planejado, dando-se
ênfase às possibilidades de seu reuso, por exemplo, por meio de dutos captadores e de
reservatórios de água da chuva.
O gás carbônico é um dos principais agentes causadores do Efeito Estufa, sendo a
22
HERZOG, Ana
Luiza.
Os prédios
verdes
são mais lucrativos.
Disponível
em
http://planetasustentavel.abril.com.br/noticia/desenvolvimento/conteudo_231676.shtml. Acesso em 16 de set.
2010.
40
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
construção civil, conforme exposto anteriormente, responsável por mais de um terço de sua
emissão, em termos mundiais. A diminuição da difusão de agentes nocivos como este, o que é
alcançado pela utilização de aparelhos energéticos mais eficientes e dotados de um sistema de
geração de energia predominantemente limpa, com baterias para armazenar a eletricidade,
também contribui para diminuir a agressão ao meio ambiente.
5 O PAPEL DO ESTADO NO FOMENTO ÀS CONSTRUÇÕES VERDES:
POLÍTICAS PÚBLICAS
A função que o Estado representa em nossa sociedade sofreu grandes transformações ao
longo dos anos. Com a expansão da democracia, deixou de exercer apenas a defesa e
segurança públicas, passando a ser verdadeiro responsável pelo bem-estar social de seu povo.
Para tanto, porém, é preciso que o Estado desenvolva uma série de ações, em diferentes áreas,
tais como saúde, educação e meio ambiente, ações estas chamadas de políticas públicas.
Diante da situação de crise de escassez dos recursos naturais em escala mundial, o
Estado não pode se omitir da constante elaboração de tais políticas, responsáveis por garantir
e induzir modelos que disseminem o aperfeiçoamento contínuo das práticas de
sustentabilidade.
O Poder Público pode e deve criar mecanismos diferenciados para tornar mais atrativa a
construção dos “prédios verdes”, assunto em destaque neste artigo, como reduzir a alíquota de
IPTU – Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana, incentivar a implantação de
coleta seletiva do lixo, conceder mais espaço aos projetos de prédios que tenham a
pavimentação verde e capacitar profissionais do setor imobiliário para este fim.
Os dois maiores inimigos da sustentabilidade são o desperdício e a baixa produtividade,
uma vez que as tecnologias evoluíram, mas as cidades estão visivelmente menos saudáveis e
seus moradores com menor qualidade de vida. Nesse contexto, novas idéias e procedimentos
são vitais para o compartilhamento de uma realidade ecologicamente sustentável, e para que
esta seja perene e definitiva. Porém, para tanto, é fundamental que o Poder Público transmita
ao setor da construção civil o seu empenho em fazer da construção ambiental uma prioridade.
Em países como Estados Unidos, Japão e membros da Comunidade Européia, já
existem incentivos para os empresários ou pessoas comuns que optem por construções
ambientalmente corretas. E, mesmo aqueles que não dispõem de recursos para investir em
uma casa nova podem aproveitar certos auxílios do governo para realizar pequenas
41
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
23
reformas .
No Brasil, não se pode apontar grandes avanços do governo no intuito de elaborar
políticas incentivadoras dos “prédios verdes”. Porém, algumas ações deveriam ser executadas,
de forma ampla e abrangente, pelo Estado, em prol de um efetivo desenvolvimento dos
projetos relativos às construções verdes e à disseminação de uma consciência sustentável a
sociedade atual.
Os principais estímulos ainda são, em regra, com fins de redução do consumo de
energia, através da exigência do selo Procel (Programa de Conservação de Energia Elétrica)
ao se comprar um produto elétrico, evidenciando que este consome menos energia, e
incentivos na área fiscal/tributária, o que tem ocorrido por meio da aplicação de alíquotas
diferenciadas de impostos como o ICMS (Imposto sobre operações relativas à circulação de
mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual, intermunicipal e de
comunicação) e o IPTU.
Em Fortaleza, por exemplo, foi sancionada, em março deste ano, Lei Municipal que
prevê redução de 5% da alíquota de IPTU dos condomínios que executarem coleta seletiva de
resíduos sólidos. Essa atitude demonstra o início de uma era de mudança de paradigmas, que
utiliza a caracterísitca da extrafiscalidade dos tributos para estimular atitudes positivas ao
meio ambiente na sociedade
O Estado também pode se utilizar de seu poder de compra para adquirir projetos
ambientalmente orientados, apoiando empreendimentos residenciais ou comerciais com
certificação ambiental, o que acaba por propagar as certificações indutoras dessas edificações
(LEED e AQUA) para que a sociedade as conheça e exija.
Desta feita, mostra-se primordial a publicidade destas inovações do setor da construção
civil, para que investidores se interessem em atuar de forma ambientalmente correta e a
sociedade possa reconhecer isso.
Além disso, os municípios, através de suas leis internas, podem elaborar um
Planejamento Urbano compromissado com as idéias de sustentabilidade e cumprimento da
função social da propriedade urbana.
Finalmente, os prédios pertencentes ao Governo devem adequar-se aos novos
parâmetros das construções verdes, tantos em novas edificações, quanto em reformas de
23
FARIA, Caroline. Construção Sustentável. Disponível em http://www.infoescola.com/ecologia/construcaosustentavel/. Acesso em 18 de set. 2010.
42
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
prédios já existentes, como, por exemplo, pleiteando certificações ambientais, o que
comprova que o Poder Público reconhece a importância desses projetos para o mercado e para
a preservação ambiental.
5.1 Projeto de Lei n° 34/2007 propõe incentivos à construção urbana ambientalmente
correta no Brasil
O Deputado Federal Cassio Taniguchi é autor do Projeto de Lei nº 34/2007, que propõe
alterações no Estatuto da Cidade, com a finalidade de oferecer incentivos ao uso racional do
solo urbano como medida de redução dos impactos ambientais. O texto, já aprovado pelo
Senado Federal e pelas comissões temáticas permanentes da Câmara dos Deputados, aguarda
ser apreciado no plenário da Câmara.
O projeto em comento altera os artigos 32 e 33 dos Estatuto das Cidades (Lei
n°10.257/2001), acrescentado os seguintes incisos:
Art. 32 - Lei municipal específica, baseada no plano diretor, poderá delimitar área
para aplicação de operações consorciadas.
(...)
§ 2o Poderão ser previstas nas operações urbanas consorciadas, entre outras medidas:
(...)
III – a concessão de incentivos a operações urbanas que utilizam tecnologias visando
à redução de impactos ambientais, e que comprovem a utilização, nas construções e
uso de edificações urbanas, de tecnologias que reduzam os impactos ambientais e
economizem recursos naturais.
Art. 33 - Da lei específica que aprovar a operação urbana consorciada constará o
plano de operação urbana consorciada, contendo, no mínimo:
(...)
VIII – natureza dos incentivos a serem concedidos aos proprietários, usuários
permanentes e investidores privados, uma vez atendido o disposto no item III do §2º
do art. 32 desta Lei.
O conceito de “operações urbanas consorciadas” é definido pelo próprio Estatuto das
Cidades, em seu artigo 32, §1°, que dispõe, in verbis:
§ 1o Considera-se operação urbana consorciada o conjunto de intervenções e
medidas coordenadas pelo Poder Público municipal, com a participação dos
proprietários, moradores, usuários permanentes e investidores privados, com o
objetivo de alcançar em uma área transformações urbanísticas estruturais, melhorias
sociais e a valorização ambiental.
43
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
O Estatuto é importante marco regulatório da gestão do meio ambiente artificial, sendo
suas ações conjuntas meios de garantia do cumprimento da função social da propriedade e de
um melhor aproveitamento do solo urbano.
A mudança nos artigos desse diploma legal visa criar normas programáticas, pelas quais
possam surgir possibilidades de incentivo a empreendimentos da construção civil, que
utilizem práticas sustentáveis nas fases de planejamento, execução das obras e uso das
edificações.
O projeto não objetiva diminuir os investimentos da iniciativa privada nesse setor. Ao
contrário, procura incentivar ações de mercado coerentes com uma moderna visão social, em
que se conciliam os princípios liberais e os valores ambientais, pretendendo estimular a
sociedade a construir uma nova concepção de moradia e utilizá-la em larga escala, mesmoque
custem preços um pouco mais elevados.
Analisando as alterações propostas, também se percebe o chamado de cooperação
incluindo estados e municípios, que terão abertura de adequarem o conceito de Construção
Sustentável a suas necessidades.
A aprovação do presente projeto seria de grande importância para uma maior efetivação
dos parâmetros sustentáveis na construção civil, incentivando investidores a apoiar tais
edificações e se adequar às novas exigências de mercado.
5.2 Incentivos Fiscais: ICMS Ecológico e IPTU Ambiental
A Tributação Ambiental é instrumento de gestão e preservação do meio ambiente, visto
que aplicar direcionamentos a certos tributos, mesmo de forma desvinculada, é meio de
gerenciamento dos recursos naturais e aprimoramento da consciência ambiental.
O artigo 170, IV, da Constituição Federal autoriza a utilização dos tributos como
mecanismos indutores de atividades econômicas, através de benefícios fiscais positivos ou
negativos. Assim, a Tributação Ambiental é medida fundamental para construir uma nova
orientação de mercado, pois a atividade do Fisco não se resume a sua função arrecadatória,
atuando também com alíquotas específicas de certas atividades e orientação de políticas
públicas (extrafiscalidade).
O ICMS e o IPTU, por se tratarem de impostos, são tributos que têm por fato gerador
uma situação independente de qualquer atividade estatal específica relativa ao contribuinte,
44
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
conforme artigo 16 do Código Tributário Nacional 24. Ou seja, não estão atrelados a nenhuma
ação direcionada ao contribuinte ou por ele provocada. Tal assertiva tem lugar também na
Constituição Federal, em seu artigo 167, IV25, que dispõe sobre a não vinculação do produto
arrecadado pelos impostos a fundo, órgão ou despesa.
Diante dessa afirmação, poderia-se concluir que os valores de arrecadação provenientes
de impostos não podem ser destinados a custear a proteção ambiental, em nenhuma de suas
formas. Porém, segundo os autores Celso Antonio Pacheco Fiorillo e Renata Marques
Ferreira26, essa interpretação não é correta:
Isso não quer dizer, no entanto, que nossa Constituição não tenha amparado
determinados impostos e lhes conferido, indiscutivelmente, como no caso do IPTU,
natureza típica de tributo ambiental, imposto direcionado à viabilização de uma bem
ambiental, como as cidades.
Não só o IPTU apresenta feição ambiental. O ICMS é de competência dos Estados e do
Distrito Federal e apresenta-se como imposto atrativo de determinados nichos de mercado,
quando possui alíquotas diferenciadas, reduzidas ou isentas. Na visão dos mesmos autores 27,
tal imposto é:
Tributo estadual de maior relevância para os estados da federação, o ICMS vem
sendo utilizado desde 1991 por alguns Estados com típica indicação ambiental.
Conhecido por ICMS Ecológico, sua utilização no sentido da viabilização de
atividades “menos degradadoras” nos Municípios vem sendo importante fonte de
gestão ambiental..
5.2.1 Redução da alíquota de ICMS para Ecoprodutos na construção civil
O mercado para tecnologias e produtos sustentáveis no Brasil apresenta resultados e
oportunidades reais diante do fenômeno das construções verdes. Segundo pesquisa do Ibope,
realizada em 2007, 52% dos consumidores brasileiros já estavam dispostos a comprar
produtos de fabricantes que não agridem o meio ambiente mesmo que tivessem que pagar a
24
CTN. Art. 16 - Imposto é o tributo cuja obrigação tem por fato gerador uma situação independente de qualquer
atividade estatal específica, relativa ao contribuinte.
25
Art. 167 - São vedados: (...) IV - a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa (...).
26
FIORILLO, Celso A. Pacheco. FERREIRA, Renata Marques. Direito ambiental tributário. 2ª ed. São Paulo:
Saraiva, 2009. p. 57.
27
Ibid., p. 115.
45
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
28
mais por isso .
Para atender a nova demanda de clientes diferenciados e compromissados com a
preservação ambiental, o setor de construção precisa, muitas vezes, importar produtos
sustentáveis específicos para tais edificações ou comprá-los no mercado interno por um preço
bem mais elevado, além dos altos impostos.
Uma forma de atuação do Estado para incentivar que os empresários aderissem ao
ramo da construção ambientalmente correta seria reduzir os impostos atrelados a esses
produtos (ecoprodutos). Formas de redução ou isenção tributária contribuiriam para
consolidar o mercado da sustentabilidade no Brasil, estimulando a adoção de novos padrões
de produção e tecnologias mais limpas pelas empresas, sem transferir os custos dessa
transformação mercadológica para o consumidor.
Para Roque Carrazza29, “da concepção do tributo como meio de obtenção de recursos
avançou-se para a idéia de que ele pode e deve ser utilizado para favorecer a realização dos
mais elevados objetivos sociais, econômicos e políticos”, não servindo somente para atingir
fins arrecadatórios, mas, sim, para atuar como instrumento de regulação de mercado e
incentivo a ações de preservação ao meio ambiente.
Portanto, fica evidente que a diminuição ou isenção das alíquotas de ICMS para os
produtos e serviços sustentáveis seria ferramenta importante para tornar os “prédios verdes”
mais interessantes para os construtores, na medida em que iam representar menores custos
para os investidores da área.
5.2.2 O IPTU Ambiental e os “prédios verdes”
É de fácil percepção que, com o advento do Estatuto da Cidade 30, o IPTU tornou-se
instrumento de efetivação da função social da propriedade diante do chamado meio ambiente
artificial, na medida em que consideramos as cidades com natureza de bem jurídico
ambiental.
Entendemos que para cumprir a já referida função social de forma devida, a proteção e
preservação do meio ambiente é medida fundamental, devendo o poder público municipal
28
LOPES, Juliana. Os desafios e oportunidades para a consolidação do mercado de tecnologias sustentáveis no
Brasil. Disponível em http://www.ideiasocioambiental.com.br/revista_conteudo.php?codConteudoRevista=302.
Acesso em 18 de set. 2010.
29
CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 21 ed. rev. ampl. e atual. até a EC n.
48/2005. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 659.
30
Estatuto da Cidade. Art. 47 - Os tributos sobre imóveis urbanos, assim como as tarifas relativas a serviços
públicos urbanos, serão diferenciados em função do interesse social.
46
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
utilizar o IPTU para alcançar tal desiderato.
Trazendo essa realidade de instrumentalidade do IPTU aos “prédios verdes”, uma
edificação nesses termos, através dos incentivos fiscais, pode contribuir para tal imposto de
forma diferenciada e reduzida, atraindo a atenção dos empresários do ramo imobiliário e dos
próprios usuários/compradores, que por usufruir deste benefício fiscal ao longo dos anos,
procurarão adquirir construções com essa qualificação para pagarem um valor reduzido.
As diferenciações na cobrança desse imposto podem apresentar-se de três tipos:
- IPTU Ambiental Preservacionista: é forma de tributação reduzida da propriedade
territorial urbana, de forma a diminuir o valor do imposto ou isentar o contribuinte, na medida
em que se verifique a real preservação do meio ambiente, que engloba a flora, a fauna, as
belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, evitando a
poluição do ar e das águas. Todas essas atuações de proteção podem ser encontradas
conjuntamente nos “prédios verdes”.
- IPTU Ambiental Repressivo: é forma de majoração do imposto, aumentando o valor
de contribuição de quem cause gravames ao meio ambiente, em toda a sua dimensão e
diversidade.
- IPTU Ambiental Progressivo no tempo: a Constituição Federal autoriza aos
Municípios a aplicação da progressividade desse imposto em relação ao incorreto
aproveitamento do solo, nos termos de lei municipal própria. No âmbito ambiental, é preciso
interpretar o dispositivo diante do caso concreto. Se a hipótese de incidência está atrelada a
preservação ambiental é IPTU Ambiental Preservacionista. Se importar em descumprimento
da função social da propriedade cabe IPTU Ambiental Progressivo.
A aplicação de contribuições de IPTU diferenciadas por parte dos Municípios, em suas
respectivas leis internas, é atividade propulsora do avanço dos “prédios verdes”, pois deixam
tais investimentos mais interessantes aos olhos do mercado, tanto para fornecedores quanto
para consumidores. Os incentivos fiscais nessas áreas demonstram o compromisso do Poder
Público com a preservação ambiental e seu apoio à nova mentalidade sustentável do mundo
moderno.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O dever de proteção ao meio ambiente, mais proeminente a cada desastre ecológico que
se presencia, vem interferindo cada vez mais nas ações da sociedade. O direito de propriedade
47
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
é relativizado pela função socioambiental da propriedade, a atividade empresarial busca meios
de aliar tecnologia à preservação ambiental e o Estado institui normas e desenvolve
programas no intuito de amenizar os danos e promover a educação ambiental.
Nesse contexto, no Brasil, o setor da Construção Civil, responsável por um enorme
impacto ambiental, se vê diante do dilema de atender, ao mesmo tempo, às demandas
estruturais, habitacionais e mercadológicas de um país que se desenvolve a passos largos, mas
que sofre com os resultados de décadas de crescimento urbano desordenado. Como forma de
solucionar esta árdua questão, despontam as “construções verdes”, as quais, a partir da
utilização de produtos e técnicas menos agressivos à natureza, acabam por elevar o bem estar
de quem participa de sua execução e daqueles que vão usufruir da obra depois de concluída.
No entanto, a sustentabilidade de uma edificação pode ser alcançada das mais diversas
formas, o que tem levado instituições ao redor do mundo a tentar estabelecer os critérios mais
relevantes para a classificação de um empreendimento como “verde”, e cuja observância finda
na concessão de uma certificação ambiental. Assim, certificados como o LEED e o AQUA
funcionam como verdadeiros selos de compromisso de certa edificação com o meio ambiente,
dando maior segurança ao novo mercado consumidor que procura depositar seus
investimentos em projetos desse tipo.
Diante dos inegáveis benefícios socioambientais que as construções ambientalmente
orientadas proporcionam, não é aceitável que o Estado mantenha-se inerte. Ao contrário, ele
pode e deve estimular a propagação de tais empreendimentos por meio de políticas públicas
que se desdobram em incentivos fiscais, programas educacionais e mesmo na adaptação de
prédios públicos aos padrões de sustentabilidade.
Num primeiro momento, aconselhável o aproveitamento dos critérios adotados pelas
instituições
emissoras
de
certificados
ambientais
como
parâmetro
norteador
da
implementação dessas ações governamentais, haja vista o caráter emergencial do tema ora
exposto. Imperioso atentar, porém, para o fato de que essas certificações têm origem
internacional, de modo que, ainda que sofram adaptações, podem não se adequar
perfeitamente à realidade brasileira e menos ainda, à nordestina.
O estado cearense, por exemplo, tem problemas e soluções específicas quando o assunto
é proteção ambiental. Voltando-se para este fato, através de apoio aos estudos desenvolvidos
em âmbito local, talvez torne-se possível alcançar a efetivação do direito ao meio ambiente
48
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
ecologicamente equilibrado da maneira como a Constituição Federal estabelece e o a
realidade ambiental requer.
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50
O IPTU PROGRESSIVO NO TEMPO E OS PRINCIPIOS DA FUNÇÃO SOCIAL DA
PROPRIEDADE E DA PRESERVAÇÃO DO MEIO AMBIENTE
Carlos Araújo Leonetti 1
RESUMO: A Constituição de 1988 inovou substancialmente no reconhecimento da
importância do princípio da função sócio-ambiental da propriedade, explicitando alguns dos
instrumentos para sua consecução. Dentre estes instrumentos, se destacam o uso de alíquotas
do IPTU progressivas no tempo e a obrigatoriedade de adoção de plano diretor, para cidades
com mais de 20.000 habitantes. Ambos os instrumentos, além de outros, estão disciplinados
na Lei 10.257/2001, mais conhecida por Estatuto da Cidade. Infelizmente, constata-se que,
mais de vinte anos após a promulgação da Carta de 1988 e quase dez depois da edição do
Estatuto da Cidade, na prática, pouco mudou. Isto, porque a implementação dos instrumentos
referidos exige lei específica municipal, o que esbarra na falta de vontade política dos
governantes e parlamentares.
PALAVRAS-CHAVE: Função social da propriedade,Mmeio ambiente; IPTU; Estatuto da
Cidade.
ABSTRACT: The 1988 Brazilian Constitution has substantially innovated in recognizing the
importance of the principle of social and environmental function of property, explaining some
of the instruments for their achievement. Among these instruments, we highlight the use of
the progressive in time property tax rates and mandatory adoption of master plans for cities
with more than 20.000 unhabitants. Both instruments, among others, are regulated by Federal
statute 10.257/2001, better known as the Cities Statute. Unfortunately, it appears that more
than twenty years after the promulgation of the 1988 Constitution and almost ten after the
release of the Cities Statute, in practice, little has changed. This is because the implementation
of these instruments requires specific municipal statutes, which touches on the lack of
political will of governments and legislators.
KEY WORDS: property social role; environment; brazilian urban real state tax; brazilian
urban law satute.
1 CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE O IPTU
O IPTU, imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana, é tributo de
competência privativa dos Municípios e do Distrito Federal (Constituição, art. 156, I, c/c art.
147, in fine.) Excepcionalmente, a União pode instituí-lo e cobrá-lo sobre os imóveis situados
1
Professor da graduação e da pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. Procurador
da Fazenda Nacional.
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
em Território Federal não dividido em Municípios (CF, art. 147.)
Segundo o art. 32 do Código Tributário Nacional - CTN , a hipótese de incidência do
IPTU é a propriedade, o domínio útil ou a posse, de bem imóvel por natureza ou acessão
física, como definido no Código Civil, situado na zona urbana do Município, desde que
servido por, no mínimo, dois dos melhoramentos arrolados no parágrafo 1o daquele
dispositivo.
A propriedade é o direito real por excelência, que confere ao seu titular os direitos, ou
atributos, de uso, gozo e disposição da coisa, além do de poder reavê-la de quem quer que
injustamente a possua (Código Civil, art. 524.)
Domínio útil, por seu turno, é o nome dado, pelo Código Civil (arts. 678 e ss.), ao
conjunto de atributos conferidos ao titular de enfiteuse, aforamento ou emprazamento, direito
real em favor de terceiro, não proprietário do bem, que lhe permite agir quase como se o
fosse. Nos dias atuais, a enfiteuse, no Brasil, como instituto de direito privado, é praticamente
inexistente, na prática. O aforamento subsiste, em regra geral, tão-somente como instituto de
direito público, em especial, o administrativo, incidindo sobre os imóveis federais
denominados de terrenos de marinha (Decreto-lei 9.760/46.)
Finalmente, a posse é uma situação essencialmente fática que consiste no
comportamento, por parte de alguém, pessoa física, jurídica ou a esta equiparada, como se
fosse proprietário de um determinado bem, sendo-o, ou não. É o que se depreende do art. 485
do Código Civil, de nítida inspiração na teoria objetivista da posse preconizada por JHERING,
conforme reconhecimento unânime da doutrina pátria, e que a conceitua, ainda que de forma
oblíqua, como o exercício de fato, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes ao domínio.
Em outras palavras, no direito brasileiro, a posse é relação de fato entre a pessoa e a
coisa, tendo em vista a utilização econômica desta. É a exteriorização da conduta de quem
procede como normalmente age o dono. É a visibilidade do domínio.
No entanto, conforme muito bem observa SACHA CALMON NAVARRO COÊLHO
(2001, p. 516/519), apesar de o CTN, em seu art. 34, incluir o possuidor a qualquer título
entre os contribuintes do IPTU, não é qualquer posse que autoriza a exigência, do seu titular,
do imposto: apenas aquelas hipóteses em que o possuidor se comporta como se legítimo
proprietário do imóvel fosse. Assim, o locatário, o comodatário, e outros que a estes se
assemelham, não são contribuintes do IPTU.
Com razão o tributarista mineiro: somente há sentido em tributar-se, em sede de IPTU, a
52
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
mera posse, quando esta é exercida como se autêntica propriedade fosse, isto é, naquelas
hipóteses, muito comuns no Brasil, ainda que, de modo especial, nas áreas rurais, em que o
possuidor do bem se julga o seu efetivo senhor e, de fato, o é, apenas não detendo o
necessário título de domínio. Por outro lado, nos casos de desdobramento da posse, v.g.,
locação, comodato, depósito, penhor, etc., revela-se, inteiramente, descabida a exigência do
imposto do possuidor direto do bem (o locatário, comodatário, depositário, credor
pignoratício, etc.), devendo sê-lo do seu proprietário, via de regra, conhecido, ou conhecível,
pelo Fisco.
Os autores costumam situar o IPTU entre os chamados impostos reais, i. é aqueles em
cuja quantificação não se leva em conta aspectos pessoais do contribuinte, como ocorre, por
exemplo, ainda que não na medida desejável, com o imposto de renda – pessoa física.
ALFREDO AUGUSTO BECKER (1972, p. 390/394) vê o IPTU como um autêntico
imposto sobre a existência de direitos, no caso o de propriedade de um bem imóvel, no que é
aplaudido por NAVARRO COÊLHO (2001, p. 516/519), que lembra que o núcleo da hipótese
de incidência é o direito real da pessoa e não, a coisa. COÊLHO rejeita, outrossim, a posição
da doutrina tradicional que classifica o IPTU como tributo real, entendendo que tal
classificação não se reveste de caráter jurídico.
Contrariando o ensinamento de ALIOMAR BALEEIRO(2001, p. 253/256), para quem
o IPTU é velho, na competência dos Municípios brasileiros, HUGO DE BRITO
MACHADO(2004, p. 368/374) lembra que o IPTU figurava, na primeira Constituição
republicana, como um imposto de competência dos Estados, passando à alçada municipal a
partir da Carta de 1934.
Na verdade, o texto constitucional, a partir da Emenda 18/65, cinge o campo de
incidência do IPTU à propriedade predial e territorial urbana, ao passo que o art. 32 do CTN,
como já exposto anteriormente, inclui o domínio útil e a posse entre suas hipóteses de
incidência, configurando-se, assim, uma aparente exorbitância da lei.
No entanto, tal contradição entre o texto legal e o constitucional é, apenas, aparente,
posto que a teoria objetivista da posse, de JHERING, adotada, majoritariamente, pelo Código
Civil brasileiro, conforme já visto, permite, perfeitamente, entender-se a posse incluída na
expressão propriedade, na forma utilizada pelo constituinte. Isto é, parece claro que o
constituinte quis permitir a tributação do patrimônio do contribuinte, na parte em que este é
integrado por imóveis urbanos. Assim, se uma determinada pessoa tem como seu um imóvel
53
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
urbano, o qual representa, em seu patrimônio, um determinado valor, deve pagar o IPTU
devido, ainda que não tenha título de domínio.
2 A PROGRESSIVIDADE DAS ALÍQUOTAS DO IPTU
As alíquotas do IPTU são as fixadas pelo respectivo Município, por meio de lei. Em
princípio, o Município goza de inteira liberdade para fazê-lo, condicionado, por óbvio, ao
respeito aos princípios constitucionais tributários, sejam explícitos ou implícitos.
Assim, no estabelecimento das alíquotas aplicáveis ao IPTU como, de resto, aos demais
impostos, o legislador municipal deverá atentar para que não se fira, por exemplo, os
princípios da isonomia tributária e da vedação do uso de tributo com efeito de confisco (CF,
art. 150, II e IV.) Quanto a este último, cumpre lembrar que não se aplica nas hipóteses em
que o imposto é utilizado, preponderantemente, como tributo extra-fiscal, como, v.g.,
instrumento de estímulo para o cumprimento da função social da propriedade.
Os tributos podem ser regressivos ou progressivos. O tributo é regressivo quando sua
onerosidade RELATIVA cresce na razão inversa da capacidade econômica (ou contributiva)
do contribuinte; i. é, quanto mais pobre o sujeito passivo, maior será o peso relativo do
imposto. É o caso dos tributos indiretos em geral (aqueles em que o ônus financeiro é
suportado por outra pessoa, o consumidor final, diferente da do contribuinte de direito; v.g.
IPI, ICMS, ISS, COFINS, etc.) e da maioria dos tributos diretos (v.g., IPVA, ITBI, e o próprio
IPTU, como regra geral.)
Já no tributo progressivo, sua onerosidade relativa (i. é, o peso do valor devido) cresce
na medida em que aumenta a capacidade contributiva do contribuinte. Ou seja: os mais ricos
pagam proporcionalmente mais do que os mais pobres. O exemplo típico de imposto
progressivo é o imposto de renda - pessoa física, embora, atualmente, com a redução das
faixas de renda a, apenas, três, a sua progressividade resta prejudicada.
Sob a égide das Cartas de 1946 e de 1967/69, o Supremo Tribunal Federal consagrou o
entendimento segundo o qual o uso de alíquotas progressivas para o IPTU, proporcionalmente
ao número de imóveis do contribuinte, era inconstitucional, o que foi consubstanciado na
Súmula 589.
A Constituição de 1988 inovou, nesta matéria, ao prever o uso da progressividade, em
sede de IPTU, em duas situações:
a) em respeito ao princípio da capacidade contributiva, insculpido no art. 145, par. 1º, da
54
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Constituição e aplicável, "sempre que possível", aos impostos;
b) para conferir eficácia ao princípio da "função social da propriedade", conforme
determina o já citado par. 1º do art. 156, além do art. 182, par. 4º, ambos relativamente ao
IPTU, e, ainda, o art. 153, par. 4º , com referência ao ITR.
Assim, pode dizer que há previsão constitucional de dois tipos distintos de
progressividade, em sede de IPTU, a saber: a progressividade simples, i. é, a adoção de
alíquotas variáveis, proporcionais à base de cálculo do imposto (IPTU e ITR;) é a prevista nos
arts. 153, par. 4º , II e 156, par. 1º); a progressividade no tempo, ou seja o uso de alíquotas
crescentes com o passar do tempo (aumentando a cada ano, por exemplo), prevista, de forma
expressa, apenas para o IPTU e subordinada a normas a serem veiculadas por lei federal,
ainda não editada.
Na chamada progressividade simples, a alíquota adotada não cresce com o tempo mas,
em função de outros parâmetros relacionados ao contribuinte, tais como: valor da base de
cálculo global do imposto, número de bens imóveis de sua propriedade, domínio útil ou posse,
área total dos imóveis, etc.
Em razão do entendimento adotado pelo STF, proveu-se a aprovação da Emenda
Constitucional 29, de 13 de setembro de 2.000, pela qual alterou-se a redação do parágrafo 1º.
do art 156, deixando-se claro que o IPTU “pode ser progressivo em razão do valor do
imóvel.”
Na doutrina, mesmo antes da EC 29/2000, contudo, vozes não faltavam em prol da
admissão da progressividade, como regra geral, em sede de IPTU.
HUGO DE BRITO MACHADO(2004, p. 368/374), por exemplo, sustenta que a
progressividade nas alíquotas do IPTU já era admitida pela Constituição anterior e o continua
sendo, de forma ainda mais explícita, pela atual. São suas as palavras:
Em face da Constituição Federal de 1988 voltou a reinar divergência em torno da
validade do IPTU progressivo. Em síntese, tem sido sustentado que o parágrafo 1 º do
art. 156 da vigente Constituição, segundo o qual o IPTU "poderá ser progressivo,
nos termos de lei municipal, de forma a assegurar o cumprimento da função social
da propriedade", não autoriza outra forma de progressividade para este imposto além
da prevista pela própria Constituição, em seu art. 182, parágrafo 4º, inciso II.
Não obstante defendida por tributaristas os mais eminentes, a tese não nos parece
procedente.
Em primeiro lugar, porque não é razoável admitir tenha a Constituição utilizado a
norma do art. 156, parágrafo 1º, inutilmente, e a prevalecer a interpretação segundo a
qual é inadmissível outra progressividade que não seja a do art. 182, parágrafo 4 º, a
regra do art. 156, parágrafo 1º restaria absolutamente inútil, podendo ser excluída do
55
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
texto constitucional sem lhe fazer qualquer falta.
[...]
Em segundo lugar, porque não se pode deixar de Ter em conta a técnica legislativa
utilizada pelo constituinte de 1988. A Constituição de 1988 trata de cada assunto em
seu lugar, podendo ser a relativa autonomia no trato, ali, de cada matéria, facilmente
demonstrada.
[...]
Em terceiro lugar, pode ser invocado, ainda, o elemento teleológico ou finalístico.
Do ponto de vista da política urbana, pode-se entender que a propriedade cumpre
sua função social quando atende às exigências fundamentais da urbanização,
expressas no respectivo plano diretor. Isto, porém, não significa que não existam
outras formas pelas quais a propriedade também tenha de cumprir sua função social,
até porque a propriedade há que ser encarada como riqueza que é, e não apenas
como elemento a ser tratado pelas normas de política urbana.
Por seu turno, para SACHA CALMON NAVARRO COÊLHO(516/519), o IPTU admite
(e admitia) a progressividade estribado em duas matrizes:
a) a matriz da política urbana, cujo fundamento constitucional tem sede no art. 182,
parágrafo 4º, inciso II, da Constituição;
b) a matriz da capacidade contributiva, que exsurge do art. 145, parágrafo 1º, da Carta
Política.
Assiste razão ao tributarista mineiro: porque razão estaria o IPTU fora do alcance da
norma insculpida no parágrafo 1º do art. 145 da Constituição, segundo a qual sempre que
possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade
econômica do contribuinte ?
Mesmo que se entenda que a expressão sempre que possível se refira tanto ao caráter
pessoal dos impostos, como ao respeito à capacidade contributiva (ou econômica) do
contribuinte, não se visualiza óbice a impedir que o Município utilize a progressividade, nas
alíquotas do IPTU, a fim de graduar o tributo segundo a capacidade econômica do
contribuinte, desde que se julgue apto a fazê-lo.
Em outras palavras, a partir da Carta de 1988, o IPTU passou a revestir, também, a
natureza de tributo extra-fiscal.
O parágrafo 1º do art. 156, da Constituição, prevê que o IPTU "poderá ser progressivo,
nos termos de lei municipal, de forma a assegurar a função social da propriedade."
Por seu turno, o par. 4º do art. 182, da Carta, dispõe, verbis:
Par. 4º - É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área
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A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo
urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado
aproveitamento, sob pena, sucessivamente de :
I - parcelamento ou edificação compulsórios;
II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;
III – desapropriação [...]
Frise-se que o uso da progressividade no IPTU, desde que em estrita obediência às
regras constitucionais, não configura violação ao princípio da vedação de tributo com efeito
de confisco, insculpido no art. 150, inciso IV, da Lei Maior, embora haja quem entenda que
esta progressividade não é ilimitada.
Cumpre lembrar, ainda, por oportuno, que, tanto o art. 156, parágrafo 1 º , como o 182,
parágrafo 4º , inciso II, da Constituição prevêem uma faculdade aos Municípios que a
adotarão, ou não, em função de seus interesse e conveniência, à luz das realidades locais.
Gize-se que o uso de alíquotas do IPTU progressivas no tempo deve atender ao disposto
na lei federal prevista no caput do parágrafo 4º do art. 182 da Constituição, a saber, a Lei
10.257, de 10 de julho de 2001, mais conhecida como Estatuto da Cidade.
Este diploma legal visou estabelecer “normas de ordem pública e interesse social que
regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar
dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental.
O IPTU progressivo no tempo é disciplinado no art. 7º., do seguinte teor:
Art. 7o Em caso de descumprimento das condições e dos prazos previstos na forma
do caput do art. 5o desta Lei, ou não sendo cumpridas as etapas previstas no § 5o do
art. 5o desta Lei, o Município procederá à aplicação do imposto sobre a propriedade
predial e territorial urbana (IPTU) progressivo no tempo, mediante a majoração da
alíquota pelo prazo de cinco anos consecutivos.
§ 1o O valor da alíquota a ser aplicado a cada ano será fixado na lei específica a que
se refere o caput do art. 5o desta Lei e não excederá a duas vezes o valor referente ao
ano anterior, respeitada a alíquota máxima de quinze por cento.
§ 2o Caso a obrigação de parcelar, edificar ou utilizar não esteja atendida em cinco
anos, o Município manterá a cobrança pela alíquota máxima, até que se cumpra a
referida obrigação, garantida a prerrogativa prevista no art. 8o.
§ 3o É vedada a concessão de isenções ou de anistia relativas à tributação progressiva
de que trata este artigo.
Assim, o IPTU ganhou, com a Constituição atual, um papel de destaque como
instrumento de concretização da política urbana nacional, na medida em que pode ser
utilizado para estimular os proprietários, enfiteutas e demais possuidores de imóveis urbanos,
57
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
a cumprir o estabelecido no plano diretor do Município e, destarte, fazer com que se atenda o
princípio da função social da propriedade. Neste giro, o IPTU progressivo no tempo também
colabora com a proteção do meio ambiente, na medida em que estimula o correto
aproveitamento dos imóveis urbanos, o qual deverá obedecer as estipulações do Plano Diretor.
Neste aspecto, vale a pena lembrar o que dispõem os arts. 39 e 40 do Estatuto da
Cidade:
Art. 39. A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências
fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, assegurando o
atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça
social e ao desenvolvimento das atividades econômicas, respeitadas as diretrizes
previstas no art. 2o desta Lei.
Art. 40. O plano diretor, aprovado por lei municipal, é o instrumento básico da
política de desenvolvimento e expansão urbana.
§ 1o O plano diretor é parte integrante do processo de planejamento municipal,
devendo o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e o orçamento anual
incorporar as diretrizes e as prioridades nele contidas.
§ 2o O plano diretor deverá englobar o território do Município como um todo.
§ 3o A lei que instituir o plano diretor deverá ser revista, pelo menos, a cada dez
anos.
§ 4o No processo de elaboração do plano diretor e na fiscalização de sua
implementação, os Poderes Legislativo e Executivo municipais garantirão:
I – a promoção de audiências públicas e debates com a participação da população e
de associações representativas dos vários segmentos da comunidade;
II – a publicidade quanto aos documentos e informações produzidos;
III – o acesso de qualquer interessado aos documentos e informações produzidos.
Por sua vez, o art. 2º. da Lei 10.257/01, mencionado no caput do art. 39, dispõe:
Art. 2o A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das
funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes
gerais:
I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra
urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte
e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações;
II – gestão democrática por meio da participação da população e de associações
representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e
acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano;
III – cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais setores da
sociedade no processo de urbanização, em atendimento ao interesse social;
IV – planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da
população e das atividades econômicas do Município e do território sob sua área de
influência, de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus
efeitos negativos sobre o meio ambiente;
58
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
V – oferta de equipamentos urbanos e comunitários, transporte e serviços públicos
adequados aos interesses e necessidades da população e às características locais;
VI – ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar:
a) a utilização inadequada dos imóveis urbanos;
b) a proximidade de usos incompatíveis ou inconvenientes;
c) o parcelamento do solo, a edificação ou o uso excessivos ou inadequados em
relação à infra-estrutura urbana;
d) a instalação de empreendimentos ou atividades que possam funcionar como pólos
geradores de tráfego, sem a previsão da infra-estrutura correspondente;
e) a retenção especulativa de imóvel urbano, que resulte na sua subutilização ou não
utilização;
f) a deterioração das áreas urbanizadas;
g) a poluição e a degradação ambiental;
VII – integração e complementaridade entre as atividades urbanas e rurais, tendo em
vista o desenvolvimento socioeconômico do Município e do território sob sua área
de influência;
VIII – adoção de padrões de produção e consumo de bens e serviços e de expansão
urbana compatíveis com os limites da sustentabilidade ambiental, social e
econômica do Município e do território sob sua área de influência;
IX – justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de
urbanização;
X – adequação dos instrumentos de política econômica, tributária e financeira e dos
gastos públicos aos objetivos do desenvolvimento urbano, de modo a privilegiar os
investimentos geradores de bem-estar geral e a fruição dos bens pelos diferentes
segmentos sociais;
XI – recuperação dos investimentos do Poder Público de que tenha resultado a
valorização de imóveis urbanos;
XII – proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do
patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico;
XIII – audiência do Poder Público municipal e da população interessada nos
processos de implantação de empreendimentos ou atividades com efeitos
potencialmente negativos sobre o meio ambiente natural ou construído, o conforto
ou a segurança da população;
XIV – regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de
baixa renda mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e
ocupação do solo e edificação, consideradas a situação socioeconômica da
população e as normas ambientais;
XV – simplificação da legislação de parcelamento, uso e ocupação do solo e das
normas edilícias, com vistas a permitir a redução dos custos e o aumento da oferta
dos lotes e unidades habitacionais;
XVI – isonomia de condições para os agentes públicos e privados na promoção de
empreendimentos e atividades relativos ao processo de urbanização, atendido o
interesse social.
3 A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE NA CONSTITUIÇÃO DE 1988
A necessidade de que a propriedade cumpra sua função social, de há muito defendida
por parte da doutrina, ganhou, no Brasil, status constitucional com a Carta de 1934, que teve,
59
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
como se sabe, vida curta, ceifada que foi pelo advento da Constituição de 1937, a "polaca",
mediante a qual Getúlio Vargas implantou o chamado "Estado Novo".
Na Carta de 1946, redigida sob os ventos da redemocratização que se seguiu ao final da
Segunda Grande Guerra, a necessidade do cumprimento da função social da propriedade
retornou ao texto constitucional, entre os princípios regentes da ordem econômica e social
(art. 147), prevendo-se que o uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social.
Entretanto, o disposto no par. 16 do art. 141, que arrolava os chamados direitos e garantias
individuais, garantia o direito de propriedade, sem fazer qualquer menção ao cumprimento de
sua função social.
A Emenda Constitucional nr. 10, de 9.11.64, acresceu parágrafos ao art. 147 da
Constituição, prevendo a possibilidade de a União promover a desapropriação de imóveis
rurais para os fins previstos neste artigo.
A Constituição de 1967 manteve, por seu turno, a função social da propriedade entre os
princípios da ordem econômica e social (art. 157, III.) No entanto, silenciou a respeito ao
tratar do direito de propriedade como um direito e garantia individual, no art. 150, par. 22.
A situação foi mantida com a Emenda 1/69.
Finalmente, a Carta de 1988 inovou, substancialmente, no tratamento dado à matéria, ao
incluir a função social da propriedade entre os direitos e garantias individuais e coletivos (art.
5º, XXIII), conferindo-lhe, assim, o status de "cláusula pétrea" ( art. 60, par. 4º, IV.)
Por outro lado, a Constituição atual manteve a função social da propriedade entre os
princípios da ordem econômica (art. 170, III) e, não satisfeita, cuidou de, inclusive, prever os
requisitos mediante os quais a propriedade de bens imóveis, sejam urbanos ou rurais, cumpre
sua função social.
Assim, o par. 2º do art. 182 dispõe que a propriedade urbana cumpre sua função social
quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano
diretor.
Por sua vez, o art. 186 arrola os requisitos para o cumprimento da função social da
propriedade rural, remetendo à lei federal estabelecer os respectivos critérios e graus de
exigência. Tal lei é a de nr. 8.629/93.
O art. 5º da Carta de 88, apesar de garantir, no seu caput, a inviolabilidade do direito à
propriedade, determina, em seus incisos XXII e XXIII, verbis: “XXII – é garantido o direito de
60
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
propriedade; XXIII – a propriedade atenderá a sua função social; [...]”
Assim, a partir da Constituição de 1988, toda forma de propriedade no Brasil, após a
Constituição de 1988, está impregnada do princípio da função social da propriedade.
Ou seja: o constituinte de 1988 fez com que o princípio da função social da propriedade
passasse a integrar o próprio desenho, a estrutura mesmo, do direito à propriedade privada,
condicionando este ao cumprimento daquele. Em outras palavras, a partir da CF/88, apenas a
propriedade privada que cumpra sua função social faz jus à proteção jurídica; daí a
extraordinária importância da inovação constitucional.
4 A PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE NA CONSTITUIÇÃO DE 1988
A Carta Constitucional de 1988 dedicou especial atenção à proteção ao meio ambiente.
Assim, além de dedicar ao tema o Capítulo VI – Do meio ambiente - do Título VII – Da
ordem social -, trata da defesa do meio ambiente em outros dispositivos como, v.g., o art.
170, VI , o qual o inclui entre os princípios da ordem econômica, 177, par. 4º., II, b, 186, II,
dentre outros.
Por seu turno, o Estatuto da Cidade, já em seu art. 1º., parágrafo único, estabelece que:
Parágrafo único. Para todos os efeitos, esta Lei, denominada Estatuto da Cidade,
estabelece normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da
propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos
cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental. (grifado)
Esta preocupação do legislador se manifesta em diversos outros dispositivos, como, por
exemplo, o art. 2º., I, V, g, VIII, e XII; 4º., III, c, V, e 26, VII, dentre outros.
O art. 2º. I, merece destaque, ao incluir, entre as diretrizes gerais da política urbana, a
“garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia,
ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao
trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações”, além de. (grifado)
5 O IPTU COMO INSTRUMENTO PARA O CUMPRIMENTO DA FUNÇÃO SOCIAL
DA PROPRIEDADE E DA PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE
Conforme já visto, a Constituição de 1988 elegeu o IPTU como um dos instrumentos
para que a função sócio-ambiental da propriedade seja, efetivamente, atendida. Não foi por
acaso que o legislador maior tomou esta decisão, eis que o uso da tributação como ferramenta
de política estatal se revela em altamente eficaz, na medida em que atinge o administrado em
um dos pontos mais vulneráveis do indivíduo: suas finanças.
61
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Por outro lado, além de sua inegável eficácia, o uso de alíquotas progressivas em sede
de IPTU constitui medida de operacionalização mais fácil do que as demais previstas no
parágrafo 4º do art. 182 da Carta (parcelamento ou edificação compulsórios e desapropriação.)
Com efeito, o parcelamento e a edificação compulsórios, além de serem providências
nem sempre viáveis (jurídica ou economicamente falando), demandam algum (ou muito)
tempo para sua concreção, seja por questões meramente burocráticas ( o procedimento de
desmembramento envolve a Municipalidade e o Ofício do Registro de Imóveis; a construção
exige prévia aprovação do projeto pelos órgãos competentes, etc.), seja de ordem material
(prazos a serem observados no desmembramento; tempo necessário para a construção.)
A desapropriação, por seu turno, além de exigir um procedimento administrativo e,
freqüentemente, judicial (quando não houver acordo quanto ao valor da indenização), implica
em desembolso, por parte do Poder Público, ainda que, neste caso, mediante títulos da dívida
pública com prazo de resgate de até dez anos, assegurados, porém, o valor real da indenização
e os juros legais (Constituição, art. 182, parágrafo 4 o, inciso III.)
De se lamentar, talvez, que o constituinte tenha previsto o uso da progressividade, no
tempo, do IPTU, apenas, como uma segunda medida a ser tomada pelo Município, quando o
parcelamento ou edificação compulsório não se revelarem viáveis ou não surtirem os efeitos
colimados.
É o que se depreende da redação do parágrafo 4º do art. 182, supra-transcrito, e, em
especial da expressão, utilizada ao final de seu caput: sob pena, SUCESSIVAMENTE de
(grifado.)
Infelizmente, são poucos os Municípios brasileiros que adotaram o
uso da
progressividade do IPTU no tempo, a despeito da previsão no Estatuto da Cidade, desde 2001.
De outra banda, não se pode olvidar que, ao estimular o cumprimento da função social
da propriedade, o IPTU progressivo no tempo também induz o respeito à proteção do meio
ambiente. Isto porque, conforme é consabido, o uso adequado e racional do solo urbano
contribui para a preservação do meio ambiente, na medida em que , a uma o imóvel em
questão não será utilizado para armazenar lixo, água parada, etc e a duas os ocupantes do
mesmo deverão dar um destino adequado aos resíduos produzidos.
Por outro lado, percebe-se que a preocupação com o meio ambiente equilibrado permeia
todo o texto do Estatuto da Cidade, diploma legal, que, como visto, disciplina, dentre outros
instrumentos de política urbana, o uso do IPTU progressivo no tempo e o plano diretor.
62
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
No tocante ao plano diretor, é de se destacar que o Estatuto da Cidade, ao dispor sobre
este instrumento, em seu art. 39 remete ao disposto no art 2º. daquele diploma legal, o qual
elenca as diretrizes que devem reger sua elaboração. Dentre estas diretrizes conforme já
esposado, figura, no inciso IV, a preocupação com as distorções no crescimento urbano e seus
efeitos sobre o meio ambiente. Já o inciso VI manifesta o temor com a deterioração de áreas
urbanizadas e com a poluição ambiental. No inciso VIII, a necessidade de adoção de padrões
de consumo e de expansão urbana compatíveis com o desenvolvimento sustentado. O inciso
XII, por seu turno, remete à proteção e preservação do meio ambiente. No inciso XIV, o
legislador deixa claro que o respeito às normas ambientais deve informar as políticas de
regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas pela população carente, como, v.g.,
as favelas, palafitas, malocas e similares.
Ou seja, pode-se concluir que a elaboração do plano diretor deve se pautar, dentre
outros valores, pelo respeito às normas ambientais. Como a adoção do IPTU progressivo no
tempo visa estimular que os imóveis urbanos sejam utilizados de acordo com o que dispõe o
plano diretor, respeitadas as diretrizes do art. 2º., exsurge que este instrumento também faz
com que haja o respeito ao meio ambiente equilibrado.
6 CONCLUSÕES
Ainda que não pareça, à primeira vista, a inovação perpetrada pelo constituinte de 1988,
ao prever o uso da progressividade do IPTU como instrumento para o atendimento da função
social da propriedade se revela da maior importância para a história da tributação no Brasil.
Com efeito, o tratamento dado à matéria pela Constituição consagra o uso de tributo
como instrumento de política social e, neste passo, da própria cidadania, e não, apenas, de
política estatal, como já ocorria no passado.
Isto é, apesar de a extra-fiscalidade não ser, entre nós, nenhuma desconhecida, até então
seu uso se restringia à implementação de programas ou ao atingimento de objetivos
essencialmente do Estado enquanto tal e não, necessariamente, da Sociedade.
Assim, usa-se (e abusa-se) da tributação como instrumento de política econômica
(aumentando-se, por exemplo, os impostos incidentes na importação de determinados
produtos), financeira (majorando-se, v.g. as alíquotas do imposto sobre operações financeiras
nas operações de crédito a consumidor), etc. Ou seja: os efeitos buscados eram aqueles assim
eleitos pela Administração.
No caso da progressividade do IPTU, a situação mudou e o fez substancialmente: os
63
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
efeitos buscados consistem na concreção do que preceitua a Constituição, i. é, que a
propriedade cumpra sua função social.
Esta desmistificação do tributo como mera ferramenta para a geração de recursos para o
Estado ou para implementação de sua política econômica é de suma importância para a
(re)abilitação do fenômeno da tributação junto à Sociedade, acostumada, há décadas, a vê-lo,
deformadamente, como um instrumento de dominação e espoliação.
O futuro dirá até que ponto esta semente, plantada pelo constituinte de 1988, vingou e
se os frutos dela provenientes foram os desejados pela Sociedade.
REFERÊNCIAS
BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. 11 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.
BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 2. Ed. São Paulo: Saraiva,
1972.
COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. 6. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2001.
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 24 ed. São Paulo: Malheiros, 2001.
64
IPTU AMBIENTALMENTE ORIENTADO: UMA ANÁLISE SOB A PERSPECTIVA
CONSTITUCIONAL A PARTIR DA PROPOSTA DE REFORMA TRIBUTÁRIA
AMBIENTAL (PEC 353/2009)
Carolina Sena Vieira1
Flávia Koerich Mafra2
Ubaldo César Balthazar3
RESUMO: Em meio ao global movimento em direção à conscientização ambiental e à
tomada de iniciativas que promovam efetivamente o desenvolvimento sustentável, o Brasil
aparece como importante ator. Dentro de tal debate, aparece o tributo como instrumento apto
a incentivar comportamentos ambientalmente positivos, auxiliando a transformação da
sociedade relativamente à sua posição frente ao meio ambiente. Nesse sentido, um dos
enfoques principais da discussão acerca da ecologia é o direito à propriedade. Busca-se,
atualmente, alternativas para seu melhor aproveitamento na tentativa de harmonizar direitos e
deveres quanto ao seu uso, gozo e disposição. Surge então a figura do Imposto sobre a
Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) como instrumento efetivo de conexão prática
entre meio ambiente e propriedade. É esta a temática da presente pesquisa. Tratar-se-á, neste
artigo, a partir da análise da Proposta de Reforma Tributária Ambiental em discussão no
Congresso Nacional (PEC 353/2009), a possibilidade de inserção constitucional da variável
ambiental na regulamentação do IPTU, com vistas à promoção da tomada de atitudes
ambientalmente positivas no tocante à propriedade predial e territorial urbana.
PALAVRAS-CHAVE: Imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana, Meio
ambiente, Propriedade; Desenvolvimento sustentável; Tributação ambientalmente orientada.
ABSTRACT: Amid the global movement toward environmental awareness and the taking of
initiatives that effectively promote sustainable development, Brazil is an important
actor. Within this debate, taxation appears as an instrument able to encourage environmentally
positive behaviors, assisting the transformation of the society relative to its position facing the
environment. In this sense, one of the main focuses of discussion about the ecology is the
right to property. Recently, researchers are seeking alternatives to its best use in an attempt to
1
Advogada. Ex-professora do Curso de Graduação em Ciências Contábeis da Universidade Federal de Santa
Catarina – UFSC. Professora do Curso de Graduação em Direito do Complexo de Ensino Superior de Santa
Catarina. Professora do Curso de Especialização em Direito Tributário do Instituto Brasileiro de Estudos
Tributários – IBET. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET.
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Santa Catarina.
2
Advogada. Professora do Curso de Graduação em Direito do Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina.
Especialista em Direito Tributário pela Universidade Federal de Santa Catarina. Mestranda do Programa de PósGraduação em Direito da Universidade de Santa Catarina. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Tributação
Ambiental (UFSC/UFC).
3
Professor de Direito Tributário do Curso de Direito da UFSC. Mestre em Direito pela UFSC. Doutor em
Direito pela Université Libre de Bruxelles, Bélgica.
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
harmonize the rights and duties regarding property´s use, enjoyment and disposition. The
figure of the Urban Property Taxation arises as an effective instrument of practical connection
between the environment and property. That is the theme of this research. This article will
discuss, from the analysis of the proposed Environmental Tax Reform under discussion in
Congress (PEC 353/2009), the possibility of constitutional treatment of the environmental
variable in the regulation of Urban Property Taxation, in order to promote environmentally
positive attitudes regarding urban property.
KEY-WORDS: Urban property taxation, Environment, Property, Sustainable development,
Environmental taxation.
1 INTRODUÇÃO
Diversas Nações têm adaptado seu corpo normativo no sentido de inserir a preocupação
com o meio ambiente no palco das discussões financeiras e tributárias.
Desta feita, é imprescindível que o Brasil, inserido nesse contexto de conscientização
ambiental emergente, principalmente nos países ocidentais, execute a revisão de sua
legislação, buscando adaptá-la aos anseios de possibilitar o desenvolvimento sustentável
nacional. Dentre as possíveis hipóteses de utilização da variável ambiental para direcionar a
elaboração e aplicação do direito, a tributação aparece com destaque em razão de tornar
efetivamente viável a mudança de comportamentos com reflexos ambientais.
Em meio ao amplo rol de possibilidades que o Direito Tributário apresenta no que
concerne à utilização de seus instrumentos de acordo com a proteção ecológica, destaca-se a
instituição do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) com fins
ecológicos como medida urgente e plenamente apta a implantação no país.
O crescimento urbano, desenfreado e sem planejamento, dos municípios, traz reflexos
negativos ao meio ambiente, portanto, é imprescindível o encontro de alternativas
ecologicamente positivas, que contribuam para neutralizar tais prejuízos decorrentes do
exercício do direito de propriedade.
Diante do exposto, este trabalho visa demonstrar as possibilidades de implementação do
IPTU ambientalmente orientado nos municípios brasileiros, com vistas a incentivar o uso da
propriedade urbana de acordo com sua função sócio-ambiental.
Embora os debates e estudos sobre essa temática venham recebendo destaque no
cenário internacional, no Brasil as discussões se apresentam incipientes, direcionadas à
tentativa de harmonização das legislações tributária e ambiental. Exemplo disso é a existência
66
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
de uma Proposta de Emenda Constitucional que tem como objeto a Reforma Tributária
Ambiental (PEC 353/2009, de autoria do Deputado Roberto Rocha do PSDB/MA), ainda
iniciando seu processo de aprovação.
Dentro deste contexto, busca-se uma análise do exercício do direito de propriedade em
paralelo com as alterações no Imposto sobre a Propriedade Territorial Urbana – IPTU
propostas na referida PEC 353/09.
2 TRIBUTAÇÃO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
2.1 Conscientização ambiental e o conceito de desenvolvimento sustentável
A consciência com relação à problemática ambiental inicia-se a partir da percepção do
homem quanto aos prejuízos causados pelo desenvolvimento realizado de forma desordenada.
As conseqüências da exploração exaustiva dos recursos naturais começam a aparecer de
forma emblemática após Segunda Guerra Mundial, quando se tornaram perceptíveis o
agravamento dos índices de poluição dos países desenvolvidos, provocado pelo grande
crescimento da produção industrial.
O século XX, portanto, é o marco histórico quanto à conscientização social e política
com relação ao meio ambiente. Inicialmente, as medidas tomadas para evitar maiores
prejuízos ao meio ambiente, não impedindo o desenvolvimento econômico das Nações,
trataram de prever ações que atingissem de forma positiva os efeitos gerados pela poluição,
visando neutralizá-los. A partir da década de 80, buscou-se a adaptação dos processos
produtivos de forma a atacar as causas da degradação ambiental.
Portanto, durante longo período, a mentalidade cultivada era a de que este era o custo a
ser pago pelo desenvolvimento. Entretanto, em 1971, iniciou-se a elaboração do conceito de
desenvolvimento sustentável, dentro da noção de ecodesenvolvimento tratada no Painel de
Founex, na Suíca. Finalmente, em 1981, a Comissão Mundial Independente sobre o Meio
Ambiente e Desenvolvimento – posteriormente intitulada Comissão Brundtland – definiu
desenvolvimento sustentável como “aquele que atende às necessidades do presente sem
comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem as suas próprias necessidades”.
O conceito foi criticado pela própria Comissão, que apontou duas deficiências: a falta de
limitações absolutas e de um plano detalhado de ações4.
E também a partir da década de 1970, quando foi realizada em Estocolmo, em 1972, a
4
LEMOS, Haroldo Mattos de. Gestão ambiental e desenvolvimento sustentável – história da questão ambiental:
curso FGV online, 08 de maio de 2010. Notas de aula.
67
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Conferência das Nações Unidas Sobre o Meio Ambiente, o mundo finalmente abriu os olhos
para a necessidade de se evitar o desperdício, progredindo sim, mas com a preocupação de
deixar recursos existentes para as gerações futuras, o que a doutrina convencionou chamar de
desenvolvimento sustentável. Na lição de José Marcos Domingues de Oliveira:
Desenvolvimento sustentável consiste no progresso da atividade econômica compatível
com a utilização racional dos recursos ambientais. Representa a rejeição do desperdício, da
ineficiência e do desprezo desses recursos.5
No Brasil, na esteira da Conferência de Estocolmo, a lei n.º 6.938/81, que institui a
Política Nacional do Meio Ambiente, pela primeira vez previu em seu art. 4º, VII, a
determinação de que se visará a “imposição, ao poluidor e ao predador, da obrigação de
recuperar e/ou indenizar os danos causados”. Trata-se do princípio ambiental do poluidorpagador, o qual Ricardo Lobo Torres assim define:
O princípio do poluidor-pagador sinaliza no sentido de que os potenciais poluidores
devem arcar com a responsabilidade pelo pagamento das despesas estatais relacionadas com a
precaução e a prevenção dos riscos ambientais. 6
Poucos anos depois de citada lei, a Constituição da República Federativa do Brasil
reconheceu a necessidade de adoção do princípio do poluidor-pagador. Em seu art. 225, § 3º,
a Lei Maior traz a determinação constitucional de que “as condutas e atividades consideradas
lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções
penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”.
E não obstante o art. 225, § 3º da Constituição Federal, igualmente o art. 170, ao tratar
da ordem econômica, estabelece taxativamente:
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre
iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da
justiça social, observados os seguintes princípios:
[...]
VI – defesa do meio ambiente;
[…]
Em nível mundial, a necessidade de políticas públicas que promovessem a
5
Direito Tributário e Meio Ambiente: proporcionalidade, tipicidade aberta, afetação da receita. Rio de Janeiro:
Renovar, 1995, p. 12.
6
Valores e princípios no Direito Tributário Ambiental, in Direito Tributário Ambiental. São Paulo: Malheiros,
2005, p. 27.
68
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
internalização dos custos ambientais se tornou ainda mais visível 20 anos depois da
Convenção de Estocolmo, por oportunidade da Conferência das Nações Unidas para o Meio
Ambiente realizada no Rio de Janeiro em 1992. Naquela oportunidade, foi fixado o seguinte
princípio:
Princípio 16. Tento em vista que o poluidor deve, em princípio, arcar com o custo
decorrente da poluição, as autoridades nacionais devem procurar promover a
internalização dos custos ambientais e o uso de instrumentos econômicos, levando
na devida conta o interesse público, sem distorcer o comércio e os investimentos
internacionais.
No entendimento de Anderson O.C Lobato e Gilson C. B. de Almeida, a determinação
constitucional aliada ao Princípio 16 da RIO 92 permite a adoção de medidas capazes de
operacionalizar no país o princípio que “aquele que polui deve pagar”:
Desse modo, admite-se a possibilidade de criação por parte do poder público de um
conjunto de medidas econômicas e administrativas que possam impor aos empreendedores
potencialmente poluidores ou que ainda estejam obtendo da natureza os recursos necessários à
sua atividade lucrativa, de modo a promover a responsabilização pelos custos ambientais 7.
2.2 Internalização positiva e negativa em Pigou – um rascunho da utilização do tributo
com fins ecológicos
Desde o início da conscientização humana com relação à questão ambiental, percebeuse que os custos ambientais são, normalmente, ignorados no ato da análise econômicofinanceira dos projetos. A partir dessa constatação procuraram-se alternativas para incorporar
esses custos ou para incentivar sua não realização. Dentre os instrumentos utilizados para
esses fins, em 1920, Arthur Cecil Pigou8 sugeriu a utilização de tributos como instrumentos de
políticas de proteção ambiental. O economista demonstrou a existência de externalidades
geradas pelo desenvolvimento, apontando que os resultados lucrativos obtidos pelas empresas
demonstravam-se, no mais das vezes, superiores ao produto social de suas atividades,
surgindo, então, as chamadas externalidades negativas, ou seja, resultados prejudiciais ao
meio ambiente gerados pela exploração econômica desordenada.
Da mesma forma, Pigou indicou a existência de externalidades positivas,
excepcionalmente geradas por essas atividades. A partir de então, as variáveis ambientais
7
Tributação Ambiental: uma contribuição ao desenvolvimento sustentável, in Direito Tributário Ambiental. São
Paulo: Malheiros, 2005, p. 629.
8
The Economics of Welfare. Londres: Macmillan and Co., 1932. Disponível em:
<http://www.econlib.org/library/NPDBooks/Pigou/pgEW.html>. Acesso em 8 de março de 2010.
69
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
incorporaram-se aos debates legislativos nas tratativas tributárias, cabendo ao Estado
responsabilizar, através de tributos mais onerosos, os geradores de externalidades negativas. A
imposição de tributos com esse fim possibilita a utilização dos recursos arrecadados na
compensação dos prejuízos gerados pelas atividades poluidoras. Por outro lado, surge a
possibilidade de instrumentos tributários com o objetivo
de incentivar atitudes
ecologicamente positivas, desonerando tais atividades.
Em decorrência das idéias apresentadas por Pigou, emergem as duas possibilidades de
utilização dos tributos com fins ecológicos: a imposição de cargas tributárias mais elevadas
para atividades produtivas mais poluentes, ou a desoneração tributária para atividades
produtivas ambientalmente positivas. Percebe-se que a primeira alternativa visa, assim como
as experiências embrionárias relativas a questão ambiental, afetar os efeitos da poluição e da
degradação ambiental, não sendo totalmente eficiente quanto à proteção do meio ambiente, já
que não evita a exploração desordenada dos recursos naturais. Entretanto, a utilização de
critérios extrafiscais na instituição dos tributos com fins ecológicos, incentiva a mudança de
comportamentos ambientalmente relevantes, possibilitando-se evitar a degradação.
3 A POSSIBILIDADE E A NECESSIDADE DOS CHAMADOS TRIBUTOS
AMBIENTAIS
3.1 Algumas experiências no direito alienígena
A adoção de medidas tributárias com o fim de modelar o comportamento dos
contribuintes foi devidamente implantada com sucesso em diversos países. Apenas para
exemplificar, Alemanha, Espanha, Holanda, França, Bélgica, Dinamarca e Estados Unidos
instituíram políticas públicas com o intuito de coibir práticas poluidoras ou degradantes:
Na Alemanha, o imposto municipal sobre embalagens, pratos e talheres descartáveis, a
tributação maior sobre veículos não guarnecidos de catalisadores, bem como o imposto para
prevenção de incêndios, dentre outros.
Destaquem-se, na Espanha, os impostos especiais sobre hidrocarbonetos ou tabacos,
sobre o licenciamento de veículos e sobre instalações que agridam o ambiente.
Já na Holanda, apresentam feição ambiental, dentre outros, os impostos sobre
combustíveis, sobre a contaminação de superfícies aquáticas e sobre a contaminação causada
por ruído causado por aeronaves civis.
A França, por seu turno, exige imposto sobre produtos florestais, sobre corte de matas,
70
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
além de um imposto específico para preservar espaços naturais protegidos.
Na Bélgica, há o imposto devido pelos consumidores sobre bens descartáveis (pilhas,
embalagens em geral, etc), semelhante ao exigido na Itália, sobre sacos plásticos.
Na Dinamarca, tem-se diversos impostos com perfil ecológico, dentre os quais o sobre
lâmpadas incandescentes e fusíveis elétricos, sobre a emissão de determinados gases e sobre
resíduos.
Nos Estados Unidos da América, tem-se o adicional “ambiental” do imposto de renda; a
dedutibilidade de doações de terrenos e matas com finalidade preservacionista; o imposto
pago pelos refinadores sobre petróleo e, ainda, o imposto, devido pelas empresas químicas,
sobre produtos químicos perigosos e derivados. 9
3.2 Extrafiscalidade no Direito Tributário Brasileiro
Tradicionalmente, as imposições tributárias são tratadas com o fim de arrecadação, de
modo a abastecer os cofres públicos para tornar viável o cumprimento dos deveres do Estado.
Trata-se da função arrecadatória do tributo. Ao lado dessa função, percebe-se a possibilidade
da utilização dos tributos como forma de influenciar condutas dos contribuintes, sendo essa
sua chamada função extrafiscal.
A utilização extrafiscal dos tributos tem sua origem relacionada ao crescimento da
atividade intervencionista do Estado, pois, à medida que evoluem as funções sociais do Poder
Público, se pode demonstrar de forma mais clara a ampla eficácia dos tributos enquanto
elementos de regulação do mercado e reestruturação social, adquirindo fundamental
importância a noção de extrafiscalidade, despindo a figura tributária de seu caráter puramente
arrecadatório10.
Dentro dessa perspectiva, torna-se imprescindível a utilização de critérios extrafiscais
verdes quanto à exigência tributária. O objetivo de qualquer instrumento que vise à proteção
ambiental é prevenir a degradação. A função extrafiscal dos tributos verdes aparece com esse
intuito. O tributo, quando instituído com fins extrafiscais, ou seja, com a finalidade de
reestruturar as atividades produtivas no sentido de bem aproveitar os recursos naturais, e até
de gerar externalidades positivas, demonstra grande eficiência ecológica. Dentre os inúmeros
instrumentos possíveis de implementar o direito ao meio ambiente saudável, o tributo aparece
9
COSTA, Regina Helena. Apontamentos sobre a tributação ambiental no Brasil in Direito Tributário Ambiental.
São Paulo: Malheiros, 2005, p. 316.
10
TUPIASSU, Lise Vieira da Costa. Tributação ambiental: a utilização de instrumentos econômicos e fiscais na
implementação do direito ao meio ambiente saudável. Rio de janeiro: Renovar, 2006, p. 119.
71
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
como figura de destaque quando se trata de impossibilitar ou prevenir a ocorrência de
atividades danosas ao meio ambiente. A extrafiscalidade da tributação ambientalmente
orientada traz conseqüências positivas diretas à proteção ambiental, pois induz o contribuinte
a tomada de decisões ecologicamente benéficas, evitando a destruição do meio ambiente.
Sobre a utilização de instrumentos tributários com finalidades ambientais, Jorge
Jiménez Hernández ressalta duas principais vantagens:
[...] a equidade no tratamento dos agentes econômicos, uma vez que os tributos não
impõem ações concretas como diminuir a contaminação em porcentagens
determinadas ou utilizar certos componentes na produção. Os sistemas baseados em
tributos ambientais levam em conta que todas as pessoas que se situem na mesma
situação tenham as mesmas facilidades para reduzir a contaminação, já que isto
depende de circunstâncias próprias de cada caso, as quais podem chegar a ser muito
variadas.
[...]
Isto nos leva a uma segunda vantagem intimamente ligada a anteriormente expressa.
Uma das qualidades mais destacáveis dos tributos ecológicos é o incentivo à
investigação e utilização de todo tipo de alternativas que propiciem um menor dano
ao meio ambiente [...]11
Também para Heleno Taveira Torres, a tributação pode ser o meio pelo qual o poder
público cumprirá seu dever de preservar o meio ambiente e garantir sua manutenção:
Não se pode negar a importância fundamental da preservação ambiental nos dias atuais
e tampouco a imperiosa necessidade de coordenar meios e envidar esforços para dar
efetividade às determinações constitucionais sobre o dever dos poderes públicos e da
sociedade de preservar o ambiente e garantir sua manutenção para as gerações futuras, como
reclama o nosso art. 225. Para tanto, Estado e sociedade devem encontrar instrumentos
eficazes que permitam essa medida de conservação. E a tributação pode ser uma alternativa
para alcançar fim tão nobre, superadas as dificuldades que envolvem tal entrelaçamento de
princípios e valores. 12
Já José Marcos Domingues de Oliveira acredita na utilização da tributação ambiental
não só como instrumento para que o Estado possa angariar fundos para agir, mas também
como ferramenta para desestimular condutas poluidoras e estimular as não-poluidoras13,
entendimento no qual é seguido de perto por Regina Helena Costa:
A tributação ambiental pode ser singelamente conceituada como o emprego de
11
El tributo como instrumento de protección ambiental. Granada: Comares, 1998, p. 64.
Da relação entre competências constitucionais tributárias e ambiental – os limites dos chamados “tributos
ambientais” in Direito Tributário Ambiental. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 97.
13
OLIVEIRA, José Marcos Domingues de. Direito Tributário e Meio Ambiente: proporcionalidade, tipicidade
aberta, afetação da receita. Rio de Janeiro: Renovar, 1995, p. 12.
12
72
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
instrumentos tributários para gerar os recursos necessários à prestação de serviços
públicos de natureza ambiental (aspecto fiscal ou arrecadatório), bem como para
orientar o comportamento dos contribuintes à proteção do meio ambiente (aspecto
extrafiscal ou regulatório).14
Entretanto, como bem frisa Fernando Magalhães Modé, o caráter extrafiscal da
tributação ambiental não pode ser confundido em hipótese alguma com sanção por ato ilícito,
posto que
[...] verifica-se que a tributação ambiental, em regra, não se estrutura, como ocorre
com os mecanismos de comando, em face de uma dicotomia: permitido/proibido. A
tributação ambiental, ao revés, parte do pressuposto de que todas as atividades são
lícitas, pois, se razão houvesse para tê-las como ilícitas, deveriam ser assim tratadas
por normas de conteúdo proibitivo, e não pela tributação ambiental.15
A extrafiscalidade16 dos tributos ambientais gera na doutrina saudável discussão sobre
se estes tributos, mais especificamente os impostos, obedeceriam ou não o princípio
constitucional tributário da capacidade contributiva. Na opinião de Jorge Jiménez Hernandez,
a capacidade econômica constitui um limite para a utilização extrafiscal do tributo, e somente
respeitando dito limite é que o tributo extrafiscal pode ser desenhado sem ir de encontro ao
sistema jurídico vigente17.
Já Regina Helena Costa segue viés diverso, defendendo a mitigação parcial do princípio
da capacidade contributiva na hipótese:
Em nossa opinião, convivem a atuação extrafiscal e a observância do postulado da
capacidade contributiva, informador dos impostos e insculpido no art. 145, § 1º da
Constituição. Isto porque, em razão da extrafiscalidade, autorizada está a
prescindibilidade da graduação dos impostos consoante a capacidade econômica do
contribuinte, para que se atinjam finalidades outras, que não a mera obtenção de
recursos, homenageadas pela ordem constitucional, como, por exemplo, a função
social da propriedade, a proteção ao meio ambiente, o incentivo a cultura etc. Vale
dizer, o Poder Público pode instituir tributos progressivos ou regressivos sem ater-se
à pertinência que os mesmos deveriam guardar com a riqueza do sujeito passivo.
Nesses casos, teremos derrogações parciais do princípio, pois o princípio da
capacidade contributiva não resta completamente afastado quando da tributação
extrafiscal. O legislador não poderá descuidar-se da preservação dos limites que o
próprio princípio exige: manutenção do “mínimo vital”, o não atingimento do
14
Apontamentos sobre a tributação ambiental no Brasil in Direito Tributário Ambiental. São Paulo: Malheiros,
2005, p. 313.
15
Tributação Ambiental – a função do tributo na proteção do meio ambiente. 1. ed., 2ª tir. Curitiba: Juruá, 2004,
p. 82.
16
“Na extrafiscalidade, a arrecadação tributária é secundária, pois seu objetivo principal é incentivar ou coibir
determinados comportamentos do contribuinte, motivado por interesses sociais, políticos ou econômicos do
legislador tributário”. (NEVES, Luiz Fernando de Souza. Apontamentos sobre o ITR e sua progressividade (in
Curso de Especialização em Direito Tributário – Estudos analíticos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho).
Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 1103).
17
El tributo como instrumento de protección ambiental. Granada: Editorial Comares, 1998, p. 89.
73
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
confisco e o não cerceamento de outros direitos constitucionais.18
A finalidade do direito ambiental é preservar o meio ambiente já que o dano ambiental,
depois de ocorrido, é de difícil recuperação, sendo quase impossível o retorno ao status quo
ante. Dessa forma, a extrafiscalidade da ecotributação aparece como instrumento
indispensável à efetivação do desenvolvimento sustentável, respeitando e buscando a
aplicação dos princípios fundamentais de nosso país, encampados constitucionalmente.
A Constituição Federal de 1988, ao estabelecer as bases constitucionais do Sistema
Tributário Nacional, fixou seus princípios gerais, sem olvidar os fundamentos que constituem
a estrutura normativa do Estado Democrático de Direito brasileiro no que diz respeito à
atividade tributária desse Estado19.
Dentre os princípios enaltecidos constitucionalmente a partir de 1988, o da dignidade da
pessoa humana demonstra-se essencial à análise da relação Fisco-contribuinte, determinando
os limites e objetivos da atividade tributária no Brasil. Justifica-se a imposição tributária, em
harmonia com o princípio da dignidade da pessoa humana, em razão da necessidade de
arrecadação de fundos para que o Estado possa realizar seus fins sociais. Assim, impõe-se a
instituição dos tributos de acordo com a relevância das atividades tributadas e dentro dos
limites impostos pelo respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana (contribuinte). Da
mesma forma, o princípio da dignidade da pessoa humana aparece como limitador da
tributação em situações que demonstrem conseqüências socialmente positivas.
Dentro do conceito de dignidade da pessoa humana, encontramos seu direito ao meio
ambiente saudável. Assim, as atividades que geram benefícios ao meio ambiente, privilegiam
a sociedade, devendo seu agente ser compensado pelos gastos tidos com atitudes que
extrapolam a obtenção de externalidades positivas pessoais. Em outras palavras, as atividades
produtivas que geram benefícios para além dos limites de seu agente devem a ele ser
compensadas economicamente. Desse modo, o direito tributário incentiva os contribuintes a
atuarem de acordo com as previsões de desenvolvimento sustentável.
Como mencionado, o meio ambiente saudável é um dos direitos fundamentais dos seres
humanos, protegido constitucionalmente em seu artigo 225 que assim dispõe:
Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso
comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público
18
Apontamentos sobre a tributação ambiental no Brasil in Direito Tributário Ambiental. São Paulo: Malheiros,
2005, p. 322.
19
FIORILLO, Celso Antonio Pacheco; FERREIRA, Renata Marques. Direito ambiental tributário. 2. ed. rev. São
Paulo: Saraiva, 2009, p. 33.
74
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras
gerações.
A tributação aparece dentre as hipóteses de defesa e preservação do meio ambiente
ecologicamente equilibrado, deveres impostos ao Poder Público e à coletividade, como
demonstrado anteriormente.
Entretanto, no Brasil, a utilização desta importante ferramenta é tímida. Porém, ainda
que incipiente, sua utilização já deu seus primeiros passos através do ICMS ecológico 20. Esta
política, adotada pela primeira vez em 1991 pelo Estado do Paraná consiste em diferenciar a
repartição das receitas do ICMS entre os Municípios de forma que se beneficiem aqueles que
possuam fortes políticas de proteção ambiental. Fernando Facury Scaff e Lise Vieira da Costa
Tupiassu, sem entrar no mérito da questão relativa à possível inconstitucionalidade do critério,
assim explicam a sistemática do ICMS ecológico:
Os valores e critérios legalmente estabelecidos passam então a ser quantificados diante
dos dados fáticos, proporcionando a definição de um ranking ecológico dos municípios. Deste
modo, cada município recebe um montante proporcional ao compromisso ambiental por ele
assumido, o qual será incrementado conforme a melhoria da qualidade de vida da população.
Um dos pontos chaves da política é, portanto, a não criação de novo tributo, não
subsistindo qualquer ônus financeiro para o Estado ou aumento da carga tributária dos
contribuintes. Trata-se, unicamente, da adoção de critérios ambientalmente relevantes para a
repartição das receitas normalmente obtidas. 21.
Não se pode olvidar que aos Municípios também é conferida constitucionalmente a
competência comum para “proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de
suas formas” (art. 23, VI) e concorrente para legislar sobre “direito tributário, financeiro,
penitenciário, econômico e urbanístico” e sobre “florestas, caça, pesca, fauna, conservação da
natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da
poluição” (art. 24, I e VI).
De fato, com o advento da Lei n.º 10.257/2001, o Estatuto da Cidade, foram fixadas as
diretrizes gerais da política urbana do Município. Torna-se assim o Município responsável por
20
Ver, a propósito, BALTHAZAR, U.C. E MAFRA, F.K., “ICMS ecológico: instrumento de tributação
ambientalmente orientada ou mitigação da autonomia municipal?”, in CAVALCANTE, Denise L. (Corrd.);
BALTHAZAR, Ubaldo C. (Coord.); PESSOA, Gabriela P. (Org.). Estudos de tributação ambiental.
Florianópolis: Fundação Boiteux, 2010, p. 402-415.
21
Tributação e Políticas Públicas: O ICMS ecológico in Direito Tributário Ambiental. São Paulo: Malheiros,
2005, p. 737.
75
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
garantir o equilíbrio ecológico, utilizando-se inclusive de instrumentos de política tributária
para tanto, conforme ensinam Anderson O.C. Lobato e Gilson C. B. de Almeida:
O Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257, de 10.7.2001), ao definir a política urbana,
estabeleceu que a propriedade deve assumir sua função social, de segurança e de
bem-estar dos cidadãos, bem como o equilíbrio ecológico através de instrumentos de
política econômica, tributária e financeira, representados pelo imposto territorial,
pela contribuição de melhoria e por incentivos fiscais. 22
A principal ferramenta da qual o Município pode se utilizar, no entendimento de Regina
Helena Costa, é a progressividade do IPTU no tempo. Para a autora:
O grande instrumento tributário dos Municípios para a preservação ambiental é o
Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana – IPTU. A propriedade
imobiliária urbana está igualmente afetada ao cumprimento da função social e
satisfaz esse requisito quando atende às exigências fundamentais de ordenação da
cidade expressas no plano diretor (art. 156, § 2º), cabendo a utilização do IPTU
quando o proprietário não promova o adequado aproveitamento do solo urbano.23.
Por ser a mais importante ferramenta do Município na implementação da tributação
ambiental, o IPTU será abordado a seguir com mais profundidade, destacando-se as alterações
constitucionais sugeridas pela Proposta de Emenda à Constituição nº 353/2009.
4 IPTU AMBIENTALMENTE ORIENTADO – UMA ANÁLISE DA PEC 353/2009
4.1. Delineamento constitucional do Imposto sobre a Propriedade Territorial Urbana –
IPTU
Com o fim de evitar a sobreposição de tributação, a Constituição Federal de 1988
delimitou as competências para instituição dos tributos, repartindo-a entre as pessoas jurídicas
de direito público interno (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) que formam a
República Federativa do Brasil. O Capítulo I do Título VI da Lei Maior traz em seus artigos
153 a 156 a delimitação da competência para a instituição de impostos, um deles o objeto de
análise do presente estudo.
A definição de competência, nas palavras de Paulo de Barros Carvalho, pode ser
efetuada da seguinte forma:
“Competência”, com as acepções encontradas no direito positivo e na doutrina, é
termo próprio do vocabulário técnico-jurídico. Quando empregado na Constituição
para autorizar as pessoas políticas de direito constitucional interno a legislar sobre
matéria tributária, falamos em “competência tributária”. Trata-se de especificação de
22
Tributação Ambiental: uma contribuição ao desenvolvimento sustentável, in Direito Tributário Ambiental. São
Paulo: Malheiros, 2005, p. 637.
23
Apontamentos sobre a tributação ambiental no Brasil in Direito Tributário Ambiental. São Paulo: Malheiros,
2005, p. 327.
76
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
competência legislativa, posta como aptidão de que são dotadas aquelas pessoas para
expedir regras jurídicas, inovando o ordenamento, e que se opera pela observância
de uma série de ato, cujo conjunto caracteriza o procedimento legislativo.[...]
A competência tributária é, em síntese, uma das parcelas entre as prerrogativas
legiferantes das quais são portadoras as pessoas políticas, consubstanciada na
faculdade de legislar para a produção de normas jurídicas sobre tributos. Configura
tema eminentemente constitucional. Uma vez cristalizada a delimitação do poder
legiferante, pelo seu legítimo agente (o constituinte), a matéria dá-se por pronta e
acabada, carecendo de sentido sua abertura em nível infraconstitucional.24
Neste panorama, aos Municípios foi conferida a competência tributária para a
instituição de impostos (artigo 156 da Constituição Federal), taxas (artigo 145 da Constituição
Federal), contribuições de melhoria (artigo 145 da Constituição Federal) e contribuições
(artigo 149, § 1º e 149-A da Constituição Federal). No que se refere aos impostos, podem ser
instituídos: imposto sobre a propriedade territorial e predial urbana – IPTU, imposto sobre a
transmissão de bens imóveis e de direitos reais sobre imóveis por atos “inter vivos” - ITBI e
imposto sobre serviços – ISS25.
Na instituição do IPTU, o legislador ordinário poderá se utilizar de alíquotas
progressivas, conforme previsões encartadas nos artigos 156 e 182 da Constituição Federal.
São elas:
Art. 156 omissis
[...]
§ 1º Sem prejuízo da progressividade no tempo a que se refere o art. 182, § 4º, inciso
II, o imposto previsto no inciso I poderá:(Redação dada pela Emenda Constitucional
nº 29, de 2000)
I - ser progressivo em razão do valor do imóvel; e (Incluído pela Emenda
Constitucional nº 29, de 2000)
II - ter alíquotas diferentes de acordo com a localização e o uso do imóvel.(Incluído
pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000)
Art. 182. omissis
[...]
§ 4º - É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área
incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo
urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado
24
CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: linguagem e método. 2.ed. São Paulo: Noeses, 2008, p.
232/233
25
Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:
I - propriedade predial e territorial urbana;
II - transmissão "inter vivos", a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física,
e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição;
III - serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar.(Redação
dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993)
[...]
77
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
aproveitamento,
sob pena, sucessivamente, de:
[...]
II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;
[...]
Posto o delineamento constitucional do IPTU, passa-se à análise da possibilidade de sua
utilização como instrumento de modulação de condutas ambientalmente conscientes, na
forma como atualmente se encontra regulado na Constituição Federal.
4.1 Possibilidades de utilização “verde” do Imposto sobre a Propriedade Territorial
Urbana – IPTU no atual panorama constitucional
O Sistema Tributário Nacional apresenta diversas possibilidades de aproveitamento dos
tributos com fins ecológicos. Dentre elas a utilização do Imposto sobre a Propriedade Predial
e Territorial Urbana (IPTU) com o objetivo de viabilizar a função social da propriedade
urbana, prevista no artigo 182 da Constituição Federal de 1988, já mencionado:
Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público
municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o
pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus
habitantes.
[...]
§ 2º - A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências
fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.
[...]
§ 4º - É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área
incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo
urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado
aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:
[...]
II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;
[...]
Dentro do conceito de função social da propriedade encontra-se a proteção ambiental,
pois a sociedade está inserida e dependentemente relacionada ao meio ambiente que a
circunda. Desta forma, a Carta Constitucional brasileira, implementando o princípio da
dignidade da pessoa humana (e dentro dele o respeito à função social ou sócio-ambiental da
propriedade) possibilita a instituição e utilização do IPTU de acordo com critérios ecológicos.
E é exatamente o viés extrafiscal desse imposto que permite sua previsão com fins de
cumprimento da função social da propriedade.
Ao tratar da Política Urbana com relação à proteção ambiental, o professor José Afonso
78
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
da Silva demonstra a relevância da instituição de critérios ambientais na previsão do IPTU:
[...] os planos urbanos, antes preocupados basicamente com o controle do uso do
solo, voltam sua atenção, hoje, até com certa ênfase, para os recursos naturais
urbanos. Água, ar, solo e áreas verdes são componentes da realidade urbana e por
ela intensamente consumidos. É especialmente no meio urbano que por primeiro
repercute a degradação ambiental26.
O artigo 23 da Constituição Federal prevê, em seus incisos VI e VII, a competência dos
municípios com relação à proteção do meio ambiente, combate à poluição, preservação de
florestas, fauna e flora. Nesse dispositivo encontra-se um dos fundamentos para o emprego de
critérios ambientais na instituição do IPTU por parte dos municípios. Assim, a função social
da propriedade é premissa de fundamental importância na aplicação do IPTU verde. Encontrase ela petrificada no inciso XXIII, do artigo 5º da Constituição pátria. Tal princípio
fundamental, posicionado constitucionalmente ao lado do direito à propriedade, previsto no
inciso imediatamente anterior demonstrou a pretensão constitucional de estabelecer que toda
forma de propriedade fosse por ele intrinsecamente permeada 27. Esclarece o professor Carlos
Araújo Leonetti que
o constituinte de 1988 fez com que o princípio da função social da propriedade
passasse a integrar o próprio desenho, a estrutura mesmo, do direito à propriedade
privada, condicionando este ao cumprimento daquele. Em outras palavras, a partir
da CF/88, apenas a propriedade privada que cumpra sua função social faz jus à
proteção jurídica; daí a extraordinária importância da inovação constitucional28.
A propriedade urbana, no cumprimento de sua função social, deve respeitar parâmetros
ambientais em sua edificação e utilização. Segundo determinação do artigo 182, §2º, da
CF/88, “a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências
fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”. Esse, por sua vez, é o
“instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana” (artigo 182, §1º,
da CF/88) que “tem por objeto ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da
cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes” (artigo 182 da CF/88).
Tratando desse assunto, o tributarista Heleno Taveira Tôrres destaca que “todo meio
ambiente artificial29 deve receber muita atenção por parte dos poderes públicos, ao que o
26
Direito ambiental constitucional. 6. Ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 220.
Idem. Curso de direito constitucional positivo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 280.
28
O
IPTU
e
a
função
social
da
propriedade.
Disponível
em:
<http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/files/journals/2/articles/20267/public/20267-20268-1-PB.html>. Acesso
em 15 de março de 2010.
29
Por meio ambiente artificial entende-se aquele cuja responsabilidade pela construção é do Homem, é
obra do Homem, em contraposição ao meio ambiente natural, composto pela natureza (água, ar, solo, e outros
recursos naturais).
27
79
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
instrumento tributário poderá ser sobremodo útil à sua ordenação saudável e equilibrada” 30.
Demonstra-se, assim, a relevância da análise das possibilidades de aplicação do IPTU
ambientalmente orientado no cenário nacional.
Algumas ações demonstram-se desde já possíveis de implementação em razão de alguns
municípios brasileiros já estarem adaptando suas legislações nesse sentido. Dentre elas a
concessão de benefícios fiscais a contribuintes que utilizem em suas propriedades urbanas
técnicas de reaproveitamento de água e de energia elétrica.
4.2 As alterações propostas pela PEC 353/2009
Como visto, é possível a utilização da progressividade do IPTU com o intuito atingir
fins ecológicos. Todavia, em que pese esta medida já ser possível na atual redação do texto
constitucional, tramita perante o Congresso Nacional a Proposta de Emenda Constitucional nº
353/2009, de autoria do Deputado Roberto Rocha.
Na justificativa para o envio do projeto de emenda, percebe-se a intenção de efetivar
uma “Reforma Tributária Ambiental”, inspirada na Environmental Tax Reform – ETR
européia. Explica o Deputado:
No Brasil, pouca atenção foi dada à ETR, seja nos meios políticos, seja nos meios
acadêmicos. A expressão “Reforma Tributária Ambiental” é pouco conhecida, sinal
de que nosso país tardiamente vem acordando para a necessidade da introdução da
questão ambiental no centro da agenda política nacional. […]
No âmbito do IPTU, a proposta possui a seguinte redação:
PROPOSTA DE EMENDA À CONSTITUIÇÃO Nº 353, DE 2009
(Do Sr. Roberto Rocha e outros)
Altera os artigos 149, 150, 153, 155, 156, 158 e 161 da Constituição Federal.
As Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, nos termos do art. 60 da
Constituição Federal, promulgam a seguinte emenda ao texto constitucional:
Art. 1º Esta Emenda Constitucional dispõe sobre a Reforma Tributária Abiental.
Art. 2º A Constituição passa a vigorar com os seguintes artigos alterados:
[…]
“Art. 156. …...........................
….............................
30
Da relação entre competências constitucionais tributária e ambiental – os limites dos chamados
“tributos ambientais”. In: TÔRRES, Heleno Taveira (Org.). Direito tributário ambiental. São Paulo: Malheiros,
2005, p. 116.
80
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
§ 1º …..............................
II – ter alíquotas diferentes de acordo com a localização e o uso do imóvel e o
respeito à função socioambiental da propriedade.
…..........................”
Com a alteração proposta, o art. 156 da Constituição Federal passaria a conter a
seguinte redação:
Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:
I - propriedade predial e territorial urbana;
[...]
§ 1º Sem prejuízo da progressividade no tempo a que se refere o art. 182, § 4º, inciso
II, o imposto previsto no inciso I poderá:(Redação dada pela Emenda Constitucional
nº 29, de 2000)
I - ser progressivo em razão do valor do imóvel; e (Incluído pela Emenda
Constitucional nº 29, de 2000)
II - ter alíquotas diferentes de acordo com a localização e o uso do imóvel.(Incluído
pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000)
II – ter alíquotas diferentes de acordo com a localização e o uso do imóvel e o
respeito à função socioambiental da propriedade.
[…]
(grifou-se)
Conforme destacado linhas acima, cabe ao plano diretor (art. 182, § 1º e 2º da
Constituição Federal) estabelecer as determinações referentes à ordenação da cidade que, se
cumpridas, demonstrarão que a propriedade desempenha sua função social. Portanto, no novo
texto constitucional proposto caberá também ao plano diretor estabelecer quais os requisitos a
serem cumpridos para que a propriedade cumpra com sua função não só social mas também
socioambiental. Neste sentido, Maria de Fátima Ribeiro ensina que:
É através do Plano Diretor que os municípios desenvolverão suas competências de
promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento
e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano.
[…]
A finalidade do planejamento local é o adequado ordenamento do território
municipal, com o objetivo de disciplinar o uso, o parcelamento e a ocupação do solo
urbano (art. 30, VIII). O solo qualifica-se como urbano quando ordenado para
cumprir destino urbanístico, especialmente a edificabilidade e o assentamento viário.
Esse ordenamento é função do Plano Diretor, aprovado pela Câmara Municipal, a
que a Constituição Federal elevou à condição de instrumento básico da política de
desenvolvimento e de expansão urbana (art. 182, § 1º, CF).
Assim, o Plano Diretor constitui o instrumento pelo qual se efetiva o processo de
planejamento urbanístico local. Demonstra ser um instrumento potencializador da
81
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
demanda por proteção ambiental, uma vez que normatiza a atuação estatal junto com
a comunidade na ordenação de um meio ambiente urbano equilibrado e saudável
promovendo a qualidade de vida no meio ambiente urbano.31
É interessante observar que a inserção de uma previsão constitucional de utilização da
progressividade do IPTU para fins socioambientais diminuirá consideravelmente a
possibilidade de questionamentos quanto à constitucionalidade das legislações municipais
editadas no atual panorama constitucional. Este, aliás, foi um dos motores propulsores do
Projeto de Emenda, conforme se denota das palavras do Deputado Roberto Rocha, na
justificativa do projeto:
Na doutrina jurídica brasileira, o tema também tem sido negligenciado, talvez não
por motivação político-ideológica, senão por desconhecimento. Essa ausência de
percepção do problema, que também pode ser explicada pelo distanciamento da
dogmática jurídica em relação a outros ramos das ciências sociais e econômicas,
seria capaz de gerar, inclusive, defesas apaixonadas da inconstitucionalidade de
proposições legislativas que almejassem introduzir o elemento ambiental em
qualquer das normas de incidência de nosso sistema tributário nacional.
Portanto, com a nova redação do artigo 156 da Constituição Federal proposta pela PEC
nº 353/2009, serão minimizadas as possibilidades de questionamento da constitucionalidade
das legislações municipais supervenientes a ela que instituam em seus textos a
progressividade do IPTU com fins de garantir o cumprimento da função socioambiental da
propriedade.
5 CONCLUSÃO
O estudo minucioso dos problemas ambientais e a conseqüente previsão legal da
necessidade dos cuidados com o meio ambiente levam a crer que a cada dia aumentam a
conscientização e a preocupação com o desenvolvimento sustentável, que nada mais é do que
a utilização racional dos recursos naturais para que estes perdurem para as gerações futuras.
Primeiramente, a Convenção de Estocolmo, em 1972, alertou sobre a necessidade de
maior atenção ao meio ambiente, como forma de frear o extrativismo desenfreado. Aqui no
Brasil, antes mesmo da RIO 92, a Constituição Federal já previu, em seus artigos 170 e 225, o
ônus do Estado em lutar pela defesa do meio ambiente.
Dessa forma, a instituição de tributos ambientalmente orientados encontra seus
delineamentos na defesa da concretização do desenvolvimento sustentável, sem prejuízo do
31
O IPTU Conforme Disposições do Estatuto da Cidade. In: PEIXOTO, Marcelo Magalhães (Coord.). IPTU –
Aspectos Jurídicos Relevantes. São Paulo: Quartier Latin, 2002, p. 461/462.
82
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
desenvolvimento econômico e financeiro dos países, mas de acordo com a exploração
ordenada dos recursos naturais. Nesse contexto, impõe-se a utilização ambientalmente
orientada da propriedade urbana, sendo o IPTU um eficiente instrumento para influenciar a
tomada de atitudes ecologicamente positivas.
Em que pese a atual ordem constitucional já permitir a utilização do IPTU neste sentido,
certamente a aprovação do Projeto de Emenda Constitucional nº 353/2009 trará segurança
jurídica principalmente aos municípios que pretenderem se utilizar desta ferramenta. Isto
porque com a nova redação proposta ao inciso II do parágrafo 1º do artigo 156 da
Constituição Federal será expressamente constitucionalizada a possibilidade de utilização da
progressividade do IPTU como ferramenta para se perseguir o cumprimento da função
socioambiental da propriedade urbana.
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84
A EXPANSÃO URBANA E A INFLUÊNCIA NAS ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS: O
CASO DE FORTALEZA
Daniela Maia Saboia Moura1
Armando Elísio Gonçalves Silveira 2
RESUMO: O presente trabalho foi desenvolvido com o escopo de aprofundar o tema
referente à expansão das cidades e a sua influência nas alterações climáticas, assunto de
grande relevância na sociedade atual. O objetivo principal do artigo é mostrar que construções
indiscriminadas ou em desconformidade com as disposições legais vigentes podem afetar
negativamente o clima urbano, ferindo a preservação do meio ambiente local e o bem-estar
coletivo, fato este que implica no descumprimento da função sócio e ambiental da
propriedade. A partir de uma análise da cidade de Fortaleza, verificaram-se alterações
climáticas provenientes do seu rápido e desordenado crescimento urbano. A outrora “Cidade
Luz” amarga inúmeros problemas de cunho urbanístico e ambiental, sendo melhor designada
nos dias atuais como “estufa alencarina”.
PALAVRAS-CHAVE: Expansão urbana, Alterações Climática, Fortaleza.
ABSTRACT: This work was developed with the aim of deepening the theme related to the
expansion of cities and their contribution to climate change, an issue of great relevance in
today's society. The aim of this article is to show that indiscriminate constructions or
inconsistent with existing legal provisions may adversely affect the urban climate, hurting the
preservation of local environment and collective well-being, and this fact implies the failure
of social and environmental function of property. From an analysis of the city of Fortaleza,
there have been climate changes from their rapid and unplanned urban growth. The once
"City Light" bitter numerous problems of urban and environmental imprint, best known
nowadays as "alencarin greenhouse”.
KEY-WORDS: Urban Sprawl, Climate Changes, Fortaleza.
1 INTRODUÇÃO
As modificações climáticas derivadas das atividades humanas é um tema de grande
importância na atualidade e muitos esforços estão sendo realizados no intuito de minimizar os
1
Advogada (Bacharel em Direito pela UFC), Especialista em Direito Civil-(UNIFOR), Mestranda em
Desenvolvimento e Meio Ambiente- PRODEMA-UFC, Fortaleza, Ceará, [email protected].
2
Arquiteto (Faculdade de Arquitetura - UFC), Especialista em Tecnologia do Ambiente Construído (CENTEC Centro de Ensino Tecnológico - Ceará), Mestrando em Desenvolvimento e Meio Ambiente -PRODEMA- UFC,
Fortaleza, Ceará, [email protected].
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
danos locais e mundiais.
Para fazer uma análise sobre as alterações climáticas no ambiente urbano faz-se
relevante expor algumas considerações sobre a função social e ambiental da propriedade
urbana.
O clima influi diretamente na qualidade de vida do homem e construções urbanas
causadoras de prejuízos ao chamado “microclima” da cidade além de não obedecerem o art.
225 da Constituição Federal de 88 (que estipula a preservação do meio ambiente) ainda ferem
o bem-estar coletivo, fato este que acarreta na não aplicação da sua função socioambiental.
O eixo temático do artigo tem como foco principal a cidade de Fortaleza, visto que esta
se encontra envolta por inúmeros problemas de cunho urbano, sendo que as alterações
climáticas fazem parte desta situação proveniente da rápida e desordenada evolução da capital
cearense que ainda hoje sofre com as irregularidades na aplicação das disposições do seu
Plano Diretor.
2 A FUNÇÃO SOCIAL E AMBIENTAL DA PROPRIEDADE URBANA
A atual Constituição Federal brasileira garante o direito à propriedade (Direitos e
Garantias Fundamentais), confirmando que ela atenderá a sua função social (art.5º, XXIII),
criando uma série de condições para que o proprietário possa exercer seus poderes com o
escopo de garantir que os objetivos estipulados na Carta Magna sejam respeitados e
cumpridos devidamente: “Art. 5º [...] XXII - é garantido o direito de propriedade; XXIII - a
propriedade atenderá a sua função social”.
A função social da propriedade é voltada para o bem-estar social, sobressaindo-se à
antiga concepção romana que se utilizava do direito ilimitado sobre a coisa.
A partir do entendimento de José Diniz de Moraes3, a própria palavra "função" vem do
Latim funtio, functionis, significando trabalho, exercício, cumprimento ou execução. No
aspecto semântico possui muitos sentidos, sendo utilizada de diversas formas. De acordo com
Duguit, citado por Santos4:
A propriedade já não é no direito moderno aquele direito intangível, absoluto, que o
homem que possui a riqueza tem sobre ela. O proprietário, isto é, o possuidor de
3
MORAES, José Diniz de. A Função Social da Propriedade e a Constituição Federal de 1988. São Paulo:
Malheiros, 1999, p. 81.
4
DUGUIT apud SANTOS, Edilson Portela. A Constituição Brasileira em um Decênio de Vigência. Fortaleza:
Imprensa Universitária do Ceará, 1957, p.69-70.
86
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
uma riqueza, tem, pelo fato de possuir riqueza, uma função social a cumprir;
enquanto cumpre essa missão, seus atos de proprietário estão protegidos. Se não a
cumpre, ou a cumpre mal, se por exemplo, não cultiva sua terra ou deixa arruinar
sua casa, a intervenção dos governantes é legítima para obrigá-lo a cumprir sua
função social de proprietário, que consiste em assegurar o emprego das riquezas que
detenha, conforme o seu destino.
A função social da propriedade visa justamente à obtenção de uma conciliação entre os
direitos individuais dos que possuem a propriedade e a coletividade, tendo como finalidade
principal o bem comum.
O conceito de cidade é proveniente do vocábulo latino urbs e o chamado meio ambiente
artificial está inserido neste contexto, visto que compreende o conjunto de edificações (espaço
urbano fechado) e os equipamentos públicos (espaço urbano aberto).5A natureza jurídica
ambiental do meio ambiente artificial foi estabelecido não somente pela Constituição, mas
principalmente pelo Estatuto da Cidade.
Mediante o entendimento de Venosa6, a instituição do Estatuto da Cidade (Lei nº
10.257/2001) o tornou uma espécie de estatuto do cidadão, possuindo um cunho
eminentemente social, objetivando melhorar o aproveitamento da propriedade urbana para
que o cidadão pudesse realizar seus desígnios com sua família, passando a viver em um local
urbano e meio ambiente eficiente, este seria o desenvolvimento sustentável.
Vale ressaltar que, para aferição do desenvolvimento sustentável tem-se que obter uma
evolução benéfica em três setores principais da sociedade: o econômico, o social e o
ambiental.
Apesar de a União possuir a competência para elaborar e executar planos nacionais e
regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social, não pode
deixar de se ressaltar a importância do Município em todo esse processo, considerando que
ele é a base da estrutura do meio ambiente artificial e de direito urbanístico, sendo de grande
relevância para o bem estar da população.
O Estatuto da Cidade visa adequar a política urbana aos preceitos referentes ao princípio
da função social da propriedade, tendo como escopo a obtenção de uma sociedade mais
organizada urbanisticamente, influenciando as pessoas a visarem o bem comum, procurando
5
FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 11.ed. ver. Atual. Ampl. São
Paulo: Saraiva, 2010. O autor ainda considera que o meio ambiente artificial: “não está empregado em contraste
com o termo campo ou rural, porquanto qualifica algo que se refere a todos os espaços habitáveis (...)”.pg. 72.
6
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direitos reais. 2.ed. São Paulo: Atlas, 2002, v.5.pg.156.
87
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
estabelecer cidades mais organizadas e voltadas para o respeito dos direitos sociais, dentre
eles o direito à propriedade e o modo correto para o seu planejamento, além da proteção e
tutela ambiental (art. 4º).
A função ambiental da propriedade se perfaz como um tipo de evolução do conceito da
função social. A própria questão do meio ambiente e sustentabilidade estão devidamente
expostas dentre os artigos da Constituição Federal de 1988, a exemplo dos arts. 225 e art. 22,
IV; art. 24, VI, VIII, quem compõem a chamada Política nacional do Meio Ambiente com o
estabelecimento da Lei nº 6. 938/1981, além do próprio art. 5º, inciso, XXIII, ao considerar a
função ambiental da propriedade uma evolução da função social estipulada pela Constituição.
Segundo o exposto no Dicionário Michaelis 7, ambiente é o meio em que vivemos ou em
que vive cada um, ou seja, pode ser o meio natural, artificial, cultural e do trabalho.
A Lei nº 6. 938/1981:
Art 3º - Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por:
I - meio ambiente, o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem
física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas
formas;
Dentre as inúmeras vertentes da qualificação do meio ambiente está aquela que se aplica
ao direito de propriedade e a sua função ambiental. Figueiredo 8estabelece que:
As normas de caráter ambiental que interferem na conformação do direito de
propriedade constituem, em seu conjunto, a consubstanciação do princípio da função
social da propriedade, mas não é este princípio um conjunto de regras relativas à
limitação do direito de propriedade: ele é o próprio contorno jurídico do instituto da
propriedade privada.
Neste novo milênio, a função socioambiental da propriedade surge como um meio de
coibir os excessos na utilização da propriedade, a fim de garantir o bem-estar da população.
A Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6. 938/1981) estipula:
Art 3º [...] III - poluição, a degradação da qualidade ambiental resultante de
atividades que direta ou indiretamente.
a)
Prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população”; (grifo
nosso).
A questão da função ambiental da propriedade está intrinsecamente ligada ao meio
7
MICHAELIS, Moderno dicionário da Língua Portuguesa. São Paulo: Companhia Melhoramentos, 1998.pg.
126.
8
FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de. A Propriedade no Direito Ambiental. 4. ed. Ver., atual. e ampl.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.p. 33.
88
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
9
ambiente artificial. Di Sarno salienta que para haver uma sadia qualidade de vida para a
população faz-se necessária a estruturação e a realização de uma política urbana condizente
com o bem comum da sociedade.
A função ambiental da propriedade relaciona-se diretamente com a sua função social,
especialmente sob o enfoque o novo enfoque holístico e interdisciplinar que hoje se encontra
as ciências humanas e naturais.
Figueiredo10ainda contempla que não se deve adotar terminologia contrária à utilizada
pela CF-88. Deve-se preferir a expressão dimensão ambiental da função social da
propriedade. Mediante o autor, não existe na Constituição Federal, a expressão “sócioambiental” ou “socioambiental”, concluindo-se que mencionar a expressão “socioambiental”
seria redundante, visto que as relações sociais modificam o meio ambiente e fazem parte do
próprio ambiente em que se encontram.
Segundo a Constituição Federal, qualquer relação de apropriação deve permitir o
cumprimento de duas funções diferenciadas: uma de cunho individual (dimensão econômica
da propriedade) e uma coletiva (dimensão socioambiental) que nem sempre se impõem de
maneira simultânea11
Ayala12 considera que:
O princípio da função social da propriedade se superpõe à autonomia privada, que
rege as relações econômicas, para proteger os interesses de toda a coletividade em
torno de um direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Somente a
propriedade privada que cumpra a sua função social possui proteção constitucional.
Por esta razão, seu cumprimento importa a imposição de uma sanção: a
expropriação compulsória. Esta é suportada pelo proprietário exatamente em razão
do exercício irresponsável do direito e da gestão inadequada dos recursos naturais.
Através da execução do estipulado no Plano Diretor de cada cidade
objetiva-se garantir o desenvolvimento da função social da
propriedade, conforme o art. 182, § 2º, da Constituição Federal- 88.
Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público
municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o
pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus
habitantes.
§ 1º - O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades
9
DI SARNO, Daniela Campos Libório apud SANT‟ANNA Mariana Senna. Planejamento urbano e qualidade de
vida-da Constituição Federal ao plano diretor. In: DALLARI, Adilson Abreu; DI SARNO, Daniela Campos
Libório. Coords. Direito Urbanístico e Ambiental. Belo Horizonte: Fórum, 2007, pg. 153.
10
FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de. Obr. Cit., p. 38.
11
AYALA, Patrick de Araújo. Deveres Ecológicos e regulamentação da atividade econômica na Constituição
Brasileira. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato. Orgs. Direito Constitucional
Brasileiro. 3. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2010. pg. 297.
12
AYALA, Patrick de Araújo. Deveres Ecológicos e regulamentação da atividade econômica na Constituição
Brasileira. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato. Orgs. Obr. Cit., pg. 294.
89
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de
desenvolvimento e de expansão urbana.
§ 2º - A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às
exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”.
(grifo nosso)
As disposições constitucionais supracitadas, o Estatuto da Cidade e o Plano Diretor
visam adequar a política urbana aos preceitos referentes à função social e ambiental da
propriedade, tendo como escopo a obtenção de uma sociedade mais organizada
urbanisticamente, influenciando as pessoas a visarem o bem estar coletivo, procurando
estabelecer cidades mais organizadas, voltadas para o respeito dos direitos sociais e a
preservação do meio ambiente (art.225 da Constituição Federal de 1988).
A função socioambiental da propriedade serve como meio de modificar o antes direito
absoluto do dominus e impor que seus preceitos sejam respeitados para que o proprietário
possa usufruir do seu bem sem prejudicar o bem-estar da sociedade, especialmente quando se
considera que meio ambiente é tudo o que nos cerca abrangendo o natural, artificial, cultural e
do trabalho.
No Brasil, a expansão desordenada da maioria de suas metrópoles acarretou uma série
de impactos ambientais, dentre estes, as alterações climáticas. O desenvolvimento capitalista
voltado somente para o crescimento econômico vai de encontro à própria designação de
desenvolvimento sustentável que, segundo o Relatório Brundtland é o desenvolvimento que
satisfaz as necessidades presentes, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de
suprir suas próprias necessidades. 13
3 AS MUDANÇAS CLIMÁTICAS E O DESENVOLVIMENTO NO BRASIL E NO
MUNDO
Durante séculos o homem explorou a natureza como se não houvesse o amanhã. Hoje,
grande parte das nações se sente insegura quanto ao futuro da humanidade devido à crescente
escassez de recursos naturais em contraposição ao aumento da população mundial e da
poluição, fatores estes que contribuem com as mudanças climáticas.
Como principais causas relevantes para o aquecimento global no último meio século
tem-se a combinação do crescimento da população mundial e o consumo generalizado de
energia fóssil. Além dos efeitos provenientes do homem, não se pode esquecer que o mundo
13
O Relatório Brundtland é o documento intitulado “Nosso Futuro Comum”, publicado em 1987 e elaborado
pela Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento chefiado pela Ministra da Noruega, Gro
Harlem Brundtland.Disponível em: HTTP://pt.wikipedia.org/wiki/Relat%C3%B3rio_de_Brundtland. Acesso
em: 10 de setembro de 2010.
90
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
passa por um fenômeno natural interglacial.
Com o desenvolvimento desordenado da humanidade desprovida da visão de
sustentabilidade, as emissões de gases de efeito estufa (dióxido de carbono- CO², metanoCH4, óxido nitroso- N²O e os clorofluorcarbonos-CFC) fizeram com que a temperatura média
do globo se elevasse paulatinamente de 13,2º C para 14º C entre os idos de 1900 e 2005,
possuindo ainda uma previsão de elevação de mais 2 a 3ºC até 2050, caso não haja uma
redução na emissão dos gases (IPCC, 2007)14.
Com o aumento exacerbado das populações mundiais e, grande parte dela, instalada em
áreas urbanas, o índice de emissão de poluentes tornou-se um problema de grande relevância,
causando efeitos extremamente nocivos ao ar e ao clima. Duas fontes principais de emissão
de poluentes são caracterizadas: fontes móveis (frota de veículos automotores) e fontes
estacionárias (indústrias, usinas termoelétricas, incineradores de lixo, etc.). 15
No intuito de amenizar as evidentes modificações no clima da Terra devido à ação
desastrosa dos seres humanos foram realizadas: a Conferência das Nações Unidas sobre o
Meio Ambiente Humano (1972); a Conferência das Nações Unidas sobre o meio Ambiente
Humano e Desenvolvimento (1992); a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança
do Clima (1992); o Protocolo de Quioto (1997) e os Acordos de Marraqueche (2001).
Após a Segunda Guerra Mundial, o mundo adentrou em uma corrida capitalista,
ocasionando uma utilização desenfreada dos recursos naturais. 16
A poluição advinda das fábricas e a queima de combustíveis fósseis passaram a
aumentar o efeito estufa e a produção de CFC‟s (clorofluorcarbonetos) provenientes dos
sprays e ar condicionados17 se tornaram uma das principais causas dos problemas na camada
de ozônio (O³) que protege todos os seres vivos dos raios ultravioletas. Além do supracitado
efeito estufa, outros fenômenos surgiram derivados da poluição: o “smog” e as chuvas ácidas.
Ainda em busca de remediar a problemática do clima, em 1972 foi criado um órgão
14
VIOLA, Eduardo J. In: FERREIRA, Heline Silvini; LEITE, José Rubens Morato; BORATTI, Larissa Verri.
Orgs. Estado de Direito Ambiental: Tendências. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. Pg. 47.
15
ORSINI, Celso. In; MAGALHÃES, Luiz Edmundo de. Coord. A questão ambiental. 1.ed. São Paulo:
Terragraph, 1994.
16
CASARA, Ana Cristina. Direito Ambiental do clima e créditos de carbono.Curitiba: Juruá, 2009, pg. 23
17
AFONSO, Sonia. Paisagem e Ambiente urbano Sustentáveis: Métodos e Ferramentas. Disponível em:
http://soniaa.arq.prof.ufsc.br/sonia/ENEPEA/sonia2002.pdf. Acesso em: 23 de setembro de 2010. “Temperaturas
elevadas em áreas urbanas aumentam uso de ar-condicionado e favorecem a concentração da poluição do ar. As
áreas urbanas contemporâneas têm superfícies mais escuras e menos vegetação. Estas diferenças afetam o clima,
o uso de energia, e a habitabilidade das cidades. Superfícies escuras e vegetação reduzida aquecem a camada de
ar acima das áreas urbanas, conduzindo à criação de ilhas de calor.”
91
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
especializado da Organização das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), em 1988
foi instituído o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) 18 para analisar o
papel do homem no meio ambiente e as variáveis climáticas. Em 1991 foi instaurada a
Agenda 21 e em 2002 foi realizada em Johannesburgo a Cúpula Mundial sobre o
Desenvolvimento Sustentável. Infelizmente, houve um grande fracasso nas negociações em
Copennhague que culminou em 2008 em muitas discussões entre os líderes das grandes
potências. Apenas a Comunidade Européia mostrou apoio, o contrário dos dois maiores
poluidores mundiais, Estados Unidos e China com 20 e 23% (respectivamente) da emissão de
gases a nível mundial.
Chegou-se à conclusão que, para haver uma redução nas intempéries ocorridas pelos
danos causados pelo homem e para a obtenção do desenvolvimento sustentável, haveria a
necessidade de fazer a aplicação de um desenvolvimento não voltado somente para o
crescimento em termos de PIB (Produto Interno Bruto) e de riquezas mas, principalmente, um
crescimento com a valorização da qualidade de vida das pessoas e do meio ambiente.
Viola19 faz a seguinte exposição sobre o Brasil:
O Brasil tem uma população de 190 milhões de habitantes, um PIB de 1,6 trilhão de
dólares e um PIB per capita de 8.000 dólares. Emite aproximadamente 1,8 bilhão de
toneladas de carbono, correspondente a aproximadamente 5% das emissões globais,
9 toneladas per capita e 1,2 tonelada de carbono por cada 1.000 dólares de PIB. As
emissões do Brasil nos anos 2005-2008 sofreram forte redução com referência ao
período 2001-2004, devido à dramática queda da taxa de desmatamento na
Amazônia, de uma média anual de 20.000 km² para uma média anual de 13.000 km².
O Brasil é um dos países considerados hoje “em desenvolvimento”, mesmo assim,
padece com diversos problemas de cunho social, político, econômico e ambiental nas suas
cidades. Grandes metrópoles como São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Fortaleza, dentre
outras, atravessaram por uma expansão urbana desordenada que, adicionada com a não
aplicação correta dos dispostos contidos nos Planos Diretores, está causando uma série de
18
“O Quarto Relatório de Avaliação (AR4) do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC)
mostra que a temperatura média da Terra a superfície aumentou 0,76 º C desde 1850. A maior parte do
aquecimento nos últimos 50 anos é muito provável que tenha sido causado pelas emissões de dióxido de carbono
(CO2) e outros "gases estufa" das atividades humanas. Sem uma ação para reduzir essas emissões, a temperatura
média global deve aumentar ainda mais por 1,8-4,0 °C neste século, e até 6,4 °C no pior cenário, as projeções do
IPCC. Mesmo a extremidade inferior do intervalo levaria o aumento da temperatura desde a época pré-industrial
acima de 2 ° C - o limiar além do qual muitos cientistas acreditam que as mudanças irreversíveis e possivelmente
catastróficas se tornaria mais provável.” Disponível em:http://translate.google.com.br/translate?hl=ptBR&langpair=en%7Cpt&u=http://ec.europa.eu/environment/climat/home_en.htm. Acesso em: 23 de setembro
de 2010.
19
VIOLA, Eduardo J. In: FERREIRA, Heline Silvini; LEITE, José Rubens Morato; BORATTI, Larissa Verri.
Orgs. Estado de Direito Ambiental: Tendências. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. Pg. 47.
92
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
impactos no meio ambiente onde se encontram, tendo como uma de suas principais
conseqüências as alterações climáticas.
Na atualidade, a maioria da população mundial mora nas cidades. No Brasil, este
fenômeno ganha visibilidade entre as décadas de 1950 e 1960, e vem crescendo
continuamente desde então. “Em 1940 a população urbana representava apenas
31,24% do total, passando para 36,16% em 1950, 44,67% em 1960, 55,92% em
1970, 67,59% em 1980, 75,59% em 1991 e 78,36% em 1996.(...)” (AMORIM,
2000, p.16). Hoje, a população urbana brasileira já ultrapassou dois terços da
população total do país. A substituição dos ambientes naturais por áreas urbanas gera
o aumento das temperaturas nas escalas locais. Este fenômeno ocorre em função
de vários fatores, tais como a diminuição das áreas verdes, a canalização dos
córregos, o aumento das indústrias que liberam poluentes na atmosfera entre outras
atividades inerentes à vida nas cidades, que além de gerarem o aumento nas
temperaturas, causam a redução da umidade relativa, dando origem a um clima
particular, denominado clima urbano.20
A fim de buscar meios para solucionar a problemática do clima, um dos principais
projetos aplicados no Brasil é o MDL (Mecanismo de Desenvolvimento Limpo), com o
intuito de reduzir as emissões de gases de efeito estufa possuindo vinculação ao Instituto de
Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), dentre outros órgãos. Como o MDL é um
instrumento financeiro, faz-se necessário expor o conteúdo do art. 170 da CF-88:
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na
livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os
ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado
conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de
elaboração e prestação; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 42, de
19.12.2003)” (grifo nosso).
Como foi explanado acima, o efeito estufa é um grave problema de ordem climática que
ocasiona o aumento da temperatura da Terra. A queima de combustíveis fósseis (carvão
mineral, petróleo,etc.) prejudica ainda mais a situação, além de causar a poluição do ar
atmosférico. Seguindo as estipulações hoje aplicadas ao Direito Ambiental, as fábricas ou
qualquer ente que causar degradação ambiental serão responsabilizados seguindo legislação
própria ou em esferas civis, administrativas e penais. Vale lembrar a Lei nº 9.605/98- (Lei de
Crimes Ambientais) e a Resolução 237/1997 do CONAMA (Conselho Nacional do Meio
Ambiente).
20
LIMA, Gabriela Narcizo de. Clima urbano em Teodoro Sampaio/SP: características da temperatura e
umidade
relativa
do
ar
no
início
do
anoitecer.
Disponível
em:.
http://www4.fct.unesp.br/cursos/geografia/CDROM_IXSG/Anais%20%20PDF/Gabriela%20Narcizo%20Lima.pdf. Acesso em: 22 de setembro de 2010
93
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Além da poluição, outras causas levam à gradativa modificação no clima urbano das
grandes metrópoles brasileiras. Construções irregulares ou em locais que literalmente
“barram” a circulação dos ventos acabam por elevar a temperatura ou causar desastres
gerados pelo mau escoamento das chuvas.
Outro problema que agrava a situação das “ilhas de calor” encontra-se na região
sudoeste, oeste e central de Fortaleza, área que, apesar de não possui muita verticalidade, as
edificações são extremamente homogêneas e com pouca vegetação local. 21
As edificações que prejudicam não somente o clima urbano como também o meio
ambiente que a cerca não está de acordo com um princípio basilar do direito de propriedade, a
obediência à sua função social e ambiental. Infelizmente, em um país como o Brasil, que
cresceu de maneira desordenada, principalmente na área urbana, muitas construções
encontram-se nesta situação.
O proprietário que estiver causando danos ao meio ambiente também está abusando do
seu direito de propriedade (art. 1228, § 1º, do Código Civil Brasileiro. Lei 10.406/2002):
Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o
direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
§ 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas
finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de
conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas
naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como
evitada a poluição do ar e das águas. (grifo nosso).
José Afonso da Silva22 considera que:
[...] o assunto integra o título da ordem social, onde se estatui que todos têm direito
ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e
essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o
dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações (art. 225). É
um campo que integra, na sua complexidade, a disciplina urbanística, mas se revela
como social, na medida em que sua concreção importa em prestação do Poder
Público.
21
“A hipótese já colocada anteriormente de que as áreas de grande concentração de massa edificada de aspecto
homogêneo é a mais cogitada para explicar o fato dos setores sudoeste, oeste e porção central apresentarem as
mais freqüentes e elevadas temperaturas do ar na cidade, isso porque há o rápido aquecimento da massa
edificada de estrutura homogênea e, consequentemente, o ligeiro aquecimento da temperatura do ar por
convecção, (...)”.MOURA, Marcelo de Oliveira; ZANELLA, Maria Elisa; SALES, Marta Celina Linhares. Ilhas
térmicas na cidade de Fortaleza, Ce. Boletim Goiano de Geografia. Goiás, v.28, n. 2, p. 33-34, jul./dez., 2008.
Disponível em: http://www.revistas.ufg.br/index.php/bgg/article/viewFile/5718/4523. Acesso em 29 de jun. de
2010.
22
SILVA, José Afonso da. Apud 22 ROSA, ALEXANDRE MORAIS DA. Princípios Ambientais, Direitos
Fundamentais, Propriedade e Abuso do Direito: por uma leitura a partir do Garantismo Jurídico
(Ferrajoli). Disponível em: http://www.advocaciapasold.com.br/publicacoes/principiosdedireitoambiental.doc.
Acesso em: 12 de setembro de 2010.
94
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Ao causar degradação ambiental que inclui a poluição e emissão de gases de efeito
estufa em desobediência ao estipulado pela legislação, o proprietário não atende a função
social da propriedade que inclui a preservação do meio ambiente e a manutenção do bemestar social.
O Brasil pode ser considerado pela ONU (Organização das Nações Unidas) como um
país em desenvolvimento, mas não especificou que a expansão brasileira é gerada pela
exploração de muitos trabalhadores e muitos destes vivem em condições sub-humanas nas
grandes metrópoles, em lugares por vezes insalubres. O desenvolvimento verde e amarelo não
se perfaz conjugando a economia, o social e o ambiental, as bases principais para a
sustentabilidade.
Todas estas colocações mostram que, nas cidades brasileiras, o PIB (Produto Interno
Bruto) é mais valorizado do que o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) e como o bemcomum não é passível de barganha, o povo e o meio ambiente sofrem com as conseqüências,
inclusive o clima da região.
Mesmo com tentativas provenientes do exterior ou mesmo de caráter interno, o Brasil
ainda precisa desenvolver melhores formas de aplicação da sua política urbana para evitar que
mais complicações no meio ambiente urbano se realizem nos anos vindouros.
4 A EXPANSÃO URBANA E A INFLUÊNCIA NAS ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS: O
CASO DE FORTALEZA
A cidade de Fortaleza enfrenta na atualidade os problemas derivados de uma expansão
urbana desordenada23 com diversas construções em áreas que são importantes para a
circulação dos ventos dentro da capital cearense, ocasionando o aumento da sensação térmica
na maioria de seus bairros. Os dados do IBGE (censo 2000) apresentam uma população de
2.141.402 habitantes e densidade 63,89 hab/ha24.”.
23
FREITAS, Clarissa F. Sampaio. A produção desequilibrada do meio ambiente urbano de Fortaleza e o
papel
do
movimento
ambientalista.
Disponível
em:
http://www.anppas.org.br/encontro_anual/encontro2/GT/GT11/gt11_clarissa_freitas.pdf. Acesso em: 23 de
setembro de 2010. “Para demonstrar esse argumento, o artigo expõe o processo de transformação do espaço
natural de Fortaleza baseando-se na teoria marxista de desenvolvimento desequilibrado (Smith, 1984). O caso de
Fortaleza demonstra que o discurso da preservação ambiental tem facilitado uma lógica de desenvolvimento
urbano capaz de alimentar um ciclo vicioso de geração de desigualdades sócio-ambientais no espaço intraurbano.”
24
LOUREIRO, Caroline Vitor; FARIAS, Juliana Felipe. IMPACTOS AMBIENTAIS RESULTANTES DA
IMPERMEABILIZAÇÃO DO SOLO NA CIDADE DE FORTALEZA-CE . Disponível em:
http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:http://www.geo.ufv.br/simposio/simposio/trabalhos/trab
95
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
A ocupação desorganizada do homem vem provocando modificações na paisagem da
área através da impermeabilização do solo, descaracterização da cobertura vegetal, mudanças
nos cursos d‟água e aterramento das lagoas, implicando em alterações climáticas no entorno
Os relatórios ambientais por vezes não contemplam os problemas gerados pela
expansão urbana descontrolada sobre o clima, favorecendo a emissão de licenciamentos
ambientais passíveis de erro, podendo gerar ações governamentais equivocadas que
influenciam os gestores nas suas deliberações. Muito destes estudos ambientais
desconsideram a biodiversidade local, as particularidades do ecossistema e induzem a
descaracterização do meio ambiente, impactando negativamente na questão climática,
fenômeno que influi diretamente na perda da qualidade de vida da população. Fiorillo
considera25
O relatório de impacto ambiental e o seu correspondente estudo deverão ser
encaminhados para o órgão ambiental competente para que se proceda a analises
sobre o licenciamento ou não da atividade.
Moura26 explica faz-se necessário um entendimento mais profundo sobre o sítio natural
é importante para considerações sobre o clima de uma região. Fortaleza, por apresentar
topografia plana, garante maior fluidez à penetração dos ventos, excetuando-se a região das
dunas e relevos litorâneos, principalmente os localizados a leste da cidade.
Na primeira metade do século XX, a capital cearense foi constituída por um núcleo
formado pelo centro comercial e alguns bairros circundantes ocupados pelas elites locais,
configuração esta que permaneceu até os idos dos anos 60, quando intervenções do governo,
somados ao êxodo rural derivado da intensidade das secas, motivaram a expansão urbana que
atingiu limites impensados pela maioria dos habitantes da metrópole.
A partir de 1972, instituiu-se o PLANDIRF (Plano de Desenvolvimento Integrado da
Região Metropolitana de Fortaleza), projeto este que orientou a criação da Região
Metropolitana onde Fortaleza já assumia papel de significativa importância, promovendo
transformações espaciais de certas regiões à custa das demandas da Metrópole.
Com o advento da Constituição de 1988, as políticas urbanas municipais passaram por
transformações, gerando mudanças de cunho legislativo e administrativo de Fortaleza.
alhos_completos/eixo11/018.pdf. Acesso em: 23 de setembro de 2010.
25
FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2010.
26
MOURA, Marcelo de Oliveira. O clima urbano de Fortaleza sob o nível do campo térmico. (Dissertação de
Mestrado). Fortaleza: Programa de Pós-graduação em Geografia/UFC, 2008.
96
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Os arts. 182 e 183 da Carta Magna de 1988 referem-se às competências do Poder
Público Municipal e a obrigatoriedade do Plano Diretor como base para as políticas públicas,
objetivando ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bemestar de seus habitantes.
Segundo Accioly27, a partir da Constituição, o Plano Diretor passa a ser uma exigência
legal e instrumento base para a implantação de políticas urbanas, tendo o Governo Municipal
como agente regulador e promotor do desenvolvimento e o Estado no papel de gestor central.
O Estatuto da Cidade, Lei 10.257, de 10 de julho de 2001, entrou em vigor no dia 10 de
outubro de 2001 e regulamentou os artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988. Estes
dois artigos da Constituição da República tratam especificamente da Política Urbana.
Mediante o exposto no art.2º do Estatuto da Cidade:
Art. 2º. A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das
funções sociais da cidade e propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes
gerais:
I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra
urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte
e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações;
II – gestão democrática por meio da participação da população e de associações
representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e
acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano;[...]
IV – planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da
população e das atividades econômicas do Município e do território sob sua área de
influência, de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus
efeitos negativos sobre o meio ambiente.
Em 1981 foi elaborado o Código de Obras e Posturas de Fortaleza (Lei nº 5.530), em
1992 é aprovado o PDDUFOR (Plano Diretor de Fortaleza) e em 1996 é aprovada a Lei de
Uso e Ocupação do Solo (Lei nº 7.987) que se tornam instrumentos legais de orientação das
práticas urbanas de agentes públicos e privados.
Durante a gestão do prefeito Juraci Magalhães foram criadas as Secretarias Executivas
Regionais (SER‟s) e foi extinto o IPLAM (Instituto de Planejamento do Município), o que
favoreceu a gestão fragmentada da cidade com o ganho de força política e administrativa das
regionais que passaram a se tornar “mini-prefeituras”, superestimando as questões políticas
em detrimento do planejamento urbano adequado.
27
ACCIOLY, Vera Mamede. A metrópole e o impacto das políticas públicas na expansão urbana: Fortaleza
entre
1980
e
2008.
Disponível
em:
Disponível
em:
http://egal2009.easyplanners.info/area05/5837_Vera_Mamede_Accioly.pdf. Acesso em: 28 de jun. 2010.
97
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
28
Silva considera:
[...] a influência dos movimentos sociais na expansão urbana foi mais expressiva
quando a cidade adquiriu o status de metrópole. Neste momento, destacam-se a sua
participação nos fóruns de discussão do Plano Diretor, como também em mobilizações,
forçando mudanças nas políticas públicas, nos projetos de renovação urbana e também
em ações dos grupos empresariais, quando comprometem o meio ambiente e atingem a
população local.
Fortaleza se encontra próxima à linha do Equador e possui aproximadamente trinta
quilômetros de faixa praia inserida entre a foz dos rios Ceará e Pacoti. Por estar situada nesta
região, a cidade recebe altos índices de insolação, condição que repercute em elevadas
temperaturas durante todos os meses do ano, baixa amplitude térmica e altas taxas de
evaporação. Além disso, a cidade apresenta uma quadra chuvosa de aproximadamente três
meses, preferencialmente entre março e maio, podendo se prolongar em determinados anos.
A maritimidade29 domina o clima da cidade, garantindo uma temperatura média estável
no decorrer do ano. A presença do mar, devido às propriedades termodinâmicas da água,
acumula todo o calor recebido durante o dia, equilibrando as temperaturas à medida que a
energia solar diminui de intensidade.
Devido ao tropismo, ou seja, a mudança que acontecem nos trópicos resultantes das
transformações que acontecem em lugares afastados, especialmente a Europa, nos idos do
século XX ocorreram uma série de mudança comportamentais dos habitantes da capital
cearense que passaram a freqüentar a Orla, inicialmente por critério terapêutico e,
posteriormente, como meio de lazer e prática da vilegiatura.30
Com o passar dos anos, as praias cearenses se voltaram ao turismo e localidades como a
Beira-Mar foram alvo de intensa especulação imobiliária, ocasionando a construção de
edifícios com elevada altitude, o que passou a ser um legítimo “paredão de concreto” para os
ventos advindos do oceano.
Os oceanos são muito importantes para o controle dos fluxos globais de energia, pois
armazenam quantidades consideráveis de radiação solar que absorvem ou liberam lentamente,
estabilizando as temperaturas do globo.
28
SILVA apud ACCIOLY, Vera Mamede. Obr. Cit..
DANTAS, Eustógio Wanderley Correia. Maritimidade dos Trópicos: Por uma Geografia do Litoral.
Fortaleza:Edições UFC, 2009. O autor tem como maritimidade: “ (...) maneira cômoda de designar conjunto de
relações de uma população com o mar (...)”. pg. 15.
30
DANTAS, Eustógio Wanderley Correia. Obr. Cit. O autor expõe: “ três aspectos de valorização da zona de
praia em Fortaleza podem ser anunciados: a) trata-se de processo em construção, resultante da interiorização ou
da recusa dos sinais emitidos do Ocidente; b)representa fator de diferenciação social; c)engloba, com o advento
das inovações tecnológicas no domínio da comunicação (notamente televisão ),progressivamente outros grupos e
indivíduos.” Pg. 29.
29
98
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
31
De acordo com Xavier , a velocidade dos ventos foi diminuída em cerca de 50% em
virtude de construções indevidas na orla marítima, trazendo repercussões negativas à
qualidade de vida dos habitantes.
A rápida expansão da cidade e as grandes obras de infra-estrutura provocaram um
reordenamento urbano da população. Ainda na década de 80, ocorreu uma transformação
urbana em decorrência da mobilidade gradativa da elite que se deslocou dos bairros mais
adensados (exemplo: Aldeota e Meireles) para outros da região sul e sudeste (exemplo: água
Fria, Edson Queirós,etc.), buscando regiões diferenciadas longe da violência e poluição dos
maiores centros, com espaços mais reservados, avenidas mais amplas e espaços verdes.
Nas áreas urbanas, mais especificamente Fortaleza, as modificações induzidas no clima
pela ação antrópica são nítidas e visíveis. Sobre estas pairam um sistema climático próprio, no
qual as propriedades e sensações climáticas são completamente distintas do clima regional
predominante.
A análise da relação entre a climatologia e a cidade faz-se importante, visto que o clima
é conjunto das interações entre as atividades antrópicas e a atmosfera local, resultando nas
“ilhas de calor”32.
Esse fenômeno também pode ser gerado pelas propriedades dos materiais de construção
que armazenam calor durante o dia e o liberam à noite; pela adição de calor resultante das
atividades humanas; pelo aumento das superfícies impermeáveis e pela redução da vegetação
e velocidade dos ventos provocada por edificações de alto gabarito, os “canyons urbanos” 33.
As edificações constituem um obstáculo ao resfriamento urbano por dificultarem a
perda de radiação de ondas longas para o espaço. Fator este, que determina o resfriamento das
superfícies e do ar adjacente.
Áreas com maior compactação de construções elevadas são mais difíceis de
resfriamento e há uma interferência na quantidade de radiação solar que atinge as superfícies
da estrutura urbana, haja vista que grande parte desta região é por elas bloqueada. Quanto
mais altas e mais compactas são as edificações, menor o acesso do entorno à radiação solar.
31
XAVIER apud MOURA, Marcelo de Oliveira; ZANELLA, Maria Elisa; SALES, Marta Celina Linhares. Ilhas
térmicas na cidade de Fortaleza, Ce. Boletim Goiano de Geografia. Goiás, v.28, n. 2, p. 33-34, jul./dez., 2008.
Disponível em: http://www.revistas.ufg.br/index.php/bgg/article/viewFile/5718/4523. Acesso em 29 de jun. de
2010.
32
MONTEIRO, C.A.F. Teoria e Clima Urbano. Série Teses e Monografias nº 25. São Paulo: IGEOC-USP, 181p.
1976.
33
MOURA, Marcelo de Oliveira; ZANELLA, Maria Elisa; SALES, Marta Celina Linhares. Obr. Cit..
99
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Além disso, pode haver uma redução do acesso solar provocada pela emissão de poluentes em
áreas urbanas.
Os edifícios construídos em climas tropicais, como no caso de Fortaleza, deveriam ser
permeáveis, garantindo a circulação de ar para diminuição da sensação térmica, mas a intensa
urbanização gera “microclimas” em determinados pontos com características diferentes dos
informados pelas estações meteorológicas. Esta situação juntamente com a impermeabilização
do solo, retirada da cobertura vegetal e emissão de poluentes que aumentam a inércia térmica,
contribuem para o efeito “ilha de calor”.34. Portanto, quanto mais altas e mais compactas são
as edificações, juntamente com a emissão de poluentes em áreas urbanas, menor o acesso do
entorno à radiação solar.
Rosa35 considera que:
Exemplificando: apesar de existir uma regra jurídica autorizando (Plano Diretor) a
construção de um prédio de 15 andares na faixa de praia de uma cidade litorânea,
tal regra viola o princípio maior de preservação do meio ambiente e da
solidariedade, por implicar no efetivo prejuízo dos demais indivíduos em utilizar
convenientemente o bem público = praia. Isto porque, por mais que exista
autonomia municipal para regulamentar o gabarito dos prédios, essa autonomia não
pode violar o princípio da solidariedade e da ampla preservação do meio ambiente
sadio (CF, art. 225). De sorte que a regra municipal pode ser enquadrada como
abuso de direito desde que no cotejo com os princípios, posto que os princípios
informadores do direito de propriedade, como visto, cedem quando em tensão com
os princípios de Direito Fundamental.
A sensação térmica também recebe influência através do índice de cobertura vegetal de
uma região. Áreas verdes de uma cidade podem ainda contribuir para o efeito de canalização
dos ventos, proporcionando o resfriamento das superfícies, além de atuar como moderadora
das velocidades extremas do ar no microclima urbano.
Os paredões urbanos aumentam a sensação de calor na cidade, principalmente pelas
construções de grande porte situadas na orla marítima causando verdadeiras barreiras à
ventilação. Algumas regiões densamente urbanizadas sofrem mais com esta problemática
devido à absorção de calor pelo concreto e da malha asfáltica das vias, o que ocasiona o
aquecimento da superfície e do ar circulante.
34
CORBELLA, Oscar e YANNAS, Simos. Em busca de uma Arquitetura Sustentável para os trópicos. Conforto
ambiental. Rio de Janeiro: Revan, 2003.
35
ROSA, Alexandre Morais da. Princípios Ambientais, Direitos Fundamentais, Propriedade e Abuso do
Direito: por uma leitura a partir do Garantismo Jurídico (Ferrajoli). Disponível em:
http://www.advocaciapasold.com.br/publicacoes/principiosdedireitoambiental.doc. Acesso em: 12 de setembro
de 2010.
100
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Segundo o Diário do Nordeste36 (16/11/2009):
A ostensiva ocupação da faixa litorânea da cidade por "paredões", construções de
grande porte, não é determinante em termos de altura para considerar que houve,
nos últimos anos, um aumento da temperatura média em Fortaleza. Conforme o
meteorologista da Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos
(Funceme), Eduardo Peixoto, o que acontece, devido a isso, é o aumento da
sensação de calor e não uma alteração climática pelo crescimento da temperatura
média. "O concreto absorve muito calor e aquece mais do que o vegetal. Como o ar
aquece a partir da superfície, se a superfície está mais quente, o ar fica mais quente
também", disse. Conforme ele, muros de prédios na orla de cidades litorâneas como
Fortaleza são barreiras para a ventilação. Com isso, aumenta a sensação térmica de
calor, que é mensurada a partir da junção da temperatura, ventos e umidade do ar.”
A sensação de aquecimento vem gerando intensas reclamações por parte dos moradores.
Fortaleza hoje recolhe os efeitos de uma organização urbana deficitária e expansão
desordenada que acarretaram inúmeros problemas de cunho não somente social e econômico,
como também prejuízos indeléveis ao bem-estar de sua população.
Além de todas as causas acima relacionadas, como o aumento da sensação térmica na
cidade de Fortaleza, existe ainda a questão do aquecimento global.
Há cinco anos, a cidade não registrava um calor tão intenso. A afirmação é do doutor
em Ciências Atmosféricas e professor da Universidade Estadual do Ceará (Uece),
Alexandre Costa.De acordo com o pesquisador, três fatores contribuem diretamente
para esse calorão. O primeiro, de abrangência local, tem a ver com a expansão da
cobertura asfáltica e a ocupação desordenada de lagoas e áreas verdes. O segundo,
de alcance mundial, está relacionado ao onipresente aquecimento global. ``De fato, o
planeta todo está mais quente``, informa. Por fim, um velho conhecido está de volta:
o El Niño, que desde 2005 não dava as caras no Ceará. (O POVO, 28/01/2010)37
Estudos mostram que as mudanças climáticas em áreas tropicais estão associadas à
transformação da energia na área urbana influenciadas pela morfologia, pelas propriedades
dos materiais das superfícies construídas e pela produção antropogênica de calor. Este
fenômeno traz implicações na redução da velocidade dos ventos, causada pelo aumento da
rugosidade superficial38 .
As conseqüências do processo são variáveis de acordo com o tipo de cidade, formas de
relevo, tamanho da área urbanizada. Esta situação pode ser observada em bairros como
36
VASCONCELOS, Paola. Cidade cercada por um cinturão de concreto. Diário do Nordeste. Disponível em:
http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=692366. Acesso em: 22 de junho de 2010.
37
O POVO. 2010: ano de muito calor e pouca chuva. Disponível em: http://www.sct.ce.gov.br/noticias/2010ano-de-muito-calor-e-pouca-chuva. Acesso em: 22 de jun. de 2010.
38
ASSIS, Eleonora Sad de. Aplicações da climatologia urbana no planejamento da cidade: revisão dos
estudos brasileiros. Disponível em: http://www.portalseer.ufba.br/index.php/rua/article/viewArticle/3149.
Acesso em: 28 de jun. de 2010.
101
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Meireles e Aldeota na capital cearense.
As legislações urbanísticas, em particular a de planejamento urbano, muitas vezes não
incorporam as mudanças climáticas provenientes das atividades antrópicas em sua agenda.
Em Fortaleza, o clima é considerado por planejadores do espaço a partir de um único ponto da
cidade, desconsiderando que o espaço urbano modifica a atmosfera gerando inúmeros climas
urbanos, denominados “microclimas”39.
A questão é que o problema climático de uma região é dinâmico, mesmo assim, os
gestores públicos ainda persistem no erro de considerá-lo de forma isolada e estática,
prejudicando a sua avaliação final.
Atualmente, a sensação de aquecimento vem gerando intensas reclamações por parte
dos moradores de Fortaleza, devido não somente ao aumento da temperatura no planeta
proveniente do efeito estufa, mas também a uma organização urbana municipal deficitária
gerada pela expansão desordenada, acarretando inúmeros problemas sociais e econômicos,
além de prejuízos indeléveis ao bem-estar de sua população.
O crescimento desorganizado do município acompanhado de inúmeras intervenções
pontuais no ambiente alterou o clima original de Fortaleza, já bastante modificado pela
urbanização excessiva40. Tal fenômeno não é mensurado nas políticas de desenvolvimento
urbano necessitando sensibilização para discussão sobre as possíveis mudanças climáticas no
meio ambiente da cidade.
Segundo o Jornal “Diário do Nordeste” (15/08/2010) 41:
O caos urbano que passa pelo trânsito e pelo transporte, a falta de serviços em
determinados locais, a ausência de espaços de lazer, periferias inchadas e
desordenadas e áreas nobres com empreendimentos que negam o espaço público.
Assim vive Fortaleza. E a Cidade vem crescendo 2% ao ano e incorporando 50 mil
habitantes anualmente. Muitos problemas poderiam ser evitados se o Município
pudesse contar com um Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano que fosse
aplicado na sua plenitude. [...]
Apesar de lançado em 2009, o Plano Diretor Participativo de Fortaleza (PDP-FOR)
é uma peça ficcional por falta de regulamentação de leis complementares. Somente
os novos índices de construção, que orientam o mercado imobiliário, entraram em
vigor. (...)
A descentralização dos estudos de planejamento urbano é uma das barreiras para a
institucionalização dos instrumentos. A Fundação de Desenvolvimento Habitacional
(Habitafor), a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano e Infraestrutura
(Seinf) e a Secretaria de Planejamento e Orçamento (Sepla) se revezam nas ações de
39
MOURA, Marcelo de Oliveira. Obr. Cit.
MOURA, Marcelo de Oliveira; ZANELLA, Maria Elisa; SALES, Marta Celina Linhares. Obr. Cit..
41
MOSCOSO, Lina. Plano diretor de Fortaleza carece de leis regulamentadas. Diário do Nordeste. Disponível
em: http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=832090. Acesso em: 20 de setembro de 2010.
40
102
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
planejamento.
Fora isso, Fortaleza é a única capital brasileira que não possui um Instituto
Municipal de Planejamento Urbano, organismo público responsável pela atualização
e pelo acompanhamento dos planejamentos urbano e ambiental da cidade e pela
análise prévia da adequação legal dos projetos construtivos públicos ou privados, em
especial, os empreendimentos impactantes, contemplados ou não pelo Plano Diretor.
Na capital cearense, várias áreas estão completamente loteadas mas, apesar dos avanços
obtidos pela Lei 10.257/2001 (Estatuto da Cidade), onde se discute entre outras questões a
função social da terra urbana, terrenos encontram-se subutilizados, ocasionando a carência de
áreas livres ou verdes para amenizar os impactos da urbanização (verticalização,
impermeabilização, descaracterização da cobertura vegetal) no entorno imediato.
Art. 2º do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001):
IV – planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da
população e das atividades econômicas do Município e do território sob sua área de
influência, de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus
efeitos negativos sobre o meio ambiente;
[...]
VI – ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar:
[...]
c) o parcelamento do solo, a edificação ou o uso excessivos ou inadequados em
relação à infra-estrutura urbana;
g) a poluição e a degradação ambiental;
A verticalização é fruto do crescimento urbano e imobiliário das metrópoles brasileiras
em geral e, alguns bairros de Fortaleza (ex.: bairros da Aldeota, Meireles e Dionísio Torres),
já enfrentam o esgotamento de seus espaços; concomitantemente, os bairros mais afastados,
especialmente nas regiões sul e sudeste vêm se adensando rapidamente e de maneira
desorganizada, prejudicando de forma indelével o meio ambiente da área e o bem-estar da
população.
Sônia Afonso42, professora de Arquitetura e Urbanismo da UFSC, expõe as possíveis
soluções para que as edificações se tornem mais sustentáveis:
A combinação de controle solar em todas as orientações, com a adequada inércia
térmica e capacidade de resfriamento tanto pelas brisas como pela ventilação
noturna, pode levar a índices de conforto térmico desejáveis sem o uso de ar
condicionado;
Os elementos de controle de ar e luz podem contribuir com as soluções formais dos
edifícios;
42
AFONSO, Sonia. Paisagem e Ambiente urbano Sustentáveis: Métodos e Ferramentas. Disponível em:
http://soniaa.arq.prof.ufsc.br/sonia/ENEPEA/sonia2002.pdf. Acesso em: 23 de setembro de 2010.
103
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Para melhorar o uso da iluminação natural talvez seja necessário utilizar
mecanismos automatizados de controle;
As pessoas gostam do contato com o exterior e as condições de conforto podem ser
obtidas durante o projeto;
O ambiente externo deve ser considerado no projeto, protegendo a construção do sol
e fazendo bom uso da iluminação natural;
Mesmo usando o ar condicionado, o consumo de energia pode ser otimizado se
forem observadas: a inércia térmica, o controle solar e as relações das paredes
externas com a envolvente; o uso do ar condicionado e da iluminação artificial
poderão ser reduzidos através do controle da entrada de luz natural.
Fortaleza, devido a problemas em determinadas edificações, a poluição e o adensamento
de bairros relevantes para a circulação dos ventos vem apresentando um crescente aumento na
sensação térmica. A outrora “Cidade Luz”, eternizada pelo célebre José de Alencar, amarga
hoje inúmeros problemas de cunho urbanístico e ambiental, encontrando-se nos dias atuais
melhor caracterizada como “estufa alencarina”.
Não somente as edificações causam problemas no clima, com elas há o aumento
indiscriminado de veículos, além da manta asfáltica que contribuem para a elevação da
sensação térmica e a poluição.
Outro problema que se encontra atualmente acelerado devido o aumento da
impermeabilização do solo e irregularidades nas construções é a questão das inundações na
cidade43.
As vias de circulação que se expandiam, juntamente com as áreas para habitação,
resultaram na impermeabilização do solo da cidade e alteraram a permeabilidade
deste. A Lei de Uso e Ocupação do Solo de Fortaleza prevê que todas as construções
deixem um percentual de área livre para a água penetrar no solo e não escoar
diretamente para as ruas. Na capital cearense o desrespeito aos recursos naturais é
tão claro que construções são realizadas na época de estiagem quando os
ambientes lacustres estão secos, conforme observado em trabalho de campo.
No período chuvoso o lençol freático ressurge e as construções são inundadas.
Relativamente à poluição atmosférica, além dos dispostos legais como a Lei de Crimes
Ambientais, a Lei de Zoneamento (Lei n. 6.803/80), o CONAMA estabeleceu na sua
Resolução de nº 18/86 o Programa de Controle da Poluição do Ar por veículos automotores –
PROCONVE e o Programa Nacional de Qualidade do ar – PRONAR, dentre outras
estipulações legais que visam colaborar com a atividade de proteção conferida pelo
município.
43
LOUREIRO, Caroline Vitor; FARIAS, Juliana Felipe. IMPACTOS AMBIENTAIS RESULTANTES DA
IMPERMEABILIZAÇÃO DO SOLO NA CIDADE DE FORTALEZA-CE . Disponível em:
http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:http://www.geo.ufv.br/simposio/simposio/trabalhos/trab
alhos_completos/eixo11/018.pdf. Acesso em: 23 de setembro de 2010.
104
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Mediante o PDPFOR (Plano Diretor Participativo de Fortaleza – Lei Complementar nº
062/2009), em seu art. 9º, as diretrizes da política de meio ambiente, está a preservação
ambiental e a redução dos riscos socioambientais. Considerando o exposto no novo Plano
Diretor da capital cearense, verifica-se a importância dos gestores públicos realizarem uma
melhor fiscalização nas construções (vias de transporte e habitações), seguindo sempre as
disposições legais para o uso e ocupação do solo, fazer a devida verificação dos
licenciamentos ambientais para que a problemática do clima na região não se torne ainda mais
intensa.
5 CONCLUSÃO
O mundo presencia na atualidade uma reformulação de pensamento e de ações. A
questão ambiental está cada vez mais em evidência junto à principais Nações do mundo e o
Brasil não se faz indiferente.
Mesmo com uma legislação ambiental densa e evoluída, o Brasil ainda sofre com suas
precárias estruturas urbanas, gerando uma gama de problemas ambientais, a exemplo das
alterações climáticas.
A influência do homem sobre a atmosfera possui uma melhor visibilidade no âmbito
urbano e sobre as cidades paira uma espécie de “abóbada climática” com características
próprias que o diferenciam do clima regional dominante. 44
Os habitantes de uma cidade devem se conscientizar da importância do clima para a
saúde, a energia e o conforto do ser humano. A preservação do meio ambiente (art. 225, CF88) não deve ser compreendida somente pelo ambiente natural, visto que envolve o meio
artificial, o cultural e o do trabalho.
A capital do Ceará, uma das cinco maiores capitais brasileiras, enfrenta os prejuízos
climáticos com a elevação da sensação térmica em muitos pontos da cidade decorrentes da
edificação indiscriminada; a não obediência às estipulações do Plano Diretor e a concessão de
licenciamentos para a construção em locais impróprios urbanística e ambientalmente.
A diferença na temperatura nos bairros de Fortaleza é evidente e esta problemática
ocorre também em diversos outros locais do Brasil.
Mediante o exposto no presente artigo, verificou-se que a alteração climática pode ser
gerada por ações de caráter público e privado. Na capital cearense a problemática se perfaz
44
DREW, David. Processos Interativos Homem-Meio Ambiente. Tradução de João Alves dos Santos; revisão
de Suely Bastos. São Paulo: DIFEL, 1986. pg. 181.
105
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
em decorrência da falta de planejamento urbano adequado e por edificações que não buscam a
preservação do meio ambiente local.
A retirada inadequada das áreas verdes, a impermeabilização do solo de maneira
indiscriminada, altura indevida de prédios, todos estes aspectos prejudicam os chamados
“microclimas” da cidade, configurando um abuso do direito de propriedade e a não aplicação
da sua função socioambiental da propriedade.
Diante do exposto no presente artigo, verifica-se que, para evitar maiores danos
climáticos na cidade de Fortaleza, os gestores, antes de concederem o licenciamento para a
construção de alguma obra, devem: verificar através do estudo de impactos ambientais os
efeitos desta obra o clima, visto que é uma questão de interesse coletivo, como também
buscar a comprovação de que a edificação será realizada mediante o exposto no zoneamento
estabelecido pelo PDPFOR (Plano Diretor Participativo de Fortaleza- 2009).
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109
É O FUTEBOL UM BEM CULTURAL IMATERIAL? UMA ANÁLISE CRÍTICA DA
AÇÃO CIVIL PÚBLICA AMBIENTAL Nº 994.09.013383-3
David Barbosa de Oliveira 1
RESUMO: Recentemente foi julgada a Ação Civil Pública Ambiental nº 994.09.013383-3
impetrada pela Federação Paulista de Futebol contra 79 torcidas organizadas de times de
futebol de São Paulo visando eliminar a violência nos estádios. A ação foi indeferida pelo juiz
de primeiro grau, obrigando ao autor recorrer ao TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) e
no julgamento desse recurso à Câmara Reservada ao Meio Ambiente deu provimento ao
recurso, estabelecendo a partir da discussão sobre a competência que o futebol é um bem
cultural da nação. Mas, o futebol, ante a teoria dos bens culturais imateriais, pode ser
alcunhado como bem cultural ou isso é um equívoco técnico do judiciário paulista? E uma
vez sendo tido como bem cultural imaterial, o futebol será protegido como patrimônio cultural
imaterial? A fim de aclarar essas indagações construímos esse artigo.
PALAVRAS-CHAVE: Futebol. Direito Ambiental. Patrimônio Cultural Imaterial.
ABSTRACT: He was recently judged the Environmental Public Civil Action No.
994.09.013383-3 filed by the Paulista Football Federation against 79 organized supporters of
football teams from São Paulo to eliminate violence in stadiums. The lawsuit was dismissed
by the judge of first instance, forcing the author to use the TJ-SP (Court of Justice of São
Paulo) and the trial of that action to the Board Restricted Environmental allowed the appeal,
setting from the discussion on competence that football is a cultural nation. But in football,
against the theory of intangible cultural heritage, can be dubbed as a cultural asset or is it a
technical misunderstanding of the judiciary in São Paulo? And since being taken as object as
intangible cultural, football will be protected as intangible cultural heritage? In order to clarify
these questions we construct this article.
KEY-WORDS: Soccer. Environmental Law. Intangible Cultural Heritage.
1 Introdução
Recentemente foi julgada a Ação Civil Pública Ambiental nº 994.09.013383-3
impetrada pela Federação Paulista de Futebol contra 79 torcidas organizadas de times de
futebol de São Paulo visando eliminar a violência nos estádios. A ação foi indeferida pelo juiz
1
Graduado em Direito pela Universidade Federal do Ceará - UFC. Especialista em Filosofia Moderna do Direito
pela Universidade Estadual do Ceará - UECE. Bolsista CNPQ no Mestrado em Direito, com área de
concentração em Ordem Jurídica Constitucional, pela Universidade Federal do Ceará – UFC.
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
de primeiro grau, obrigando ao autor recorrer ao TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) e
no julgamento desse recurso à Câmara Reservada ao Meio Ambiente deu provimento ao
recurso, estabelecendo a partir da discussão sobre a competência que o futebol é um bem
cultural da nação.
Os bens culturais sofreram logo desenvolvimento no Brasil e sua discussão remonta
ao Anteprojeto de Lei de Mário de Andrade para o SPHAH. Aloísio Magalhães, presidente do
órgão nas décadas anteriores à Constituição de 1988 influenciou a constituinte, trazendo à
tona a ampliação de patrimônio cultural com a noção de bem cultural, possibilitando a
proteção do bem cultural imaterial além do já protegido patrimônio material.
Mas, o futebol, ante a teoria dos bens culturais imateriais, pode ser alcunhado como
bem cultural ou isso é um equívoco técnico do judiciário paulistano? E uma vez sendo tido
como bem cultural imaterial, o futebol será protegido como patrimônio cultural imaterial? A
fim de aclarar essas indagações construímos esse artigo.
2 A ação civil pública ambiental nº 994.09.013383-3: o futebol como bem cultural
Recentemente foi julgada a Ação Civil Pública Ambiental nº 994.09.013383-3
impetrada pela Federação Paulista de Futebol contra 79 torcidas organizadas de times de
futebol de São Paulo visando eliminar a violência nos estádios. A ação foi indeferida pelo juiz
de primeiro grau, obrigando ao autor recorrer ao TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo),
que acolheu o recurso. O julgamento do recurso coube à Câmara Reservada ao Meio
Ambiente que deu provimento o recurso interposto pela Federação e fixou uma série de
medidas que buscam “minorar, senão eliminar, a violência em estádios de futebol”. O extenso
acórdão, com 28 laudas, tem como relator o desembargador Lineu Peinado e de sua decisão
cabe recurso ao STJ (Superior Tribunal de Justiça).
A Federação Paulista de Futebol pede na ação que nos jogos realizados por ela sejam
as torcidas organizadas proibidas de ingressar nos estádios, “os quais devem ser dotados de
vigilância eficaz, fixando-se valores de multas como penas para as hipóteses de lesões e
ameaças”.
Segundo a ação, é necessário que se proíba a participação das torcidas organizadas
em qualquer jogo administrado pela Federação no Estado de São Paulo. A autora “alega ser
111
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
fato notório que as torcidas organizadas pregam a violência no futebol, causam danos e
colocam em risco a vida dos torcedores comuns, sendo, portanto, necessária a tutela judicial
antecipada a fim de se implementar as providencias indicadas na petição inicial”.
O juiz de primeiro grau, Antônio Manssur Filho, indeferiu a petição inicial por
entender que o tema discute normas de segurança pública que são “responsabilidade das
autoridades policiais”, mencionando ainda não ser possível ferir o direito de ir e vir, bem
como o direito de associação, ambos constitucionalmente garantidos.
O relator, Lineu Peinado, a fim de dirimir a competência aponta que “o primeiro
ponto a ser solvido diz respeito à competência recursal. Atribuir ao futebol, esporte por
excelência, a pecha de bem cultural parece, á primeira vista, desbordar do conceito de bem
cultural”. E mais a frente o relator asseverou:
Ora, futebol, esporte muito praticado em terras brasileiras, como é fato público e
notório, ainda continua, ou deveria continuar a ser, apenas um esporte, não dizendo
respeito nem fazendo referência à identidade, ação e memória de diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira, a não ser que se parta do princípio segundo o
qual cada equipe de futebol representa um grupo por si só, princípio que não
corresponde à realidade e poderia se prestar a justificar ações que se divorciam da
civilidade por parte desses grupos.
Para isso basta atentar que todos os grupos de torcedores em época de disputa de
Campeonato Mundial de Seleções, passam a usar o amarelo ao invés das cores de
suas equipes preferidas e todas, em conjunto com os brasileiros, quase sem exceção,
torcem unidos, como uma torcida só, pela equipe de futebol selecionada pelo Brasil.
Ou seja, os diferentes grupos de torcedores deixam, ainda que momentaneamente, de
torcer pelo seu clube e passa a torcer por outro, desfazendo-se de suas cores e suas
insígnias.
Todavia, há que se levar em conta de consideração que, apesar do quanto
mencionado acima, o futebol é uma das paixões do cidadão brasileiro. Tanto que
políticos de todos os matizes dele se utilizam como forma de angariar simpatias
entre os eleitores, dizendo-se simpatizantes de determinada equipe, geralmente as
consideradas mais populares, buscando com isso uma forma de identificação com o
eleitor, ainda que tal expediente não deva ser usado por políticos que se pretendam
sérios.
Também é certo que o desporto é mencionado no artigo 217 da Constituição Federal
como dever do Estado em "...fomentar práticas desportivas formais e não-formais,
como direito de cada um, ..." e o futebol, sem dúvida alguma se constitui em prática
desportiva, de forma que pode se entender que praticar futebol no Brasil deve ser
objeto de fomento do Estado e direito de cada um, direito esse que se encontra
alocado entre outros direitos do cidadão no capítulo constitucional dedicado à
educação, à cultura e ao desporto.
Possível assim, que entendido o termo de forma ampla, se possa afirmar que o
futebol pode ser considerado um bem cultural, o que pode ser bem melhor
compreendido pelos não juristas, que baseados no senso comum consideram
futebol não apenas um esporte, mas sim um traço cultural dos brasileiros.
Razoável, para se dizer o mínimo, o entendimento segundo o qual o futebol é
um bem cultural da Nação, o que justifica a competência desta C. Câmara
112
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Reservada ao Meio Ambiente, que abarca não apenas o denominado "verde",
mas também por meio ambiente artificial e cultural. (grifo nosso)
Mas será que restou acertada a decisão do judiciário sobre essa questão? O futebol
pode ser um bem cultural e, mais especificamente, um bem cultural imaterial? A fim de
solucionar essa questão vamos observar o que é e qual a abrangência constitucional do bem
cultural imaterial.
3 Bem cultural imaterial brasileiro: muito antes da Constituição Federal de 1988
O início da proteção patrimonial, no Brasil, se dá, em 1936, com a proposição oficial
da criação da agência federal de proteção ao patrimônio. A nova elite que assumia o poder
buscava criar, em meio ao pensamento moderno da época, uma nova nação através de
inovações na economia, política e cultura. Buscava-se inserir o país entre as modernas
civilizações européias, sem, entretanto, deixar de lado a singularidade do país tupiniquim.
Essa elite buscava essa singularidade no que o país possui de mais autêntico, valorizando o
tradicional. “Acreditavam que, para identificar ou redescobrir o Brasil, o país teria que
retornar aos seus mais 'autênticos' valores nacionais, os quais estavam supostamente fundados
no passado, assim como os valores regionais”2.
Essa idéia se assemelha muito as ideias românticas alemãs. O romantismo alemão do
Séc. XIX vai desenvolver o termo kultur que, em contraponto à referência francesa
(iluminismo) do termo civilização, vai determinar justamente as diferenças nacionais. “Depois
da derrota na batalha de Iena, em 1806, e a ocupação de Napoleão, a consciência alemã vai
conhecer uma renovação do nacionalismo, que se expressará através de uma acentuação da
interpretação particularista da cultura alemã” 3. O termo civilização passa a designar a França
e sua hegemonia cultural sobre os demais países ocidentais, ao passo que kultur denotará a
singularidade da alma alemã. O resgate das raízes medievais germânicas
desempenha um papel de maior importância nesse movimento de afirmação de
identidade alemã; ele constitui um modo de fazer frente à hegemonia dos valores
franceses ao resgatar um espírito obscurecido e encoberto pela frieza e
2
GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A retórica da perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil. Rio
de Janeiro: UFRJ, p. 41 e 42.
3
CUCHE, Denys. A Noção de cultura nas ciências sociais. São Paulo: Paz e Terra, 1992, p. 28.
113
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
artificialidade dos hábitos da sociedade policé. A valorização dos contos, das
poesias, das lendas nacionais e de tudo o mais que evoca o retorno as fontes de um
passado pleno de força e virtude exorta os alemães a reconhecer em sua própria
origem os traços de uma essência perdida4.
Essa busca pela identidade alemã, em suas origens, é o mesmo motor que vai
movimentar os modernistas antropofágicos na “descoberta” da identidade nacional. Desta
forma, os modernistas mergulharam, na busca da essência do nacional, no interior, na roda de
viola, no caipira e no matuto e principalmente no índio mítico. Foi em busca desse Brasil
“puro” que Mário de Andrade foi à procura quando foi-lhe encomendado um projeto de lei de
proteção do patrimônio cultural nacional. Assim, o projeto de Mário de Andrade buscava
proteger todos os bens culturais nacionais, o material e o imaterial5.
Em 1937, o Projeto de Lei Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional –
SPHAN foi aprovado, tendo, inicialmente, à frente Rodrigo Melo Franco de Andrade e ao
contrário do que almejava Mário de Andrade, no seu anteprojeto, teve alcance limitado ao
tombamento de bens móveis e imóveis. A visão do patrimônio nacional como uma
continuação do Brasil que se formou da união do negro, do ameríndio e do europeu vai
continuar até uma reviravolta na proteção patrimonial nacional realizada por Aloísio
Magalhães inicialmente no Centro Nacional de Referência Cultural – CNRC e, mais à diante,
em 1979, à frente do próprio Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN.
Aloísio, ao contrário da política de Rodrigo Franco, não vê nas matrizes culturais
brasileiras (ameríndia, negra e branca) um evolucionismo cultural6, mas “formas de vida
social e cultural atuais, diversas e em processo de transformação. Ele enfatiza que deveriam
ser igualmente representadas por uma política de patrimônio cultural”7. No Brasil, na ordem
4
MOURA, Caio. O advento dos conceitos de cultura e civilização: sua importância para a consolidação da
autoimagem do sujeito moderno. Filosofia Unisinos. UNISINOS: 157-173, mai/ago, 2009, p. 162
5
Mário de Andrade viajou parte do país para gerar a concepção do patrimônio cultural que o novo órgão federal
iria proteger. Seu ante projeto era muito mais amplo do que apenas a proteção patrimonial material, de tão
avançado, em verdade só agora, depois da Carta de 1988, é que se pode almejar a proteção que à época propunha
o poeta. Mario de Andrade “desenvolveu uma concepção de patrimônio extremamente avançada para seu tempo,
que em alguns pontos antecipa, inclusive, os preceitos da Carta de Veneza, de 1964. Ao reunir num mesmo
conceito – arte, manifestações eruditas e populares, Mário de Andrade aforma o caráter ao mesmo tempo
particular/nacional e universal da arte autêntica, ou seja, a que merece proteção”. FONSECA, Maria Cecilia
Londres. Patrimônio em processo: trajetória da politica federal de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ;
IPHAN, 2005, p. 108.
6
Como aponta Edward Burnett Tylor afirmando que “o fenômeno da cultuar pode ser arranjado e classificado,
estágio por estágio, numa ordem provável de evolução”. CASTRO, Celso (Org.). Evolucionismo cultural:
textos de Morgan, Tylor e Frazer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 74.
7
GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A retórica da perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil.
Rio de Janeiro: UFRJ, 2006, p. 55.
114
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
8
constitucional de 1967 , embasada pela política de proteção de Rodrigo Franco, o que se
protegia em regra eram as referências da Cultura europeia (documentos, praças, monumentos
etc), quedando-se na sombra a outra parcela do Brasil, a oprimida, a aculturada9, mas que
igualmente compõem nossa cultura 10.
A gênese da proteção do patrimônio cultural imaterial, no Brasil, está no anteprojeto
de Mário de Andrade, mas a instrumentalização dessa proteção empeçou com Aloísio
Magalhães. Para ele o conjunto de objetos e de atividades sociais e culturais classificados
como bens culturais “são vistos como os meios através dos quais diferentes segmentos que
compõem a nação expressam-se a si mesmos no fluxo do processo histórico. Eles são
pensados não como objetos fixos, exemplares, mas no processo mesmo de criação e recriação
lhes dá realidade”11.
Na ordem constitucional anterior, reverenciavam-se fatos históricos de relevância
para o Brasil de matriz europeia. A memória protegida era materializada em monumentos,
documentos, prédios etc. Essa proteção constitucional do passado representativo unicamente
de fatos históricos relevantes da “cultura eurocentrista, com evidente velamento da dinâmica
social e cultural dos povos formadores da cultura e memória nacional” 12, não era fiel a nossa
história nem à identidade cultural de nosso povo. Essa representação artificial de nossa anima
refletia, por certo, o modo como o Poder estava distribuído no Brasil, pois, como afirma Peter
Häberle,
el Estado constitucional se define (tambien) por su cultura nacional (funda su
identidad) y la libertad solo se convierte em libertad 'plena' através de la cultura.
(...) La Constitución no solo es un texto jurídico o un conjunto de reglas normativas,
sino que tambien es expresión de un determinado nivel de desarollo cultural, es
8
Art. 172, CF/67 – “O amparo à cultura é dever do Estado. Parágrafo único – Ficam sob a proteção especial do
Poder Público os documentos, as obras e os locais e valor histórico ou artístico, os monumentos e as paisagens
naturais notáveis, bem como as jazidas arqueológicas”.
9
No termo aculturação, o prefixo “a” não significa supressão, mas aproximação, formando-se etimologicamente
da partícula ad do latim. Daí aculturação poder ser conceituada como “o conjunto de fenômenos que resultam de
um contato contínuo e direto entre grupos de indivíduos de culturas diferentes e que provocam mudanças nos
modelos (patterns) culturais iniciais de um ou de dois grupos”. CUCHE, Denys. op. cit., p. 115.
10
Celso Furtado, sobre a origem da cultura brasileira, afirma que “nos três séculos do período colonial gestou-se
no Brasil um estilo cultural que, sendo português em seus temas dominantes, incorpora não apenas motivos
locais mas toda uma gama de valores das culturas originais dos povos dominados”. FURTADO. Celso. O longo
amanhecer: reflexões sobre a formação do Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999, p. 60.
11
GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A retórica da perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil.
Rio de Janeiro: UFRJ, 2006, p. 55.
12
DANTAS, Fernando Antônio de Carvalho. Base jurídica para a proteção dos conhecimentos tradicionais. In
Revista CPC, v. 1, 2006, p. 02
115
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
expresión de la autorepresentación cultural de un pueblo, espejo de su patrimonio
cultural y fundamento de sus esperanzas”.13
Se a Constituição, como aponta Peter Häberle, é o espelho de seu patrimônio, a
Ordem Constitucional de 1967, percebemos que não só o Poder, mas todo o patrimônio era
restrito e restritivo, representando culturalmente apenas a classe detentora do Poder, uma
classe elitista e europeizada. O Poder político usurpado politicamente do povo pelo golpe de
1964 e, pelo “golpe dentro do golpe”, de 1968, restringia em um só instante o Poder e, por
consequência, o acesso e a proteção aos demais bens culturais.
Assim, a política tradicional do SPHAN, que é a mesma da ordem constitucional
ante, não leva em consideração certas dimensões do patrimônio cultural brasileiro, como sua
diversidade, assim como a importância e o papel na referência identitária e na apreensão do se
fazer brasileiro desempenhado pelas diferentes formas de cultura popular14. Esse enfoque
europeu sobre o patrimônio nacional sufoca a arejada diversidade cultural nacional, restando
evidenciada, para Aloísio que a proteção patrimonial
atuava de cima para baixo e, de certo modo, com uma concepção principalmente
elitista. A igreja e o prédio monumental são bens culturais, mas de um nível muito
alto. São o resultado mais apurado da cultura. (...) Pela própria razão de ser, uma
atividade popular não tem consciência do seu valor. Quem faz uma igreja sabe o
valor do que faz, mas quem trabalha couro, por exemplo, nem sempre15.
Por tudo isso, Aloísio amplia a noção de patrimônio cultural, inserindo tudo sobre o
signo do bem cultural, assim o patrimônio arquitetônico, associado à alta cultura, torna-se
apenas uma espécie de bem cultural, tão importante e protegido quanto o fazer e a arquitetura
popular. “Esses bens são valorizados não por uma suposta exemplaridade, mas como parte da
vida cotidiana e como formas de expressão de diferentes segmentos da sociedade brasileira.
13
HÄBERLE, Peter. Nueve ensayos constitucionales y uma lección jubilar. Lima: Palestra Editores, 2004, p.
203 e 204.
14
Cultura popular para Aloísio abrangia “tanto as manifestações populares tradicionais quanto as suas
intersecções com o mundo industrial urbano. Ficava de fora, apenas, a cultura de massa”. FONSECA, Maria
Cecilia Londres. Patrimônio em processo: trajetória da politica federal de preservação no Brasil. Rio de
Janeiro: UFRJ; IPHAN, 2005, p. 172. Importa, aqui ainda explicitar que a visão de Aloísio é geral não tecendo
sobre o assunto um conceito técnico, daí trazermos a visão de Néstor García Canclini sobre o assunto a fim de
possibilitar maior clareza. Para esse as culturas populares “se constituem por um processo de apropriação
desigual dos bens econômicos e culturais de uma nação ou etnia por parte dos seus setores subalternos, e pela
compressão, reprodução e transformação, real e simbólica, das condições gerais e específicas do trabalho e da
vida”. CANCLINI, Néstor García. As culturas populares no capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 42.
15
MAGALHAES, Aloísio; Fundação Nacional Pró-Memoria (Brasil). E triunfo?: a questão dos bens culturais
no Brasil . Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 1985, p. 221.
116
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
As formas da cultura popular são vistas como a fonte mesma de uma 'autêntica' identidade
nacional” 16. O objetivo da nova política patrimonial, já a época, era conhecer, referenciar, e
compreender as manifestações culturais populares a fim de preservar sua memória e fornecer
elementos de apoio para seu desenvolvimento.
Em 1979, Aloísio Magalhães foi nomeado diretor do IPHAN ao tempo em que
ocorreu a unificação da política federal de proteção do patrimônio com a fusão do IPHAN, do
CPH e do CNRC. O discurso da proteção do patrimônio imaterial em função da diversidade
cultural nacional que já vinha se desenvolvendo desde o CNRC se revelou “compatível não só
com o momento de abertura democrática dos últimos governos militares, como foi também
encampado pela Nova República”17.
A ampliação do patrimônio cultural, então, realizada por Aloísio Magalhães
influenciou fortemente a Assembléia Constituinte de 1987, tanto que, no anteprojeto da
subcomissão de Educação, Cultura e Esporte, estabeleceu-se que a cultura brasileira,
resultado de tantas etnias, de caldeamentos, heranças culturais tão diversas,
processos sócio-históricos tão desiguais e intermitentes – essa cultura é brasileira, é
identificável como tal, traz unidade na pluralidade e nas contradições; não é um
conjunto, um amontoado de elementos ou heranças, mas um sistema com
personalidade, cara e alma própria, com autenticidade e funcionalidade, como
qualquer outra cultura, apesar de tantas raízes, transferências, trocas, agressões e
invasões. Preservar a memória e a identidade dessa cultura parece ser um dever de
todo o povo, de sobrevivência, mas que deve contar com o reconhecimento e o
esforço maior do poder público18.
A influência de Aloísio Magalhães se torna mais evidente na justificativa da proposta
do constituinte Octávio Elísio, em 22 de abril de 198719. O constituinte defendendo seu texto
16
GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A retórica da perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil.
Rio de Janeiro: UFRJ, 1996, p. 56.
17
FONSECA, Maria Cecilia Londres. Patrimônio em processo: trajetória da politica federal de preservação no
Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ; IPHAN, 2005, p. 181.
18
BRASIL. Assembléia Nacional Constituinte (1987). Subcomissão da Educação, Cultura e Esportes.
Anteprojeto. Relator: João Calmon. Brasília: Senado Federal. Centro Gráfico, 1987, p. 20.
19
O constituinte propôs como sugestão de norma constitucional, no art. § 2º, “é reconhecido o concurso de todos
os grupos étnicos constitutivos da formação nacional, na sua participação igualitária e pluralística, para a
expressão da cultura brasileira. Art. Para o cumprimento do dispositivo anterior, o Poder Público assegurará: I –
o acesso aos bens culturais na integralidade de sua manifestações; II – a sua livre produção, circulação e
exposição a toda a coletividade; III – preservação de todas as modalidades de expressão dos bens de cultura, bem
como da memória nacional; IV – prestar assistência a artistas e artesãos, no interesse de preservar artes, técnicas
e modos de fazerem extinção. (...) Art. São bens culturais os de natureza material e imaterial, individuais ou
coletivos, portadores de referência à identidade nacional e à memória local – urbana ou rural. Incluindo as
manifestações, os modos de fazer e de convívio, documentos, obras, locais e sítios de valor histórico, artístico,
arqueológico ou científico e as paisagens antrópicas e naturais”. BRASIL. Assembléia Nacional Constituinte
117
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
afirma explicitamente que “a conceituação abrangente de bem cultural, contemplada no
anteprojeto, pode encontrar a sua justificativa nas palavras de Aloísio Magalhães: 'na verdade,
criavam-se, assim, as bases institucionais para o estabelecimento de duas vertentes distintas
para o trato do bem cultural” 20. A já conhecida e institucionalizada vertente patrimonial e a
vertente de produção, circulação e consumo de cultura. Esse último é o embrião da proteção
do patrimônio imaterial.
Para a proteção dos bens imateriais urge como defende o constitucionalista “outros
modos de proteção e de ação além do já consagrado instituto do tombamento. Ademais, a
constituição deve consagrar a figura da inventariação dos bens culturais, de natureza
patrimonial ou de atividades de fazer (...)”21. Germina aqui o instituto que será posteriormente
legislado no Decreto nº 3.551/00. Dispõe, então, que o inventário complementará o
tombamento, devendo funcionar como novo instrumento protetivo, buscando registrar com as
técnicas adequadas todos os bens e manifestações culturais de valor referencial para a
memória nacional. “A inscrição no inventário seria reservada às manifestações reiterativas e
dinâmicas, que não se enquadram em um sistema rígido de proteção, a exemplo do artesanato,
do folclore, da arte e arquitetura populares, dos acervos científicos, do modos de fazer, lendas,
crenças etc”.
Essas idéias da Assembléia Nacional Constituinte ou foram implementadas
direitamente na Constituição Federal (art. 215 e 216) ou foram postas em normas ordinárias
(Decretos nº 3.551/00, Resolução nº 1, de 3 de agosto de 2006, normas estaduais e municipais
etc) confirmando a proteção dos modos de criar, de manifestar e de fazer do povo brasileiro.
A Carta de 88, estabeleceu que o Estado garantirá a todos o acesso às fontes da cultura
nacional e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais,
protegendo as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de
outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. Ao passo que o constituinte
protegeu essas manifestações identitárias, alargou consequentemente o patrimônio cultural
brasileiro, incluindo a referência de identidade, ação e memória dos diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira, pois
(1987). Subcomissão da Educação, Cultura e Esportes. Anteprojeto. Relator: João Calmon. Brasília: Senado
Federal. Centro Gráfico, 1987, p. 37 e 38.
20
BRASIL. Assembléia Nacional Constituinte (1987). Subcomissão da Educação, Cultura e Esportes.
Anteprojeto. Relator: João Calmon. Brasília: Senado Federal. Centro Gráfico, 1987, p. 38.
21
BRASIL. Assembléia Nacional Constituinte (1987). Subcomissão da Educação, Cultura e Esportes.
Anteprojeto. Relator: João Calmon. Brasília: Senado Federal. Centro Gráfico, 1987, p. 38.
118
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
esses universos culturais abrigam circuitos de consumo, produção e difusão culturais
organizados por meio de dinâmicas e lógicas próprias que diferem em muito dos
demais circuitos consagrados de produção cultural e, ao mesmo tempo, a eles
articulam-se importantes questões relativas ao desenvolvimento integrado e
sustentável. A noção de patrimônio cultural imaterial vem, portanto, dar grande
visibilidade ao problema da incorporação de amplo e diverso conjunto de processos
culturais – seus agentes, suas criações, seus públicos, seus problemas e necessidades
peculiares – nas políticas públicas relacionadas à cultura e nas referências de
memória e de identidade que o país produz para si mesmo em diálogo com as
demais nações. Trata-se de um instrumento de reconhecimento da diversidade
cultural que vive no território brasileiro e que traz consigo o relevante tema da
inclusão cultural e dos efeitos sociais dessa inclusão22.
Assim, a Constituição de 1988 a fim de afastar o ranço autoritário dos anos anteriores
buscou proteger os bens dos mais diversos grupos sociais e/ou étnicos nacionais reafirmando
a pluralidade cultural brasileira. O momento de redemocratização nacional fez com que o
principio da democratização dos bens culturais e a proteção de novos elementos da
pluralidade cultural nacional fossem observados. A Constituição de 1988 deu um grande
avanço ao incluir entre o patrimônio cultural nacional os bens imateriais, pois conforme realça
Peter Häberle:
(...) toda Constitución de um Estado constitucional vive em última instancia de la
dimensón cultural. La proteción de los bienes culturales, las libertades culturales
especiales, las cláusulas expressas sobre el 'patrimonio cultural' y los artículos
generales sobre el Estado de cultura no constituyen sino las manifestaciones
particulares de la dimensión cultural general de la Constitución. Cuando em su
etapa evolutiva actual el Estado constitucional da efectividad, refina y desarolla em
forma especial su protección de los bienes culturales, lo hace, em suma, al serviço
de su identidad cultural23.
Por fim, a proteção aos bens culturais imateriais implica em uma outra forma de
perceber a nação, a identidade e o patrimônio. Ao invés de pensar as identidades nacionais
como unas, homogêneas, “deveríamos pensá-las como constituindo um dispositivo discursivo
que representa a diferença como unidade ou identidade. Elas são atravessadas por profundas
divisões e diferenças internas, sendo 'unificadas' apenas através do exercício de diferentes
formas de poder cultural24”. Podemos dizer, então, que hoje só se faz possível se vincular
patrimônio a nação, se esse termo for plural, diverso, concebendo dentro dele todos os brasis,
pois as identidades nacionais não podem mais ser vistas como uma representação, em bloco,
22
CASTRO, Maria Laura Viveiros de, FONSECA, Maria Cecília Londres. Patrimônio imaterial no Brasil:
legislação e políticas estaduais. Brasília: UNESCO, 2008, p. 12.
23
HÄBERLE, Peter. op. cit., p. 5.
24
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro: DP & A, 2005, p. 62.
119
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
das pessoas, pois “as nações modernas são, todas, híbridos culturais” 25. As identidades
nacionais, para que se possa ainda se trabalhar com esse conceito não podem subordinar
“todas as outras formas de diferença e não estão livres do jogo de poder, de divisões e
contradições internas, de lealdades e de diferenças sobrepostas26”.
Nesse mesmo sentido, afirmava Gilberto Freyre, já em 1947, que o problema do
Brasil “continua a ser o de combinar diversidade sub-regional com unidade nacional e esta
com a continental ou a étnico-cultural27”, contudo “evidentemente é necessário um mínimo
saudável de uniformidade cultural básica para que o Brasil permaneça uma confederação 28”.
Os patrimônios culturais só podem ser vinculados à nação hoje para representar toda a nação,
apenas contemplando a multiplicidade, o diverso e o altero em conformidade com a
diversidade cultural da identidade brasileira.
4 Bem cultural imaterial
Como ventilado no tópico anterior a Constituição de 1988 rompe com o regime
autoritário anterior nos mais variados contextos da nova ordem estatal que se inicia e não foi
diferente no campo do patrimônio cultural. O art. 216 refuta a proteção apenas dos bens de
valor excepcional, representativos da elite – arte erudita – ou referendando apenas a tradição
européia na formação de nossa matriz cultural. A nova ordem constitucional consagra a
proteção de todos os bens que sejam referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes
grupos formadores da sociedade brasileira. Consagra-se, acima de tudo, o pluralismo cultural
que é a designação para a resultante da atuação e interação dinâmica de todos os grupos
sociais.
Após toda essa evolução da elaboração do Projeto de Lei de Mario de Andrade até as
discussões de Aloísio Magalhães no CNRC e no IPHAN, a Constituição Federal de 1988
estabeleceu, em seu art. 216, que constituem o “patrimônio cultural brasileiro os bens de
natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de
referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade
25
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro: DP & A, 2005, p. 62.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro: DP & A, 2005, p. 65.
27
FREYRE, Gilberto. Interpretação do Brasil: aspectos da formação social brasileira como processo de
amalgamento de racas e culturas . São Paulo: J. Olímpio, 1947, p. 149.
28
FREYRE, Gilberto. Interpretação do Brasil: aspectos da formação social brasileira como processo de
amalgamento de raças e culturas . São Paulo: J. Olímpio, 1947, p. 152.
26
120
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
brasileira”. Os bens culturais desse patrimônio não são mais apenas os objetos físicos
(documentos, monumentos, prédios etc) da ordem jurídica anterior, mas também os bens
imateriais.
A quase unanimidade da doutrina brasileira parte de uma concepção holística,
sistêmica ou unitária de meio ambiente, na qual estão compreendidas as dimensões relativas
ao meio ambiente natural, ao meio ambiente cultural e ao meio ambiente artificial. O meio
ambiente, pois, é “a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que
propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas. A integração
busca assumir uma concepção unitária do ambiente compreensiva dos recursos naturais e
culturais”29. O meio ambiente, por conseguinte, entendido em toda a sua plenitude, engloba a
natureza e as modificações nesta introduzidas pelo homem.
Desta forma, para compreender o meio ambiente é tão importante a montanha, como
a evocação mística que dela faça o povo. Alguns destes elementos existem
independentemente da ação do homem: os chamamos de meio ambiente natural;
outros são frutos da sua intervenção, e os chamamos de meio ambiente cultural30.
A noção de meio ambiente, por conseguinte, é muito ampla, abrangendo tanto bens
naturais quanto bens culturais. Estes são “coisas criadas pelos homens mediante projeção de
valores, 'criadas' não apenas no sentido de produzidas, não só do mundo construído, mas no
sentido de vivência espiritual do objeto”31. Preenchem o bem cultural um objeto material e
um valor que lhe dá sentido. Assim, o bem cultural, em sentido jurídico, não se esgota no
objeto material que o suporta, pois subsume também o valor resultante da incorporação.
Nesse sentido, bens culturais são as “coisas criadas pelos homens mediante projeção
de valores, 'criadas' não apenas no sentido de produzidas, não só do mundo construído, mas
no sentido de vivência espiritual do objeto”32. Preenchem o bem cultural um objeto material e
um valor que lhe dá sentido. Assim, o bem cultural, em sentido jurídico, não se esgota no
objeto material que o suporta, pois subsume também o valor resultante da incorporação.
Os bens culturais se distinguem pelo suporte sobre o qual recai o valor significante.
Se esse amparo do valor é corpóreo, tangível, esse bem é material (monumentos, documentos
29
SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 2.
SOUZA FILHO, Frederico Marés de. Bens culturais e proteção jurídica. Porto Alegre: Unidade Editorial,
1997, p. 9.
31
SILVA, José Afonso da. Ordenação constitucional da cultura. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 26.
32
SILVA, José Afonso da. Ordenação constitucional da cultura. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 26.
30
121
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
sítios arqueológicos etc). Em contrapartida, os bens culturais de natureza imaterial “são os
que refletem valores em suporte não-materiais, tais são as crendices, cultos, danças, festas,
que não compreendem produtos culturais apreensíveis fisicamente (...). Seu produto consiste
especificamente no manifestar-se”33. Essa classificação dos bens culturais em material e
imaterial, todavia, não é absoluta, pois “normalmente os aspectos tangíveis e intangíveis
sempre se conjugam, ou seja, tais elementos não são coisas absolutamente estanques” 34.
Patrimônio cultural imaterial, conforme o Decreto nº 3.551/00 35, compreende os bens
imateriais, como os saberes, ofícios, festas, rituais, expressões artísticas e lúdicas, que,
integrados à vida dos diferentes grupos sociais, configuram-se como referências identitárias
na visão dos próprios grupos que os praticam. O patrimônio cultural imaterial é norteado,
portanto, por intensivo viés antropológico, tendo, então, os instrumentos jurídicos, referentes
aos bens imateriais, que ser vistos por essa lente.
A Resolução nº 1, de 3 de agosto de 2006, do IPHAN 36, estabelece, de modo mais
claro, termos conceituais do patrimônio cultural imaterial, a saber:
(...) as criações culturais de caráter dinâmico e processual, fundadas na tradição e
manifestadas por indivíduos ou grupos de indivíduos como expressão de sua
identidade cultural e social; (...) toma-se tradição no seu sentido etimológico de
'dizer através do tempo', significando práticas produtivas, rituais e simbólicas que
são constantemente reiteradas, transformadas e atualizadas, mantendo, para o grupo,
um vínculo do presente com o seu passado.
Contextualizada a discussão e definidos os limites teóricos do conceito de bem
cultural imaterial, resta saber se o futebol pode ser considerado um bem cultural imaterial,
podendo ante esse fato estabelecer a competência ambiental da matéria em discussão.
33
Ibid., p. 98.
MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Tutela do patrimônio cultural brasileiro: doutrina, jurisprudência,
legislação. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 57.
35
O Decreto nº. 3.551/00 instituiu o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial e criou o Programa
Nacional do Patrimônio Imaterial.
36
A Resolução nº. 1, de 3 de agosto de 2006, complementou o Decreto nº. 3.551/00.
34
122
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
5 Considerações finais
Colocadas todas essas questões e delimitado o conceito de bem cultural imaterial
importa que se diga que o futebol pode ser considerado um bem cultural imaterial. O art. 216
da CF/88 é claro ao afirmar que constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza
material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à
identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos
quais se incluem as formas de expressão e os modos de criar, fazer e viver.
Uma primeira análise deve observar se o futebol é um bem cultural imaterial, tomado
individualmente ou em conjunto, portador de referência à identidade, à ação, à memória de
um dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira? Em um segundo momento, a
questão é se o futebol se inclui entre as formas de expressão e os modos de criar, fazer e viver
do brasileiro.
A resposta as duas indagações é positiva. Sim, o futebol é portador de referência à
identidade, à ação, à memória de alguns grupos formadores da sociedade brasileira e, sim
também, para o fato de o futebol ser uma forma de expressão e um modo de criar, fazer e
viver do brasileiro. Então o fato de o brasileiro gostar de jogar futebol e gostar de assistir
futebol configura um bem cultural imaterial, é a forma de viver brasileira, sua expressão
identitária. Podendo abranger tanto o fato de se assistir e torcer, quanto o fato de praticar o
esporte.
Sem incorrer no risco de tornar tudo patrimônio cultural imaterial e destarte
enfraquecer o instituto e a noção de bem cultural imaterial, a decisão fortalece o instituto,
possibilitando novas abordagens ao tema. A ação civil em comento é assaz interessante,
justamente, porque subtrai a discussão do bem cultural imaterial da seara de política
patrimonial e a insere na discussão processual, inovando a abordagem prática do tema. A
análise da competência material não induz registro ou inventário do bem, impossibilitando
qualquer investida sobre a discussão patrimonial, ou seja, a deferência a competência não
induz proteção patrimonial, mas possibilita a ampliação do instituto e alarga a discussão do
bem cultural imaterial em uma esfera não apenas preventiva, mas também defensiva.
123
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
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124
TRIBUTAÇÃO AMBIENTAL: POSSIBILIDADES DE INTERVENÇÃO NAS
DIRETRIZES DA POLÍTICA NACIONAL DOS RESÍDUOS SÓLIDOS
Denise Lucena Cavalcante1
Iasna Chaves Viana2
RESUMO: As questões ambientais têm sido preocupação também dos tributaristas, que vêem
no tributo ambiental uma forma de induzir condutas para a redução dos impactos na natureza.
Nesse contexto, o Poder Público pode desenvolver políticas que premiem os não-poluidores
através de incentivos fiscais. Sob a análise da nova lei que estabelece a Política Nacional dos
Resíduos Sólidos, serão feitas observações sobre como a tributação pode auxiliar na
efetivação daquelas políticas. É o caso do Município de Fortaleza, que já possui legislação
prevendo o Imposto Predial Territorial Urbano Verde, um exemplo dentro da gama de
incentivos que a Administração pode oferecer como forma de garantir o direito fundamental
ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e cumprir o dever constitucional de defendê-lo
e preservá-lo, além de enfrentar um problema crescente das cidades brasileiras, qual seja, a
destinação dos seus resíduos.
PALAVRAS-CHAVE: Tributação ambiental. Incentivos Verdes. Resíduos sólidos. Imposto
sobre Propriedade Territorial Urbana.
ABSTRACT: Environmental matters have been a concern inclusively of the tributarist, who
see the environmental tax as a way to incite conducts to reduce the impacts in the nature. In
this context, the Government can develop policies that premiate people who do not pollute,
through fiscal incentives. Under the analysis of the new law which estabilishes the National
Policy of Solid Waste, will be presented some comments about how taxation can support the
execution of those policies. It is the case of the city of Fortaleza, which already has a law
instituting the Green Urban Property Tax, as an example among all the incentives that the
State can offer in order to guarantee the fundamental right of an ecologically equilibrated
environment and to accomplish the constitutional obligation of defending it and preserving it,
besides, to face a crescent problem of the Brazilian cities, that is, the destination of their
waste.
KEY-WORDS: Environmental taxation. Green taxes. Solid Waste. Urban Property Tax.
1
Doutora em Direito Tributário pela PUC/SP. Mestre em Direito pela UFC. Professora e vice-coordenadora do
Programa de de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC). Professora de Direito
Tributário do Bacharelado em Direito da UFC. Líder do grupo de pesquisa Tributação Ambiental da Faculdade
de Direito da UFC, vinculado ao CNPq. Procuradora da Fazenda Nacional – categoria especial. E-mail:
[email protected].
2
Aluna da graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC). Membro do grupo de
pesquisa Tributação Ambiental da Faculdade de Direito da UFC, vinculado ao CNPq. E-mail:
[email protected].
1.
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Considerações iniciais
O presente estudo tem por finalidade relatar a situação referente à política nacional
dos resíduos sólidos e sua aplicabilidade no âmbito municipal, analisando as possibilidades de
interferência da tributação ambiental no fomento das atividades ambientalmente corretas.
Após a devida análise, se faz um estudo do caso concreto da lei do município de Fortaleza que
propõe a redução do Imposto Predial Territorial Urbano para as pessoas que exerceram a
reciclagem do lixo, propondo ao final um projeto de decreto regulamentar da referida lei, com
consonância a atual Lei Nacional de Resíduos Sólidos, Lei nº 12.305, de 2 de agosto de 2010.
A análise parte da descrição do atual contexto do ora chamado IPTU Verde de Fortaleza e
aponta, ao final, possibilidades de sua ampliação em prol de uma nova cultura ambiental que
deverá ser fomentada com estímulos fiscais relevantes.
2.
O Estado de direito ambiental
O meio ambiente, bem de uso comum do povo3, tem sido constantemente degradado
pelo homem devido a sua incessante busca pelo desenvolvimento econômico. Predominava
para um determinado grupo de países, do qual infelizmente o Brasil era líder, à época da
Conferência das Nações Unidas em Estocolmo (1972)4, o entendimento de que os recursos
naturais seriam infindáveis. Este grupo preconizava a idéia do “crescimento a qualquer custo”
e de que, por serem nações subdesenvolvidas ou em desenvolvimento, não deveriam investir
na proteção ao meio ambiente5.
Entretanto, transformações nefastas como a poluição, a chuva ácida, a desertificação,
o efeito estufa, o derretimento das geleiras e a excessiva produção de resíduos sólidos, não só
em nosso País como em outros, trouxeram à reflexão de que o acelerado ritmo da produção e
3
Nesse sentido, FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 10. ed. São Paulo:
Saraiva, 2009, p. 109: “O bem ambiental é, portanto, um bem de uso comum do povo, podendo ser desfrutado
por toda e qualquer pessoa dentro dos limites constitucionais, e, ainda, um bem essencial à qualidade de vida.
Devemos frisar que uma vida saudável reclama a satisfação dos fundamentos democráticos de nossa
Constituição Federal, entre eles, o da dignidade da pessoa humana, conforme dispõe o art. 1º, III.”.
4
Ressalte-se que foi na Conferência de Estocolmo que se firmou o reconhecimento internacional de que “o meio
ambiente humano é essencial para o bem-estar do homem e para o gozo dos direitos humanos fundamentais,
inclusive o direito à vida”. In BIANCHI, Patrícia Nunes Lima. A (in)eficácia do direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado no Brasil. Tese apresentada como requisito parcial à obtenção do título de doutora
da Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2007, p. 205.
5
MILARÉ, Édis. Direito do ambiente: gestão ambiental em foco: doutrina, jurisprudência, glossário. 6. ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 59.
126
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
o consumismo excessivo da sociedade alteraram a face do planeta.
O meio ambiente ecologicamente preservado atingiu o status de direito fundamental
com o Estado Democrático de Direito6. Tanto que, após o surgimento da Lei 6.938/81
estabelecendo a Política Nacional do Meio Ambiente, veio a Constituição Federal de 1988,
como um marco para o direito ambiental brasileiro, trazendo pela primeira vez na história
constitucional brasileira, um capítulo específico dedicado à defesa do meio ambiente. Nela, o
meio ambiente ecologicamente equilibrado passou a ser reconhecido como um direito
fundamental material, porque escrito no texto constitucional, embora não integrante do rol
elencado no título específico, ou seja, o Título II7 da Lei Maior 8.
Segundo Sarlet, a expressão “direitos fundamentais” deve ser aplicada aos direitos
humanos considerados mais importantes para uma sociedade e positivados nas constituições.
Diz o autor:
Não há como olvidar, neste contexto, que a opção do Constituinte, ao erigir certa
matéria à categoria de direito fundamental, se baseia na efetiva importância que
aquela possui para a comunidade em determinado momento histórico, circunstância
esta indispensável para que determinada posição jurídica possa ser qualificada como
fundamental.9
Destaque-se que a Constituição de 1998 consagrou a noção aberta de
fundamentalidade dos direitos, ao estabelecer que devam ser tidos como tais não apenas
aqueles nela expressamente positivados, mas também aqueles que dela possam ser extraídos
por interpretação (regime e princípios por ela adotados), bem assim aqueles acaso decorrentes
de tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte (art. 5º, o § 2º).
O direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado restou
expressamente positivado no caput do art. 225, da Carta Fundamental de 1988: “todos têm
6
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 27. ed. São Paulo. Malheiros, 2006, p. 118.
Explica Silva que “ele é Democrático na medida em que há a submissão dos governantes à vontade popular; e de
Direito porque há a obediência dos governantes à norma. Outrossim, é um Estado que deve observar os direitos
individuais e sociais, assim como a separação dos poderes.”
7
O catálogo dos direitos fundamentais está estabelecido no Título II, da Constituição da República, que trata dos
direitos e garantias fundamentais; Capítulo I, que cuida dos direitos e deveres individuais e coletivos. Neste
catálogo estão consagrados direitos fundamentais das diversas dimensões. Com relação ao direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado, estabelecido no caput do art. 225, da Constituição da República, direito de
terceira dimensão, este se encontra localizado no texto constitucional, mas fora do título dos direitos
fundamentais.
8
Neste sentido, SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9. ed. Porto Alegre: Livraria
do advogado, 2009.
9
Ibidem, p. 104.
127
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial
à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendêlo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.
Vem-se a concluir que o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado
deriva do princípio da dignidade humana, sendo:
[...] corolário do próprio direito à vida, indispensável a uma condição de
sobrevivência digna; além do que, transcende os limites da individualidade ou
mesmo da coletividade, porquanto é direito e dever de todos e, ao mesmo tempo,
de cada um, não sendo possível determinar e individualizar os seus destinatários.10
Ressalte-se, ademais, que uma condição de sobrevivência digna advém dos valores
mínimos fundamentais elencados no art. 6º, da Constituição Federal que devem ser prestados
pelo Estado, mediante o recolhimento de tributos, para o desfrute de uma vida com
dignidade11. O STF, aliás, reconhece a importância das condições necessárias e essenciais à
sobrevivência digna e a possibilidade de intervenção do judiciário em face do Estado, com a
intenção de assegurar a todos o acesso aos bens ambientais, ADPF 45, Relator Min. Celso de
Mello, DJ, 4-5-2004 12.
Porém, da leitura do artigo 225, além do direito antes exposto, advém o dever
fundamental de “defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Seu § 1º
elenca os deveres que são impostos ao Poder Público, já os parágrafos 2º e 3º estabelecem
aqueles que devem ser cumpridos pela coletividade. Destarte, conforme determina o referido
artigo, é dever de todos, Estado e sociedade, proteger e preservar o meio ambiente. Nas
palavras de Germana Belchior:
10
CAVALCANTE, Denise Lucena e MENDES, Ana Stela Vieira. Constituição, direito tributário e meio
ambiente. Revista Nomos. V. 28.2. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2008, p. 29-39.
11
FIORILLO, op. cit., p. 110.
12
Paradigmática a decisão monocrática proferida pelo Min. Celso de Mello na APDF 45. Ainda que ali não tenha
havido decisão de mérito, o Relator expressamente afirmou – em ato judicial que mais vale pela posição
doutrinária que assume do que pelo dispositivo que contém – a dimensão política da jurisdição constitucional e a
possibilidade de controle judicial das políticas públicas, ainda mais quando se cuidar da implementação da
garantia do mínimo existencial. Mais recentemente, o entendimento foi ratificado em julgado também da
relatoria do Min. Celso de Mello (RE 436996/SP), reconhecendo direito subjetivo de acesso a uma vaga na rede
pública para crianças de até seis anos de idade em creches e pré-escolas, igualmente sob a invocação da noção de
mínimo existencial. Dados disponíveis no endereço eletrônico <http://www.stf.jus.br>. Também há referência
em SARLET, Ingo Wolfgang e FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e
direito à saúde: algumas aproximações. In: SARLET, Ingo Wolfgang e TIMM, Luciano Benetti (Org.) Direitos
Fundamentais: orçamento e reserva do possível. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 23.
128
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
[...] O homem, na condição de cidadão, torna-se titular do direito ao ambiente
equilibrado e também sujeito ativo do dever fundamental de proteger o ambiente.[...]
É interessante perceber que a sociedade acaba sendo sujeito ativo e passivo do
direito-dever. Em outras palavras, todos têm direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado e, como conseqüência, o dever de preservá-lo cabe
também a todos. [...]13
O artigo 170 da Constituição de 1988, ao assegurar a livre iniciativa, coloca em seu
inciso VI a defesa do meio ambiente como princípio da atividade econômica 14. No mesmo
sentido, dispõe o artigo 186 sobre a função socioambiental da propriedade 15. Ressalte-se que a
função social da propriedade é dever fundamental expresso no inciso XXIII do artigo 5º da
nossa Lei Maior 16. Da combinação destes com o artigo 225, conclui-se que a “a Carta de 1988
adotou o “antropocentrismo alargado” porque considerou o ambiente como bem de uso
comum do povo, atribuindo-lhe inegável caráter de macrobem.”17 Diante da análise mais
acurada da finalidade dos artigos antes mencionados e diante da complexidade da atual
sociedade, a doutrina tem falado na conformação do Estado à ficção de um novo Estado de
Direito, o de Direito Ambiental18, bem explicado nas palavras de José Rubens Morato Leite:
O Estado de Direito Ambiental, dessa forma, é um conceito de cunho teóricoabstrato que abarca elementos jurídicos, sociais e políticos na busca de uma situação
ambiental favorável à plena satisfação da dignidade humana e harmonia dos
ecossistemas. Assim, é preciso que fique claro que as normas jurídicas são apenas
uma faceta do complexo de realidades que se relacionam com a idéia de Estado de
19
Direito do Ambiente”
Depreende-se, entretanto, que a efetivação de um Estado de Direito Ambiental exige
uma complexidade de mudanças de estrutura social20 e estatal que vislumbrem uma ação
13
BELCHIOR, Germana Parente Neiva. Hermenêutica e meio ambiente: uma proposta de hermenêutica
jurídica ambiental para a efetivação do estado de direito ambiental. Dissertação de mestrado apresentada
para obtenção do grau de mestre em direito da Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, 2009, p. 87.
14
Constituição Federal, artigo 170: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e da livre
iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os
seguintes princípios: (...) VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o
impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; (...)”.
15
Idem, artigo 186: “A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo
critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I – aproveitamento racional e
adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; (...)”.
16
Idem, artigo 5º: (...) XXIII – a propriedade atenderá a sua função social; (...)
17
LEITE, José Rubens Morato. In Sociedade de risco e estado. Direito constitucional ambiental brasileiro.
Org. José Joaquim Gomes Canotilho e José Rubens Morato Leite. 3ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 161..
18
Ibidem, p. 156.
19
Ibidem, p. 169.
20
Bem arremata a questão da mudança social Raimundo Bezerra Falcão: “O sentido e a profundidade da
mudança variam conforme as circunstâncias, e a mudança será tão mais marcante quanto mais altere as
129
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
conjunta na proteção do ambiente para as gerações presentes e futuras.
O direito ao meio ambiente saudável, por ser um direito fundamental de terceira
geração21, exige do Poder Público um agir estatal com vista a concretização dos direitos
fundamentais. 22 Ao lado deste dispositivo constitucional, outras normas infraconstitucionais,
como por exemplo, a Lei 6.938 de 31 de agosto de 1981 e a Lei 12.305 de 2 de agosto de
2010 surgem com a finalidade de preservação ambiental que, devidamente aplicadas dentro
do mundo real, poderão propiciar mudança nos fatos sociais e condicionar sua viabilidade e
utilidade social.
Surge, assim, a tributação ambiental, como forma de instrumentalizar a adoção de
posturas que reduzam o impacto ambiental.
3.
A extrafiscalidade na defesa do meio ambiente
Vive-se hoje em uma sociedade de risco 23 e o crescimento desmedido advindo da
globalização trouxe problemas para o meio ambiente que podem ser remodelados com a
finalidade de induzir ou estimular condutas que sejam caras aos interesses da coletividade.
Por tal motivo, pode o Poder Público utilizar-se da tributação em processos e procedimentos
de políticas públicas que tenham como finalidade a redução de impactos ambientais. Neste
sentido, Luciano Timm24:
estruturas e o funcionamento das formas societais ou dos processos que se desenvolvam no interior dessas
formas.” FALCÃO, Raimundo Bezerra. Tributação e mudança social. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1981, p.
65.
21
Bastante conhecida a teoria das gerações dos direitos atribuída ao jurista tcheco Karel Vasak. Descreve este
que os direitos de primeira geração são aqueles associados ao exercício da liberdade, os de segunda geração
referem-se aos direitos econômicos, sociais e culturais e os de terceira geração correspondem àqueles de
solidariedade, entendidos como os que se relacionam com o desenvolvimento, o meio ambiente hígido e a paz.
Vale ressaltar, nesse instante, que há classificações outras. Paulo Bonavides, por exemplo, fala em direitos de
quinta geração. BONAVIDES, Paulo. O direito à paz como direito fundamental de quinta geração. In: Revista
interesse público, v. 8, n. 40, nov/dez, 2006.
22
JORGE NETO, Nagibe de Melo. O controle jurisdicional das políticas públicas: concretizando a
democracia e os direitos fundamentais. Salvador: Editora Juspodivm, 2008.
23
José Rubens Morato Leite define sociedade de risco como “aquela que, em função de seu contínuo
crescimento econômico, pode sofrer a qualquer tempo as consequências de uma catástrofe ambiental. Nota-se,
portanto, a evolução e o agravamento dos problemas, seguidos de uma evolução da sociedade (da sociedade
industrial para a sociedade de risco), sem, contudo, uma adequação dos mecanismos jurídicos de solução dos
problemas dessa nova sociedade. Há consciência da existência dos riscos, desacompanhada, contudo, de políticas
de gestão, fenômeno denominado irresponsabilidade organizada.”, op.cit., p. 152.
24
TIMM, Luciano Benetti. Qual a maneira mais eficiente de prover direitos fundamentais: uma perspectiva de
direito e economia? In: SARLET, Ingo Wolfgang e TIMM, Luciano Benetti (Org.) Direitos Fundamentais:
orçamento e reserva do possível. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 64.
130
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
O melhor mecanismo de justiça social é a tributação.
[...] Somente um planejamento sério, que envolva profissionais da área de
administração, economia e contabilidade, poderá permitir eficiência no emprego de
recursos públicos (ou seja, como já dito, atingindo um maior número de pessoas
com o mesmo recurso proveniente da tributação).
No mesmo sentido, Paulo Amaral25:
As atividades econômicas não-poluidoras deverão ser incentivadas por meio de
instrumentos tributários e econômicos em detrimento das poluidoras como forma de
reorientar as condutas dos agentes poluidores a adotarem novas e adequadas
tecnologias limpas para reduzirem custos em seus processos de produção. Esse tipo
de política econômica desenvolvida em nosso país diminuirá significativamente os
custos sociais com a poluição ambiental, uma vez que o nível de bem-estar coletivo
aumentará e, automaticamente, produzirá benefícios em termos de saúde pública.
O estabelecimento de uma nova relação homem-meio ambiente, através de novos
conceitos de ética, educação e racionalidade ambientais 26 é importante. Mas as mudanças
sociais levam tempo para se efetivarem27. Por outro lado a recuperação de um dano ambiental
traz custos muito altos ao Erário ou àquele a quem foi imputada a culpa 28 e, por vezes, nem
sequer se consegue restaurar o dano ou, por outra, os impactos causados não se restringem ao
âmbito local.
É excessiva, no entanto, a carga tributária em nosso país, tanto para empresários,
quanto para os cidadãos. Os incentivos fiscais 29 aparecem como forma altamente atraente,
25
AMARAL, Paulo Henrique do. Direito tributário ambiental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 51.
A respeito da nova relação homem-meio ambiente, a que designa de pré-compreensão ecológica, BELCHIOR,
op. cit., p. 92 e 143/156.
27
Raimundo Bezerra Falcão diz: “A aceitação da mudança está relacionada com a necessidade de mudar, com a
possibilidade de proporcionar satisfação e com a utilidade esperada. Já a inércia, o arraigamento de hábitos e
costumes, a desconfiança, as tradições assentes, o interesse de resguardar direitos, o sistema de Direito Positivo,
a ignorância ou carência de conhecimentos, tudo isso labora no sentido de levantar obstáculos ao êxito da
mudança. Assim sendo, a mudança se concretiza com maior e menor eficácia ou rapidez quando as forças que
lhe são favoráveis superam as que se lhe opõem.”. Op. cit., p. 66.
28
Tal posicionamento leva-nos a lembrar do jarguão popular: “É melhor prevenir do que remediar”. Mais
aprofundadas ainda as palavras de Terence Dornelles Trennepohl, quando expõe acerca da distinção entre os
princípios da precaução e da prevenção: “O princípio da precaução tem aplicação mais abrangente que o da
prevenção, haja vista a aplicação daquele ocorrer em momento anterior ao conhecimento das conseqüências do
dano ambiental, enquanto este somente se dá em uma fase posterior, quando o risco se converte em dano.”
TRENNEPOHL, Terence Dornelles. Incentivos fiscais no direito ambiental. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 52.
29
A Constituição Federal prescreve autorização para tais incentivos, em seu artigo 150, parágrafo 6º: “Qualquer
subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a
impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou
municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou
contribuição, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2º, XIII, g.”.
26
131
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
proporcionando ao Estado recursos para implementar políticas de proteção ao ambiente, além
de estimular condutas ambientalmente corretas.
O Estado, em obediência ao preceito constitucional de promover a preservação
ambiental, mescla os sentidos arrecadatório e extrafiscal 30 do direito tributário para realizar
uma diferenciação entre poluidores e não-poluidores, premiando os últimos31.
A proteção ambiental via extrafiscalidade sugere a adoção de políticas públicas de
planejamento tributário, onde os incentivos fiscais, segundo Norberto Bobbio, levem a um
comportamento promocional32 do ordenamento jurídico.
Essas políticas públicas que visam incrementar a preservação ambiental foram
incorporadas originalmente em países da Europa33. Depois, política similar foi implantada nos
Estados Unidos, no final da década de 1980 e consistia em um fundo ambiental chamado
Superfund.34
Na Rússia também foram usados os fundos ambientais e na pós- União Soviética
“têm sido uma fonte de financiamento substancial para a proteção do meio ambiente e o
controle da contaminação.”35
Tais incrementos à preservação do ambiente são os “eco-impostos ou incentivos
verdes, mecanismos legais capazes de fomentar ações de interesse geral da sociedade e
financiar projetos a longo prazo”36
No Brasil, a tendência da aplicação da tributação ambiental, via incentivos fiscais
tem sido praticada por alguns Estados e Municípios da Federação.
30
Raimundo Bezerra Falcão explica: [...] por extrafiscalidade, entender-se-á a atividade financeira que o Estado
exercita sem o fim precípuo de obter recursos para seu erário, para o fisco, mas sim com vistas a ordenar ou
reordenar a economia e as relações sociais, [...], op. cit., p. 48.
31
OLIVEIRA, José Marcos Domingues de. Direito tributário e meio ambiente. 3ª edição. Rio de Janeiro:
Forense, 2007, p. 59.
32
Diz Norberto Bobbio: “existem três modos de impedir uma ação não desejada: torná-la impossível, torná-la
difícil e torná-la desvantajosa. De modo simétrico, pode-se afirmar que um ordenamento promocional busca
atingir o próprio fim pelas três ações contrárias, isto é, buscando tornar a ação desejada necessária, fácil e
vantajosa.” BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Barueri, São
Paulo: Manole, 2007, p. 15.
33
TRENNEPOHL, op. cit., p. 82.
34
“[...] o Superfund foi implantado no fim da década de 1980 e aperfeiçoado em 1986, com recursos
provenientes de um imposto aplicado sobre as indústrias químicas e de petróleo. Em julho de 2001, havia,
43.806 sítios contaminados e 1.235 deles constavam como prioridade máxima para o conselho diretor do fundo.”
CALDERONI, Sabetai. Economia ambiental. In PHILIPPI JR., Arlindo ;ROMÉRO, Marcelo de Andrade e
BRUNA, Gilda Collet (Editores). Curso de gestão ambiental. Barueri, SP: Manole, 2004, p. 601.
35
Ibidem, p. 601-602.
36
BRAUN, Ricardo. Incentivos Verdes – modelo de incentivos verdes para o desenvolvimento sustentável –
instrumentos econômicos, eco-impostos, motivação social, gestão corporativa. E-book disponível no
endereço eletrônico <http://incentivosverdes.wordpress.com>. Acesso em 13/09/2010, p. 10. Acesso em
13/09/2010.
132
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Terence Trennepohl cita exemplos de alguns incentivos brasileiros, como os
relacionados: (1) com o do Imposto de Renda (IR), através da Lei 5.106/66, que permitia
descontos do valor do imposto a pessoas físicas e jurídicas que investissem em florestamento
e reflorestamento; (2) com o do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), sob o Decreto
Federal 755/93, que estabelecia diferenciação nas alíquotas de veículos movidos a álcool e a
gasolina; (3) com o do Imposto Territorial Urbano (ITR), por meio da Lei 9.393/96, que
isentava da cobrança do imposto as áreas de reserva legal, de preservação permanente, dentre
outras; (4) com o do ICMS ecológico, implementado em vários Estados, como Paraná, Minas
Gerais e Mato Grosso do Sul e (5) com o do IPVA no Estado do Rio de Janeiro, com a Lei
Estadual 948/95.37
Vejam-se, ainda, os incentivos ao Etanol, às energias “limpas”: biodiesel, energia
solar, energia solar, dentre outras e as negociações feitas através do Mercado de Carbono nas
Bolsas de Valores.38
Recentemente, vários Municípios brasileiros valendo-se do uso do IPTU, têm
concedido descontos nas parcelas de cobrança do referido imposto quando da prática de
condutas positivas em prol do meio ambiente. Podemos citar, como exemplo, os Município de
Curitiba39 no Paraná, os Municípios de São Carlos40 e Araquara41, ambos em São Paulo,
Natal42 no Estado do Rio Grande do Norte, Rio de Janeiro e Petrópolis, ambos no Estado do
Rio, Lageado no Rio Grande do Sul e Vitória no Espírito Santo. 43 Nos Municípios citados,
entretanto, são concedidos incentivos quando da preservação de áreas verdes no imóvel ou
caso referidos imóveis tenham valor histórico, cultural, social ou ecológico.
O Município de Fortaleza inovou, através da Lei Complementar nº 73, de 28 de
dezembro de 2009, concedendo desconto de cinco por cento no valor do IPTU aos
condomínios que façam a separação de resíduos sólidos, destinando-os para associações e/ou
cooperativas de catadores de lixo.
37
TRENNEPOHL, op. cit., p. 83-84.
CAVALCANTE e MENDES, op. cit., p. 39.
39
Lei
do
imposto
imobiliário
Prefeitura
de
Curitiba.
Disponível
<http://sitepmcestatico.curitiba.pr.gov.br/Secretarias/1/22/Anexos/LEI6202.pdf.>. Acesso em 05/09/2010.
40
IPTU
Verde:
prorrogado
prazo
para
desconto.
Disponível
<http://www.saocarlos.sp.gov.br/index.php.noticias/2009/155673-iptu-verde-prorrogado-prazo-paradesconto.html>. Acesso em 05/09/2010.
41
Contribuintes já podem solicitar desconto do IPTU Verde. 02/02/2010. Disponível
<http://www.araraquara.sp.gov.br/noticia/Noticia.aspx?IDNoticia=1357>. Acesso em 05/09/201.
42
Câmara
Municipal
de
Natal.
Lei
nº
00301/09.
Disponível
<http:www.cmnat.rn.gov.br/busca_leis_visualizr_print.asp?tipo=LEIPROMULGADA&numero=00301/09>.
Acesso em 06/09/2010.
43
BRAUN, Ricardo. Op. Cit., p. 49.
38
em
em
em
em
133
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Surge a Lei Federal nº 12.305, de 2 de agosto de 2010, estabelecendo a Política
Nacional de Resíduos Sólidos. Cumpre no presente trabalho analisar como a tributação pode
intervir nas suas diretrizes.
4.
Breve análise da nova lei dos resíduos sólidos
Os resíduos sólidos no Brasil já vinham sendo vislumbrados desde a Lei da Política
Nacional do Meio Ambiente, Lei n. 6.938/81, e da Lei n. 11.445/2007 que estabelece
diretrizes nacionais para o saneamento básico.
A nova Lei, por sua vez, estabelece a Política Nacional dos Resíduos Sólidos,
objetivando uma gestão integrada e gerenciada dos resíduos, incluindo os perigosos,
atribuindo responsabilidade aos geradores de resíduos (seja pessoas físicas ou jurídicas, de
direito público ou privado), ao poder público e aos que participem do processo de gestão e
gerenciamento.44 Ou seja, ela prevê um forte instrumento para sua efetivação, em se tratando
do assunto, preservação do meio ambiente, é a gestão compartilhada de todos que fazem parte
desse cenário.
Enfatiza, também, o reaproveitamento, a reutilização, a redução dos resíduos e
disposição final ambientalmente adequada de rejeitos45, vislumbrando a concessão de
incentivos fiscais, financeiros e creditícios. Ressalte-se que, desde a época de seu projeto, era
prevista a instituição de um fundo de apoio à reciclagem de resíduos. 46 Outro ponto forte da
Lei é a participação de cooperativas de catadores no processo de gestão dos resíduos,
prevendo, inclusive, sua inclusão social e sua emancipação econômica, mediante incentivos
ou financiamento para Estados e Municípios que façam coleta seletiva com referidos
agentes.47
44
Lei 12.305, de 02 de agosto de 2010, Art. 1º, § 1º.
A legislação em referência ocupa-se de conceituar resíduos e rejeitos, para os fins que especifica. Assim,
rejeitos são “...resíduos sólidos que, depois de esgotadas todas as possibilidades de tratamento e recuperação por
processos tecnológicos disponíveis e economicamente viáveis, não apresentem outra possibilidade que não a
disposição final ambientalmente adequada” (art. 3º, XV); ao mesmo tempo, define resíduos sólidos como “...
material, substância, objeto ou bem descartado resultante de atividades humanas em sociedade, a cuja destinação
final se procede, se propõe proceder ou se está obrigado a proceder, nos estados sólido ou semissólido, bem
como gases contidos em recipientes e líquidos cujas particularidades tornem inviável o seu lançamento na rede
pública de esgotos ou em corpos d‟água, ou exigia para isso soluções técnica ou economicamente inviáveis em
face da melhor tecnologia disponível” (art. 3º, XVI).
46
CALDERONI, op. cit., p. 601.
47
Os pontos positivos e negativos da nova lei de resíduos sólidos. Disponível em
<http://saúdefloripa33pj.wordpress.com/2010/08/12/os-pontos-positivos-e-negativos-da-nova-lei-de-residuos45
134
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Merecem destaque, ainda, a imposição que a nova legislação faz quanto a
estruturação e a implementação de sistemas de logística reversa 48 e os planos nacional,
estadual e municipal de resíduos sólidos, com a fixação de metas e normas para manejo e
destinação final adequados49, planos estes que terão prazo de até quatro anos para
implantação. Outras duas ótimas novidades: a previsão de eliminação de lixões e a proibição
da importação de resíduos perigosos ou que causem danos ao meio ambiente, à saúde pública
e animal e à sanidade vegetal.
Fraquejou referida norma, entretanto, quando possibilitou a utilização de
“recuperação energética” dos resíduos, em outras palavras, a incineração 50. Outro ponto fraco
é que em seu texto não há previsão de um órgão específico responsável pelos resíduos sólidos
e, devido, ser tão recente, ainda não possui decreto presidencial que a regulamente, sob pena
de se tornar inócua.51
5.
A situação e a legislação local da segregação dos resíduos sólidos
A realidade que se apresenta em várias cidades brasileiras, inclusive na cidade de
Fortaleza, é de desleixo com a exposição dos resíduos ou, como popularmente se chama,
solidos>. Blog da 33ª Promotoria de Justiça da Capital – Ministério Público/SC. Acesso em 06/09/2010.
48
“Logística Reversa é um termo bastante genérico. Em seu sentido mais amplo, significa todas as operações
relacionadas com a reutilização de produtos e materiais. Logística Reversa se refere a todas as atividades
logísticas de coletar, desmontar e processar produtos e/ou materiais e peças usados a fim de assegurar uma
recuperação sustentável (amigável ao meio ambiente).” DAHER, Cecílio Elias; SILVA, Edwin Pinto de la Sota e
FONSECA, Adelaida Pallavicini. Logística reversa: oportunidade de redução de custos através do
gerenciamento
da
cadeia
integrada
de
valor.
Disponível
em
<http://www.bbronline.com.br/upld/trabalhos/pdf/32_pt.pdf>. Acesso em 27/09/2010.
49
Resíduos sólidos: a regulamentação da nova lei e as expectativas do mercado. Disponível em
<http://www.segs.com.br/index.php?view=article&catid=50%3Acat-demais&id=18601>.
Acesso
em
06/09/2010.
50
“A incineração, como técnica de eliminação de resíduos, é uma prática que existe há aproximadamente cem
anos, [...] É bastante comum na literatura encontrar a denominação destruição de resíduos. Na realidade, a
palavra destruição do ponto de vista formal não pode ser usada neste sentido, entretanto, é aceita em razão de seu
uso disseminado em todas as línguas. De forma bem simplificada, os produtos orgânicos (comida, tecidos,
plásticos) são compostos em ligações envolvendo carbono e hidrogênio (H); no incinerador acontece a oxidação
(combustão) desses compostos, [...] A reação de combustão de produtos orgânicos normalmente libera calor, que
é transferida para os gases e para o material sólido. [...] Provavelmente a parte mais crítica de um incinerador
está no controle das emissões, seja de material particulado, seja de gases. [...] Os gases saem do incinerador com
temperaturas na faixa de 800°C a 1.000°C. Assim, seu resfriamento é necessário para que o tratamento contra a
poluição atmosférica seja feito. O resfriamento normalmente se faz em trocadores de calor, que, além de resfriar
os gases, aproveitam o calor deles, transformando-os em energia ou vapor, que é usado para cobrir as despesas
de incineração. O material particulado resultante é controlado por equipamentos como filtros de manga,
precipitores eletrostáticos e lavadores venturi.” TENÓRIO, Jorge Alberto Soares e ESPINOSA, Denise Crocce
Romano. Controle ambiental de resíduos. In PHILIPPI JR., Arlindo ;ROMÉRO, Marcelo de Andrade e BRUNA,
Gilda Collet (Editores). Curso de gestão ambiental. Barueri, SP: Manole, 2004, p. 188-191.
51
Vide nota 47.
135
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
lixo, a céu aberto, às vezes, nas próprias calçadas. Trata-se de uma questão de educação
ambiental e de responsabilidade social e do Estado.
A preocupação com a destinação dos resíduos surgiu devido ao seu tamanho
crescente nas cidades, comprometendo o meio ambiente. O desenvolvimento da população, o
aumento do consumo, a maior disponibilidade de descartáveis, a reduzida durabilidade dos
produtos postos no mercado levam à geração de volumes cada vez maiores e diversificados de
resíduos, tornando mais caro e complexo seu tratamento.
As conseqüências do acúmulo de lixo nas cidades põem em risco o ar, o solo, as
águas superficiais e os lençóis freáticos. Ademais, verificam-se a proliferação de diversas
doenças, o agravamento de problemas socioeconômicos, poluição visual e desvalorização da
região, além, do mau odor local.
O Município de Fortaleza, de certa forma, antecipou-se à nova Política Nacional de
Resíduos Sólidos, quando estabeleceu o desconto no IPTU aos condomínios que
instituíssem a segregação dos seus resíduos, destinando-os a associações e/ou cooperativas
de catadores de lixo. Entretanto, a Lei Municipal restringiu tal concessão aqueles que
apresentassem requerimento à Secretaria de Finanças do Município somente até 29 de
fevereiro de 2010. Não tendo sido ainda regulamentada, deve-se retirar tal dispositivo,
ampliando e motivando a participação de um maior número de contribuintes, o que
beneficiará ainda mais a cidade de Fortaleza.
Ademais, percebe-se que o valor concedido, apenas de cinco por cento, é muito
baixo e não gera o estímulo devido, sugerindo que seja feito um estudo para que se aumente
este valor para 10% (dez por cento).
Portanto, o que se propõe é uma espécie de “isenção premial” do IPTU decorrente
de uma adequada e necessária prática de reciclagem de resíduos sólidos. E mesmo que esta
isenção cause algum impacto nas receitas orçamentárias ela será equilibrada pela econômica
que se terá no pagamento que a Prefeitura de Fortaleza faz quando na coleta do lixo, que
sendo mensurada em peso, terá esta medição diminuída pela exclusão dos resíduos entregues
à reciclagem. Enfim, caberá ao Município fazer um estudo sobre este impacto da redução da
receita prevista para o IPTU.52
52
Francisco Ewerton Sombra de Mesquita fez um estudo do IPTU de Fortaleza, analisando sua evolução da
arrecadação e os impactos desta nas receitas correntes orçamentárias no período de 2005 a 2008, concluindo que:
“[...] avaliando o IPTU em relação ao total das receitas correntes, ficou constatado que, a arrecadação de todos os
impostos e taxas evoluiu ao longo dos anos analisados. Notou-se também que, dos itens analisados, o IPTU
136
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
E, considerando que referida Lei Municipal ainda não foi regulamentada, segue a
proposição de Projeto de Decreto que regulamente, o mais breve possível, a lei em questão,
desde logo, enfatizando a necessária alteração em relação ao percentual de 5%, devendo o
mesmo passar para 10%, propondo um estímulo concreto para a mudança de cultura do povo
fortalezense em relação à reciclagem dos resíduos sólidos. A referida proposta de
regulamento encontra-se no apêndice deste artigo.
6.
Considerações finais
Há algumas gerações, a sociedade vem debatendo sobre os problemas ambientais e
percebe-se que, ao estudarmos o assunto, nos deparamos com o dilema entre o meio ambiente
e o desenvolvimento. Para uns prevalecerá o primeiro; para outros, o último. Na verdade,
devemos encarar a importância de como harmonizá-los, já que ambos se complementam. Um
não deve sobrepor-se ao outro, nem mesmo os fundamentos de seus defensores. Cabe a cada
um de nós, a partir do grupo ao qual somos mais simpatizantes, fazermos a nossa parte.
Impõe-se harmonização dos direitos fundamentais ao meio-ambiente ecologicamente
equilibrado e à propriedade. A proposta aqui lançada diz com a utilização da tributação como
instrumento para induzir exercício ambientalmente adequado do direito de propriedade. Não
se pretende assentar que a tributação ambiental resolverá a questão por inteiro. Não se trata
disso. O que se procurou demonstrar é que ela pode ser tida como mais um instrumento
econômico hábil a obliterar os efeitos nocivos que os costumes da nossa sociedade causam ao
meio ambiente. As políticas públicas que estimulem a proteção ambiental e a sustentabilidade
local devem ser executadas em todas as esferas do Poder Público como forma de o Estado,
juntamente com a sociedade, cumprirem o dever fundamental de defesa e preservação do
ambiente.
Abordou-se, conforme exposto, a maneira pela qual a nova legislação procura
enfrentar a problemática dos resíduos sólidos nas cidades brasileiras e como, mais
especificamente no Município de Fortaleza, a Administração tem procurado iniciar uma
política ambiental pautada nas diretrizes da nova Política Nacional de Resíduos Sólidos,
ocupa o 4º lugar em participação, correspondendo sua arrecadação, em média, a 4,30% do total das receitas
correntes. [...] o IPTU ocupa o 2º lugar em participação, correspondendo sua arrecadação, em média, há 23,31%
do total das receitas tributárias, ficando atrás apenas do ISS.” (In Anais – Prêmios SEFIN, 3ª ed. Fortaleza:
Tiprogresso, 2009, p. 402-403).
137
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
aprovada recentemente pela Lei n. 12.305, de 2 de agosto de 2010.
Percebe-se que a concretização de tais políticas dependem de apoio políticoinstitucional do Executivo e dos parlamentares que, após aprová-las, devem divulgá-las e
estimulá-las, como forma de fazer crescer a participação e o espírito de solidariedade social da
comunidade em geral.
Os incentivos verdes são ações econômicas legais e dependem daquelas intenções
políticas, que poderão fazer a participação da comunidade na coleta seletiva e reciclagem
crescer.
Entretanto, coleta seletiva e reciclagem implicam, além da participação dos
geradores de resíduos53, em aportes financeiros. O incentivo ofertado não pode ser tão
reduzido que não induza conduta, nem tão amplo que comprometa o equilíbrio orçamentário
da Administração Pública.
Em arremate, deve-se assinalar que, no caso específico do IPTU em Fortaleza, a
pequena quantidade de inscritos para obtenção do incentivo concedido parece apontar no
sentido de que o mesmo não foi suficiente para induzir novo comportamento, ambientalmente
adequado. Não houve, ademais, ampla divulgação.
Alcançar objetivos tão caros às futuras gerações de fortalezenses impõe o repensar da
atuação da Administração Pública Municipal, nos moldes apontados.
Referências bibliográficas
AMARAL, Paulo Henrique do. Direito tributário ambiental.
Tribunais, 2007.
São Paulo: Revista dos
BELCHIOR, Germana Parente Neiva. Hermenêutica e meio ambiente: uma proposta de
hermenêutica jurídica ambiental para a efetivação do estado de direito ambiental.
Dissertação de mestrado apresentada com requisito parcial à obtenção do grau de mestre em
direito na Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, 2009.
BIANCHI, Patrícia Nunes Lima. A (in)eficácia do direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado no Brasil. Tese apresentada como requisito parcial à obtenção
do título de doutora na Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2007.
53
Geradores de resíduos somos, no final das contas, todos nós, pessoas físicas e jurídicas, particulares ou
públicas
138
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. São
Paulo:Manole, 2007.
BONAVIDES, Paulo. O direito à paz como direito fundamental de quinta geração. In: Revista
interesse público, v. 8, n. 40, nov/dez, 2006.
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desenvolvimento sustentável – instrumentos econômicos, eco-impostos, motivação social,
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E-book
disponível
no
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<http://incentivosverdes.wordpress.com. Acesso em 13/09/2010.
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Livraria do advogado, 2009.
SARLET, Ingo Wolfgang e FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo
existencial e direito à saúde: algumas aproximações. In: SARLET, Ingo Wolfgang e TIMM,
Luciano Benetti (Org.) Direitos Fundamentais: orçamento e reserva do possível. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 27ª edição. São Paulo.
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TIMM, Luciano Benetti. Qual a maneira mais eficiente de prover direitos fundamentais: uma
perspectiva de direito e economia? In: SARLET, Ingo Wolfgang e TIMM, Luciano Benetti
(Org.) Direitos Fundamentais: orçamento e reserva do possível. Porto Alegre: Livraria do
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139
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
TENÓRIO, Jorge Alberto Soares e ESPINOSA, Denise Crocce Romano. Controle ambiental
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<http://saúdefloripa33pj.wordpress.com/2010/08/12/os-pontos-positivos-e-negativos-da-novalei-de-residuos-solidos>. Blog da 33ª Promotoria de Justiça da Capital – Ministério
Público/SC. Acesso em 06/09/2010.
<http://www.segs.com.br/index.php?view=article&catid=50%3Acat-demais&id=18601>.
Acesso em 06/09/2010.
< http://www.bbronline.com.br/upld/trabalhos/pdf/32_pt.pdf>. Acesso em 27/09/2010.
Apêndice: Proposta de regulamento
DECRETO Nº ________, de ____de ______________de 2010.
Regulamenta o artigo 2º da Lei Complementar nº 0073, de 28 de
dezembro de 2009, que dispõe sobre a concessão de desconto de
5% (cinco por cento) no valor do IPTU aos condomínios que
140
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
instituam separação de resíduos sólidos e que destinem sua
coleta a associações e/ou cooperativas de catadores de lixo.
A PREFEITA DO MUNICÍPIO DE FORTALEZA, no uso das atribuições que lhe são
conferidas pelo art. 83, inciso VI, da Lei Orgânica do Município,
CONSIDERANDO o dever constitucional de defesa e preservação do meio ambiente
ecologicamente equilibrado;
CONSIDERANDO as diretrizes da Nova Lei da Política Nacional de Resíduos Sólidos, Lei nº
12.305, de 2 de agosto de 2010;
CONSIDERANDO a importância da separação dos resíduos sólidos no ambiente municipal;
CONSIDERANDO a relevância da inclusão sócio-econômica dos catadores de lixo e de
outras sociedades de reciclagem de materiais no âmbito da gestão de preservação ambiental
da cidade, e;
CONSIDERANDO o exemplo que deve ser transmitido à sociedade para levá-la a ser
partícipe no processo de redução dos impactos ambientais;
DECRETA:
Art. 1º - A concessão de desconto de 5% (cinco por cento) no valor do IPTU aos condomínios
residenciais, comerciais ou mistos que instituam a separação de resíduos sólidos. O benefício
será aplicado à inscrição correspondente ao imóvel participante da coleta seletiva.
Parágrafo Único: A separação de resíduos sólidos tem como objetivo a coleta seletiva de
resíduos orgânicos e de resíduos inorgânicos, destinando-a a associações e/ou cooperativas de
catadores de lixo ou, ainda, a outras sociedades de reciclagem.
Art. 2º - Para fins do disposto neste decreto considera-se:
I – coleta seletiva: método que envolve a seleção na fonte pelo gerador dos resíduos em
componentes individuais, conforme sua constituição ou composição;
141
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
II - resíduos orgânicos ou lixo úmido: os restos de comida, detritos, cascas de alimentos,
podas, lixo dos banheiros, varrição da casa e da rua, dentre outros que, após separação, são
encaminhados para aterros sanitários ou em parte, usados para a fabricação de adubo
orgânico;
III – resíduos inorgânicos ou lixo seco: plásticos, madeira, vidro, papel, papelão, alumínio e
metal, embalagens tipo longa vida, dentre outros que, após separação, possam ser reutilizados
ou reciclados por associação e/ou cooperativas de catadores de lixo;
IV – associações e/ou cooperativas de catadores de lixo: a agremiação ou união e/ou
organização de várias pessoas formal e exclusivamente constituídas por estatuto de catadores
de materiais recicláveis e que tenham a atividade de reciclagem como única fonte de renda;
V – sociedades de reciclagem: instituição ou entidade de pessoas que tenham como atividade
fim exclusivamente a reciclagem de materiais.
Art. 3º - Os condomínios interessados em receber o beneficio da isenção parcial do IPTU
deverão realizar cadastro na Secretaria do Meio Ambiente e Controle Urbano do Município
de Fortaleza – SEMAM, bem como o pedido de adesão ao programa de coleta seletiva de
resíduos sólidos, munidos dos seguintes documentos:
I – Ata da Assembléia realizada com o fim de autorizar o cadastro e inclusão do condomínio
no programa de coleta seletiva de resíduos sólidos, contendo a assinatura das unidades
condominiais interessadas em participar do programa;
II – Extrato para Simples Conferência de IPTU das unidades condominiais interessadas;
III - Certidão Negativa de Tributos Municipais dos proprietários das unidades condominiais
participantes.
§ 1º – A adesão do condomínio no programa de coleta seletiva de resíduos sólidos ficará
condicionada à participação de, no mínimo, por um ano ininterrupto, 60% (sessenta por
cento), das unidades condominiais no programa e somente as unidades participantes deverão
gozar do benefício do desconto de 5% (cinco por cento) sobre valor do Imposto Predial
Territorial Urbana.
142
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
§ 2º – Por ocasião do cadastro a SEMAM disponibilizará:
I - listas contendo os materiais e forma a serem segregados;
II - relação das associações de catadores de materiais recicláveis e de outras sociedades de
reciclagem cadastradas na SEMAM, objetivando a definição da associação ou outra sociedade
de reciclagem que operacionalizará o programa junto ao condomínio, mediante formalização
de Termo de Compromisso.
Art. 4º - As associações e/ou cooperativas de catadores e as outras sociedades de reciclagem
participantes do presente programa deverão possuir infra-estrutura física e logística para
realizar a coleta nos condomínios, que serão definidos em Portaria pela SEMAM.
Art. 5º - Os condomínios cadastrados deverão DOAR os resíduos segregados para a
associação de catadores de materiais reciclados ou para a sociedade de reciclagem informada
à SEMAN no ato do cadastro.
§ 1º – Caberá à associação de catadores ou a sociedade de reciclagem beneficiada recolher o
material doado, de acordo com o disposto neste Decreto e no Termo de Compromisso firmado
entre o condomínio e associação ou a sociedade de reciclagem, instrumento este que
estabelecerá as condições para permanência no programa de coleta seletiva de resíduos
sólidos, de acordo com os requisitos indicados pela SEMAM, através de Portaria, dentre os
quais figurará obrigatoriamente o quantitativo mínimo de resíduos sólidos anualmente
doados.
§ 2º – À associação de catadores ou à sociedade de reciclagem competirá emitir protocolos de
recebimento dos resíduos sólidos, para fins de comprovação junto a Prefeitura de Fortaleza da
efetiva participação do condomínio e suas unidades no programa, devendo certificar à
SEMAM, no prazo de 05 (cinco) dias contados da solicitação da referida repartição, a
destinação adequada dos resíduos recicláveis pelas unidades condominiais e atingimento do
quantitativo anual mínimo de material doado obtida pelos imóveis adeptos da coleta seletiva.
Art. 6º - Após a formalização da adesão do condomínio ao programa de coleta seletiva de
143
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
resíduos sólidos na SEMAM e ainda, comprovação por uma associação de catadores ou uma
sociedade de reciclagem da destinação dos resíduos sólidos e atingimento do quantitativo
mínimo anual estabelecido para doação de resíduos segregados pelo condomínio, conforme
artigo 3º deste Decreto, a SEMAM emitirá o Certificado de Condomínio Verde atestando que
o imóvel atende as exigências da coleta seletiva, providenciando o seu protocolo na Secretaria
de Finanças do Município de Fortaleza, com a finalidade de propiciar o gozo do benefício do
desconto no Imposto Predial Territorial Urbano – IPTU.
§ 1º - Somente o responsável pelo pagamento do IPTU poderá solicitar o benefício deste
Decreto junto à SEMAM, devendo protocolar o pedido de adesão ou permanência no
programa de coleta seletiva de resíduos sólidos até o último dia útil do mês de abril de cada
ano, para obter o gozo do benefício no exercício seguinte.
§ 2º - A SEMAM deverá protocolar junto à Secretaria de Finanças do Município de Fortaleza
– SEFIN até o último dia útil do mês de junho de cada ano, para gozo do benefício no
exercício seguinte, o Certificado de Condomínio Verde, válido por 01 (um) ano, assinado pelo
Secretário da SEMAM, contendo as inscrições de IPTU e endereço das unidades imobiliárias
que deverão ser beneficiadas com o desconto de 5% (cinco por cento) sobre valor do Imposto
Predial Territorial Urbana - IPTU.
Parágrafo Único – Caso a adesão do condomínio no programa de coleta seletiva de resíduos
sólidos atingir 100% (cem por cento) das unidades condominiais, a Prefeitura concederá
desconto de 10% (dez por cento) na Contribuição de Iluminação Pública paga por cada
unidade participante do programa no exercício subseqüente.
Art. 7º - Caberá à Prefeitura o fornecimento dos coletores dos resíduos aos condomínios
participantes do programa.
Art. 8º - Para o cumprimento no disposto no artigo 1º, os condomínios deverão acondicionar,
SEPARADAMENTE, os seguintes resíduos produzidos em suas dependências:
144
I.
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Resíduos inorgânicos ou lixo Seco (Papel, papelão, plástico, metal, dentre outros,
exceto vidros que deverão ser acondicionados separadamente);
II.
Resíduos úmidos (restos de comida, cascas de alimentos, podas, lixo dos banheiros,
varrição da casa e da rua, dentre outros);
III.
Resíduos da Construção Civil.
Art. 9º - Fiscais da Prefeitura de Fortaleza visitarão os condomínios beneficiados por este
Decreto, assim como as associações de catadores ou sociedades de reciclagem envolvidas no
programa, para confirmação do funcionamento da coleta seletiva, competindo-lhes:
1.
Fiscalizar os condomínios participantes, através de relatórios técnicos semestrais
quanto ao cumprimento das exigências previstas, emitindo pareceres de manutenção ou
suspensão do referido desconto;
2.
Acompanhar, supervisionar e avaliar, através de relatórios semestrais de inspeção o
engajamento das associações e/ou cooperativas de catadores de lixo ou sociedades de
reciclagem participantes, emitindo parecer de manutenção ou suspensão da referida
associação, cooperativa ou sociedade no programa da coleta seletiva;
3.
Os relatórios e respectivos pareceres referidos nos itens anteriores deverão ser
enviados à SEMAM, a fim de que tome as providências cabíveis definidas em Portaria.
§ 1º - Caso não se comprove que o condomínio cumpre as exigências da coleta seletiva, a
Prefeitura cancelará o beneficio automaticamente.
§ 2º - Será excluída do programa a associação, cooperativa ou sociedade que não esteja
cumprindo os requisitos para participação .
§ 3º - Na hipótese do responsável pelo pagamento do IPTU desistir de efetuar a separação de
resíduos sólidos objeto deste Decreto, deverá apresentar pedido de cancelamento de
participação no programa de coleta seletiva junto à SEFIN, tendo o cancelamento imediato do
benefício.
145
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Art. 10 - Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em
contrário.
PAÇO DA PREFEITURA MUNICIPAL EM FORTALEZA, aos ___ de __________ de
_________ .
Luizianne de Oliveira Lins
PREFEITA DE FORTALEZA
146
PATRIMÔNIO NATURAL DA HUMANIDADE NO BRASIL
Elizabeth Alice Barbosa Silva de Araújo1
RESUMO: A preocupação com a preservação do meio-ambiente é tema de interesse para
todas as nações organizadas. Este trabalho pretende analisar os mecanismos internacionais de
proteção ao meio-ambiente enquanto métodos de fomento ao desenvolvimento sustentável,
notadamente a inscrição de bens naturais como patrimônio da humanidade pela Organização
das Nações Unidas para a Cultura, Ciência e Educação – UNESCO. Será analisado o impacto
deste atributo para o país de origem. Existe um confronto entre a importância e universalidade
de determinados sítios por seu significado para o meio-ambiente global e a questão da
territorialidade de cada Estado, fenômeno este que adere à pós-modernidade. A soberania, e
com esta os contornos dos países, vem se redesenhando ao longo da história da humanidade e
enfrentam hoje uma adaptação mais profunda com a era da globalização, primeiramente com
a globalização econômica, hoje também cultural e social. Como estudo de caso específico será
analisada a questão da Floresta Amazônica Brasileira, patrimônio natural da humanidade de
relevância inegável e centro do debate internacional sobre a liberdade de desenvolvimento e
exploração econômica da área florestal e de sua biodiversidade pelo Brasil frente ao impacto
ambiental produzido para todo o planeta.
PALAVRAS-CHAVE: PATRIMÔNIO NATURAL DA HUMANIDADE,
AMBIENTE, SOBERANIA NACIONAL, FLORESTA AMAZÔNICA.
MEIO-
ABSTRACT: The concern about preserving the environment is a topic of interest to all
organized nations. This paper will study the mechanisms of international protection to the
environment as methods of promoting sustainable development, notably the inclusion of
natural assets as a world heritage by the United Nations on Culture, Science and Education UNESCO. It will analyze the impact of this attribute to the country of origin. There is a
confrontation between the importance and universality of certain places by their significance
for the global environment and the question of territoriality of each state, a phenomenon that
adheres to post-modernity. The sovereignty, and with this the outlines of countries, has been
redesigned along the history and today is facing its most profound adaptation to the era of
globalization, first an economic globalization, nowadays also cultural and social. As a
specific case, study will analyse the issue of the Brazilian Amazon Forest, world heritage of
undeniable relevance and center of international debate about freedom of development and
economic exploration of the forest and its biodiversity by Brazil against the environmental
impact produced for all the planet.
KEY-WORDS: NATURAL HERITAGE OF HUMANITY, ENVIRONMENT, NATIONAL
SOVEREIGNTY, AMAZON FOREST.
1
Elizabeth Alice Barbosa Silva de Araujo é aluna do mestrado em Direito da Universidade Federal do Ceará e
Auditora Fiscal do Trabalho.
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
INTRODUÇÃO
A preservação de determinados espaços visando um meio ambiente equilibrado é de
fundamental importância para a sobrevivência da humanidade tal como a conhecemos. A
relevância do tema transcende fronteiras nacionais, ideológicas ou religiosas: é uma questão
de sobrevivência. Resta óbvio que a questão ambiental não se restringe ao problema de certas
regiões de forma pontual, o que se observa, entretanto, é que existem espaços ainda pouco
modificados pelo ser humano e que, estrategicamente, se tornam um manancial de esperança e
saúde para todos os povos. Ademais, tais espaços também assumem uma importância cultural
específica que se alia à questão ambiental.
A comunidade internacional passa então a se mobilizar através de entidades que
congregam diversos Estados como a ONU – Organização das Nações Unidas, ou outras de
caráter não-governamental. Estas instituições teriam como objetivo assegurar a preservação
destes espaços inestimáveis para todos os povos. Apesar de extremamente justos os
argumentos para uma convergência de esforços visando garantir o que denominamos
“patrimônio natural da humanidade”, também é conveniente que se observe a plêiade de
interesses envolvidos em todo o processo. Interesses econômicos, ecológicos e até de
expansão territorial permeiam a questão do patrimônio mundial.
Justifica-se a escolha do tema pela urgência em se estudar estes fenômenos oriundos
da globalização cultural, social e econômica da contemporaneidade e do próprio interesse
comum a todos os povos na viabilidade da vida na terra. Questiona-se se este não é o curso
natural da história: voltar à pangéia. Não mais aquele imenso bloco de terra emersa, mas uma
pangéia cultural e social, que tem como fundamento maior a questão ambiental, o sentimento
de que tudo está conectado, fazendo com que o conceito de soberania nacional tal como o
compreendemos hoje perca sua razão de existir a partir da frouxa delimitação territorial.
Considerando-se esta globalização como realidade inexorável e incontrolável, resta
realizar as adaptações necessárias para que não ocorra a exploração de grupos humanos
originários de regiões menos favorecidas, justamente estes detentores da maior parte dos
sítios naturais importantes, através da socialização de suas riquezas e seu território com
desprezo às suas necessidades de desenvolvimento econômico.
O objetivo deste trabalho é estudar o impacto das novas relações que se formam a
partir do interesse mundial na preservação dos bens naturais considerados patrimônio natural
148
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
da humanidade dentro do conceito de soberania nacional. Especial atenção será voltada a
questão dos bens naturais em países menos desenvolvidos.
A pesquisa será do tipo bibliográfico e documental. Apresentar-se-á os bens
considerados patrimônio natural da humanidade no Brasil. De forma especial, se observará a
profunda transformação da soberania no século XXI, onde a formação de grandes blocos
econômicos transnacionais evidencia a queda do mito da total independência política entre os
Estados, e demonstrar os pontos polêmicos no tocante à ajuda internacional para a
manutenção e preservação das riquezas naturais nos países periféricos. Por fim, apresentarse-á como estudo específico de caso a questão da Floresta Amazônica brasileira, sendo
apresentadas as propostas de adaptação da legislação brasileira parra a proteção de seu
território e soberania frente à voracidade de organismos internacionais e de outros Estados
sobre seu potencial econômico.
1 O CONCEITO DE PATRIMÔNIO NATURAL DA HUMANIDADE
A importância para as gerações presentes e futuras e características especiais de
biodiversidade, originalidade e estética elevam determinados bens a uma categoria
diferenciada. Estes bens, denominados de patrimônio natural da humanidade, são
merecedores de proteção especial, não apenas pelo ordenamento jurídico pátrio, mas também
pela comunidade internacional. Isto porque sua destruição ou deterioração enseja perdas
culturais, sociais e ecológicas que comprometem a todos, independentemente de
nacionalidade, religião ou ideologia.
Esta repercussão mundial reverbera na apreciação
jurídica destes bens, principalmente no que tange às relações internacionais, e na interferência
de instituições e mesmo de outros Estados na independência de gerenciamento dos Estados
soberanos sobre o mesmo.
Em busca de um conceito de patrimônio da humanidade chega-se necessariamente
aos organismos internacionais responsáveis pela catalogação destes bens. A Organização das
Nações Unidas – ONU possui como uma de suas agência especializadas a UNESCO - United
Nations Educational, Scientific and Cultural Organizacion ou Organização das Nações Unidas
para a Cultura, Ciência e educação. Esta detém personalidade jurídica própria e o objetivo de
contribuir para a paz mundial através da cultura, ciência e educação. Este órgão, com sede em
Paris, foi fundado em 16 de novembro de 1945, e hoje promove identificação e salvaguarda
do patrimônio mundial. Até março de 2010 a UNESCO contava com cento e noventa e três
Estados-membros tendo o último, Ilhas Faroé, ingressado em seus quadros em outubro de
149
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
2009. Este número comprova sua representatividade no contexto mundial.
O conceito de patrimônio da humanidade incorpora duas grandes classes de bens: os
culturais e os naturais. Os bens naturais independem do esforço humano para sua existência,
sendo inclusive a atuação do homem, por vezes nefasta para sua manutenção e
desenvolvimento. Ocorre, entretanto, que sua manutenção e preservação, devido exatamente a
interferências anteriores ou atuais realizadas pelos seres humanos, exigem que hoje sejam
adotadas medidas concretas que visem reverter ou, pelo menos, estagnar o avanço da
deterioração destes espaços. O patrimônio natural compreende então o meio ambiente e todas
as espécies animais e vegetais daquele sítio. Para Marcelo Abelha:
...Os componentes ambientais não existem apenas para servir ao homem. Pelo contrário, o
homem faz parte desta cadeia, mas, pelo seu papel central, tem o dever de proteger a
salubridade desses elementos que se integram e se interagem, justamente para assegurar a
manutenção do equilíbrio do ecossistema, até porque se assim não o fizer será diretamente
afetado por isso.2
Em busca de uma definição jurídica da expressão patrimônio observa-se sua
evolução desde o direito romano, onde o pater reunia seus bens em uma universalidade, daí a
expressão patrimônio para aquilo que estava sob o domínio do pater, nisto incluído seus bens
materiais e sua família. A etimologia da palavra une o grego e o latim, pater significando
chefe de família ou antepassados, em uma acepção mais ampla, e nomos, palavra originária do
grego, se refere aos usos e costumes relacionados à origem de uma família ou cidade,
relaciona-se então ao grupo social. O patrimônio, então, pode ser entendido como um legado
deixado de uma geração para outra3. Este conceito vem evoluindo e perpassando por
experiências agregadas, onde hodiernamente se dá maior destaque à função social da
propriedade, o que desvincula o bem de uma ligação exclusiva com determinada pessoa.
Fala-se então em patrimônio da humanidade, como aquele que não está mais sob o
âmbito de atuação de alguém que sobre este detenha poder, mas de todos os seres humanos,
segundo Luciano Lima “interessa para a definição jurídica de patrimônio visualizar-se a
noção de que este instituto jurídico, não possui uma definição estática, prestando-se, desta
forma, a ser moldado de acordo com cada contexto”4. Já se perdeu, portanto, o liame
2
RODRIGUES, Marcelo Abelha. Instituições de Direito Ambiental. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 59.
CARNEIRO.
Neri
P.
Memória
e
Patrimônio:
etimologia.
Disponível
em
<http://www.webartigos.com/articles/21288/1/MEMORIA-E-PATRIMONIO-ETIMOLOGIA/pagina1.html>
Acesso em 25 mai.2010.
4
RODRIGUES, Francisco Luciano Lima. Patrimônio Cultural: a propriedade dos bens culturais no Estado
3
150
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
individualista do instituto, devendo ser encarado dentro de novas premissas, diversas daquelas
referentes ao direito de propriedade clássico.
A definição de patrimônio universal da UNESCO está consolidada no que é mais um
importante elemento para a valorização dos direitos humanos: a Convenção sobre a proteção
do Patrimônio Mundial Cultural e Natural, aprovada em 1972. Nesta são definidos os
conceitos de patrimônio cultural e natural da humanidade, que juntos, constituem o
patrimônio universal. Em seu artigo segundo define o patrimônio natural.
ARTIGO 2
Para os fins da presente Convenção, são considerados “patrimônio natural”:
- os monumentos naturais constituídos por formações físicas e biológicas ou por conjuntos
de formações de valor universal excepcional do ponto de vista estético ou científico;
- as formações geológicas e fisiográficas, e as zonas estritamente delimitadas que
constituam habitat de espécies animais e vegetais ameaçadas de valor universal
excepcional do ponto de vista estético ou científico,
- os sítios naturais ou as áreas naturais estritamente delimitadas detentoras de valor
universal excepcional do ponto de vista da ciência, da conservação ou da beleza natural”5
O conceito, como se vê, é abrangente, desta forma há que se definir padrões para que
um determinado patrimônio tenha valor “universal”.
Para a UNESCO o que faz o conceito de patrimônio mundial excepcional é a sua
aplicação universal. Os locais considerados patrimônio universal pertencem a todas as pessoas
do mundo, independentemente do território onde estão localizadas. Uma vez identificados e
formalmente inscritos perante a própria UNESCO irão gerar impactos jurídicos e econômicos.
1.1 Critérios de Escolha
Para ser considerado patrimônio da humanidade, primeiro é preciso que o Estado
Membro em cujo território esteja aquele sítio o candidate para tal condição. Após a
apresentação este será submetido ao Comitê do Patrimônio Mundial (World Heritage
Committee), órgão que está encarregado da efetivação da Convenção.
Para a inclusão de um sítio na lista do Patrimônio natural este deve obedecer pelo
menos a um destes critérios: 1) conter fenômenos naturais excepcionais ou áreas de beleza
Democrático de Direito. Fortaleza: Universidade de Fortaleza, 2008, p.51.
5
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO CIÊNCIA E CULTURA – UNESCO.
Convenção para a proteção do Patrimônio mundial, cultural e natural de 23/11/1971. Site UNESCO World
Heritage Centre. Disponível em :< http://whc.unesco.org/archive/convention-pt.pdf>. Acesso em 23 mar.2010.
151
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
natural e estética de excepcional importância; 2) ser um exemplo excepcional representativo
de diferentes estágios da história da Terra, incluindo o registro da vida e dos processos
geológicos no desenvolvimento das formas terrestres ou de elementos geomórficos ou
fisiográficos importantes; 3) ser um exemplo excepcional que represente processos ecológicos
e biológicos significativos da evolução e do desenvolvimento de ecossistemas terrestres,
costeiros, marítimos ou aquáticos e comunidades de plantas ou animais; 4) conter os mais
importantes e significativos habitats naturais para a conservação in situ da diversidade
biológica, incluindo aqueles que contenham espécies ameaçadas que possuem um valor
universal excepcional do ponto de vista da ciência ou da conservação 6.
A geóloga Simone Scifoni ressalta a necessidade da escolha criteriosa e técnica para
o reconhecimento de um bem nesta situação, e evidencia que a inclusão na lista tem impacto
importante no desenvolvimento turístico da região, o Estado membro proponente, então, há
que demonstrar interesse e aptidão para a valorização e conservação deste patrimônio:
O reconhecimento de um bem e sua conseqüente inclusão na Lista do Patrimônio Mundial é
um procedimento complexo e rigoroso. Além de comprovar o valor universal e as
condições de integridade, o proponente deve apresentar um plano de gestão para a área e os
sítios devem contar, previamente, com uma proteção jurídica adequada em seu país de
origem. Tal pedido passa por várias instâncias até a deliberação final: o Centro do
Patrimônio Mundial verifica se a proposição está completa, o Icomos (Conselho
Internacional de Monumento e Sítios) e a UICN (União Internacional para a Conservação
da Natureza e de seus Recursos) avaliam tecnicamente o valor universal do bem, o
escritório do patrimônio mundial, estuda as opiniões dos pareceristas e, finalmente, o
Comitê do Patrimônio Mundial delibera pela inclusão ou não na Lista.7
A aprovação na lista traz vantagens para o Estado proponente, tanto do ponto de vista
turístico e de visibilidade mundial quanto o acesso a fundos especiais. Sendo o país
participante da UNESCO e possuindo sítios incluídos na lista de patrimônio da humanidade
poderá requerer, para manutenção e proteção destes bens, a assistência internacional através
do Fundo do Patrimônio Mundial (World Hritage Fund) que fornece cerca de quatro milhões
de dólares anualmente para apoiar tais ações. Este fundo é composto por contribuições dos
Estados-partes e de doações privadas. O Comitê do Patrimônio Mundial aloca fundos em
função da urgência dos pedidos, sendo dada prioridade aos locais mais ameaçados.
6
Disponível em < http://www.universia.com.br/especiais/patrimonios_historicos/convencao.htm >. Acesso em
22 mai.2010.
7
SCIFONI, Simone. A Unesco e os patrimônios da humanidade: valoração no contexto das relações
internacionais.
Disponível
em
<
http://www.anppas.org.br/encontro_anual/encontro2/GT/GT13/simone_scifoni.pdf >. Acesso em 22 mai.2020.
152
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
A Lista do Patrimônio Mundial comporta atualmente 162 (cento e sessenta e dois)
sítios considerados patrimônios natural e 24 (vinte e quatro) mistos, naturais e culturais. 8
1.2
Patrimônio Natural da Humanidade no Brasil
Os bens considerados patrimônio da humanidade estão protegidos pela
Convenção sobre a Proteção do Patrimônio Mundial Cultural e Natural, aprovada pela
Conferência Geral da UNESCO, em sua décima sétima reunião em Paris, em 16 de
novembro de 1972. O Brasil aderiu à Convenção através do decreto 80.978 de 12 de
dezembro de 1977 e atualmente possui 7 (sete) bens inscritos na Lista do Patrimônio
Mundial como patrimônio natural, são estes: Parque Nacional de Iguaçu (1986); Parque
Nacional da Serra da Capivara (1991); Mata Atlântica: Reservas do Sudeste e da Costa
do Descobrimento (1999); Complexo de conservação da Amazônia Central (1991); Área
de conservação do Pantanal (2000); Áreas protegidas do Cerrado: Chapada dos
Veadeiros e Parque Nacional das Emas (2001) e Ilhas Atlânticas Brasileiras: Reservas de
Fernando de Noronha e Atol das Rocas (2001).
Como estudo de caso específico, iremos nos ater neste trabalho ao complexo de
preservação da Amazônia Central. Este foi aprovado pela UNESCO em 02 de julho de
2003 e amplia a área do Parque Nacional do Jáu que havia sido inscrito no patrimônio
no ano 2000. A área do complexo compreende área próxima a Manaus e aos Rios Negro
e Solimões, englobando o Parque Nacional do Jáu, a estação ecológica de Anavilhanas, a
reserva de desenvolvimento sustentável de Amanão e parte da de Mamirauá. A área
total chega a seis milhões de hectares.9
2 UNIVERSALIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO NACIONAL
A emergência dos direitos humanos de terceira geração, dentre estes o direito a um
meio-ambiente equilibrado, cujos titulares não são individualizados, mas um grupo de pessoas
ou até a humanidade inteira, exigem uma abordagem diferente e das próprias limitações
territoriais de um país. A realidade mudou e o mundo chamado pós-moderno tem uma
tendência natural a não respeitar fronteiras nacionais e nem conceitos absolutos. A grande
evolução dos meios de comunicação de massa, a rede mundial de computadores (internet), o
fluxo rápido de informações, a relativa facilidade de viagens internacionais, toda esta
parafernália tecnológica e a própria consciência de que os fenômenos que interferem na
8
9
Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ue000114.pdf. Acesso em 23 abr 2010
Disponível em: http://www.socioambiental.org/nsa/detalhe?id=1108. Acesso em 23 de setembro de 2010.
153
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
ecologia reverberam por todo o planeta ocasionou a revisitação de conceitos num movimento
que se denomina pós-modernismo. Este modelo sistematizado pelo filósofo Jean-François
Lyotard se caracteriza pela troca das grandes verdades absolutas apregoadas primeiramente
pela Igreja e depois pela razão por pequenas verdades mutantes que geram um novo modo de
pensar. 10
Embora do ponto de vista formal a soberania esteja como base de todas as nações
politicamente organizadas é inegável a interferência de outros Estados na política econômica
e na dinâmica social destas nações. Isto se torna ainda mais evidente nos chamados países em
desenvolvimento ou periféricos11
Demonstra-se aqui a importância da abordagem sobre a questão da soberania
nacional em um estudo sobre o patrimônio da humanidade, principalmente no que tange ao
patrimônio natural. As reservas naturais, principalmente as dotadas de biodiversidade impar
são alvo de interesses que muitas vezes ultrapassam a questão da preservação para gerações
futuras, se imiscuem fatores econômicos, de reserva de mercado e mesmo de preponderância
política no cenário mundial. A própria questão da territorialidade pode ser afetada.
Em estudo realizado sobre a proteção ambiental da Amazônia e a soberania nacional
Juliana de Oliveira Jota Dantas sinaliza para a existência de duas correntes antagônicas. A
primeira alega a necessidade da nova conformação do princípio da soberania tendo em vista a
importância do bem jurídico tutelado, no caso específico o meio-ambiente natural, e a
urgência em medidas concretas para impedir os danos ambientais. A segunda corrente advoga
que estas medidas por vezes extrapolam a cooperação internacional, chegando a interferências
políticas por razões diversas da proteção ambiental, como interesses econômicos que visam
desqualificar o princípio da soberania nacional. 12
Paulo Bonavides entende ser a soberania das nações um óbice à soberania dos
mercados, razão pela qual correntes globalizadoras e neo-liberais objetivam retirá-la das
teorias de poder.
A base justificadora dessa pretensão aniquiladora daquele conceito consiste em apontar
uma realidade distinta, imposta por novos modelos associativos de mútua interdependência
estatal, os quais, para ganharem eficácia e prevalência na estrutura globalizadora, buscam a
todo transe remover e apagar e amortecer o conceito de soberania.
10
LYOTARD, Jean-François. The Postmodern Condition. Manchester: Manchester University Press, 1984.
Terminologia utilizadazpelo Presidente norte-americano Ronald Reagan na década de 1980, que se referia ao
novo arranjo político mundial, os países seriam classificados como centrais, periféricos e semi-periféricos ou em
desenvolvimento ou emergentes.
12
DANTAS, Juliana Oliveira Jota. A Soberania Nacional e a Proteção Ambiental Internacional. São Paulo:
Verbatim, 2009, p.12.
11
154
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
E tais diligências destrutivas da autodeterminação das Nações se fazem com muito
empenho, porque a soberania nacional é óbice á soberania dos mercados.
De titularidade internacionalizada e invisível, esta nova e dissimulada soberania de
mercados executa o projeto recolonizador das gigantescas associações de capital, que
ignoram por completo os direitos dos povos e das Nações periféricas a romper as cadeias
do subdesenvolvimento e espancar as trevas da noite em que a globalização os mergulhou.13
Immanuel Kant na obra A Paz Perpétua, publicada em 1795, traz a tona conceitos
atualmente debatidos. Para Kant um simples tratado não seria capaz de garantir a paz entre as
nações. Ele propõe a criação de uma “liga das Nações” que formasse um contrato entre os
Estados, embora não deva existir um ordenamento jurídico entre eles. A obra de Kant forma a
base para o que hoje vivenciamos com a formação dos blocos de integração regional, a
exemplo da União Européia. O objetivo primeiro, entretanto, foi o fortalecimento econômico
e não a busca pela paz proposta por Kant, embora esta decorra daquela. A tendência é o
surgimento de outros blocos de integração regional nos moldes da União Européia, sendo que
no Brasil vivencia-se a experiência do MERCOSUL – Mercado Comum do Sul. Além destes
blocos de integração se tem as organizações internacionais capitaneadas pela ONU cujo
objetivo é a manutenção da paz, a organização das relações de produção e comércio e a defesa
dos direitos humanos. Para Kant a paz perpétua repousa no campo do Direito, e para que esta
ocorra devem surgir processos de integração entre as nações e organizações internacionais que
promovam a paz entre os Estados. A sociedade deveria avançar para um Estado de civilização
que possibilitasse a interação entre os interesses dos povos. Os entes soberanos fariam uma
concessão de parcelas de sua autonomia dentro de um sistema de colaboração, inexistiria
subordinação entre os Estados, sendo utilizada somente a cooperação. Neste livro Kant vê um
direito cosmopolita em que o ser humano é cidadão do mundo 14
J.J.Gomes Canotilho comentando sobre o exercício em comum de alguns poderes
soberanos na construção da União Européia, afirma que a aceitação de Portugal a integra-se
numa comunidade supranacional resulta em duas conseqüências jurídico-constitucionais
relevantes, que serão a restrição sofrida pela soberania do poder político na âmbito de
validade da Constituição Portuguesa resultante da “partilha de poder” e a abertura de sua
ordem jurídica ao direito comunitário da integração européia que implica em uma aplicação
direta desta ordem em seu país.15
13
BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 7. Ed. Rev. Ampl. São Paulo: Malheiros, 2008,p.33.
KANT, Immanuel - A Paz Perpétua. Tradução: Marco A. Zingano. Porto Alegre: L&PM, 1989.
15
CANOTILHO, J.J.Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição.7.ed. Coimbra: Almedina,
2006,p.367.
14
155
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Gilberto Bercovici abre debate sobre o constante estado de crise do Estado com uma
pretensa superação da soberania, causadas por questões muito mais econômicas que políticas:
O processo de mundialização econômica está causando a redução dos espaços políticos,
substituindo a razão política pela técnica. Há um processo de tentativa de substituição dos
governos que exprimem a soberania popular pelas estruturas de governance, cujos
protagonistas são organismos nacionais e internacionais “neutros”(bancos, agencias
governamentais
“independentes”,
organizações
não-governamentais,
empresas
transnacionais, etc) e representantes de interesses econômicos e financeiros. A estrutura de
governance, portanto, é formada por atores técnicos-burocráticos sem responsabilidade
política e fora do controle democrático, cujo objetivo é excluir as decisões econômicas do
debate políticos.16
Embora seja forçoso admitir que a união das nações é fruto de interesses
econômicos, o discurso dos organismos internacionais tem como pauta a proteção dos direitos
humanos como bem jurídico considerado mais importante pela comunidade mundial. As
limitações a soberania tem se desenvolvido em nome da subordinação à ordem jurídica
internacional, com vistas a evitar danos para a dignidade da pessoa humana.
Na realidade, estes fenômenos globalizadores decorrem mais de elementos fáticos do
que jurídicos. Não são criação dos meios acadêmicos, embora por estes sejam analisados,
compilados e fundamentados, mas fruto de relações sociais que não podem mais ficar
adstritas a fronteiras nacionais. A ampliação cultural do mundo pós-moderno, a busca por
novos mercados e a consciência das próprias nações de que nem todos os problemas podem
ser internamente resolvidos, dentre os quais a questão do meio-ambiente, convergem para
soluções alternativas, como assevera o internacionalista Celso D. de Albuquerque Mello:
As organizações internacionais que se desenvolveram no século XX, visam exatamente
atender àquelas necessidades. A sociedade internacional dos nossos dias é completamente
diversa da do século anterior em virtude de um fator principal: os Estados compreendem
que existem certos problemas que não podem ser resolvidos por eles sem a colaboração dos
demais membros da sociedade internacional. As organizações internacionais são as
resultantes deste fator e é dentro delas que mais se sente a atuação das ideologias ou blocos
sócio-culturais nas soluções dos mais diferentes problemas. É a nossa época caracterizada
como a do associativismo internacional.17
No Ordenamento jurídico brasileiro a Soberania é um dos fundamentos da República
16
BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição: Para uma Crítica do Constitucionalismo. São Paulo:
Quartier Latin, 2008, p.334.
17
MELLO, Celso D.de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. Rio de Janeiro: Renovar, 2004,
p.53.
156
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Federativa do Brasil (art.1º CF/1988). O conceito desta soberania, no entanto, vem se
construindo e reinventando ao longo da história política mundial, pois reflete o ponto de vista
de uma determinada época. Pode-se dizer que hoje atravessa uma fase delicada. A formação
dos grandes blocos econômicos e o ambiente pós-moderno acarretam natural interferência da
comunidade internacional nos costumes, na economia, na vida social e cultural de todos os
países. Haveria então a necessidade de uma flexibilização da soberania, flexibilização esta
que trará importantes conseqüenciais, notadamente para os países periféricos.
3 FLEXIBILIZAÇÃO DA SOBERANIA E OS PERIGOS DA UNIVERSALIZAÇÃO
PARA PAÍSES DO 3º MUNDO
Em palestra proferida pelo Ministro da Educação Cristovão Buarque nos Estados
Unidos no ano de 2001, este foi indagado por jornalistas sobre a internacionalização da
Amazônia, o interlocutor solicitou que o Ministro respondesse como humanista e não como
brasileiro. Em discurso famoso e veiculado por jornais de todo o mundo Cristovão Buarque
declarou que seria possível visualizar a internacionalização da Amazônia pelo risco de sua
degradação ambiental, assim como das reservas de petróleo de mundo inteiro, por sua
importância para o bem estar e desenvolvimento da humanidade. Assim também deveriam ser
internacionalizadas as reservas financeiras mundiais, os principais museus, como o do
Louvre, as grandes e belas cidades como Paris, Nova Iorque e outras. Por fim, de maneira
ainda mais contundente, fala da necessidade de internacionalização das crianças de todo o
mundo, que não tem acesso a escola, alimentação e moradia dignas 18.
Em artigo veiculado em 1997 o jornalista Carlos Chagas chama a atenção para a
questão da internacionalização da Amazônia. Segundo o autor a cobiça internacional sobre a
região amazônica é antiga. Relata que o Capitão da Marinha dos Estados Unidos Mathew
Ferry, em memorando de 1817 intitulado “Desmobilization of the Colony of Brazil"
redesenhou o mapa da América do Sul de forma a criar um Estado Independente na região
amazônica. Relata ainda a intenção de Abraam Lincoln que em 1862 propôs a criação de um
Estado livre dos negros americanos localizado na Amazônia, sendo tal proposta rechaçada
18
Cristovam Buarque é engenheiro mecânico, formado pela Universidade Federal de Pernambuco, em 1966, e
doutor em Economia pela Sorbonne, Paris, em 1973. Entre 1973 e 1979, trabalhou no Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID), em Washington, e desde 1979 é professor da Universidade de Brasília, da qual foi reitor
de 1985 a 1989. Entre 1995 e 1998 governou o Distrito Federal e em 2002 elegeu-se senador pelo Distrito
Federal. Assumiu o Ministério da Educação (MEC) em janeiro de 2003 e permaneceu no cargo até janeiro de
2004. É membro do Instituto de Educação da Unesco. Íntegra da palestra
disponível em:
http://www.lerpensamentos.com/2006/04/discurso-em-2001-de-cristovam-buarque.html.
Acesso
em
14
mai.2010.
157
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
pelos próprios negros da América do Norte.19
Chagas ainda relata frases de diversos dirigentes internacionais sobre a questão
amazônica das quais destacamos: “Os países em desenvolvimento com imensas dívidas
externas devem pagá-las em terras, em riquezas: Vendam suas florestas tropicais” (George W
Bush - 2000); “O Brasil precisa aceitar uma soberania relativa sobre a Amazônia” (François
Mitterrand -1989); “O Brasil deve delegar parte de seus direitos sobre a Amazônia aos
organismos internacionais competentes” (Mikhail Gorbachev-1992).
Ocorreu pronunciamento sobre o tema por parte do Presidente da República
Brasileiro na abertura do 2º Encontro dos Povos das Florestas em 2007. Segundo reportagem
de Tânia Monteiro publicada no jornal “O Estado de São Paulo”, o presidente Luiz Inácio
Lula da Silva criticou os países desenvolvidos por destruírem suas próprias florestas e agora
pretenderem ditar regras de como preservar a Amazônia. "A Amazônia tem dono. Tem gente
que pensa que lá não mora ninguém. Lá moram 23 milhões. Aquilo não é terra de ninguém.
Nós queremos assumir a responsabilidade de fazer o que tem que ser feito: extrair riquezas,
cuidar da sustentabilidade", declarou o presidente ainda que "Tenho me recusado a aceitar
lições de qualquer governante de como o Brasil tem de preservar a sua floresta". Os dados
trazidos pelo presidente, segundo a reportagem, mencionam que o Brasil hoje possui 29,5%
das florestas do mundo, justamente porque os países desenvolvidos dizimaram suas matas.
20
Com base nestas declarações passamos a um estudo de caso específico de
“patrimônio da humanidade” e a delicada controvérsia relativa à soberania nacional.
4 CASO CONCRETO BRASILEIRO: A FLORESTA AMAZÔNICA
A importância ecológica da floresta amazônica para toda a humanidade é notória.
Sua flora abrange mais de 30 mil espécies e a fauna, ainda sequer foi detalhadamente
conhecida para que sejam fornecidos dados concretos21. Além disto, a bacia hidrográfica que
a permeia garante a sobrevivência das espécies e influencia no clima mundial.
Ocorre que reconhecer a importância de um determinado bem para a humanidade,
difere de deixar de considerá-lo também um patrimônio nacional importante para o
desenvolvimento social e econômico do Brasil.
Ao realizar-se retrospectiva histórica da posse brasileira sobre o território da
19
CHAGAS, Carlos. Querem Internacionalizar a Amazônia. Artigo publicado na Revista Manchete em 05 de
julho de 1997. Disponível em:< http://www.brasil.iwarp.com/chagas.htm>. Acesso em: 14 mai. 2010.
20
Disponível em <http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,,54496,0.htm>. Acesso em: 20 set.2010.
21
Dados disponíveis em:<http://www.aultimaarcadenoe.com/flamazonica.htm>. Acesso em 25 mai 2010.
158
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Amazônia o que se apresenta é o esforço dos portugueses, desde o final do século XVIII, para
atrelar este território ao Brasil. No reinado de Dom José I, iniciado em 1750, Sebastião José
de Carvalho e Melo, conhecido por Marquês de Pombal, foi responsável pela segurança
daquela área. Foi nomeado governador da Capitania do Grão Pará Mendonça Furtado que
desbravou aquelas terras e escreveu inúmeras cartas, sempre zeloso de manter a unidade da
região.22
É certo que os primeiros donos da Amazônia, dela foram usurpados pelos
portugueses. Ocorre que hoje, estes povos indígenas, embora conservem os traços culturais
por vezes apartados da realidade nacional, são cidadãos brasileiros. A política nacional de
assentamento dos povos indígenas, reconhecendo o pioneirismo destas comunidades e sua
posse milenar do território amazônico vem criando reservas para moradia e desenvolvimento
social e cultural destes povos. Aliás, a cultura indígena foi o que permitiu a conservação e
existência da floresta amazônica até nossos dias. Prova disto é que a Europa e Estados Unidos
da América, com cultura semelhante de acumulação de riquezas, dizimou quase
completamente suas reservas florestais.
Ao longo da história, desde aquela época, os olhos da comunidade mundial se
voltaram para a Amazônia, muitas vezes com cobiça. Durante o regime militar, 1964 em
diante, se adotou o slogan “integrar para não entregar”, numa referencia ao temor de se perder
a Amazônia para outros países. Como a região era pouco povoada, os presidentes da ditadura
militar adotaram uma série de medidas visando o povoamento da região. Uma destas grandes
obras foi a rodovia transamazônica, que atravessaria todo o norte do país numa extensão de
mais de cinco mil quilômetros. A grande rodovia nunca foi terminada, sendo que apenas cento
e setenta e cinco dos cinco mil quilômetros chegaram a ser asfaltados. Outro grande projeto
causado pela obsessão dos militares em perder a Amazônia foi a Zona Franca de Manaus,
criada em 1967, que trouxe um grande número de fábricas, principalmente de eletrônicos, o
que atraiu trabalhadores do país inteiro para a cidade de Manaus aumentando sua população
de trezentos mil habitantes de 1967 para hum milhão e oitocentos mil em 2005. 23
Não se pretende aqui negar as dificuldades existentes para se gerenciar área de terra
tão vasta e importante. Os próprios órgãos judiciais que possuem a competência legal para
proteger o direito difuso a um meio-ambiente equilibrado na região amazônica, como o
22
PAIM, Gilberto. Amazônia Ameaçada: Da Amazônia de Pombal à soberania sobre ameaça. 2.ed. Brasília:
Senado Federal, 2009, p.29.
23
TAMDJIAN, James Onnig e MENDES, Ivan Lazzari. Estudos de Geografia: o espaço geográfico do Brasil.
São Paulo: FTD, 2008, p.122-123
159
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Ministério Público, encontram dificuldades em sua atuação. Dentre estes problemas se
menciona a legislação profusa, prolixa e casuística, muitas vezes oriunda de instruções,
resoluções, regulamentos e portarias. Como segundo problema existe a falta de apoio técnico,
vez que a legislação ambiental é notadamente técnica e científica, e o Ministério público,
como órgão jurídico, carece de profissionais nestas áreas em que por vezes é necessária a
realização de exames laboratoriais, ou mesmo de um levantamento topográfico. Por fim se
observa a desarticulação dos órgãos ambientais como o próprio IBAMA – Instituto Brasileiro
de Recursos Naturais Renováveis e Meio Ambiente - que não informa ao Ministério Público
as infrações administrativas que possuem repercussão na esfera penal para que possa ocorrer
uma ação conjunta e eficaz para os dois órgãos.24
Hoje, o Brasil procura encontrar o ponto de equilíbrio em que se aproveitem os
recursos econômicos da floresta garantindo a sua preservação. A ajuda internacional, embora
importante, deve ser pautada pelo respeito às decisões desta nação dentro do conceito de
desenvolvimento sustentável conforme exposto nos itens a seguir.
4.1 Propostas de adaptação legal para resguardar a soberania nacional
A lei 5.709/71, nascida em plena ditadura militar no governo Médici, evidencia a
preocupação dos governos militares com a questão da soberania nacional e da proteção da
Amazônia. Como demonstrado acima, a comunidade internacional há muito se interessa pela
região. O fenômeno da globalização acelerou ainda mais este processo.
O aumento da venda de terras para estrangeiros na região e mesmo a grande
circulação de não brasileiros em comunidades amazônicas leva a propostas de mudança na
legislação ora vigente. Hoje existem dois projetos de lei para modificá-la, visando maior
controle brasileiro sobre os investimentos de não nacionais na região. O controle sobre o
mercado imobiliário rural tem perspectiva de se tornar ainda mais rígido.
O primeiro é o Projeto de Lei do Senado de número 126/2009 que determina que
estrangeiros não poderão ser proprietários de terras rurais que ultrapassem um décimo da área
do município onde estão localizadas, a lei vigente limita a 25% desta área. Outro ponto
relevante do projeto é o que pretende democratizar a autorização para vendas acima deste
limite legal, que hoje fica a cargo do Presidente da República,
e que passará a ser
responsabilidade também do Congresso Nacional. Abaixo estão transcritos os pontos mais
24
VALENTE, Luiz Ismaelino. Atuação do Ministério Público em Defesa do Meio Ambiente na Amazônia, in
Amazônia perante o Direito: Problemas Ambientais e Trabalhistas. Org: Robeto A.O. Santos e Wolf Paul.
Belém: UFPa, 1995, p. 226.
160
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
relevantes para o debate do referido projeto.
A lei 5.709/71 em seu artigo 12 assim dispunha:
Art. 12 - A soma das áreas rurais pertencentes a pessoas estrangeiras, físicas ou jurídicas,
não poderá ultrapassar a um quarto da superfície dos Municípios onde se situem,
comprovada por certidão do Registro de Imóveis, com base no livro auxiliar de que trata o
art. 10.
§ 1º - As pessoas da mesma nacionalidade não poderão ser proprietárias, em cada
Município, de mais de 40% (quarenta por cento) do limite fixado neste artigo.
§ 2º - Ficam excluídas das restrições deste artigo as aquisições de áreas rurais:
I - inferiores a 3 (três) módulos;
II - que tiverem sido objeto de compra e venda, de promessa de compra e venda, de cessão
ou de promessa de cessão, mediante escritura pública ou instrumento particular
devidamente protocolado no Registro competente, e que tiverem sido cadastradas no
INCRA em nome do promitente comprador, antes de 10 de março de 1969;
III - quando o adquirente tiver filho brasileiro ou for casado com pessoa brasileira sob o
regime de comunhão de bens.
§ 3º - O Presidente da República poderá, mediante decreto, autorizar a aquisição além dos
limites fixados neste artigo, quando se tratar de imóvel rural vinculado a projetos julgados
prioritários em face dos planos de desenvolvimento do País.
Segundo o Projeto de Lei 126/2009, o limite para a Amazônia Lega passa a ser de um
décimo da superfície para as pessoas de mesma nacionalidade, bem como fica clara a
competência do Congresso Nacional para autorizar aquisições acima do limite fixado.
Art. 12. ......................................................................................
§ 1º As pessoas de mesma nacionalidade não poderão ser proprietárias de áreas rurais que,
somadas, ultrapassem um décimo da superfície dos municípios onde estão situadas,
devendo a comprovação ser feita na forma do caput deste artigo.
§ 2º Na Amazônia Legal, o limite de que trata o caput deste artigo reduz-se para um décimo
da superfície dos municípios.
§ 3º Ficam excluídas da restrição deste artigo as aquisições de áreas rurais:
I – inferiores a três módulos;
II – que tiverem sido objeto de compra e venda, de promessa de compra e venda, de cessão
ou de promessa de cessão, mediante escritura pública ou instrumento particular
devidamente protocolado no cartório de registro competente, e que tiverem sido cadastradas
no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) em nome do promitente
comprador, antes de 10 de março de 1969;
III – quando o adquirente tiver filho brasileiro ou for casado com pessoa brasileira sob o
regime de comunhão de bens.
§ 4º Compete ao Congresso Nacional autorizar à pessoa física estrangeira a aquisição além
dos limites de área fixados neste artigo, bem como à pessoa jurídica estrangeira a aquisição
de área superior a cem módulos de exploração indefinida. (NR)”
Outro projeto em tramitação é o de número 302/2009 com origem na Cãmara dos
161
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Deputados também restringe o acesso de estrangeiros às terras da Amazônia. Neste caso a
propriedade de imóveis por estrangeiros iria se restringir a quinze módulos fiscais, estes
módulos são definidos conforme legislação específica do INCRA- Instituto Nacional de
Colonização e Reforma agrária. A exceção à regra irá depender de laudo emitido pelo INCRA
e com a manifestação do Conselho de Defesa Nacional.
Resta o questionamento a ser feito sobre a efetividade destas mudanças na legislação,
como bem demonstrado anteriormente, a soberania de decisões de um Estado está em cheque
na pós-modernidade. Estas mudanças talvez estanquem provisoriamente a quantidade de
estrangeiros que circulam e exploram economicamente a região amazônica, mas dificilmente
terão a capacidade de deter a influência destes na população local e mesmo suas atividades
coordenadas através de diversas organizações não governamentais. Os envolvimentos de
ordem econômica, social e cultural são maiores do que meros títulos de terra, até porque a
propriedade do ponto de vista meramente formal não impede a real exploração dos recursos
naturais.
4.2 A questão da Amazônia na legislação internacional
Os países, como o Brasil, que possuem reservas naturais proeminentes debatem o seu
direito ao desenvolvimento e ao aproveitamento de seus recursos. Ao passo que a comunidade
internacional urge a necessidade de preservação para a garantia de toda a humanidade. Tais
questões ficam então vinculadas ao direito internacional. Este repousa suas bases na garantia
de coexistência entre os estados, na possibilidade de cooperação entre estes, no voluntarismo
e na preservação da soberania nacional.
Os dois grandes encontros mundiais que debateram as questões da ecologia e
preservação do meio ambiente aconteceram em 1972 e 1990, respectivamente em Estocolmo
e no Rio de Janeiro.
Já na preparação da Convenção de Estocolmo os países periféricos temiam uma
política preservacionista que interferisse no seu aproveitamento dos recursos naturais,
trazendo altos encargos para se igualar aos desenvolvidos em matéria de concretizar normas
de preservação. Por isto a sua resistência em uma política ambiental internacionalizada.
Nestes países a qualidade ambiental depende de seu desenvolvimento econômico, pois
proporcionando melhores condições de vida para a população as questões ambientais seriam
tratadas dentro de um processo de desenvolvimento mais abrangente.25
25
DANTAS, Juliana de Oliveira Jota, op. cit., p.47.
162
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Como resultado dos apelos dos países periféricos a Declaração das Nações Unidas
sobre o Meio ambiente, definiu um plano de ação que reconhece “as diferenças dos problemas
ambientais entre as Nações, distinguindo-se as carências dos países desenvolvidos daquelas
dos países em desenvolvimento”.26 Ficou estabelecido no princípio 21 da Declaração de
Estocolmo que “Os Estados tem o direito soberano de explorar seus próprios recursos, de
acordo com sua política ambiental, desde que essas atividades não prejudiquem o meioambiente de outros Estados ou de zonas fora da jurisdição nacional”. Esta declaração foi base
para a redação do artigo 225 da Constituição da República de 1988, segundo o qual “todos
tem o direito a um meio-ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e
essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de
defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.27
A conferencia de 1992, ocorrida no Rio de Janeiro trouxe enfoque ainda mais voltado
para o meio-ambiente e o desenvolvimento econômico e social, buscando a erradicação da
pobreza.28. Esta Conferencia das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento
tratou da proteção da atmosfera, água doce, recursos marinhos, solo, conservação da
biodiversidade, com também, erradicação da pobreza, qualidade de vida e proteção da saúde.
O desafio era nortear o desenvolvimento econômico e social em respeito ao meio-ambiente. A
comunidade mundial, então, procurou enfrentar a questão ambiental frente aos problemas
sócio-econômicos.29 A declaração elaborada no Rio de Janeiro em 1992 manteve a linha da
Declaração de Estocolmo quanto à questão da soberania frente ao desenvolvimento
econômico e preservação ambiental:
Princípio 2. Os Estados, em conformidade com a Carta das Nações Unidas e os princípios
do Direito Internacional, tem o direito soberano de explorar seus recursos de acordo com
suas próprias políticas ambientais e desenvolvimentistas, e a responsabilidade de assegurar
que as atividades sob sua jurisdição ou controle não causem dano ao meio ambiente de
outros estados ou de áreas além dos limites da jurisdição nacional.
Princípio 3.O direito ao desenvolvimento deve ser exercido de tal forma que responda
eqüitativamente às necessidades de desenvolvimento e ambientais das gerações presentes e
futuras30
26
Ibdem, p.48.
MILARÉ. Edis. Direito do Ambiente. 3.ed.rev.atual.amp. São Paulo:Revista dos Tribunais, 2004, p.915.
28
DANTAS, Juliana de Oliveira Jota, op. cit., p.49.
29
MILARÉ. Edis, op.cit.,p.932.
30
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO CIÊNCIA E CULTURA – UNESCO.
Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Jun. 1992. Disponível em: <
http://www.mma.gov.br/sitio/index.php?ido=conteudo.monta&idEstrutura=18&idConteudo=576> Acesso em 15
mai.2010.
27
163
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Tanto no encontro de 1972 em Estocolmo quando ainda de maneira mais pungente
no Rio de Janeiro em 1992 se observou a preocupação quanto à questão do desenvolvimento
econômico e do aproveitamento dos recursos naturais como forma de diminuir desigualdades
sociais e regionais. No caso da floresta amazônica sabe-se que os valores de ganho econômico
são incalculáveis, tanto na questão de pesquisas em medicamentos, cosméticos e outros
produtos quanto no aproveitamento na agricultura e extrativismo.
Como resultado dos intensos debates se adotou o conceito de desenvolvimento
sustentável. Este conceito primeiramente presente no denominado Relatório Brundtland de
1987, publicado pela
World Commission on Environment and Development diz que
sustentável é o “desenvolvimento que satisfaz as necessidades do presente, sem comprometer
a capacidade das gerações vindouras satisfazerem as suas próprias necessidades". 31 Na Rio-92
esta expressão foi oficializada como forma de reverter a degradação ambiental “mediante a
consideração da variável ambiental nos processos de elaboração e implementação de políticas
públicas e da adoção, em todos os setores, de medidas tendentes a garantir a compatibilização
do processo de desenvolvimento com a preservação ambiental”. 32
Realmente, com os problemas enfrentados pelo Brasil, tornar a floresta Amazônica
“intocável” seria uma grande utopia. Haveria ainda a desproporção entre países que se
desenvolveram a custa de uma industrialização que destruiu suas riquezas naturais ambientais,
mas que alçou seus cidadãos a uma qualidade de vida e de acesso a bens de consumo
inalcançáveis para grande parte da população brasileira. Por outro lado, a preservação
ambiental é também interesse da nação brasileira e resta positivada na Constituição da
República.
Concluindo o estudo de caso, se percebe no cenário político mundial a aposta no
desenvolvimento sustentável e na cooperação internacional como formas de sopesar o
desenvolvimento econômico com a preservação da floresta Amazônica, bem como de outros
bens considerados patrimônio natural da humanidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Existem bens cuja importância transcende qualquer nacionalismo, e até mesmo
outras questões de cunho ideológico. Embora se saiba que a inscrição oficial de um bem como
31
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS – ONU. Relatório da Comissão Bruntland:.Nosso Futuro
Comum. Aprovado pela assembléia geral através da Resolução 42/1987. Disponível em
http://www.mma.gov.br/sitio/index.php?ido=conteudo.monta&idEstrutura=18&idConteudo=501> Acesso em 15
mai.2010.
32
MILARÉ. Edis, op.cit.,p.932.
164
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
patrimônio da humanidade seja conseqüência de uma série de escolhas que perpassam
dimensões técnicas e políticas, não se deixa de reconhecer que aqueles elencados possuem
valor inestimável para todos os povos.
Do ponto de vista da ciência jurídica, vem a relevo a questão da soberania, ou da
flexibilização do conceito de soberania nacional, quando se permite a ingerência internacional
sobre o patrimônio localizado no território de um país. É a outra face das facilidades de acesso
a crédito internacional para o investimento em manutenção de um bem e o estímulo à
indústria do turismo. Nasce o receio de que a ajuda de hoje se transforme em interferência de
organismos internacionais e mesmo de outros Estados nas decisões sobre como se deve
gerenciar riquezas naturais de um país.
Considerar o perigo inexistente é o mesmo que fechar os olhos para toda a gama de
interesses econômicos e políticos que norteiam, de fato, as relações internacionais. Maior
prova disto é que os blocos transnacionais que ora se formam são fruto da necessidade de
intensificação das relações comerciais e da disputa de novos mercados.
Por outro lado, a força desta tendência de unificação, além de econômica, também é
cultural e social. Decorre do pós-modernismo, da evolução da tecnologia da informação, e de
tantos outros fenômenos que suprimem limites. O ser humano se torna cosmopolita, ele
próprio não aceita enclausurar-se em seu país e em sua cultura. Daí porque as iniciativas de
modificação na legislação brasileira visando estancar a presença de estrangeiros na Amazônia,
pelo menos na condição de proprietários de vastas extensões de terra, talvez não cheguem ao
objetivo almejado de proteção do patrimônio natural nacional frente à influência de outros
países e culturas.
Esta internacionalização aos poucos acarreta a quebra do conceito de soberania
externa e é um movimento que dificilmente será estancado. De forma que, num futuro talvez
não tão distante, deixe de existir esta estrutura baseada em estados soberanos. Retorna-se
então à pangéia, desta vez social, econômica e cultural.
Sendo o fenômeno da globalização é inexorável e natural, resta realizar adaptações
durante o seu processo, para que não seja também opressor para os países menos
desenvolvidos e seus cidadãos, retirando-lhes a oportunidade de desenvolvimento, e
acentuando as desigualdades já existentes. Estas adaptações seriam muito mais afetas à
relações de produção e consumo de forma sustentável do que mesmo a proposições
legislativas, como as trazidas a cotejo neste artigo.
165
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
No estudo de caso escolhido, a floresta amazônica brasileira, se observa que a
legislação internacional que normatiza o aproveitamento das reservas naturais tem base no
conceito de desenvolvimento sustentável. Ou seja, a maneira com que hoje se desenha o
cenário internacional ainda respeita as decisões tomadas pelo Estado membro detentor
daquele bem. Os recursos naturais poderão ser aproveitados para fins econômicos desde que
este desenvolvimento se dê de forma a permitir às gerações vindouras a preservação das
riquezas naturais e culturais ainda existentes.
Por fim, depreende-se que o a conformação mundial tende a modificação. Porém,
durante este processo de adaptação, deve-se criar mecanismos que permitam aos povos e
regiões menos favorecidas oportunidade de desenvolvimento sustentável compatível com a
dignidade humana e com a preservação e promoção do meio-ambiente natural, garantindo a
diminuição das desigualdades.
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167
CIBERESPAÇO E PROPRIEDADE INTELECTUAL: COMO PROMOVER UM
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL DA INFORMAÇÃO?
Eulália Emilia Pinho Camurça 1
RESUMO: O espaço virtual mudou a forma de se comunicar no mundo e conseqüentemente
trouxe uma série de desafios jurídicos até porque o chamado “ciberespaço” é cheio de
indeterminações. As experiências sobre as coisas misturam-se a imagens e a um emaranhado
de fios e vivências em um instante. Será possível controlá-las, dominá-las, ordená-las? Alguns
países tentam impor limites, mas será possível uma manipulação local numa conexão
mundial? Além do controle de informações, há o paradoxo entre a liberdade de expressão, o
direito à informação, e o direito autoral. Como resolver esta questão num ambiente em que a
troca de dados é intermitente? É possível ter um espaço virtual sustentável ante a este
paradoxo? São questões como estas que pautam este artigo.
PALAVRAS-CHAVE: Propriedade intelectual. Direito à informação. Ciberespaço.
Sutentabilidade.
ABSTRACT: The virtual space has changed the way people communicate around the world
and consequently brought a series of legal challenges specially because the so-called because
"cyberspace" is full of indeterminacies. The experiences of things mix images, to a tangling
of wires and experiences in an instant. Is it possible to control them, rank them? Some
countries try to impose limits, but can you manipulate a local connection in the world?
Beyond the control of information, there is the paradox between freedom of expression, the
right to information and copyright. How to solve this issue in an environment where data
exchange is intermittent? Can you have a sustainable virtual space in the face of this paradox?
These are questions that have guided this article.
KEY-WORDS: Intellectual Property. Right to information. Cyberspace. Sustentabily.
1 INTRODUÇÃO
A sociedade da informação convive num mundo virtual em que um turbilhão de idéias,
pessoas e paixões se encontram. O fluxo da comunicação pela internet consiste em mensagens
e contextos compartilhados, reconstruções constantes. A partir dela é possível o acesso às
mais distintas produções sejam elas em forma de texto ou imagem. Por isto há uma série de
iniciativas que tem como objetivo dar limites para o uso de bens intelectuais por terceiros. A
1
Jornalista, advogada e mestranda em Direito pela Universidade Federal do Ceará.
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
questão é: qual o lugar da propriedade intelectual no mundo virtual?
Isto porque com apenas um toque é possível ter um acesso quase irrestrito de conteúdos
que podem ser baixados para o computador, sejam eles programas, livros, filmes, músicas.
Sem a permissão do autor, o que se tornou hábito pode virar crime. Além do crime, há um
outro problema a ser resolvido: como tornar o grande volume de informações sustentáveis? A
quantidade de lixo virtual criado pela rede de computadores pode causar um sério problema
ambiental neste mundo projetado? Quais leis locais podem ser devem ser aplicadas na esfera
mundial?
Os ambientes são sempre transitórios. Os sentidos construídos fazem com que a cada
instante, uma nova interpretação modifique poucos instantes em que foi emitida. Não só as
mensagens como também seus significados acabam por serem alteradas ao deslocarem-se de
um autor a outro na rede, e de um momento a outro processo de comunicação. Para Lévy
(1997), há uma constante mudança no ambiente de interpretação coletiva.
Os itens de comunicação não são ligados linearmente, como em uma corda com
nós, mas cada um deles, ou na maioria, estende suas conexões em estrela, de modo
reticular. Navegar em um hipertexto significa portanto desenhar um percurso de
uma rede que pode ser tão complicada como possível. Porque cada nó pode, por
sua vez, conter uma rede inteira. (LÉVY, 1997, p.33).
Nesta lógica comunicacional, a velocidade é quase incontrolável. O impacto de um
clique sobre um botão pode levar menos de um segundo, mas pode causar diferentes reações
em todo o mundo. O instantâneo faz com que a não-linearidade crie um novo sistema de
escrita e uma nova modalidade de leitura, chamada navegação. Muita coisa mudou desde que
foi criado o primeiro computador, o Eniac, nos anos 40, que pesava toneladas e ocupada um
lugar interno de um prédio. Na década de setenta, jovens californianos criaram o computador
pessoal. Teriam eles a idéia de onde se chegaria com aquelas máquinas?
O problema não é a técnica em mas o uso que fazemos dela. Sejam consideradas como
naturais ou como frutos da atividade humana, as mensagens, as idéias e os fatos, ao passarem
de um ator para outro, transformam-se alternativamente em fins e meios, elementos objetivos
da situação ou dispositivos a serem transformados ou substituídos. As coisas, todas as coisas,
seguindo o espectro completo de suas significações e de seus efeitos, mediatizam desta forma
as relações humanas. Eis porque, para Lévi, a atividade técnica é política, ou antes,
cosmopolítica.
Uma comunidade virtual pode se organizar por intermédio dos mais variados sistemas
169
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
de comunicação, repleta de paixões, projetos e conflitos. A virtualização subverte as
narrativas clássicas, as unidades de tempo e de lugar não existem mais. Para Lévy (1997), a
sincronização substitui a unidade de lugar e interconexão a unidade de tempo. Além destas
mudanças existe a desterritorialização, passagens do interior ao exterior e vice-versa, num
átimo:
Os limites não são mais dados. Os lugares e os tempos se misturam, As fronteiras
nítidas dão lugar a uma fractalização das repartições. São as próprias noções de
privado e público que são questionadas... As coisas só têm limites claros no real. A
virtualização, passagem à problemática, deslocamento do ser para a questão, é algo
que necessariamente põe em causa a identidade clássica, o pensamento apoiado por
definições, determinações, exclusões, inclusões e terceiros excluídos (LEVY, 1997,
p. 25).
Ainda existe a figura do hipertexto que hierarquiza e seleciona áreas de sentido, tece
ligações entre essas zonas, conecta um texto a outros documentos e elementos. No contexto
contemporâneo, que é alimentado pelas informações on line correndo por redes e
mergulhando no ciberespaço, o texto dinâmico se reconstitui numa escala superior. Há ainda o
outro elemento, a interface, um dispositivo que garante a comunicação entre dois sistemas
informáticos distintos ou um sistema informático e uma rede de comunicação.
Até mesmo o ato de leitura atualiza as significações de um texto, de uma informação,
que já não se comporta como uma parte eliminável de criação. Desta forma os receptores da
informação não apenas modificam as ligações mas acrescentam e modificam os nós, os
textos, as imagens, e conectam um hiperdocumento e traçam relações hipertextuais.
No ciberespaço, qualquer ponto é acessável a partir de qualquer outro. A partir de home
pages e dos documentos on line, pode-se seguir, como afirma Lévy (1997), os fios de muitos
objetos subjetivos. Para ele, no mundo digital, a distinção entre o original e a cópia perdeu
qualquer pertinência. O ciberespaço mistura
as noções de unidade, identidade e de
localização. Assim, surge um fluxo vetorizado, metamórfico de informação.
É como se a digitalização formasse um plano semântico em que todos possam produzir,
retomar, modificar, dobrar diversamente, dobrar de novo... Assim, o consumo da informação
não se torna destrutivo nem sua posse exclusiva.
Neste contexto de criação quase
intermitente, qual o lugar da propriedade intelectual? Na era do planeta unificado, dos
conflitos mundializados, do tempo acelerado, das informações desdobradas, é preciso
repensar os objetivos da propriedade intelectual.
No ciberespaço há lugar para a exclusividade da criação? Os interesses não só dos
170
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
criadores, mas também dos investidores e usuários apontam para uma série de contradições.
Fica o desafio para que a propriedade intelectual enquanto ciência jurídica, equilibre soluções
para atender aos mais diversos atores. É possível manter o fundamento da propriedade
baseada nos direitos naturais, nos direitos concorrências e comerciais apenas? Como
balancear tantos interesses? O desafio que se coloca é harmonizar a eficiência econômica com
a função social da propriedade intelectual, principalmente quando se tem em vista o direito à
informação, que é tido como um direito humano.
2 MUNDOS VIRTUAIS COMPARTILHADOS
Hoje se torna difícil dissociar as metáforas do sentido. Para Lévy (1997), nenhum tipo
de conhecimento é independente do uso de tecnologias intelectuais. Então, quando se torna
crime fazer um download, quando o criador intelectual tem seu direito ameaçado diante da
liberdade de informação dos usuários da internet? Há de se ressaltar a atuação dos piratas, os
quais, com pleno conhecimento da ilegalidade que cometem, se dedicam à reprodução e
distribuição de produtos intelectuais.
Porém no meio de toda essa compartimentação existe a chamada propriedade intelectual
que protege as criações intelectuais. Dentro da abrangência do instituto na esfera internacional
existe o TRIPs, “Trade Related Intellectual Property Rights” em vigor desde 1994 no Brasil.
Nele, se incluem no gênero da propriedade intelectual não só obras literárias e artísticas, mas as
intervenções em todos os domínios da atividade humana. A propriedade intelectual, portanto,
aglutina tanto a proteção da propriedade industrial, quanto as propriedades literárias, artísticas,
além de algumas outras proteções específicas.
Para Barbosa (2009), a informação não pode ser considerada um bem público sob o prisma
econômico pelo fato de ser consumida por várias pessoas ao mesmo tempo sem atenuação de suas
características. Consolidando o objeto de proteção da propriedade intelectual como „bem
intelectual‟, convém apontar que este bem pouco ou quase nada se diferencia do conceito de
informação:
A falta de consenso terminológico, a possibilidade de aprofundar aspectos
adicionais às teorias ligadas ao direito de informação dificultam a dificuldade de
tratar a propriedade intelectual como informação. Ademais, tratar propriedade
intelectual como informação não é inovação, e, ainda que sob o enfoque mais
limitado da transferência de tecnologia, seja, mais recentemente, englobando a
propriedade dos bens pessoais. ( BARBOSA, 2009, p.33)
O mercado de informações, como afirma Rachel Sztajn (1998), exige o reconhecimento da
propriedade para a troca. Para ela, a relação entre propriedade privada e o mercado em um pólo e
171
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
a disponibilidade a riqueza no processo de produção da riqueza destinada ao mercado de outro
demonstram que este só existe quando se reconhece a propriedade privada.
Estas polaridades começaram de forma rudimentar ainda na antiguidade, quando a
transmissão de informações privilegiadas não implicavam na existência de um sistema jurídico
que as protegesse. Muitas eram limitadas a guerreiros ou sacerdotes e os mecanismos de proteção
eram totalmente limitados. No período mercantilista, quando as descobertas científicas aceleraram
a necessidade de proteção ao conhecimento, as informações passam do criador para o Estado, que
deveria oferecer proteção e desenvolvimento de empreendimentos.
O período industrial centralizou o conhecimento científico nas universidades européias.
Neste período que os institutos do direito autoral e das marcas atingem maturidade. “O autor
passa a ter mais interesse e possibilidade de maior controle na exploração de sua obra, assim
como o empresário consegue comprovar a necessidade de proteção de seus sinais distintivos. O
indivíduo consegue, por si, um controle maior sobre suas criações e investimentos”, ( BARBOSA,
2009, p.31).
Já no mundo globalizado, onde não há mais territórios nas relações sociais, faz surgir a
necessidade de os Estados promoverem o mercado de produtos e criações industriais de suas
empresas. Torna-se preciso harmonizar a legislação da propriedade intelectual, seja através do
estabelecimento de parâmetros mínimos de proteção, seja pelo intermédio de proteções diretas aos
institutos de tutela à propriedade intelectual.
No âmbito internacional, surgiram as manifestações que fundamentaram o desenvolvimento
da complexa rede de tratados internacionais: a Convenção da União de Paris para a Proteção da
Propriedade Industrial, depois a Convenção de Berna, para as criações literárias, que incentivou a
criação da Convenção Universal dos Direitos Autorais. O então sistema de propriedade criado
para sustentar a indústria começou a inovar diante das demandas tecnológicas. Passa-se a ter um
novo paradigma voltado para a tecnologia e não mais para a produção.
Assim, diante da internacionalização da propriedade intelectual, acontece o fenômeno da
“desterritorialização”, a partir dos novos meios de comunicação, especificamente, a Internet,
como afirma Octavio (1999). A partir da rede mundial, os indivíduos separados geograficamente
podem ser unificar a partir de informações, independente da matizes que causam a união e o
interesse entre eles.
O período globalizado demanda um regime jurídico de proteção à propriedade
intelectual que viabilize produtos de informação nos quais a materialização é
basicamente presumida, e a matéria prima deixa de ser concreta, e a própria
comercialização, em todas as suas etapas passa a ser virtual. (BARBOSA, 2009,
p.38)
172
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
O elemento essencial da proteção é a patentiabilidade que protege as invenções, a
novidade, a informação com características estéticas é protegida pelo direito autoral. Sob o
ponto de vista social, para o autor, pode-se argumentar que a informação não protegida é um
benefício já que pode não representar custo adicional a terceiros, porém sob o ponto de vista
econômico pode representar um freio à inovação.
São várias conseqüências de adotar a informação como fundamento da propriedade
intelectual. Enquanto assistência jurídica dada aos produtos da capacidade inventiva, a
propriedade intelectual consiste na assistência jurídica dada aos produtos criados pelos seres
humanos. Ao mesmo tempo em que o autor tem direito a proteger sua obra requer que este
receba remuneração pelas suas criações e impede que sejam feitas cópias ilegais de conteúdo
produzido por ele.
A legislação busca não só oferecer proteção à propriedade intelectual mas também dar
acesso ao público às criações. Até porque existe uma função social da criação. O Código
Penal Brasileiro não só prevê penas de detenção e reclusão como multa para quem reproduzir
obra intelectual sem autorização com intuito de lucro direito ou indireto.
É prevista ainda violação a partir de oferecimento ao público mediante cabo, fibra ótica
ou qualquer sistema que possa recebê-la em um tempo ou lugar previamente determinados
sem autorização expressa do artista, do intérprete ou executante, produtor ou quem os
represente.
A questão da proteção à propriedade intelectual transformou-se num paradoxo entre a
legislação e a tecnologia. À medida que os programas ampliam as facilidades de fazer cópias,
a legislação é alterada para levar em conta a nova realidade tecnológica. Quanto à segunda
dificuldade, a lei define exceções e restrições à aplicação do ``copyright'' procurando manter
um equilíbrio entre os interesses do autor, ou do seu representante, e da sociedade. Para
Simon (2004), estas limitações têm a finalidade de preservar a função social da cópia e de
garantir a disseminação da produção intelectual em situações em que o valor econômico
imediato em jogo é relativamente pequeno.
O autor afirma que, nos Estados Unidos, idéias não podem ser protegidas nem restritas a
sua propagação. A proteção se limita à forma de expressá-las, às palavras usadas num texto,
por exemplo. São cópias desta expressão que o autor pode restringir. Outra questão
importante: diante do mundo virtual os princípios não são universais e refletem a refletindo a
dificuldade de se criar consensos.
173
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
De fato, estes mecanismos e até mesmo os princípios envolvidos mudam de país para
país. Na China, por exemplo, houve uma série de tentativas em se proibir a utilização de
conteúdos pela Internet. As mudanças refletem a evolução tecnológica por um lado, mas
refletem também os interesses do país ao longo do tempo, dada a sua posição de produtor ou
de consumidor no mercado de propriedade intelectual.
Em apenas um toque é possível copiar não só dados, mas também documentos,
imagens, sons, filmes, bastam que estes estejam representados digitalmente. Assim, é viável
fazer, a custos baixos, um número ilimitado de cópias sem nenhuma degradação de qualidade.
A rede internet está protagonizando um fenômeno novo, sem precedentes na
história da nossa civilização, cujas conseqüências consideramos potencialmente
imprevisíveis no momento. Estamos nos referindo à criação cooperativa de bens de
informação por centenas, às vezes milhares de autores que se comunicam através da
Internet. (SIMOM, 2006, online).
A informação exige não só tempo, mas esforços pessoais que custam caro. Além de
técnica, de uma distribuição que envolve uma série de atores. Diante de tantos interesses
industriais, econômicos e inclusive dos meios de comunicação é possível fazer um diálogo
entre o direito à informação e o direito autoral?
Num contexto as linguagens virtualizaram-se diante do tempo real, das coisas materiais,
dos acontecimentos atuais e as situações em curso, são questões que se abrem e desembocam
entre o tempo e eternidade na existência do virtual mas que demandam uma análise do direito
autoral, da propriedade intelectual.
3 O PARADOXO ENTRE O DIREITO À INFORMAÇÃO E DIREITO AUTORAL
A propriedade intelectual protege bens intelectuais que representam a informação, mas a
propriedade intelectual não protege diretamente a informação. Para Keneth Arrow (1999) o
significado da informação é uma redução na incerteza. A informação será então uma
externalidade dentro de determinado processo.
A primeira noção de liberdade de informação foi elaborada pela ONU, com a idéia de
livre fluxo de informação na sociedade e não apenas àquelas detidas pelos órgãos públicos. O
artigo 19 já traz a garantia não só da liberdade de se expressar e de dar opiniões, mas também
de buscar informações por quaisquer meios, sem limites de fronteiras. A liberdade de
informação está diretamente ligada ao fluxo de idéias e informações fundamentais a qualquer
sociedade democrática.
174
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Vários países reconhecem o direito à informação como um direito fundamental e
tribunais de destaque interpretam garantias reais de liberdade de expressão incluindo o direito
à informação. “Na América Latina, as constituições tendem a se concentrar em um aspecto
importante do direito à informação, a saber a petição de hábeas data, ou o direito de acesso à
informação sobre a própria pessoa, esteja ela em posse de organizações públicas ou privadas
e, conforme necessário, atualizar ou corrigir a referida informação” (MENDEL, 2009, p.26).
Assim, ele ganha status de direito humano fundamental.
Já em 1985 a Corte Interamericana de Direitos Humanos divulgou um parecer
consultivo interpretando o artigo 13 e considerou que ao mesmo tempo em que é importante
para o cidadão comum conhecer as opiniões dos outros e ter acesso a informação em termos
gerais e ele também deve ter direito a emitir sua própria opinião.
Em alguns países, os tribunais nacionais têm sido relutantes em aceitar que a
garantia de liberdade de expressão inclua o direito de acesso à informação sob o
controle do Estado. A Suprema Corte dos EUA, por exemplo, determinou que a
Primeira Emenda à Constituição, que garante a liberdade de expressão e imprensa
não estipula um direito de acesso a informações governamentais ou fontes de
informações no âmbito de controle do governo. (MENDEL, 2009, p.25).
Os Princípios de Liberdade de Expressão aprovados pela Comissão Interamericana de
Direitos Humanos em 2000 traz no preâmbulo que a garantia do acesso à informação mantida
pelo Estado assegurará maior transparência e prestação de contas das atividades dos Governos
e o fortalecimento das instituições democráticas. Os princípios ainda reconhecem o direito à
informação determinando que toda pessoa deve ter direito ao acesso a informação sobre si e
seu bens. Isto com presteza e sem ônus, independente se a mesma esteja em cadastros
públicos ou privados.
Determinam, ainda que o acesso à informação é um direito fundamental dos indivíduos
e o Estado tem obrigação de garantir o pleno exercício deste direito. Dentre as limitações
consideradas excepcionais estão aquelas já previamente definidas em lei na eventualidade de
um perigo real e iminente que ameace a segurança nacional das sociedades democráticas. A
Corte não só reconhece proteção ao emissor como também ao destinatário da informação.
A informação pode significar tanto o conteúdo da informação, quanto o ato da
comunicação. Quando se refere ao conteúdo, trata-se neste contexto, da idéia. Este
é o primeiro aspecto que deve ser abordado pois a criação intelectual é
indissociável de uma concepção inicial, ou seja, de uma idéia que é suporte para a
obra intelectual. (BASSO, 2000, p.54).
175
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Para Barbosa (2009), a o grande problema está no fato de que as idéias não são
protegidas. Assim, não é qualquer informação que faz com que ela seja considerada objeto
merecedor de propriedade intelectual. O Direito trata a informação sob vários aspectos, no
caso da criação intelectual não é protegida, mas a criação fixada como bem intelectual que
pode ser objeto de um direito de propriedade intelectual.
A própria Constituição Federal considera o direito à informação como uma espécie
diferente de direito visto que a difusão dos veículos de comunicação relacionam-se ao Direito
Público com o poder de informar e ser informado. José Afonso da Silva afirma que a
liberdade de enviar e receber informações manifesta-se como um direito individual, mas
atinge uma manifestação coletiva, especialmente quando o indivíduo pode transmitir
publicamente informações pela Internet.
Que informação não seria então passível de apropriação intelectual? No caso das
informações jornalísticas que não podem ser monopolizadas. Para Razi (apud Barbosa, 2009),
as implicações jurídicas da notícia jornalística podem ser avaliadas a partir de três elementos:
a novidade e atualidade; o fato de ser voltada para o público em geral; a existência de forma
específica.
A necessidade de atribuir exclusividade à informação é evidente pelo simples fato
de que a mesma tinha valor, e esse fato é avaliado em função do tempo e dos
destinatários da informação. Quanto ao tempo, porque a informação é relevante
naquele exato momento; quanto ao destinatário, porque se destina a pessoas que
realizam uma negociação naquele mercado. ( BARBOSA, 2009, p.92).
Alguns autores como Arrow (1984) consideram que é impossível conter a informação
nos limites da propriedade intelectual. Assim, modificações superficiais e modificações
podem manter a utilização das características essenciais da informação sem a utilização da
expressão. Para R. Polk Warner ( apud Barbosa, 2009), é impossível compreender todas as
características da criação a qualquer instituto. A idéia seria então tornar os canais de
informação cada vez mais abertos.
Isso pode ser considerado assim até porque "podemos dizer que quem não estiver
conectado a essa rede mundial fica fora da vida social, econômica, científica, que desenrola
em tempo real através dos caminhos da Internet" (ROVER, 2004, p. 29). Diante desta
realidade, tem-se que o direito ao acesso deve ser assegurado a todos os cidadãos visto que
"toda a pessoa que estiver excluída do espaço em rede, ficará impedida de exercer o controle
sobre a administração pública, reproduzindo, no mundo virtual, as mesmas desigualdades do
mundo corpóreo" (OLIVO, 2004, p.179).
176
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
É preciso acrescentar ainda o espaço transitório ocupado pela informação. Quando ela é
lançada no ciberespaço, imediatamente é apreendida por uma série de receptores e não pode
ser estocada por muito tempo em sua totalidade. Para Dantas (2002) não é possível armazenála, mas somente seus suportes como dados, nas formas de sinais gravados que serão
informação e quando postos numa relação comunicativa:
Uma vez que tenha comunicado, uma vez que tenha alcançado seu efeito útil, seu
valor degrada-se quase instantaneamente. Informação não se estoca, embora o
linguajar comum possa adotar expressões como „estoque de informação‟,
„armazenamento de informação‟ e outra metáforas semelhantes que, a rigor,
atrapalham a correta compreensão do fenômeno. (DANTAS, 2002, p.142).
Quando no mundo virtual, a tecnologia muda o clássico conceito de território e muda a
lógica de produção de conteúdos. Até mesmo obras reservadas a produção de alto custo, como
o cinema, podem ser elaboradas e distribuídas a baixíssimo custo pela rede. Hoje os músicos
chegam a lançar primeiro pela Internet, com acesso livre para os fãs, para depois imprimirem
as músicas num compacto e encaminhar para as lojas.
Assim, a tecnologia desafia o sistema jurídico, com novos cenários e elementos. Há
então a necessidade de “recompensar o criador e, ao mesmo tempo, manter a concorrência e o
incentivo a novas criações”, (BARBOSA, p.175). Para o autor, os institutos clássicos da
propriedade intelectual foram criados em determinado contexto e voltados para situações
específicas. Alterados os fatos então, mesmo com a permanência dos princípios, torna-se
necessária a alteração das normas.
Ele considera que existem três limites à vulnerabilidade tecnológica. Uma dela é de
ordem temporal relacionada a algoritmos de criptografia cujo tempo para desvendar a
combinação tornaria o empreendimento inviável. A outra vulnerabilidade seria de ordem
econômica, porque exigiria alto custo de circunvenção.
A última, seria a de ordem legal seria equivalente aos bloqueios tecnológicos cuja
efetividade seria garantida por uma norma jurídica com sanção superior ao ato jurídico de
infração. Numa outra ponta poderia-se ter como proteção a institutos existentes ou criar um
direito híbrido para atender com eficiência à necessidade exclusiva para inovações.
Para assegurar a eficácia do sistema como informação, a propriedade intelectual
depende do correto balanceamento dos aspectos públicos e privados. O instrumento
que permite tal estudo é o de poder se aventurar a dizer que nesse balanceamento
está na solução de vários novos paradigmas . (BARBOSA, 2009, p.190).
Considera-se então que em todas as áreas da propriedade intelectual os componentes
que precisam ser equilibrados são as informações públicas e as condições para inovação. Até
177
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
porque novas tecnologias demandas novas informações, novos produtos e novas formas de
produção. De que adianta tornar a informação privada diante do papel social que ela exerce?
Torna-se necessário então criar um elemento balizador que não engesse o sistema, mas o torne
eficaz.
A cada instante surgem demandas sociais por informação que cria incentivos para a
produção de mais informações. Desta forma, o sistema de propriedade intelectual precisa de
limites e é preciso identificar se são informativas, quando voltadas para os meios de
comunicação, ou não informativas, quando voltadas para a economia. Barbosa ( 2009)
considera que as informações em domínio público podem ter valor e certamente são
informativas, mas não representam custos sociais pelo fato de serem bens públicos, não rivais
ou excludentes.
Lévy (1997) considera que a informação e o conhecimento serão a principal fonte de
riqueza. A transmissão de pensamento não é mais restrita a uma casta de especialistas mas a
uma grande massa de pessoas levadas a aprender, transmitir e produzir conhecimentos de
maneira cooperativa em sua atividade cotidiana. As informações passaram a constar entre os
bens econômicos primordiais, o que nem sempre foi verdade.
Os novos recursos chaves são regidos por duas leis que tomam pelo avesso os
conceitos e os raciocínios econômicos clássicos: consumi-los não os destrói, e
cedê-los não faz com que sejam perdidos... A economia repousa largamente sobre o
postulado da raridade dos bens. A própria raridade se finda sobre o caráter
destruidor do consumo, bem como sobre a natureza exclusiva ou privativa da
cessão ou da aquisição.; Ora, uma vez mais, se transmito a você uma informação
não a perco, e se a utilizo, não a destruo. (LÉVY, 1997, p.55).
O autor considera que a informação e o conhecimento não são mais imateriais e sim
desterritorializados , não estão mais presos a um suporte privilegiado. Isto faz com que o
caractere distintivo da virtualidade seja o seu desprendimento do aqui e agora particular.
Quando se utiliza uma informação, quando esta é interpretada e ligada a outras informações
para fazer sentido, quando ela é utilizada para tomar uma decisão, ela é atualizada.
Transforma-se. Ele considera que toda aplicação efetiva de um saber é uma resolução
inventiva de um problema, uma pequena criação.
Mesmo diante deste cenário a solução não seria a supressão do direito autoral, mas a
abertura de seu conceito para que ele absorva os novos sistemas comunicacionais. Evocaria-se
então a uma passagem de uma propriedade territorial rígida à redistribuição de flutuações
desterritorializada, transformando a economia que passaria do valor de troca ao valor de uso.
178
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Para Lévy (1997, p. 67): “Uma guerra não é material nem imaterial, um amor, uma invenção,
uma aprendizagem tampouco”.
4 CONCLUSÕES
Diante desta realidade virtual que é ao mesmo tempo dinâmica, complexa e
contraditória em que estão envolvidos diferentes atores e interesses envolvidos, é impossível
encontrar uma resposta simples e definitiva. Os rumos futuros estão na dependência das
experiências em curso e de outras que ainda devem vir. Inegavelmente, os rumos estão
também na dependência das ações legislativas sobre o tema.
A cada salto tecnológico, novos métodos de proteção devem ser criados e
reconsiderados até porque não cabe só ao sistema jurídico proteger a propriedade intelectual,
mas também garantir o processo e acesso à informações. Chega-se então ao paradoxo entre
criar medidas tecnológicas que assegurem a exclusividade ou estabelecer proteção jurídica
específica. Ao mesmo tempo em que o direito autoral tem escopo limitado, confere
exclusividade por um longo período, no caso do Brasil, setenta anos após a morte do autor.
Quando se trata do sistema jurídico da propriedade intelectual como informação, é
preciso observar o fluxo que começa na criação e continua no mercado final. Não se pode
reduzir o investimento em criações. Até porque no ciberespaço, a cada instante, os usuários
contribuem para o processo de inteligência coletiva. A atualização ou consumo da informação
gera uma pequena criação.
Desta forma, o usuário das redes sociais, os consumidores, não apenas se tornam coprodutores da informação que consome, mas te também produtor cooperativa dos mundos
virtuais, atua como agente de visibilidade. Por isso, a idéia não é abandonar os direitos de
propriedade sobre todas as formas de bens, mas dar uma sofisticação ao direito autoral para
que este possa ser um moderador entre a propriedade intelectual e o direito à informação no
cieberespaço.
Ao passo em que a informação é um substrato básico da propriedade intelectual, é
preciso impor limites à esta na medida em que haja colisão entre o interesse de incentivo de
um lado e a liberdade de expressão e o direito à informação de outro. Os defensores do
instituto da propriedade não podem perder de vista que a distribuição de informações e de
conhecimento é imprescindível não só para o desenvolvimento social da sociedade, mas
também da plenitude democrática, uma vez que somente uma sociedade informada pode ser
plenamente livre. Ademais, propicia maior eficiência na distribuição e a redução da
179
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
exclusividade o conhecimento.
É preciso proteger o autor, mas também tutelar os direitos das pessoas que devem ser
compatibilizados com as exigências do mundo contemporâneo que deseja a liberdade de
informação e a livre circulação de dados. Hoje se torna difícil pensar o mundo sem Internet, a
rede mundial já se incorporou a vida cotidiana. O grande desafio no plano, inclusive dos
direitos fundamentais, é compatibilizar a lei de mercado, o direito autoral e o direito à
informação.
Caso o sistema de propriedade intelectual não tenha um sistema eficiente de divulgação
das informações pode criar uma anomalia. É preciso se pensar a propriedade intelectual mais
do que um instituto jurídico para ampliar riquezas, mas, acima de tudo, para produzir o bemestar social. No momento em que a informação é distribuída os institutos de propriedade
intelectual acabam por desempenhar sua função social. Só assim é possível dar mais
eficiência e sentido a este sistema.
REFERÊNCIAS
ARROW, Kenneth. The Economics of Information. Cambridge. Mass: Belknap Press of
Harvard University Press, 1984.
BARBOSA, Cláudio Roberto. Propriedade Intelectual: Introdução à propriedade
intelectual como informação. Rio de Janeiro: Campus Jurídico, 2009.
BASSO, Maristela. O direito internacional da propriedade intelectual. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2009.
DANTAS, Marcos. A lógica do capital-informação: A fragmentação dos monopólios e a
monopolização dos fragmentos num mundo de capitalizações globais. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2002.
IANNI, OCTAVIO. A sociedade global. 7.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática.
Rio de janeiro:Ed 34, 1997.
LÉVY, Pierre. O que é o virtual? Rio de janeiro: Ed 34, 1997.
MENDEL, Toby. Liberdade de informação: um estudo de direito comparado. 2. ed. Brasília,
UNESCO, 2009.
RAMIRES, Sérgio García. La liberdad de expression em la jurisprudência de la Corte
Interamericana de Derechos Humanos. Costa Rica, 2007.
ROVER, Aires José (org.). Direito e Informática. Barueri: Manole, 2004.
SIMON, Imre. (2000) A propriedade intelectual na era da Internet. Disponível em:
http://www.ime.usp.br/~is/papir/direitos/index.html. Acesso em 22 de agosto de 2010 .
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 9 ed. São Paulo:
Malheiros, 1993.
180
O USO, A OCUPAÇÃO E O CONTROLE DA PROPRIEDADE URBANA: NOVAS
PERSPECTIVAS SOBRE UM VELHO TEMA
Fernando da Conceição Raposo 
PALAVRAS-CHAVE: Propriedade Urbana – Mercantilismo – Bem Transacionável
-
Solidariedade Intergeracional - liberdade.
1 INTRODUÇÃO
Pode dizer-se que grande parte da acção humana baseia-se e assenta sobre um espaço
denominado de “propriedade urbana”, nas valências de uso e ocupação.
A urbanização que o mundo assistiu no último século é a prova de que este tema é o
centro da actividade humana dos dias de hoje.
O homem, desde que se encontrou como ser social caminhou para a urbanização da sua
existência.
Ao longo da história este processo de urbanização já assumiu várias formas e
conteúdos.
Mais recentemente assumiu-se (e bem) que a propriedade tem uma função social....
Entendo que tudo está correcto se esta função for acompanhada de um elevado sentido
do direito à dignidade da pessoa humana, no respeito pelas suas virtudes e qualidades.
Durante esse período a relação do homem com o uso, a ocupação e o controle da
propriedade urbana, tem evoluído de forma diversa, acompanhando ou influenciando a
evolução social e económica do próprio homem.

Arquiteto, licenciado pelo Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Paraná (UFPR) em
1983. Curso de Pós Graduação em Estudos Urbanos e Habitação da Faculdade de Arquitectura da Escola
Superior de Belas Artes de Lisboa (ESBAL) em 1984. Consultor de várias Autarquias na área da Renovação
Urbana. Exercicio da actividade profissional nos ramos da arquitectura comercial, equipamentos públicos e
urbanismo.
e-mail: [email protected]
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Nos últimos 100 anos, principalmente nos países industrializados, essa relação foi
marcada, pela democratização do acesso à propriedade e à tomada de consciência do seu uso
no contexto do fenómeno de urbanização do planeta. Nos últimos 40 anos, a consciência de
um equilíbrio ambiental e a democratização de muitas nações introduziu novos conceitos
nessas relações.
Hoje, em face do surgimento e acesso rápido a novas tecnologias, estamos a viver o
advento de um novo conceito de cidade. Tecnologias essas que alteram a nossa relação com os
meios de produção e com as comunicações, assim como as necessidades de produção e o
consumo de energias.
O aumento exponencial da população do planeta e o natural acréscimo de tensões
sociais, assim como o acesso às novas tecnologias, está, a coberto da garantia dos direitos e
liberdades das democracias, impondo o surgimento de uma sociedade hipervigilada com
necessidades tremendas de segurança e controle da cidadania.
As dinâmicas de uma eventual nova vaga mercantil no mundo, imporão novos
relacionamentos com a propriedade.
A necessidade de acompanhar as deslocalizações das empresas imporá novas regras ao
uso e controlo da propriedade urbana, nomeadamente a privada. Essa tornar-se-á um peso
insuportável, na medida em que o proprietário, correndo o risco de se tornar “propriedade” da
sua propriedade1, poderá vir a encontrar-se cerceado da sua liberdade.
2 BREVE HISTÓRIA DA EVOLUÇÃO DO HOMEM ATÉ À PROPRIEDADE
URBANA E SEU USO
Há 30.000 anos o planeta é habitado por um único primata humanóide e a história do
homem começa.
Há 20.000 anos o homem instala-se no médio oriente.
1
“ o problema da propriedade é o de ela ficar proprietária do proprietário” Comentário de Agostinho da Silva
sobre a propriedade. George Agostinho Baptista da Silva(Porto, 13 de Fevereiro de 1906-Lisboa, 3 de Abril de
1994) foi um filosofo, poeta e ensaísta português. O seu pensamento combina elementos de panteismo,
milenarismo e ética da renúncia, afirmando a Liberdade, como a mais importante qualidade do ser humano.
Agostinho da Silva pode ser considerado um filósofo prático e empenhado através da sua vida e obra, na
mudança da sociedade. Instala-se no Brasil em 1947 onde participa e colabora na fundação de entre outras da
Universidade de Santa Catarina e da Federal de Brasília. Foi assessor do Presidente Jânio Quadros.
182
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Há 10.000 anos o homem inventa 2 instrumentos revolucionários: a alavanca e o arco.
Há 6.000 anos o homem agrupa-se em aldeias.
Há 3.200 anos (aproximadamente), no Mediterrâneo, inicia-se a primeira Ordem
Mercantil. E neste conceito de desenvolvimento e progresso, ainda nos encontramos. Nesse
período surgem as cidades tal como as conhecemos: (Tiro; Sidon; Útica; Cartago; Gadis).
Por essa altura Troia é vencida pelos Micénios (Cretenses).
Desde esses primórdios, o controle e posse das cidades (propriedade urbana), assumem
um interesse fundamental na Ordem Mercantil.
Esse interesse tem evoluído e sido moldado, podemos assim considerar, com base no
conteúdo ideológico da ordem mercantil que se apresentar mais vantajosa nesse momento do
tempo.
As questões religiosas são aqui, pode-se afirmar, parceiras da Ordem Mercantil. A
Ordem Jurídica acompanha no estabelecimento das regras. A Ordem Social é o resultado.
Curiosamente, num mundo onde a riqueza está cada vez mais concentrada no domínio
de poucos, a propriedade, nomeadamente a urbana, assume um papel cada vez mais plural e
acessível. A competitividade global assim o exige.
Os Estados, tendenciosos a esta condição, por forma a conquistar a lealdade dos seus
cidadãos, favorecendo a sua criatividade, a sua integração e mobilidade social, assim o
impelem nesta fase de progresso.
O Mercantilismo, na sua forma capitalista, foi suficientemente criativo ao democratizar
o acesso à propriedade urbana. Atribuindo-lhe uma função social e transformando-a em
moeda de troca dos seus interesses mais básicos, atingiu assim o seu propósito de transformar
o território num imenso mercado.
A partir do momento em que tudo é transaccionável, cria-se uma possibilidade de lucro.
Os recursos são contudo finitos. E aqui coloca-se a questão do uso: Que uso? -: O
mercantil? O social? O cultural?
Mais uma vez coloca-se o perigo de a propriedade se apropriar do seu proprietário,
principalmente no conteúdo que destingue o homem, que é o “sonho”.
O direito à habitação e a uma existência digna não poderá nunca tornar-se refém de um
direito à propriedade.
183
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Em 1776, Adam Smith aconselha aos governos que vendam os seus terrenos dominais
para saldarem seus débitos. Assim, em muitas cidades, as áreas construíveis caem sob o
controle exclusivo da especulação privada, e as exigências especulativas impõem a sua lei à
cidade. Contudo, esta “conquista” desarticula definitivamente o fenómeno urbano.
A lei natural que esteve na génese do surgimento das cidades e que representa a
necessidade dos homens agruparem-se para ajudar-se mutuamente, defender-se e economizar
recursos, esbate-se e perverte-se com o surgimento dos subúrbios e paradoxalmente com a
desertificação do território.
Este acesso à propriedade consome ainda, em muitos casos, 3/4 do dia do Homem. Este
gasto é estéril e alienante.
A revolução tecnológica da arquitectura ocorrida no primeiro quartel do sec. XX e que
visava recuperar o espaço natural, transformou a Propriedade Urbana de m2 de território, em
metros quadrados de pavimento construído e enclausurado, num desprezo total pelos
sentimentos sociais, diminuindo de forma drástica o espaço vital do ser biológico.
A planificação industrial da actividade de alojar, a coberto da recuperação do espaço
natural, serviu meramente para rentabilizar o território e redefinir o conceito de Propriedade
Urbana, proporcionando uma maior rentabilidade, conjuntamente com um maior controle e
vigilância dos seus actores.
Nos últimos anos temos assistido ao controlo de grandes extensões territoriais por parte
de empresas privadas que nessa forma mercantil, a coberto de realizarem um qualquer
“sonho”, transformam, com a conivência dos Estados, territórios rurais ou ainda naturais em
territórios urbanos, na senda do lucro e da mais valia.
Nesta questão, a compensação em “taxas” à “causa pública”, nomeadamente aos
parceiros sociais, tem sido extremamente compensadora para a iniciativa.
Aqui, os Estados, a coberto de estereótipos de progresso, apoiam e garantem o
surgimento e crescimento destas organizações, servindo inclusive, muitas das vezes, para
branqueamento de “lucros” de outras actividades paralelas. Este é acompanhado também, e
frequentemente, de um progresso material das elites decisórias.
Assim, compreende-se que não é à toa que a democratização do acesso à propriedade
tenha tido início conjuntamente com o surgir das cidades-jardim nos países que lideraram a
revolução industrial, exponentes máximos, que foram e são, da Ordem Mercantilista,
184
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
nomeadamente no Reino Unido e nos Estados Unidos da América do Norte.
Essa realização, cativando enormes massas de mão de obra operária, conjuntamente
com a despovoação dos campos, traduziu-se simbolicamente, para essas massas, no sonho
desesperado de ser, se não livre, pelo menos senhor do seu destino.
3 O CASO PORTUGUÊS
Em Portugal, à semelhança de muitos países em vias de desenvolvimento, uma tardia
“revolução” industrial, proporcionou um crescimento desmesurado das cidades em face dos
surtos migratórios das populações rurais.
Estas, (também aqui) chegam às cidades em desvantagem cultural, (sem significar
menor cultura), desprovidas de conhecimento urbano e ocupam os territórios com a ansiedade
que lhes é permitida.
Os poderes instituídos, autistas e confortavelmente instalados, não possuem espaço
legal para abraçar e absorver, quanto mais impedir, estas pressões sociais (de que todos
conhecemos sobejamente os resultados).
Na falta do Estado, no cumprimento do seu papel regulador, os oportunistas e os
especuladores, sempre atentos às oportunidades, ocupam esse papel na busca da mais rentável
mais-valia.
O resultado é o surgir de tensões sociais constrangedoras e o abandono da cidade
tradicional para a ocupação de novos territórios nas suas imediações (há semelhança do
ocorrido em outros países), ora por serem mais acessíveis, ora por oferecerem maior
segurança e exclusividade.
Paralelamente o poder económico, (novamente há semelhança do ocorrido em outros
países), expulsa e substitui, em face de um maior lucro e poder concorrencial, o uso
residencial pelos serviços na cidade tradicional. Com isso, o despovoamento da cidade
ocorre. E com o despovoamento, a insegurança e o abandono patrimonial, por força da
especulação, surge.
As populações são aqui deserdadas da sua história.
A consequência foi, como referimos, o surgimento no entorno de algumas cidades
maiores, como Lisboa, de inúmeras áreas urbanas cuja propriedade, na impossibilidade de
parcelamento sob um procedimento institucional e planificado, teve origem no parcelamento
rural.
185
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Este tipo de propriedade urbana foi formado na ordem da posse, na medida em que essa
posse era partilhada em "avos" por um determinado numero de proprietários, sobre um
cadastro rural.
Posteriormente essas áreas urbanizadas, de forma mais ou menos espontânea, ficaram
conhecidas por “bairros clandestinos”.
Em consequência e por forma a poder reordenar o território, classificavam-se essas
áreas “informais” como “AUGI” (áreas urbanas de génese ilegal), tendo sido produzida uma
série de legislação para acompanhar o processo de re-ordenamento do território e consequente
requalificação dessas mesmas áreas, assim como regularizar de forma conveniente e
juridicamente fiável, a posse da propriedade.
Novamente e á semelhança do que aconteceu em muitos outros países no seu processo
de desenvolvimento, foram testadas muitas experiências urbanísticas com vista à resolução do
problema das expansões urbanas.
Já mais recentemente foram criados regimes específicos, nomeadamente ao nível de
enquadramentos legais, para áreas urbanas, que em face da rápida expansão de perímetros
urbanos, tiveram como consequência a degradação das áreas mais antigas ou de outras áreas
urbanas menos concorrenciais. Essas áreas, foram, mediante proposta das Administrações
Locais, identificadas como “ACRRU” (área critica de renovação e reconversão urbanística).
Com a criação de dinâmicas empresariais, vocacionadas directamente para a resolução
desta problemática, nomeadamente com a criação de Sociedades de Renovação Urbanística,
colocou-se nestas empresas o poder de gestão territorial dessas áreas especificas. Esta forma
permite, inclusivamente, a iniciativa partir da “sociedade civil” ou da área estatal, aberta a
parcerias com a área privada.
Estes instrumentos legais permitem requalificar a cidade sob a égide da função social da
propriedade urbana, assim como do princípio de solidariedade intergeracional.
Esta gestão surge munida de instrumentos poderosos de controle e acesso à propriedade
privada, nomeadamente o poder de impor coercivamente obras de reabilitação dos edifícios;
expropriação em face do interesse público ou imposição de venda forçada com a finalidade de
reabilitação.
Partindo de um princípio de que a sociedade civil pode controlar estes mecanismos,
estamos assim perante, (podemos teoricamente concluir, no contexto actual), uma das mais
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A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
puras formas de gestão democrática da cidade.
Resta contudo saber, se essa sociedade está preparada para esta tarefa ou se o “Estado”
já está preparado para abdicar desta função.
Noutra perspectiva, a reforma ocorrida no sistema tributivo (da propriedade), na
aplicação dos Impostos Municipais de Imóveis (IMI), aplicado directamente sobre o
património imobiliário, com critérios, que no meu entender ao se revestirem de transparentes,
por parte da Administração do Estado, são contudo pouco claros na matéria da sua construção,
vêm validar o que eu chamo de nacionalização camuflada da propriedade urbana. Em muitos
casos os valores são de tal maneira exagerados que, de uma contribuição à “causa pública”,
passa-se a pagar uma renda ao Estado para se poder usufruir o que supostamente deveria ser
propriedade privada.
Assim, sem exagero, consuma-se a ideia de que ninguém é proprietário de coisa
alguma, mas sim e somente um fiel depositário de toda uma actividade que assenta sobre o
território do planeta. O que não deixa de ser uma verdade.
Nessa conformidade e nesse pressuposto, a condição de fiel depositário acarreta
responsabilidades intergeracionais acrescidas, nomeadamente ao nível da preservação da
qualidade do meio ambiente e da história dos lugares.
E é aqui que se forma, no meu entender, a função social da propriedade, ao nível da
responsabilidade moral e da ética civilizacional.
4 A PROPRIEDADE URBANA: QUE FUTURO?
Nos últimos 40 anos temos vindo a assistir à talvez maior revolução social que a
humanidade assistiu depois da descoberta da Divindade Maior.
Este, podemos assim dizer, é o advento do apogeu do Mundo Mercantilista.
É sem margem para dúvida um período difícil. Assiste-se quase que impávido ao
desmoronar da segurança das Nações e dos Estados.
O Mundo, tal como o aprendemos na história, dá os primeiros passos para desaparecer.
A revolução é tecnológica e não política. A política, neste caso, é de acompanhamento.
Num mundo global, praticamente sem fronteiras, onde os Estados são já quase meras
instituições de representação e onde a competitividade é a tábua de salvação das ainda
identidades nacionais, a Humanidade tende a subjugar-se perante as necessidades básicas de
187
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
consumo.
Nessa senda, a liberdade de movimentação é a vantagem.
Assim, nas palavras de António Cícero 2“não há lugar para "utopias positivas" na
modernidade. O único projecto colectivo que se pode ter é garantir a todos condições
materiais mínimas para a fruição das liberdades individuais, das utopias subjectivas,
características da modernidade”.
O uso da Propriedade Urbana como moeda de troca e “Bem Transaccionável” é uma
realidade. A última e ainda presente “crise económica” mundial é disso um exemplo.
A família como elemento central da sociedade foi definitivamente posta em causa.
Se nos países em vias de desenvolvimento o crescimento demográfico é uma realidade,
nos países “ricos” o decréscimo demográfico é, em oposição, a “realidade”.
Nessa conformidade, as garantias sociais e de acompanhamento da família estão sendo
postas em causa. O “direito” à propriedade deixa de ser uma condição imperiosa para as
sociedades emergentes, passando a ser uma moeda de troca e um peso de “valor” duvidoso na
construção da própria existência.
Este “valor” tanto mais é duvidoso quanto a preparação social e urbana dessas
sociedades se encontra consolidada e assumida.
Na maioria das vezes o processo de urbanização dos territórios faz-se à custa de
populações, cultural e socialmente despreparadas.
Com isto pretendo salientar que o processo de urbanização das sociedades emergentes
não se resolve somente com a ciência urbanística de bem construir e ordenar o território, na
procura de um melhor posicionamento das ruas e edifícios, distribuição das actividades
humanas e sociais, na busca de um gozo sã e confortável das populações.
O processo de “urbanização” das populações deverá passar por algo mais que os
aspectos meramente físicos e mesmo jurídicos do território.
A saúde da cidade depende em grande parte da saúde cultural, educacional, e
consequentemente cívica das populações.
A ocupação “consolidada” e legalmente garantida, preconizada no “direito de
2
Poeta e ensaísta, ANTÓNIO CICERO apresentou em Lisboa a palestra "Da actualidade do conceito de
civilização", no encontro intitulado "O Estado do Mundo", organizado pela Fundação Gulbenkian, publicada em
Portugal, no livro A Urgência da Teoria (Lisboa:Gulbenkian, 2007).
188
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
propriedade”, não é nem deverá ser vista como a sumula urbana.
O acesso e a capacidade de usar culturalmente uma cidade é que fomentará a
criatividade e a fará versátil ao ponto de a tornar concorrencial e vantajosa e com isso
satisfazer os anseios da sua população.
A capacidade de adaptação da cidade às dinâmicas mercantis do planeta é que a farão,
dentro do possível, confortável e cumpridora do seu desígnio.
Acredito que em face da cobertura dos riscos eminentes da precariedade, as empresas
seguradoras assumirão o papel de proprietários majoritários no sec. XXI. Os riscos de
aquisição e uso da propriedade, entre outros, têm de ser repartidos.
5 CONCLUSÃO
A liberdade e não a igualdade traçarão a vantagem do “uso”, da “ocupação” e do
“controle” da propriedade urbana como domínio do homem sobre a “divindade”, no caso a
Natureza.
BILIOGRAFIA
"Qualquer opinião é uma eclipse; uma asserção
condicional com a parte condicional omitida."
(I.A RICHARDS)
Para aventurarmo-nos num pensamento há que viver na consciência dos que nos antecedem,
nos que nos acompanham e nos que nos contrariam. Há inúmeros livros e monografias que
seria fastidioso enumerar; contudo estes são algumas referências que serviram e auxiliaram o
conteúdo deste pequeno artigo.
BENEVOLO, LEONARDO. Storia dell' Architettura Moderna. Bari: Editori Laterza,
1966.
GROPIUS, WALTER. Bauhaus:Novarquitetura. São Paulo: Perspectiva Ed., 1972.
JENCKS,CHARLES. Modern Movements in Architecture. Londres:1973,1985.
189
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
LE CORBUSIER. L'Urbanisme des Trois Établissements Humains. São Paulo:
Perspectiva,Ed., 1976.
ATTALI, JACQUES. Une Brève Histoire de l'Avenir. Paris:Lib. Arthème Fayarde, 2006.
CICERO, ANTÓNIO. O Mundo Desde o Fim. Vila Nova de Famalicão:Quasi, 2009.
PINHO, ROMANA VALENTE- O Essencial sobre Agostinho da Silva, Lisboa, 2006.
190
O PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DA
FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
Germana Parente Neiva Belchior 
Ana Carolina Aguiar Carneiro
RESUMO: Desde a sua origem até os dias atuais, é inconteste que o direito de propriedade
passou por várias transformações, o que torna relevante o estudo de sua historicidade. O seu
caráter absoluto durante o Estado Liberal se redimensiona para a necessidade de uma função
social como proclama os ditames normativos do Estado Democrático de Direito. Por outro
lado, diante da crise ambiental e da sociedade de risco, oriundas da quebra de paradigmas da
velha ordem, o Direito Ambiental importa a teoria do risco de Beck, cuja manifestação do
risco em abstrato se dá com o princípio da precaução. Nessa linha, o conteúdo da função
social da propriedade merece discussão, uma vez que o meio ambiente é condição para a vida
em suas variadas formas, o que faz a doutrina defender o fenômeno da ecologização da
propriedade. O objetivo desse trabalho é, portanto, investigar como o princípio da precaução
pode ser utilizado como instrumento de efetivação da função social da propriedade. A
metodologia utilizada é bibliográfica, descritiva, exploratória, dialética com predominância
indutiva. Verifica-se que a função social possui um conteúdo ambiental de forma a impor ao
proprietário deveres de proteção ao meio ambiente sadio, cuja proteção não se encontra
apenas na legislação infraconstitucional, mas na própria Lei Maior, ao abordar a função social
da propriedade e o dever fundamental de preservação ambiental. É de concluir que, em
virtude das incertezas científicas e da liquidez dos conceitos, o princípio da precaução se
revela como um importante mecanismo de caráter instrumental e material para o
preenchimento do conteúdo da função social da propriedade em defesa da sustentabilidade.
PALAVRAS-CHAVE: PROPRIEDADE; FUNÇÃO SOCIAL; SUSTENTABILIDADE;
PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO; EFETIVIDADE.
ABSTRACT: Since the historical moment it appeared in society until the present age, it is
evident that property law has faced significant changes, making the assessment of its
historicity a relevant issue. The idea of property as absolute, that prevailed during Liberal
State, was redimensioned in the model of State governed under the rule of law, in order to
create the notion of social role of property. On the other hand, the disappearance of old
paradigms is related to the environmental crisis in course and to the uprising of a risk society,
taking Environmental Law to resort to the risk theory developed by Beck, for whom the
precautionary principle is the result of the possible manifestation of risk. In this sense, the
content of the notion of social role of property needs to be discussed, as environment is a precondition for life in general, taking scholars to defend the need for property to be used with
ecological references. The aim of this paper is, therefore, to exam how the precautionary

Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará. Professora de Hermenêutica Jurídica e
Aplicação do Direito, Direito Ambiental e Ecologia da Faculdade Christus – Fortaleza. Pesquisadora do Projeto
Casadinho (CNPQ-UFC-UFSC).

Aluna do 9º semestre do curso de graduação em Direito da Faculdade Christus – Fortaleza, onde é bolsista do
Programa de Iniciação Científica.
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
principle can be used as an instrument for effectivating the social role of property.
Methodology used is bibliographical, descriptive, exploratory and dialectical, being also
primarily inductive. The author puts in evidence the fact that the idea of social role of
property comprises an environmental content, imposing to the holder of property duties aimed
at protecting a healthy environment, with the rules related to this matter to be found not only
in the ordinary body of laws, but also in the Constitution. The author comes to the conclusion
that, due to scientific uncertainties and to the fluidity of ideas, the precautionary principle is a
very important tool for relating the social role of property and the need for sustainability.
KEY-WORDS: PROPERTY; SOCIAL ROLE; SUSTAINABILITY; PRECAUTIONARY
PRINCIPLE; EFFECTIVENESS.
INTRODUÇÃO
Desde a sua origem até os dias atuais, é inconteste que o direito de propriedade passou
por várias transformações, o que torna relevante o estudo de sua historicidade. O seu caráter
absoluto durante o Estado Liberal se redimensiona para a necessidade de uma função social
como proclama os ditames normativos do Estado Democrático de Direito.
Por outro lado, diante da crise ambiental e da sociedade de risco, oriundas da quebra de
paradigmas da velha ordem, o Direito Ambiental importa a teoria do risco de Beck, cuja
manifestação do risco em abstrato se dá com o princípio da precaução. Nessa linha, o
conteúdo da função social da propriedade merece discussão, uma vez que o meio ambiente é
condição para a vida em suas variadas formas, o que faz a doutrina defender o fenômeno da
ecologização da propriedade.
O objetivo desse trabalho é, portanto, investigar como o princípio da precaução pode ser
utilizado como instrumento de efetivação da função social da propriedade. A metodologia
utilizada é bibliográfica, descritiva, exploratória, dialética com predominância indutiva.
A importância desse estudo se revela na necessidade de se encontrar instrumentos que
minimizem os efeitos da crise ambiental em todas as searas do Direito, pois se deve fazer uma
reestruturação no Estado e no Direito, para que o meio ambiente seja amplamente protegido,
uma vez sem um meio ambiente ecologicamente equilibrado não há como resguardar
plenamente o direito à vida.
Em um primeiro momento desse trabalho, será analisada a historicidade do direito de
propriedade ao abordar sua evolução histórica, bem como seus avanços nas Constituições
brasileiras.
Em seguida, discute-se a função social e sua relação com o direito de propriedade,
192
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
passando para o último momento, ocasião em que serão estudadas a crise ambiental, a
sociedade de risco, bem como a relação do princípio da precaução com a função ambiental da
propriedade.
1 CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO DE
PROPRIEDADE
O direito a propriedade é muito antigo e, desde a sua origem até os dias atuais, passou
por várias transformações, uma vez que a ciência jurídica é mutável, pois deve amoldar-se à
sociedade na qual está vigendo.
Portanto, antes de adentrar ao estudo da função social e do meio ambiente, faz-se
necessário um levantamento histórico do direito de propriedade, para que se possa perceber
com clareza a sua evolução na sociedade e dentro do ordenamento jurídico brasileiro para
então entender seu contexto social.
1.1 A evolução histórica do direito de propriedade desde a antiguidade até a era
contemporânea
Na Antiguidade, os povos, mesmo que muito primariamente, já regulamentavam a
propriedade como, por exemplo, os babilônios que no Código de Hamurabi impunham
proteção absoluta para aquele direito.
Durante a Grécia antiga, a propriedade era da família, haja vista que se acreditava que os
antepassados tornavam-se deuses que protegeriam aquele determinado clã; logo, a terra na
qual eles estavam enterrados deveria ser preservada pela família. 1 A propriedade, dessa forma,
era absoluta e perpétua, pois se mostrava a necessidade de proteger a terra, considerada o altar
dos deuses.
Na Idade Média, que se iniciou com a queda do Império Romano, em 476 d.C., houve a
multiplicidade da propriedade, momento em que a terra era dividida em feudos, os quais eram
repartidos entre os vassalos e os senhores feudais. Esses últimos recebiam a terra do Estado e
os primeiros cultivavam-na e adquiriam a posse de parte do feudo como uma contraprestação
ao trabalho prestado e, também, como forma de proteção, mas a terra continuava a ser do
patrono. Nessa época, permitiu-se a superposição de propriedades diversas sobre um único
bem. 2
1
TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 679-680.
PÚPERI, Cyro Luiz Pestana. A função social, econômica e a preservação do meio ambiente como condição
limitadora do direito de propriedade. Revista da AJURIS, Porto Alegre, ano 3 , n. 105, p. 91-134.
2
193
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
O período moderno foi marcado pela Revolução Francesa e pela Revolução Industrial,
fatos que contribuíram para o extermínio do feudalismo, desencadeando a passagem do
Absolutismo para o Estado Liberal. A Declaração dos Direitos do Homem de 1789 considera
a propriedade como “inviolável e sagrada”. Nessa linha, o Código de Napoleão traz o caráter
individualista e absoluto da propriedade, em seu artigo 544, ao afirmar que “o direito de gozar
e de dispor das coisas da forma mais absoluta, desde que delas não se faça um uso proibido,
pelas leis e regulamentos.”
Na época contemporânea, a Constituição de Weimar, de 1919, foi um marco no que
tange à evolução do conceito de propriedade, pois trouxe em seu texto a vinculação do direito
de propriedade às obrigações de cunho social, ou seja, deixou-se para trás a ideia da
propriedade absoluta para que surgisse o embrião de sua função social.
1.2 A historicidade do direito de propriedade nas constituições brasileiras
Assim como na história mundial, a propriedade também sofreu diversas modificações
nas constituições brasileiras, temática que será desenvolvida nesse tópico.
A Constituição de 1824 (Constituição Imperial) protegia a propriedade em toda sua
plenitude3, destacando a sua inviolabilidade, ou seja, a Carta Magna imperial aderiu ao
movimento liberal presente à época, prevendo um direito de propriedade absoluto 4, como um
típico direito fundamental de primeira geração.5
A Lei Maior de 1891 (Constituição Republicana) seguiu as diretrizes da constituição
anterior ao abordar em seu texto a inviolabilidade do direito a propriedade 6, que seria
mitigado apenas na hipótese de desapropriação por necessidade ou utilidade pública.
Entretanto, foi com o surgimento da Constituição de 1934 que, pela primeira vez, foi
previsto o vínculo da propriedade ao interesse social. 7 O legislador constitucional atentou-se
3
Artigo 179 da Constituição de 1824 – “A inviolabilidade dos Direitos Civis e Políticos dos Cidadãos
Brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição
do Império, pela maneira seguinte. [...] XXII – É garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude. Se
o bem publico legalmente verificado exigir o uso, e emprego da Propriedade do Cidadão, será ele previamente
indenizado do valor dela. A Lei marcará os casos, em que terá que lograr esta única exceção, e dará as regras
para se determinar a indenização.”
4
PÚPERI, op. cit., p. 91-134.
5
Voltar-se-á ao assunto dos direitos fundamentais em momento posterior.
6
Artigo 72 da Constituição de 1891 – “A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos
seguintes: [...] Parágrafo 17° – O direito de propriedade mantém-se em toda a sua plenitude, salva a
desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia.”
7
Artigo 113 da Constituição de 1934 – “A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País
a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade,
nos termos seguintes: [...] XVII – É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o
194
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
para a necessidade da propriedade privada ser limitada tendo em vista um interesse maior,
qual seja, o coletivo.
Já a Constituição de 1937 excluiu de seu texto a possibilidade da limitação da
propriedade pelo interesse social e coletivo 8, apenas assegurando a desapropriação nos casos
de necessidade ou utilidade pública, semelhante ao previsto em 1981.
Ao enaltecer o interesse público em detrimento do privado, a Carta de 1946 trouxe em
seu corpo a limitação da propriedade em virtude do bem estar social. 9
Em seguida, destaca-se que a Constituição de 1967 foi a primeira a prever a expressão
função social10 da propriedade, inserida nos princípios da ordem econômica. 11
Por fim, a Constituição de 1988 trouxe um avanço considerável no que tange ao direito
de propriedade e sua função social, uma vez que não os previu apenas como fundamentos da
ordem econômica, mas os colocou em um patamar acima, à luz do Estado Democrático de
Direito, ao inseri-los no artigo 5°, XXII e XXIII12, dando um caráter de direitos fundamentais
a esses institutos.
1.3 A relação jurídica da propriedade no contexto atual
A propriedade, como discutido anteriormente, sofreu várias modificações ao longo da
história e das constituições pátrias. Foram evoluções e retrocessos. Sua análise histórica é de
suma importância para que se possa chegar ao conceito de propriedade hoje defendido e
perseguido.
Por muito tempo, propriedade baseava-se em uma relação do objeto com um sujeito, de
interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar. A desapropriação por necessidade ou utilidade pública
far-se-á nos termos da lei, mediante prévia e justa indenização. Em caso de perigo iminente, como guerra ou
comoção intestina, poderão as autoridades competentes usar da propriedade particular até onde o bem público o
exija, ressalvado o direito à indenização ulterior.”
8
Artigo 122 da Constituição de 1937 – “A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no País
o direito à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XIV – o direito de
propriedade, salvo a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia. O seu
conteúdo e os seus limites serão os definidos nas leis que lhe regularem o exercício; [...].”
9
Artigo 147 da Constituição de 1946 – “O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei
poderá, com observância do disposto no art. 141, § 16, promover a justa distribuição da propriedade, com igual
oportunidade para todos.”
10
Artigo 157 da Constituição de 1967– “A ordem econômica tem por fim realizar a justiça social, com base nos
seguintes princípios: [...] III – função social da propriedade; [...].”
11
TEPEDINO, Gustavo. A função social da propriedade e o meio ambiente. Revista trimestral de direito civil.
Rio de Janeiro, ano 09, n. 37, p. 127-148, jan./ mar. 2009.
12
Artigo 5º da Constituição de 1988 – “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade,
à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XXII - é garantido o direito de propriedade;
XXIII - a propriedade atenderá a sua função social; [...].”
195
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
forma simples e pontual. No entanto, a evolução socioeconômica impõe feixes nesta relação,
uma vez que a diversidade em todas as esferas está cada vez maior. Assim, a relação jurídica
da propriedade passa a ser composta por um sujeito ativo, - o objeto (propriedade) - e o
sujeito passivo, que é composto pela universalidade de pessoas que devem respeitar o direito
de propriedade.
Sobre a relação jurídica da propriedade, expõe Carlos Roberto Gonçalves:
A relação jurídica, segundo a citada teoria personalista, não pode existir entre
pessoa e coisa, mas somente entre pessoas. O direito real, como os demais direitos,
pressupõe sujeito, sujeito passivo e objeto. Constitui, pois, relação jurídica
estabelecida entre o sujeito ativo (o proprietário, no caso do direito real de
propriedade) e os sujeitos passivos, que são todas as pessoas do universo, que
devem abster-se de molestar o titular.13
O artigo 1228 do Código Civil de 2002 traz em seu texto que o proprietário tem a
faculdade de usar, gozar e dispor da coisa. Ocorre que esse uso deve se pautar pela função
social da propriedade, não apenas por uma previsão do direito privado, mas por uma
imposição constitucional.
A Constituição de 1988 aborda em seu artigos 5°, XXII e XXIII, 170, incisos II e III, a
previsão de que a propriedade deve obedecer a sua função social e ambiental, ou seja, o
direito exercido pelo proprietário não pode mais ser absoluto e ilimitado, pois deverá respeitar
os ditames constitucionais, tais como o direito dos trabalhadores, honrar com os tributos
cobrados, contribuir para um meio ambiente ecologicamente equilibrado, dentre tantos outros
que devem ser respeitados por quem se beneficia com a propriedade privada.
Como se vê, a propriedade é protegida como forma de realização pessoal (direito à
propriedade) e como instrumento para o exercício da atividade econômica (direito de
propriedade).
Portanto, pode-se dizer que propriedade privada é a relação jurídica entre os sujeitos
ativos e passivos que tem como objeto uma coisa, que pode ser usada pelo proprietário da
forma que melhor lhe aprouver. Entretanto, deve-se direcionar esse uso, de acordo com a
função social e ambiental da propriedade, como proclamam os ditames normativos.
2 A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
Até o presente momento desse estudo, verifica-se que a propriedade deixou para trás um
aspecto individualista e absoluto, passando a incorporar uma dimensão social, pelo qual se
exige que o proprietário exerça sua vontade de forma a se adequar ao interesse da
13
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 9.
196
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
coletividade. Isto se deve à essência do Estado Democrático de Direito, pautada na
prevalência do interesse público e do bem estar da sociedade sobre o interesse individual.
Para que se possa entender com mais clareza essa limitação, bem como o
redimensionamento que a função social e o meio ambiente impõem à propriedade, far-se-á um
estudo mais aprofundado acerca dessa temática.
2.1 Elementos iniciais da função social
A função social da propriedade está prevista na Constituição Federal de 1988, em seu
artigo 5°, XXIII, quando proclama que a propriedade deverá atender a sua função social.
Como se vê, a propriedade tem sua estrutura redimensionada pela função social, possuindo
status de direito fundamental e como tal deve ter aplicabilidade imediata.
Essa nova dimensão do direito de propriedade o limita, ou melhor, o autolimita, uma vez
que exige do proprietário ações ou omissões que respeitem o direito coletivo. Entretanto, isso
não quer dizer que o interesse do particular será sempre tolhido em prol da coletividade, uma
vez que se deve analisar o caso concreto, pois o direito citado não é absoluto, devendo dar
espaço para o exercício de outros direitos, como o desenvolvimento econômico.
A função social da propriedade tem como fundamento a coexistência dos interesses
individuais e sociais. Isso significa que o particular poderá exercer sua atividade, mas esta
poderá sofrer limitação, pautando esse exercício de modo que não prejudique o ente coletivo
como, por exemplo, deve-se utilizar a propriedade de modo que o meio ambiente esteja
protegido. O direito de propriedade só estará conservado se for cumprida a função social.
Muito se discute qual seria a relação da função social com a propriedade, se aquela seria
apenas um dos aspectos da segunda ou se a função social seria a própria estrutura da
propriedade. Acerca do tema, manifesta-se Perlingieri:
[...] se considerarmos que a propriedade tem uma função social, o instituto
permanece com uma situação subjetiva no interesse do particular, sendo,
ocasionalmente, atribuída a sua função social ao proprietário. Se considerarmos que
a propriedade é uma função social, a propriedade é atribuída ao proprietário já no
interesse público ou coletivo.14
A função social é a estrutura e o fundamento de toda a propriedade. O direito de
propriedade é a função social, cuja existência só será possível se ambas estiverem vinculadas.
Uma vez desrespeitada, haverá a desapropriação do bem pelo poder público mediante
indenização. Em outras palavras, a função social é o regime jurídico do direito de
14
PERLINGIERI, 1970 apud LEMOS, Patrícia Faga Iglecias. Meio Ambiente e Responsabilidade civil do
proprietário: análise do nexo causal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 76.
197
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
15
propriedade. Oportuna é a lição de Eros Grau:
Importa, nestas condições - a verificação de que a propriedade deve cumprir uma
função social - não apenas o rompimento da concepção, tradicional, de que a sua
garantia reside exclusivamente no direito natural, mas também a conclusão - que
enuncio - de que, mais do que meros direitos residuais (parcelas daquele que em
sua totalidade contemplava-se no utendi, fruendi et abutendi na plena in re
potestas), o que atualmente divisamos, nas formas de propriedade impregnadas
pelo princípio, são verdadeiras propriedades - função social, e não apenas,
simplesmente, propriedades. As metamorfoses quantitativas se fazem completas e,
no desenho marcado pela contemplação de limitações ao exercício da propriedadee não, meramente, de limitações ao exercício da propriedade-, surgem novos
institutos que não mais podem ser fidedignamente referidos como propriedades,
mas que apenas encontram expressividade adequada quando indicados como
propriedades - função social.16 (destaque no original)
Portanto, não há como falar em uso, gozo, fruição da propriedade desvinculadas do
conceito da função social, da proteção ao interesse coletivo, em detrimento do particular. Para
que possa exercer plenamente seu direito, o proprietário deverá possuir mecanismos que não
permitam que sua atividade e a utilização do bem possam ir de encontro à função social,
maculando, assim, o direito de propriedade.
2.2 Classificação da função social
Para cumprir a função social da propriedade, deve-se respeitar o ordenamento jurídico,
pois esse se constitui como um todo unitário, ou seja, um sistema, no qual não se pode
interpretar uma norma isoladamente. A interpretação deve ser realizada de forma a considerar
todo o sistema normativo, conforme destaca Miguel Reale:
Interpretar logicamente um texto de Direito é situá-lo ao mesmo tempo no sistema
geral do ordenamento jurídico. A nosso ver, não se compreende, com efeito,
qualquer separação a interpretação lógica e a sistemática. São antes aspectos de um
mesmo trabalho de ordem lógica, visto como as regras de direito devem ser
entendidas organicamente, estando uma na dependência das outras, exigindo-se
reciprocamente através de um nexo que a ratio juris explica e determina.17
Dessa forma, para atender ao ditame constitucional da função social, é mister cumprir
com as normas econômicas, pagar os tributos devidos em decorrência da posse do bem,
honrar com os deveres trabalhistas, pautar sua atividade para a concretização de um meio
ambiente ecologicamente equilibrado, dentre tantas medidas que o Estado pode elaborar para
o preenchimento do seu conteúdo.
Tendo em vista esse aspecto da função social, parte da doutrina faz uma classificação
daquela, que é importante ser mostrada tendo em vista os objetivos desse trabalho científico.
Classifica-se, pois, a função social em função social strictu sensu, função econômica e função
15
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2007.
GRAU, Eros Roberto. Direito urbano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983, p. 66.
17
REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 280.
16
198
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
18
ambiental.
A função social strictu sensu incidirá sobre o fator social, ou seja, sobre a coletividade.
O proprietário deverá agir ou se omitir, de modo que não cause danos a direitos e interesses
coletivos, como, por exemplo, respeitar os direitos dos trabalhadores, pagando suas verbas
trabalhistas corretamente, não os explorar e dar a oportunidade a intervalos.
O pagamento correto dos tributos que incidem na propriedade também está inserido no
fator social, uma vez que o Poder Público se utiliza, em tese, dessas verbas para proporcionar
melhorias e qualidade de vida para a população.
A função econômica pode ser visualizada no pagamento dos tributos que incidem sobre
a produção da propriedade19, pois esse fato faz com que o comércio seja alimentado, gerando
mais empregos e, consequentemente, melhor qualidade de vida para a população, que poderá
ter acesso a direitos básicos, como alimentação, saúde, educação, lazer, entre outros.
Destaca-se, ainda, a função ambiental, que impõe ao proprietário que busque
instrumentos para exercer sua atividade de modo que amenize os danos causados ao meio
ambiente, minimizando os efeitos da crise ambiental hoje vivenciada. Não é preciso muito
esforço para perceber que a proteção ambiental influencia todas as classificações citadas, uma
vez que no aspecto social, as pessoas terão mais qualidade de vida e, no aspecto econômico, o
Poder Público poderá investir em infra-estrutura e saúde, por exemplo, que também
contribuem para um meio ambiente sadio.
Percebe-se, pois, o quanto vantajosa é a função social e suas demais classificações;
entretanto, deve-se dar especial atenção à função ambiental, na medida em que a crise
ambiental está cada vez mais alarmante.
3 A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E A PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE
Na última parte desse trabalho, serão discutidas a crise ambiental e a sociedade de risco
de forma a analisar a influência que o princípio da precaução exerce na função social da
propriedade.
3.1 Um olhar em torno da crise ambiental e da sociedade de risco
Com o advento das revoluções liberais e industriais, a sociedade sofreu inúmeras
modificações. A propriedade passou a ser absoluta e perpétua, e o capitalismo tornou-se o
sistema econômico predominante da Idade Moderna, por meio do qual era prometida uma
18
19
PÚPERI, op. cit., p. 91-134.
Ibid., p. 91-134.
199
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
melhor qualidade de vida e acesso, por todos, aos bens de consumo. Buscava-se a produção
em massa, a aquisição do lucro e, consequentemente, o acúmulo do capital.
A economia capitalista, portanto, criou a sociedade do consumo na vigência da
modernidade, prometendo uma vida mais confortável, a partir das inovações tecnológicas
advindas desse sistema. Ocorre que essa busca pela potencialização do lucro fez com que as
indústrias utilizassem de modo desenfreado os recursos naturais existentes, acreditando que
esses seriam inesgotáveis.
Vale ressaltar que na época moderna defendia-se que o homem tinha total controle de
suas ações, ou seja, que poderia prever todos os riscos e danos que estava causando.
Entretanto, com o passar do tempo, verificou-se que existem alguns danos que o homem não
tem mecanismos para medir, diante de sua imprevisibilidade, em virtude do risco em abstrato.
A revolução industrial do século XVIII foi o embrião do que se chama hoje de
sociedade de risco20, potencializada pelo desenvolvimento tecno-científico e caracterizada
pelo incremento na incerteza quanto às conseqüências das atividades e tecnologias
empregadas no processo econômico.21
A modernidade é mais uma das conseqüências geradas pelo Iluminismo, momento
histórico marcado pela Revolução Francesa, acontecimento este que causou transformações
irreversíveis na sociedade. Proclama-se, a partir de então, de forma mais incisiva, o
racionalismo, o antropocentrismo clássico e o universalismo.
Ilustra Touraine que esse período remonta à concepção clássica da modernidade,
identificando-a com a racionalização. O autor francês sugere uma redefinição da modernidade
como a relação entre razão e o sujeito, carregada de tensões, assim como racionalização e
objetivação, ciência e liberdade. 22
Diante desse panorama, surgiu a sociedade pós-moderna, um reflexo do fracasso da
modernidade, pois, ao fomentar o consumo e a produção de inovações tecnológicas sem
pensar no impacto ambiental que poderiam causar, utilizaram-se desenfreadamente os
20
A teoria da sociedade de risco foi inicialmente fundamentada pelo sociólogo alemão Ulrick Beck, com a
publicação da obra “La sociedad del riesgo”, em meados da década de 80. Segundo Beck, a sociedade de risco
“designa uma fase no desenvolvimento da sociedade moderna, em que os riscos sociais, políticos, econômicos e
individuais tendem cada vez mais a escapar das instituições para o controle e a proteção da sociedade industrial”.
BECK, Ulrick. La sociedade del riesgo. Tradução de Jorge Navarro. Barcelona: Paidós, 1998, p. 24.
21
ROCHA, Leonel Severo. Uma nova forma para a observação do direito globalizado: policontextualidade
jurídica e Estado Ambiental. In: Grandes Temas de Direito Administrativo: homenagem ao Professor Paulo
Henrique Blasi. CARLIN, Volvei Ivo (org.). Campinas: Millennium, 2009, p.527.
22
TOURAINE, Alain. Crítica da modernidade. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1997.
200
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
recursos naturais existentes. Referido momento histórico, assim como uma dimensão ética do
meio ambiente com o homem, na qual se utiliza ilimitadamente dos recursos naturais,
influenciada pelo consumo exacerbado, é chamada de antropocentrismo clássico.
Surge, pois, a sociedade de risco, de acordo com a proposta do sociólogo alemão
Beck23, na qual o homem não consegue e não pode mais controlar o impacto da ciência no
meio ambiente, de modo que se passou a ter receio com as inovações tecnológicas. Antes a
sociedade era completamente aberta e receptiva para tudo que aparecia como novidade. Na
pós-modernidade, o panorama mudou, pois já se percebe que a ciência pode ser (e é falha) e
que, diante de tantas catástrofes que aconteceram, faz-se necessária muita cautela e análise
quanto aos efeitos das descobertas científicas.
Existe um agravante na sociedade de risco, que é a liquidez dos conceitos, defendida por
Bauman.24 A sociedade não cultiva seus valores, hoje tudo é mutável, tudo é relativo. Um
conceito que era dado como verdadeiro ontem, já não é mais hoje. Essa mutabilidade dos
conceitos e valores é bastante preocupante, principalmente no que diz respeito ao risco
ambiental, que poderá também ser modificado, tendo em vista os interesses econômicos e
políticos.
É visível a vinculação da sociedade de risco com a crise ambiental, na qual existem
riscos que podem ser previsíveis e controlados, chamados concretos, amparados no Direito
Ambiental no princípio da prevenção, como também existem aqueles em abstrato, que têm a
possibilidade de ocorrer, protegidos no princípio da precaução. Esses últimos não podem ser
previstos. 25
É inconteste, pois, a necessidade do Estado em proteger o meio ambiente, ainda mais
porque a Constituição de 1988, em seu artigo 225, positivou o meio ambiente sadio como um
direito fundamental.26 Além disso, o constituinte originário foi mais além ao prever que o
meio ambiente ecologicamente equilibrado constitui-se como um dever do proprietário e de
toda a coletividade.
Com o surgimento da sociedade de risco e da crise ambiental, buscam-se, urgentemente,
23
BECK, op. cit.
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Tradução de Mauro Gama, Claudia Martinelli
Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
25
LOPEZ, Tereza Ancona. Princípio da precaução e evolução da responsabilidade civil. São Paulo: Quartier
Latin, 2010.
26
ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 11. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2008.
24
201
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
instrumentos que possam amenizar ou neutralizar os impactos ambientais.
3.2 O meio ambiente como direito e dever fundamental
Diante da crise ambiental e da sociedade de risco, verifica-se a necessidade de um
Estado que valorize o meio ambiente e o proteja, pois ele é essencial para a sadia qualidade de
vida e, por conseguinte, para a efetivação da dignidade da pessoa humana.
A Constituição Federal, em seu artigo 22527, positivou o meio ambiente como um direito
fundamental, pois, mesmo não constando no rol do artigo 5°, a proteção de um meio ambiente
ecologicamente equilibrado, bem como a uma sadia qualidade de vida, garantem o direito a
saúde, a vida, entre outros, efetivando, assim, o princípio da dignidade da pessoa humana.
Deve-se considerar o meio ambiente como uma das faces deste princípio-base da Constituição
de 1988, como bem explica Ingo Sarlet:
Nesse contexto, verifica-se ser de tal forma indissociável a relação entre a
dignidade da pessoa e os direitos fundamentais que mesmo nas ordens normativas
onde a dignidade ainda não mereceu referência expressa, não se poderá – apenas a
partir deste dado – concluir que não se faça presente, na condição de valor
informador de toda a ordem jurídica, desde que nesta estejam inerentes à pessoa
humana. Com efeito, sendo correta a premissa de que os direitos fundamentais
constituem – ainda que com intensidade variável – explicitações da dignidade da
pessoa, por via de consequencia e, ao menos em princípio, em cada direito
fundamental, se faz presente um conteúdo ou, pelo menos, alguma projeção da
dignidade da pessoa.28
Portanto, ao conferir o status de princípio fundamental ao meio ambiente, o constituinte
originário garantiu proteção a outros direitos essenciais para a existência dos seres humanos
que fazem parte e concretizam o princípio da dignidade da pessoa humana.
Os direitos fundamentais podem ser divididos em gerações ou dimensões, que têm a
função de distinguir o momento histórico-jurídico, no qual o direito passou a ser tutelado. A
primeira geração é composta pelos direitos de liberdade, ou seja, os direitos civis e políticos,
que impõem ao Estado uma omissão, não podendo intervir nas liberdades do indivíduo. É o
chamado status negativo de Jellinek, pelo qual a esfera das liberdades do indivíduo não está
sob a tutela do Estado.29
Os direitos fundamentais de segunda geração são os chamados direitos de igualdade que
correspondem aos direitos econômicos, sociais e culturais. O Estado não deve ser omisso,
27
Artigo 225 da Constituição Federal – “Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à
coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.”
28
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal
de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 89.
29
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 24 ed. São Paulo: Malheiros, 2009.
202
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
agindo de forma prestacional a garantir esses direitos aos indivíduos. Chamam-se status
positivo, pois as pessoas têm o direito de exigir do Estado prestações positivas. 30
A terceira geração é composta pelos direitos coletivos, ou seja, aqueles que não
pertencem ao indivíduo em si, mas a toda a coletividade (grupo de pessoas indeterminado), de
modo que essa é a titular do direito, devendo o Estado proteger aquela e não o ser humano de
forma isolada. Essa geração é composta pelo direito ao meio ambiente, à qualidade de vida, à
autodeterminação dos povos, à defesa do consumidor, entre outros.31
O meio ambiente sadio é um dos princípios mais expressivos dessa última geração, pois
a partir da proteção que lhe é dada, protege-se também a vida e a saúde. Por isso, o Estado
tem o dever de obter mecanismos que minimizem os impactos negativos no meio ambiente.
Nessa linha, constata-se que o meio ambiente ecologicamente equilibrado é um dever
fundamental, pois o artigo 225 da Constituição Federal dispõe que o Poder Público tem o
dever de defendê-lo e preservá-lo, para as presentes e as futuras gerações.32
Vale ressaltar que o artigo 5°, §1°33 confere aos direitos fundamentais eficácia imediata,
ou seja, uma vez positivadas, não precisam de nenhuma regulamentação posterior que os
torne eficazes. Portanto, a administração pública tem a obrigação de garantir que as normas
referentes ao meio ambiente ecologicamente equilibrado sejam imediatamente aplicadas
dando a elas máxima eficácia.
O fundamento para tais atribuições do Poder Público é que, como direito de terceira
geração, o equilíbrio do meio ambiente deve ter primazia sobre os direitos individuais, pois
limitará a ação dos particulares, visando um benefício maior, o do bem-estar da sociedade. A
coletividade também tem, de acordo com o princípio da solidariedade, o dever de proteger
aquele direito.
3.3 O princípio da precaução e a função ambiental da propriedade
Na era moderna, pensou-se que o homem tinha o controle de tudo e, por isso, poderia
controlar suas ações e ter a verdadeira noção dos efeitos que estava produzindo. O risco
abstrato foi percebido pela sociedade de risco, que verificou que o homem não podia controlar
30
Ibid.
TEIXEIRA, Orci Paulino Bretanha. O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito
fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
32
Ibid.
33
Artigo 5° da Constituição Federal de 1988 – “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: Parágrafo 1° - As normas definidoras
dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.”
31
203
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
todas as consequências que suas ações produziriam na natureza.
Com o advento da pós-modernidade, surgiu a sociedade de risco, na medida em que
existem danos ambientais que não podem ser previstos, bem como o homem não tem como
controlar as conseqüências de todas as suas ações. A crise ambiental fica cada vez mais
alarmante como reflexo do descaso com a natureza e, por conseguinte, com a dignidade da
pessoa humana.
O princípio da precaução surge com a finalidade de proteger o risco que ainda não
ocorreu. Não existe a certeza de que o dano será concretizado. Portanto, por meio desse
princípio, existindo incerteza quanto à ocorrência de um prejuízo ao meio ambiente, deve-se
aplicar o citado princípio, pois o interesse coletivo, representado pelo bem estar da sociedade
a partir de um meio ambiente ecologicamente equilibrado deve prevalecer sobre o interesse do
particular.
No entanto, é importante ressaltar que a aplicação desse princípio não pode ser baseada
em qualquer incerteza, mas sim quando houver uma dúvida plausível de que aquela ação
poderá gerar danos ao meio ambiente ou à saúde humana, como por exemplo, a utilização de
alimentos transgênicos, pois não se sabe qual é o seu potencial danoso. 34
Impõe, dessa forma, um meio de gerenciamento de riscos, cujo controle de aplicação,
segundo Alexandra Aragão, dá-se por meio de “princípios gerais de gestão de riscos:
proporcionalidade, não-discriminação, coerência, análise das vantagens e encargos e análise
de evolução científica”.
35
Revela-se como “uma garantia material de realização efectiva do
princípio do nível mais elevado de protecção ecológica”. 36(Destaque no original)
Além da dimensão material, o citado princípio também conquista um viés instrumental,
ao impor a utilização de medidas e de técnicas disponíveis para minimizar o dano ambiental,
não obstante sua previsibilidade.
Esse princípio tem uma enorme importância para o meio ambiente, pois quando a
natureza sofre um dano, ela nunca se recuperará totalmente, mesmo que seja recriado o
ambiente, reflorestadas as árvores, nunca mais aqueles recursos naturais serão os mesmos. A
precaução é aplicada para que, diante de uma incerteza científica de dano, possa-se proteger o
34
ABREU, Lígia Carvalho. A análise do risco no contexto do princípio da precaução. Direito e Ambiente.
Lisboa, ano I, n. 1, p. 159-170, out./dez. 2008.
35
ARAGÃO, Maria Alexandra de Sousa. O princípio do nível elevado de protecção e a renovação ecológica
do direito do ambiente e dos residuos. Coimbra: Almedina, 2006, p. 264.
36
Ibid., p. 265.
204
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
37
meio ambiente, pois na dúvida , esse deve prevalecer. Sobre o tema, expõe Teresa Lopez:
[...] Princípio da precaução é aquele que trata das diretrizes e valores do sistema de
antecipação de riscos hipotéticos, coletivos ou individuais, que estão ameaçar a
sociedade ou seus membros com danos graves e irreversíveis e sobre os quais não
há certeza científica; esse princípio exige a tomada de medidas drásticas e eficazes
com o fito de antecipar o risco suposto e possível, mesmo diante da incerteza.38
Destaca Aragão que o princípio da precaução não “é um princípio de medo ou de
irracionalidade”, como apontam alguns doutrinadores. Ao contrário, defende a autora lusitana
que a precaução se trata “de um princípio racional e tipicamente fundado na responsabilidade
pelo futuro”. Diante dos riscos, é preciso a construção de um “Plano B”, pois o “Plano A” não
se revela mais suficiente para atender às necessidades da sociedade hodierna. 39
A Constituição brasileira de 1988 previu em seu artigo 5°, incisos XXII e XXIII, a
garantia ao direito de propriedade vinculado a sua função social. Com o advento do Código
Civil de 2002, percebeu-se uma prevalência do interesse público sobre o privado, prevendo
também que a propriedade deveria cumprir com a sua função social. O artigo 1228 da citada
lei civil dispõe:
Artigo 1228 - O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o
direito de reavê-la do poder de quem quer que seja injustamente a possua ou a
detenha.
§ 1º. O direito de propriedade deve ser exercitado em consonância com suas
finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de
conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas
naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como
evitada a poluição do ar e das águas. (destacado)
Diante da leitura do dispositivo supracitado, verifica-se uma revolução no direito de
propriedade, uma vez que a mesma deve atender a sua função social, ou seja, só se pode falar
em direito de propriedade, se mencionar a função social e ambiental. Essas não se
caracterizam como um ônus para o proprietário, mas sim fazem parte da própria estrutura da
propriedade, podendo até dizer que a função social faz parte do regime jurídico da
propriedade.40
Observe-se que não se trata de mera previsão formal da função social da propriedade,
como prescrita no Código Civil de 1916. A atual lei civil detalha a função social da
propriedade, na medida em que vincula o direito de propriedade à proteção à flora, à fauna, à
37
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Protecção do ambiente e direito de propriedade: crítica de
jurisprudência ambiental. Coimbra: Coimbra, 1995.
38
LOPEZ, op. cit., p. 103.
39
ARAGÃO, Maria Alexandra de Sousa. Princípio da precaução: manual de instruções. Revista do Centro de
Estudos de Direito do Ordenamento, do Urbanismo e do Ambiente (RevCEDOUA), n. 11, Faculdade de
Direto da Universidade de Coimbra, p. 9-53, Coimbra, 2008, p. 14-15.
40
SILVA, op. cit.
205
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
preservação das belezas naturais, à manutenção do equilíbrio ecológico e a preservação
patrimônio histórico e artístico, assim como o uso da propriedade em consonância com as
determinações da legislação ambiental.
Trata-se de verdadeira atribuição de função ambiental à propriedade, que pode ser
definida como a restrição do exercício do direito de propriedade ao “conjunto de atividades
que visam garantir a todos o direito constitucional de desfrutar um meio ambiente
equilibrado e sustentável, na busca da sadia e satisfatória qualidade de vida, para a presente e
futuras gerações”.41
Oportuna a lição de Guilherme Figueiredo ao afirmar que “o que parece inadmissível,
no exame da dimensão ambiental da função social da propriedade, é ignorar que esse
princípio integra o direito de propriedade e é dotado de eficácia plena.”
42
(destaque no
original)
O Código Civil traz uma cláusula aberta em prol do meio ambiente ao assegurar que a
função ambiental deve ser garantida também de acordo com a legislação especial e não
apenas com os componentes trazidos na redação literal do diploma normativo. A cláusula tem
dupla dimensão, impondo o dever negativo de evitar prejuízo a terceiros e à qualidade do
meio ambiente e o dever positivo de adotar práticas que preservem a saúde do meio
ambiente.
Dessa forma, o princípio da precaução se manifesta na função ambiental da propriedade
como instrumento para a sua efetivação, pois a precaução analisará as ações que poderão ou
não causar danos ao ambiente, devendo ser aplicada nos casos em que houver uma incerteza
científica plausível quanto ao potencial de determinada ação gerar um prejuízo.
Ocorre que o meio ambiente, suas dimensões, conceitos e objeto, estão em constante
transformação, em virtude da liquidez dos conceitos e das incertezas científicas, estando,
assim, aberto para as alterações que a sociedade sofre, por isso chamado de cláusula aberta,
como assim ensina Orci Teixeira:
[...] esta fundamentabilidade decorre do fato de serem os direitos fundamentais
elementos basilares da Constituição, o que permite a abertura para outros direitos
não constantes de seu texto. Diante dessa condição, o direito ambiental brasileiro é
um sistema aberto e em evolução, o que impede o seu engessamento e a
41
SANT´ANNA, Mariana Senna. Planejamento urbano e qualidade de vida: da Constituição Federal ao plano
diretor. In Direito Urbanístico e Ambiental. DALLARI, Adilson Abreu; DI SARNO, Daniela Campos Libório
(coord.). Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 153.
42
FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de. A propriedade no Direito Ambiental. 4. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2010, p. 95.
206
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
cristalização de seus princípio e conceitos. E, em razão da sua finalidade, o núcleo
do direito fundamental ao ambiente sadio – a sadia qualidade de vida – determina
as suas dimensões ou dupla perspectiva.43
A partir dessa característica do direito ambiental, pode-se concluir que a mesma incide
sobre a função ambiental da propriedade, no que diz respeito à aplicação do princípio da
precaução, pois aquela também é uma cláusula aberta, que poderá ter seu conteúdo alterado.
À medida que o Direito evolui de forma a se adequar ao contexto social, o princípio da
precaução revela-se como um agente que preencherá não apenas as lacunas, mas o próprio
conteúdo da função ambiental.
É de notar, ainda, que a precaução é utilizada não apenas em seu caráter instrumental,
mas também substancial, ou seja, de acordo com o caso concreto irá avaliar se há incerteza
jurídica plausível, verificando se a propriedade está ou não cumprindo com sua função
ambiental.
Em verdade, quanto mais se estuda a propriedade e o meio ambiente, como institutos
jurídicos, percebe-se uma relação reflexiva e complexa entre eles, na medida em que um
provoca transformações estruturais e qualitativas no outro.
CONCLUSÃO
O direito ao meio ambiente sadio é caracterizado no direito brasileiro como um direito
fundamental de terceira geração, do qual decorrem inevitáveis restrições ao exercício do
direito de propriedade. Referidas limitações ocorrem porque o meio ambiente sadio também
se revela como um dever fundamental, o que acarreta na necessidade do atendimento a
obrigações negativas e positivas ao proprietário.
Verifica-se que a função social possui um conteúdo ambiental de forma a impor ao
proprietário deveres de proteção ao meio ambiente sadio. Em virtude das incertezas científicas
e da liquidez dos conceitos, o princípio da precaução se revela como um importante
mecanismo de caráter instrumental e material para o preenchimento do conteúdo da função
social da propriedade em defesa da sustentabilidade.
Como se vê, a imbricada relação da propriedade com o meio ambiente demanda intensa
investigação científica. Trata-se de um conjunto de feixes com obrigações, deveres,
institutos, valores, tudo interligado de forma complexa, uma vez que a sustentabilidade se
torna uma função essencial do direito de propriedade, podendo a mesma ser materializada
por meio de uma típica função ambiental da propriedade.
43
TEIXEIRA, op. cit.
207
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
O princípio da precaução, um dos basilares do Direito Ambiental, ao lidar com um risco
abstrato oriundo das incertezas científicas, agirá para a efetivação da função ambiental da
propriedade, pois o direito ao meio ambiente é aberto, ou seja, está em processo de
transformação e evolução, podendo modificar o conteúdo dos seus institutos. É de se verificar,
pois, que a precaução preencherá, de acordo com o caso concreto, não apenas as lacunas
existentes na função social, mas o próprio conteúdo da função ambiental da propriedade de
forma a analisar se a mesma está ou não sendo cumprida pelo proprietário com vistas a
alcançar a sustentabilidade.
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renovação ecológica do direito do ambiente e dos residuos. Coimbra: Almedina, 2006.
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Direito do Ordenamento, do Urbanismo e do Ambiente (RevCEDOUA), n. 11, Faculdade
de Direto da Universidade de Coimbra, p. 9-53, Coimbra, 2008.
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TOURAINE, Alain. Crítica da modernidade. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1997.
209
A DIMENSÃO AMBIENTAL DA PROPRIEDADE PRIVADA
Giselle Marques de Araújo 1
RESUMO: A evolução do conceito de propriedade privada incorporou princípios de ordem
pública, de forma que a concepção contemporânea deste importante instituto jurídico só pode
ser pensada levando-se em consideração a dimensão ambiental que a propriedade deve ter e
tem, dentro de uma perspectiva de desenvolvimento sustentável, que garanta o respeito ao
meio ambiente saudável e à diversidade cultural entre os povos. Embora o modelo neoliberal
tenha alcançado a hegemonia no mundo, não conseguiu solucionar os graves problemas
sociais, culturais e econômicos da humanidade, o que resulta na necessidade da atuação
positiva do Estado para a efetivação dos direitos humanos, das oportunidades sociais e do
acesso aos espaços públicos de discurso e de poder, como forma de conter as erosões do meio
ambiente e da cultura. Nessa direção a Constituição brasileira de 1988, inspirada na doutrina
dos direitos humanos, proclamou no artigo 225 que todos têm direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado. Ao fazê-lo instituiu um novo paradigma no tocante à propriedade
privada, adequado às necessidades deste inicio de século. Com efeito, não mais é possível
viver como se fossemos a última geração sobre a terra. Precisamos estabelecer um novo
compromisso com o planeta em que vivemos.
PALAVRAS-CHAVE: Meio
Desenvolvimento sustentável.
ambiente;
Propriedade
privada;
Diversidade
cultural;
ABSTRACT: The evolution of the concept of private property incorporating principles of
public policy, so that the contemporary conception of this important legal principle can only
be designed taking into account the environmental dimension of the property should have and
has, within a development perspective, guaranteeing compliance to a healthy environment and
cultural diversity among peoples. Although the neoliberal model reached the hegemony on the
world, it couldn't solve the serious social, cultural and economic problems of the humanity,
what results in the necessity of the positive action of the State to the effectuation of the human
rights, the social opportunities and the access of the public spaces of speech and power, as a
way of contain the erosions of the environment e culture. In this direction the Brasilian
Constitution of 1988, inspired by the doctrine of human rights, proclaimed in Article 225 that
everyone is entitled to an ecologically balanced environment. In so doing established a new
paradigm about private property, appropriate to the needs of this beginning of century. Indeed,
it is no longer possible to live as if we were the last generation on earth. We need to establish
a new commitment to the planet we live on.
KEY-WORDS: Environment, Private property, Cultural diversity, Sustainable development.
1
Mestre e Doutoranda em Direito - Universidade Gama Filho – Rio de Janeiro. Professora de Direito Ambiental
da Pós-graduação Latu Sensu da Unaés-Anhanguera.
Advogada em Campo Grande-MS. E-mail:
[email protected].
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
INTRODUÇÃO
Ao introduzir a obra “A condição humana”, Arendt (1997, p. 9) menciona o
lançamento ao universo do satélite que, durante algumas semanas, girou em torno da terra
“segundo as mesmas leis de gravitação que governam o movimento dos corpos celestes”,
embora não fosse sol, lua ou estrela. Para Arendt (1997), este evento, à época (1957),
ultrapassa em importância todos os outros, até mesmo a desintegração do átomo. O curioso,
porém, segundo a historiadora, é que a reação não foi de orgulho nem assombro ante a
enormidade da força e proficiência humanas, mas alívio, por ter sido dado o “primeiro passo
para libertar o homem de sua prisão na terra”.
Hoje, decorridos mais de meio século deste acontecimento, o desejo da humanidade de
“não permanecer para sempre presa a terra”, adquire status de urgência, não mais na
perspectiva triunfalista de superação da natureza, mas na de possibilidade de sobrevivência da
espécie racional, ante a destruição iminente do ambiente em que vivemos. Hobsbawn (1995,
p. 562) alerta que “as forças geradas pela economia tecnocientífica são agora suficientemente
grandes para destruir o meio ambiente, ou seja, as fundações materiais da vida humana”.
Mooney (2002, p. 29), por sua vez, elege como “grande conflito” de nosso tempo, o fato de
que o formidável avanço tecnológico não impediu a concentração da riqueza nas mãos de um
sexto da população mundial: “que tem se beneficiado do progresso científico, tecnológico e
da apropriação da maior parte dos recursos naturais finitos, deixando para a maioria a
degradação do meio ambiente e a ampliação do fosso entre pobres e ricos”.
Nesse contexto, o presente artigo tem por escopo analisar o processo de concentração
da “expansão exponencial de nossa capacidade tecnológica” (HOBSBAWM, 1995, p. 564),
nas mãos de uma minoria, que relega a maioria da humanidade às poluídas periferias das
grandes cidades, verificando em que medida pode continuar a ser considerada válida a já
clássica visão acerca da garantia dos direitos fundamentais da pessoa humana, em especial os
direitos humanos de primeira geração (BOBBIO, 1992), o direito à vida e à liberdade,
enquanto vinculados a um “não agir” do Estado, a uma atuação negativa do ente estatal. Para
desenvolver esta reflexão, estabelecemos como paradigma analítico a hipótese de que a
propriedade privada, um dos pilares de sustentação do modo de produção capitalista, não mais
pode ser considerada como um valor absoluto, só estando legitimada quando contemplada sua
dimensão ambiental.
211
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
2 DESAFIOS DA HUMANIDADE E DO ESTADO CONTEMPORÂNEO
Neste inicio de século, a humanidade depara-se com um inolvidável paradoxo: se, de
um lado, o modelo neoliberal alcançou a hegemonia no mundo ocidental, de outro lado, as
desigualdades sociais, econômicas e culturais aprofundam-se, apontando para a necessidade
da atuação positiva do Estado, até mesmo para a garantia de direitos que, até então,
acreditava-se dependentes da omissão estatal, como é o caso do direito à liberdade. Sem
(2000, p. 54) apresenta estudos empíricos discorrendo sobre o que chamou de “liberdades
instrumentais”, que seriam aquelas que contribuem, direta ou indiretamente, para as
liberdades globais que as pessoas têm para viver como desejariam, e, dentre estas, destaca as
oportunidades sociais:
Oportunidades sociais são as disposições que a sociedade estabelece nas áreas de
educação, saúde, etc., as quais influenciam a liberdade substantiva de o individuo
viver melhor. Essas facilidades são importantes não só para a condução da vida
privada (como por exemplo, levar uma vida saudável, livrando-se de morbidez
evitável e de morte prematura), mas também para uma participação mais efetiva
em atividades econômicas e políticas. Por exemplo, o analfabetismo pode ser uma
barreira formidável à participação em atividades econômicas que requeiram
produção segundo especificações ou que exijam rigoroso controle de qualidade
(uma exigência sempre crescente no comércio globalizado).
Sem (2000, p. 58) aponta o Japão como exemplo pioneiro de intensificação do
crescimento econômico por meio da oportunidade social, através da educação básica e, a
seguir, traça um paralelo entre o desenvolvimento na China e na Índia. Destaca os resultados
notáveis alcançados pela primeira em grande parte pelo investimento na educação, que levou
a população da China, assim como de outros países asiáticos, ao aproveitamento das
oportunidades econômicas oferecidas por um sistema de mercado propício. O direito à
educação, no entanto, apresenta-se à humanidade ainda como um desafio, um objetivo a ser
perseguido. Nesse sentido, importante foi o reconhecimento do direito à educação como
integrante do “direito ao desenvolvimento” pela Conferência Mundial dos Direitos Humanos,
realizada em Viena, de 14 a 25 de junho de 1993, um “direito universal, inalienável, e parte
integrante dos direitos humanos fundamentais” (Artigo 10 da Carta de Viena).
Nesse tocante, Alves (2007, p. 29) destaca que os Estados Unidos vinham votando
sistematicamente contra a inclusão do direito ao desenvolvimento entre aqueles considerados
fundamentais. A flexibilização desta postura possibilitou a inclusão do conceito de que “a
pessoa humana é o sujeito central do desenvolvimento”, e de que “a falta de desenvolvimento
212
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
não pode ser invocada para justificar limitações aos (outros) direitos humanos reconhecidos
internacionalmente” na Declaração de Viena.
O século XXI tem suscitado este debate acerca da necessidade da atuação positiva do
Estado, inclusive no tocante à garantia daqueles direitos que pareciam depender do “não agir”
do Estado para que pudessem ser efetivados. Esse é o pano de fundo da discussão proposta
por Owen M. Fiss (2005), na obra “A ironia da liberdade de expressão”, quando nos convida a
repensar o papel do Estado na garantia do direito à liberdade de expressão, e nos alerta que a
omissão pode significar um “efeito silenciador” da voz de grupos considerados minoritários
na sociedade, o que fere de morte a diversidade e a o pluralismo do debate público (FISS,
2005, p. 48-49). A questão não é simples, pois a regulação estatal em matéria de liberdade de
expressão pode resultar em um ingrediente de arbitrariedade na escolha do Estado quanto ao
discurso de um grupo, em detrimento do outro.
Eu acredito que algo mais está envolvido, todavia. O Estado não está tentando arbitrar
os interesses discursivos dos vários grupos, mas, ao contrário, está tentando estabelecer
precondições essenciais para a autogovernança global, assegurando que todos os lados sejam
apresentados ao público. Se isso pudesse ser realizado simplesmente pelo fortalecimento os
grupos desfavorecidos, o objetivo do Estado seria alcançado. Mas nossa experiência com
programas de ação afirmativa e outros similares nos ensinou que a questão não é tão simples.
Algumas vezes nós devemos reduzir as vozes de alguns para podermos ouvir as vozes dos
outros.
A intervenção do Estado em matéria de direitos fundamentais, portanto, é bastante
delicada, havendo uma linha tênue entre a possibilidade de coexistência dos princípios de
direitos fundamentais, especialmente quando parecem estar em rota de colisão dois ou mais
princípios. Esta discussão segundo Dworkin (1978, p. 44), “é hoje o coração das
Constituições”, e é dentro dessa abordagem que pretendemos contribuir com a reflexão acerca
da aparente dicotomia entre o direito à propriedade e os princípios constitucionais
ambientais.
3 A PROPRIEDADE E O MEIO AMBIENTE
O direito à propriedade, com efeito, foi concebido nos séculos XVII, XIX e início do
século XX dentro de uma visão não intervencionista do Poder Público, que somente deveria
agir para proteger os titulares da propriedade privada, um dos pilares mais importantes,
verdadeiro sustentáculo do sistema capitalista. O direito civil, historicamente, tem servido à
213
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
proteção dos interesses do proprietário, de tal forma, que Paolo Grossi chegou a apontar o
Código como um dos mitos jurídicos da modernidade, um verdadeiro “catecismo” da grande
antítese jusnaturalista, a mais grave e pesada antítese da história do direito moderno. Segundo
Grossi (2004, p. 129), “se o Código fala a alguém, esse alguém é a burguesia que fez a
revolução e que finalmente realizou a sua plurissecular aspiração à propriedade livre da terra e
à sua livre circulação”. E, prossegue:
O Código fala ao coração dos proprietários é, sobretudo, a lei tuteladora e
tranqüilizadora da classe dos proprietários, de um pequeno mundo dominado pelo
„ter‟ e que sonha em investir as próprias poupanças em aquisições fundiárias (ou
seja, o pequeno mundo da grande comédie balzaquiana) (GROSSI, 2004, p. 129).
Desde sua gênese, esse Código faz emergir um fenômeno, contraditório em sua
pretensão finalística, que seria a de realizar o projeto da burguesia, de pleno acesso à titulação
da propriedade. Com o passar do tempo, o Código não pôde mais fazer ouvidos mouros à
constitucionalização do direito civil, de modo que a intervenção estatal sobre o instituto da
propriedade passa a ser cada vez mais significativa, até que hodiernamente a função social
está sendo apontada pelos doutrinadores como verdadeiro “atributo da propriedade”.
Nesse diapasão, é importante refletir até que ponto a “função social” atribuída à
propriedade pela Constituição Federal de 1988 enquanto direito fundamental, tem
influenciado concretamente a atuação do Estado, verificando se este tem definido um marco
regulatório, tendente à efetivação do que está proclamado no artigo 225 da Constituição
Federal, no sentido de que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”.
Quais medidas têm sido adotadas nessa direção? Estariam os latifundiários sofrendo
limitações concretas impostas pelas normas de proteção ambiental?
Benjamin (2006) alerta quanto à sagacidade dos proprietários, ao reagirem contra os
efeitos que o artigo 225 da Constituição Federal vem produzindo no instituto jurídico da
propriedade privada:
Os degradadores descobriram que, em vez de procederem com atos frontais de
desrespeito às normas ambientais existentes, lhes era mais fácil e lucrativo
espoliar o meio ambiente simplesmente brandindo seu direito de propriedade,
fazendo uso da técnica – no mais, absolutamente legítima – da desapropriação
indireta. [...] Em torno dessa matriz patológica de conduta, estima-se que só o
Estado de São Paulo já tenha sido condenado em mais de 2 bilhões de dólares,
montante que certamente daria para adquirir, a preços de mercado, boa parte das
unidades de conservação do Brasil! [...] Por que e como chegamos a esse extremo
de descaso para com o patrimônio público (recursos financeiros e ambientais)?
Quais as condições materiais, humanas e normativas que propiciaram a utilização
214
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
capciosa (em alguns casos, verdadeiramente criminosa) de institutos jurídicos tão
importantes como o direito de propriedade e a desapropriação indireta?
A atuação do Estado no que se refere à tutela ambiental da propriedade, portanto,
reclama muito mais do que atuações pontuais referentes à autorização para a instalação de
atividades de impacto ambiental considerável, ou a instituição de unidades de proteção,
ultrapassando em larga escala o que se tem feito no tocante à aplicação e à fiscalização das
normas ambientais. Atualmente, percebemos que a proteção ao meio ambiente, cujo equilíbrio
ecológico mereceu salvaguarda constitucional, passou a integrar o próprio conceito de
propriedade, como corolário da função social que a propriedade obrigatoriamente deve ter e
tem, conforme registrou Gama (2008, p. 51):
A idéia da função social como uma limitação à propriedade, portanto, não deve
mais ser reconhecida como correta. Hoje, com base nos arts. 5º., XXIII, 170,III,
182, parágrafos 2º. e 4º., 184 e 186, da Constituição Federal, deve-se reconhecer
que a função social integra a propriedade; a função social é a propriedade, e
não algo exterior ao direito de propriedade. E, uma vez não cumprida a função
social, o direito de propriedade será esvaziado (grifos nossos).
Avançando ainda mais nessa linha de argumentação, defendemos a idéia de que
também passa a integrar o conceito de propriedade, enquanto espécie do gênero função social,
um novo conceito: a função ambiental. Isto em decorrência da adoção pelo sistema
constitucional do principio de que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, cabendo ao Estado e à sociedade o dever de preservá-lo para as presentes e
futuras gerações. A constitucionalização dessa matéria impõe um novo modo de apropriação
de bens, conforme destaca Ayala (2010, p. 293):
A obrigação de defesa do meio ambiente e a função social da propriedade
condicionam a forma de valoração dos bens para a finalidade de apropriação.
Definem uma nova modalidade de apropriação dos bens, que complementa o
sentido econômico, fazendo com que seja integrada à dimensão econômica uma
dimensão que poderia ser chamada de dimensão de apropriação social. [...] Nessa
perspectiva, qualquer relação de apropriação deve permitir o cumprimento de
duas funções distintas: uma individual (dimensão econômica da propriedade), e
uma coletiva (dimensão socioambiental da propriedade).
Esta dimensão socioambiental da propriedade, é um dos mais importantes desafios que
estão colocados para o Estado e para a sociedade contemporânea, não podendo estar restrito
às ações de secretarias especificas de defesa do meio ambiente, nos âmbitos estadual e
municipal, mas devendo irradiar sobre todas as políticas públicas a serem implementadas nas
diversas esferas governamentais, em especial a política educacional. Não se pode admitir que,
na atualidade, os currículos oficiais deixem de contemplar a problemática ambiental. Também
215
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
não se pode justificar a aquisição da propriedade, ou sua manutenção, sem que a dimensão
ambiental esteja contemplada. Nesse sentido, prossegue Ayala (2010, p. 293):
O principio da função social da propriedade se superpõe à autonomia privada, que
rege as relações econômicas, para proteger os interesses de toda a coletividade em
torno de um direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Somente a
propriedade privada que cumpra a sua função social possui proteção
constitucional.
Daí ser forçoso concluir que o desrespeito ao meio ambiente deslegitima o sistema de
apropriação, abrindo-se toda uma gama de possibilidades tanto para a sociedade quanto para o
Estado, no que se refere ao não exercício da função ambiental da propriedade privada. Esta
dimensão socioambiental justifica-se, dentre outros argumentos, porque a degradação
ambiental e o aniquilamento da diversidade cultural são faces de uma mesma moeda, na qual
o planeta e a humanidade sempre saem como perdedores.
4 DEGRADAÇÃO AMBIENTAL E CULTURAL
A degradação do meio ambiente caminha a passos largos, na medida em que avança o
processo de globalização, derrubando as fronteiras da diversidade cultural entre os povos,
uniformizando-se o modo de expressão dos sentimentos humanos. Compõe-se um amálgama
no qual vão se perdendo os valores que diferenciam as nações, reduzindo-se a multiplicidade
do mundo social a uma unidade que se pretende global. O fim das disputas ideológicas que
marcaram o século XX levou à hegemonia do neoliberalismo, o que faria supor que o “fim da
história”, anunciado por Francis Fukuyama (1989), ao menos no sentido hegeliano do tema,
desembocaria em um período de tranqüilidade no cenário mundial, resultando em mais
desenvolvimento e mais paz social. Não foi, no entanto, o que ocorreu. Os ataques suicidas a
alvos civis nos Estados Unidos da América, no dia 11 de setembro de 2001, e que culminaram
com a derrubada das chamadas “Torres Gêmeas”, símbolo da prosperidade americana, parece
ter exposto uma ferida da chamada “ordem mundial” (ALBUQUERQUE, 1995). O
desemprego atingiu índices inimagináveis na Europa e nos EUA, e a concentração de renda
nos países periféricos continua a relegar milhares de pessoas a um estado de absoluta miséria.
Nessa conjuntura, o instituto da propriedade privada, enquanto pilar de sustentação do
modelo neoliberal vem sofrendo significativos abalos. No segundo volume da obra “O
capital” Marx (1994, p. 885) já alertava que a economia política confunde duas espécies
muito distintas de propriedade: a que se baseia sobre o trabalho do próprio produtor, e a sua
antítese direta: a que se fundamenta na exploração do trabalho alheio, e concluía que esta só
cresce sobre o túmulo daquela. Segundo o autor alemão, cuja obra continua a ser um
216
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
importante referencial no estudo das ciências humanas e sociais, na “velha” Europa, a
expropriação do trabalhador de suas condições de trabalho, estabelecendo-se a coexistência
entre capital e trabalho assalariado, foi possível graças a um contrato social de espécie muito
peculiar, através do qual a humanidade adotou um método simples para incentivar a
acumulação do capital, dividindo-se em proprietários de capital e proprietários de trabalho.
Nas palavras de Marx (1984, p. 885), “em suma, a massa da humanidade expropriou-se
a si mesma, imolando-se à acumulação do capital”, o que seria resultado de um entendimento
voluntário, de uma combinação. O capitalismo, no entanto, em sua fase neoliberal utiliza novas
formas de sobrevivência, porém, sem alterar o modo de produção que possibilita a concentração
das riquezas e, em especial, da propriedade privada, nas mãos de poucos. Faz parte da
globalização a instituição de um “padrão de consumo” que atravessa fronteiras geográficas, e
parece uniformizar o que se produz, o que se usa e o que se sonha. A diversidade cultural está
sendo atingida nesse processo, conforme destaca Mooney (2002, p. 27):
Talvez alguém se surpreenda pelo fato de que o desaparecimento de espécies e
sistemas siga pelo mesmo caminho que a perda de línguas, cultura e
conhecimento. Na realidade, surpreendente seria se não fosse assim. Essas
erosões do meio ambiente e da cultura nunca poderiam ocorrer se não fossem
precedidas por uma erosão da equidade.
As conclusões de Mooney estão fundamentadas em dados assustadores, dentre os
quais destacamos os seguintes:
Não menos de 4000 e possivelmente até 90.000 espécies são extintas a cada ano;
As selvas tropicais estão desaparecendo a um ritmo de quase 1% ao ano; a
diversidade genética das culturas está desaparecendo a um ritmo de
aproximadamente 2% ao ano; [...] Estamos destruindo os solos pelo menos 13
vezes mais rapidamente do que o tempo necessário para recuperá-los; a cada ano
se extinguem 2% das línguas do planeta; mais de 80% de todos os livros
traduzidos são traduzidos para apenas quatro línguas européias [...] (MOONEY,
2002, p. 27).
Com efeito, a deterioração cultural e ambiental têm sido traços marcantes do mundo
atual, no qual podem ser vislumbrados muitos cenários de aniquilação, conforme alertou
Henderson (1996, p. 12), que vão “desde holocaustos nucleares e biológicos até ameaças mais
lentas e insidiosas, tais como lixo tóxico, a decadência urbana, a desertificação e a mudança
do clima”. No Brasil, a situação não é diferente. Dias (2002, p. 20) aponta como exemplo
disso o que vem ocorrendo no Distrito Federal: em apenas 40 anos de existência, sua
cobertura vegetal foi reduzida a apenas 15%, e as conseqüências desse “crescimento”
desregrado são: “escassez de água projetada, clima hostil (no período seco a umidade do ar
chega a apenas 8%), desemprego, exclusão social e violência”.
217
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
O avanço da degradação é sustentado pelo modo de produção atualmente vigente nos
países ocidentais, favorecido pelo “analfabetismo ambiental”, que, segundo Dias (2002, p.
85)[2] “representa a maior ameaça à sustentabilidade da civilização humana”, e o antídoto
possível compreende necessariamente a atuação do Estado e, mais que isso, a atuação da
comunidade internacional. A internacionalização da questão ambiental está pautada na
Agenda Internacional, conforme destacou Alves (2007, p. 2):
As razões que levaram à aceitação generalizada da questão do meio ambiente
como tema global são fáceis de apreender. A camada de ozônio, o ar que
respiramos, os mares internacionais não têm fronteiras. A degradação ambiental
dentro de um território, além de ameaçar a população local, ultrapassa facilmente
os limites traçados em qualquer documento político-diplomático. O
desflorestamento incontrolado e a desertificação, assim como a poluição
atmosférica, dispõem de „extraterritorialidade‟ por sua própria natureza.
Dentro deste contexto, emerge a necessidade de um novo e urgente tratamento a ser
dispensado pelo Estado à relação existente entre meio ambiente e propriedade privada. Muitos
dos problemas enfrentados na atualidade em relação a danos ambientais decorrem do uso
irresponsável dos recursos naturais pelos proprietários. Benjamin (2006, p. 7) destaca o que
chamou de “promiscuidade” ontológica e legal entre os dois institutos:
De fato, direito de propriedade e meio ambiente são institutos interligados, como
que faces de uma mesma moeda; nesse sentido, não seria incorreto dizer-se que o
Direito Ambiental é fruto de uma amálgama do Direito das Coisas com o Direito
Público. Com isso queremos mostrar que qualquer tutela do meio ambiente
implica sempre interferência (não necessariamente intervenção, como abaixo
veremos) no direito de propriedade. Interferência essa que, no sistema jurídico
brasileiro, mais do que meramente facultada ou tolerada, é, na origem
constitucional, imposta, tanto para o Poder Público (trata-se de comportamento
vinculado), como para o particular (é comportamento decorrente de função); eis o
fundamento da inafastabilidade das obrigações ambientais.
Esta necessidade está a justificar a relevância do tema proposto neste artigo: a
dimensão ambiental que o Estado deve dispensar à propriedade neste início de milênio,
estabelecendo um novo paradigma para a propriedade privada. Não há mais como se pensar o
instituto jurídico da propriedade, enquanto mero direito de usar, gozar e dispor; há que se
reconhecer que a propriedade deve ser, necessariamente, plasmada nos princípios que
norteiam o direito ambiental, daí propormos como conceito de propriedade: a faculdade do
uso, gozo e disposição da terra de acordo com as normas de proteção ambiental. Este novo
paradigma apresenta-se como indispensável para a sobrevivência da espécie humana sobre a
terra, a fim de que possamos sobreviver nesta já tão sofrida “casa planetária” (SÉGUIN, 2002,
218
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
p. 16).
5 O FENÔMENO DA PUBLICIZAÇÃO DA PROPRIEDADE
O direito civil, historicamente, tem se apresentado como “o mais difícil a ser
controlado nas malhas do poder” (GROSSI, 2004, p. 114). Mas, ainda assim, vem sofrendo
mudanças significativas, que merecem ser aqui assinaladas, sob uma perspectiva histórica.
Logo após a Revolução Francesa, surgiram dois importantes movimentos, que pareciam
inconciliáveis entre si: o das codificações, que contribuiu para a primazia do interesse privado
sobre o interesse público, e que representava, naquele momento, uma vitória da burguesia, em
sua tentativa de empoderamento e de aquisição da propriedade privada, até então reservada à
nobreza; e o da constitucionalização, encarregado de limitar a esfera de atuação do Estado.
Nesse contexto, Estado e propriedade privada eram dois institutos jurídicos situados em pólos
opostos: o Estado, no âmbito do direito público; a propriedade, no do direito privado. Bobbio
(1995, p. 13) destaca que, através do uso constante e contínuo das expressões direito público e
privado, esta acabou por se transformar em uma das “grandes dicotomias”, distinção da qual
se pode demonstrar a capacidade de dividir um universo em duas esferas, conjuntamente
exaustivas. E, prossegue:
Um dos eventos que melhor do que qualquer outro revela a persistência do
primado do direito privado sobre o direito público é a resistência que o direito de
propriedade opõe à ingerência do poder soberano, e, portanto ao direito por parte
do soberano de expropriar (por motivos de utilidade pública) os bens do súdito.
Mesmo um teórico do absolutismo como Bodin considera injusto o príncipe que
viola sem motivo justo e razoável a propriedade de seus súditos, e julga tal ato
uma violação das leis naturais a que o príncipe está submetido ao lado de todos os
outros homens (BOBBIO, 1995, p. 23).
Nesse momento, a esfera privada adquire grande relevância em relação à esfera
pública, e o Estado é reduzido ao mínimo. Mas, a reação a essa concepção liberal vem com
grande força na segunda metade do século XX, trilhando o caminho inverso ao da
emancipação da sociedade civil em relação ao Estado, cuja intervenção na regulação da
economia e dos comportamentos individuais passa a ser reclamada, na esteira dos ventos que
sopram do Leste e sob a influência das idéias do Welfare State. A liberdade de contratar e o
direito de propriedade passam a ser limitados por princípios considerados de ordem pública
(PEREIRA, 1997, p. 13-14), ocorrendo o fenômeno da publicização do direito privado, e,
nesse movimento, a relativização do direito de propriedade.
219
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
A esfera do direito privado vê-se como que “invadida” por princípios de ordem
pública, e, nesse contexto, emerge a “agonia”[3] do Código Civil, e a “crise” de seus
tradicionais institutos, dentre os quais, a propriedade privada. Savatier (1959, p. 286) chega a
enxergar nesse processo uma prolètarization do direito privado, uma associação interessante
entre idéias essencialmente liberais com outras socializantes.
O Estado adquire especial relevância, passando a ter o dever de prestar obrigações
específicas, especialmente no que se refere à saúde e à educação (LOPEZ y LOPEZ, 1996)[4].
Mais recentemente, no âmbito do direito brasileiro, a partir da Constituição de 1988, o Estado
passa a ter, também, a obrigação positiva de garantir a todos o direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado. E é nessa perspectiva que se mostra imprescindível entender o
fenômeno de publicização do direito civil, que abrange o instituto jurídico da propriedade
privada, a partir do qual esta passa a ser inserida no contexto de sua obrigatória função social,
sem a qual não mais pode subsistir.
A dicotomia entre o direito público e o privado vem sendo relativizada
(TRABUCCHI, 1973)[5], e alguns doutrinadores chegam até mesmo a sugerir a unificação
dos dois ramos do direito, tendo como sustentáculo a Constituição, que passaria a regular
diretamente as relações privadas (PERLINGERI, 1997, p. 54)[6]. Outros propõe a visão do
fenômeno jurídico a partir de dois focos centrais de força normativa, distintos, mas não
estanques entre si[7]. A esse respeito, Barroso (2010, p. 60) assevera:
O debate jurídico e filosófico da atualidade deslocou-se da diferenciação formal
entre direito público e direito privado para uma discussão mais ampla, complexa e
sutil acerca das esferas pública e privada na vida dos povos e das instituições. A
percepção da existência de um espaço privado e de um espaço público na vida do
homem remonta à Antiguidade, no mínimo ao advento da polis grega. Aristóteles
já afirmava a diferença de natureza entre a cidade, esfera pública, e a família,
esfera privada. A demarcação desses dois domínios tem variado desde então, no
tempo e no espaço, com momentos de quase desaparecimento do espaço público e
outros que em sua expansão opressiva praticamente suprimiu valores tradicionais
da vida privada. As constituições modernas influenciam e sofrem a influência
dessa dicotomia, que guarda, no entanto, algumas dimensões metajuridicas, isto é,
fora do alcance do Direito. O tema merece uma reflexão interdisciplinar.
A Constituição brasileira foi extremamente influenciada por esse movimento de
supremacia do poder público sobre o privado, e ousou regular assuntos anteriormente
adstritos à esfera individual, como é o caso da família, da criança e do adolescente e da
propriedade privada. Não bastasse isso, os princípios constitucionais passaram a “condicionar
a própria leitura e interpretação dos institutos de direito privado. A dignidade da pessoa
humana assume sua dimensão transcendental e normativa” (BARROSO, 2010, p. 60). E, na
220
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
medida em que a pessoa humana, para viver a sua dignidade, precisa de um meio ambiente
ecologicamente equilibrado, o exercício do direito à propriedade privada, só pode ocorrer na
medida em que atenda à função social e ambiental.
Pontuar esse debate é, portanto, importante para a compreensão das transformações
sofridas pelo instituto jurídico da propriedade privada ao longo dos dois últimos séculos, de
modo que atualmente o direito de propriedade só pode ser entendido enquanto plasmado no
direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. A Constituição brasileira, nesse tocante,
é exemplo vivo desta afirmativa: no Titulo VII, capítulo 1, que trata dos “princípios gerais da
atividade econômica”, o artigo 170 destacou que a ordem econômica tem por fim assegurar a
existência digna, conforme os ditames da justiça social, devendo ser observados princípios,
dentre os quais, o da propriedade privada (inciso II) e o da função social da propriedade
(inciso III). Conciliar-se estes princípios, no entanto, não é tarefa fácil, ainda mais quando se
fala, a um só tempo, de propriedade privada e justiça social, a cujo respeito busca-se a opinião
de Canotilho (1999, p. 241):
Estado de justiça social é aquele em que se observam e protegem os direitos,
incluindo os direitos das minorias, onde haja equidade na distribuição de direitos
e deveres fundamentais e na determinação da divisão de benefícios da cooperação
em sociedade e que exista igualdade de distribuição de bens e igualdade de
oportunidades.
Pelos ensinamentos de Canotilho, num país onde há violenta concentração de renda,
como o Brasil, não se pode afirmar que há justiça social. O termo “função social” já aparecia
nas Cartas anteriores. O constituinte de 1988, no entanto, especificou o conteúdo jurídico do
tema, ao menos no tocante à propriedade rural, quando, no artigo 186, afirmou que “a função
social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e
graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I - aproveitamento racional e
adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio
ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores”.
Ao relacionar a função social da propriedade com a preservação do meio ambiente, o
legislador constitucional atribuiu a ela um novo conteúdo, subordinado a interesses daqueles
que não são proprietários, como asseverou Tepedino (1999, p. 280):
A propriedade não seria mais aquela atribuição de poder tendencialmente plena,
cujos confins são definidos externamente, ou, de qualquer modo, em caráter
predominantemente negativo, de tal modo que, até uma certa demarcação, o
proprietário teria espaço livre para suas atividades e para a emanação de sua
senhoria sobre o bem. A determinação do conteúdo da propriedade, ao
contrário, dependerá de centros de interesses extraproprietários, os quais vão
221
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
ser regulados no âmbito da relação jurídica de propriedade (grifos nossos).
Neste novo cenário, a propriedade aparece como direito condicionado e limitado,
sendo possível até mesmo a desconsideração da personalidade jurídica do proprietário, no
caso concreto, face à indivisibilidade do meio ambiente. A Constituição, com efeito,
reconheceu o meio ambiente como um bem jurídico autônomo, de caráter difuso, uma vez que
“ele não se funda em um vínculo jurídico determinado, específico, mas em dados genéricos,
contingentes, acidentais e modificáveis” (BULOS, 2001, p. 1228). Do ponto de vista jurídico,
a definição supera o sentido econômico da expressão, segundo a qual “bens são coisas
suscetíveis de apropriação pelo homem e legalmente alienáveis, economicamente apreciáveis”
(ALBUQUERQUE, 1999, p. 96).
Ao instituir o meio ambiente como “bem de uso comum do povo”, o caput do artigo
225 da Constituição Federal, utilizou uma expressão do Código Civil de 1916, atribuindo a
ela, no entanto, segundo Machado (1994, p. 48), sentido diferente daquele abraçado pelo
direito privado “porque se criou um tertium genus, ou seja, um bem que não é público nem
particular”. Essa terceira espécie de bem se denomina bem ambiental, que, segundo Bulos
(2001, p. 1228), é aquele que ultrapassa a esfera particular:
O que se pretendeu dizer é que o meio ambiente constitui um bem jurídico
próprio, diferente daquele ligado ao direito de propriedade. Um industrial,
por exemplo, pode ter uma fazenda onde a sua fábrica foi instalada. Porém não
poderá queimar as árvores ali presentes, sob pena de comprometer a qualidade do
ar atmosférico. Então, de quem é o ar que se respira? É do industrial? É dos seus
empregados? Claro que não. É de todos, simultaneamente. [...] Por isso, quando o
dispositivo menciona “bem de uso comum do povo”, o faz na acepção restrita,
porque sua dimensão ecológica extrapola o direito de propriedade, tomado no
seu sentido clássico de o sujeito usar, gozar e dispor da coisa como preferir (grifos
nossos).
O exemplo citado por Bulos (2001) está muito bem colocado. Partindo da mesma
situação nele retratada, passamos a discorrer sobre outros aspectos, eis que o industrial, não só
não poderá queimar as árvores ali presentes, como, se for necessário desmatar a área na qual a
fábrica será instalada, precisará abrir um processo pedindo autorização para tanto à secretaria
estadual responsável pela execução das políticas ambientais, ou ao Instituto Brasileiro do
Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - IBAMA[8], dependendo do caso.
Paralelamente, precisará abrir outro processo específico, com vistas à obtenção da licença
prévia[9], que dirá se o local escolhido é ambientalmente viável, e se a concepção do
empreendimento é adequada. De posse da Licença Prévia, pedirá a Licença de Instalação,
instruindo o processo específico com os projetos de engenharia, contendo o Sistema de
222
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Controle Ambiental e o Plano de Auto-monitoramento das atividades industriais. Após estar
com a fábrica edificada, e com as instalações em perfeitas condições de funcionamento, o
industrial precisará abrir um processo específico para a obtenção da Licença de Operação, que
é a única que lhe dá poderes para o exercício da atividade. Tudo de acordo com o art. 225 da
CF e a Resolução no. 237/96 do Conselho Nacional do Meio Ambiente - CONAMA.
Vejamos, portanto, as etapas do procedimento administrativo que possibilitará ao
industrial instalar a sua fábrica: processo de Autorização para desmatamento; processo de
licença prévia; processo de licença de instalação; processo de licença de operação. O
proprietário terá que instruir seu pedido com mapas contendo: a locação da reserva legal, as
áreas de preservação permanente, a justificativa técnica demonstrando que, do ponto de vista
do meio ambiente, a área escolhida, é a mais viável. É o ritual que a legislação atualmente
exige do proprietário para o exercício do direito de propriedade, no exemplo citado,
demonstrando que a propriedade atualmente sofre consideráveis limitações, decorrentes dos
princípios constitucionais da função social e da função ambiental, cuja inobservância pode
levar até mesmo à perda do direito de propriedade. Nesse sentido, é o parecer de Pinto Junior
e Farias (2005, p. 20):
Portanto, interpretando a Constituição à luz desses princípios, resta claro que deve
necessariamente sofrer a desapropriação a propriedade cuja exploração não
respeite a vocação natural da terra, degradando o seu potencial produtivo, que não
mantenha as características próprias do meio natural, que agrida a qualidade dos
recursos ambientais, não contribuindo para a manutenção do equilíbrio ecológico
da propriedade, que desrespeite as relações de trabalho, que não seja adequada à
saúde e à qualidade de vida dos que nela laboram e das comunidades vizinhas.
No regime do art. 225 da Constituição Federal, o meio ambiente pertence a todos,
tratando-se de um bem indivisível. O planeta, de fato, representa um todo, no qual cada
ecossistema ganha amplitude. Na medida em que o proprietário viola uma parte desse todo, o
conjunto inteiro é atingido, o que legitima a ação do Estado na fiscalização e sanção, podendo
chegar até mesmo à desapropriação indireta. Esta a concepção que foi abraçada pela
Constituição Federal em vigor no Brasil, e, mais tarde, pelo Código Civil de 2002[10],
conferindo à propriedade privada uma nova dimensão. A Constituição Federal Brasileira está
concatenada com essa realidade, na qual o instituto da propriedade privada não mais pode ser
dissociado da função ambiental, não apenas como ideal utópico, mas como conteúdo material
inerente ao próprio domínio.
223
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
6 O PAPEL DA SOCIEDADE CIVIL: PROPOSIÇÕES.
A Constituição Federal de 1988 atribuiu não só ao Estado, mas também à sociedade
civil, o dever de preservar o meio ambiente. A discussão acerca do papel da sociedade civil,
no entanto, pressupõe verificar a legitimidade da própria democracia representativa, cuja crise
não se pode negar, como asseverou Amaral (2001, p. 19):
A sociedade de massas, fenômeno da última metade do século findo, ao impor,
por necessidade de sua lógica, o império da mediação, revelou à luz do sol a
ilegitimidade da democracia representativa. Esse vício deriva da intercorrência do
poder econômico, desde sempre, e, de último, do poder político dos meios de
comunicação de massas, monopolizados ou oligopolizados, apartando o
representante da vontade do representado, anulando o poder da vontade autônoma
do cidadão, seja a vontade individual ou particular, seja a vontade decisória do
representante, seja a vontade geral (volonté générale), de fonte rousseauniana.
A democracia representativa, com efeito, está longe dos ideais da democracia
participativa, cabendo aqui registrar a dicotomia identificada por Amaral (2001, p. 22) entre o
pensamento de Rosseau, para quem os institutos de representação implicam “na dissolução do
conceito de vontade popular, compreendida como expressão de unidade, soberania e governo”
e a teoria de Montesquieu, que valorizava sobremaneira a vontade (individual) do
representante. Delimitar-se qual é, e onde repousa a vontade coletiva numa sociedade de
massas, no entanto, é tarefa árdua, porque esta vontade sofre marcantes influências, e até
mesmo manipulações da mídia e de grupos detentores dos canais onde ocorre o discurso
público (FISS, 2005)[11]. Habermas (1997) aponta a existência de uma esfera pública
vinculada à mídia, em que existem dois tipos de estruturas: as que bloqueiam o intercâmbio
horizontal de posicionamentos espontâneos e, portanto, o uso das liberdades comunicativas; e
aquelas que se fazem valer da autoridade do público que se posiciona. As primeiras fazem
com que o espectador fique passível perante o coletivo, que passa a tutelar seu mundo de
representação:
[...] a imagem das massas em movimento cedeu lugar à imagem dos
telespectadores integrados eletronicamente [...] Assim, as imagens do estado total
desapareceram, permanecendo, entretanto intacto o potencial destrutivo de um
novo tipo de massificação (HABERMAS, 1997, p. 93).
Estas, por sua vez, ao contrário, fazem valer a autoridade do público que se expressa,
legitimando a esfera pública como espaço de poder, no qual se movimenta a sociedade civil,
através de ações comunicativas esclarecedoras e determinantes de um posicionamento crítico
(HABERMAS, 1997, p. 97):
Quando um público entra em movimento ele não marcha, mas oferece um espaço
de liberdades comunicativas anarquicamente desprendidas. Nas estruturas das
224
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
esferas públicas simultaneamente descentradas e porosas, os potenciais críticos
podem ser agrupados, ativados e reunidos. Para isso, é necessária uma base de
sociedade civil. Movimentos sociais podem então conduzir a atenção para
determinados temas e dramatizar certos aportes. Nesse caso a relação de
dependência da massa para com o líder populista se inverte: os atores na arena
passam a dever sua influência à anuência de uma galeria exercitada na crítica.
Impõe-se, no entanto, questionar como se dá a participação dos indivíduos nos espaços
públicos. Ela existe? É consciente e ampla? A modernidade trouxe no seu bojo um
desencantamento, apontado por Arendt (1993, p. 302) como responsável pela perda do espaço
da política na vida dos indivíduos. Há uma crise de valores, um mundo incerto que, segundo a
autora, está diretamente relacionado com a perda de desenvolvimento da condição humana,
que se divide entre vita activa e vita contemplativa (ARENDT, 1993, p. 315). Na vita activa
estão presentes três atividades fundamentais: a primeira, ligado ao labor (labor), está
diretamente relacionada com a reprodução biológica dos homens; a segunda, ligada ao
trabalho (work), é o meio pelo qual o ser humano cria coisas extraídas da natureza; já a
terceira, a ação (action), reside no pensamento filosófico, o lugar do assombro, “afastando-se
da questão de „o que‟ uma coisa é e de que tipo de coisa deve ser produzida para a questão de
„como‟ e através de que meios e processos ela veio a existir e pode ser reproduzida”.
A prevalência desta esfera da action sobre as outras, segundo a autora, é a “única
atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da
matéria” (ARENDT, 1993, p. 15) correspondendo à condição humana de pluralidade:
[...] ao fato de que homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo.
Todos os aspectos da condição humana têm alguma relação com a política; mas
esta pluralidade é especificamente a condição [...] de toda vida política.
Arendt traça o retrato de uma época em que todos os valores foram subvertidos,
consubstanciando-se uma ruptura com a tradição, que é retomada para a compreensão da
condição humana, num mundo em que “as coisas podem se transformar em qualquer coisa” e
em que as fronteiras que separam a civilização da barbárie “mostram-se frágeis, incertas e
sem garantias” (TELLES, 1990, p. 27). Tanto Arendt quanto Habermas trabalham com o
poder da linguagem e da comunicação na formação da esfera pública participativa. E é esta
participação, em última análise, que confere legitimidade à atuação do poder público.
Em matéria ambiental, a sociedade civil tem exercido um papel preponderante para a
definição do novo paradigma da propriedade privada, fundado na proteção ao meio ambiente,
influenciando as ações governamentais, e colocando na pauta da Agenda Internacional a
questão do meio ambiente, muitas vezes a contragosto de governos e de poderosos grupos
econômicos. Assim como as empresas multinacionais e transnacionais atravessam as
225
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
fronteiras, também a sociedade civil tem conseguido criar redes internacionais de apoio às
questões de proteção ao meio ambiente enquanto direito fundamental. É o caso do
Greenpeace[12], Human Rights Watch[13], Peta[14], dentre outros. Estas organizações
governamentais têm sido referência no que tange à proteção ambiental.
A ação da sociedade civil, no entanto, não tem sido suficiente para garantir a
efetivação da proteção ambiental já definida nos espaços públicos. No caso do licenciamento
ambiental, por exemplo, tivemos a oportunidade de exercer a gerência de controle ambiental
do Instituto de Meio Ambiente Pantanal, responsável pelo licenciamento ambiental das
atividades potencialmente poluidoras no estado de Mato Grosso do Sul, entre os anos de 2002
a 2003. Naquela oportunidade, observamos, dentre outros fenômenos, a significativa
disparidade entre os procedimentos de licenciamento adotados por cada município, e também
entre os estados, o que dificulta o conhecimento, a apreensão de todas as normas que vigem
sobre o tema, nas diferentes localidades.
Outro relevante problema que observamos, foi a reduzida participação da sociedade
civil nas audiências públicas, às quais muitas vezes compareciam tão somente empregados
trazidos pelas empresas empreendedoras, de outras unidades já instaladas no mesmo
município ou em municípios vizinhos. E é visando a ampliação da participação desta
sociedade civil, que elaboramos algumas proposições para o novo momento que se desenha.
São elas:
a) a uniformização dos procedimentos de licenciamento ambiental em todo o território
nacional, possibilitando um controle mais eficaz da sociedade civil sobre este importante
instrumento de política ambiental, já que as exigências que cada estado ou município impõe
ao licenciamento ambiental, por não serem homogêneas, dificultam o controle da tramitação
dos processos administrativos referentes às atividades que estão sendo licenciadas.
b) convocação para as audiências públicas realizadas no decorrer dos processos de
licenciamento ambiental, mediante carta-convite (custeada pelos empreendedores, com base
no princípio do poluidor-pagador) a ser distribuída aos estudantes, nos locais em que haja
cursos de ensino médio ou universitário de áreas atinentes à gestão ambiental, como biologia,
engenharia ambiental, geologia, agronomia, dentre outros.
c) que os órgãos públicos priorizem a fiscalização nos empreendimentos que não se
submeteram ao processo de licenciamento ambiental. Esta última proposição se justifica
porque, impossibilitado de fiscalizar todos os empreendimentos em funcionamento, há
226
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
estados e municípios que priorizam a fiscalização dos empreendimentos já licenciados,
ensejando que aqueles que procuram espontaneamente o órgão encarregado do licenciamento
ambiental para se regularizar, acabam sendo sempre fiscalizados, enquanto aqueles
empreendimentos que não se licenciam, muitas vezes ficam “a salvo” da fiscalização.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Constituição Federal promulgada no Brasil em 1988, inspirada na doutrina dos
direitos humanos, proclamou, no art. 225, que “todos têm direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado”. Ao fazê-lo, instituiu um novo paradigma, adequado às
necessidades deste início de século. Com efeito, não mais é possível viver como se fossemos
a última geração sobre a terra.
É preciso “repensar” o processo de produção e de circulação de riquezas e o
padrão de consumo no mundo atual, que vem uniformizando o “modo de ser” humano, nas
diferentes culturas, ferindo a diversidade na mesma medida em que avança a degradação ao
meio ambiente. Para tanto, é necessário entender o fenômeno da publicização do direito
privado e, via de conseqüência, do instituto jurídico da propriedade, a fim de entender de que
modo a dimensão ambiental passou a integrar o conceito contemporâneo de propriedade
privada.
A Constituição brasileira atribuiu ao Estado e à sociedade civil um papel ativo na
defesa e preservação do meio ambiente. Tem sido a mobilização desta sociedade, organizada
em entidades civis, que, embora enfrentando consideráveis dificuldades de acesso aos espaços
onde ocorre o debate público, não sendo governos e nem partidos políticos, sentam-se, sem
serem convidadas, à mesa em que se definem os destinos da humanidade, impondo a inserção
na pauta internacional da discussão acerca dos direitos humanos fundamentais e da proteção
ao meio ambiente, indispensáveis enquanto paradigma analítico do sistema jurídico atual.
Para ampliar a atuação da sociedade civil, é que propomos a uniformização dos
procedimentos de licenciamento ambiental em todo o território nacional, possibilitando um
controle mais eficaz da sociedade civil sobre este importante instrumento de política
ambiental, e a convocação para as audiências públicas realizadas no decorrer dos processos de
licenciamento ambiental, mediante carta-convite (custeada pelos empreendedores, com base
no princípio do poluidor-pagador) a ser distribuída aos estudantes, nos locais em que haja
cursos de ensino médio ou universitário de áreas atinentes à gestão ambiental.
227
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
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[1] Mestre e Doutoranda em Direito - Universidade Gama Filho – Rio de Janeiro. Professora de Direito
Ambiental da Pós-graduação Latu Sensu da Unaés-Anhanguera. Advogada em Campo Grande-MS. E-mail:
[email protected].
[2] A expressão analfabetismo ambiental tomou corpo durante a Conferência da ONU sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro em 1992, conhecida como Rio-92. A partir desse evento,
aprimorou-se a concepção de educação ambiental, incorporando as dimensões socioeconômicas, política,
cultural e histórica, considerando as condições e estágio de cada país, sob uma perspectiva histórica (DIAS,
2002, p. 85).
[3] A expressão “agonia” do Código Civil é utilizada por Orlando Gomes para retratar a perda da força
normativa do Código Civil, em decorrência do fenômeno da “constitucionalização”, a partir do qual a
Constituição passa a ser o centro de gravidade de todo o sistema jurídico, que anteriormente era ocupado pelo
Código (GOMES, 1985, p. 9).
[4] O autor enfrenta a questão dos reflexos que a noção de Estado social produziu no âmbito dos sujeitos
230
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
privados, destacando a mudança radical no enfoque até então conferido ao direito privado,
[5] Embora não tenha apresentado uma proposta para a superação da dicotomia público/privado, o autor aponta
para a necessidade de uma relativização da dicotomia entre ambos, uma vez que a distinção não viria em uma
linha reta e constante, e estaria sujeita à mudanças no tempo e no espaço, segundo as tendências sociais e
políticas (TRABUCCHI, 1973, p. 9.
[6] O autor destaca a importância do princípio da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais,
consagrados na Constituição, e que devem refletir no âmbito das relações privadas.
[7] Esta a proposta de RAISER, que propõe a imagem de uma única elipse, com dois pólos de irradiação
distintos, o público e o privado, um em cada extremidade.
[8] IBAMA é o órgão responsável, em nível federal, pelo licenciamento de grandes projetos de infra-estrutura
que envolvam impactos em mais de um estado e nas atividades do setor de petróleo e gás na plataforma
continental.
[9] O licenciamento ambiental é uma obrigação legal prévia à instalação de qualquer empreendimento ou
atividade potencialmente poluidora ou degradadora do meio ambiente.
[10] O parágrafo primeiro do artigo 1228 demonstra que o Código Civil de 2002 está em consonância com o
artigo 225 da CF, ao dispor expressamente que: “O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com
as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido
em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico,
bem como evitada a poluição do ar e das águas”.
[11] O autor assevera que “a entrega do controle do discurso público a regras puramente de mercado acaba por
excluir a voz daqueles que não detêm um quinhão no mercado da comunicação social”. O público em geral,
portanto, acabaria por só ter acesso aos conteúdos e versões apresentados pelos controladores da chamada
“grande mídia” (FISS, 2005, p. 8).
[12] No site oficial do Greenpeace, encontramos a seguinte autodefinição: “O Greenpeace é uma organização
global e independente que atua para defender o ambiente e promover a paz, inspirando as pessoas a mudarem
atitudes e comportamentos. Investigando, expondo e confrontando crimes ambientais [...]”. Disponível em:
<http://www.greenpeace.org/brasil/pt/quemsomos>. Acesso em: 26 ago. 2010.
[13] A organização, segundo informações de seu site oficial, assim se define: Human Rights Watch is one of
the world‟s leading independent organizations dedicated to defending and protecting human rights. By focusing
international attention where human rights are violated, we give voice to the oppressed and hold oppressors
accountable for their crimes. Disponível em: < http://www.hrw.org/en/about>. Acesso em: 26 ago. 2010.
[14] People for the Ethical Treatment of Animals (PETA), with more than 2 million members and supporters, is
the largest animal rights organization in the world. Disponível em: <http://www.peta.org/about>. Acesso em: 26
ago. 2010.
231
O CONDOMINIO COMO PARADIGMA? MEIO-AMBIENTE, REGIÕES URBANAS
E FEDERAÇÕES ESTATAIS: SUSTENTAR E RESPONSABILIZAR A PARTILHA
Paulo Castro Seixas1
1 INTRODUÇÃO
A hipótese que este texto apresenta é a de estão a surgir novos tipos de propriedade, ao
mesmo tempo que muitas experiências se vão realizando a requerer conceptualização e que
tais processos são função da mudança de paradigma face às instituições que se tornam
centrais e, especificamente, ao papel dos valores de Igualdade e Liberdade e como eles são
adstritos a tais instituições. Tal situação implica desafios às políticas públicas e a
reconceptualização do que actualmente chamamos Democracia.
Pretende-se identificar novas formas de relação entre instituições tipicas da construção
moderna (a propriedade, a família, o Estado) e instituições tipicas da construção pós-moderna
(meio-ambiente; regiões urbanas e federações (estatais ou outras) no respeito pelos direitos
humanos). Na construção moderna, a propriedade, a família e o Estado constituem-se como
fundamentos da igualização: todos os indivíduos devem ter alguma propriedade, todos são
parte de uma família, todos estão integrados num Estado e assim todo o mundo é
reconhecivelmente „Moderno‟ se adopta a lógica da propriedade, da família e a do Estado. No
entanto, em situação de crise (porventura poder-se-iam apontar algumas na era moderna), o
carácter igualizador perde sentido e a crise do paradigma moderno que se instalou desde a 2ª
metade do século XX revela isso mesmo. Por várias razões (que tentamos referir abaixo) as
instituições igualizadoras da modernidade passaram a ser percepcionadas em função do valor
da liberdade: faço o que quero com a minha propriedade; tenho (ou não tenho sequer ) a
família que quero e o Estado faz o que quer no limite das suas fronteiras (e, por vezes mesmo,
para além delas). Esta valorização da Liberdade face à igualização ocorre ao mesmo tempo
que vão surgindo novas instituições, umas de forma mais conceptual outras de forma
empírica: o meio ambiente; as regiões urbanas, os direitos humanos.
Propomos que estas são as instituições que sustentam um novo paradigma de
igualização num mundo emergente: todo o mundo é/está em vias de ser reconhecível em
função do meio-ambiente, das regiões urbanas (no sentido lato) e das federações (de estados
1
CAPP – ISCSP. Universidade Técnica de Lisboa.
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
mas não necessariamente) no respeito pelos direitos humanos. Tal igualização é o que
possibilita a (tendencial) livre circulação planetária de pessoas, a expansão das indústrias
transnacionais e do turismo...mas é essa também a nova relação necessária com o local num
período de alterações climáticas e de pico do petróleo.
A perda de sentido igualizador das instituições modernas não foi completa, razão pela
qual podemos encontrar formas sociais que se constituem como hibridas entre as instituições
modernas e as pós-modernas. Tal questão poder-nos-ia levar, também, a entrar na discussão da
relação entre sobre-modernidade e pós-modernidade, ou seja a problemática da definição da
situação actual como a continuação do projecto moderno a uma outra escala ou como uma
quebra desse projecto em função de uma nova etapa, pós-moderna. Não entraremos nesta
discussão, no entanto a existência de formas de propriedade que agregam sentidos modernos e
sobre ou pós-modernos e os seus conflitos é um sinal dos nossos tempos que torna complexa a
visão do futuro que estamos a construir.
Propõe-se, então, seguindo Magalhães (2007) mas não apenas num quadro de relações
internacionais, que o Condomínio possa ser entendido como paradigma da mudança.
Paradigma mesmo na mudança de paradigma. O direito de propriedade interactua em
interesses com o direito do meio-ambiente; a família interactua em interesses com o direito da
diversidade cultural; o Estado interactua em interesses com os direitos humanos… A solução
que parece ir-se construindo parece seguir o paradigma do condomínio.
O Condominio, enquanto instituto jurídico, remonta ao Código napoleónico (1804), no
entanto é na segunda metade do século XX e, principalmente a partir dos anos 60, que tal
regime de propriedade conquistou exponencialmente as nossas cidades e os nossos modos de
vida. Com vários nomes (co-propriété em França; Condominium ou Condo nos Estados
Unidos; Strata Titles na Austrália; etc), trata-se de um tipo de relação entre a res publica e a
res privada relativamente recente ( por exemplo nos Estados Unidos é em 1958 que surge a
primeira legislação sobre condomínios e só em 1960 é que surge o primeiro condomínio, em
Portugal em 1955, na Austrália em 1961…).
O que propomos é que a noção de Condomínio, mais do que o seu regime jurídico
estrito, é um paradigma para o desafio em termos de políticas públicas que enfrentamos na
relação entre propriedade e meio ambiente; entre família e diversidade cultural; entre Estado e
Direitos Humanos.
Da consciência dos „limites ao crescimento‟ (Clube de Roma) à noção de Património
233
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Comum da Humanidade (UNESCO); da obsessão pelo Copyright à invenção do „Creative
Comons‟; da Web 1.0 à Web interactiva 2.0 (dos Wiki, blogs e redes sociais) e, mesmo
semântica; da passagem da cidade de bairros e residências à região urbana da „cidade
genérica‟ de condomínios; da defesa dos Direitos Humanos à ingerência Humanitária e à ideia
de uma governância global de „cidadãos peregrinos‟ e „cidadãos cosmopolitas‟, regulado por
uma constituição urbana („Carta Mundial do Direito à Cidade‟); dos Estados fechados
westfalianos à confederação de Estados aberta e em contínua negociação e à confederação
sem Estados… Em todos (e outros mais) exemplos o que podemos, porventura, constatar é
que o paradigma do Condomínio vai fazendo o seu caminho.
2 A MUDANÇA DE PARADIGMA INSTITUCIONAL: RAZÕES E TEMPOS
Resumamos, para já, num esquema, o que colocamos em discussão: Os princípios
igualizadores modernos (Propriedade, Família e Estado) oposeram-se a um princípio de
liberdade clânica ou mesmo individual, ao mesmo tempo que com o qual viveram e do qual se
aproveitaram; da mesma maneira, as instituições igualizadoras pós-modernas opõem-se ao
princípio de liberdade estatal e organizacional com o qual, ainda assim, convivem e do qual se
aproveitam. Esta é, talvez uma simplificação da relação entre novas formas de regulação e o
liberalismo, o que implicaria também uma discussão acerca das relações internacionais: entre
o „realismo político‟, o „institucionalismo‟ e a „cultura mundial‟ (Seixas, 2006)
Institui
ções
Princípio
de liberdade
Modernas
ções
Princípio
Pós- de Liberdade
Modernas
Princípio
igualizador
individuais
(autocracias),
clãnicas
(oligocracias) ou outras, autárcicas ou/e coloniais/imperiais
Princípio
igualizador
Institui
Autonomias
Proprieda
Família
Estado
de
Autonomias estatais, organizacionais (empresas) ou
outras, autárcicas ou/e coloniais/imperiais
MeioAmbiente
Regiões
urbanas
Federações
-
Direitos humanos
234
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
A passagem de um paradigma a outro radica numa consciência lenta de que as
alterações lá ou aqui, globais ou locais estão inextrincavelmente interligadas. Assim, neste
novo paradigma, ao invés de nos centrarmos numa parte (a especialização científica) sem uma
concepção do todo e ao invés de exigirmos uma certeza (a prova científica) temos de ter uma
concepção do todo ainda que com a noção de uma contínua incompletude e temos de actuar,
ainda que com uma contínua incerteza. Em suma, de uma concepção positivista e de
simplicidade passamos a uma emergente e de complexidade (Santos, 1987 e Morin, 1991).
Seguindo esta lógica, e tendo em conta a proposta de sistemas ou esferas de Pardo Díaz
(1995) seguida também por Magalhães (2007: 16), podemos conceber a vida em função de
três esferas: a Biosfera, a Sociosfera e a Tecnosfera. Pardo Díaz define cada uma destas
esferas da seguinte forma:
O primeiro sistema ou esfera em que o ser humano se encontra imerso é a Biosfera.
Esta grande sistema d epontes funcionais e interdependentes compreende uma fina
zona da terra, na qual se incluem as camadas baixas da atmosfera, estratos
superiores da litosfera, e os seres vivos, incluída a espécie humana, interactuando
entre si e com o ambiente.
Em segundo lugar estaria a Sociosfera, o sistema artificial de instituições
desenvolvido pelo ser humano, para gerir as relações da comunidade e com os
outros sistemas. Este sistema – soma das instituições socio-políticas, sócioeconómicas evoluiu ao longo de séculos de história e, como é evidente, nele se
encontra o Direito. Por outro lado, as relações. Por outro lado, as relações com os
outros sistemas e em particular com a Biosfera, levam-se a cabo através de
estruturas concretas. Algumas dessas estruturas constituem a Tecnosfera, como um
sistema criado pelo ser humano e submetido ao seu controle. Compreenderia os
aglomerados urbanos de aldeias, cidades, centros industriais e de energia, redes de
transporte e comunicação, canais e vias fluviais, explorações agrícolas etc... (Pardo
Díaz cit in Magalhães, 2007: 16)
Ora, a nossa proposta neste texto relaciona-se, directamente, com estas três esferas. De
facto, o Meio-Ambiente é um outro nome para a Biosfera, as Federações (Estatais ou outras)
constituem um novo modelo no âmbito da Sociosfera e as Regiões Urbanas um novo modelo
no quadro da Tecnosfera. Falhada que foi a crença numa Biosfera inesgotável e a crença numa
Tecnosfera de soluções, resta reconsiderar o „padrão de relações‟ que criámos e encontrar um
relacionamento entre as três esferas que seja sustentável, ou seja, não comprometa as
próximas gerações.
A mudança de paradigma e o surgimento de novas instituições igualizadoras é atribuível
as várias razões e tal percurso tem diversos momentos. Ainda que seja possível, certamente,
várias sistematizações, consideramos que três razões inter-relacionáveis são bastante claras
para explicitar a mudança:
1.
Uma mudança da escala espaço-temporal;
235
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
2.
A expansão do capitalismo;
3 A EVOLUÇÃO DAS POLÍTICAS DEMOCRÁTICAS.
1. Quanto à mudança de escala espaço-temporal, é claro que ela é um fato Moderno,
facilmente historiada pelo menos desde o século XVIII (com os enciclopedistas e a
emergência da noção de „humanidade‟) mas que data, porventura, mesmo do inicio da era
Moderna, da 1ª globalização, com o Tratado de Tordesilhas, de 1498, que divide o planeta
entre dois países, evidenciando já a percepção de encolhimento espacial do planeta que se
experienciou massivamente no fim do século XX. O que aconteceu na segunda metade do
século XX é que tal fato se concretizou quer pela via da exponenciação das transações socioeconómicas e políticas internacionais, quer pela via da percepção generalizada de tal
encolhimento do espaço função da revolução das telecomunicações e transportes.
Esta mudança de escala espaço-temporal praticada e percepcionada criava problemas
económicos e políticos. O que se tinha aceite como princípio igualizador na Europa (com
Westfalia) não vigorava para as demais partes do mundo, vivendo-se assim segundo uma
lógica esquizofréncia que aceitava dois princípios: a propriedade, família e Estado como
princípios igualizadores na europa e, ao mesmo tempo, o Estado (ou agentes em seu nome)
como instituição que corporizava uma liberdade expansionista colonial e mesmo imperial fora
da Europa. Ou seja, a propriedade, a família e o Estado eram princípios igualizadores para uns
mas não para outros.
É a mudança de escala espaço-temporal que possibilita colocar em questão as
instituições que estabeleciam um determinado equilíbrio entre igualdade e liberdade e que
passaram a ser caracterizadas em função de uma liberdade ilegitima por um lado, ao mesmo
tempo que se impunha o alargamento do seu valor de igualização a todo o Planeta. Assim, a
Propriedade, a família e o Estado são ao mesmo tempo instituições de liberdade ilegitima
(porque coloniais) e instituições em que se investe para a igualização „moderna‟ nos novos
países/Estados: esse paradoxo é ainda vivido por vários países pós-coloniais, evidenciando
fracturas internas de difícil conciliação.
Para complexificar a situação, as novas instituições igualizadoras sobre ou pósmodernas (Meio-ambiente; regiões urbanas e direitos humanos) são concebidas (no Sul como
no Norte) como atentados contra o equilíbrio igualizador mas libertário das instituições
modernas ou mesmo como processos de neo-colonialismo.
236
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
2. A expansão do capitalismo é uma outra razão fundamental para a mudança das
instituições igualizadoras.
Todas as instituições acabaram por ser invadidas pela
mercadorização, como foi descrito nos anos 60 por Debord (c1967, 1991) e, depois, por
muitos outros. Por um lado a mercadorização hegemónica, ao possibilitar que o capitalismo
alargasse a todas as esferas a lógica do mercado, levou a uma pluralidade de configurações do
capital (económico, social, cultural) e a uma profunda sobreposição de grupos sociais ao
longo do século XX que colocou em causa a própria noção de classes sociais, passando-se a
falar de „estilos de vida‟.
Assim, todas as instituições da modernidade, para além do valor de uso, passaram a ter
um valor de troca. A família era um modelo social de sustentação intergeracional com base na
produção. O modelo social passou para o Estado, os filhos deixaram de ser entendidos como
„braços‟ agrícolas de um clã alargado para serem entendidos na relação entre investimento e
consumo instrumental ou emocional ou, mesmo, como elementos de vínculos temporários e
residuais. A propriedade que era parte integrante da noção de família, em função do conceito
de „Casa‟, abrangendo esta quer as pessoas quer as propriedades e os próprios instrumentos de
produção, perdeu primeiro esse valor de uso e logo o único valor que adquiriu foi o valor de
troca, muitas vezes mesmo esse muito baixo. O Estado foi talvez o último a começar a
soçobrar mas é isso que está a acontecer na mesma altura em que escrevemos, constituindo
esse soçobrar um momento de todo um processo genealógico de outra entidade. De facto, em
1945 existiam cerca de 50 Estados e no final do século XX o número dos mesmos passou para
200, tendo, assim, quadruplicado. No entanto, cerca de 24 2 daqueles 50 Estados estão agora
agregados na confederação que a União Europeia constitui. Ou seja, ao mesmo tempo que
surgiram novos Estados, uma parte substancial dos antigos Estados criaram um modelo novo
entre o super-estado e o supra-estado (Smith, 1995).
3. Quanto à evolução das políticas democráticas, as políticas públicas foram alternando
entre uma perspectiva liberal (que enfatizou e enfatiza a liberdade individual) e uma
perspectiva socialista – e, depois, social-democrata (que restringe a liberdade em função da
igualdade). Os dois processos referidos anteriormente (escala e mercadorização) tornam-se,
assim, uma questão de remodelação institucional. Ainda que – mesmo que de formas
diferentes - quer o liberalismo, quer o socialismo fossem internacionalistas, o Estado era, em
última análise, sempre a principal fronteira. A social-democracia – e, especificamente, o
2
Uma vez que as repúblicas bálticas (a Estónia, Letónia e Lituânia) eram repúblicas socialistas soviéticas e que a
eslováquia e a República Checa eram uma só em 1945.
237
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
modelo social europeu – funcionaram dentro de um Estado. Mas tal já não é possível... nem
demográfica, nem económica, nem politicamente. No momento em que escrevemos, em
vários Estados da Europa, a governação e as próprias eleições têm hipotecadas a sua actuação
e a liberdade de voto em função das empresas de rating e dos peritos de organismos
internacionais (como a U.E, a OCDE, o FMI). Ao mesmo tempo que tal situação leva a uma
descrença cada vez maior no sistema político e no contrato que ele era suposto legitimar entre
governados e governantes (notando-se, aliás, inflexões para os extremos do espectro
partidário em eleições), há uma vontade de aprofundar as políticas democráticas no sentido da
participação dos cidadãos. A situação presente, de crise global, é aquela em que as diversas
„modernidades alternativas‟ que foram ensaiadas ao longo de mais de meio século começam a
ter possibilidade de criar audiências e seguidores não só entre as classes médias dos países
desenvolvidos, o que é inédito, mas numa escala que poderá levar a uma mudança de
paradigma nos modos de vida nos tempos próximos.
As três razões apontadas fizeram estilhaçar um regime sócio-político sustentado na
divisão planetária entre Nós e Outros, num contrato normativo e lesivo em que à igualização
do Nós equivalia uma liberdade sobre os Outros, tidos como num sistema de igualização mais
baixo. Ou seja a igualização, no respeito do direito à propriedade, Família e Estado numa
parte do planeta, foi feita na aceitação da liberdade face à outra parte, implicando tal a
ausência de tais direitos para esses Outros. A ruptura que nos anos 60 assistimos nos sistemas
coloniais teve um efeito imediato nas ex-colónias mas o efeito sobre os ex-colonizadores só
agora está a atingir o seu ponto máximo. Assim, a mudança sócio-espacial de um paradigma
Moderno Estatal e Colonial para um paradigma Pós-Moderno Global e Estatal (ver Seixas,
2007) implica novas instituições Socio-espaciais de igualização como o Meio-Ambiente, as
Regiões Urbanas e as Federações (Estatais ou outras) legitimadas nos Direitos Humanos.
Podemos dizer que há momentos que evidenciam tal evolução e, ainda que qualquer
cronologia seja parcial e incompleta, ela é também, por isso mesmo, uma forma de
construirmos sentido do caminho percorrido e a percorrer. Assim, apresentamos abaixo alguns
conceitos que podem caracterizar esse sentido.
1. Da consciência dos Limites do Crescimento à Sustentabilidade e ao Condominio da Terra
2. Do Condominio da Cidade Genérica à Carta Mundial do Direito à Cidade e aos Planos de
Transição Urbana
238
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
3. Dos Direitos Humanos à Ingerência Humanitária e à Governância Global
1. Em 1972 o Clube de Roma institui o conceito de Limites do Crescimento e, em
função disso, em 1987 o conceito de Desenvolvimento Sustentável torna-se central e tal
implica gerir os „padrões de relação‟ entre a Biosfera, a Sociosfera e a Tecnosfera, o que tem
sido tentado pelas diferentes Conferências e Tratados ao longo das duas últimas décadas
procurando-se uma gestão para um „Condomínio da Terra‟ em construção, conceito proposto
por Magalhães (2007) para uma nova ordem mundial.
2. O instituto legal do condominio terá a sua origem no código napoleónico ainda que
só a partir da segunda metade do século XX se tenha começado a generalizar como
enquadrador do modo de vida urbano e, especificamente, a partir dos anos 60. A „Cidade
Genérica‟, conceito instituído por Rem Koolhaas em é uma cidade de condominios. O
„Direito à cidade‟, conceito instituído por Lefebvre em 1968 esteve na origem da „Carta
Mundial do Direito à Cidade‟ apresentada em 2004 como uma constituição urbana,
implicando a cidade como instituição do direito a ter direitos, numa obrigação da cidade para
a inclusão. Em função de um percurso que começa em 2001, e em função da consciência das
alterações climáticas e das consequências do pico do petróleo, Rob Hopkins em 2006 torna-se
co-fundador do „Transition Town‟ Totness em 2006 instituindo o movimento da „Transição‟ e
das „cidades em transição‟ (Portal de Transition Sidney).
3. A Declaração Universal dos Direitos Humanos é de 1948 mas é só em 1967 que se dá
a primeira ingerência humanitária. Face à situação de guerra no Biafra, uma província da
Nigéria, o conflito de interesses entre o direito de soberania e os direitos humanos é derimido
na prática, pela primeira vez, em favor destes últimos. A governância global vai-se
instituindo, primeiro porventura em função de um humanitarismo de baixa intensidade,
centrado na segurança e na saúde, com as intervenções internacionais das novas gerações de
ONG internacionais e pela coordenação da ONU. A gestão global pela Agência Internacional
de Energia Atômica (AIEA) da não proliferação das armas nucleares e da OMS relativa ao
AIDS (VIH-SIDA), ao sindrome respiratório agudo (SARS), à gripe das aves e à gripe A são
também importantes referentes.
É possível que a governância internacional, através do fortalecimento dos poderes da
ONU venham a originar uma lógica de „Condominio da Terra‟ na acepção de Magalhães
(2007) mas também é bastante possível que haja um distanciamento entre os poderes
239
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
internacionais e mesmo nacionais face às comunidades locais, entregues à sua propria
resiliência e criando. Neste sentido serão as cidades-condominio e as comunidadescondominio e as suas redes internacionais de tipo digital que serão o centro da governância
planetária.
4 NOVOS CONDOMINIOS E FEDERAÇÕES TRANS-HUMANAS?
O que procurámos caracterizar neste texto é, de uma forma simplista e provisória, a
transição social que implica um novo ecossistema, um novo modo de vida, uma nova
ideologia, mesmo um novo tipo psicológico em formação. Ainda que não tivéssemos ainda
caracterizado cada um destes aspectos considerámos que há uma mudança de paradigma
institucional (da Propriedade, Família e Estado para Meio-Ambiente, Regiões Urbanas e
Federações, Estatais ou outras) que, em si mesmo revela uma nova relação entre Biosfera,
Sociosfera e Tecnosfera e apresentámos algumas das razões e tempos de tal mudança. Ora tal
mudança parece colocar o Condominio e a Federação de Condominios como modelo
transversal que vai da experiência comunitária local, às novas definições de cidade em
transição e à nova forma de gerir as relações internacionais. Neste último ponto,
apresentamos, segundo o critério do âmbito da consciência e confederação crescente, as
experiências de novas comunidades e os desafios de um direito dos comuns. Estas
experiências constituem processos de socialização descontinuos no espaço e no tempo mas
unidos em função dos problemas comuns, ainda que diversos, inerentes a uma transição
socio-ambiental global que estamos a viver.
A aprendizagem parece ser a de encontrar um contínuo coerente entre âmbitos socioambientais diferenciados, desde a simples situação de „Co-Habitação‟ à „Rede Global‟, ao
mesmo tempo que em cada nível se procura a sustentabilidade local-global e presente-futuro,
num novo equilíbrio entre biosfera, sociosfera e tecnosfera que implica uma nova organização
social, uma nova ideologia e um novo tipo psicológico. Apresentemos, então, num primeiro
momento, aqueles que terão iniciado a „nova história‟ para, num segundo momento,
caracterizarmos os casos em que a noção de condominio e federação de condominios está em
curso.
4.1. A visionária, o crítico e o jurista
240
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
É claro que caracterizar o início de uma nova história é sempre um exercício mítico mas
é, ao mesmo tempo, a única forma de criarmos um sentido. O objectivo aqui é propor que o
Condomínio é o paradigma da mudança de paradigma e, neste sentido, podemos dizer que
tudo terá começado com uma Visionária, Mirra Alfassa, um Crítico, Garrett Hardin, e um
Jurista, Arvid Pardo.
Mirra Alfassa, chamada „A Mãe‟, foi a fundadora de Auroville, a „cidade da
madrugada‟. A „Mãe‟ escreveu: “Auroville wants to be a universal town where men and
women of all countries are able to live in peace and progressive harmony, above all creeds, all
politics and all nationalities. The purpose of Auroville is to realise human unity.” (Mother,
2004: 188). Auroville, a primeira e única experiência urbana internacionalmente legitimada e
ainda em funcionamento votada à „unidade humana‟ na diversidade e à „transformação da
consciência‟ surgiu a Alfassa nos anos 30. Nos anos 60 a Sociedade Sri Aurobindo propôs a
Mirra a construção da cidade, a qual foi apoiada pelo governo da Índia e, em 1966, pela
UNESCO numa resolução que passou por unanimidade. Auroville, construída no Sul da Índia
foi fundada a 28 de Fevereiro de 1968 como uma „cidade universal‟ para a emergência de uma
humanidade transicional:
“Humanity is not the last rung of the terrestrial creation. Evolution continues and man
will be surpassed. It is for each individual to know whether he wants to participate in the
advent of this new species.
For those who are satisfied with the world as it is, Auroville obviously has no reason to
exist.”
The Mother, 1966 (Portal de Auroville)
A inauguração de Auroville fez-se numa cerimónia que juntou 5000 pessoas de 124
nações, as quais trouxeram terra das suas nações, a qual foi misturada e guardada numa urna
de mármore, colocada agora no ponto focal do anfiteatro. Ao mesmo tempo, a „Mãe‟
apresentava a carta de 4 pontos de Auroville:
1. Auroville belongs to nobody in particular. Auroville belongs to humanity as a whole.
But to live in Auroville, one must be a willing servitor of the Divine Consciousness.
2. Auroville will be the place of an unending education, of constant progress, and a
youth that never ages.
241
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
3. Auroville wants to be the bridge between the past and the future. Taking advantage of
all discoveries from without and from within, Auroville will boldly spring towards future
realisations.
4. Auroville will be a site of material and spiritual researches for a living embodiment
of an actual Human Unity. (The Mother, 2004: 193-194)
Auroville foi planeada para 50.000 pessoas, sendo uma cidade em 2010 ainda em
crescimento com 2.160 habitantes de 45 países de todas as classes sociais, com uma média de
idades de cerca de 30 anos e com um terço de indianos. É uma cidade em que nem política,
nem religião nem a maior parte da propriedade privada exite sendo que todas as casas
pertencem à cidade (Hugller, 2005) e na qual se pretende chegar/educar para uma consciência
humana superior, quer dizer una e planetária, na sua diversidade. Assim, Auroville terá sido e
é a primeira cidade em que a relação meio-ambiente / região urbana / federação planetária se
pretendeu e se pretende identificar como novo quadro humano para um novo tempo.
Garrett Hardin foi o Crítico que, em 1968, publicou o celebre artigo „The tragedy of
commons‟ na revista science. Hardin considera que há “uma classe de problemas humanos
aos quais se pode chamar “problemas sem solução técnica”‟, considerando-se que “Uma
solução técnica pode ser definida como aquela que requer uma mudança apenas nas técnicas
das ciências naturais, implicando pouco ou nada na mudança dos valores humanos ou ideias
de moralidade.” (Hardin, 1968: 1243). O que Hardin nos diz é que sempre que existe um
espaço colectivo tal espaço é pensado e usado na externalizaçao das desvantagens/custos e na
potenciação das vantagens pessoais. No seu artigo Hardin centra-se na população e na
fertilidade, no entanto apresenta também o mesmo argumento quando se refere aos oceanos
ou aos parques nacionais e sua relação com a poluíção. A finitude do mundo com que nos
deparamos faz com que o espaço não seja a solução („Space is no escape‟). Assim, a „tragédia
da propriedade colectiva‟ é a de nos vermos a actuarmos sem remorsos em direcção à ruína ou
mesmo à morte („freedom in a commons brings ruin to all‟). E uma vez que em muitos casos
o espaço colectivo não pode ser privatizado e tão pouco a regulação administrativa é
fidedigna (quem vigia os que vigiam?), a única solução apontada por Hardin parece ser a
educação: “Education can counteract the natural tendency to do the wrong thing, but the
inexorable succession of generations requires that the basis for this knowledge be constantly
refreshed”. E a educação deve passar a mensagem de que „a liberdade é o reconhecimento da
242
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
necessidade‟ , limitando, assim, a actuação face ao espaço colectivo. Em última análise, a
solução é a educação para a responsabilidade social mas, como refere Hardin, “The social
arrangements that produce responsibility are arrangements that create coercion, of some sort”
e, assim, considera que “The only kind of coercion I recomend is mutual coercion, mutually
agreed upon by the majority of the people affected”. Ou, de uma forma conclusiva:
“Individuals locked into the logic of the commons are free only to bring on universal ruin
once they see the necessity of mutual coercion, they become free to pursue other goals”.
Assim, parece ficar claro que o que é colectivo só se poderá como tal em função de uma
contínua educação e coerção mútua. É, sem dúvida, essa a função das comunidades que se
têm constituído e crescido desde os anos 60 e que serão objecto de análise no ponto seguinte.
Finalmente, o Jurista: Arvid Pardo. Arvid Pardo tem uma história de vida que é, em si
mesma, um modelo de cidadão-peregrino e de cidadão do mundo. Filho de um maltês e de
uma sueca que faleceram quando ainda era jovem, foi educado por um tio italiano que foi
diplomata, embaixador no Brasil, União Soviética, Alemanha e Vaticano, locais onde Pardo
acabou por passar os períodos em que não estava a estudar. Fluente em italiano, inglês,
francês, sueco e espanhol, diplomou-se em História e doutorou-se em Direito Internacional. A
II Grande Guerra apanhou-o em actividades clandestinas anti-fascistas, tendo sido preso por
Mussolini. Quando libertado, acabou por ser preso e condenado à morte pela Gestapo e
colocado na prisão de alexzanderplatz em Berlim. Em 1945 é libertado pela Cruz Vermelha
mas quando o exército vermelho entrou em Berlim foi interrogado e, de novo, preso.
Finalmente libertado caminhou até às linhas aliadas e acabou por chegar a Londres sem
dinheiro algum.
Começou, então, a sua carreira, primeiro como empregado de mesa, depois como
secretário, tendo finalmente entrado para o Secretariat of the Technical Assistance Board,
instituição que antecedeu a UNDP e foi representante na Nigéria e Equador. Em 1964 foi
nomeado Representante Permanente de Malta nas Nações Unidas pelo país tornado
recentemente independente e que ele tinha visitado apenas brevemente. E é nesta qualidade
que a 17 de Agosto de 1967, na agenda da 22ª sessão da Assembleia Geral das Nações
Unidas, Arvid Pardo solicita que seja incluído o seguinte item: “Declaration and treaty
concerning exclusively for peaceful purposes of the sea bed and of the ocean floor, underlying
the seas beyond the limits of present national jurisdiction, and the uses of their resources in
the interests of mankind”3. Ainda que as emendas proposta ao texto tenham eliminado
3
Declaração e tratado sobre a reserva exclusiva para fins pacificos do leito do mar e do fundo do oceano
243
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
qualquer pretensão à mudança da lei positiva e a resolução 2340 que decorreu da proposta de
Pardo tenha implicado demasiados compromissos, Arvid Pardo tornou-se um dos fundadores
do instituto do Património Comum da Humanidade.
Referir Mirra Alfassa, Garret Hardin e Arvid Pardo e as suas actuações no período
charneira de 1966 a 1968 é falar de uma nova história e de como ela se começou a contar,
uma história de visão e consciência planetária que institui cada pessoa e cada local como
global, uma história de responsabilidade sustentada pela necessidade numa coerção mútua de
acordo mútuo de uma educação comunitária constante e, finalmente, uma história de uma
legislação capaz de instituir regras de gestão dos espaços colectivos planetários. É claro que
estes personagens têm uma genealogia que os ultrapassa mas representam versões modernas
de narrativas que foram contadas desde sempre, quer pelas sociedades tradicionais nos seus
mitos, que por personagens que fazem parte da nossa história (Jesus; Buda; Emmanuel Kant;
Gandhi e outros).
4.2. Experiências condominiais e federativas
As experiências condominiais são as mais diversas e, por isso, relativamente difíceis de
caracterizar. No entanto, estamos perante um novo movimento social cujas redes se criam pela
web, utilizando, exactamente, as novas plataformas de conhecimento colectivo (a web 2.0 e os
seus blogs, wikis, etc) para se expandir. Ou seja, a Federação socio-política faz-se de forma
não territorial, ao contrário do que acontece com os Estados. Finalizaremos este artigo
apresentando algumas das experiências em função do seu carácter já estruturado em „redes‟ ou
„federações‟, ou seja, em que as experiências de base se foram estruturando, estando-se
exatamente nas duas últimas décadas a agregar-se num nível transnacional. Em função disso,
também os serviços de informação, aconselhamento e apoio ao desenvolvimento de
comunidades ecológicas e sustentáveis se têm vindo a desenvolver (ver, por exemplo, a
Fellowship for Intentional Community e o Sustainable Communities Online). O FIC
(Fellowship for Intentional Community) surgiu em 1994 e lista comunidades intencionais do
planeta de forma alfabética, por países (em 75 países diferentes) e também por tipos de
comunidade (ecovilas; comunas; cohabitação; cooperativas e cristãs) num total de 2580
subjacentes a águas situadas além dos limites actuais da jurisdição nacional, e sobre a utilização dos seus
recursos em beneficio da humanidade” (adoptámos a tradução feita por Magalhães, 2007: 51-52)
244
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
comunidades, sendo os países com maior número os Estados Unidos, com 1799, o Canada
com 146, o Reino Unido com 99 e Austrália com 80. Estas confederações, federações e
centros de serviços associados a comunidades intencionais, revelam todo um conjunto de
políticas públicas que não são mais controladas pelos Estados em que as comundiades se
encontram mas antes por mecanismos locais, translocais e transnacionais nos quais estas
comunidades se encontram envolvidas. Apresentemos, então, sumariamente, quatro
federações de diferentes tipos que poderão evidenciar uma tendência para a qual a pesquisa
em novas políticas publicas deverá estar atenta.
a)
A co-habitação (Cohousing Network)
b)
As comunidades egualitárias (Federation of Egalitarian Communities)
c)
As eco-vilas (Global Ecovillages Network)
d)
As cidades em transição (Transition Network)
1. A co-habitação ou „cohousing‟ surgiu na Dinamarca no inicio dos anos 60, havendo
actualmente cerca de 150 agregados de co-habitação em todo o mundo. A co-habitação é um
sistema que responde às necessidades decorrentes do isolamento social e da crónica falta de
dinheiro e tempo. Com várias instalações e comodidades comuns (frigorificos, máquinas de
lavar, aquecimento, paineis solares, etc), e inclusivé o uso comum de terra para produção
agrícola,o objectivo é encorajar a partilha e uma vida mais comunitária, ecológica e
sustentável (Hodgon e Hopkins, 2010). O primeiro projecto de cohousing surgiu com Bodil
Graae, que escreveu um artigo de jornal intitulado "Children Should Have One Hundred
Parents" e que reuniu 50 famílias no projecto Sættedammen na Dinamarca em 1967, o mais
antigo projecto de cohabitação moderno conhecido no mundo (cohousing na Wikipedia). A
co-habitação é um tipo de empreendimento muito adoptado em situações urbanas e está
representado em redes nos Estados Unidos (The cohousing association of United States), no
Canada (Canadian cohousing network), no Reino Unido (The UK cohousing network) e na
Nova Zelândia (Eco-Village, and Cohousing Association of New Zealand).
2. A Federação das Comunidades Igualitária (FEC) é uma rede de grupos comunais
espalhados pela América do Norte que variam em tamanho e âmbito e que vão desde
pequenos agregados agrícolas passando por comunidades de tipo vila e grupos de casas
245
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
urbanas. A rede foi fundada em dezembro de 1976 quando a primeira assembléia foi realizada
na Comunidade de East Wind no Missouri. A organização foi originalmente inspirada pelas
redes de apoio mútuo que Kat Kinkade observou entre os kibutzim israelitas. As idéias
iniciais iam da cooperação em empréstimos e intercâmbio de trabalho à partilha das
competências em construção existentes na comunidade na ajuda a pessoas de baixos
rendimentos e, eventualmente, centrar-se na divulgação como atividade principal (Portal da
FEC).
A FEC é actualmente composta por seis comunidades como membros titulares e um
número de Comunidades aliadas e Comunidades em Diálogo. Todas as comunidades FEC são
cooperativas de produção e a FEC segue 7 princípios e em que cada comunidade 1) mantém a
terra, trabalho, rendimento e outros recursos em comum; 2) assume responsabilidades pelas
necessidades dos seus membros, recebendo os produtos do seu trabalho e distribuindo estes e
todos os outros bens egualmente ou de acordo com as necessidades; 3) pratica a nãoviolência; 4) usa a forma de decisão em que todos os membros têm uma igual oportunidade de
participar, quer por consenso, voto directo ou direito de apelo ou rejeição; 5) actua
activamente para estabelecer a igualdade de todas as pessoas e não permite a discriminação
com base na raça, classe, credo, origem étnica, idade, sexo, orientação sexual ou identidade de
género; 6) actua para conservar os recursos naturais para as gerações presentes e futuras,
enquanto luta pela melhoria contínua da consciência e prática ecológicas; 7) cria processos
para a comunicação e participação grupal e proporciona um ambiente que apoia o
desenvolvimento das pessoas4(Portal da FEC).
3. As ecovilas surgiram como conceito depois de um relatório elaborado por Robert e
Diane Gilman em 1991 sobre os melhores exemplos de comunidades sustentáveis em todo o
mundo que surgiram desde os anos 60 ou, porventura, tendo origens ainda mais recuadas. A
partir de tal relatório, emerge a definição de ecovila: “Ecovila é um assentamento de escala
humana, multi funcional, no qual as atividades humanas são integradas sem danificação ao
mundo natural, de forma a apoiar o desenvolvimento humano saudável, podendo continuar no
futuro indefinido.” Em 1987 é criada a Gaia Trust A partir de 1995, a partir de um encontro
nas comunidades sustentáveis da Findhorn Foundation (Norte da Escócia), o conceito de
ecovilas é lançado globalmente e a GEN- Global Ecovillages Network ganha forma. partiu da
organização Gaia Trust da Dinamarca, uma organização criada em 1987. O sistema das
ecovilas evidencia toda a fileira de consciência e âmbito confederativo crescente ao mesmo
4
Tradução minha
246
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
tempo que mantém a relação local-global em cada nível. Ou seja, o movimento das ecovilas
inclui pequenas comunidades agregadas numa Zonas regionais mundiais (Gen- Europe; ENA,
para as Américas e Genoa, para Ásia e Oceania) e, por sua vez, numa rede global (a GEN),
sendo que cada um destes níveis implica uma relação local-global, num equilibrio entre
biosfera, sociosfera e tecnosfera.
4. O movimento de „Transição‟ é o mais recente e, porventura, aquele com um
crescimento mais evidente e também o que evidencia uma relação mais forte e estruturada
com as políticas públicas. O portal da Transition Sidney revela alguns aspectos da história do
movimento. Desde 2001 Rob Hopkins ensinava um curso de Sustentabilidade Prática em
Kinsale, na Irlanda, e em 2005, o visionamento do filme The End of Suburbia leva-o a
organizar a conferência “The Challenge and Opportiunity of Peak oil” e a propor aos seus
alunos um „Plano de Acção para o Declinio Energético‟ para a cidade de Kinsale para ser
apresentado à comunidade e autoridades locais. A comunidade e as autoridades locais,
associados à universidade, procuraram trabalhar e expandir e implementar o plano criar uma
agenda estratégia para uma pegada ecológica urbana menos dependente da energia fossil. Terá
sido o primeiro Plano Estratégico Urbano de Transição (Portal da Transitionsidney). Em 2006,
Rob Hopkins muda-se para Totness, em Devon, Inglaterra, para fazer um doutoramento na
universidade de Plymouth e em 2008 é lançado a obra Transition Handbook e em 2010
Transition in Action, um Plano de Acção para o declinio energético para Totness. Neste
momento, o movimento de transição está em forte implantação na Europa, Estados Unidos e
Austrália, como se pode confirmar pelo mapa das Iniciativas de Transição na Transition
Network, contando 326 „iniciativas de transição‟ até Novembro de 2010. O facto do
movimento de transição ter surgido, por um lado a partir da universidade e ter estabelecido
uma ligação imediata com a comunidade e as autoridades locais e, por outro lado, ter-se
centrado numa lógica urbana e de políticas públicas para a escala de uma cidade, são,
porventura, factores relevantes para o seu exito. A tendência da relocalização da economia e
de uma combinação rural-urbano de muito maior sinergia é, com o movimento de transição,
proposta, pela primeira vez para ser reflectida e implementada a partir e sem sair das cidades e
tal fez toda a diferença. Para além disso, este movimento tem características cosmopolitas e
parece ter grandes possibilidades de agregar os interesses das camadas médias.
247
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
5 PERSPECTIVAS
Procuramos apresentar neste texto uma mudança de paradigma, especificamente
propondo que as instituições modernas da propriedade, família e Estado estão a ser
substituídas por novas instituições, como sejam o meio-ambiente, as regiões urbanas e as
federações (estatais ou outras). Indicámos algumnas razões e tempos de tal mudança e
lançámos a pergunta do Condominio como paradigma na mudança de paradigma. Magalhães
(2007) tinha já lançado tal ideia mas no campo de uma nova ordem global instituida pela
coerção e acordo mútuo (para usar uma expressão de Hardin, 1968) entre Estados numa nova
ordem mundial que possibilitasse maior protagonismo à ONU. Não invalidando tal
possibilidade top-bottom, procurámos antes neste texto evidenciar, de forma exploratória, a
pluralidade e a riqueza de processos condominiais e os seus processos de confederação e
federação global segundo critérios não territorial mas antes filosóficos diversos, ainda que,
porventura agregáveis num quadro ideológico ecológico e criativo de carácter comunitário. A
impotância de tal quadro e da sua realidade global não é consentânea com o seu menosprezo
académica, implicando uma atenção a Sociedade Civil Global que se vai criando e
investigação na área das Novas Políticas Públicas que de tal Sociedade Civil vão emergindo.
BIBLIOGRAFIA
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248
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
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Global Ecoville Network - http://gen.ecovillage.org/
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Fellowship for Intentional Communities - http://fic.ic.org/
Transition network - http://www.transitionnetwork.org/
249
O DIREITO DE PROPRIEDADE SOB O VIÉS GARANTISTA
Sérgio Urquhart Cademartori 1
Isabela Souza de Borba2
RESUMO: Diante da atual conjuntura social, das mudanças conceituais constatadas ao longo
do tempo pela Teoria do Direito, o tema propriedade tem sido revisitado e exige da
comunidade acadêmica a elaboração de novos estudos acerca desse instituto marcado desde a
Antiguidade. Para tanto, invoca-se, no presente trabalho, a Teoria do Garantismo Jurídico, do
italiano Luigi Ferrajoli, para esclarecer o que se pode entender hoje por direito à/de
propriedade, concepção que tende a ser reescrita. Esse estudo somente torna-se possível a
partir da análise histórica do conceito de propriedade, que enseja, necessariamente, a
passagem, ainda que breve, pela Antiguidade, Idade Média, Modernidade e pelo Estado
Contemporâneo, este último assinalado pelos efeitos da globalização e pelas mudanças
estruturais ocorridas no campo do Direito. Assim, em meio às diversas outras abordagens que
consagram a propriedade enquanto direito inerente aos indivíduos, elegeu-se o Garantismo
como marco teórico para o estudo do tema proposto, o qual se limita à compreensão da
propriedade no Constitucionalismo contemporâneo.
PALAVRAS-CHAVE: Propriedade; Constitucionalismo; Garantismo
INTRODUÇÃO
O presente estudo tem por desígnio analisar o instituto propriedade, elencado no
ordenamento jurídico pátrio na categoria atinente aos direitos fundamentais, assegurados,
indistintamente, a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no país.
A problemática do tema propriedade emerge a partir dos novos contornos cogitados
em relação a esse instituto no seio da sociedade globalizada e, no campo do Direito, com a
concepção de Constitucionalismo, adotada diante das constituições irrompidas após a
Segunda Guerra Mundial, as quais são marcadas por características fortes, principalmente, no
sentido de garantia dos direitos fundamentais, seja por atuação positiva ou negativa do
Estado, em oposição às cartas próprias do Estado Legislativo ou Liberal, do século XIX.
Ainda é possível conceber a propriedade como um direito fundamental ou esse
1
Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professor titular da graduação e Curso de PósGraduação da UFSC.
2
Mestranda em Filosofia, História e Teoria do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina
(CPGD/UFSC).
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
instituto deve ser inserido em outra categoria? Para responder a esse questionamento invocase a Teoria do Garantismo Jurídico de Luigi Ferrajoli, Doutor em Direito e professor titular de
Teoria do Direito da Universidade de Roma.
No entanto, como condição de possibilidade para este estudo, forçosa a reconstrução
histórica da propriedade. Ou seja, parte-se da premissa de que somente é possível
compreender os contornos desse instituto se regressarmos à sua origem. Logo, na primeira
parte do trabalho, a análise ficará voltada à propriedade, em Grécia e Roma antigas, no
feudalismo da Idade Média, na Modernidade dos liberais do século XVII e XVIII, e, por fim,
no Estado Contemporâneo, considerada, ainda, a realidade brasileira.
Assim, talvez seja possível oferecer singela contribuição à Teoria do Direito, pois
não raras são as dúvidas e embates travados atualmente em torno da propriedade, já que os
contextos político, social, econômico e jurídico ganharam novos contornos e ensejam
respostas para questionamentos como o proposto nesse trabalho.
1 Antiguidade: a matriz da propriedade privada.
Antes de qualquer demarcação da origem do instituto propriedade, necessário
conceituar o que, por ora, é objeto deste trabalho.
Em Dicionário de política, Norberto Bobbio define a origem etimológica do termo:
“O substantivo Propriedade deriva do adjetivo latino proprius e significa: „que é de um
indivíduo específico ou de um objeto específico (nesse caso, equivale a: típico daquele objeto,
a ele pertencente), sendo apenas seu‟”. E segue o autor: “o conceito que daí emerge é o de
„objeto que pertence a alguém de modo exclusivo‟, logo seguido da implicação jurídica:
„direito de possuir alguma coisa‟, ou seja, „de dispor de alguma coisa de modo pleno, sem
limites‟” (BOBBIO, 1998, p. 1031).
O conceito de propriedade foi formulado ao longo dos tempos, acompanhando o
desenvolvimento das sociedades. No entanto, a concepção que se tem hoje a respeito do
instituto pouco se assemelha às primeiras notas surgidas a respeito do termo.
Não se pode extrair da Antiguidade uma definição de propriedade que corresponda
ao conceito formulado no mundo contemporâneo. No entanto, com base em investigações
históricas é possível identificar alguns pontos de convergência entre o que se entende por
propriedade hoje e os fatos sociais que deram as linhas mestras para o desenvolvimento e
aprimoramento do instituto.
251
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
A Antiguidade, sem dúvida, foi o período que marcou as primeiras noções em torno
do instituto. Embora o fundamento não fosse legal, como se apresenta hoje, a propriedade já
vinha delineada nos Códigos de Hamurabi, Manu e mesmo no Decálogo. Nos dois primeiros
documentos, condenava-se o roubo em proteção à propriedade; no Decálogo, o oitavo
mandamento previa como violação à lei moral a ofensa à propriedade, ao lado da ofensa à
vida, à castidade e ao caráter.
De Fustel de Coulanges extrai-se a origem da propriedade na crença politeísta de
Roma e Grécia antigas. Segue-se, conforme o autor, que a propriedade era uma instituição
vinculada diretamente à família e, sobretudo, à religião.
Essa vinculação decorria do fato de que cada família tinha domínio sobre o lar e
sobre os antepassados, que eram considerados deuses daquele grupo de pessoas unidas por
laços de parentesco. Cultuava-se, nos lares, a veneração aos deuses da família e acreditava-se
num puro vínculo material entre eles e o solo, já que ali estabeleciam a morada e dali não
poderiam ser transferidos. Essa estreita relação definiu o vínculo entre a propriedade e a
família, impondo a esta a obrigação de não se afastar do lar, zelar e cultuar os deuses
domésticos, que fincavam naquele lugar a sua morada permanente (COULANGES, 2005, p.
46).
Nesse contexto, a propriedade não era vista como um direito atribuído a uma única
pessoa; o direito de ter propriedade sobre a terra, sobre o lar, era inerente à família e fundavase tão somente em questões de cunho religioso.
A separação de cada propriedade por marcos geográficos surgiu, então, da ideia de
que os deuses (antepassados) de cada família deveriam estar situados em localidades
separadas por uma determinada distância. Com a delimitação de cada porção de terra
pertencente a uma família, as propriedades tornaram-se, literalmente, privadas e, sobretudo,
invioláveis. Sob essa concepção, apareceram as primeiras edificações: “as paredes eram
levantadas em redor do lar para o isolar e defender, e pode-se dizer que a religião ensinou o
homem a construir a primeira casa com os gregos. Nesta casa a família é senhora e
proprietária; a divindade doméstica será quem assegurará o seu direito. A casa está consagrada
pela presença perpétua dos deuses; a casa é o templo que os guarda” (COULANGES, 2005, p.
47).
O fato de a religião ser considerada o fundamento do direito de propriedade nessa
época conferiu às terras a condição de invioláveis. Todavia, ao mesmo, tempo determinava a
252
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
inalienabilidade. Sob o fundamento religioso, a propriedade não poderia ser alienada, pois não
pertencia a um indivíduo, mas à sua família, de modo que não se aceitava dispor daquela
parcela de terra. No entanto, com a Lei das Doze Tábuas, passou-se a admitir a alienação das
terras, mas o fundamento religioso não desapareceu, já que àquele que se desfazia do seu lar
eram cominadas severas penas, como a perda da cidadania.
Também em decorrência da religião não se permitia a expropriação por dívida, uma
vez que a propriedade era concebida como um local sagrado, de culto e veneração aos deuses
domésticos. Assim, o devedor deveria pagar suas dívidas com o próprio corpo, “a terra, em
hipótese alguma, o acompanha na escravidão” (COULANGES, 2005, p. 53).
Em certo período da Antiguidade, como visto, a propriedade, ao menos no que tange
à terra, fundava-se em valores religiosos, o que, no entanto, não excluiu a dogmática
civilística delineada pelos romanos em relação a esse instituto.
Em Roma, os objetos passíveis de propriedade, inicialmente, foram divididos em res
mancipi e res nec mancipi. Dentre as res mancipi, destacavam-se a terra e os instrumentos
destinados à produção agrícola, sendo que tais bens somente poderiam ser transferidos a
outrem mediante ato solene; por outro lado, quanto ao ramo das res nec mancipi, tal
formalidade era despicienda, a transferência da propriedade das coisas móveis, dinheiro,
animais, ocorria por simples tradição (CARDOZO, 2006, p. 96).
As mudanças decorrentes da expansão do Império Romano enfraqueceram a
economia familiar e agrária que predominava até então, arrogando à sociedade uma
concepção de cunho individualista. Considerada a necessidade de propiciar o acúmulo de
riquezas, sucederam-se uma série de mudanças na estrutura social: abandonou-se a antiga
divisão entre res mancipi / res nec mancipi, para instituir, especificamente com a Lei das Doze
Tábuas, a classificação que perdura até hoje entre coisas móveis, imóveis e semoventes.
Após o reconhecimento da propriedade quiritária aos cidadãos de Roma 3 e da
propriedade pretoriana aos pretores4, no período imperial, os romanos, movidos pelo
sentimento de conquistas e pelo desígnio comum de acumular riquezas, passaram a conceber
o direito de propriedade como um direito absoluto, atribuído como privilégio apenas a
algumas classes sociais.
3
Segundo Francisco Cardozo Oliveira, “o caráter formal do direito romano permitiu ao ius civile disciplinar
propriedade quiritária, onde o proprietário devia ser cidadão romano e que somente era transferida pelo ato
solene da mancipatio”. (CARDOZO, 2006, p. 98).
4
Assinala-se, ainda, as propriedades peregrina e provincial, que, assim como a pretoriana, eram inferiores à
quiritária, mas também regiam-se pelo ius civile.
253
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Todavia, alguns autores acentuam que o direito de propriedade, em Roma, nunca foi
ilimitado: “embora sempre reconhecida como o maior poder de uma pessoa sobre um objeto,
nunca o direito de propriedade entre os juristas da Cidade Eterna se revestiu de um caráter
absoluto, ilimitado. Caio já se encarregava de confirmar esta afirmação, ao conceituar a
propriedade como jus utendi et abutendi, quatemus juris ratio patitur. Assim é que o direito
haveria de ser usufruído consoante uma razão de direito” (FRANCISCO, 1991, p. 18). No
mesmo sentido, Christiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, ao tratarem sobre os
direitos reais, expõem que desde o início da civilização romana é possível identificar a
submissão da propriedade ao interesse social, em que pese as marcantes diferenças entre a
propriedade romana e a moderna.5
Ponderadas as ressalvas, no direito romano, além de absoluto o direito de
propriedade era considerado exclusivo e perpétuo. Absoluto, porque o titular do direito tinha,
e ainda hoje tem, o poder de usar e dispor do modo que melhor lhe aprouver (utendi, fruendi
et abutendi6). Exclusivo, no sentido de que é oponível a todos, tem cunho erga omnes. E
perpétuo, pois tem duração ilimitada, ou seja, a propriedade subsiste independentemente do
exercício do direito pelo titular, até que sobrevenha causa legal extintiva (MOREIRA, 1986,
p. 40).
A concepção de propriedade típica do direito romano, fundamentada no absolutismo,
na exclusividade e na perpetuação, foi a que perdurou até a noção moderna idealizada em
torno do instituto, de viés primordialmente individualista. Nesse sentido, esclarece John
Gilissen: “todas estas distinções desaparecem, de resto, progressivamente no Baixo Império,
tendo sido, portanto, a concepção individualista da propriedade quiritária aquela que se
estendeu a todo o Império romano e a que os juristas da Baixa Idade Média e, sobretudo, dos
sécs. XVII e XVIII encontrarão nos textos de Direito romano para sobre eles construírem a
5
“Embora muitos intérpretes do direito romano tenham interpretado que a propriedade em Roma era absoluta,
Maria Cristina Pazella revela que desde o início do processo de civilização da sociedade romana pode se
observar a clara submissão do exercício da propriedade ao interesse social. Explica a culta jurista que „a
submissão do exercício da propriedade à sociedade toda evidencia o privilégio do princípio da humanidade sobre
os demais princípios do direito, o que permite que se afaste também o individualismo como característica da
propriedade romana, pois mesmo quando exercida individualmente, a propriedade romana sempre esteve sujeita
ao interesse social‟. De qualquer forma, pouco há de comum entre a propriedade romana e a propriedade
moderna”. (FARIAS; ROSENVALD, 2008. p. 172)
6
Acerca dessas três matrizes conceituais extraídas do direito romano, elucida José Cretella Júnior: “Jus utendi é
o direito de usar a coisa, como, por exemplo, o direito do proprietário de construir sobre o seu terreno, o de
montar animal de sua propriedade, o de utilizar-se dos trabalhos escravos. Jus fruendi é o direito de usar não
propriamente a coisa, mas o direito de aproveitar os frutos e os produtos da coisa. [...] Jus abutendi é o direito
que tem o proprietário de abusar da coisa, dispondo dela como melhor lhe aprouver, inclusive destruindo-a, isto
é, alterando-lhe a „substantia rerum‟ (incendiar casas, matas; abater árvores; matar animais ou escravos)”.
(CRETELLA JÚNIOR, 1995. p. 173)
254
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
teoria moderna da propriedade individualista” (GILISSEN apud MATTOS, 2001, p. 105).
Com a Idade Média, o instituto ganha novos contornos em virtude da alteração da
estrutura econômica. Irrompe o feudalismo, que põe à queda a concepção romana
individualista do direito de propriedade, a qual, no entanto, ressurgiria mais tarde.
2 Idade Média: o feudalismo e a releitura necessária do conceito de individualista de
propriedade.
Na era feudal, o desaparecimento do comércio e a consequente mudança na estrutura
econômica redimensionaram o direito de propriedade. A economia baseada na troca, a
produção fundamentada na agricultura de subsistência e a política feudal 7 redefiniram a
concepção de propriedade individualista própria do direito romano para recuperar-lhe um
certo caráter coletivo.
O movimento que ensejou a mudança política e econômica teve origem com o
enfraquecimento do Império Romano e a retirada dos cidadãos da cidade para a área rural,
onde se estabeleciam junto aos seus escravos que, mais tarde, viriam a ser chamados de
servos. Passados os anos, a sociedade feudal foi estruturada em classes fixas: clero, nobreza,
servos, e, ainda, os vassalos. Embora sejam despiciendas maiores informações a respeito da
estrutura de classes no sistema feudal, é fundamental entender a relação entre os senhores
feudais, que pertenciam à nobreza, e seus vassalos, a quem era concedida parte das terras a
fim de assegurar um espaço no sistema de produção agrícola. O vínculo estabelecido entre os
senhores e seus vassalos assinala as primeiras noções a respeito do domínio direto e domínio
útil. 8
No mesmo vértice, Aroldo Moreira assinala que, na Idade Média, a propriedade se
caracterizava por uma duplicidade de domínio – fato que implicou na quebra da unidade
evidenciada no direito romano – e, ainda, pela existência de vínculos, ônus e encargos
7
No Feudalismo, diante da inexistência de uma autoridade central, a política ficou a cargo dos senhores feudais,
que exerciam poder sobre os seus camponeses, restringido-lhes a liberdade e impondo-lhes deveres. Nesse
sentido: “o proprietário de terras assume poderes políticos sobre os camponeses que trabalham nas suas terras,
impondo uma série de limitações às suas liberdades pessoais. Assim, o modo de produção escravista é
substituído pelo feudal: ao escravo sucede o servo, que goza de uma liberdade pessoal parcial, da Propriedade
parcial dos meios de produção (instrumentos de trabalho, animais) e de uma certa autonomia na gestão da sua
pequena empresa agrícola”. (BOBBIO, 1998, p. 1.033).
8
“A apropriação material da terra constituía a centralidade da vida social e econômica. O domínio se desdobrava
em duas esferas distintas: a do domínio útil, que servia à apropriação material do colono, e a do domínio do
titular ou proprietário, no caso, o senhor feudal. Na relação entre o colono e o senhor feudal, a instituição do
domínio compreendia unidade política e de produção. O domínio exprimia a relação política de poder entre o
colono e o senhor feudal e também propiciava ao colono integrar-se ao sistema econômico através da atividade
agrícola. A cisão entre domínio útil e domínio do titular reduziu o direito de propriedade ao seu aspecto de
titularidade formal, esvaziada pela atividade do colono de trabalhar na terra”. (OLIVEIRA, 2006, p. 103).
255
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
predominantemente sobre a terra. “Na Idade Média tem-se um processo de desintegração da
propriedade, com o desdobramento das faculdades entre o titular e o domínio e o efetivo
possuidor” (MOREIRA, 1986, p. 63-75).
Uma das causas de esvaziamento do caráter individual e exclusivo atribuído à
propriedade pelo direito romano, foi justamente a distinção entre domínio útil (do vassalo) e
direto (do senhor). A propriedade deixava de ser individual e exclusiva, à medida que o
senhor concedia aos vassalos escolhidos parte de suas terras para que pudessem produzir o
necessário para subsistência. Como o senhor era o proprietário, ele poderia conceder as terras
a quem lhe conviesse, auferindo lucro pelos excessos da produção agrícola. Esse lucro, por
outro lado, supria a necessidade de dispor das terras como forma de comércio, ou seja, o
sistema de vassalagem excluía a mercantilização da propriedade, o que também vem a se opor
às práticas romanas.
Não foi apenas a divisão dos domínios que deu nova feição ao instituto da
propriedade. A doutrina filosófica cristã de Santo Tomás de Aquino contribuiu sobremaneira
para o abandono do caráter absoluto atribuído à propriedade pelos romanos. Para Aquino, a
propriedade seria um direito natural cuja titularidade seria conferida tão somente a Deus; o
único domínio verdadeiramente absoluto pertenceria a Deus e as riquezas advindas da
propriedade deveriam ser, necessariamente, postas à disposição dos pobres (BOBBIO, 1998,
p. 1033).
O fato de a propriedade assumir novos traços, principalmente no tocante ao sistema
de vassalagem – domínio útil e direto –, abriu espaço para considerações em torno da posse e
das ações possessórias. A propriedade era reservada ao senhor, porém, a posse das terras
ficava a cargo dos camponeses. Sobre a ascensão da posse nessa época, destaca José D‟Amico
Bauab: “Na organização feudal tiveram grande amplitude as ações possessórias. Nessa fase
intermediária da propriedade, o princípio dominante era o de que „não há terra sem senhor‟,
transferindo-se a propriedade das mãos do Estado para as dos senhores, constituindo-se o
grosso da população apenas de posseiros, donde a necessidade de se garantirem, aos barões e
aos feudatários, as prestações devidas e a posse dos territórios” (BAUAB, 1991, p. 120).
Recorda-se, outrossim, que durante a Idade Média investiu-se pouquíssimo em
aprimoramento das técnicas utilizadas na produção agrícola, uma vez que os camponeses
eram limitados a produzir para sua subsistência, de modo que toda produção excedente, como
já mencionado, deveria ser repassada ao senhor das terras. Nessas condições, não seria
256
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
espantoso constatar o desestímulo dos que atuavam cotidianamente na produção e, por outro
lado, mas ao mesmo tempo, o ressurgimento da ideia de acúmulo de riquezas por parte dos
senhores feudais. A relação de poder entre as classes aliada ao excedente auferido pelos
senhores feudais deu chão à economia capitalista que viria a preponderar tempos depois.
Nessa linha de raciocínio, a ciência jurídica muito se aprimorou com o sistema
prevalente na Idade Média, a obra dos consiliadores, juristas da época, é reconhecida por
Franz Wiacker como precursora da moderna dogmática do direito privado. Os consiliadores
exploraram instituições e disciplinas que não haviam sido estudadas pelo direito romano,
dentre as quais o direito patrimonial da família e o direito da utilização da terra. Com discurso
diferente daqueles utilizados pelos glosadores, os consiliadores partiam para outros métodos
dialéticos, em que as fontes eram interpretadas de maneira mais livre. “São exemplos
conhecidos desta técnica a dedução da proteção da marca e da firma a partir dos interdictos
possessórios; do domínio directo e do domínio útil (dominium directum e utile) a partir de
categorias romanas totalmente diferentes, o direito de retracto familiar ou a comunhão de
adquiridos a partir do direito dotal justinianeu” (WIACKER, 2004, p. 83).
Segundo Francisco Cardozo Oliveira, “o feudalismo e o pensamento filosófico
medieval contribuíram de forma decisiva para a concepção de propriedade, que se consolidou
na modernidade. As mudanças nos fundamentos do direito de propriedade privada moderno,
na verdade, podem ser encontradas na Idade Média, ainda que seus efeitos, em razão da
passagem do modelo econômico feudal para o modelo econômico liberal, tenham se tornado
perceptíveis quando rompida a ordem feudal e instaurada a ordem econômica do capitalismo”
(CARDOZO, 2006, p. 103).
Embora tenha contribuído significativamente para a elaboração da atual dogmática
de direito privado – principalmente em relação à tutela da posse –, no que tange à
propriedade, a concepção jurídica medieval aos poucos foi sendo abandonada para ceder lugar
ao novo modelo econômico que acenava ao pensamento liberal do Estado Moderno: o
capitalismo. Regressou-se, assim, à propriedade individualista.9
9
Acerca disso, oportunas as linhas escritas por José Maria Lasalle Ruiz: “partiendo del trabajo que iniciaron los
glosadores, desde la Baja Edad Media se fue elaborando una nueva mentalidad propietaria que, contradiciendo
la visión reicentrista y comunitarista medieval, fue paulatinamente erosionando su objetividad hasta convertir al
sujeto en el centro de la relación propietaria. Lentamente se abrió camino una estructura más simple y absoluta
que laminó la complejidad de la estructura de la propiedad medieval. Fundándose en un individuo que se
descubre esencialmente propietario de sí mismo gracias al domínio de su voluntad, la cosa quedó sometida a la
potencia activa del sujeto: a un dominium sui que descansaba sobre la concurriencia de un ánimo del sujeto, tal
y como el pensamiento franciscano de la segunda mitad del siglo XIII legitimó intelectualmente”. (RUIZ, 2001,
p. 28).
257
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
3 O direito de propriedade no Estado Moderno
Na Idade Moderna, com o incremento da atividade comercial e a conseqüente
especulação da propriedade10, houve uma regressão ao individualismo 11. O direito de
propriedade adquiriu um caráter subjetivo, onde o ponto de partida era a individualidade do
proprietário.
Aliado ao comércio e à especulação, principalmente da propriedade imobiliária, temse a formação dos Estados nacionais e a ideia de soberania enfatizada por Jean Bodin,
segundo o qual a propriedade era fundamento da própria soberania estatal (FRANCISCO,
1991, p. 19).
No mesmo período, a propriedade foi inserida, também, na dimensão do direito
público, com a ideia de exploração econômica, que passou a abranger não apenas as terras,
mas o subsolo, o espaço aéreo e as águas, bens estratégicos para a sobrevivência da
comunidade política (FRANCISCO, 1991, p. 21).
Com as mudanças políticas e econômicas ocorridas no seio da sociedade, o direito de
propriedade foi tomando diferentes proporções. Por ser um instituto antigo e que dá respaldo
a uma gama de opiniões, não poderia ficar de fora das discussões filosóficas, políticas e
jurídicas travadas pelos pensadores iluministas e jusnaturalistas. Nesse contexto, pode-se
mencionar as contribuições oferecidas por John Locke, Thomas Hobbes, Rousseau, Léon
Duguit, Pierre-Joseph Proudhon, entre outros12, que cuidaram de estudar esse direito,
conferindo-lhe nova feição.
No Segundo Tratado sobre o Governo, John Locke concebe a propriedade como um
direito anterior ao próprio Estado13, que se adquire pela constante labuta do homem. Para
10
A esse respeito: “Em um salto no tempo, alcançamos o iluminismo e o jusnaturalismo, como marcos de
irrupção do formato clássico do direito de propriedade nos séculos XVIII e XIX. A ideologia liberal e
individualista representa o triunfo da racionalidade humana e de sua vocação para a liberdade. Portanto,
concede-se ao sujeito de direito a possibilidade de manifestar livremente a sua vontade, em um contexto
econômico propício à circulação do capital. Nesta vertente, o contrato e a propriedade triunfam como os dois
grandes pilares do direito privado”. (FARIAS; ROSENVALD, 2008, p. 173).
11
Segundo Norberto Bobbio, “concepção individualista significa que primeiro vem o indivíduo (o indivíduo
singular, deve-se observar), que tem valor em si mesmo, e depois vem o Estado, e não vice-versa, já que o
Estado é feito pelo indivíduo e não este é feito pelo Estado”.11 (BOBBIO, 2004. p. 56).
12
Cumpre assinalar que, embora não se ignore a contribuição de Karl Marx e Friedrich Engels, o presente estudo
não cuidará de analisar a abordagem do materialismo histórico a respeito da propriedade. Busca-se, aqui, fazer
um retrospecto desse instituto, a partir da clássica divisão adotada pela Historiografia, a fim de que seja possível
traçar as características que a propriedade assume hoje, com o Constitucionalismo e a Teoria Garantista.
13
Nesse sentido: “O pensador liberal Locke se recusara a reconhecer no contrato social a origem da propriedade.
Na sua teoria, a propriedade era anterior à sociedade; a propriedade tinha como base a necessidade natural e o
trabalho. O direito à propriedade seria anterior à sociedade civil, mas não inato. Sua origem residiria na relação
concreta entre o homem e as coisas, através do processo de trabalho”. (MATTOS, 2001 , p. 96).
258
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Locke, ninguém possui originalmente o domínio sobre alguma coisa de tal forma que possa
considerá-la privada por natureza. A propriedade, embora concebida como um direito préexistente ao Estado, deve ser adquirida por algum meio. Assim: “Podemos dizer que o
trabalho de seu corpo e a obra produzida por suas mãos são propriedade sua. Sempre que ele
tira um objeto do estado em que a natureza o colocou e deixou, mistura nisso o seu trabalho e
a isso acrescenta algo que lhe pertence, por isso o tornando sua propriedade” (LOCKE, 1994,
p. 97).
Por outro lado, “a mesma lei da natureza que nos concede dessa maneira a
propriedade, também lhe impõe limites” (LOCKE, 1994, p. 100). Segundo essa máxima,
somente pode ser considerado propriedade aquilo que cada homem conquista para sua
existência, por obra de seu trabalho. O desperdício é alheio à concepção de propriedade
formulada por Locke, pois o excedente não pertenceria ao proprietário, mas, sim, aos demais
membros da comunidade.
Ao passo que Locke concebeu a propriedade como direito natural, absoluto, préexistente à sociedade, os contratualistas Thomas Hobbes14 e Jean-Jacques Rousseau15
ocuparam-se de entender o instituto como um direito que surge somente a partir da fundação
da sociedade política, sendo, portanto, uma concessão da coletividade (FRANCISCO, 1991,
p. 20).
Segundo Francisco Cardozo Oliveira, o fundamento da propriedade liberalindividualista da modernidade tem origem na fusão entre a concepção de propriedade baseada
na laboriosidade individual do homem – Locke – e o atributo da vontade individual como
elemento indispensável para o apossamento no mundo do que é exterior à pessoa, como
sugere Immanuel Kant, em Metafísica dos Costumes (OLIVEIRA, 2006, p. 108).
A cristalização da propriedade como direito individual do homem ocorreu por conta
da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, onde tal instituto foi expressamente
institucionalizado nos moldes delineados por Locke: “Art. 17. Como a propriedade é um
14
Conforme J. G. A. Pocock, “Hobbes operou no âmbito da jurisprudência natural. Ele mostrou indivíduos
agindo e, e a partir de, um estado de natureza, estendendo seu poder sobre as coisas uns contra os outros, e até
mesmo adquirindo tal posse e direito sobre as coisas uns contra os outros, e até mesmo adquirindo tal posse
sobre os direitos que podiam transferi-los a um soberano que eles instituíam no ato da transferência. Seus
indivíduos movem-se do pré-possessivo ao possessivo, do pré-político ao político, do pré-humano ao humano”
(POCOCK, J. G. A., 2003, p. 144).
15
Rousseau, ao tratar sobre o “domínio real”, não se distancia da ideia de Locke, de que a propriedade é fruto do
trabalho: “Em geral, para autorizar sobre um terreno qualquer direito de primeiro ocupante, são necessárias as
seguintes condições: [...] que apenas seja ocupada a área de que se tem necessidade para subsistir; [...] que se
tome posse dela, não em virtude de uma vã cerimônia, mas pelo trabalho e pela cultura, único sinal de
propriedade que, à falta de títulos jurídicos, deve ser respeitado por outrem”. (ROUSSEAU, p. 32).
259
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado, a não ser quando a necessidade
pública legalmente comprovada o exigir e sob condição de justa e prévia indenização”.
Mais tarde, o Código Napoleônico, de 1804, descreveu a propriedade como sendo o
“direito de gozar e dispor das coisas de maneira mais absoluta, desde que delas não se faça
uso proibido pelas leis e regulamentos” (art. 544).
Todavia, esse caráter eminentemente individualista do direito de propriedade,
assinalado por Locke e inscrito nos mencionados diplomas, foi questionado pelo socialista
francês Pierre-Joseph Proudhon, na obra “O que é propriedade?” (1840). Proudhon encarou a
propriedade como “roubo” e, com base nisso, reformulou as características até então
atribuídas ao instituto.
De acordo com Proudhon, “a propriedade, segundo a sua razão etimológica e as
definições da jurisprudência, é um direito fora da sociedade; é evidente que se os bens de cada
um fossem bens sociais as condições seriam iguais para todos e seria contradição dizer: a
propriedade é um direito que o homem possui ao dispor de uma propriedade social da maneira
mais absoluta. Assim, se estamos associados para a liberdade, igualdade, segurança, não o
estamos em relação à propriedade; assim, se a propriedade é um direito natural, esse direito
natural não é social mas anti-social. Propriedade e sociedade são coisas que repugnam uma à
outra: é tão impossível unir dois proprietários como juntar dois ímanes pelos pólos
semelhantes. É preciso que a sociedade pereça ou então elimine a propriedade”
(PROUDHON, 1975, p. 44).
A repulsa do autor em relação à propriedade aproxima-o, por outro lado, da posse.
Conclui, ele, que a posse é um direito capaz de se harmonizar com a sociedade, ao passo que a
propriedade seria o suicídio da sociedade; aquela estaria dentro do direito, enquanto esta seria
o mal da terra (PROUDHON, 1975, p. 246).
Proudhon foi um dos autores que revolucionaram a ideia de propriedade no Estado
moderno. Contestou o fato de a propriedade estar inserida no contexto dos direitos naturais
consagrados na Constituição da França de 1973 – liberdade, igualdade, propriedade e
segurança – e concluiu que o instituto se sobrepõe à sociedade, pois foge à razão e volta-se ao
despotismo.
Esse viés radical deu vazão a novas reflexões sobre o tema. Léon Duguit, anos mais
tarde, propôs algumas notas a respeito do que hoje se entende por função social da
propriedade. Para este jurista francês, “a propriedade deve ser compreendida como uma
260
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
contingência, resultante da evolução social; e o direito do proprietário, como justo e
concomitantemente limitado pela missão social que se lhe incumbe em virtude da situação em
que se encontra” (DUGUIT apud MATTOS, 2001, p. 102).
Assim como Proudhon refletiu sobre a propriedade a partir do princípio da igualdade,
Duguit encontrou também nesse princípio o vetor de sua tese. A igualdade era ponto de
partida e, ao mesmo tempo, de chegada, uma vez que deveria informar toda a ordem
econômica, política, social e jurídica, à vista de garantir igualdade de condições e de
oportunidades aos cidadãos. Ainda que a igualdade fosse ponto de convergência entre os dois
pensadores, ao invés de conceber a propriedade como um instituto contrário à sociedade,
Duguit provocou uma nova inflexão, abrindo caminhos para a função social da propriedade.
Essa noção informou a sistematização do direito civil ocorrida no século XX.
Segundo Orlando Gomes, “no mundo moderno, o direito individual sobre as coisas impõe
deveres em proveito da sociedade e até mesmo no interesse dos não-proprietários” (GOMES,
1999, p. 111).
À medida que se impuseram limitações ao proprietário em prol do bem comum, o
direito de propriedade assumiu nova feição. O caráter absoluto foi necessariamente
relativizado pela função social da propriedade. A lei passou a regular os direitos do
proprietário em virtude das novas exigências sociais e da própria política liberal que orientava
a racionalidade econômica. Como consequência prática dessa mudança estrutural do conceito,
anota-se a desapropriação da propriedade privada em favor do bem comum.
Há, notadamente, uma inversão de valores, o público passa a se sobrepor ao privado
e essa concepção se mantém viva nas constituições do segundo pós-guerra, como a
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
A regulação do direito de propriedade, à toda evidência, foi um dos traços marcantes
no que se refere ao Estado Moderno. As limitações impostas aos proprietários em razão do
interesse público não sugeriram apenas a mencionada inversão de valores, mas permitiram
que o direito de propriedade andasse de mãos dadas com a realidade social. Esse é um dos
fatores de maior relevância para o período contemporâneo, em que as novas exigências
sociais determinam a necessária reformulação do conceito.
4 O direito de propriedade no Estado Contemporâneo: a mudança de paradigma e a
problemática ambiental.
No Período Contemporâneo, o direito de propriedade vem sofrendo uma série de
261
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
alterações substanciais, que ensejam, necessariamente, a revisão do conceito e,
principalmente, do paradigma até então firmado sobre as bases de uma política e economia
liberais.
O ordenamento jurídico brasileiro mantém incólumes os traços individuais da
propriedade marcados na modernidade pela concepção liberal de John Locke. Nesse sentido,
o art. 1.228 do Código Civil de 2002 retoma a ideia de que a propriedade é o direito de usar,
gozar e dispor da coisa, assim como o direito de reavê-la do poder de quem a possua ou
detenha injustamente.
Oportunas as palavras de Christiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald: “A
propriedade é um direito complexo, que se instrumentaliza pelo domínio, possibilitando ao
seu titular o exercício de um feixe de atributos consubstanciados nas faculdades de usar,
gozar, dispor e reivindicar a coisa que lhe serve de objeto (art. 1.228 do CC). A referida
norma conserva os poderes do proprietário nos moldes tradicionais” (FARIAS;
ROSENVALD, 2008, p. 176).
A propriedade, tal como exposta no Código Civil, vincula-se à ideia de domínio
preservada desde a antiguidade. Sem dúvida, a noção de domínio revela-se de suma
importância para solucionar certas espécies de conflitos emergidos na sociedade. Todavia, a
codificação do individualismo liberal, ao mesmo tempo, mantém estática a substância da
propriedade.
A complexa condição da sociedade pós-moderna exige mudança estrutural, ou seja, a
propriedade deve ser concebida como instituto dinâmico e não estático. O que parece
fundamental num dado momento da história e numa determinada civilização pode não ser
fundamental em outras épocas e em outras culturas, sendo impossível atribuir fundamento
absoluto a direitos historicamente relativos (BOBBIO, 2004, p. 18).
Neste contexto, exige-se uma reformulação do próprio fundamento do direito de
propriedade. Talvez não seja o caso de simplesmente abandonar a ideia que se volta ao
domínio, mas de construir um estudo que permita entender esse direito com base em
fundamentos exigidos pela sociedade atual, fazendo com que o direito ande de mãos dadas
com a realidade.
Questão prática que torna forçosa a revisão do paradigma são, hoje, os sistemas de
autorregulação surgidos nos mais diversos segmentos da sociedade. Não fica de fora a
propriedade, cujos estudos caminham no sentido de encontrar um fundamento pautado na
262
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
coletividade e não apenas na histórica relação indivíduo-Estado, à medida que a sociedade
clama pela redução das desigualdades. Esse viés que precisa ser construído e explicado pela
comunidade acadêmica.
Nesse norte, José Isaac Pilati alerta que o traço individualista da propriedade invadiu
espaços que antes pertenciam ao coletivo: terras indígenas, reservas naturais e outras desse
jaez no Brasil. Contudo, esse absolutismo jurídico que cerca o instituto vem sendo
questionado e relativizado pelos novos modelos de autorregulação, os quais refletem o caráter
pluralístico das atuais sociedades nos texto constitucionais (PILATI, 2009, p. 97).
O mesmo autor, ao referir-se à propriedade na pós-modernidade, divide-a em dois
pólos: a propriedade comum, prevista no Código Civil; e as propriedades especiais, que
relativizam o indivíduo como interlocutor mediante titularidades coletivas e também
relativizam o objeto, que, além dos bens corpóreos, passa a abranger situações jurídicas
partilhadas coletivamente (PILATI, 2009, p. 98).
Evidenciada a nova face do direito de propriedade, de cunho eminentemente
coletivo, convém ingressar na problemática da sua função social, à medida que se trata de um
bem coletivo, cujo titular é a sociedade em sua mais ampla extensão.
Não é preciso maior esforço teórico para saber que uma das mais importantes
contribuições para a preservação ambiental é justamente a função social da propriedade
elaborada por Léon Duguit. Embora a Declaração dos Direitos do Homem (1783) já
dispusesse acerca da restrição dos direitos do proprietário em proveito de necessidade pública,
o pensamento liberal da época, em certa medida, esvaziava a intenção do legislador, pois,
sobretudo, prevalecia o interesse individual e absoluto do proprietário. Hoje, a situação é
outra.
A constante preocupação com o meio ambiente, por exemplo, diante das recorrentes
ameaças de tragédias globais leva à necessidade de um controle mais rígido das propriedades
privadas, que se opera sob o fundamento da função social da propriedade.
Como visto acima, remanesce, ainda, a questão relativa ao correto enquadramento do
direito de propriedade. Deve ser lembrado que o mesmo aparece arrolado no elenco de
direitos e garantias individuais de nossa Constituição. Em consequência, do ponto de vista
topológico, não há dúvida de que a intenção do constituinte era enquadrá-lo como direito
fundamental. Mas, será o direito de propriedade materialmente um direito fundamental? Uma
possível resposta adequada a essa questão pode ser aquela fornecida pela Teoria Garantista, a
263
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
partir da concepção de direitos fundamentais abraçada por Ferrajoli. Assim, impõe-se, antes
de mais nada, explorar a definição garantista dos direitos fundamentais, para, após, cotejá-la
com as reflexões do autor italiano sobre o tema da propriedade.
5 A definição formal de direitos fundamentais
Ferrajoli prefere adotar uma definição formal (não topológica) dos direitos
fundamentais, dado o substancial valor heurístico da mesma, já que ela permite obviar
discussões sobre a enumeração daqueles, o que traz questões alheias à área da teoria geral do
direito: para ele, são direitos fundamentais todos aqueles direitos subjetivos que
correspondem universalmente a todos os seres humanos enquanto dotados do status de
pessoas, de cidadãos ou pessoas com capacidade de fato (FERRAJOLI, 2001; p.19).
Por sua vez, define o direito subjetivo como qualquer expectativa positiva (de
prestações) ou negativa (de não sofrer lesões) atribuída a um sujeito por uma norma jurídica, e
o status como sendo a condição de um sujeito, prevista por uma norma jurídica positiva, como
pressuposto de sua idoneidade para ser titular de situações jurídicas e/ou autor dos atos que
são exercício das mesmas; por último, a universalidade é relativa à classe dos sujeitos a quem
sua titularidade está normativamente reconhecida (FERRAJOLI, 2001; p. 20).
Como ele demonstra, são evidentes as vantagens oportunizadas por uma definição
formal: visto que a mesma prescinde de circunstancias de fato, é válida para qualquer
ordenamento com independência dos direitos fundamentais previstos ou não no mesmo,
inclusive nos ordenamentos totalitários ou pré-modernos. Portanto, possui o valor de uma
definição pertencente à teoria geral do direito (FERRAJOLI, 2001; p. 21)
Além disso, é ideologicamente neutra. Assim, é válida qualquer que seja a filosofia
jurídica ou política adotada: positivista ou jusnaturalista, liberal ou socialista, e inclusive
antiliberal e antidemocrática (FERRAJOLI, 2001; p. 21)
Apesar disso, esse caráter formal da definição não impede que seja suficiente para
nela identificar-se a base da igualdade jurídica e o caráter inalienável e indisponível dos
interesses subjacentes aos mesmos, interesses que coincidem com as liberdades e as demais
necessidades de cujas garantias dependem a vida, a sobrevivência, a igualdade e a dignidade
humanas (idem).
A partir dessa definição formal, Ferrajoli estabelece uma classificação dos direitos
fundamentais empregando os critérios de cidadania e capacidade de fato, o que vai
determinar o estabelecimento de quatro categorias básicas desses direitos:
264
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
1)
direitos da personalidade: pertencem a todos
2)
direitos de cidadania: atribuíveis somente aos cidadãos
1)
direitos primários ou substanciais : pertencem a todos
2)
direitos secundários ou instrumentais: somente às pessoas com capacidade de
fato.
Cruzando os dois critérios teremos 4 classes de direitos:
1)
direitos humanos : direitos primários das pessoas concernentes a todos os seres
humanos (ex: vida, integridade, liberdade, direito à saúde e educação, garantias penais e
processuais);
2)
direitos públicos: direitos primários reconhecidos somente aos cidadãos
(direito ao trabalho em certos casos, assistência em caso de inabilitação para o trabalho);
3)
direitos civis: direitos secundários atribuídos a todas as pessoas com
capacidade de fato (poder negocial, liberdade contratual, liberdade de empresa direito de
postular em juízo e todos os potestativos nos quais se manifesta a autonomia privada e se
funda o mercado); e
4)
direitos políticos: direitos secundários reservados somente aos cidadãos com
capacidade de fato (votar e ser votado) (FERRAJOLI, 2001; pp. 22-23)
6 A posição dos direitos patrimoniais na Teoria Garantista
Luigi Ferrajoli, coerente com a sua definição – e conseqüente classificação – dos
direitos fundamentais, exclui do rol dos mesmos os direitos patrimoniais. De fato, expõe ele a
existência de uma diferença radical de estrutura entre essas duas classes de direitos. A
confusão, para ele, reside no fato de que, em nossa tradição jurídica, a expressão “direito
subjetivo” tem sido empregada para abrigar tanto os direitos inclusivos quanto exclusivos,
tanto universais quanto singulares, tanto disponíveis quanto indisponíveis, sendo os primeiros
herança do jusnaturalismo contratualista e os segundos legado da tradição romanista
(FERRAJOLI, 2001; p. 25).
Utiliza como ponto de partida de suas reflexões três afirmações: de início, a célebre
passagem de Locke, no Segundo tratado sobre o governo, em que este postula como direitos
fundamentais justificadores do contrato social a vida, a liberdade e a propriedade; de outra
banda, o artigo 2º da Declaração de 1789 – que enuncia como direitos fundamentais a
265
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
liberdade, a propriedade e a resistência à opressão; e por último a manifestação de T. H.
Marshall, sociólogo norteamericano, quem, em sua obra Cidadania e classes sociais, abrange
como direitos civis tanto a liberdade quanto a propriedade (FERRAJOLI, 2001; p. 29).
Essa confusa mistura entre direitos de liberdade e direitos de propriedade é atribuída
pelo professor italiano ao caráter polissêmico da expressão “direito de propriedade”, que
abrange, tanto em Locke quanto em Marshall, de um lado o direito a ser proprietário e a
dispor dos direitos de propriedade, subsumíveis à classe de direitos civis, e de outro o
concreto direito de propriedade sobre um bem determinado.
Na história do pensamento ocidental, isto dará lugar a duas lamentáveis confusões:
de um lado, a elevação da propriedade ao mesmo nível da liberdade, operada pelo liberalismo;
e, inversamente, a desvalorização das liberdades no pensamento marxista, igualadas à
propriedade como “direitos burgueses” (FERRAJOLI, 2001; p 30).
Na tentativa de esclarecer essa confusão, Ferrajoli debruça-se sobre quatro grandes
diferenças estruturais entre as duas classes de direitos: a primeira consistente no fato de que
os direitos fundamentais – incluídos aí além da vida e liberdades, o direito de adquirir e dispor
dos bens objeto da propriedade – são universais, no que diz com seus titulares, enquanto os
direitos patrimoniais – direito de propriedade, outros direitos reais e de crédito – são
singulares, dada a possibilidade de determinação de seu ou seus titulares. Assim, conclui-se
que uns são inclusivos, estabelecendo a base da igualdade jurídica, enquanto que outros são
exclusivos, já que se exercem com exclusão de todas as outras pessoas, fundando situações de
desigualdade (FERRAJOLI, 2001; p 30).
A segunda diferença tem a ver com as próprias características dos direitos
fundamentais: são estes indisponíveis, inalienáveis, intransigíveis e personalíssimos, enquanto
que o direito de propriedade são disponíveis, negociáveis e alienáveis. Estes são acumuláveis;
os direitos fundamentais não o são. Nas palavras do autor: “No cabe llegar a ser
jurídicamente más libres, mientras que sí es posible hacerse jurídicamente más ricos.”
(FERRAJOLI, 2001; p 31). A indisponibilidade dos direitos fundamentais é tanto ativa, isto é,
são inalienáveis pelo seu titular, quanto passiva, o que quer dizer que não estão ao alcance
nem do Estado nem do mercado (FERRAJOLI, 2001; p 32).
De seu lado, a terceira diferença, decorrente da segunda, é a de que, ao ser
disponíveis os direitos patrimoniais, estão os mesmos sujeitos a vicissitudes, ou seja, a ser
constituídos, modificados ou extintos por atos jurídicos (contratos, testamentos etc.) enquanto
266
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
que os direitos fundamentais dão-se ex lege. Isto quer dizer que enquanto os direitos
fundamentais são normas, os direitos patrimoniais são predispostos por normas (FERRAJOLI,
2001; p 33). O jurista italiano designa as normas que estatuem direitos fundamentais como
normas téticas, as quais dispõem imediatamente as situações expressadas por elas; de outro
lado, as normas que predispõem situações jurídicas – típicas da esfera dos direitos
patrimoniais – são chamadas de normas hipotéticas (FERRAJOLI, 2001; p 34).
Finalmente, a quarta diferença reside em que, enquanto os direitos patrimoniais são,
por assim dizer-se, horizontais, os direitos fundamentais são verticais, e isto num duplo
sentido: a) enquanto as relações jurídicas dos titulares de direitos patrimoniais são de tipo
civilista, as relações dos titulares de direitos fundamentais são do tipo publicista, no sentido
que se entretém com o Estado; b) enquanto os direitos patrimoniais – de propriedade ou de
crédito – estabelecem proibições de lesão (no caso dos direitos reais) ou obrigação de
satisfação (no caso do direito de crédito), os direitos fundamentais correspondem a proibições
ou obrigações a cargo do Estado, ocasionando sua violação a declaração de invalidade do ato
ou lei que a ocasionou (idem).
7 A crítica de Danilo Zolo à concepção de Ferrajoli
As reflexões de Ferrajoli sobre a propriedade privada são alvo de crítica por parte
de seu conterrâneo Danilo Zolo, quem arrola os seguintes argumentos para vulnerar a teoria
daquele:
a) A defesa do liberalismo da propriedade privada não é fruto de um equívoco
semântico, como quer Ferrajoli, mas uma das categorias mais coerentes e
reflexivas da sua ideologia política (FERRAJOLI, 2001; p. 86). De outro lado,
Marx nunca criticou a propriedade em si mesma, mas a propriedade privada dos
meios de produção (FERRAJOLI, 2001; p. 89).
b) Os direitos de liberdade também atuam (ou podem atuar) como fatores de
desigualdade: o que produz desigualdade são algumas liberdades fundamentaiscomo a autonomia negocial, a liberdade de associação e de imprensa, a liberdade
de in iniciativa econômica no setor de comunicação de massas (ele cita o caso
Berlusconi) – cujo exercício pode produzi um poder político, econômico e
comunicacional de forte acumulação (FERRAJOLI, 2001; p. 91).
c) Deveriam excluir-se da categoria de direitos fundamentais os direitos
patrimoniais? Isto seria plausível se fossem respeitadas duas condições: 1) que não
267
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
se violem formas de propriedade preciosas para o indivíduo (domicílio, objetos
pessoais, pequenas poupanças etc.); e 2) que se tenha presente que numa economia
de mercado a restrição na área de direitos patrimoniais somente é concebível se
não supuser redução da proteção jurídica às regras do intercambio econômico e
financeiro.
d) Assim, talvez uma via alternativa seria a redução da cota de renda individual e
de bens particulares das pessoas em troca de uma maior disponibilidade de
recursos sociais e ambientais, lazer e autodeterminação pessoal (FERRAJOLI,
2001; p. 92).
8 A crítica de Mario Jori
De seu lado, Mario Jori entende que há três aspectos problemáticos nas noções de
direitos fundamentais/patrimoniais: a) aqueles referidos à noção de universalidade; b) à noção
de disponibilidade, e c) às garantias (FERRAJOLI, 2001; p. 119)
No que diz com a universalidade, Jori critica que a concepção formal da mesma às
vezes aparece em contradição com passagens da obra de Ferrajoli nas quais este denota um
valor eticamente positivo para a igualdade substancial, o que leva este último a considerar
como mais importantes, enquanto valor ético, os direitos fundamentais do que os direitos
patrimoniais (FERRAJOLI, 2001; pp. 119-120).
No tocante à disponibilidade, Jori considera equívoca a posição de Ferrajoli quanto à
mesma, de vez que essa categoria não é suficientemente vigorosa para fundar a diferença
entre direitos fundamentais e patrimoniais: com efeito, diz ele, os direitos fundamentais
podem ser objeto de atos diposicionais, tais como o suicídio ou a auto-mutilação
(FERRAJOLI, 2001; pp. 120-126).
Por último, ao abordar a questão das garantias, Jori observa que não existe diferença
substancial entre as garantias dos direitos fundamentais e aquelas dos direitos patrimoniais.
Isto porque estes direitos encontram suas garantias na proteção e no valor ético do direitoi de
propriedade sobre a coisa x ou no direito de crédito x (FERRAJOLI, 2001; p. 129).
Ademais, as constituições modernas reservam a posição de direitos invioláveis tanto
aos direitos fundamentais quanto aos patrimoniais, por considerá-los igualmente merecedores
de proteção constitucional (FERRAJOLI, 2001; p. 130).
9 A réplica de Ferrajoli
268
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Luigi Ferrajoli responde às críticas dirigidas à sua construção teórica de direitos
patrimoniais – enquanto formal e substancialmente diferentes dos fundamentais –
esclarecendo, dentre outras categorias, a sua concepção de “disponibilidade” (FERRAJOLI,
2001; pp. 160-161). Quanto a esta, diz ele que não é a mesma coisa a disponibilidade de um
direito fundamental (por exemplo, ser privado da liberdade) do que um ato de disposição
(entendido como “qualquer decisão que seja causa de um direito patrimonial”). Assim, o que é
disponível é um direito patrimonial (FERRAJOLI, 2001; pp. 160-161). Além disso, a
expressão “ato de disposição” alude à liberdade ativa, isto é, aos atos de autonomia privada
associados pelas normas aos efeitos de constituição, modificação e extinção de um direito
patrimonial (FERRAJOLI, 2001; p. 161).
Uma segunda crítica contestada por Ferrajoli diz respeito ao que ele denomina de
“equívoco semântico” da confusão entre os direitos a converter-se em proprietário e exercer
os direitos de propriedade, de um lado, e de outro o direito de propriedade de que cada um é
titular sobre determinados bens. De fato, enquanto os primeiros são universais (porque
atribuíveis a todos, independentemente de idade, ou exercíveis como direitos de autonomia
por aqueles com capacidade de exercício), os últimos não são fundamentais, já que são
direitos sobre os próprios bens, dos quais cada um é titular exclusivo (FERRAJOLI, 2001; p.
165). Com efeito, cada um é titular de seus próprios bens com exclusão de todas as outras
pessoas, e neste sentido, tal situação jurídica funda a desigualdade. Recorde-se que aqui o
critério é puramente formal (universalidade x titularidade exclusiva).
10 O desenvolvimento teórico das reflexões de Ferrajoli em Principia Iuris
Em sua opus magna de 2007 (FERRAJOLI, 2007, pp. 759 ss.) o autor italiano
salienta as quatro diferenças entre direitos fundamentais e direitos patrimoniais já esboçadas
na obra anteriormente referida. Assim, diz ele que a primeira diferença entre essas duas
classes de direitos reside no fato de que os direitos fundamentais são direitos universais – no
sentido lógico de que dizem respeito a todos igualmente sobre a base da simples identidade de
cada um como pessoa, cidadão ou como sujeito com capacidade de exercício (ou de fato) –
enquanto que os direitos patrimoniais – reais e de crédito – são direitos singulares no sentido
igualmente lógico da quantificação existencial de seus titulares. Dessa forma, os primeiros são
inclusivos, enquanto os segundos são exclusivos, ou seja, se exercem excludendi alios
(FERRAJOLI, 2007; p. 761).
Adverte o autor para o fato, sempre enfatizado por ele, de que essas diferenças são
269
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
estruturais, formais, independentes, portanto, de seu conteúdo, já que tanto os direitos
patrimoniais quanto muitos dos direitos sociais tem conteúdo econômico. (idem).
A segunda diferença diz com a disponibilidade dos direitos patrimoniais, enquanto os
direitos fundamentais caracterizam-se pela sua indisponibilidade, ou seja, subtraídos ao
mercado e inderrogáveis por decisões públicas (FERRAJOLI, 2007, p. 762).
A terceira diferença, conseqüência da anterior, refere-se às causas que originam as
duas classes de direitos: os direitos fundamentais consistem imediatamente em regras
heterônomas (precisamente em regras tético-deônticas) não alteráveis pelo seu exercício nem
pela sua violação. São, portanto, ex lege e não ex contractu. Já os direitos patrimoniais, dada a
sua disponibilidade, não são diretamente conferidos por normas, mas pressupõem normas
(hipotético-deônticas) as quais hipoteticamente os predispõem como efeitos dos atos por elas
previstos como causas (FERRAJOLI, 2007, pp. 762-763).
A quarta diferença, de seu lado, consiste no fato de que, enquanto os direitos
patrimoniais são do tipo horizontal – já que as relações entre seus titulares são do tipo civilista
– os direitos fundamentais são verticais, eis que, dado o fato de que vinculam antes de tudo o
Estado, constituem relações de tipo publicista. (idem).
Todas estas diferenças vêm apontar para uma diversidade maior entre direitos
fundamentais e patrimoniais: com efeito, como diz Ferrajoli, os direitos fundamentais são
iguais não só no sentido de que dizem respeito a todos, mas também no sentido de que dizem
respeito invariavelmente e normativamente de igual forma e em igual medida. Os direitos
patrimoniais são pro sua vez desiguais, continua o autor, no duplo sentido de serem
contingentes e mutáveis por causa dos acontecimentos aos quais se subordinam, seja pelos
titulares, seja pelos conteúdos (FERRAJOLI, 2007, p. 764).
11 A propriedade como direito real e como direito civil
Após definir os direitos reais como direitos patrimoniais absolutos, que tem os bens
por objeto e consistentes na expectativa de sua não lesão (FERRAJOLI, 2007, p. 767), o autor
italiano dedica-se a examinar a importante distinção entre o direito de propriedade como
direito real patrimonial e a propriedade enquanto direito civil fundamental. No uso corrente,
essas duas noções – a propriedade enquanto “ilimitado e exclusivo domínio de uma pessoa
sobre uma coisa”, segundo a clássica definição de Savigny, e a propriedade como direito de
adquirir e de dispor dos bens de propriedade – são costumeiramente confundidas. É esta
ambivalência do termo “propriedade” – unida aos seus usos metafóricos e persuasivos
270
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
(quando se fala da propriedade da própria pessoa, ou do próprio corpo, ou da própria
liberdade) – a que é responsável pelos seus diversos deslocamentos semânticos: a assimilação
da propriedade sobre bens determinados aos direitos de liberdade enquanto propriedade de si
mesmo e, de outro lado, aos direitos civis de autonomia, quais sejam, os de dispor dos
próprios bens. Da propriedade enquanto direito real e enquanto direito civil é, no entanto,
agora possível identificar tanto as diferenças estruturais quanto os nexos que se dão entre elas
(FERRAJOLI, 2007, p. 769).
As diferenças estruturais são as mesmas que separam os direitos fundamentais dos
patrimoniais. Os direitos civis de autonomia, inclusive até aquele de adquirir e dispor dos
próprios bens, são direitos fundamentais, e como tais universais e indisponíveis, isto é,
atribuíveis a todos enquanto pessoas com capacidade de exercício e diretamente dispostos
pelas normas tético-deônticas que os prevêem. Pelo contrário, os direitos reais, antes de tudo a
propriedade sobre bens determinados, são direitos patrimoniais, e como tais singulares e
disponíveis, isto é, atribuíveis aos seus titulares com exclusão dos outros e predispostos como
efeitos das normas hipotético-deônticas que prevêem os atos que deles são causa. Trata-se por
isso de duas classes de direitos não apenas diferentes, mas estruturalmente contrários
(FERRAJOLI, 2007, PP. 769-770).
Graças a essas relações de contrariedade diminuem as ambigüidades que afetam o
termo propriedade no uso cotidiano. Quando se fala – como, por exemplo, no art. 2º da
Déclaration de 1789, ou no Segundo tratado de Locke, ou mesmo na tipologia de Marshall –
do “direito de propriedade” como um “direito natural” ou “do homem” ou “civil” ou “de
cidadania” ou mesmo “fundamental”, no nível do direito de liberdade, alude-se elipticamente
ao primeiro destes direitos, que, com respeito ao segundo é por assim dizer um meta-direito:
ou seja, um direito fundamental porque atribuível a todos enquanto pessoas, totalmente
diferente dos direitos reais sobre bens determinados graças àquele adquiridos ou alienados;
assim como é diferente do direito fundamental de imunidade contra lesões indevidas à
integridade pessoal o direito de crédito ao ressarcimento de um dano à própria integridade
concretamente ocorrido por um ato ilícito (FERRAJOLI, 2007, p. 770).
Entre as duas classes de direitos existe, no entanto, também um nexo. Os direitos
reais e os direitos patrimoniais, em geral, são disponíveis graças à titularidade dos direitos
civis de autonomia, por cujo exercício, consistente em atos negociais, podem aqueles ser
produzidos, modificados, transferidos ou extintos; o que pelo contrário é excluído pelos
direitos fundamentais, ao quais não são negociáveis, no sentido de que jamais têm seu título
271
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
ou causa num negócio jurídico, mas sempre numa fonte normativa (FERRAJOLI, 2007, pp.
770-771).
CONCLUSÃO
Como se viu, o direito de propriedade, consagrado em nossa Carta como um direito
fundamental, merece ser objeto de análise mais pormenorizada, como aquela oferecida pelas
reflexões de Ferrajoli, para uma melhor compreensão do instituto. Com efeito, para o autor
italiano, o direito de propriedade deve distinguir-se do direito à propriedade, sendo aquele um
direito subjetivo comum e este um direito fundamental, dado que este último reúne as
características exigidas do ponto de vista formal para a sua fundamentalidade, ao contrário
daquele.
De outra banda, deve, ainda, ser diferenciado o direito à disposição dos próprios
bens, que é também um direito fundamental, do direito de alguém sobre um determinado bem,
que se constitui em direito civil comum.
Assim, a correta interpretação do disposto no inciso XXII do art. 5º da Constituição
da República exige uma postura restritiva e analítica como pressuposto da compreensão do
instituto.
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273
PARTE II
MEIO
AMBIENTE
A IMPORTÂNCIA DA PROTEÇÃO DA BIODIVERSIDADE BRASILEIRA PARA
GARANTIR O ACESSO À SAÚDE
Tarin Frota Mont‟Alverne 1
Denise Almeida de Andrade2
RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo confirmar a necessidade de se estatuir
normas regulamentadoras para a repartição dos benefícios oriundos da utilização da
biodiversidade, haja vista a discrepância de interesses e realidade dos países megadiversos
(ricos em biodiversidade, a exemplo do Brasil) e dos países detentores de biotecnologia (a
exemplo dos Estados Unidos e países europeus). Na verdade, existem os mecanismos de
acesso e repartição de benefícios estabelecidos no artigo 15 da Convenção da Biodiversidade,
no entanto, tal artigo não garante a repartição justa e equitativa dos benefícios decorrentes da
utilização da biodiversidade e, por isso, encontra-se em negociação um regime internacional
sobre o acesso e a repartição de benefícios no âmbito desta Convenção com o intuito de dar
efetividade à tais instrumentos. Neste contexto, percebe-se que o acesso à saúde no Brasil
pode ser incrementado a partir da existência e do efetivo cumprimento de normas que
objetivem proteger a biodiversidade brasileira. Para desenvolver a presente pesquisa, utilizouse, primordialmente, de levantamento bibliográfico, com a análise de livros e periódicos
nacionais e internacionais, bem como a verificação de documentos concernentes ao tema.
Percebe-se a partir dos esforços envidados que a proteção da biodiversidade brasileira, por
meio do cumprimento de normas que pugnem pela repartição de benefícios, é condição
relevante para se garantir o acesso à saúde.
PALAVRAS-CHAVE: Biodiversidade. Regulamentação. Saúde. Direitos Fundamentais.
Medicamentos.
ABSTRACT: This study aims to confirm the need to establish the standards for regulating
the distribution of benefits from the management of biodiversity, given the discrepancy of
interests and reality of mega-diverse countries (rich in biodiversity, such as Brazil) and the
countries that hold biotechnology (like the United States and European countries). In fact,
there are mechanisms for access and benefit-sharing set out in Article 15 of the Biodiversity
Convention, however, this article does not guarantee fair and equitable sharing of benefits
arising from biodiversity use and, therefore, is in negotiation an international regime on
access and benefit sharing under the Convention on Biological Diversity in order to give
effect to such instruments. In this context, it is clear that access to health care in Brazil can be
increased from the existence and effective enforcement of rules that aim to protect Brazil's
biodiversity. To develop this research, we used primarily a literature review, the analysis of
1
Professora Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da UFC (Capes/PNPD).
Doutora em Direito Internacional do Meio Ambiente pela Universidade Paris V e Universidade de São Paulo.
Mestre em Direito Internacional Público pela Universidade Paris V.
2
Advogada. Mestre em Direito Constitucional pela UNIFOR. Professora do curso de Direito da UNIFOR e da
Faculdade Christus.
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
books and national and international journals, as well as verification of documents concerning
this topic. It can be seen from the efforts to protect Brazil's biodiversity, through the
enforcement of norms that advocates the sharing of benefits is a relevant condition for
ensuring access to health.
KEY-WORDS: Biodiversity. Standards. Health. Fundamental rights. Drugs.
INTRODUÇÃO
A proteção da biodiversidade é um tema de extrema complexidade, pois engloba
diferentes questões: meio ambiente, comércio, saúde, relações internacionais, propriedade
intelectual, conhecimentos tradicionais... Estamos, indubitavelmente, diante de uma
problemática que não é apenas jurídica ou cientifica, pois está imbricada com aspectos
econômicos, éticos, sociais e políticos.
A biodiversidade é sem dúvida uma das grandes questões do século XXI, pois é
importante tanto pela manutenção do equilíbrio ambiental, quanto pelo seu valor econômico,
que atualmente é evidenciado pela evolução da biotecnologia.
O acesso aos recursos genéticos e a repartição de benefícios deles advindos são
conceitos bastante recentes. Desde a adoção da Convenção sobre a biodiversidade (CDB) em
1992, por se tratar de uma Convenção-Quadro, novas diretrizes normativas e operacionais têm
sido adotadas, sobretudo pelos governos de países em desenvolvimento, a fim de tornar mais
concretos os dispositivos da CDB.
Contudo, a regulamentação sobre este assunto não é fácil, devido à diversidade de
interesses dos vários países envolvidos, bem como das diversas facetas do tema em questão.
Atualmente, a biodiversidade e as questões conexas ocupam um lugar importante na agenda
política de muitos Estados.
As regras sobre o acesso à biodiversidade variam de um país para outro e as leis não
são claras, sendo então, simplesmente, insuficientes para negociar a repartição de benefícios.
Desde a ratificação da CDB pelo Congresso Nacional, em 03 de fevereiro de 1994,
até o ano de 2001, não havia legislação acerca do acesso e da repartição dos benefícios
oriundos do uso da biodiversidade ainda no País, pois o principal instrumento jurídico
nacional de proteção da biodiversidade ainda é a Medida Provisória n º 2.186-16, que somente
foi editada em 23 de agosto de 2001.
276
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Passados nove anos da publicação desta MP, o Brasil não recebe os benefícios
econômicos advindos da exploração da biodiversidade nacional, em decorrência do uso de
mecanismos de exploração e de pesquisas ilegais, da adoção de medidas nacionais
insuficientes, da dificuldade de fiscalização inerente à própria natureza das atividades
bioprospectoras. Além disso, é claro que a regulamentação de um tema de tal relevância pela
via de um instrumento como uma Medida Provisória é precária, dando lugar a uma
insegurança jurídica.
Na verdade, aguarda-se, desde 2002, o encaminhamento do Projeto de Lei sobre a
matéria pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional. Como se observa, o Estado brasileiro
ainda não cumpriu com sua função legislativa sobre o tema.
Neste sentido, a ausência de um arcabouço jurídico claro e efetivo tem permitido, ou
até mesmo incentivado, a ocorrência de significativas controvérsias sobre a questão, como
acusações de apropriação ilícita da biodiversidade brasileira.
É de suma importância que o Brasil apresente instrumentos jurídicos adequados para
regular o acesso e a repartição de benefícios de forma justa e equitativa, uma vez que a falta
de regras claras para as atividades de bioprospecção e o hábito de conduzi-las de maneira
informal contribuem para o acesso desordenado e, em alguns casos, ilegal dos componentes
da diversidade biológica3.
Diversos casos já foram divulgados pelo Ministério do Meio Ambiente, nos quais
empresas de várias nacionalidades que utilizaram a biodiversidade brasileira para a produção
irregular de medicamentos, solicitando registro de patentes sem respeitar a soberania à
biodiversidade estabelecida pela CDB.
É diante deste contexto, que se indica que a população brasileira acaba não tendo
acesso aos “produtos”, oriundos da biodiversidade nacional, pois as normas nacionais e
internacionais de propriedade intelectual não garantem a repartição de benefícios entre os
países fornecedores e usuários da biodiversidade, como o pagamento de royalties e/ou a
transferência de tecnologia.
A questão que se coloca é clara: se os países que detêm o know how biotecnológico
não dispõem da megadiversidade que Estados como o brasileiro tem, as relações entre esses
Estados deveriam apontar para uma prática cooperativa e solidária. Todavia, o que se vem
percebendo é uma predominância dos interesses dos países desenvolvidos.
3
Esse tipo de atividade ilegal deu origem ao termo “biopirataria”.
277
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
É nesta medida que se maximiza a importância de se regular a repartição de
benefícios oriundos da utilização da biodiversidade, defendendo-se um regime internacional
apto a albergar de forma equitativa essas relações.
Dentre os vários matizes que envolvem a biotecnologia e suas repercussões junto ao
conceito e à efetivação do direito à propriedade, apresenta-se a problemática concernente aos
medicamentos.
Diz-se isto porque a área da saúde congrega, quase que paradoxalmente, dois vieses
bem distintos, pois de um lado tem-se os interesses eminentemente financeiros(laboratórios,
indústrias farmacêuticas multinacionais, unidades de saúde privadas etc.) e de outro a
preocupação com o bem-estar coletivo.
Há que se admitir, para que se tenha um diálogo objetivo e produtivo, que nos dias
atuais não se pode negar o intuito de se obter lucro quando se desenvolve atividades ligadas à
saúde. Diante disto, tem-se que buscar contemplar ambos os interesses, quais sejam: o do
mercado e o da coletividade, cabendo diretamente aos Estados esse mister de encontrar um
ponto de equilíbrio.
Neste sentido:
Em primeiro lugar, a área da saúde constitui um dos espaços econômicos mais
dinâmicos de acumulação de capital e de inovação, cuja compreensão se mostra
essencial para pensar políticas de promoção e de desenvolvimento (Gelijns &
Rosemberg, 1995). Em segundo lugar, atualmente é reconhecido o caráter sistêmico
que envolve a geração de inovações de produtos, de processos e organizacionais na
área da saúde (Albuquerque & Cassiolato, 2000). Essa área alia grande possibilidade
e necessidade de inovação (difusão da biotecnologia, de novas formas de
organização dos serviços, etc.) com uma forte dimensão social, que requer a
mobilização de um amplo aparato regulatório e institucional. Em terceiro lugar, a
despeito de toda a crise do Estado keynesiano e de bem-estar, a saúde continua
sendo uma das áreas de maior intervenção estatal, tanto no setor de serviços
(Médici, 1998) quanto nas atividades científicas e tecnológicas (Gelijns &
Rosemberg, 1995).(GADELHA;QUENTAL; FIALHO: on line).
Compõem esse contexto as dificuldades, das mais diversas ordens, envolvendo
medicamentos, a saber: os biológicos de alto custo, os medicamentos “órfãos”, a falta,
injustificada, de incentivo à pesquisa com fitoterápicos, a não proteção adequada dos
princípios ativos que compõem novos medicamentos etc.
Desta forma, objetiva-se demonstrar a importância da regulamentação das atividades
concernentes à utilização da biodiversidade brasileira para se potencializar ganhos à
população de países com menor poder econômico e político (a exemplo da brasileira), em
278
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
especial, no que se refere ao direito à saúde a partir do acesso a medicamentos.
1 EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE DIREITO À SAÚDE E O ACESSO A
MEDICAMENTOS ORIUNDOS DA BIODIVERSIDADE
O conceito de saúde, ao longo dos tempos, sofreu diversas transformações, tendo
evoluído pari passu com todos os demais aspectos que compõem a sociedade. Desde a
Antigüidade Clássica, alguns estudiosos buscavam melhor caracterizar a saúde no intuito de, a
partir de suas pesquisas, contribuírem para o incremento da qualidade de vida dos indivíduos.
No século XX, findas as duas grandes guerras mundiais, não podia mais prescindir
de atividades que resgatassem a dignidade da pessoa humana, que visassem à melhoria da
qualidade de vida e que pregassem a prosperidade, a solidariedade e a convivência pacífica
entre os povos.
As perdas humanas, financeiras e estruturais advindas de anos de conflitos foram
enormes e a reconstrução dos países diretamente atingidos, bem como dos demais Estados do
mundo, perpassaria necessariamente por vários aspectos. A economia e a infra-estrutura
dessas nações foram decisivas para a retomada das atividades estatais essenciais, mas a
revitalização dos países estava adstrita ao resgate da solidariedade, da dignidade e do respeito
entre os povos, aspectos frontalmente atingidos durante uma guerra de proporções mundiais.
Após a Segunda Grande Guerra, atividades desenvolvidas pela ONU fomentaram a
publicação da Declaração Universal dos Direitos do Homem 4, em 1948, documento que até os
dias atuais desempenha papel fundamental na luta pelo fortalecimento da dignidade da pessoa
humana como paradigma das relações entre os povos.
A percepção de direito à saúde acompanhou as modificações do conceito de saúde, o
qual se apresentou bem mais completo no momento em que superou as demais definições
tidas até aquele momento, afastando a ideia de que a ausência de doenças era sinônimo de
saúde, ao tempo em que a definia como um conjunto de bem estar físico, psíquico e social.
A Organização Mundial da Saúde – OMS, constituída em 1946, prevê em seu texto
constitutivo que o direito à saúde é direito de todo indivíduo, asseverando, in verbis: “a posse
do melhor estado de saúde que o indivíduo pode atingir constitui um dos direitos
fundamentais de todo ser humano”5, iniciando suas atividades, efetivamente, em 1948.
4
A Declaração Universal dos Direitos do Homem foi aprovada por meio da uma resolução durante a III Seção
Ordinária da Assembléia Geral das Nações Unidas realizada em Paris aos 10 de dezembro de 1948.
5
Excerto extraído do texto da Constituição da Organização Mundial de Saúde.
279
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Esclarece, no ponto I, que “Saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental
e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade”. 6 A partir daí, o
caminho trilhado pelos Estados na busca pela efetivação do direito fundamental à saúde vem
guardando estreita semelhança com o conceito de saúde preconizado pelas entidades
internacionais, em especial, pela Organização Mundial da Saúde - OMS.
Desta forma, para se garantir o gozo do melhor estado de saúde aos indivíduos, fazse necessário assegurar seu bem-estar físico, psíquico e social, não havendo nenhuma
prioridade entre esses três aspectos, vez que o ser humano é analisado como um conjunto
complexo de características e necessidades, todas igualmente relevantes.
O final da Segunda Guerra Mundial foi um marco no processo evolutivo do conceito
de saúde, visto que o indivíduo passou a ser considerado sujeito de direitos, portador de
interesses próprios e não mais um objeto do Estado.
Percebe-se, pois, que o aprimoramento do conceito de saúde em meio à comunidade
internacional desencadeou uma busca pela adequação dos ordenamentos jurídicos nacionais a
este novo paradigma, os quais passaram a entendê-lo em consonância com a proposta da
Organização Mundial da Saúde – OMS, consagrando que ter saúde é desfrutar de bem-estar
físico, psíquico e social.
No âmbito interno, a Constituição Federal de 1988 de conteúdo denso e composição
analítica afigurou-se como uma iniciativa sem precedentes no Direito brasileiro. Inaugurou-se
uma nova ordem jurídica constituindo-se o Brasil em um Estado Democrático de Direito,
fundamentado na dignidade da pessoa humana, tendo como paradigma a busca pelo respeito e
pela efetivação dos direitos fundamentais.
Ingo Wolfgang Sarlet, dissertando sobre esta relação entre direitos fundamentais e
dignidade humana, afirma:
Se, por um lado, consideramos que há como discutir – especialmente na nossa
ordem constitucional positiva – a afirmação de que todos os direitos e garantias
fundamentais encontram seu fundamento direto, imediato e igual na dignidade da
pessoa humana, do qual seriam concretizações, contata-se, de outra parte, que os
direitos e garantias fundamentais podem, com efeito, ainda que de modo e
intensidade variáveis, ser reconduzidos de alguma forma à noção de dignidade da
pessoa humana, já que todos remontam à idéia de proteção e desenvolvimento das
pessoas, de todas as pessoas [...].(SARLET: 2002, p. 83-84).
Desta forma, perceber o direito à saúde como um direito fundamental positivado na
6
Definição de saúde presente no texto da Constituição da Organização Mundial da Saúde – OMS.
280
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Constituição brasileira significa alçá-lo à condição singular de elemento fundante do sistema
jurídico nacional e sua efetivação impõe-se como instrumento para a legitimação da
existência do Estado.
O artigo 6º da Constituição Federal de 1988 ao preconizar: “São direitos sociais a
educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a
proteção à maternidade e à infância, à assistência aos desamparados, na forma desta
Constituição” (grifo nosso), na medida em que erige este direito à condição de fundamental,
confere aplicação imediata aos dispositivos relacionados ao direito à saúde.
Note-se a consonância das iniciativas e conceitos presentes no sistema jurídico pátrio
com as orientações e parâmetros propostos pela Organização Mundial da Saúde. Essa
paridade é essencial para a efetivação do direito fundamental à saúde, pois a uniformização de
entendimento favorece a agregação de forças 7 e viabiliza ações conjuntas, que apresentam
maior eficiência.
Incumbe, pois, ao Estado envidar todos os esforços necessários à efetivação deste
direito que passa a ser uma prerrogativa de todos os cidadãos brasileiros.
Esclareça-se que a ineficiência do Estado não está tendo como anteparo apenas as
limitações de cunho financeiro, mas também a inobservância de preceitos garantidos
constitucionalmente e ratificados pela ordem jurídica internacional, em especial quando se
trata de discussões que envolvem a repartição de benefícios oriundos da biodiversidade.
Neste sentido, Ieda Cury arremata: “a extensão a todos os povos dos benefícios dos
conhecimentos médicos, psicológicos e afins é essencial para atingir o mais elevado grau
de saúde”.(grifou-se). (CURY: 2005, p. 43).
Desta forma, à luz dos preceitos da Constituição Federal de 1988 e do atual conceito
de saúde, e conhecendo-se a realidade do sistema de saúde brasileiro, devem-se apontar
alternativas que auxiliem na adequação das práticas de saúde a este novo panorama.
Nesta medida, é que se discute a atual problemática da biodiversidade, no que se
refere, especialmente, a repartição de benefícios que envolvam a produção de medicamentos.
Diz-se isto, pois esse aspecto da saúde tem estado, quase que totalmente, sob a
responsabilidade da iniciativa privada, por meio das indústrias farmacêuticas, as quais vêm
demonstrando compromisso com a lucratividade e monopólio de conhecimento.
7
Fala-se, neste sentido, de força política, econômica, social e institucional.
281
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Gadelha, Quental e Fialho asseveram:
A indústria farmacêutica tem como atividade final a produção de medicamentos,
utilizados pela sociedade no tratamento de doenças ou outras indicações médicas. A
produção de medicamentos envolve quatro estágios principais: pesquisa e
desenvolvimento (P&D) de novos fármacos; produção industrial de fármacos;
formulação e processamento final de medicamentos; e comercialização e
distribuição por intermédio de farmácias e outros varejistas, e das unidades
prestadoras de serviços de saúde (Frenkel et al., 1978). (GADELHA;QUENTAL;
FIALHO: on line).
Faz-se necessário, pois, perceber que a demanda por medicamentos é uma
conseqüência do exercício do direito à saúde, que objetiva garantir o bem-estar das pessoas,
que se sobrepõe aos interesses da iniciativa privada, bem como de países estrangeiros.
Não obstante, a par dessa preocupação com a demanda de medicamentos, observase, no conjunto dos países desenvolvidos e sob uma outra vertente, uma forte
política industrial e de inovação, envolvendo a montagem de uma ampla e complexa
infra-estrutura de C&T em saúde (Gelijns & Rosemberg, 1995), a defesa forte da
legislação de propriedade intelectual em nível internacional (a exemplo das
negociações na Organização Mundial do Comércio) e esforços de toda natureza para
o acesso aos mercados mundiais e para a redução das barreiras tarifárias e não
tarifárias aos produtos farmacêuticos, além de outros mecanismos, como subsídios à
pesquisa industrial e permissão de fusão de grandes empresas líderes visando à
competitividade internacional. Assim sendo, podemos concluir que nos países
avançados observa-se, em termos gerais, certa convergência das necessidades do
sistema de saúde com as do sistema de inovação, o que torna o sistema de inovação
em saúde dinâmico, compatibilizando a demanda social com o desenvolvimento
empresarial, a despeito das tensões inerentes à área da saúde.
(GADELHA;QUENTAL; FIALHO: on line).
Percebe-se, então, que há um tensionamento de forças, a partir da polarização de
interesses entre os Estados. Todavia, tem-se percebido uma tendência a manutenção do status
quo, que, atualmente, prejudica países megadiversos e prioriza os interesses das nações
desenvolvidas.
Os países megadiversos não participam diretamente das pesquisas com fármacos em
seus níveis mais avançados, e em razão disto, raramente são beneficiários dos resultados
obtidos. Há uma incontestável concentração das indústrias farmacêuticas em países
desenvolvidos:
Desde a década de 70 a indústria farmacêutica brasileira é dominada por empresas
multinacionais, que respondem por cerca de 80% do mercado nacional (Queiroz,
1993). Apenas uma empresa de capital nacional, a Aché, figura entre as dez maiores
companhias farmacêuticas atuando no País, sendo as demais filiais de empresas
multinacionais. (GADELHA; QUENTAL; FIALHO: on line).
282
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Essa realidade que acaba por criar um oligopólio, que, em tempos de economia
globalizada, apresenta benefícios para aqueles que detêm maior poder/ingerência econômica e
política. Neste sentido: “As empresas líderes na indústria farmacêutica estão sediadas nos
Estados Unidos e na Europa (Alemanha, Suíça, França e Reino Unido, principalmente)”.
(GADELHA; QUENTAL; FIALHO: 2003).
A questão primordial a ser enfrentada, então, é a discrepância entre o que é fornecido
pelos países megadiversos e o retorno recebido dos países detentores de biotecnologia, haja
vista a potencialidade dessa megabiodiversidade, conforme as palavras de João Calixto:
Esse imenso patrimônio genético, já escasso nos países desenvolvidos, tem na
atualidade valor econômico-estratégico inestimável em várias atividades, mas é no
campo do desenvolvimento de novos medicamentos onde reside sua maior
potencialidade A razão dessa afirmação é facilmente comprovada quando se analisa
o número de medicamentos obtidos direta ou indiretamente a partir de produtos
naturais. (CALIXTO:2003).
Um significativo percentual dos princípios ativos que compõem os medicamentos
atuais é extraído da natureza, o que coloca o Brasil 8 numa condição de “fornecedor de
matéria-prima”:
Estima-se que 40% dos medicamentos disponíveis na terapêutica atual foram
desenvolvidos de fontes naturais: 25% de plantas, 13% de microrganismos e 3% de
animais. Somente no período entre 1983-1994, das 520 novas drogas aprovadas pela
agência americana de controle de medicamentos e alimentos (FDA), 220 (39%)
foram desenvolvidas a partir de produtos naturais. (CALIXTO:2003).
Todavia, essa condição brasileira “privilegiada” não lhe garante gozo e fruição de
benefícios correspondentes, demonstrando a premência de se impor novos paradigmas para a
discussão sobre a propriedade intelectual e a biodiversidade.
As normas sobre propriedade intelectual, discutidas no âmbito dos organismos
internacionais, bem como no plano interno brasileiro, são insuficientes para garantir o
equilíbrio dessas relações, o que acaba por comprometer o livre exercício de direitos, a
exemplo do direito à saúde.
Na verdade, não é inadequado a extração e o fornecimento de material biológico que
vise o incremento da qualidade de vida e da saúde das pessoas, o que se coloca em pauta é a
premência de que essas atividades efetivamente se consubstanciem em instrumentos de
efetivação de direitos fundamentais no Brasil.
8
Ao se falar de Brasil se está tratando dos países megadiversos.
283
2
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
A IMPLEMENTAÇÃO DO TERCEIRO OBJETIVO DA CDB COMO
GARANTIDOR DO ACESSO AOS MEDICAMENTOS
Garantir a repartição justa e equitativa dos benefícios decorrentes da utilização dos
recursos genéticos é o terceiro objetivo da CDB. Tal objetivo é de extrema relevância para os
países em desenvolvimento que têm grande parte da biodiversidade mundial, mas não se
beneficiam de forma justa e eqüitativa dos benefícios derivados da exploração de seus
recursos.
Por isso, desde 1992, novas diretrizes normativas e operacionais têm sido adotadas
sobretudo pelos governos de países em desenvolvimento, comunidades locais, instituições
públicas e privadas, bem como por indivíduos a fim de tornar mais concretos os dispositivos
dessa Convenção.
Deve-se ressaltar que o debate é altamente complexo e envolve, principalmente, o
artigo 8 (j), o artigo 15 («Acesso aos recursos genéticos »), o artigo 16 (« Acesso e
transferência de tecnologia») e o artigo 19 (« Gestão de biotecnologia e repartição de
benefícios ») da CDB que mobilizou tais esforços nacionais.
A CDB, ao consagrar o princípio da plena soberania dos Estados sobre seus recursos
biológicos, condiciona a legitimidade (e, por conseguinte, a legalidade) das atividades de
bioprospecção à estrita observância das prescrições normativas estabelecidas no interior de
cada Estado nacional, em cuja circunscrição territorial sejam tais atividades realizadas, ou de
onde seja extraído material orgânico objeto das atividades de bioprospecção (arts.15.5 e 19.3
CDB).
Assim, deve-se dar uma resposta a uma possível e instigante indagação sobre se não
teria sido mais que suficiente a existência e a atuação de todo o arsenal de normas jurídicas
nacionais, que já existem no interior de vários ordenamentos jurídicos nacionais, para regular
o acesso aos recursos genéticos e a repartição de benefícios deles advindos.
Pode-se observar que a adoção de medidas em nível nacional está sendo considerada
insuficiente para que o acesso aos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados
em território nacional seja facilitado, mediante a justa e equitativa repartição de benefícios.
Ademais, ocorre que a quase-totalidade dos países megadiversos9 vêm sendo,
9
Denominação dada a qualquer uma das 17 nações mais ricas em biodiversidade do mundo. Além do Brasil,
fazem parte dos Megadiversos, a África do Sul, Bolívia, China, Colômbia, Congo, Costa Rica, Equador,
Filipinas, Índia, Indonésia, Madagascar, Malásia, México, Peru, Quênia e Venezuela. A Declaração de Cancún de
284
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
repetidas vezes, violados e alijados dos benefícios econômicos advindos da exploração da
biodiversidade nacional, em decorrência do uso de mecanismos de exploração e de pesquisas
ilegais. Por serem, em sua maioria, países periféricos e subdesenvolvidos, a exploração é
substancialmente agravada, por não disporem tais nações de elementos mínimos de
salvaguarda de suas riquezas biológicas, ou seja: por não disporem de condições materiais e
técnicas eficientes e capazes; por inexistirem ou serem insuficientes os mecanismos legais de
contenção e fiscalização; e, ainda, pelas dificuldades de controle inerentes à própria natureza
das atividades bioprospectoras. Neste sentido, são necessárias medidas em âmbito
internacional.
Desde a aprovação das Diretrizes de Bonn10, o debate vem evoluindo no tocante à
necessidade de criação de um regime internacional e um passo importante dado neste debate
foi a adoção do Plano de Implementação da Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento
Sustentável (Joanesburgo, 2002), no qual incluiu-se a determinação de que deveria ser
negociado, no contexto da CDB, um regime internacional sobre a repartição de benefícios
resultantes da utilização de recursos genéticos. De fato, tem-se avançado (de forma lenta) nas
negociações.
Diante desta situação de incertezas, no tocante ao acesso e a repartição de benefícios,
a busca de soluções se impõe. Chegar a um acordo sobre um texto aceitável tanto para os
governos dos países pobres em biodiversidade, do mundo industrializado, como para os países
em desenvolvimento, ricos em biodiversidade, torna o processo inesperadamente longo,
difícil e contencioso. Em despeito disto, deve-se encontrar um equilíbrio entre tais interesses,
evitando um conflito, bem como a falência de qualquer proposta de regime.
Variadas questões são oriundas do fato de que as leis nacionais são imprecisas,
incapazes de solucionar as problemáticas relacionadas a este tema, como a
16/2001,
Medida Provisória n º 2.186-
por este motivo se evidencia a necessidade de um regime internacional. Mas será que
poderá ocorrer um consenso entre os países em via de desenvolvimento e os países
desenvolvidos? Se existir um equilíbrio de interesses entre os países, como encontrar uma
solução ideal para a propriedade intelectual no âmbito da biodiversidade? Como resolver um
possível conflito entre tais países? Como garantir a efetividade de tal regime?...
As negociações sobre o novo regime internacional ainda são muito polarizadas. É
Fevereiro de 2002, criou o Grupo dos Países Megadiversos Afins como um mecanismo para promover uma
agenda comum relativa à conservação e uso sustentável da diversidade biológica.
10
Decisão VI-24 aprovada durante a Conferencia das Partes VI em Haia (Holanda) em 2002.
285
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
difícil prever o resultado das negociações e vários estudos estão em curso ou ainda serão
desenvolvidos neste ano. Tudo está sobre a mesa para negociar um novo regime internacional
na próxima reunião da Conferência das Partes (COP) da CDB, que se realizará em Nagoya no
Japão em 2010.
Destaca-se que tal questão interessa a outras organizações internacionais, como a
Organização Mundial do Comércio (OMC), a Organização para alimentação e agricultura
(FAO), a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), Organização Mundial de
Saúde (OMS) e suscita um debate sem precedentes em nível regional e nacional. Em outras
palavras, existe uma multiplicidade de negociações paralelas sobre acesso e repartição de
benefícios oriundos da utilização da biodiversidade. Por conseguinte, a Conferência das
Partes (COP) da CDB já reconheceu a necessidade de prosseguir os trabalhos sobre esta
questão em colaboração com estas e outras organizações.
É importante sempre conjugar os efeitos das atividades desenvolvidas no âmbito da
CDB e os efeitos de outras convenções e acordos internacionais e regionais relacionados à
biodiversidade.
Além do terceiro objetivo da CDB ora apresentado, o debate sobre a questão do
acesso e da repartição de benefícios encontra-se presente na OMC através das discussões
sobre o ADPIC11, na FAO por meio do Tratado Internacional sobre recursos fitogenéticos
para a alimentação e agricultura e na OMPI, especificamente no âmbito do Comitê
Intergovernamental sobre propriedade intelectual, recursos genéticos, conhecimentos
tradicionais e folclore.
Ressalte-se que a Organização Mundial da Saúde – OMS não tem se apresentado
para o debate de forma contundente. Sabe-se que o Departamento de Proteção do Ambiente
Humano da OMS tem discutido sobre a importância de se proteger a biodiversidade como
instrumento de proteção da vida humana. Nesse sentido, as palavras de Maria Neira, diretora
do Departamento para a Proteção do Ambiente Humano da OMS “A saúde humana possui
uma forte ligação com a saúde dos ecossistemas, que atendem a várias das nossas
necessidades mais básicas”.(WWF:on line).
Todavia, a discussão deve ser mais produtiva, pois se há a indicação de que a
proteção da biodiversidade interfere diretamente na qualidade da saúde humana, a OMS
11
Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio (Acordo Trips ou
Acordo ADPIC).
286
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
deveria expandir o diálogo para além da defesa genérica e abstrata desta biodiversidade,
apontando que os medicamentos são instrumentos garantidores da saúde dos indivíduos e que
todos os esforços devem ser envidados para que cada vez mais se possa assegurar o acesso
aos resultados de pesquisas, quer envolvam fitoterápicos quer envolvam medicamentos
tradicionais, que utilizem insumos da biodiversidade brasileira.
Por isso, o debate sobre o regime internacional sobre o acesso e a repartição de
benefícios deve levar em consideração o papel desses elementos internacionais que existem
fora da convenção.
É evidente que qualquer regime internacional ABS 12 dependerá do conhecimento dos
organismos e de acordos nacionais e internacionais, pois é improvável que se alcance os
objetivos da CDB se as negociações forem exclusivamente baseadas num tratado, acordo ou
organização em particular.
Na verdade, implementar o terceiro objetivo da CDB é tarefa complexa, mas
necessária, pois se de um lado se encontra resistência pelas diferenças de interesses e pelo
desequilíbrio de forças entre Estados, de outro já se percebeu ser imprescindível a superação
desses impasses para que se consiga avançar em pesquisas e em qualidade de vida.
Garantir o acesso e a repartição justa e equitativa de benefícios é, pois, uma forma de
se efetivar direitos das mais diversas ordens, e no estudo em análise, tem-se o acesso aos
medicamentos, que pode ser incrementado a partir da implementação do terceiro objetivo da
CDB, confirmando o compromisso dos Estados com a promoção da saúde e o bem-estar dos
indivíduos.
CONCLUSÃO
É de suma importância, então, que o Brasil apresente de forma efetiva instrumentos
jurídicos para a proteção da biodiversidade, uma vez que a falta de regras claras para as
atividades de bioprospecção e o hábito de conduzi-las de maneira informal contribuem para o
acesso desordenado e, em alguns casos, ilegal aos componentes da diversidade biológica.
Observa-se, pois, que a ausência de um arcabouço jurídico claro e efetivo tem permitido, ou
até mesmo incentivado, a ocorrência de importantes controvérsias sobre a questão, como
acusações de apropriação ilícita da biodiversidade brasileira.
Concluiu-se que a ausência de uma implementação efetiva do terceiro objetivo da
12
O regime sobre acesso e repartição de benefícios também é conhecido como regime ABS (access and benefit
sharing).
287
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
CDB, no que se refere ao manejo dos benefícios oriundos da biodiversidade brasileira, pode
gerar repercussões específicas, como a limitação de acesso a insumos relacionados à saúde.
Neste sentido, a biodiversidade poderá desempenhar um papel de reequilíbrio da
riqueza existente no mundo, fazendo com que diferenças na qualidade de vida, mediante o
acesso a medicamentos, entre nações ricas e nações pobres sejam progressivamente
eliminadas para garantir que as trocas existentes entre detentores de tecnologia e os
possuidores da biodiversidade não sigam o mesmo rumo da iniqüidade econômica que tem
marcado a história mundial.
Neste contexto, torna-se fundamental o desenvolvimento de ações internacionais que
objetivem agregar valor aos componentes da biodiversidade, que visem dar suporte à
exploração ordenada da diversidade biológica.
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289
A CONVERGÊNCIA ENTRE OS DIREITOS DE PROPRIEDADE E AO MEIO
AMBIENTE SADIO: A CESSÃO DE USO DAS ÁGUAS DA UNIÃO PARA A
PRODUÇÃO DE PESCADO NO BRASIL
João Luis Nogueiras Matias1
João Felipe Nogueira Matias2
RESUMO: Com o escopo de ampliar a produção de pescado, o Ministério da Pesca e
Aquicultura (MPA) tem realizado a cessão de uso de águas de domínio da União para fins de
aquicultura, submetendo o procedimento aos regramentos ambientais necessários. O
procedimento enseja que as águas de domínio da União exerçam a sua efetiva função social,
tanto pela ampliação da oferta de alimentos como pela geração de renda aos necessitados,
sendo verdadeiro exemplo de convergência dos direitos de propriedade e ao meio ambiente
sadio.
PALAVRAS-CHAVE: Meio ambiente; Direito de propriedade; Convergência.
ABSTRACT: With the scope to increase fish production, the Ministry of Fisheries and
Aquaculture has made a procedure to the use of Federal Government waters. The procedure
entails the waters under federal jurisdiction to exercise their social function, both by
expanding the supply of food and income generation for the needy, being a true example of
the convergence property rights and the environment healthy.
KEY-WORDS: Environment; Property law; Convergence.
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O direito de propriedade é condicionado, na forma da Constituição de 1988, ao uso
adequado do bem, principalmente do ponto de vista ambiental, forma de atendimento de sua
função social.
1
Doutor em Direito pela Faculdade de Direito do Recife da Universidade Federal de Pernambuco - UFPE
(2003). Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP (2009). Coordenador
do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará – UFC. Juiz Federal.
2
Secretário Nacional de Aqüicultura do Ministério da Pesca. Mestre em Aqüicultura (UFC). Doutorando em
Aquicultura (UFC).
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
O direito ao meio ambiente sadio é caracterizado no direito brasileiro como um
direito fundamental de terceira geração, do qual decorrem inevitáveis restrições ao exercício
do direito de propriedade, consubstanciadas na necessidade do atendimento a obrigações
negativas e positivas.
A necessária conciliação entre ambos os direitos tem ensejado novas formas de
utilização de recursos naturais, como é exemplo a utilização das águas da União para fins de
criação de pescado.
No presente trabalho, firmados os pressupostos, a caracterização do perfil
funcionalizado do direito de propriedade e do direito ao meio ambiente sadio, será exposta a
experiência de concessão de uso das águas da União para a produção de pescado, como
exemplo de convergência entre ambos os direitos.
2 PROPRIEDADE NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: A FUNÇÃO
SOCIAL
A definição do direito de propriedade como direito subjetivo, absoluto, baseado
apenas nos interesses do proprietário não mais se justifica na ordem jurídica brasileira, a teor
do previsto nos artigos 5º, caput e incisos XXII e XXIII, e 170, incisos II e III, da
Constituição Federal, e do artigo 1228, parágrafo 1º, do Código Civil. 3
A dupla previsão do direito de propriedade na Constituição Federal atende a
objetivos diferentes, sendo protegida a propriedade como forma de realização pessoal (direito
à propriedade) e como instrumento para o exercício da atividade econômica (direito de
propriedade).
Inicialmente, no caput do artigo 5º, é previsto o direito à propriedade, como forma de
realização pessoal do indivíduo, em concepção ético-jurídica, cujo objetivo é “assegurar ao
ser humano – com os bens ou graças aos bens atribuídos a ele enquanto pessoa – tenha
oportunidade de criar, expandir e consolidar a própria personalidade”.
4
3
Artigo 5º da Constituição Federal – “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade,
à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XXII – é garantido o direito de propriedade;
XXIII – a propriedade atenderá a sua função social.” Artigo 170 – “A ordem econômica, fundada na valorização
do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da
justiça social, observados os seguintes princípios: [...] II – propriedade privada; III – função social da
propriedade.” Artigo 1228 do Código Civil “[...] Parágrafo 1º - O direito de propriedade deve ser exercido em
consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade
com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio
histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.”
4
TOMASETTI JÚNIOR Alcides. A propriedade privada entre o direito civil e a constituição. Revista de Direito
291
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Nos demais dispositivos, o direito de propriedade é assegurado como instrumento
para o exercício da atividade econômica.
Mas o que significa atribuir função social à propriedade? A resposta é dada na lição
de Caio Mário:
[...] certo é que a propriedade cada vez mais perde o caráter excessivamente
individualista que reinava absoluto. Cada vez mais se acentuará a sua função social,
marcando a tendência crescente de subordinar o seu uso a parâmetros condizentes com
o respeito aos direitos alheios e às limitações em benefício da coletividade. 5
É particularmente importante, para a compreensão do tema, pelos novos parâmetros
que permite fixar, o artigo 1228, do Código Civil pátrio.
6
Flagrantes, no dispositivo, as
restrições ao direito de propriedade, o uso dos bens é “condicionado às suas finalidades
econômicas e sociais”, conforme o expresso texto legal, sendo defesos ao proprietário atos
que não lhe tragam qualquer comodidade ou utilidade e/ou que objetivem prejudicar terceiros.
A idéia de função social, no direito brasileiro, expressa através de princípio
constitucional, é conformadora do direito de propriedade, integrante de sua estrutura,
delineada como relação jurídica complexa, implicando deveres instrumentais que permitem a
realização dos objetivos eleitos pelo constituinte, vinculando o legislador infraconstitucional e
o intérprete.
A função social da propriedade, portanto, conforma o direito de propriedade,
estabelecendo padrões para o seu exercício, que deve ser concretizado tendo em vista os
interesses sociais. 7 Mas quais interesses sociais?
Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro – RDM, São Paulo: Malheiros (Nova Série), ano XLI, n.126,
p.123-128, abr./jun. 2002.
5
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Direito civil – alguns aspectos da sua evolução. Rio de Janeiro: Forense,
2001, p.79.
6
“Artigo 1228 – O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder
de quem quer que injustamente a possua ou detenha. Parágrafo 1º - O direito de propriedade deve ser exercido
em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de
conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o
patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas. Parágrafo 2º - São defesos os
atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de
prejudicar outrem. Parágrafo 3º - O proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por
necessidade ou utilidade pública ou interesse social, bem como no de requisição, em caso de perigo iminente.
Parágrafo 4º - O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa
área, na posse ininterrupta e de boa fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nele
houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e
econômico relevante. Parágrafo 5º- No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao
proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores”.
7
Perlingieri acentua o caráter não apenas negativo da função social da propriedade, mas de promoção dos
valores da ordem jurídica. PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil
292
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Tais interesses são os eleitos pelo legislador constituinte: a construção de uma
sociedade livre, justa e solidária, fundada na dignidade da pessoa humana e nos valores
sociais do trabalho e na livre iniciativa, a teor dos artigos 1º e 3º, da Constituição Federal. A
propriedade funcionalizada é meio para o alcance dos fins antes descritos.
Instrumentalmente, é posta a funcionalidade da propriedade, competindo aos
operadores do direito a sua concretização, cabendo ao Poder Judiciário coibir os excessos e
zelar pela efetivação dos valores constitucionalmente eleitos. A propriedade deixa de ser
direito individual e passa a ser moldada pelos princípios da ordem econômica, que tem por
escopo assegurar a todos existência digna.
Contemporaneamente, há grande debate sobre a natureza jurídica da propriedade,
sendo certo que deixou de ser direito subjetivo, absoluto, estando sujeito a limites expostos na
lei e em razão da necessária funcionalidade que a cerca.
Tratá-la como direito subjetivo, do que decorre feixe de poderes de usar, gozar,
dispor e reivindicar a coisa, vinculado à função social, parece ser inadequado em razão da
incompatibilidade dos termos, o que em verdade, pressuporia uma nova conceituação de
direito subjetivo. O novo contexto pressupõe a definição de propriedade como relação jurídica
complexa, em que as limitações ao exercício do direito decorrem de sua própria estrutura, da
qual advêm deveres em relação a terceiros proprietários ou não proprietários. 8 Trata-se de
relação de caráter patrimonial, porque dirigida a interesses econômicos; absoluta, no sentido
de que acarreta dever geral de abstenção e, por fim, complexa, em razão dos vários vínculos
que se entrelaçam, criando pluralidade de direitos e obrigações entre as partes. 9
Nos contornos da noção de propriedade, destaca-se o poder jurídico concedido ao
proprietário, oposto de forma ampla a toda a coletividade, exercido sobre a coisa, mas
ponderado pelos exatos limites firmados pelo ordenamento. Desta forma, pode-se conceituála, em sintonia com seu caráter histórico, como vínculo jurídico entre o proprietário e a
coletividade em relação a um bem, com forma própria de aquisição, modo de uso, gozo e
disposição, assim como deveres e limitações, definidos pelo ordenamento jurídico.
constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
8
LOUREIRO, Francisco Eduardo. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Renovar,
2003.
9
A doutrina tradicional defende a impossibilidade de existência de relação jurídica complexa quando um dos
pólos é indeterminado, o que deve ser relativizado já que a determinação do sujeito é importante para o exercício
de relação jurídica subjetiva não como pressuposto de sua existência.
293
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Atualmente, é consenso que a apropriação de bens é importante instrumento de
realização pessoal, de concretização de interesses individuais, mas sujeita à compatibilidade
com os outros interesses protegidos pelo ordenamento. Leonardo Mattietto, em auxílio à
idéia, destaca que a propriedade contemporânea não é uma, “não sendo correto reduzir a sua
dogmática a um instituto monolítico, cabendo antes, perfilhar um conjunto de situações
jurídicas complexas, compreensíveis não apenas dos poderes, mas também de deveres, que
envolvem a titularidade dos bens”. 10 11
Em suma, contemporaneamente, essa é a feição que adota o direito de propriedade,
“passa a caracterizar-se como espécie de poder-função, uma vez que, desde o plano
constitucional, encontra-se diretamente vinculado à exigência de atendimento da sua função
social”. 12
3 O DIREITO AO MEIO AMBIENTE SADIO COMO DIREITO FUNDAMENTAL
NO BRASIL
Na ordem jurídica contemporânea, ao lado da previsão de direitos que objetivam
proteger os indivíduos pela mera condição de seres humanos, assume destacada importância a
previsão de direitos que tem por finalidade a proteção de toda a coletividade.
É nesse contexto que surgem os direitos de titularidade coletiva, intitulados pela
doutrina de direitos fundamentais de terceira geração. Tais direitos consagram o princípio da
solidariedade social, englobando o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, o
10
MATTIETTO, Leonardo. A renovação do direito de propriedade. Revista de Informação Legislativa,
Brasília, ano 42, n.168, p.189- 196, out./dez. 2005, p.193.
11
Com todos os avanços percebidos na evolução do direito de propriedade, muitos ainda são os questionamentos
acerca de sua real adequação à realidade brasileira. Joaquim Falcão combate o conceito jurídico de propriedade,
inclusive com a nova feição que lhe assegura o Código Civil, que considera incapaz de resolver os problemas de
nossa realidade. Baseado na questão das favelas e loteamentos irregulares, a moradia ilegal dos grandes centros
urbanos, onde, em mais de dois milhões de domicílios, os moradores não conseguem provar a condição de
proprietários, aponta que duas são as maneiras que temos mal enfrentado o problema: “Primeiro, por meio do
conceito jurídico tradicional de direito de propriedade, inclusive o do novo Código Civil. Esta legislação não
chega às favelas. É dos ricos. Tem sido atenuada com institutos jurídicos como a bem intencionada usucapião
urbana, introduzida pela Constituição de 1988. Mas esta solução, aprisionada por entraves burocráticos até agora
intransponíveis, também não se revela solução de massa à altura da nossa urgência social. A segunda é a solução
da violência, adotada por alguns movimentos sociais, especialmente no campo, que nos afasta da democracia e
do Estado de direito”. FALCÃO, Joaquim. Novo direito de propriedade. Conjuntura Econômica, Brasília, v.60,
n.10, p.35, out. 1986.
12
MIRAGEM, Bruno. O artigo 1228 do Código Civil e os deveres do proprietário em matéria de preservação do
meio ambiente. Cadernos do Programa de Pós-graduação em Direito da UFRS, Porto Alegre, v.III, n.VI,
p.21-45, maio 2005.
294
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
direito à uma saudável qualidade de vida, ao progresso, à autodeterminação dos povos, entre
outros direitos difusos.
Apesar de preservar sua dimensão individual, tais direitos têm como característica a
sua titularidade coletiva, sendo, muitas vezes, indefinida ou indeterminável, 13 transcendendo
o individual e o coletivo.
O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito de terceira
geração, pois é assegurado à pessoa humana e é garantido pelo Poder Público como
fundamental, sobrepondo-se aos direitos de natureza privada.
Trata-se de direito que não se confunde nem com os direitos individuais nem com
os direitos sociais, pois não tem uma feição garantística nem prestacional e pressupõe a
atuação do poder público, caracterizando-se não como um direito contra o Estado mas em
face do mesmo. 14
O direito ao meio ambiente alcançou patamar de direito fundamental da pessoa
humana, conforme previsto no art. 22515, caput, da Lei Maior, apesar de não previsto no art.
5º, CF/88, na medida em que o § 2º, do art. 5º, traz uma abertura de todo o ordenamento
jurídico nacional ao sistema internacional de proteção aos direitos humanos e aos direitos
decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Constituição.
O direito ambiental brasileiro é um sistema aberto e em evolução, o que impede o
seu engessamento e a cristalização de seus princípios e de seus conceitos.
16
Na lição de
Medeiros, “existe uma dupla perspectiva quando ao conteúdo dos direitos fundamentais, os
quais podem ser considerados tanto direitos subjetivos individuais como elementos objetivos
fundamentais da comunidade”. 17
A questão ambiental ainda goza de relevo especial na missão de tutelar e de
desenvolver o princípio da dignidade humana ou como desdobramento imediato da coresponsabilidade geracional. Sampaio anuncia que “pode-se falar no Brasil de um direito
fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, assim como se pode referir a
13
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2007, p. 53.
14
SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 52.
15
”Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e
essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e
preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.
16
TEIXEIRA, op. cit., p. 86.
17
MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Meio Ambiente: Direito e Dever Fundamental. Porto Alegre:
Livraria do Advogado: 2004, p. 85.
295
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
uma ordem ambiental que completa e condiciona a ordem econômica e que, por topologia,
integra-se na „ordem social´.”
18
Nesse sentido, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado deve ser
garantido tanto às gerações presentes quanto às gerações futuras. Para a implementação deste
direito são previstos princípios e instrumentos no seio da legislação ambiental brasileira, que
podem e devem nortear a atuação do Estado na tutela do meio ambiente. 19
4 DIREITOS DE PROPRIEDADE E AO MEIO AMBIENTE SADIO: A NECESSÁRIA
HARMONIA
O Código Civil Brasileiro de 2002 adota o novo perfil do direito de propriedade, na
forma do que é previsto no parágrafo 1º, do artigo 1228:
Artigo 1228 - O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o
direito de reavê-la do poder de quem quer que seja injustamente a possua ou a
detenha.
§ 1º. O direito de propriedade deve ser exercitado em consonância com suas
finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de
conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas
naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como
evitada a poluição do ar e das águas.
Observe-se que não se trata de mera previsão formal da função social da
propriedade, como prescrita no Código Civil de 1916. A atual lei civil detalha a função social
da propriedade, na medida em que vincula o direito de propriedade à proteção à flora, à
fauna, à preservação das belezas naturais, à manutenção do equilíbrio ecológico e a
preservação patrimônio histórico e artístico, assim como o uso da propriedade em
consonância com as determinações da legislação ambiental.
Trata-se de verdadeira atribuição de função ambiental à propriedade, que pode ser
18
SAMPAIO, José Adércio Leite. Constituição e Meio Ambiente na Perspectiva do Direito Constitucional
Comparado. Princípios de Direito Ambiental na Dimensão Internacional e Comparada. SAMPAIO, José
Adércio Leite; WOLD, Chris; NARDY, Afrânio (orgs.). Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 98.
19
Muito se tem discutido acerca do direito à informação ambiental, como forma de fiscalizar não só os atos do
Poder Público, mas também dos particulares, na medida em que o meio ambiente equilibrado se revela não como
um direito difuso, mas também enquanto dever, acarretando em obrigações diversas. VILLANUEVA, Claudia.
Derecho de acceso a la información ambiental, antecedentes internacionales y legislación nacional. In DEVIA,
Leila (coord.). Nuevo Rumbo Ambiental. Buenos Aires, Madrid: Ciudad Argentina, 2008, p. 326.
296
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
definida como a restrição do exercício do direito de propriedade ao “conjunto de atividades
que visam garantir a todos o direito constitucional de desfrutar um meio ambiente
equilibrado e sustentável, na busca da sadia e satisfatória qualidade de vida, para a presente e
futuras gerações”.20
O Código Civil traz uma cláusula aberta em prol do meio ambiente, ao assegurar
que a função ambiental deve ser assegurada também de acordo com a legislação especial e
não apenas com os componentes trazidos na redação literal do diploma normativo. A
cláusula tem dupla dimensão, impondo o dever negativo de evitar prejuízo a terceiros e à
qualidade do meio ambiente e o dever positivo de adotar práticas que preserve a saúde do
meio ambiente.
Por meio da função ambiental da propriedade é promovida, em cada caso, a
conciliação entre o exercício do direito de propriedade e a proteção ao meio ambiente e à
biodiversidade.
5 A EXPERIÊNCIA DE CONCESSÃO DE ÁGUAS DA UNIÃO PARA A PRODUÇÃO
DE PESCADO
É certo que tem havido um grande incremento da produção mundial de pescados.
Segundo a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO, 2009), no
ano de 2006, foram produzidas 106 milhões de toneladas destinadas ao consumo humano. De
todo esse total, 43% (quarenta e três por cento) resultam da atividade de aqüicultura, o que
importa em um montante aproximado de 45,5 milhões de toneladas.
As perspectivas para o futuro são bem mais amplas. Até 2030 está prevista uma
produção de 150 milhões de toneladas de pescado. O consumo mundial de pescados per
capita (16,6 kg/habitante/ano) em 2007 foi o mais alto da História, é baseado em tal dado que
se projeta a constante ampliação da demanda, o que impulsiona novos investimentos e estudos
sobre a matéria.
No Brasil, de acordo com o MPA (2010), a produção de pescados em 2009 foi de
1.240.813 toneladas (um milhão, duzentos e quarenta mil, oitocentos e treze toneladas), sendo
20
SANT´ANNA, Mariana Senna. Planejamento urbano e qualidade de vida: da Constituição Federal ao plano
diretor. In Direito Urbanístico e Ambiental. DALLARI, Adilson Abreu; DI SARNO, Daniela Campos Libório
(coord.). Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 153.
297
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
a produção aqüicola referente a 33,5 % (trinta e três vírgula cinco por cento) do total, ou seja,
415.649 toneladas (quatrocentos e quinze mil, seiscentos e quarenta e nove toneladas).
A produção aqüicola brasileira é dividida em aqüicultura continental e aqüicultura
marinha, representando a aqüicultura continental 337.353 t (trezentos e trinta e sete mil,
trezentos e cinquenta e três toneladas) equivalente a 81,16 % (oitenta e um vírgula dezesseis
por cento) da produção aqüícola do país. A produção brasileira da aqüicultura marinha foi de
78.296,4 t (setenta e oito mil, duzentos e noventa e seis vírgula quatro toneladas), o que
equivale a 18,84 % (dezoito vírgula oitenta e quatro por cento) da produção aqüícola do país.
A expressiva produção da aqüicultura continental é dividida pelas diversas regiões
do país, conforme exposição do gráfico que se segue:
Produção Aquícola Continental no Brasil por Região (2009)
60.004,90; 18%
35.782,30; 11%
67.643,30; 20%
Norte
Nordeste
Sudeste
Sul
115.083,50; 34%
Centro Oeste
58.839; 17%
Há grande potencial de aumento da produção de pescado no Brasil por meio da
aqüicultura continental, sobretudo pela cessão de uso de águas de domínio da União para fins
de aquicultura.21
21
“Artigo 20, da CF: São bens da União:
(...)
III – os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado,
sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os
terrenos marginais e as praias fluviais.
(...)”
“Artigo 26, da CF: Incluem-se entre os bens dos Estados:
I – as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvas, neste caso, na forma da
Lei, as decorrentes de obras da União.
298
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Trata-se de inovadora iniciativa do Ministério da Pesca e Aquicultura que busca
possibilitar novos usos da propriedade da União, ensejando a produção de alimentos em bens
cujo uso inicial era restrito à oferta de água.
É evidente que a iniciativa promove a melhor utilização do potencial dos bens da
União, especialmente, lagos e rios, oportunizando que exerçam, de forma efetiva, a função
social que lhes é atribuída.
Como forma de tornar concreto o novo uso dos bens, foram criados parques e áreas
aquícolas, destacando-se os seguintes parques e respectiva capacidade de suporte (produção
sustentável): Itaipu-PR: 12 mil toneladas ; Castanhão-CE: 32 mil toneladas ; Furnas-MG: 80
mil toneladas; Três Marias-MG: 55 mil toneladas ; Tucuruí-PA: 14 mil toneladas e Ilha
Solteira-SP: 72 mil toneladas. É prevista uma capacidade de suporte de 265.000 toneladas/ano
(duzentos e sessenta e cinco mil toneladas por ano), somente nestes parques aquícolas. Além
dos parques aqüicolas citados, 150 (cento e cinquenta) áreas aquícolas isoladas estão
espalhadas por águas de domínio da União, com uma capacidade de suporte de 100 mil
toneladas/ano (cem mil toneladas por ano).
Somadas as 415.000 mil ton/ano (quatrocentos e quinze mil toneladas por ano)
equivalentes a produção em 2009, às 265.000 mil ton/ano (duzentos e sessenta e cinco mil
toneladas por ano) produzidas nos parques aqüícolas e mais 100.000 ton/ano (cem mil
toneladas por ano) produzidas nas áreas aquícolas isoladas, a produção brasileira pode
alcançar o total de 780.000 ton/ano (setecentos e oitenta mil toneladas por ano), possibilitando
um considerável incremento da produção de alimentos nos próximos anos.
É certo que há enorme potencial a ser explorado, o que pode gerar novos parques e
áreas aquícolas, como se observa no mapa que se segue:
(...)”
299
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Além da maior oferta de alimentos, a experiência de incentivo à produção de
pescado realizada pelo Ministério da Pesca e Aquicultura tem acarretado maior geração de
renda, uma vez que a licitação para a cessão de uso das águas da União para fins de
aqüicultura privilegia a cessão não onerosa (gratuita) aos pequenos produtores (renda familiar
de até cinco salários mínimos e moradores da região de entorno dos lagos).
O marco legal do processo de concessão de outorga de águas é o Decreto 4895/03,
que disciplina todo o roteiro de cessão, desde o pedido inicial do empreendedor até a sua
finalização. Este Decreto é importante em razão de disciplinar a análise dos pedidos de
cessão, conciliando a atuação de diversos órgãos como a ANA – Agência Nacional das Águas
(responsável pela outorga); o IBAMA - Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis e os órgãos estaduais do meio ambiente (OEMA´s,
responsáveis pelo licenciamento ambiental); a Marinha do Brasil (responsável pela análise de
segurança de tráfego aquaviário); Secretaria de Patrimônio da União (SPU), que como
gestora dos bens da União, cede essas águas de domínio da União ao MPA, para que este
efetive a cessão.
300
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
6 CONCLUSÕES
O direito de propriedade é marcado por sua dimensão histórica, sendo certo que, na
atualidade, o seu exercício é vinculado ao atendimento da função social, tal como previsto no
artigo 170, da Constituição Federal do Brasil. A função social da propriedade impõe que o
exercício das prerrogativas de proprietário seja compatibilizado com a construção de uma
sociedade livre, justa e solidária, o que, por si só, já evidencia a necessidade de
equacionamento das questões ambientais.
O Código Civil de 2002 especifica a função social da propriedade prevista na
Constituição Federal, disciplinando no parágrafo primeiro do artigo 1228, o modo de
exercício do direito de propriedade. Trata-se de cláusual aberta, que impõe, de forma clara, a
necessidade de preservação do meio ambiente, estabelecendo, assim, uma verdadeira função
ambiental da propriedade.
A experiência atual de cessão de águas de domínio da União para fins de
aquicultura realizada pelo Ministério da Pesca tem demonstrado como é possível, na prática,
novas formas de aproveitamento dos recursos naturais, tornando mais eficiente o seu uso,
proporcionando considerável ampliação de alimentos e de geração de renda.
REFERÊNCIAS
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1988.
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Janeiro: Renovar, 2003.
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Porto Alegre: Livraria do Advogado: 2004.
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de preservação do meio ambiente. Cadernos do Programa de Pós-graduação em Direito da
UFRS, Porto Alegre, v.III, n.VI, p.21-45, maio 2005.
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PEREIRA, Caio Mário da Silva. Direito civil – alguns aspectos da sua evolução. Rio de
Janeiro: Forense, 2001.
301
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
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frente aos Princípios da Dignidade da Pessoa Humana e da Razoabilidade. In: ROCHA,
Cármen Lúcia Antunes (coord). O direito à vida digna. Belo Horizonte: Fórum, 2004.
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Constitucional Comparado. Princípios de Direito Ambiental na Dimensão Internacional e
Comparada. SAMPAIO, José Adércio Leite; WOLD, Chris; NARDY, Afrânio (orgs.). Belo
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SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9. ed. Porto Alegre: Livraria
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SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.
TOMASETTI JÚNIOR Alcides. A propriedade privada entre o direito civil e a constituição.
Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro – RDM, São Paulo:
Malheiros (Nova Série), ano XLI, n.126, p.123-128, abr./jun. 2002.
302
CONCENTRAÇÃO DE RENDA, ACESSO À PROPRIEDADE E
SUBDESENVOLVIMENTO: UM OLHAR OBRE A AGRICULTURA FAMILIAR NO
BRASIL
Juliana Cristine Diniz Campos*
RESUMO: Este trabalho tem por objeto o direito fundamental à propriedade, considerado
como instrumento fundamental no processo de desenvolvimento humano, ao dar condições de
qualidade de vida e bem-estar aos indivíduos. Associa-se a noção de subdesenvolvimento com
a privação de direitos básicos. Indica-se, na história do direito de propriedade, as principais
transformações de significado do seu objeto. Analisa-se as possibilidades de transformação
estrutural do direito através da reorganização das relações de propriedade no campo, a partir
do investimento na agricultura familiar. Compreende-se a agricultura familiar como política
setorial associada à reforma agrária, capaz de transformar o modelo de exploração da
propriedade rural, a partir da ressignificação da função social em face do cuidado com a
sustentabilidade.
PALAVRAS-CHAVE: SUBDESENVOLVIMENTO, PROPRIEDADE, ESTRUTURAS
JURÍDICAS, AGRICULTURA FAMILIAR.
ABSTRACT: This paper analyzes the civil right to property, as the most important
mechanism in the human developing process, considering its possibilities in improving life
quality and welfare of human beings. In the introduction, we make an association between the
undevelopment and lacking of human rights. In the second section, we indicate, by analyzing
the history of the right to property, the most important transformations in its meaning, as a
fundamental aim of the subjects. We investigate the possibilites of law structural
transformations, considering that the state should reorganize the property relations in the
country by investing in family farming. We comprehend the family farming as a politic
related to the redistribution of the land, able to transform the economic model of agriculture
exploitation.
KEY-WORDS: UNDEVELOPMENT, PROPERTY, LAW STRUCTURES, FAMILY
FARMING.
*
Doutoranda em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Direito
Constitucional pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professora de Direito Urbanístico e Direito Agrário
na Faculdade 7 de Setembro (CE). E-mail: <[email protected]>.
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
INTRODUÇÃO
Somos constantemente levados a encarar a ampliação do acesso ao direito de
propriedade no Brasil a partir da perspectiva jurídica, ou seja, como resultado lógico do
processo de intervenção do estado no domínio econômico, a partir do reconhecimento político
dos direitos econômicos, sociais e culturais. Nesse contexto, o direito à propriedade,
tradicionalmente associado às liberdades públicas clássicas, seria, ao mesmo tempo,
flexibilizado, a fim de adaptá-lo às exigências de um uso funcional e interessante à
comunidade, e expandido – quanto à sua titularidade – à grande massa de indivíduos que
simplesmente não tem acesso à terra urbana ou rural.
Embora o raciocínio não esteja equivocado, é preciso ressaltar que aspectos da
estrutura econômica peculiares às grandes nações originárias de dominação colonial têm
indicado um paradoxo que interfere diretamente no modo de distribuição do direito à
propriedade: o crescimento econômico está, via de regra, associado ao crescimento da
pobreza, a partir de um movimento de concentração de renda ao inverso 1. É possível afirmar,
portanto, que a ascensão e consolidação do estado social no Brasil – no plano jurídico – pouco
ou nada tem adiantado para impedir o processo de concentração de renda associado,
diretamente, à concentração de terras e ao aumento dos conflitos fundiários 2.
Uma possível resposta a esse paradoxo se encontra na análise da dinâmica econômica
do período que sucede a revolução industrial, em que o desenvolvimento da técnica de
massificação da produção ocasionou um impulso na acumulação do capital, gerando a reserva
responsável pelo processo de concentração da terra. Comparato critica esse movimento, ao
afirmar que os povos se aproximam fisicamente uns dos outros por força do vertiginoso
progresso técnico, mas ao mesmo tempo dissociam-se, drasticamente, por efeito da crescente
desigualdade econômica, social e política3.
Como fazer frente a esse paradoxo, superando a desigualdade na distribuição dos
1
SALOMÃO FILHO, Calixto. Monopólio Colonial e Subdesenvolvido. In: BERCOVICI, Gilberto;
BENEVIDES, Maria V. M.; MELO, CLaudineu de. (orgs.). Direitos Humanos, Democracia e República:
Homenagem a Fábio Konder Comparato. São Paulo: Quartier Latin, 2009, pg. 159-206.
2
Neves menciona o processo de esvaziamento da força normativa do direito constitucional, ao afirmar que o
efeito negativo da constitucionalização simbólica induz a uma ausência generalizada de orientação das
expectativas normativas conforme as determinações dos dispositivos da Constituição. Para o autor, ao texto
constitucional falta, então, normatividade no plano da eficácia. In: NEVES, Marcelo. A Constitucionalização
Simbólica. São Paulo: Martins Fontes, 2007, pg. 92.
3
COMPARATO, Fábio Konder. Ética: Direito, Moral e Religião no Mundo Moderno. São Paulo: Cia das
Letras, 2006, pg. 433.
304
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
direitos humanos fundamentais? Esta a pergunta de fundo deste trabalho, onde buscaremos
analisar o direito de propriedade como eficaz instrumento de conservação ou transformação
das estruturas sociais, conforme a orientação do Direito.
Para atender a este objetivo, é possível considerar um modelo de análise das
instituições jurídicas que associe aspectos de direito e de economia a partir de uma
perspectiva que não a da famigerada law and economics. Enquanto esta escola mostra-se
preocupada com os efeitos econômicos dos processos de aplicação do direito, a partir da
noção de que os direitos têm custos e influem na alocação dos recursos e, como tal, precisam
de um substrato de recurso que lhes dê efetividade, favorecendo a maximização da riqueza 4; a
perspectiva estruturalista busca explicar os modos de organização do direito a partir das
estruturas econômicas para, então, propor alternativas adequadas ao problema do
subdesenvolvimento, considerado o problema central das democracias periféricas.
A preocupação primordial não é, portanto, a de pensar um direito que seja
economicamente viável, mas a de compreender como as instituições jurídicas têm
possibilitado a perpetuidade da dependência econômica e impedido o pleno exercício de
direitos básicos, associados à qualidade de vida e à liberdade. Para Salomão, de acordo com a
perspectiva estruturalista, é nas estruturas internas criadas a partir da herança colonial (de
dependência, sem dúvida) que devem ser identificados os problemas a serem resolvidos 5. A
propriedade, como instituição diretamente associada à riqueza, tem um papel fundamental
nesse processo.
Neste trabalho, procuramos demonstrar como, na história econômica do Brasil, a
configuração do direito de propriedade serviu para possibilitar a consolidação do sistema
monopolista, ocasionando o crescimento da desigualdade, da pobreza e, conseqüentemente,
da concentração fundiária, associada ao movimento de industrialização e urbanização vividos
no Brasil ao longo do século XX.
Uma orientação metodológica inicial se faz necessária para que se fixe os referenciais
de análise deste artigo, especificamente no campo conceitual, no que diz respeito à associação
entre propriedade, concentração de renda e subdesenvolvimento. Para tanto, iniciaremos com
a análise da noção contemporânea de desenvolvimento como liberdade e de como os direitos
humanos têm um papel instrumental nesse processo 6; passaremos à exposição do argumento
4
POSNER, Richard. Problemas de Filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007, pg. 477.
SALOMÃO FILHO, Op. cit., pg. 160.
6
Para Sem, o desenvolvimento pode ser visto como um processo de expansão das liberdades reais que as
5
305
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
que associa a estrutura monopolista colonial à concentração de riqueza 7; seguindo para a
análise do histórico do direito de propriedade no Brasil, especificamente no que tange à
abrangência de sua titularidade, seja no plano constitucional, seja no infraconstitucional.
1 DIREITOS FUNDAMENTAIS E SUBDESENVOLVIMENTO
Os direitos fundamentais apresentam-se como tema base do constitucionalismo
ocidental desde a sua primeira fase, com as revoluções liberais do século XVIII. Enquanto,
através das cartas de direitos, cuidava-se de um problema primário, o de positivação, de
garantia normativa de uma série de pretensões de classe não reconhecidas, com as
constituições democráticas surgidas após a segunda guerra mundial a questão se desloca para
o problema da efetividade (ou falta material) dos direitos básicos.
Embora não seja correto afirmar que o questionamento da efetividade veio da inteira
superação do problema da positivação, é possível afirmar que as sociedades ocidentais
convenceram-se da necessidade de realização da igualdade material como condição para o
desenvolvimento8. Dias esclarece que o desenvolvimento é vital na eliminação das causas
estruturais de privações, violações e abusos aos direitos humanos 9. Passa-se a considerar que
os direitos humanos, além de um problema jurídico, são fundamentalmente um problema
econômico.
Por isso, a fim de compreender como o direito de propriedade tem favorecido o
subdesenvolvimento nas democracias periféricas, é preciso definir, de antemão, dois pontos
principais: a) a efetividade dos direitos fundamentais é dependente, principalmente, de fatores
econômicos, além da positivação jurídica; b) o conceito de desenvolvimento é fundamental
para a condução da mudança estrutural, como referencial ético-político das concepções de
liberdade, bem-estar e qualidade de vida.
Uma visão estritamente economicista consideraria que a alocação eficiente de recursos
pessoas desfrutam. In: SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Cia das Letras, 2000, pg.
17.
7
SALOMÃO FILHO, Calixto; FERRÃO, Brisa Lopes de Mello; RIBEIRO, Ivan César. Concentração,
Estruturas e Desigualdades: As Origens Coloniais da Pobreza e da Má Distribuição de Renda. São Paulo:
IDCID, 2008, pg. 15.
8
No plano internacional, é curioso observar que, após a criação da ONU, em 1945, observou-se um movimento
de contínua especialização dos documentos sobre direitos humanos. Busca-se positivar aspectos específicos de
direitos particularizados, colaborando na criação de uma cultura de paz e de proteção aos direitos do homem.
9
DIAS, Clarence. Educação em Direitos Humanos como Estratégia para o Desenvolvimento. In:
306
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
seria suficiente para a superação do problema da desigualdade, levando ao desenvolvimento
humano. Entretanto, essa concepção desconsidera um aspecto ético fundamental, remetido ao
campo da política, que ganha sua importância: o que se entende por desenvolvimento? Quais
os objetivos que se busca alcançar com uma melhor distribuição da riqueza?
Como conceito transversal na política, na economia e no direito, o desenvolvimento
foi redefinido e recebeu uma estrutura normativa extraída da área de direitos humanos
definida internacionalmente10. Ao superar a associação exclusiva ao crescimento econômico,
o sentido do desenvolver desloca-se para a noção de qualidade de vida e bem-estar.
É nessa questão inicial que o conceito de desenvolvimento como liberdade
desenvolvido por Sen pode nos ajudar. O economista traz uma concepção de desenvolvimento
estreitamente associada à ideia de liberdade e, por conseguinte, aos direitos fundamentais
como um todo. Isso porque, para o autor, o desenvolvimento pode ser visto como um processo
de expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam11. Os elementos que impedem a
concretização da liberdade são justamente aqueles bens tutelados pelas normas de direitos
fundamentais, em todas as suas dimensões. Esclarece:
O desenvolvimento requer que se removam as principais fontes de privação
de liberdade: pobreza e tirania, carência de oportunidades econômicas e
destituição social sistemática, negligência de serviços públicos e intolerância
ou interferência excessiva de Estados repressivos. [...]
A ligação entre liberdade individual e a realização do desenvolvimento social
vai muito além da relação constitutiva – por mais importante que ela seja. O
que as pessoas conseguem positivamente realizar é influenciado por
oportunidades econômicas, liberdades políticas, poderes sociais e por
condições habilitadoras como a boa saúde, educação básica e incentivo e
aperfeiçoamento de iniciativas.12
Embora essa afirmação nos pareça, a primeira vista, auto-evidente – e o discurso
jurídico sobre os direitos fundamental tem cuidado de explorá-la à exaustão – o direito ainda é
operado argumentativamente com topoi referentes à concepção liberal de direitos
fundamentais: direitos sociais como normas programáticas, impossibilidade de controle
jurisdicional de políticas públicas sob o argumento da reserva do possível, orçamento público
como norma indicativa não vinculante ao gestor, etc.
O desenvolvimento, compreendido como processo de superação das restrições a
direitos (liberdades), encontra-se estreitamente associado, no plano valorativo, ao princípio
jurídico da dignidade humana, a partir da perspectiva do reconhecimento do outro como igual
10
DIAS, Clarence. Op. cit., pg. 104.
SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Cia das Letras, 2000, pg. 17.
12
SEN, Amartya. Op. cit., pgs. 18-19.
11
307
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
em direitos. Compreende-se um direito – e, também, o processo econômico – mais inclusivo,
a partir do qual se busca a consagração, através da solidariedade, de uma partilha comum da
dignidade humana13. Para Stiglitz, o desenvolvimento diz respeito a transformar a vida das
pessoas, não apenas as economias14.
A noção de solidariedade mostra-se, portanto, primordial para o remodelamento das
estruturas jurídicas e sociais, na medida em que o desenvolvimento dependerá,
necessariamente, da redução da distância real entre ricos e pobres. A ideia de esforço comum
é salientada por Comparato, que indica três dimensões da solidariedade: nacional,
internacional e intergeracional. Para o autor:
O vínculo de solidariedade entre todos os que compõem politicamente o mesmo
povo de um Estado determinado está na origem do conjunto dos direitos
fundamentais de natureza econômica, social e cultural15.
Mostra-se indispensável, portanto, associar o direito de propriedade à noção de
desenvolvimento, na qualidade de meio de garantir os direitos fundamentais como um todo,
superando, definitivamente, o modelo liberal das instituições associadas ao direito, a partir da
perspectiva do princípio da solidariedade e da dignidade da pessoa humana.
Nessa perspectiva, a propriedade é considerada riqueza materializada e, como direito,
é entendida como acesso a essa riqueza – seu relacionamento com os direitos econômicos,
sociais e culturais é manifesta. Os contínuos ciclos de concentração de recursos e de
perpetuação do subdesenvolvimento acabaram por ser mantidos pelas instituições jurídicas
voltadas à propriedade, que sempre privilegiaram o aspecto negativo do direito, isto é, a
proteção da exclusividade.
A riqueza, nessa visão do desenvolvimento como processo integrado de expansão das
liberdades substantivas, tem a função de oferecer aos indivíduos as capacidades de viver
como gostariam, determinando a qualidade de vida. A concentração da riqueza tem o condão
de privar um número expressivo de pessoas das condições de liberdade, ocasionando um
processo de exclusão e intensificação da desigualdade social16.
Pensar a propriedade a partir de uma perspectiva positiva envolve a consideração de
meios jurídicos de distribuição da riqueza e, por consequência, do acesso à propriedade. Uma
proposição normativa transformadora demanda, de início, uma compreensão dos
13
COMPARATO, Fabio K. Op. cit., pg. 570.
STIGLITZ, Joseph. Globalização: Como dar certo. São Paulo: Cia das Letras, 2007, pg. 123.
15
COMPARATO, Fabio K. Op. cit., pg. 579.
16
SEN, Amartya. Op. cit., pg. 31.
14
308
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
condicionantes estruturais históricos, para qual se pretende colaborar com este trabalho.
2 O DIREITO DE PROPRIEDADE DA COLÔNIA À REPÚBLICA
A análise da história do direito de propriedade requer cuidados metodológicos no que
tange ao próprio conceito da instituição jurídica. Isso porque os conceitos jurídicos não
podem ser afastados do seu chão e do seu tempo 17.
É certo que a propriedade permanece tutelada como direito no plano constitucional
desde a Constituição Imperial de 1824, em seu artigo, mas o significado da noção de
propriedade transformou-se substancialmente do período colonial ao advento do estado do
bem-estar, com a Constituição Federal de 1988.
É preciso estar atento, portanto, aos condicionamentos culturais à expressão
“propriedade” e ao que constitui o objeto tutelado pelo assim denominado direito de
propriedade através da legislação. A ideia do ter tem sido tratada, desde o advento da
Modernidade, como uma realidade imutável, única, naturalizada. Isto é, faz parte da natureza
das coisas o homem ser proprietário, numa relação de pertencimento marcada pela
absolutidade. Sendo o direito uma realidade cultural, essa relação tem por característica sua
plasticidade, sendo passível de mudança.
Nesse sentido, pode-se observar uma transformação significativa da noção de
propriedade na passagem do estado liberal ao estado social. Neste ponto, cuidaremos de
demonstrar como, através dos dispositivos normativos, essa mudança se deu, sendo certo que
a mudança nem sempre constitui uma transformação para melhor, não se podendo falar, em
termos de história, em uma evolução contínua e permanente para o bem.
A formação do sistema fundiário brasileiro remete ao período colonial, com a
instituição do regime sesmarial, no ano de 1548. Através desse instituto, grandes porções de
terra do território colonial, as capitanias hereditárias, eram confiadas a um aristocrata,
denominado capitão donatário. Segundo Nozoe:
O acompanhamento da legislação fundiária vigente durante em que o período o
Brasil esteve sob o domínio de Portugal deixa à mostra a precariedade da situação
jurídica da propriedade fundiária, mesmo daquelas recebidas legalmente por mercê
17
STAUT JÚNIOR, Sérgio Sahid. Cuidados Metodológicos no Estudo da História do Direito de Propriedade.
In: Revista da Faculdade de Direito, UFPR, v.42, pg. 155.
309
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
da Coroa18.
A regulação da propriedade no período mostrava-se dispersa, sem a coesão própria das
regulações da era moderna. É certo ressaltar que ainda em fins de século XIV, não se tinha
como postulado das ordens jurídicas a organização sistemática de leis, como resultado de uma
vontade estatal ordenadora, ideia só desenvolvida e colocada em prática com o movimento
legalista francês, no período pós revolução francesa. A tradição do direito legal, organizado e
coeso é, portanto, uma criação recente, revelando-se a precariedade jurídica com que o direito
de propriedade era tratado na colônia.
O instituto das sesmarias – identificado como marco da estrutura de latifúndio do
Brasil – foi experimento em Portugal já em 1375, por ocasião da grande crise alimentar
provocada pela peste, cujo decréscimo demográfico gerou o despovoamento do campo. A
relação do donatário com a terra não era de propriedade total, mas de posse qualificada, na
medida em que a Coroa permanecia com o domínio absoluto do território.
A ocupação do território através do regime sesmarial mostrou-se dispersa, marcada
pela ausência do Estado e pela falta de interesse econômico inicial da aristocracia portuguesa.
Segundo Furtado, os traços de maior relevo do primeiro século da história americana estão
ligados a essas lutas em torno de terras de escassa ou nenhuma utilização econômica 19.
Poucas capitanias geraram um povoamento significativo e não se pode falar em
interiorização expressiva do território até o período da mineração, já nos séculos XVIII e
XIX. Ressalta-se o caráter concentrador desse sistema de distribuição de terra, que dividiu o
imenso território da colônia em apenas 14 capitanias hereditárias.
A nota da concentração de terra – diretamente associada ao monopólio no
desenvolvimento da atividade econômica inicialmente extrativista e posteriormente agrária –
é perceptível na realidade jurídica brasileira desde a Colônia, através da herança de regime de
propriedade com ares feudais.
Em 1822, com a independência política da colônia em relação à metrópole, tem-se a
inauguração da fase denominada “regime das posses”, marcada pela ausência de regulação
jurídica das relações de propriedade fundiária. Isso porque as ordenações do reino
(manuelinas e, posteriormente, filipinas) não podiam mais ser aplicadas em território
brasileiro, por força do rompimento político com a metrópole. A falta de criação legal pelo
18
NOZOE, Nelson. Sesmaria e Apossamento de Terras no Brasl Colônia. In: Economia, Brasília (DF), v.7, n.3,
set/dez de 2006, pg. 589.
19
FURTADO, Celso. A Formação Econômica do Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 2007, pg. 28.
310
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
período de 28 anos marcou a origem de um outro problema grave do campo no Brasil: a
omissão do estado e a violência como instrumento de resolução dos conflitos agrários. O
poder econômico, portanto, auxiliado pela força bruta, sobrepunha-se ao poder jurídico,
ausente o Poder Público ainda incipiente.
O marco da regulação do direito de propriedade no período Imperial deu-se com a
criação da Lei de Terras, em 1850 (lei nº 601). Criada para solucionar uma situação de
completa anomia, a lei de terras cuidou de reconhecer as posses de fato, conforme dá conta o
seu artigo 5º, que dispõe do seguinte modo:
São legitimadas as posses mansas e pacíficas, adquiridas por occupação primaria, ou
havidas do primeiro occupante, que se acharem cultivas, ou com principio de
cultura, e morada, habitual do respectivo posseiro, ou de quem o represente.
A associação com o regime notarial Torrens20 – instituído no Brasil através do Decreto
451-B, em 1890 e atualmente em desuso – demonstra a preocupação institucional com a
regularização fundiária, feita sem maiores cuidados com a distribuição igualitária da terra. Os
grandes latifundiários responsáveis pela empresa agrária tiveram sua posse reconhecida pelo
direito superveniente, com maior força dada pelo registro da propriedade com força absoluta.
O Código Civil de 1916 regulou o direito de propriedade tal qual a doutrina liberal o
concebia em suas características de perpetuidade, exclusividade e individualidade. Tratava-se
de um direito absoluto, para o qual a ordem jurídica construiu uma sofisticada trama de
institutos de direito material e processual voltados à sua preservação e tutela.
No plano constitucional, tem-se que todas as constituições – da Imperial em 1824 à
democrática de 1988 – garantiram o direito de propriedade, elevado ao status de direito
humano individual. Maior destaque têm as constituições de 1934; 1946 e 1988, pelas
transformações de significado que proporcionaram ao conceito de propriedade, a partir de
uma mudança do próprio modelo de estado.
A carta de 1934 é identificada como reflexo, no Brasil, da constituição alemã de 1919,
a famigerada Constituição de Weimar, marco do estado social no Ocidente. Tem-se o primeiro
dispositivo constitucional limitador ao direito de propriedade, a partir da previsão de seu
artigo 113, alínea 17, que condicionava o uso ao atendimento do bem comum. A partir da
década de 30 do século XX, no Brasil, observa-se um movimento para construção da reforma
agrária, intensificada pela Constituição Federal de 1946, a primeira carta a utilizar a expressão
bem-estar social como condicionante do direito de propriedade, em seu artigo 147.
20
O registro Torrens faz presunção juris et de jure de propriedade, não admitindo prova em contrário.
311
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Em 1962, tem-se a edição da lei da desapropriação por interesse social para fins de
reforma agrária (lei federal nº 4.132), seguida do Estatuto da Terra, em 1964 (lei nº 4.504), o
que demonstra o movimento legislativo voltado à regulação das relações de propriedade no
espaço do campo21. Num intervalo de dois anos, tem-se a criação de importante instrumento
de redistribuição de terra por meio da intervenção do estado – a desapropriação por interesse
social – e do principal corpo normativo de direito agrário no Brasil, o Estatuto da Terra, com a
função de fixação conceitual e regulação geral da propriedade rural.
A instituição do Imposto Territorial Rural, o ITR, representou o instrumento de
natureza tributária, como tentativa de equilibrar as desigualdades na concentração da riqueza
enquanto propriedade. Nesse aspecto, merece-se destaque a observação inicial deste artigo:
nem mesmo o forte arcabouço normativo motivado pela transformação do estado foi
suficiente para o movimento expressivo de redistribuição da riqueza, em face da não
aplicação sistemática dos dispositivos legais. Há, assim, uma profunda distância entre o
processo de positivação e o processo de reorganização da atividade econômica, refletindo a
ineficácia das normas sobre direito agrário nas décadas finais do século XX. A omissão estatal
foi, assim, determinante para a perpetuação das relações de exclusão à propriedade da terra no
Brasil.
Segundo Sen e Kliksberg, uma grande parte dos problemas de privação surge de
termos desfavoráveis de inclusão e de condições adversas de participação, e não do que se
poderia chamar, sem forçar o termo, de um caso de exclusão22. Assim, verifica-se que, muito
embora haja a base normativa sólida garantidora do processo de redistribuição da terra,
constitutivas de “inclusão”, a falta do direcionamento das estruturas acaba por esvaziar a
eficácia do bloco de normas.
A Constituição Federal de 1988 foi, nesse aspecto, o diploma mais expressivo em
termos de regulação da propriedade. Ao garanti-la como direito fundamental – impassível,
portanto, de supressão – o constituinte teve o cuidado de, já no inciso seguinte, instituir sua
conformação: a propriedade deve atender à sua função social (incisos XXII e XXIII do artigo
5º).
21
O conceito de “campo” para o fim de aplicação do direito agrário não é estritamente geográfico. Para o
Estatuto da Terra, tem-se o critério econômico, considerando-se propriedade rural aquela onde se desenvolva
atividades consideradas agrárias, como a agricultura, a pecuária, o extrativismo, a agroindústria, entre outras. O
conceito de campo deve estar associado ao espaço em que determinado tipo de relações sociais são organizadas,
a partir da presença de um fator determinante: a propriedade.
22
SEN, Amartya; KLIKSBERG, Bernardo. As Pessoas em Primeira Lugar: A Ética do Desenvolvimento e os
Problemas do Mundo Globalizado, tradução de Bernardo Ajzemberg e Carlos Eduardo Lins da Silva. São
Paulo: Cia das Letras, 2010, pg. 35.
312
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Tendo a atenção de instituir dois capítulos específicos sobre a organização da
propriedade em sua dimensão objetiva – como expressão material da riqueza, a Constituição
sistematizou tanto a política agrícola como a política urbana, ambos no título referente à
ordem econômica e financeira. A grande inovação deve-se, sobretudo, à densificação do
conceito aberto de função social, já no artigo 186 da Constituição. O dispositivo desdobrou o
conceito de função social em três dimensões, interligadas e interdependentes: a econômica, a
social e a ambiental.
Para a constituição, a propriedade atende a sua função social quando se verifica: o
aproveitamento racional e adequado; a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e
preservação do meio ambiente; a observação das disposições que regulam as relações do
trabalho; e a exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e trabalhadores. Também
abertas, as expressões constitucionais foram complementadas pela Lei da Reforma Agrária
(Lei Federal nº 8.629 de 1993), que define, em seu artigo 9º, o que constitui, objetivamente,
os critérios definidos no artigo 186 da Constituição.
A carta teve, ainda, o mérito de diferenciar a política agrícola da reforma agrária,
como atuações complementares. Considerada agricultura a atividade econômica da maior
importância, a política agrícola tem a função primordial de dirigir o desenvolvimento da
produção no campo, inclusive no que tange ao aproveitamento das terras ociosas, a critério do
programa de reforma agrária.
Alçada ao status de objetivo constitucional, a reforma agrária tem a função básica de
incluir milhares de agricultores rurais historicamente excluídos do acesso à terra, através da
desapropriação dos imóveis improdutivos seguida da colonização. Tem-se, com a
Constituição Federal de 1988 e as normas supervenientes, a construção de todo um sistema
normativo de direito agrário hábil a favorecer a transformação das estruturas, a partir da
democratização no investimento no campo. Para tanto, é necessário uma mudança de
perspectiva nas funções da ordem jurídica, superando um modelo compensatório por um
modelo transformador.
3 DA COMPENSAÇÃO À TRANSFORMAÇÃO PELO DIREITO: A FUNÇÃO DA
PROPRIEDADE NA ESTRUTURA SOCIAL
Segundo Sen e Kliksberg, em meio à atual crise, que é reveladora de deficiências
313
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
históricas estruturais, parece ter chegado a hora de reabrir definitivamente o debate sobre
qual mundo queremos23. Sendo a propriedade uma relação de pertencimento24, é possível
pensar numa reorganização de seu modelo, a partir da definição prévia das necessidades do
grupo, passíveis de serem atendidas com o melhor aproveitamento e distribuição da riqueza.
O direito de propriedade foi forjado pelo ideário moderno como direito individual cujo
fundamento é a própria naturalização das necessidades humanas. Considerada a melhor modo
de aproveitamento da riqueza disponível, a apropriação individual surge como postulado
indiscutível, reconhecido positivamente em todas as constituições revolucionárias e nas cartas
supervenientes no mundo ocidental.
A propriedade, todavia, quando “dessacralizada”, oferece um primado do objetivo
sobre o subjetivo, ou seja, considerada mais que o domínio de um indivíduo sobre um bem, é
tida como condição básica para o exercício dos demais direitos 25, um ponto materializador da
dignidade humana. Sua redistribuição é, ao mesmo tempo, uma condição para a ética do
desenvolvimento e componente estrutural que favorece a melhor distribuição da riqueza.
O principal efeito estrutural negativo da concentração da propriedade é a drenagem
dos recursos dos outros setores da economia, gerando um déficit no investimento e uma
crescente concentração do poder econômico, afetando a distribuição da renda e condicionando
todo o mercado de trabalho. Para Salomão:
O grau de concentração e, por consequência, os pardos de pobreza e de desigualdade
observados entre as diversas regiões do Brasil e de outras ex-colônias podem ser
rastreados até episódios da ocupação colonial e mesmo encontrados em atividades
econômicas de desenvolvimento mais recente26.
A propriedade rural, diretamente relacionada aos processos de criação de riqueza e de
acumulação de capital, deve receber um tratamento jurídico especial se o objetivo é a
consolidação de uma transformação das estruturas econômicas que motive níveis cada vez
mais elevados de bem-estar e desenvolvimento humano. Isso porque:
Antes de o direito de propriedade constituir poder de troca do proprietário, é poder
de uso – repete-se – e poder de uso que, a par de não interessar somente a ele, mas a
todos quanto possam ser afetados pelo exercício do referido direito, está pressionado
por urgências inadiáveis.
Ao uso imediato do seu bem próprio, pois, corresponde um “uso mediato” de toda a
23
SEN, Amartya; KLIKSBERG, Bernardo. Op. cit., pg. 13.
STAUT JÚNIOR, Sérgio Sahid. Op. cit., pg. 158.
25
Sen identifica esta como uma visão ecumênica dos direitos humanos, que os compreendem como
interdependentes. SEN, Amartya; KLIKSBERG; Bernardo. Op. cit., pg. 34.
26
SALOMÃO FILHO, Calixto; FERRÃO, Brisa Lopes de Mello; RIBEIRO, Ivan César. Concentração,
Estruturas e Desigualdades: As Origens Coloniais da Pobreza e da Má Distribuição de Renda. São Paulo:
IDCID, 2008, pg. 19.
24
314
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
comunidade, direta ou indiretamente atingida pela eficácia do direito de
27
propriedade.
Assim, um dos mecanismos jurídicos que podem funcionar como estímulo para a
diversificação do investimento, desconcentrando os processos de acumulação de riqueza, é a
utilização do crédito rural, instrumento de política agrícola previsto no artigo 187, inciso I da
carta constitucional. O Estado poderia, assim, através de uma intervenção no domínio
econômico, proporcionar o maior acesso aos recursos que possibilitem o investimento na
agricultura familiar, ocasionando uma distribuição dos recursos capaz de fazer frente a
séculos de concentração de riqueza.
Ao que parece, a transformação da propriedade rural no que tange à sua função sócioambiental é dependente dos usos e práticas da economia no campo. A compreensão de que a
produção agropecuária deve satisfazer a demanda de mercado sem perder de vista a
sustentabilidade da produtividade da terra é fundamental. A agricultura familiar, ao estimular
o desenvolvimento de uma relação direta entre homem e campo, produtor e riqueza, mostra-se
interessante na medida em que uma nova ética de produção passa a se desenvolver, baseada
na percepção direta da dependência da manutenção dos índices de produtividade do solo,
fundados na preservação e no manejo de estratégias de uso menos predatórias.
Segundo Schneider, a emergência da expressão “agricultura familiar” emergiu no
contexto brasileiro a partir de meados da década de 199028. A criação do PRONAF, em 1996,
intitulado Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar, motivou a inclusão
do tema na agenda pública federal, inserida no contexto de ampliação das políticas públicas
relacionadas à reforma agrária.
Em estudo realizado pelo INCRA juntamente com a FAO 29, buscou-se desmistificar a
agricultura familiar, normalmente associada à baixa produtividade. Considerado o meio de
exploração do campo mais apropriado à preservação do meio ambiente, a agricultura familiar
não se apresenta como uma prioridade em termos de investimento público no Brasil, dada a
imensa desproporção dos recursos aplicados na agricultura familiar e na agroindústria.
Considerando que a reforma agrária é, no Brasil, uma prioridade constitucional, seu
objetivo é proporcionar a redistribuição do acesso à propriedade, o que só é possível com a
27
ALFONSIN, Jacques Távora. O Acesso à Terra como Conteúdo de Direitos Humanos Fundamentais à
Alimentação e à Moradia. Porto Alegre: Fabris, 2003, pg. 176.
28
SCHNEIDER, Sérgio. Teoria Social, Agricultura Familiar e Pluriatividade. In: Revista brasileira de
Ciências Sociais, vol.18, no.51, São Paulo, fev., 2003.
29
BRASIL. Novo Retrato da Agricultura Familiar: O Brasil Redescoberto. Brasília, 2002. Disponível em:
www.incra.gov.br/fao.
315
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
política de investimento complementar ao processo de assentamento posterior às
desapropriações.
Uma alternativa é a instituição de formas de coletivização da produção, através do
regime do cooperativismo. A lei da reforma agrária (Lei Federal nº 8629/93) institui a
organização em cooperativas como a primeira opção no que tange à organização da atividade
no assentamento. Apesar disso, o cooperativismo pressupõe o espírito de associação, nem
sempre presente nas relações sociais no campo, o que indica a necessidade do trabalho de
acompanhamento educativo do agricultor: transformando a realidade da produção, é possível
fazer frente aos grandes proprietários, induzindo um mercado mais competitivo, onde a
riqueza possa ser melhor distribuída.
CONCLUSÕES
Este trabalho teve por objeto do direito de propriedade, no que tange à sua função no
processo de desenvolvimento, a partir da visão dos direitos humanos como pretensões
interdependentes e complementares.
Estabeleceu-se como pressuposto que o desenvolvimento necessita de uma orientação
ética e diz respeito ao aprimoramento das condições de bem-estar e de acesso às liberdades
que os indivíduos desfrutam. O Estado, nesse processo, tem a função de equilibrar as
desigualdades socioeconômicas de base, dando condições ao processo de equiparação das
liberdades. O subdesenvolvimento é compreendido, portanto, como uma condição de
privação, de ineficácia de direitos.
Nessa dinâmica, a propriedade é tida como direito-base, na medida em que é através
da riqueza que a efetividade dos demais direitos pode ser observada. A propriedade dá
condições a que os sujeitos desfrutem da qualidade de vida, representando a riqueza
materializada.
No Brasil, tem-se que o direito de propriedade é historicamente concentrado, em face
do sistema fundiário baseado no latifúndio e na exploração de culturas para exportação, em
larga escala. Demonstrou-se como o processo de transformação do direito tem favorecido uma
mudança no conceito de propriedade, a partir de uma associação ao bem comum e à função
social.
316
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Apesar das mudanças no plano jurídico, verifica-se que pouco se tem feito em termos
de intervenção estatal, ocasionando uma não aplicação sistemática dos dispositivos
normativos. Como alternativas, propõe-se uma mudança na própria lógica de produção,
através da redistribuição do investimento, a ser focado na agricultura familiar, organizada
através do sistema do cooperativismo, capaz de promover um mercado mais competitivo, com
a consequente redução progressiva do poder econômico.
REFERÊNCIAS
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Fundamentais à Alimentação e à Moradia. Porto Alegre: Fabris, 2003.
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Propriedade. In: Revista da Faculdade de Direito, UFPR, v.42, pg. 155-170, 2005.
317
O POVO INDÍGENA ANACÉ E O COMPLEXO INDUSTRIAL E PORTUÁRIO DO
PECÉM: TESSITURAS SOCIOAMBIENTAIS DE UM “ADMIRÁVEL MUNDO
NOVO”1
Luciana Nogueira Nóbrega2
Martha Priscylla Monteiro Joca Martins3
RESUMO: Nos últimos anos, as comunidades que vivem em São Gonçalo do Amarante e
Caucaia, municípios da região metropolitana de Fortaleza, Ceará, vem sendo impactadas pela
construção do uma série de empreendimentos na área de infraestrutura e indústrias primárias,
como siderúrgicas, termelétricas e refinaria, integrantes de um projeto denominado Complexo
Industrial e Portuário do Pecém (CIPP). Dentre as comunidades afetadas, um grupo, em
especial, tem resistido ao processo de implantação do CIPP, reivindicando a identidade étnica
Anacé e relações diferenciadas com o território, o que pressupõe outros modelos de uso e
gestão dos recursos naturais. Nesse contexto, a presente pesquisa se insere, visando conhecer
a história (ainda não contada) que envolve a construção do Complexo Industrial e Portuário
do Pecém, uma história sobre propriedade, território e modelos de desenvolvimento
socioambientalmente (in)sustentáveis. Ao contarmos essa história, pretendemos identificar e
1
Admirável Mundo Novo (Brave New World na versão original em língua inglesa) é um livro escrito por Aldous
Huxley e publicado em 1932 que narra um hipotético futuro onde as pessoas são pré-condicionadas
biologicamente e condicionadas psicologicamente a viverem em harmonia com as leis e regras sociais, dentro de
uma sociedade organizada por castas. [...]. O personagem Bernard Marx sente-se insatisfeito com o mundo onde
vive, em parte porque é fisicamente diferente dos integrantes da sua casta. Num reduto onde vivem pessoas
dentro dos moldes do passado uma espécie de "reserva histórica" - semelhante às atuais reservas indígenas onde se preservam os costumes "selvagens" do passado (que corresponde à época em que o livro foi escrito),
Bernard encontra uma mulher oriunda da civilização, Linda, e o filho dela, John. Bernard vê uma possibilidade
de conquista de respeito social pela apresentação de John como um exemplar dos selvagens à sociedade
civilizada. Para a sociedade civilizada, ter um filho era um ato obsceno e impensável, ter uma crença religiosa
era um ato de ignorância e de desrespeito à sociedade. Linda, quando chegada à civilização foi rejeitada pela
sociedade. O livro desenvolve-se a partir do contraponto entre esta hipotética civilização ultra-estruturada (com o
fim de obter a felicidade de todos os seus membros, qualquer que seja a sua posição social) e as impressões
humanas e sensíveis do "selvagem" John que, visto como algo aberrante cria um fascínio estranho entre os
habitantes do "Admirável Mundo Novo". Aldous Huxley escreveu, mais tarde, outro livro, chamado Retorno ao
Admirável Mundo Novo, sobre o assunto: um ensaio onde demonstrava que muitas das "profecias" do seu
romance estavam a ser realizadas graças ao "progresso" científico, no que diz respeito à manipulação da vontade
de seres humanos. (Informação disponível em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Admir%C3%A1vel_Mundo_Novo>;
acesso em 16 Set 2010). Na obra de Huxley os “selvagens” são vistos como “o outro”, exóticos mantidos em
reservas para o deleite de turistas de castas consideradas como superiores, em uma sociedade em que o progresso
da ciência, ou o projeto de desenvolvimento apontado pelas teorias e práticas consideradas como científicas, é o
que determina o modo de vida social. A analogia aqui esboçada expressa, de modo exagerado e caricatural, as
construções da sociedade contemporânea de modelos de desenvolvimento que, ainda que se declarem autosustentáveis ambientalmente, inviabilizam modos de vida tradicionais e empobrecem populações, em nome de
pressupostos técnico-científicos aliados a grupos de interesses econômicos e sociais, que se impõem como
hegemônicos.
2
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará - UFC. Bolsista da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Atualmente, pesquisa sobre direitos
territoriais
dos
povos
indígenas,
interculturalidade
e
pluralismo
jurídico.
E-mail:
[email protected].
3
Mestranda da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará - UFC. Bolsista da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Atualmente pesquisa a atuação de advogados(as)
populares na concretização do direito a terra e ao território. E-mail: [email protected].
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
caracterizar os conflitos vivenciados pelo povo Anacé, ao tempo em que buscamos chegar a
uma “moral da história”: as contribuições que esse caso podem nos oferecer na compreensão
da temática sobre projetos de desenvolvimento e meio ambiente, entendido em sua
perspectiva natural e cultural. Com base em pesquisas bibliográficas, documentais e de
campo, pudemos perceber que os conflitos que envolvem a construção do CIPP e os Anacé
não são apenas sobre a posse ou propriedade de um dado território, mas situam-se,
principalmente, no campo do simbólico, da definição de modelos de desenvolvimento e de
projetos de futuro, nas formas de produzir e gerir os recursos naturais. Na luta para
permanecer no território tradicionalmente ocupado, os Anacé nos indicam a importância de
voltar o nosso olhar para o local, para as contribuições que os saberes gestados a partir da
vivência concreta podem oferecer, inclusive, para pensarmos em projetos coletivos de futuro.
PALAVRAS-CHAVE: Território – desenvolvimento – justiça ambiental
RESUMEN: En los últimos años, las comunidades que viven en São Gonçalo do Amarante y
Caucaia, la región metropolitana de Fortaleza, Ceará, se ha visto afectada por la construcción
de una serie de empresas en el ámbito de las infraestructuras y las industrias primarias, tales
como fábricas de acero, centrales eléctricas y refinerías miembros de un proyecto denominado
Complejo Industrial y el Puerto (CIPP). Entre las comunidades afectadas, un grupo, en
particular, ha resistido el proceso de implementación CIPP, afirmando la identidad étnica
Anaco y diferentes relaciones con el territorio, lo que requiere otro tipo de uso y manejo de
los recursos naturales. En este contexto, la presente investigación se inscribe en el objetivo de
conocer la historia (aún no cuentan), que consiste en la construcción del Complejo Industrial
y el Puerto, una historia acerca de la propiedad, los patrones de desarrollo territorial y socioambiental (in) sostenible. Al contar esta historia, tenemos la intención de identificar y
caracterizar los conflictos vividos por el pueblo Anaco, el momento en que tratamos de llegar
a una "conclusión": las contribuciones que este caso nos puede ofrecer en la comprensión de
los proyectos de desarrollo temático y el medio ambiente, entendida en su punto de vista
natural y cultural. Basado en la literatura de investigación, documental y la investigación de
campo, nos dimos cuenta de que los conflictos que involucran la construcción de la CIPP y
Anaco no son sólo acerca de la posesión o propiedad de un territorio determinado, pero se
encuentran principalmente en el campo de lo simbólico la definición de modelos y proyectos
de desarrollo para el futuro, las formas de producción y gestión de los recursos naturales. En
la lucha por permanecer en los territorios tradicionalmente ocupados, el Anaco nos muestran
la importancia de volver la mirada a la escena a las aportaciones que el conocimiento gestado
a partir de la experiencia concreta puede ofrecer, incluso a pensar en proyectos colectivos para
el futuro.
PALABRAS_CLAVE: Planificación – desarrollo – la justicia ambiental
Introdução
Nos últimos anos, as comunidades que vivem em São Gonçalo do Amarante e
Caucaia, municípios da região metropolitana de Fortaleza, Ceará, vem sendo impactadas pela
construção do uma série de empreendimentos na área de infraestrutura e indústrias primárias,
319
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
como siderúrgicas, termelétricas e refinaria, integrantes de um projeto denominado Complexo
Industrial e Portuário do Pecém (CIPP).
Dentre as comunidades afetadas, um grupo, em especial, tem resistido ao processo de
implantação do CIPP, reivindicando a identidade étnica Anacé e relações diferenciadas com o
território, o que pressupõe outros modelos de uso e gestão dos recursos naturais. Ao se
contrapor às desapropriações e expulsões de famílias do território, o povo Anacé se vale de
estratégias diversas e engloba outros sujeitos na luta pela demarcação do seu território, no
resgate e na reelaboração de sua memória e história, e na proposição de um saber próprio, que
é local.
Nesse contexto, a presente pesquisa se insere, visando conhecer a história (ainda não
contada) que envolve a construção do Complexo Industrial e Portuário do Pecém, uma
história sobre propriedade, território e modelos de desenvolvimento socioambientalmente
(in)sustentáveis. Ao contarmos essa história, pretendemos identificar e caracterizar os
conflitos vivenciados pelo povo Anacé, ao tempo em que buscamos chegar a uma “moral da
história”: as contribuições que esse caso podem nos oferecer na compreensão da temática
sobre projetos de desenvolvimento e meio ambiente, entendido em sua perspectiva natural e
cultural.4
Para tanto, combinamos a pesquisa bibliográfica e documental, a partir de autores de
diversos ramos do conhecimento, com a pesquisa de campo, procurando focar nossos estudos
nas temáticas relativas ao socioambientalismo 5 e aos direitos territoriais e culturais.
4
Essa noção ampla de meio ambiente foi consignada pela Constituição de 1988. De acordo com a Carta Magna,
meio ambiente constitui não só os aspectos naturais, intocáveis pelo homem, como a serra, o rio, a lagoa, mas
também os bens culturais, como o patrimônio histórico, paisagístico, artístico, os modos de ser e fazer das
populações e outros. Carlos Frederico Marés reforça e aprofunda essa compreensão, estabelecendo que: “o meio
ambiente, entendido em toda a sua plenitude e de um ponto de vista humanista, compreende a natureza e as
modificações que nela vem introduzindo o ser humano. Assim, o meio ambiente é composto pela terra, a água, o
ar, a flora e a fauna, as edificações, as obras de arte e os elementos subjetivos e evocativos, como a beleza da
paisagem ou a lembrança do passado, inscrições, marcos ou sinais de fatos naturais ou da passagem de seres
humanos. Desta forma, para compreender o meio ambiente é tão importante a montanha, como a evocação
mística que dela faça o povo”. (MARÉS DE SOUZA FILHO, Carlos Frederico. Bens culturais e proteção
jurídica. Porto Alegre: Unidade Editorial da Prefeitura, 1997, p. 9).
5
Nas palavras de Juliana Santilli, “o socioambientalismo foi construído com base na idéia de que as politicas
públicas ambientais devem incluir e envolver as comunidades locais, detentoras de conhecimentos e de práticas
de manejo ambiental. Mais do que isso, desenvolveu-se com base na concepção de que, em um país pobre e com
tantas desigualdades sociais, um novo paradigma de desenvolvimento deve promover não só a sustentabilidade
estritamente ambiental – ou seja, a sustentabilidade de espécies, ecossistemas e processos ecológicos – como
também a sustentabilidade social – ou seja, deve contribuir também para a redução da pobreza e das
desigualdades sociais e promover valores como justiça social e equidade”. (SANTILLI, Juliana.
Socioambientalismo e novos direitos. São Paulo: Peirópolis, 2005, p. 34).
320
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
1 Uma história a ser contada: os Anacé e o Complexo Industrial e Portuário do Pecém
A criação do Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP) não é um projeto
recente na agenda política do Estado do Ceará. Ainda em 1985, a Petrobrás 6 anunciou o
intuito de construir uma nova refinaria no Nordeste7 do Brasil, iniciando uma disputa entre os
estados nordestinos pelo empreendimento. De acordo com Jakson Alves de Aquino, “em
1987, estudos conduzidos pela Petrobrás indicavam o Ceará, seguido pelo Maranhão, como os
estados mais adequados para instalação da refinaria”. 8
No entanto, tendo em vista razões econômico-financeiras, o projeto de construção de
outra refinaria no Nordeste foi adiado para a segunda metade da década de 1990. Dos estados
em disputa, Pernambuco detinha as maiores chances de aquinhoar o empreendimento por já
contar com o Complexo Industrial e Portuário de Suape, enquanto o Estado do Ceará
demandaria gastos adicionais com a ampliação do Porto do Mucuripe, em Fortaleza, para a
instalação da refinaria. 9
Devido a mobilizações de políticos cearenses, a Petrobrás indicou, em maio de 1995,
que o local mais viável para a instalação da refinaria era o município de Paracuru 10, no Ceará,
município vizinho de São Gonçalo do Amarante.
Na mesma época, começou a se cogitar a implantação de uma infra-estrutura portuária
no Pecém, distrito de Caucaia, na Região Metropolitana de Fortaleza. Conforme
pronunciamento do Secretário Estadual de Transporte, Energia, Comunicações e Obras
(SETECO), “as confirmações e perspectivas de descobertas de novos poços de petróleo no
litoral de Paracuru e a infra-estrutura portuária do Pecém a se implantar, criam condições para
a Petrobrás tomar uma decisão favorável com relação à instalação da Refinaria no Estado”. 11
6
“A Petrobras - Petróleo Brasileiro S/A é uma empresa de capital aberto (sociedade anônima), cujo acionista
majoritário é o Governo do Brasil (União). É, portanto, uma empresa estatal de economia mista. Fundada em 3
de outubro de 1953 e sediada no Rio de Janeiro, opera hoje em 27 países, no segmento de energia,
prioritariamente nas áreas de exploração, produção, refino, comercialização e transporte de petróleo e seus
derivados, no Brasil e no exterior. [...]. Em janeiro de 2010, passou a ser a quarta maior empresa de energia do
mundo, [...] em termos de valor de mercado, segundo dados da consultora PFC Energy.” (Informação disponível
em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Petrobras>; acesso em 2 set. 2010). Apresenta-se em seu site oficial como:
“Somos uma empresa de energia que alia a expansão dos negócios ao compromisso com o desenvolvimento
sustentável.” (Informação disponível em <http://www.petrobras.com.br/pt/>; acesso em 2 set. 2010).
7
Essa região já contava com um complexo petroquímico em Camaçari, na Bahia.
8
AQUINO, Jakson Alves. Processo decisório no Governo do Estado do Ceará (1995-1998): o porto e a
refinaria. 2000. 131f. Dissertação (Mestrado em Sociologia), Departamento de Ciências Sociais e Filosofia,
Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2000, p. 102.
9
Conforme Aquino, à época, a construção de outro porto no Ceará ainda não era cogitada (AQUINO, Jakson
Alves. op. cit., 2000).
10
Jornal Diário do Nordeste, de 28/05/1995.
11
MAIA JÚNIOR, Francisco Queiroz apud AQUINO, Jakson Alves. op. cit., 2000, p. 104.
321
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
As promessas de construção da refinaria, no entanto, não foram concretizadas. Os
impasses políticos e a crise fiscal pelas quais o Estado brasileiro passou na década de 1990
foram apontados como os motivos pelos quais o projeto de uma refinaria financiada pela
Petrobrás não saísse do papel. Não obstante, o Estado do Ceará visando criar condições para
sua instalação e obter vantagens comparativas significativas com relação aos demais Estados
do Nordeste, investiu pesadamente na construção de um Complexo Industrial e Portuário no
Pecém. Nesse sentido, Jakson Aquino escreve:
A desistência da Petrobrás não significou o fim da disputa política entre os estados
por uma refinaria. Apesar de não ser mais o Estado quem construiria a refinaria, ele
ainda tinha um papel a desempenhar no estabelecimento da infraestrutura que torna
uma unidade da federação mais atraente do que as demais para o capital privado. A
disputa política deixou de ser por uma refinaria e pela infraestrutura necessária à sua
implantação e concentrou-se na oferta de incentivos fiscais e na busca de
financiamento estatal para a melhoria da infra-estrutura (no caso do Ceará,
construção de um complexo industrial e portuário).12
Paralelo à refinaria, o Complexo Industrial e Portuário do Pecém já ganhava forma
com o projeto de construção de um porto e a instalação de uma siderúrgica, atrativos,
conforme as expectativas do governo estadual, para acomodar um pólo metal-mecânico e um
petroquímico. Em 1996, foi assinada a ordem de serviço para a construção do Porto do
Pecém. A área destinada a sua implantação e de outros empreendimentos que compunham o
CIPP, no entanto, era ocupada por inúmeras famílias, as quais começaram a ser
desapropriadas a partir daquele ano.
Devido a esse fato, foi realizada uma audiência pública, no Pecém, promovida pela
Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento do Semi-Árido e de Direitos Humanos e
Cidadania, da Assembléia Legislativa do Ceará. Jakson Aquino relata que:
Participaram representantes de vários órgãos do Governo Estadual, de ONGs
[organizações não governamentais] e líderes comunitários de localidades impactadas
pelas obras de construção do Porto. A reunião iniciou-se com a apresentação do
futuro CIPP por representantes do Governo. Foi ressaltado que o projeto não se
limita a uma obra de engenharia civil; trata-se de um projeto de desenvolvimento
regional, envolvendo o trabalho de várias Secretarias de Governo. No entanto, logo
que se iniciaram as intervenções de pessoas das comunidades atingidas, as
discussões se concentraram nas questões fundiárias: desapropriações e
reassentamentos de famílias. Os moradores presentes, alguns exaltados, reclamavam
da forma como eram feitas as desapropriações: “... [os moradores foram expulsos]
de seus sítios com falsas promessas de indenização. Porque a única coisa que toda
essa gente quer e tem para o seu sustento, de suas famílias, são os coqueiros,
cajueiros, e seus canteiros. Ali nasceram, aprenderam a plantar e é só o que sabem
fazer. Se os tirarem de cima das suas propriedades, eles morrerão. Portanto, peço a
todos: não acreditem neles, porque eles não querem bem a vocês; eles querem os
12
AQUINO, Jakson Alves. op. cit., 2000, p. 106.
322
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
bens de vocês!”.13
A fala acima acerca do modo como as desapropriações foram realizadas para a
implantação do Complexo Industrial e Portuário do Pecém é corroborada com a análise de
Araújo:
Com o CIPP, várias comunidades, entre Caucaia e São Gonçalo do Amarante
(Pecém), residentes no espaço, futuro território industrial, foram retiradas
compulsoriamente e mediante ação violenta do Estado, que se fez valer de decreto
governamental de desapropriação, de força policial e judicial para retirar cerca de
14
400 famílias somente em Pecém.
Diante da forma como ocorreram, as primeiras desapropriações para a construção do
CIPP passou a ocupar páginas e páginas da memória coletiva da população impactada com as
obras. Muitos(as) moradores(as) lembram que a postura das entidades governamentais era no
sentido de apresentar a proposta como consumada, sem muita margem para negociação.
Falava-se com as comunidades utilizando-se de termos15 e linguagem que inviabilizava a
compreensão do significado da proposta16. Assim, as vistorias nos imóveis para fins de
desapropriação eram feitas sem que as famílias tivessem conhecimento do que se tratava.
Lideranças afirmam que, nessa época, muitos(as) moradores(as), por só saberem “desenhar o
nome”, assinaram laudos de vistoria e avaliação do imóvel acreditando que se tratava de
cadastro para percepção de benefícios governamentais. A falta de diálogo e de informações
caracterizou esse processo 17. Tais afirmações são reiteradas por Araújo: “o cadastramento das
13
Idem, p. 113.
ARAÚJO, Ana Maria Matos. Urbanização litorânea nordestina: os casos de Pecém e do Arpoador – Ceará.
Artigo apresentado no XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais, Caxambu, 2008, p. 4.
15
Certos termos técnicos, por exemplo, restritos a compreensão de determinados grupos sociais e/ou
profissionais.
16
Os Anacé falam a língua portuguesa, bem como os representantes das entidades. O que nos referimos aqui é
sobre as expressões e as construções lingüísticas que não se atentaram, na ocasião, para a cultura do e as précompreensões em que está inserido o povo Anacé. O inverso também pode ocorrer. Em nossas incursões de
campo em Curral Velho (comunidade tradicional de pescadores(as) e marisqueiras(os) localizada em AcaraúCeará), os(as) moradores(as) falavam-nos sobre o espaço e os seus modos de produção utilizando-se de
expressões e construções que não se conectavam com nossas experiências e vivências, sendo-nos, portanto quase
incompreensíveis. Ainda que todos falassem a língua portuguesa, tivemos que lhes pedir para nos explicar o que
queriam dizer a fim de que houvesse uma comunicação inteligível entre nós. Ver relatos sobre estas incursões em
JOCA, Priscylla; NÓBREGA, Luciana. Direito à Terra, ao Território e ao Meio-Ambiente do „Povo do
Mangue‟: „vivemos em Curral Velho mas não queremos viver encurralados‟. Apresentado no III Simpósio
Internacional sobre Propriedade e Meio Ambiente e III Encontro Temático do Projeto Casadinho realizado em
abril de 2010 em Fortaleza, Ceará, Brasil, no prelo. JOCA, Priscylla; NÓBREGA, Luciana. Populações
tradicionais, território e meio ambiente: um estudo sobre a carcinicultura e a comunidade de Curral Velho –
Acaraú/Ceará. Apresentado no XIX Encontro Nacional do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós Graduação em
Direito-CONPEDI (GT Sociologia e Antropologia Jurídicas), realizado em junho de 2010 na Universidade
Federal do Ceará (UFC), em Fortaleza, Ceará, no prelo.
17
Os espaços de “diálogo” criados pelo Governo do Estado do Ceará, como o Grupo de Trabalho do Pecém,
14
323
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
propriedades a serem desapropriadas surpreendeu os primeiros moradores contatados,
desavisados das intenções governamentais. Os anos seguintes foram vividos em um clima
tenso, carregado de medo, incertezas e revoltas da população atingida”. 18
instituído pelo Decreto N° 24.496, de junho de 1997, cumpriam muito mais um papel formal, não constituindo
efetivamente um espaço de disponibilização de informações, avaliação dos projetos e mediação entre o Governo
e as comunidades impactadas pelo CIPP. Durante todo o processo de instalação do Complexo, as comunidades
não tiveram acesso nem discutiram os projetos relacionados ao Complexo nem tampouco lhes foi colocado à
disposição a opção de não-construção dos empreendimentos ou a busca de outras localidades e/ou tecnologias
que mitigassem o impacto ambiental (natural e social). Essa postura governamental não deferiu de outros casos
de implementação de projetos que potencialmente causam danos ambientais de elevada magnitude. De acordo
com Severino Soares Agra Filho, “raros são os casos em que o governo, acompanhando a percepção da
sociedade civil, recomenda e garante a revisão do projeto em termos estruturais ou de localização. A ocorrência
desses casos somente se viabiliza quando há uma convergência dos questionamentos dos movimentos ecológicos
com as demais representações sociais, e os conflitos representam desgastes políticos eleitoreiros na região sob
intervenção”. (AGRA FILHO, Severino Soares. Os conflitos ambientais e os instrumentos da política nacional
de meio ambiente. In: ZHOURI, Andréa; LASCHEFSKI, Klemens (Orgs.). Desenvolvimento e conflitos
ambientais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, p. 354).
18
ARAÚJO, Ana Maria Matos, 2008, p. 6. Um fato, entretanto, chamou a atenção inclusive do órgão responsável
pelas desapropriações, o Instituto de Desenvolvimento Agrário do Ceará (IDACE). Entre as famílias deslocadas
compulsoriamente havia um expressivo número de posseiros e moradores, sendo o número de proprietários
(conforme a legislação em vigor) bastante reduzido. Dos 437 imóveis cadastrados em São Gonçalo do Amarante
e em Caucaia, havia, no geral, uma alta expressão de posseiros (30%) e de moradores (53%), contra poucos
proprietários (17%). Isso sugeriu, à primeira vista, uma relação de produção tradicional na agricultura,
acompanhada de um processo generalizado de não legalidade da posse da terra (IDACE. Plano de
reassentamento de Pecém. Fortaleza, 1997, p. 10). A situação fundiária em São Gonçalo do Amarante e
Caucaia, conforme descrito no documento oficial, não diferia, entretanto, da realidade de populações
tradicionais, indígenas e quilombolas, as quais, salvo raríssimas exceções, não detém a titularidade do território
que ocupam tradicionalmente. A relação que esses grupos possuem com o território não é de propriedade, no
sentido exclusivista, titularizado; sua relação se expressa no dia-a-dia, nos modos de ser, fazer e produzir, no
conhecimento acerca dos ciclos naturais do lugar e no sentimento de pertença assentado na plena convicção de
uma continuidade história com o território que foi dos antepassados. Nesse sentido, não há uma preocupação
dessas comunidades em titularizar o seu domínio sobre os territórios que ocupam. Essa preocupação só passa a
surgir com a chegada de projetos de desenvolvimento, do turismo de massa, de indústrias e outros
empreendimentos que passam a ameaçar a permanência dessas populações do território que ocupam. Paralelo a
isso, importa também ressaltar o modo como se constituiu a propriedade privada no Brasil. Desde o período da
colonização brasileira, passando pelas Sesmarias, pela lei de Terras no Brasil (1850), pelo Estatuto da Terra
(1964), pelo Processo Constituinte de construção da função social da propriedade da Constituição Federal de
1988 e pela própria Constituição Brasileira atual, percebe-se que houve uma expropriação de índios, negros e
brancos pobres da terra em um processo que, por outro lado, implicou na concentração de terras em poucas
mãos. Sem nos ater a um passado distante, a Lei de Terras de 1850, exemplificativamente, impôs um modelo de
modelo de acesso à terra, no Brasil, dispondo que ficariam doravante "proibidas as aquisições de terras devolutas
por outro título que não seja o de compra", representando o não reconhecimento de índios, quilombolas e
populações tradicionais ao território, a indicar que as terras ocupadas por esses grupos passaram a serem
negociadas em balcões cartorários. Desenvolvemos melhor essa idéia em: JOCA, Priscylla; NÓBREGA,
Luciana. JOCA, Priscylla; NÓBREGA, Luciana. O Olhar de Advogados(as) Populares: o direito a terra e a
pluralidade de movimentos sociais. In: Marcos Wachowicz; João Luis Nogueira Matias. (Org.). Direito de
propriedade e meio ambiente: novos desafios para século XXI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2010. JOCA,
Priscylla; NÓBREGA, Luciana. A Práxis de Advogados(as) Populares na Luta pela Terra e pelo Território.
Artigo aprovado no XIX Congresso Nacional do CONPEDI a ser apresentada em outubro de 2010, em
Florianópolis, Santa Catarina. Para aprofundar-se sobre o assunto vide em: MARÉS, Carlos Frederico. A
Função Social da Terra. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003. GOMES, Flávio dos Santos; REIS, João
José. Roceiros, camponeses e garimpeiros quilombolas na escravidão e na pós-emancipação. In: STARLING,
Heloisa Maria Gurgel; RODRIGUES, Henrique Estrada; TELLES, Marcela (orgs.). Utopias Agrárias. Belo
Horizonte: UFMG, 2008. GUIMARÃES, Alberto Passos. Quatro Séculos de Latifúndio. 6ª Ed. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1989. MORISSAWA, Mitsue. A História da Luta pela Terra e o MST. São Paulo: Expressão
Popular, 2001.
324
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
A primeira onda das desapropriações, nos anos de 1995 a 1999, teve como saldo
centenas de famílias expulsas da terra, sendo algumas alojadas nos assentamentos de Novo
Torém, Forquilha e Monguba, que se situam em outros municípios cearenses, tais como
Paracuru (Ceará). Nesse período, diversas organizações civis e religiosas de Fortaleza foram
solicitadas a prestar apoio às famílias atingidas. Assim, inicialmente a Pastoral do Migrante e
a Pastoral da Terra, e, posteriormente, também o Conselho Indigenista Missionário (CIMI),
passaram a atuar na área, apoiando as iniciativas dos(as) moradores(as) atingidos(as) pelo
Complexo Industrial e Portuário do Pecém.
A organização comunitária para permanecer no território de seus antepassados,
impactado pelo Complexo Industrial e Portuário do Pecém, obteve diferentes resultados:
algumas comunidades não resistiram diante de um processo violento, mediante pressões de
muitas ordens e dimensões; outras permaneceram lutando e rompendo com a passividade.
O movimento de resistência diante das desapropriações e remoções de famílias
possibilitou que, no processo de luta, muitas famílias começassem a recontar algumas
histórias. Histórias que os pais e avós haviam lhes contado, mas que, pelo medo, foram sendo
enterradas na memória. Histórias dos encantados, das danças, dos rituais, das curas, dos
massacres, das resistências foram sendo “escavadas” 19 e percebidas como comuns ao grupo:
o pai de um havia contado a mesma história que a avó de outro.20
19
Utilizamos a imagem de uma “escavação” para falar do processo de emergência étnica no Nordeste, inspirados
na vivência dos índios Tremembé de Almofala, no município de Itarema, Ceará. Umas das histórias contadas
pelos Tremembé para explicar o seu processo de retomada da identidade étnica tem a ver com a Igreja Nossa
Senhora da Conceição de Almofala. Os Tremembé contam que, durante muitos anos, a igreja ficou soterrada por
uma grande duna, que deixara descoberta apenas uma parte da torre principal. Com o tempo, as areias da duna
começaram a se movimentar, tornando visíveis outras partes da igreja. Nesse momento, os moradores de
Almofala se reuniram e começaram a desenterrá-la, cavando com as próprias mãos. O processo que levou a
desenterrar a igreja também levou ao encontro dos atuais Tremembé com os antigos, com os antepassados.
Embora a igreja estivesse ali, foi preciso cavar para que ela emergisse. Nesse sentido, foi preciso que os
Tremembé escavassem sua memória, encontrando semelhanças entre as histórias comuns, para que iniciasse a
emergência étnica.
20
Nas entrevistas realizadas com os membros da etnia Anacé, observamos um relato recorrente: a narrativa do
massacre da Lagoa do Banana. Em entrevista realizada por Sérgio Brissac, Jonas Alves Gomes, o Cacique Jonas
Anacé, narrou o que ouvia de seu pai acerca do massacre: “O governo mandou seus soldados pra matar todos os
índios. E a lagoa se tingiu de sangue. Os sobreviventes fugiram pra estes lados de cá: Japuara, Salgada, Bolso,
Matões.” Outro relato coletado, do Sr. Pedro Pereira da Silva, de 65 anos de idade, pescador, morador de Matões,
aponta que “na era dos três oito (1888) o governo mandou dizimar os índios. A lagoa ficou vermelha da cor de
sangue. Quem me contou foi meu amigo Manuel Grosso, já falecido, que morava na Japuara, e ouviu a história
do seu pai.” Por fim, Francisco Ferreira de Moraes Júnior, o Júnior Anacé, conta que “ouvi da minha tia Maria
Freire, que o seu pai contava que na era dos três oito foi uma época de grande seca. Chegou uma tropa de
cavalos e detonou várias bombas lá e aí matou muita gente, muitos índios Anacé, junto à Lagoa do Banana. Seus
corpos foram jogados dentro da lagoa, que virou um mar de sangue da noite pro dia. Os que escaparam,
apavorados com tanta violência fugiram para as matas da região: Japuara, na linha da Serra dos Caborés; Santa
Rosa, no pé da Serra dos Gatos; Matão, hoje Matões, Coqueiros e Bolso. Também o meu avô, um dia, nós
amarrando cebola debaixo de um cajueiro, falou pro meu pai, ele disse: 'tome muito cuidado com isso, não pode
contar pra ninguém, tem que guardar segredo: nós somos desse povo, dos índios'. Depois fiquei sabendo que o
325
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Nesse processo de escavação, a identidade Anacé foi sendo percebida, reconstruída e
ressignificada. A “viagem da volta” do grupo étnico, a que se refere João Pacheco de
Oliveira21, propiciava uma tessitura de histórias, memórias e reelaborações que afirmavam
uma identidade e uma origem comuns, re-ligando os antepassados (“os troncos velhos”) às
gerações atuais (“as pontas de rama”). Desnaturalizando a condição de “mistura”, os Anacé
passaram a propor não um exercício nostálgico de retorno ao passado, desconectado do
presente, mas uma atualização histórica que não anula o sentimento de referência à origem,
mas antes reforça a resolução simbólica e coletiva de se redescobrir “pontas de rama”.22
Mas por que os Anacé só se apresentaram como povo indígena após o início da
implantação do Complexo do Pecém?23 Buscando responder a esse questionamento, Sérgio
Brissac24 aponta que:
[...] não é de se estranhar que a emergência da afirmação étnica dos Anacé tenha se
dado a partir do risco de serem removidos de suas terras. Na verdade, não haveria
porque essa afirmação étnica ter se dado antes, quando eles estavam tranqüilos em
suas terras e a carga semântica relacionada ao designativo “índio” era propulsora
somente de estigma e preconceito.25 [...] Até recentemente, a estratégia de
sobrevivência para os Anacé era ocultar sua identidade indígena, assim como hoje –
após a virada histórica produzida pelo reconhecimento pela Carta Constitucional de
1988 do direito dos povos indígenas à diversidade cultural e à sua terra
tradicionalmente ocupada – é a afirmação da sua identidade.
Nesse sentido, valendo-se do direito à auto-definição, exposto na Convenção n. 169 da
Organização Internacional do Trabalho 26, os Anacé se afirmam enquanto grupo diferenciado
município de São Gonçalo até 1940 era chamado Anacetaba, a Taba dos Anacé”. (BRISSAC, Sérgio. A etnia
Anacé e o Complexo Industrial e Portuário do Pecém. Parecer Técnico n° 01/08. Ministério Público Federal,
Fortaleza, 2008, p. 4-5).
21
OLIVEIRA, João Pacheco de. Uma etnologia dos “índios misturados”? Situação colonial, territorialização e
fluxos culturais. In: OLIVEIRA, João Pacheco de (org.). A viagem da volta: etnicidade, política e reelaboração
cultural no Nordeste indígena. 2. ed. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2004
22
OLIVEIRA, João Pacheco de. op. cit., 2004.
23
A data de apresentação da demanda por regularização da terra indígena Anacé, conforme consta nos arquivos
da Fundação Nacional do Índio, é de 22 de setembro de 2003.
24
BRISSAC, Sérgio. 2008, p. 13.
25
Os processos de negação da identidade étnica no Ceará foram bastante marcantes. As políticas adotadas pelos
aldeamentos e pelo Diretório Pombalino buscavam desarticular e desqualificar as formas culturais de
sobrevivência e organização dos povos indígenas, impedindo-os de exercitar suas práticas tradicionais. Como
objetivo de integrá-los ao mundo dos não-índios, a estratégia da mestiçagem visava encaminhar os índios ao
desaparecimento. Assim, diversos documentos oficiais da província passaram a afirmar a extinção dos índios,
vez que “podiam ser confundidos com a população em geral”. Ao atestar a extinção dos índios, estava aberta a
possibilidade de o poder local apropriar-se dos seus territórios. Essa negação é manifestada na fala das lideranças
indígenas que mencionam um tempo em que a auto-afirmação étnica poderia conduzir, inclusive, à morte. Nesse
sentido, a estratégia dos povos indígenas para sobreviver foi negar essa identidade, embora as histórias e os
modos de produzir e viver fossem repassados às gerações seguintes por meio da tradição oral. Com a
Constituição de 1988, a história começa a ser recontada. A fala do pajé Luís Caboclo, índio Tremembé de
Almofala, Itarema/CE, retrata bem isso: “Houve um tempo que para nós viver, nós precisava calar. Hoje, para
nós viver, a gente precisa falar”.
26
O direito à auto-identificação está consignado no parágrafo 2º do art. 1º da Convenção n. 169 da OIT: “a
consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para
326
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
ao tempo em que se articulam com o movimento indígena no Estado do Ceará. A consciência
de que constituem um povo indígena parte das relações peculiares que os Anacé tecem com o
território que habitam; de uma memória coletiva que os interliga a uma população de origem
pré-colombiana; das danças, ritos e tradições reconhecidas por eles como indígenas; e de uma
matriz simbólica peculiar: a “corrente dos encantados”.
A corrente de índios ou corrente dos encantados é um dos elementos reiteradamente
presentes nas narrativas entre os Anacé. Segundo Antonio Freire de Andrade, Anacé de
Matões, em entrevista ao jornal Porantim, os índios que morreram na luta se encantaram e
assim “surgiu a corrente dos encantados que vai do Gregório ao Morro do Sirica. Passa por
cima do Jirau, Baixa das Carnaúbas, Baixa da Almeixa e aí „brenha‟ na mata. Quem tiver
força e poder de receber, é só passar por baixo. Eles dão força, ajuda”.27 Alguns dos
encantados, portanto, seriam os antepassados dos atuais Anacé que, ao morrer, se encantaram,
passando a povoar as matas de seu território tradicional.
Como se constata, a relação dos Anacé com os seus ancestrais é entretecida com a
relação que eles mantêm com o território que ocupam: uma relação permeada pelo sagrado. A
corrente dos encantados tem uma materialidade geográfica, física. Não se trata de uma
construção apenas metafórica, mas essas linhas, esses encantados estão, para os Anacé,
fisicamente encravados no território por eles reivindicado.
Durante esse período de articulação e mobilização dos(as) moradores(as) de São
Gonçalo do Amarante e Caucaia que passaram a se reconhecer como povo indígena Anacé 28,
houve uma suspensão na onda de desapropriações nessa região. Logo após a instalação dos
primeiros empreendimentos, impasses políticos e pressões de outros estados para receber as
indústrias acabaram “atrasando” a conclusão do CIPP. Mas a luta dos Anacé não se encerrou
com as desapropriações no final dos anos 1990.
Em janeiro de 2007, o Governo Federal instituiu, por meio do Decreto nº 6.025, de 22
de janeiro de 2007, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), o qual, segundo o art.
1° do Decreto, constituía-se de medidas de estímulo ao investimento privado, ampliação dos
determinar os grupos aos quais se aplicam as disposições da presente Convenção”.
27
PICANÇO, Marcy. A luta do povo Anacé em meio ao complexo industrial do CE. Jornal Porantim,
dezembro de 2006, p. 6.
28
Interessante destacar que, nesse mesmo período, moradores(as) de outras comunidades que não eram
diretamente impactadas com os projetos do Complexo Industrial e Portuário do Pecém passaram a se reivindicar
também como indígenas da etnia Anacé. Essas comunidades, em articulação com a população Anacé impactada
pelo CIPP, passaram a lutar pelo reconhecimento de um território contínuo que integra as aldeias de Japura,
Santa Rosa, Matões, Bolso e outras.
327
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
investimentos públicos em infra-estrutura e voltadas à melhoria da qualidade do gasto público
e ao controle da expansão dos gastos correntes no âmbito da Administração Pública Federal. 29
Com o apoio intensivo do Governo Federal, por meio dos recursos do PAC, o projeto
do Complexo Industrial e Portuário do Pecém foi retomado. Em 19 de setembro de 2007, o
governador do Estado do Ceará publicou, no Diário Oficial, o Decreto n° 28.883/2007, o qual
declarara de utilidade pública para fins de desapropriação e implantação das obras e serviços
do Parque Industrial do Pecém uma poligonal equivalente a 335 km2, entre os municípios de
São Gonçalo do Amarante e Caucaia, área superior ao projeto inicial do Complexo Industrial
e Portuário.
As razões da ampliação na área destinada ao CIPP são descritas no texto do Decreto:
Considerando que a instalação do complexo Industrial-Portuário do Pecém, em fase
de implantação, tem por finalidade criar novas perspectivas de desenvolvimento
para o Estado, independentemente das suas condições climáticas; Considerando que
a implantação de um parque industrial, baseado em novas e modernas instalações
portuárias, dotará o Estado de um importante pólo irradiador de desenvolvimento
sustentável; Considerando ainda que o empreendimento gera a necessidade de áreas
de terra disponíveis para aquela finalidade, com repercussão significativa no meio
sócio-econômico do Estado do Ceará.
O Programa de Aceleração do Crescimento retomou proposta de instalação de uma
refinaria de petróleo na região do Pecém. Aliado à refinaria, outros empreendimentos vieram a
se somar no contexto do CIPP, tais como: retroporto (edificações situadas em terra firme),
Ferrovia Transnordestina, gasoduto, ampliação de vias rodoviárias, em especial, BRs,
termelétricas a carvão mineral e Transposição do rio São Francisco.30
Diante disso, iniciou-se uma nova fase de desapropriações na região de São Gonçalo
29
Conforme consta no endereço eletrônico oficial do Programa de Aceleração do Crescimento: “está em curso
no Brasil um modelo de desenvolvimento econômico e social, que combina crescimento da economia com
distribuição de renda e proporciona a diminuição da pobreza e a inclusão de milhões de brasileiros e brasileiras
no mercado formal de trabalho. A economia nacional reúne indicadores macroeconômicos e sociais positivos que
apontam - como poucas vezes em sua história - para a possibilidade de aceleração do crescimento econômico,
mantendo a inflação em níveis baixos. A política econômica do governo federal conseguiu estabilizar a
economia, criar um ambiente favorável para investimentos, manter o princípio da responsabilidade fiscal, reduzir
a dependência de financiamento externo, ampliar substancialmente a participação do Brasil no comércio
internacional e obter superávits recordes na balança comercial. Agora é possível caminhar em direção a um
crescimento mais acelerado e de forma sustentável, uma vez que a economia brasileira tem grande potencial de
expansão. E tal desenvolvimento econômico deve beneficiar a todos os brasileiros e brasileiras e respeitar o meio
ambiente. O desafio da política econômica do governo federal é aproveitar o momento histórico favorável do
país e estimular o crescimento do PIB e do emprego, intensificando ainda mais a inclusão social e a melhora na
distribuição de renda. Para tanto, o governo federal criou o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que
tem como um dos pilares, a desoneração de tributos para incentivar mais investimentos no Brasil”. Disponível
em http://www.brasil.gov.br/pac/medidas-institucionais-e-economicas/. Acesso em 12 de ago. 2010.
30
Informações disponíveis em http://www.brasil.gov.br/pac/relatorios/estaduais/ceara-1/ceara-10o-balancojaneiro-a-abril-de-2010. Acesso em 13 de ago. 2010.
328
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
31
do Amarante e Caucaia . Embora essa fase tenha sido levada a cabo pelos órgãos estaduais
de forma semelhante à ocorrida nos anos de 1996 a 1999, ou seja, sem garantir o direito à
informação às populações impactadas, diferenciou-se dessa pela resistência dos moradores,
principalmente, daqueles que já se identificavam como povo indígena Anacé.
Nesse sentido, diversas estratégias passaram a ser usadas pelo grupo étnico, tais como:
a) articulação com o movimento indígena estadual e nacional32; b) articulação com outros
grupos e movimentos sociais impactados por projetos de desenvolvimento 33; c) pedidos de
realização de audiência pública perante a Assembléia Legislativa do Estado do Ceará 34; d)
articulação com a Rede Nacional de Advogados Populares, que passou a acompanhar as
demandas do povo Anacé35; e) articulações com grupos de pesquisa e extensão das
Universidades Estadual e Federal do Ceará (Grupo Grãos – UECE; Núcleo Trabalho, Meio
Ambiente e Saúde para a Sustentabilidade – TRAMAS e o Projeto de Extensão Centro de
Assessoria Jurídica Universitária – CAJU – ambos da UFC); f) formulação de representações
junto ao Ministério Público Federal (MPF) no Ceará, que passou a acompanhar, por meio do
31
Sobre essa nova fase de desapropriações no Pecém, Sérgio Brissac menciona que “a partir do mês de setembro
de 2008, depois da inauguração do gasoduto do Pecém, o IDACE iniciou um trabalho de cadastro dos moradores
de Bolso e Matões. Visitaram várias casas, cadastrando famílias, medindo terrenos e inclusive fazendo
avaliações e informando aos moradores o preço avaliado dos imóveis e benfeitorias. Tudo isso tem motivado
uma mobilização crescente dos Anacé [...]”. (BRISSAC, Sérgio. op. cit., 2008, p. 15).
32
Nesse sentido, em 22 de setembro de 2007 ocorreu a I Assembléia do Povo Indígena Anacé, a qual reuniu os
povos Tapeba, Pitaguary, Potiguara, Tabajara, Tremembé, Xucuru Kariri, Anacé para discutir o tema “Terra e
impacto ambiental”, oportunidade em que foram analisados os inúmeros empreendimentos que estão instalados
em terras indígenas, em especial, construção de estradas, usinas siderúrgicas, transposição do Rio São Francisco,
entre outras.
33
Mencionamos, exemplificativamente, o II Seminário Brasileiro contra o Racismo Ambiental, realizado em 23
a 25 de março de 2009, em Fortaleza/CE. Na oportunidade, os(as) pesquisadores(as) e movimentos sociais
articulados em torno da Rede Brasileira de Justiça Ambiental se dirigiram a São Gonçalo do Amarante e Caucaia
para conhecer a dimensão dos impactos socioambientais do CIPP e se solidarizarem com a luta Anacé. O caso do
Povo Anacé aqui retratado está mapeado no Mapa da Injustiça Ambiental e Saúde No Brasil, em
<http://www.conflitoambiental.icict.fiocruz.br/index.php?pag=selecao&cod=45>; acesso em 15 Set 2010. “Este
Mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e Saúde no Brasil é resultado de um projeto desenvolvido
em conjunto pela Fiocruz e pela Fase, com o apoio do Departamento de Saúde Ambiental e Saúde do
Trabalhador do Ministério da Saúde. Seu objetivo maior é, a partir de um mapeamento inicial, apoiar a luta de
inúmeras populações e grupos atingidos/as em seus territórios por projetos e políticas baseadas numa visão de
desenvolvimento considerada insustentável e prejudicial à saúde por tais populações, bem como movimentos
sociais
e
ambientalistas
parceiros”.
Informação
disponível
em
<
http://www.conflitoambiental.icict.fiocruz.br/index.php>; acesso em 15 Set 2010.
34
Cita-se, nesse sentido, a audiência pública realizada na Assembléia Legislativa, em 9 de março de 2009, que
contou com a presença dos índios Anacé, do chefe do Núcleo de Apoio Local da FUNAI, do Presidente da
Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa e de Procuradores da República no Ceará.
35
Por meio da Rede Nacional de Advogados(as) Populares (RENAP), Luciana Nóbrega, que compunha a Rede,
passou a acompanhar as demandas do povo indígena Anacé, a partir de setembro de 2008, quando ocorreu a II
Assembléia do Povo Indígena Anacé. O trabalho desempenhado em conjunto com o grupo étnico consistia em
uma assessoria ao movimento indígena, englobando a solicitação de audiências públicas, o acompanhamento de
processos administrativos perante o Ministério Público Federal no Ceará, participação de reuniões, assembléias e
outros momentos de articulação do movimento. Esse contato anterior de uma das pesquisadoras com os Anacé,
permintiu-nos ter acesso às informações necessárias para compreender a dimensão do conflito envolvendo o
povo indígena e o Complexo Industrial e Portuário.
329
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
analista pericial em Antropologia, os conflitos e as demandas do povo Anacé, com mais
proximidade36; g) ouvir os mais velhos e reescrever sua própria história, retomando práticas e
memórias que haviam sido encobertas pelo medo da discriminação e do massacre
colonizador37, h) incorporação das reflexões socioambientais, passando a demonstrar outras
formas de desenvolvimento possíveis, levadas a cabo pela produção de hortaliças, pelo
manejo sustentável de folhas, raízes e sementes para a produção de remédios caseiros; i) pela
construção da Escola Diferenciada Direito de Aprender do Povo Anacé, entre outros.
Dentre as representações protocoladas perante o MPF no Ceará, uma merece destaque
pelos seus desdobramentos. Trata-se de denúncia sobre possível desapropriação das terras da
comunidade indígena Anacé de São Gonçalo do Amarante e Caucaia, por conta da ampliação
do empreendimento Portuário do Pecém, pólo petroquímico e metalmecânico, pólo
siderúrgico e refinaria, na qual se solicita o envio de um Grupo de Trabalho para identificação
e delimitação da Terra Indígena Anacé. A referida denúncia foi proposta em 18 de julho de
2008, recebendo o n° Procedimento Administrativo (PA) 1.15.000.001301/2008-38.38
36
Ilustrando a afirmação, dos anos de 2003 a 2009, foram apresentadas pelos índios Anacé 13 representações,
denúncias e solicitações perante o Ministério Público Federal no Ceará, originando 13 processos administrativos
que
tramitam
perante
o
Parquet
federal.
Dados
obtidos
em
http://www2.prce.mpf.gov.br/prce/pr/pesquisaprocessual/pesquisa-processual/, utilizando a palavra-chave
“anacé”. Acesso em 20 de agosto de 2010. Destaque-se que, mesmo antes das representações propostas, o
Complexo Industrial e Portuário do Pecém já era alvo de questionamentos pelo MPF. A legalidade das obras do
CIPP começou a ser questionadas judicialmente em novembro de 1999, quando o Ministério Público Federal
ajuizou a ação civil pública n. 1999.81.00.022638-8, com um pedido de suspensão das obras do Complexo
Industrial e Portuário do Pecém. A principal alegação era da nulidade dos licenciamentos da obra, já que a
Semace (Superintendência Estadual do Meio Ambiente), usurpando a competência do Ibama (Instituto do Meio
Ambiente e Recursos Naturais Renováveis) concedeu licenças para a construção de empreendimentos antes que
estivesse sido elaborado o Estudo e o Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) para o conjunto do
Complexo. Destaque-se, a fim de se compreender o impacto ambiental, em suas dimensões natural, social e
cultural, incluindo-se a participação de populações atingidas, “a Rede Brasileira de Justiça Ambiental
estabeleceu como um de seus objetivos principais o desenvolvimento de metodologias de „avaliação de equidade
ambiental‟ como alternativas aos métodos tradicionais, como os EIAS/RIMAS [...]. Considera-se que estes
últimos têm sido incapazes de retratar a injustiça ambiental contida em determinados projetos, servindo,
implicitamente, à legitimação de ações e impactos inaceitáveis, se considerados apropriadamente as dimensões
socioculturais” (ACSELRAD, Henri; AMARAL MELLO, Cecilia Campello do; BEZERRA, Gustavo das Neves.
O que é Justiça Ambiental. Rio de Janeiro: Garamond, 2009, p. 34-35).
37
Dentre essas práticas que foram retomadas, uma em especial merece atenção. Trata-se da retomada da dança
de São Gonçalo, que havia ficado 19 anos sem ser feita. Em 2007, o grupo de dança Anacé recebeu o prêmio
Culturas Indígenas, edição Xicão Xucuru, outorgado pelo Ministério da Cultura, através da Secretaria da
Identidade e da Diversidade Cultural.
38
Anteriormente a essa denúncia, uma série de outras haviam sido protocoladas. Na primeira, em 28 de julho de
2003, os Anacé redigiram um documento, entregue à 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério
Público Federal, em Brasília, no qual afirmam: “há muitas décadas passadas, nossas regiões, pegando de
Gregório a Olho d‟Água e de Matões a Acende Candeia; tudo era mata e essas matas eram habitadas por uma
grande tribo. A tribo dos Anacé. [...] Na plena certeza de que somos índios, queremos pedir a demarcação do
nosso território tradicional”. Esse documento, encaminhado ao MPF no Ceará, gerou o PA n°
0.15.000.001257/2003-15. Em virtude desse PA e de outro a ele apensado, o PA 0.15.000.001394/2003-41, o
MPF recomendou à FUNAI, em 11 de setembro de 2003, que fosse constituído um Grupo de Trabalho (GT) para
proceder a identificação e delimitação da terra indígena Anacé. Até o final do ano de 2009, no entanto, a
330
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
No âmbito do aludido PA, foi elaborado, em 7 de novembro de 2008, o Parecer
Técnico n° 01/08, intitulado “A etnia Anacé e o Complexo Industrial e Portuário do Pecém”,
pelo analista pericial em Antropologia do Ministério Público Federal. Nele constam: a) relatos
acerca do massacre na Lagoa do Banana; b) as relações de parentesco e apadrinhamento entre
as famílias Anacé; c) a ameaça de destruição de referências simbólicas para os índios Anacé
em virtude da construção do CIPP, a exemplo do Cemitério do Cambeba. 39; d) a descoberta de
peças arqueológicas no local reivindicado pelos índios Anacé e a postura deles como
guardiães do patrimônio arqueológico; e) a II Assembléia do Povo Anacé, realizada em 18 de
outubro de 2008, na qual os índios presentes afirmaram unanimemente que lutarão pela
demarcação de sua terra40; f) As atividades produtivas a que se dedicam os Anacé em seu
território tradicional. De acordo com o Parecer, o que é corroborado com a nossa vivência de
campo,
há um número significativo de pequenos agricultores, que se dedicam sobretudo ao
cultivo de hortaliças –segundo eles são os maiores produtores de cheiro-verde e
alface da região metropolitana de Fortaleza. Também trabalham na lavoura de
subsistência, cultivando mandioca, feijão, milho, macaxeira, batata-doce e jerimum.
Alguns trabalham na criação de gado bovino e caprino, outros são pescadores
artesanais. Há também funcionários públicos: professores, agentes de saúde e
auxiliares de serviços gerais, além dos aposentados e pensionistas. Há os
assalariados que trabalham nas indústrias da região como mecânicos, pedreiros,
carpinteiros e serventes. Vários deles tem atuado como mão de obra não
especializada nas obras do CIPP, principalmente em serviços de terraplanagem e na
instalação da tubulação do gasoduto. A progressiva inserção deles na economia
regional, com a realização de atividades comuns à população de baixa renda da
região, não modifica, entretanto, o vínculo peculiar que têm com o seu território, tal
como podemos observar na articulação do sentido de seu território a partir de suas
narrativas, sua vivência ritual e interações sociais.41
O Parecer conclui pela auto-compreensão dos Anacé como grupo social distinto da
sociedade envolvente e que se identifica como povo indígena; e indica a necessidade de o
Governo do Estado se abster de realizar qualquer procedimento de desapropriação, até que
Fundação Nacional do Índio não havia publicado portaria instituindo o GT.
39
Para os Anacé, o cemitério é um local sagrado, pois é o local em que uma importante liderança, o índio
Cambeba, faleceu. Depois dele, passou a ser costume entre o grupo étnico que outras pessoas fossem enterradas
próximas à pitombeira, árvore que marca o lugar em que o índio Cambeba faleceu. O Jornal O Povo também
noticiou, em 26 de junho de 2008, matéria intitulada Índios temem destruição de cemitério, na qual relata o
temor dos índios de ver seus locais sagrados destruídos.
40
Na relação dos Anacé com o seu território, importante destacar que, dentre as áreas reivindicadas, encontramse áreas de preservação ambiental, tais como as Estações Ecológicas I e II do Pecém e a APA do Lagamar dos
Cauípe, que se sobrepõem ao território reivindicado por eles. Mesmo cientes de que a inserção dessas áreas pode
implicar em uma demora maior no processo de demarcação, já que ampliam a área a ser demarcada, os Anacé
estão dispostos a lutar por essas áreas já que consideram que a sua existência na contemporaneidade se deve ao
modo como eles se relacionaram com as Estações Ecológicas e com o Lagamar, por eles denominado de “Pai
Lagamar”.
41
BRISSAC, Sérgio. op. cit., 2008, p. 19-20.
331
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
sejam feitos estudos de identificação e delimitação da terra indígena Anacé por Grupo de
Trabalho nomeado pela FUNAI.
Em 12 de novembro de 2008, diante da demora da Fundação Nacional do Índio em
iniciar os trabalhos de demarcação da terra indígena Anacé e da iminência de desapropriação
do povo que habita tradicionalmente área declarada de utilidade pública para fins de
desapropriação para a construção do CIPP, o Ministério Público Federal resolveu recomendar
(Recomendação n° 59/08) ao Governador do Estado do Ceará a suspensão de qualquer
atividade visando a desapropriação de terrenos na área identificada até que se realizassem os
estudos de identificação e delimitação da terra indígena pela FUNAI.
A recomendação, entretanto, não surtiu o efeito esperado. O Governo do Estado
questionou a metodologia aplicada para no Parecer Técnico n° 01/08, não reconhecendo a
presença indígena na área.
Nesse sentido, foi elaborado um novo estudo, o Parecer Técnico n° 01/09, assinado
pelo Prof. Dr. Jeovah Meireles, da UFC, pelo analista pericial do MPF no Ceará, Sérgio
Brissac e pelo analista pericial da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, Marco Paulo
Schettino. O Parecer, com pouco mais de 130 páginas, incorporou a discussão socioambiental,
buscando compreender as relações estabelecidas entre o clima, os elementos ambientais
disponíveis na área ocupada tradicionalmente pelos Anacé e os modos de ser, fazer e produzir
desse povo indígena.
De acordo com caracterizações do Parecer, a área reivindicada pelos Anacé é uma área
de tabuleiro pré-litorâneo, que se caracteriza pela presença de sedimentos areno-argilosos,
sujeitos a chuvas esporádicas e violentas, formando amplas faixas de leques aluviais, o que
lhe confere parâmetros hidrogeológicos diferenciados:
Esta unidade de paisagem, quando analisada com seus componentes intimamente
integrados com os demais ecossistemas – rios Anil e Cauípe, seus afluentes aos
sistemas lacustres, diversidade de solos, cobertura vegetal, condições climáticas
locais, relevo plano – e às atividades produtivas das comunidades tradicionais,
evidenciou recursos ambientais fundamentais para a continuidade das práticas
produtivas. Por outro lado, esses componentes ecológicos mostraram-se de elevada
fragilidade quando analisados de modo a serem apropriados para instalação e
operação das indústrias projetadas para o CIPP.42
O parecer segue mencionando que:
42
MEIRELES, Antonio Jeovah de Andrade Meireles; BRISSAC, Sérgio; SCHETTINO, Marco Paulo Fróes. O
povo indígena Anacé e sua terra tradicionalmente ocupada. Parecer Técnico n° 01/09. Ministério Público
Federal, Fortaleza, 2009, p. 49-50.
332
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Aliadas às propriedades geológicas, geomorfológicas e pedológicas que definem
com precisão a geofácies de tabuleiro arenoso, estão representadas as melhores
condições ecodinâmicas naturais da TI [terra indígena], favorecendo a conservação
de um excelente conjunto de indicadores de elevada qualidade ambiental – solos
com satisfatório conteúdo de matéria orgânica, cobertura vegetal arbórea, excelente
zona de carga para o aqüífero, recursos hídricos subterrâneos disponíveis, arranjo
paisagístico diversificado, setores com mata de tabuleiro exuberante e potencial de
uso sustentado pela comunidade indígena Anacé.
[...]
A implantação dos equipamentos relacionados com o CIPP promoveu danos
socioambientais ao geossistema ambiental caracterizado pelo Tabuleiro Prélitorâneo. Estas intervenções foram realizadas na área tradicionalmente ocupada
pelos Anacé que, em grande parte, não levaram em conta a permanência da
comunidade indígena e a qualidade ambiental dos sistemas de usufruto ancestral.
As ações relacionadas com a implantação e operação das industrias promoveram a
degradação da mata de tabuleiro (utilizada para a caça e coleta de sementes) e das
lagoas e riachos e de áreas antes utilizadas para atividades de subsistência (vazantes
utilizando as “levadas” e as lagoas). Foram implantadas sobre Áreas de Preservação
Permanente (APPs). Para a terraplanagem e soterramento das lagoas e riachos,
várias famílias foram retiradas e extintos os sistemas ambientais de usufruto
indígena.43 (grifos nossos)
Mesmo diante de tantos impactos socioambientais, não foram verificadas medidas
mitigadoras para minimizar ou corrigir os danos provocados pelas indústrias em processo de
implantação e em operação. Inexistem áreas de replantio de vegetação nativa, de
recomposição das matas ciliares e das lagoas e riachos soterrados.44
Conforme narrado pelo estudo, os danos ambientais e às atividades de usufruto da
etnia Anacé serão agravados com a continuidade das ações previstas no Plano Diretor do
CIPP, principalmente porque a quase totalidade dos empreendimentos, tais como rodovias,
ferrovias, sistema de correias para transporte, termoelétricas, siderúrgicas, e outras, encontrase inserida no território com maior diversidade de ecossistemas e que tradicionalmente é
utilizado pelos índios Anacé. Dentre esses impactos cumulativos foram mencionados: a)
incremento da impermeabilização do solo; b) extinção e fragmentação dos sistemas hídricos
superficiais representados pelas lagoas e riachos; c) desmatamento de extensas áreas de
vegetação de tabuleiro; d) danos pedológicos; e) comprometimento da biodiversidade; f)
danos socioambientais às comunidades tradicionais e étnicas. 45 Desse modo, conclui:
43
MEIRELES, Antonio Jeovah de Andrade Meireles; BRISSAC, Sérgio; SCHETTINO, Marco Paulo Fróes. op.
cit., 2009, p. 51-52.
44
Idem, p. 62.
45
Idem, p. 55-59. Caracterizando os danos socioambientais ao povo Anacé, o Parecer ressalta as atividades de
subsistência relacionadas ao plantio de roçados, hortaliças e mandioca, realizadas através de práticas agrícolas
relacionadas com o manejo e conservação do solo. Exemplifica: “Sistemas pedológicos com baixa fertilidade
(terreno denominado de “arisco” pelos Anacé) são adubados por produtos organicos, utilizando a “bagana da
carnaúba” (derivado do extrativismo vegetal, após o beneficiamento da palha). Nas áreas úmidas o controle da
água (período mais chuvoso e com maior vazão nos córregos) é realizado por práticas de plantio em terraços
com cavas que drenam o excesso para o leito dos riachos. Foram evidenciados roçados de milho e feijão e nos
canteiros de hortaliças. Nas áreas de várzea a boa fertilidade do solo, associada à disponibilidade de água,
333
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Pela complexidade dos ecossistemas ambientais definida no Tabuleiro Pré-litorâneo
e a diversidade dos usos tradicionais evidenciada durante as atividades de campo e
relatada pelos Anacé, a área destinada ao CIPP não é compatível com a fragilidade e
vulnerabilidade dos ecossistemas e com o modo de vida tradicional das populações.
As áreas de preservação permanente (APP) foram degradadas pelas indústrias e, de
acordo com o Plano Diretor, projeções de continuidade do processo de ocupação dos
ecossistemas – sobre os setores de várzea, lagoas, riachos, e mata arbórea do
tabuleiro – e das áreas utilizadas pelos índios, irão certamente agravar os danos
ambientais definidos, Observou-se que, durante a instalação das primeiras indústrias,
as comunidades foram tratadas pelos empreendedores como passivo ambiental,
evidente pela necessidade de realocação de suas áreas tradicionais, para a
continuidade do processo de industrialização. 46
Assim, considerando os danos socioambientais de elevada magnitude com a instalação
do Complexo Industrial e Portuário do Pecém, o Parecer indica possibilidades de alternativas
locacionais não distantes do Porto do Pecém, mas fora da zona de Tabuleiro Pré-litorâneo,
local de ocupação tradicional dos índios Anacé.
Diante da pressão para a continuidade das obras do CIPP e da iminência de novas
desapropriações, o Ministério Público Federal no Ceará, com base no parecer supra-citado,
ajuizou, em 10 de dezembro de 2009, a Ação Civil Pública n° 0016918-38.2009.4.05.8100,
perante a 10° Vara Federal no Ceará, questionando as irregularidades na implantação do CIPP,
requerendo tutela jurisdicional no sentido de determinar ao Estado do Ceará que: a) se
abstenha de realizar qualquer ato desapropriatório na área reivindicada pelos Anacé, b) se
abstenha de proceder remoção de indivíduos, c) não se executem quaisquer obras na área
decorrentes de licenças prévias ou de licenças de instalação, como medida de reguardo do
território Anacé frente à implementação dos projetos do CIPP; d) que seja assegurada a
continuidade dos trabalhos de identificação, delimitação e demarcação da Terra Indígena
Anacé.
A relação dos Anacé com o território habitado tradicionalmente se contrapõe ao CIPP,
como território portuário regional e industrial metropolitano, atendendo a lógica de
reprodução ampliada do capital mundial. O que está em jogo nesse conflito não é só o
domínio sobre o território, seja ele identificado como propriedade ou como posse, mas
principalmente um projeto de definição do uso sobre o território e os seus elementos
socioambientais.
favorece o desenvolvimento de atividades de agricultura de subsistência durante todo o ano”. (pág. 62). Além
desses usos, a água é utilizada para o lazer e para usos domésticos, já que as casas possuem poços artesianos e
cacimbas. Nesse sentido, devido ao fato de os lençóis freáticos serem bastante rasos e o solo muito permeável, a
contaminação desses mananciais pelas indústrias do CIPP (que afetará a qualidade da água) ou a
impermeabilização do solo e a drenagem da água (que afetarão a quantidade) certamente conduzirão essas áreas
utilizadas para cultivo entre os Anacé a degradação ambiental, com reflexos diretos na qualidade e na
possibilidade de vida das comunidades tradicionais na região.
46
Idem, p. 59-60
334
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
2 Um caso de racismo ambiental?
O conflito em torno do território reivindicado pelos índios Anacé e sobre o qual se
pretende construir um Complexo Industrial e Portuário faz-nos refletir sobre a possibilidade
de caracterizá-lo como um caso de racismo ambiental.
A temática do racismo ambiental, presente atualmente na fala de diversos movimentos
sociais, remonta a luta do movimento negro norte-americano, a partir da década de 1980.
Nessa época, diversos grupos passaram a denunciar que depósitos de lixo ou indústrias
poluentes costumavam se concentrar em áreas habitadas pela população negra, fazendo com o
que os impactos socioambientais onerassem essa população de forma desproporcional e
desigual se comparados com os suportados pelos demais membros da sociedade. Isso
significava que a população mais afetada pelas desigualdades sociais era também a mais
impactada pelos resultados ambientalmente degradantes do processo produtivo. 47
Ao articular injustiça social com degradação ambiental, o movimento negro deu
visibilidade a uma relação nem sempre tão visível, apontando a impossibilidade de separar os
problemas ambientais da distribuição desigual de poder nas sociedades capitalistas, o que
implica também em uma distribuição desigual dos recursos naturais. Nesse sentido, a grande
contribuição dessa nova concepção foi desnaturalizar a lógica que impõe às populações mais
vulneráveis socialmente os ônus ambientais do modelo de desenvolvimento implementado
nos países. Ou seja, demonstrou que o fato desses grupos serem mais impactados
ambientalmente decorre de uma lógica política que orienta a distribuição desigual dos
impactos ambientais e o acesso aos recursos naturais, levada a cabo por um modelo de
desenvolvimento excludente e predatório. Nesse sentido, Juliana Malerba aponta:
Não é difícil constatarmos a partir da própria experiência de luta dos movimentos
sociais, que são os grupos vulnerabilizados e de menor renda os que vivem em áreas
de risco, próximos a indústrias poluentes e que, em geral, são os primeiros que se
vêem privados do acesso aos recursos de que dependem para viver graças à
instalação de grandes projetos de exploração mineral, de geração de energia, de
48
plantio de monocultivos etc.
47
De forma mais específica, Selene Herculano e Tânia Pacheco narram que “em torno de 1978, a população
negra de Warren County, Carolina do Norte, iniciou um movimento contra um aterro de resíduos tóxicos de
bifenil policlorado. Pouco a pouco, o protesto foi crescendo, até que, em 1982, uma grande manifestação levou a
centenas de prisões e ampliou para além das fronteiras do estado o debate sobre a questão. Mais: a disseminação
da denúncia e dos debates culminou com a descoberta de que três quartos dos aterros de resíduos tóxicos da
região sudeste dos Estados Unidos estavam localizados em bairros habitados por negros”. (HERCULANO,
Selene; PACHECO, Tania. Introdução: “racismo ambiental”, o que é isso? In: HERCULANO, Selene;
PACHECO, Tania (Orgs.). Racismo ambiental. I Seminário Brasileiro sobre racismo ambiental. Rio de Janeiro:
Projeto Brasil Sustentável e Democrático: FASE, 2006, p. 26-27).
48
MALERBA, Juliana. A luta por justiça socioambiental na agenda feminista: visibilizando alternativas e
fortalecendo resistências. In: ARANTES, Rivane; GUEDES, Vera (Orgs.). Mulheres, trabalho e justiça
335
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
A partir das denúncias formuladas pelo movimento negro, outras populações étnicas e
comunidades ao redor do mundo começaram a se perceber também como vítimas desse
processo excludente e desigual de distribuição dos impactos ambientais, passando a denunciar
casos de concentração das injustiças sociais e ambientais que recaiam de forma implacável
sobre esses grupos. Contrapondo-se ao que chamaram de racismo ambiental, essas
comunidades, discriminadas por sua origem ou cor, passaram a reivindicar justiça
socioambiental49. Juliana Malerba, esclarecendo o conceito de justiça ambiental, afirma:
Esse conceito estabelece que todos os grupos sociais, independentemente de sua
origem, renda, classe social, sexo, raça ou etnia, devem participar integralmente do
processo de decisão sobre o acesso e uso dado aos recursos naturais, de forma a
garantir a proteção equânime em relação aos potenciais danos ambientais e à saúde
que as atividades propostas para serem implementadas em seus territórios possam
causar.50
Lutando por justiça ambiental, as comunidades e grupos étnicos passaram a propor
uma mudança na distribuição do poder sobre os recursos naturais, demonstrando outras
formas de se relacionar com o território, pautadas em diferentes modos de viver, de organizar
e de produzir. Esses diferentes olhares e compreensões acerca da natureza são completamente
desconsiderados nos projetos de desenvolvimento pensados para um território que representa
a casa, a morada e a expressão de uma existência diferenciada de povos indígenas,
quilombolas, pescadores artesanais, ribeirinhos, agricultores/as familiares. Esses projetos de
desenvolvimento, que incluem barragens, mineradoras, siderúrgicas, monocultivos, a pretexto
de gerar emprego e renda, são acompanhados por alterações na forma de ocupação e uso do
território, desestruturando atividades tradicionais, promovendo a expulsão de agricultores
familiares, desmatamento exploração da mão de obra.51 Diante disso, afirma Malerba, “são
ignoradas e invisibilizadas as alternativas sustentáveis de gestão dos recursos que são feitas
socioambiental. Recife: SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia, 2010, p. 14.
49
Grande parte desses grupos e comunidades, no Brasil, estão articulados em torno da Rede Brasileira de Justiça
Ambiental, criada em 2002 e que agrega, além de movimentos sociais, setores acadêmicos e organizações da
sociedade civil. Em 2005, foi criado no âmbito da Rede, um Grupo de Trabalho de Combate ao Racismo
Ambiental. Dentre os objetivos do grupo estão o de dar visibilidade à relação entre racismo e desigualdades
ambientais, desenvolvendo ações que buscam fortalecer as lutas, lideradas, sobretudo, por populações
tradicionais, indígenas e quilombolas, contra o racismo e as injustiças ambientais no Brasil. Para saber mais, ver
www.justicaambiental.org.br.
50
MALERBA, Juliana. op. cit., 2010, p. 16-17.
51
Os diversos exemplos, no Brasil, de implementação desses projetos de desenvolvimento levaram estudiosos
como Rivane Arantes a concluir que “os projetos de desenvolvimento implementados pelos governos, orientados
e custeados pelas instituições financeiras multilaterais (BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento, FMI –
Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial, etc.), sob o pretexto de combater a pobreza, e pelo interesse e
metodologia apenas baseados no econômico, não fizeram mais do que ampliar as condições de exploração das
pessoas e das fontes naturais, precarizando ainda mais a vida dessas, e ampliando o fosso da miséria”.
(ARANTES, Rivane Fabiana de Melo. Movimento de Mulheres e lutas socioambientais: experiências e desafios
para o feminismo. In: ARANTES, Rivane; GUEDES, Vera (Orgs.). Mulheres, trabalho e justiça
socioambiental. Recife: SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia, 2010, p. 89).
336
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
por esses grupos e que poderiam representar, inclusive, respostas reais à crise ambiental
constantemente expressa pela mídia e tão presente no discurso hegemônico”. 52
Assim, para além de visibilizar os impactos desiguais resultantes do processo
produtivo, os movimentos tecem críticas ao modelo de desenvolvimento vigente, um modelo
que é tratado como um programa de governo e não como um direito humano; um modelo
restrito ao campo da economia, limitado ao crescimento econômico sem distribuição de
riqueza; um modelo ditado por grandes corporações e subtraído da decisão da sociedade. Um
modelo que é enunciado como se fosse o único possível e pensável.
Nesse contexto, se situa o conflito entre os índios Anacé e o Complexo Industrial e
Portuário do Pecém. Sob o argumento da geração de emprego e renda e a alavancada do
Estado do Ceará do seu sono eterno de subdesenvolvimento, busca-se implementar um
projeto pautado na construção de indústrias de grande impacto ambiental, como siderúrgicas,
refinarias e termelétricas a carvão mineral, viabilizadas pela construção de uma infraestrutura
que inclui porto, rodovias e água em abundância para matar a sede das indústrias, vinda da
transposição do Rio São Francisco. No entanto, como se não bastassem os impactos
“naturais”, a área da construção do CIPP representa a mesma área em que vive um grupo que
se auto-identifica como Anacé, que tem relações diferenciadas com esse território. Essas
relações são pautadas no manejo sustentável dos recursos, no conhecimento profundo dos
ciclos naturais, na compreensão do lugar como morada dos antepassados, na produção de
hortaliças, nas farinhadas, nas danças e outras atividades. A fome, a miséria não era algo que
eles conheciam. Isso que os Anacé fazem de seu cotidiano, ressignificando suas tradições,
criando e recriando projetos coletivos de futuro, sem perder a referência do/no território, é o
que eles chamam de desenvolvimento.
O caso Anacé é complexo, pois exemplifica um conflito ambiental territorial, cujo
conceito, de acordo com Andréa Zhouri e Klemens Laschefki, envolve:
a sobreposição de reivindicações de diversos segmentos sociais, portadores de
identidades e lógicas culturais diferenciadas, sobre o mesmo recorte espacial – por
exemplo, área para a implementação de uma hidrelétrica versus territorialidades da
população afetada. A diferença em relação aos conflitos sobre a terra é que os grupos
envolvidos apresentam modos distintos de produção dos seus territórios, o que se
reflete nas variadas formas daquilo que chamamos de natureza naqueles recortes
espaciais.53
52
MALERBA, Juliana. op. cit., 2010, p. 16.
ZHOURI, Andréa; LASCHEFSKI, Klemens. Desenvolvimento e conflitos ambientais; um novo campo de
investigação. In: ZHOURI, Andréa; LASCHEFSKI, Klemens (Orgs.). Desenvolvimento e conflitos ambientais.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, p. 23.
53
337
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Para os Anacé, a comunidade e o território, com suas características físicas,
representam uma unidade que garante a produção, a reprodução e a ressignificação do seu
modo de vida, algo que resulta numa forte identidade com o espaço onde se vive. O território
por eles habitado não é uma abstração fora da experiência vivida, mas é o lugar da casa, é a
fonte de sustento, é a morada dos encantados, é o lugar onde eles/elas produzem sua
existência diferenciada.
Esses distintos modos de perceber o território implicam em uma incompatibilidade em
se sobrepor, sobre o mesmo lugar, os projetos do CIPP e a área reivindicada pelos Anacé. É
por esse motivo que o governo do Estado declarou de utilidade pública parte da área
tradicionalmente ocupada pelos Anacé. No entanto, é preciso destacar que, devido à forte
relação com esse território, o deslocamento ou a remoção do grupo, como pretendido para a
implantação do CIPP, não implicaria em uma simples perda da terra, mas em uma perda da
base material e simbólica sobre a qual se erigem os modos de socialização do povo Anacé. 54
Como aponta Andréa Zhouri e Klemens Laschefski, “muitas vezes a nova localização, com
condições físicas diferentes, não permite a retomada dos modos de vida nos locais de origem,
sem contar o desmoronamento da memória e da identidade centradas nos lugares”. 55
As diferentes compreensões sobre o território e o modo como os custos da
implantação de um projeto de desenvolvimento estão recaindo de forma desigual e
desproporcional sobre uma população já discriminada pela sociedade por sua origem étnica é
o que nos faz crer que o caso Anacé se trata de um exemplo de racismo ambiental, na medida
em que, de acordo com Selene Herculano e Tania Pacheco, “o racismo ambiental não se
configura apenas através de ações que tenham uma intenção racista, mas igualmente através
de ações que tenham um impacto racial, não obstante a intenção que lhes tenha dado
origem”.56
54
Nesse sentido, está presente em muitas narrativas de lideranças Anacé relatos sobre a perda da referência
material e simbólica provocada com as primeiras desapropriações (1996 a 1999). Muitos(as) moradores(as),
principalmente os(as) mais idosos(as), morreram no deslocamento para os reassentamentos de Novo Torém,
Monguba e Forquilha. Outros(as), mesmo tendo sido desapropriados(as), não conseguiram permanecer nas suas
novas casas e voltaram para o território reivindicado como tradicionalmente ocupado. O desejo e o direito de
permanecer nesse local são reivindicados em face da desterritorialização e da retirada do território conduzida por
outrem. Refletindo sobre esses processos, Andréa Zhouri e Raquel Oliveira mencionam que “a resistência
centrada nos lugares [...] demonstra que esses grupos empreendem em suas lutas o esforço para deixarem a
condição passiva que os transforma em objetos dos movimentos de outrem (do capital), passíveis de
deslocalização e relocalização, segundo a migração das vantagens comparativas”. (ZHOURI, Andréa;
OLIVEIRA, Raquel. Quando o lugar resiste ao espaço: colonialidade, modernidade e processos de
territorialização. In: ZHOURI, Andréa; LASCHEFSKI, Klemens (Orgs.). Desenvolvimento e conflitos
ambientais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, p. 443).
55
HERCULANO, Selene; PACHECO, Tania. op. cit., 2006, p. 25.
56
ZHOURI, Andréa; LASCHEFSKI, Klemens. op. cit., 2010, p. 25.
338
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
3 À guiza de uma conclusão: o que os Anacé podem nos ensinar...
A realidade apontada no presente artigo e vivenciada pelo povo Anacé, em São
Gonçalo do Amarante e Caucaia, impactado pela instalação do Complexo Industrial e
Portuário do Pecém, faz-nos refletir sobre o modo como os grandes projetos de
desenvolvimento tem sido implementados no Brasil.
O caso Anacé não é o único exemplo nesse sentido, mas ele é emblemático para
demonstrar que esses projetos chegam de maneira estranha à dinâmica que orienta os desejos,
as expectativas e os interesses dos grupos locais, desconsideram outras formas de
desenvolvimento e de alternativas gestadas nos territórios, negligenciam impactos e
transformam as comunidades apenas em receptáculos dos passivos ambientais.
Para além de exemplificar um extenso rol de casos de racismo ambiental, é preciso
perceber o que podemos aprender com os Anacé. Como buscamos visibilizar, há diversas
lógicas de compreensão sobre os territórios. Muitas delas, focadas nas comunidades
ribeirinhas, de pescadores artesanais, indígenas e quilombolas, diferem do pensamento
hegemônico que se impõe sobre esses grupos, modificando os seus modos de ser e fazer e
estabelecendo novas ordens a pretexto de trazer “desenvolvimento”. Essas comunidades,
contudo, tem seus próprios processos de desenvolvimento. Elas não ficam estanques nas
paredes de museus, atrasadas em um tempo histórico longíquo pelo qual a sociedade ocidental
já passou. Elas trazem outras relações com o território, com o meio ambiente e com os
demais, indicando para nós uma necessidade de se aprender com o “saber local”.57
À semelhança do que ocorreu com os Anacé, Andréa Zhouri e Raquel Oliveira
mencionam que:
Muitos processos de territorialização hoje em curso são processo de luta pelo
significado e pela apropriação do meio ambiente (quilombolas, indígenas,
vazanteiros, geraizeiros etc.) contra a apropriação global pelo capital, que
transforma territórios sociais em espaços abstratos, ou seja, lugares em espaços que
contém recursos naturais para a exploração capitalista. Entretanto, os grupos sociais
sujeitados à desterritorialização não são vitimas passivas e expressam outras formas
de existência nos lugares. Reivindicam direito à memória e a sua reprodução social.
E são eles que dizem que nem tudo é fadado a virar espaço de apropriação abstrata
pelo capital [...]” (p. 445)
A defesa do lugar, do enraizamento e da memória destaca a procura por autodeterminação, a fuga da sujeição dos movimentos hegemônicos do capital e a
reapropriação da capacidade de definir seu próprio destino. A direção desses
movimentos [...] insiste em nomear os lugares, em definir-lhes seus usos legítimos,
57
GEERTZ, Clifford. O saber local. Trad. Vera Mello Joscelyne. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 2009, p. 249-356.
339
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
vinculando a sua existência à trajetória desses grupos. Não é uma luta pela fixidez
dos lugares, mas sim pelo poder de definir a direção da sua mudança”. (p. 445)
Nesse sentido, a grande contribuição que os Anacé podem nos dar é fazer-nos refletir
sobre a diversidade de modos de pensar o mundo e nele projetar o futuro. A discussão que se
apresenta está no campo da própria definição dos projetos de desenvolvimento. É preciso
pensar o desenvolvimento, não tomando como base reflexões coloniais 58 de um só
desenvolvimento possível, o ocidental capitalista. É preciso pensar desenvolvimento, pensar
meio ambiente, pensar propriedade e territorialidades a partir do local. 59
Compreender o conflito que envolve os Anacé exige-nos um esforço no sentido de
estranhar os conceitos hegemônicos de meio ambiente como recurso natural a ser explorado,
de território como cenário da intervenção a ser promovida pelos projetos de desenvolvimento
e de um desenvolvimento como caminho único na direção capitalista de acumulação e
pilhagem de recursos sem distribuição. A resistência Anacé, centrada no território, este
considerado como uma construção ao mesmo tempo simbólica, social e material, suporte do
seu ser coletivo no mundo, é também uma proposição por novas formas de compreender a
realidade.
Nesse sentido, os Anacé coadunam-se com o expressado por alguns autores, para
quem é preciso romper com as formas globocêntricas de ver o mundo e propor novos
parâmetros de reflexão do pensar, pautados em um conhecimento baseado no lugar e
58
Aníbal Quijano diferencia colonialismo de colonialidade. Para o autor. “colonialidade é um dos elementos
constitutivos e específicos do padrão mundial do poder capitalista. Sustenta-se na imposição de uma
classificação racial/étnica da população do mundo como pedra angular do referido do padrão de poder e opera
em cada um dos planos, meios e dimensões, materiais e subjetivos, da existência social quotidiana e da escala
societal”. Já o colonialismo “refere-se estritamente a uma estrutura de dominação/exploração onde o controle da
autoridade política, dos recursos de produção e do trabalho de uma população determinada domina outra de
diferente identidade e cujas sedes centrais estão, além disso, localizadas noutra jurisdição territorial”.
(QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, Boaventura de Sousa;
MENEZES, Maria Paula (Orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010). Não obstante colonialidade
e colonialismo não se confundirem, é inegável que a ideologia que sustentou o colonialismo enquanto relação
política, foi a relação desigual de saberes e poderes, fundada na classificação social e na exclusão do Outro.
59
Sobre esse tema, ler MIGNOLO, Walter. Histórias locais / projetos globais: colonialidade, saberes
subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. Acerca das relações entre local e
global, Andréa Zhouri e Raquel Oliveira mencionam que “a crítica ao global – como força que oprime e explora
– só pode ser efetuada a partir do local, onde o conhecimento é possível e as trincheiras da resistência estão em
curso” (ZHOURI, Andréa; OLIVEIRA, Raquel. op. cit., 2010, p. 443). No mesmo sentido, acrescentam que
“diante do exposto, entendemos a necessidade de se colocar o desafio, a um só tempo intelectual e político, de
resgatar os processos locais, incorporando novos marcos e categorias de análise aos processos globais. Assim, da
perspectiva que orienta esta reflexão, o global não impediria o sentimento de enraizamento, o desejo de
permanecer no lugar, com a salvaguarda da memória, da identidade e da vontade de se fixar, de criar raízes.
Esses sentimentos [...] também apontam para a resistência ao avanço do espaço – quer dizer, do capital – nos
lugares – locus da vivencia e da história [...]” (ZHOURI, Andréa; OLIVEIRA, Raquel. op. cit., 2010, p. 444).
340
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
fundamentado na experiência. Algo semelhante ao que Boaventura de Sousa Santos chama de
“dupla ruptura paradigmática”. Nesse novo paradigma, escreve Andréa Zhouri e Raquel
Oliveira:
as categorias de lugar e territorialidade ganham novos contornos e tonalidades ao se
colocarem como contraponto não provinciano e emancipador às categorias
colonizantes/colonizadoras forjadas a partir de pretensas posições globais (por
exemplo, desenvolvimento sustentável e governança ambiental). [...] Esse novo
conjunto de reflexões denuncia as categorias do pensamento que aprisionam o olhar
a partir de um referencial da modernidade – que seria eurocêntrico, global e
masculino, centrado nos processos do capital, do espaço, da abstração.60
O significado de território proposto pelos Anacé acentua um caráter histórico e
simbólico. Mais do que o cenário, o lugar onde se vive, se produz e se reconstrói é o território
onde ocorrem as dinâmicas sociais que conectam o passado ao presente, esferas de
pertencimento que tornam possíveis a construção de identidades no tempo contemporâneo É
nesse território que se dá a retomada de controle sobre o próprio destino, sendo o suporte do
presente e a referência que orienta projetos coletivos de futuro.
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modernidade e processos de territorialização. In: ZHOURI, Andréa; LASCHEFSKI, Klemens
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343
SERVIÇOS AMBIENTAIS, POPULAÇÕES TRADICIONAIS E ECONOMIA
AMBIENTAL: O PROJETO DE LEI FEDERAL N. 5586/2009 QUE TRATA DOS
PROJETOS DE REDD E O EXEMPLO AMAZONENSE
Luís Pedro Oliveira Santos Rodrigues*
RESUMO: O trabalho conceitua, classifica e enumera os serviços ambientais, dando ênfase
ao modo pelo qual podem ser aplicados na Amazônia. Trata do pagamento por serviços
ambientais – PSA – como instrumento desenvolvido pela economia ambiental, objetivando a
alocação eficiente dos recursos naturais. Conceitua os Pagamentos por Serviços Ambientais e
as políticas de REDD – Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação, e como isso
pode ser revertido às populações tradicionais. Analisa o Projeto de Lei Federal n. 5586/2009,
e suas inovações para com os projetos de REDD. Examina o programa oriundo do Estado do
Amazonas, maior representante da Floresta Amazônica no país e primeiro Estado a
regulamentar o pagamento por serviços ambientais, o manejo sustentável através de suas
populações, e as políticas implementadas de PSA's.
PALAVRAS-CHAVE: Meio ambiente, Serviços ambientais, Economia, Floresta Amazônica.
ABSTRACT: The work conceptualizes, classifies and enumerates the environmental
services, emphasizing the way in which can be applied in the Amazon. It's payment for
environmental services - PES - as an instrument developed by the environmental economy,
aiming at the efficient allocation of natural resources. Conceptualizes the Payments for
Environmental Services and policies REDD - Reducing Emissions from Deforestation and
Degradation, and how it must be reverted to traditional populations. Analyze the Draft Federal
Law 5586/2009, and their innovations towards REDD projects. Examines the program from
the State of Amazonas, the largest representative of the Amazon rainforest in Brazil and first
state to regulate the payment for environmental services, through sustainable management of
their populations, and the existing policy of PES's.
KEYWORDS: Environment, Environmental services, Economy, Amazon rainforest.
1 INTRODUÇÃO
As tecnologias e os serviços estão cada vez mais voltados a um mundo equilibrado, e
exemplos são o que não faltam neste início de século XXI; energias alternativas,
sustentabilidade, e o direito regendo tudo isso é a prova da preocupação do homem com o
*
Graduando em Direito pela UFMA – Universidade Federal do Maranhão, e aluno-pesquisador do NEA –
Núcleo de Estudos Ambientais, desta IES.
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
meio em que vive, e com as futuras gerações que aqui habitarão.
A crescente devastação das florestas e o uso inadequado e irracional dos recursos
naturais, e da propriedade, fez emergir a necessidade de criação de instrumentos para proteção
destes bens da vida. Nesta linha surgem os instrumentos econômicos para a conservação,
sendo que o pagamento por serviços ambientais é um deles.
Os ecossistemas (florestas, cerrados, manguezais, recifes, etc) oferecem à
humanidade uma variedade de produtos e serviços no âmbito local, nacional e mundial. É
necessário então uma breve distinção entre produtos e serviços ambientais: os produtos
ambientais são aqueles produtos oferecidos pelos ecossistemas que são utilizados pelo ser
humano para seu consumo ou para serem comercializados, tais como madeira, frutos, peles,
carne, sementes, medicinas, entre outros, e constituem uma base de sustentação e fonte de
renda importante para a Sociedade; já os serviços ambientais são serviços úteis oferecidos
pelos ecossistemas para o homem, como a regulação de gases (produção de oxigênio e
sequestro de carbono), belezas cênicas, conservação da biodiversidade, proteção de solos e
regulação das funções hídricas. Ou seja, são elementos que passam a ser economicamente
valorados a partir da incorporação da noção de escassez dos recursos naturais.
Dentro dos ecossistemas, um bom exemplo são as florestas nativas da Amazônia, que
oferecem serviços fundamentais para a humanidade, como a participação na regulação do
clima e a conservação da biodiversidade. Portanto, é imprescindível o homem encontrar
formas de proteção, manejo e uso das florestas nativas que assegurem geração de renda,
aprimoramento da qualidade de vida dos moradores, e a manutenção dos serviços ambientais.
Está amplamente demonstrado que a exploração indiscriminada e não responsável
dos produtos da floresta gera uma degradação contínua dos habitats naturais e silvestres,
provocando uma diminuição sensível dos serviços ambientais com consequências econômicas
e sociais importantes. Nos últimos anos foram desenvolvidos e legalmente normatizados
formas e mecanismos de exploração dos produtos florestais que diminuem o impacto sobre as
florestas. Também foram criadas áreas protegidas (Unidades de Conservação e Terras
Indígenas) como forma de regulamentar o acesso indiscriminado aos recursos florestais.
Paralelamente foram definidos mecanismos de controle, como o licenciamento, e de repressão
(multas, etc) para monitorar e eventualmente sancionar quem não respeite estas regras de
acesso e uso. Porém, constata-se a impossibilidade física e institucional dos poderes públicos
em controlar e fiscalizar o acesso e uso da floresta em territórios extensos como o do
345
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Amazonas. Ao mesmo tempo, constata-se que as práticas de "manejo" têm custo adicional que
prejudica a comercialização dos "produtos limpos".
É importante ressaltar que enfrentar o desmatamento ilegal torna-se preemente,
diante do quadro de mudanças climáticas que se agrava, e se constitui em um desafio imposto
não apenas ao poder público, mas também à sociedade brasileira, alcançando ademais a
comunidade internacional, ante a contribuição dada pelo desmatamento e a degradação das
florestas tropicais para o aquecimento global. 1
É nesse contexto que surge o Pagamento por Serviços Ambientais – ou Ecológicos,
como muitos preferem – não baseado na repressão, mas no envolvimento, no incentivo e na
compensação, que tem se revelado como alternativa que abre inúmeras possibilidades, dentre
as quais o emprego do REDD – redução de emissões por desmatamento e degradação, que
pode contribuir significativamente para promover a transição de uma economia de exploração
predatória para uma economia de baixo carbono.
Da necessidade de proteção jurídica ao meio ambiente, com o combate a degradação
ambiental e objetivando o equilíbrio ecológico, foram surgindo em todos os países as
legislações ambientais. No entanto, essa legislação apresenta-se bastante variada, dispersa e
confusa. Se por um lado têm-se normas ambiciosas, de base ecológica, que tentam relacionar
os elementos envolvidos na situação para normatizar uniformemente as regras relativas ao
meio ambiente, por outro é possível observar normas que constituem simples adequações da
legislação sanitária e higienista do século XIX e também da que em outras épocas, protegiam
a paisagem, a fauna e a flora.
E não se pode dissociar o direito da biodiversidade do direito das populações
tradicionais. As sociedades tradicionais se diferenciam sob o ponto de vista cultural.
Reproduzem historicamente seu modo de vida, de forma mais ou menos isolada, com base na
cooperação social e relações próprias com a natureza. Neste sentido, desempenham um papel
fundamental na sustentabilidade ambiental de áreas protegidas.
1
IRIGARAY, C. T. J. H. O pagamento por serviços ecológicos e o emprego de REDD para contenção do
desmatamento na Amazônia. In: Congresso Internacional de Direito Ambiental, 14., 2010, São Paulo. Anais...
p. 65.
346
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
2 ECONOMIA AMBIENTAL
A Economia Ambiental e a Economia Ecológica são correntes metodológicas que
buscam interpretar o problema ambiental e determinar ações que busquem resultados
eficientes, partindo de considerações acerca das características de tais recursos. De acordo
com os fundamentos da Economia Ambiental, os recursos naturais não são finitos, o que faz
com que não existam maiores preocupações acerca da impossibilidade de manutenção do
ritmo das atividades produtivas.
Segundo Roberta Fernanda de Souza, a principal discussão proposta pela Economia
Ambiental se refere ao desenvolvimento de mecanismos que objetivem a alocação eficiente
dos recursos naturais. Para tal corrente teórica, os mecanismos de mercado podem ser
aplicados com vistas à determinação de alocações eficientes dos recursos naturais. 2 A
valoração econômica de ativos ambientais (VEAA) constitui um conjunto de métodos e
técnicas cuja finalidade é estimar valores monetários (preços) para bens ambientais. O valor
econômico de determinado bem corresponde ao valor que o indivíduo está disposto a pagar
por sua existência e por demais benefícios extraídos de sua manutenção e extração. 3
O valor econômico total (VET) dos ativos ambientais, segundo Tietenberg, pode ser
dividido em três componentes, a saber: a) valor de uso (VU) – reflete o uso direto dos
recursos ambientais, como exemplo, temos o valor dos peixes retirados dos rios, a madeira
retirada da floresta, a água extraída para a irrigação, a beleza de uma cena conferida por uma
bela vista; b) valor de opção (VO) – reflete a disposição das pessoas a utilizar o recurso no
futuro, deixando de utilizá-lo no presente; c) valor de não-uso (VNU) ou valor de existência
(VE) – tem-se como o valor derivado da satisfação que as pessoas obtêm pelo simples fato de
que um recurso natural existe e está sendo preservado.4
A Economia Ecológica parte do princípio de que, além de alocar de forma eficiente
os recursos, conforme defendido pela Economia Ambiental, um sistema econômico deveria
tratar da distribuição justa e da escala de utilização desses recursos. A mesma reconhece a
importância da existência dos mercados, mas não lhe atribui a capacidade de refletir todos os
desejos da sociedade. Defende também a idéia de que a não regulação dos mercados seria
2
SOUZA, Roberta Fernanda da Paz de. Economia do meio ambiente: aspectos teóricos da economia ambiental
e da economia ecológica. Disponível em: <http://www.sober.org.br/palestra/9/282.pdf> Acesso em: 26 ago 2010.
3
FARIA, R.C., NOGUEIRA, J.M. Método de valoração contingente: aspectos teóricos e empíricos Apud
SOUZA, Roberta Fernanda da Paz de. Op. Cit.
4
TIETENBERG, T. Environmental and Natural Resource Economics Apud SOUZA, Roberta Fernanda da
Paz de. Op. Cit.
347
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
inadequada para a alocação de bens e serviços providos da natureza.
Uma das grandes inovações da Economia Ecológica é a proposição de que a
economia é um subsistema que faz parte de um ecossistema natural global fechado e que há
ocorrência de trocas de materiais e energia entre o subsistema e o sistema global (que geram
efeitos sobre ambos os componentes do sistema).
A caracterização da economia como um subsistema aberto – onde ocorrem trocas de
materiais e energia entre o subsistema e o sistema global - que faz parte de um ecossistema
natural global fechado, o que refuta a ideia da economia convencional de que a economia
seria o todo e a natureza apenas uma parte dele. De acordo com Roberta de Souza:
Quando se dá esse passo, evidencia-se que qualquer decisão de utilização dos
recursos por esse subsistema acarreta em perda para outra parte do sistema, ou seja,
incorre-se em custos de oportunidade. Assim, o processo decisório quanto a
utilização ou não dos recursos naturais se torna mais complexa, já que a utilização
para um fim pode impedir o uso futuro para outros fins. Tal proposição impõe a ideia
de limites às trocas realizadas entre esse subsistema e o ecossistema global, que é o
responsável pela oferta dos recursos que entram no subsistema econômico (material
e energia) e capaz de absorver (ou não) os resíduos liberados pelo mesmo. A relação
complementar entre o ecossistema e a economia torna-se evidente. Por isso, as
dimensões da economia dependem dos limites ecossistêmicos, revelando a
necessidade de se estabelecer uma escala ótima de produção, que levaria a uma
escala ótima de utilização dos recursos naturais (seja como matéria-prima ou
serviços ecossistêmicos).5
Discutidos, pois, todos estes conceitos de economia ambiental, tem-se em mente que
a conservação dos recursos naturais e, principalmente, das relações existentes entre os
membros que constituem o ecossistema (inclusive o homem) faz com que se torne possível a
convivência harmônica entre os mesmos. Além disso, a redução da geração de externalidades,
que também são causas da redução do bem-estar não-econômico da sociedade, depende da
conscientização sobre reais impactos causados pela má utilização do patrimônio ambiental.
2.1 Economia e Pagamento por serviços ambientais
Parte da doutrina de pesquisadores ambientais define os PSA como PSE, ou seja,
Pagamento por Serviços Ecológicos, em vez de serviços ambientais. Irigaray esclarece-nos
que isso ocorre dada sua conotação mais específica relativamente à natureza dos serviços que
se pretende recompensar. O equívoco que se pretende corrigir, decorre da tradução
convencionada, na América Latina, para a expressão inglesa Payments for ecosystem services,
convertida em pagamento por serviços ambientais, o que amplia demasiadamente seu
conteúdo,
5
afastando-se
da
dimensão
ecológica
implícita
na
expressão
“serviços
SOUZA, Roberta Fernanda da Paz de. Op. Cit..
348
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
6
ecossistêmicos”. Assim, por exemplo, tecnicamente uma floresta plantada com espécies
exóticas, como o eucalipto, presta serviços ambientais, que incluem desde o sequestro de
carbono, como a própria utilização econômica da madeira, todavia, esse serviço não pode ser
considerado como um serviço ecológico, ou mesmo ecossistêmico que mereça ser
compensado financeiramente. Neste artigo será mantida o entendimento da corrente
majoritária, que usa o termo “serviços ambientais”.
A melhor definição do PSA foi dada pelas Nações Unidas, na Avaliação
Ecossistêmica do Milênio: “Serviços ecossistêmicos são os benefícios que as pessoas obtém
dos ecossistemas. Entre eles se incluem serviços de provisões como, por exemplo, alimentos e
água, serviços de regulação como controle de enchentes e de pragas, serviços de suporte como
o ciclo de nutrientes que mantém as condições para a vida na Terra, e serviços culturais como
espirituais, recreativos e benefícios culturais”. 7
Quando se fala de Pagamento por Serviços Ambientais é útil entender o que significa
esse pagamento para quem recebe e para quem paga. O PSA pode ser pensado como uma
maneira de envolver os moradores da floresta no controle dos recursos naturais da floresta.
Nesse caso, os moradores recebem um "pagamento contratual" para um serviço de
sensibilização e fiscalização. Poderiam ser considerados nessa categoria os Agentes
Ambientais Voluntários.
Outra forma de pensar o PSA consiste em compensar a perda da competitividade ou
da remuneração devido o respeito as regras de manejo (custo adicional) ou de proteção
(dentro de Unidades de Conservação). Poderia ser considerado nessa categoria um PSA para
extratores madeireiros que, por lei, devem elaborar um plano de manejo para extrair madeira.
Fala-se então de "compensação". Também se pode pensar no PSA como sendo uma forma de
recompensa aos usuários da floresta que adotem voluntariamente regras ou práticas dedicadas
a manter os serviços ambientais. Poderiam ser considerados nessa categoria os moradores que
decidam implementar sistemas agro-florestais (SAF) ou reflorestamento. Falar-se-ia então de
"gratificação".
Daí infere-se as três linhas de PSA; pagamento, compensação e gratificação, que não
podem ser confundidas. Mas o mais importante é que não há uma modalidade de pagamento
por serviços ambientais, na realidade estamos diante de um instrumento econômico de gestão
6
IRIGARAY, C. T. J. H. Op. Cit.
Ecosystems and Human Well–being. Disponivel em: <www.millenniumassessment.org> Acesso em: 25 ago
2010.
7
349
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
ambiental, ainda em construção, caracterizado por uma generalidade, que pode se desdobrar
em diversos mecanismos, ou sistemas.
Há pesquisadores, como Waage 8, que dizem haver quatro tipos de sistemas de
pagamento por serviços ambientais. São eles: a) sistemas de pagamento público para terras
privadas e proprietários florestais visando manter ou aumentar os serviços do ecossistema; b)
abertura de negociação entre compradores e vendedores sob um regulamento no nível dos
serviços de ecossistemas a serem prestados; c) ofertas privadas auto organizadas em que os
beneficiários individuais de serviços de ecossistema contrata diretamente com os prestadores
desses serviços, e d) eco-rotulagem dos produtos que assegura aos compradores que os
processos de produção envolvidos têm um efeito neutro ou positivo sobre os serviços do
ecossistema.
Logicamente, quem deveria receber o PSA é quem faz o esforço de manter os
serviços ambientais, seja o morador da floresta, uma empresa usuária da floresta, ou o próprio
poder público.
Quem deve pagar está diretamente vinculado a quem recebe os benefícios dos
serviços ambientais. Alguns dos serviços ambientais sendo usufruídos por todos (ex:
estabilização do clima mediante sequestro de carbono), seria lógico que todos contribuam
financeiramente para remunerar os que se esforçam para manter estes serviços.
Alguns exemplos de serviços ambientais objeto de pagamento são: I – Sequestro de
carbono: por exemplo, uma indústria que não consegue reduzir suas emissões de carbono na
atmosfera paga para que produtores rurais possam plantar e manter árvores; II – Proteção da
biodiversidade: por exemplo, uma fundação paga para que comunidades protejam e
recuperem áreas para criar um corredor biológico (ou ecológico); III – Proteção de bacias
hidrográficas: por exemplo, os usuários das rio abaixo pagam para que donos de propriedades
rio acima adotem usos da terra que limitem o desmatamento, a erosão, os riscos de enchente
etc; IV – Beleza cênica: por exemplo, uma empresa de turismo paga para que uma
comunidade local não realize caça numa floresta usada para turismo de observação da vida
silvestre.9
Vejamos agora alguns exemplos de modalidades de PSA aplicadas no país. O ICMSEcológico, que existe no Brasil desde 1988, no qual os estados devem repassar uma parcela
8
Apud IRIGARAY, C. T. J. H. Op. Cit.
Fonte:
Portal
da
Madeira
Manejada.
Disponível
<http://www.florestavivaamazonas.org.br/servicos_ambientais> Acesso em 26 ago 2010.
9
em:
350
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
de 25% do valor do Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços - ICMS aos
municípios; em alguns Estados foi criado mais recentemente o ICMS-ecológico, que permite
que 5% desse repasse seja direcionado segundo critérios ambientais (existência de Unidades
de Conservação, qualidade de sua gestão,...). Nesse esquema, o recurso vem do contribuinte
(pagando o ICMS), e quem recebe esse recurso é o município. Os Créditos por redução
certificada de emissões de gases de efeito estufa (RCE), também chamado de
"Desenvolvimento Limpo" (MDL), permite a uma empresa que emite mais do que a sua quota
(estabelecida no protocolo de Quioto), comprar, via mercado, "crédito de carbono" de outra
empresa ou projeto que consiga emitir menos do que a sua quota ou que sequestra carbono
(MDL). Esse mecanismo não esta destinado a atividades limpas já estabelecidas. 10 Há
também o Programa de Desenvolvimento Socioambiental da Produção Familiar Rural
(PROAMBIENTE), adotado pelo Governo Federal desde 2003, que permite a remuneração de
Serviços Ambientais prestados à sociedade brasileira e internacional, tais como redução do
desmatamento, seqüestro de carbono atmosférico, restabelecimento das funções hidrológicas
dos ecossistemas, conservação, preservação da biodiversidade, conservação dos solos,
redução da inflamabilidade da paisagem, troca de matriz energética e eliminação de
agroquímicos. Ainda na gama de exemplos louváveis a serem citados, Rodrigo Fernandes das
Neves assegura-nos:
O Acre é o primeiro Estado brasileiro que avançou nas discussões sobre o PSA,
prestados por áreas de floresta. Nesse Estado, a Lei Chico Mendes autoriza o
executivo a subsidiar o quilo de borracha natural produzida por seringueiro, de
forma a agregar valor ao seringal nativo. O repasse dos recursos, contudo, não pode
ser feito diretamente aos seringueiros, mas a uma associação ou cooperativa, ao qual
os mesmos devem ser filiados. Este mecanismo foi criado para contornar a falta de
estrutura legal que permita ao poder público transferir fundos públicos, ou captar
recursos do setor privado nacional e internacional, para o pagamento direto por
serviços ambientais.11
Porém existem certos empecilhos aos programas de PSA, tai como a a
impossibilidade legal de se remunerar, de forma direta, aqueles que contribuem para a
conservação dos ecossistemas. Isso faz com que sistemas regulamentares de PSA, no Brasil,
dependam, em grande parte, de uma estratégia política e de uma ação de Estado. A criação de
instrumentos econômicos, que alterem os custos de oportunidade das atividades
conservacionistas, aliada a mecanismos alternativos de repasse dos recursos, como o existente
no Acre, é um exemplo de como, em certas circunstâncias, o PSA pode representar uma forma
direta de aplicação de Gestão e Política Ambiental. O objetivo do PSA não é de substituir as
10
Idem.
NEVES, R. F. Das. PSA e REDD na política ambiental acreana. In: Congresso Internacional de Direito
Ambiental, 14., 2010, São Paulo. Anais... p. 328.
11
351
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
atividades produtivas, mas incentivar práticas conservacionistas nessas atividades. Está
relacionado a um plano de desenvolvimento baseado na conservação, na agregação de renda e
no fornecimento de serviços ambientais.
2.2 Economia e as novas tendências da Redução de Emissões por Desmatamento e
Degradação – REDD
As emissões de carbono decorrentes de desmatamento são as maiores responsáveis
pelas emissões ocorridas no Brasil; caso semelhante ao de outros países que possuem
remanescentes de florestas tropicais. Por conta disso, em 2005, durante a COP 11, realizada
em Montreal, um grupo de oito países liderados pela Costa Rica iniciaram estudos sobre o
REDD (Reduce Emissions for Deforestation and Degradation), ou Redução de Emissões para
o Desmatamento e Degradação.
A ideia é criar valores econômicos para as propriedades de floresta em pé, ou para o
desmatamento evitado, termo que é preferido. Assim como em outros mercados e pagamentos
por serviços ambientais, o poluidor poderá compensar suas emissões comprando créditos de
quem ainda tem o que conservar. Diferentemente do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo
- MDL, que não inclui as florestas naturais remanescentes, REDD vai além de Kyoto quando
propõe compensações financeiras aos proprietários de matas naturais, que se prontificam a
proteger suas florestas por 60 anos, ganhando durante todo este período.
REDD pode vir a ser uma alternativa rentável para reduzir o desmatamento. Pode
tornar-se uma versão do “Mercado Justo” em MDL, que negocia qualquer tipo de sequestro
de carbono, seja por monocultura como o de eucalipto, por exemplo. Diferentemente, REDD
propõe evitar queimadas e, ao manter as florestas, assegurar os serviços ambientais que estas
oferecem. Representa, assim, um “investimento do bem”, ao proteger de maneira integral o
patrimônio natural da Terra.12 Devido a isto, REDD é um mecanismo para evitar a emissão de
carbono, fazendo parte, assim, da Convenção do Clima, e não da Biodiversidade, apesar de
tratar de florestas e sua respectiva conservação, porém é pertinente a ambas. Na verdade, pode
vir a representar um dos mais promissores caminhos para a proteção da biodiversidade.
Embora o REDD, que na versão da ONU pode levar de cinco a dez anos para se
consolidar
enquanto instrumento econômico destinado a reduzir o desmatamento e a
degradação das florestas, esteja ainda em construção, algumas experiências pilotos confirmam
12
PADUA, Suzana. O que é REDD (Redução de emissão por desmatamento e degradação) e o que pode
representar para a conservação de nossas florestas? Disponível em: <http://www.oeco.com.br/suzanapadua/18264-oeco26975> Acesso em: 29 ago 2010.
352
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
o perfil desse mecanismo como uma forma de compensação para os países que reduzirem as
taxas de desmatamento abaixo das linhas de base nacionais históricas. Em 2007, o Plano de
Ação de Bali13, reconheceu a necessidade de uma abordagem ampla para mitigar as mudanças
climáticas. De acordo com esse documento, as ações devem incluir: “Abordagens políticas e
incentivos positivos para questões relacionadas à redução das emissões provenientes de
desmatamento e degradação florestal em países em desenvolvimento”. A Noruega, p. ex.,
criou um fundo, doando 500 milhões de dólares/ano para ser investido no desmatamento
evitado.
Naturalmente que existem inúmeras alternativas para implementar esse mecanismo,
com diversas estratégia para medição e compensação das reduções nas emissões. Uma síntese
dessas discussões estão sumariadas em “O Pequeno Livro Vermelho do REDD” 14 que
consolida o marco referencial para entender as propostas já existentes. O Brasil tem se
posicionado contra o desmatamento evitado ou a criação de um mercado, temendo riscos à
soberania nacional. Prefere acreditar na possibilidade de um fundo que permita ao governo
proteger melhor nossas florestas. Mesmo acreditando que muitos seriam capazes de atitudes
nobres basicamente pelo princípio ético que essas doações representem, permanecer nesta
postura nos coloca com chapéu na mão, pedindo esmola voluntária de quem quiser doar.
Uma proposta desenvolvida por um grupo de ONGs contempla um esquema de
“reduções compensadas” que prevê uma compensação, através de um mercado global de
carbono, para os países que comprovarem uma redução no desmatamento abaixo de uma linha
de base preestabelecida, considerando um nível histórico medido de desmatamento. Nessa
proposta a compensação se efetivaria após a medição da redução das emissões, através de
sensoriamento remoto, levantamento de campo e/ou inventários florestais.
Porém, é necessário que se ressalte uma crítica feita à política de REDD, formulada
por um eclético grupo de ambientalistas, empresários, indígenas e executivos do Banco
Mundial (BIRD). A sigla se refere à Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação,
um mecanismo financeiro que poderá garantir recursos para quem desmatou no passado, mas
vem conseguindo reduzir a taxa de derrubada de florestas – diminuindo, assim, a emissão de
gases-estufa na atmosfera. O problema é que precisa existir recursos que recompensem
também países e comunidades que já estão preservando, fazendo manejo sustentável e até
13
IRIGARAY, C. T. J. H. Op. Cit.
PARKER, C., MITCHELL, A., TRIVEDI, M., MARDAS, N. The Little REDD+ Book. Global Canopy
Foundation 2009. Disponível em português no site <www.littleREDbook.org> Acesso em: 29 ago 2010.
14
353
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
expandindo suas florestas. “Uma das principais críticas que se faz ao REDD é que ele acaba
premiando quem mais desmatou e pode ser injusto com quem mais preservou”, assim
esclarece o pesquisador Roberto Smeraldi. 15
Quem desconfia do REDD enxerga uma perversidade no mecanismo. Ele premiará,
com recursos financeiros, quem conseguir diminuir suas taxas de desmatamento, e assim,
reduzir a emissão de gases-estufa – uma espécie de Bolsa-Desmatamento, segundo seus
críticos mais ácidos. Por esta lógica, Estados campeões de desmatamento, como o Mato
Grosso, que reduzissem a derrubada no futuro, seriam recompensados; mas Estados até agora
campeões na preservação, como o Amazonas, não ganhariam nada. 16
Outros desafios devem ser suplantados para uma correta e equilibrada aplicação dos
princípios do REDD. Em termos gerais, pode-se enumerar os seguintes: 1) a falta de definição
quanto aos direitos de posse e uso de recursos, 2) falta de planejamento do uso da terra, 3)
existência de incentivos financeiros para conversão de florestas, 4) Reforma institucional mais
ampla dos órgãos envolvidos na gestão ambiental, 5) falta de cumprimento das leis florestais.
A esses fatores totalmente pertinentes à realidade brasileira, somam-se os desafios de
governança provenientes de uma abordagem nacional contábil do carbono ao REDD, o que
inclui, 6) a necessidade no desenvolvimento de uma estratégia nacional de REDD, 7) a
distribuição equitativa de benefícios, 8) a criação de uma responsabilização nacional pelo
REDD e uma infraestrutura para lidar com créditos e 9) a definição de linhas de base,
monitoramento e verificação de inventários.17
Desse último ponto exposto adentramos em uma questão de interesse deste trabalho;
a propriedade e suas implicações em políticas ambientais de grande monta. A situação
fundiária na Amazônia brasileira, para se usar como exemplo, é caótica; existem
aproximadamente 235 milhões de hectares de terras devolutas, pendentes de regularização.
No caso do REDD, a falta de títulos, a grilagem, a ocupação ilegal de terras públicas, e criam
um ambiente de confusão e violência no campo, consequentemente aumenta o riscos de
qualquer projeto de REDD.
Uma segurança do direito à terra é indispensável para garantir a permanência das
15
Roberto Smeraldi é diretor da ONG Amigos da Terra – Amazônia brasileira e um dos co-presidentes do
chamado Diálogo das Florestas. Disponível em: <http://www.amigosdaterra.org.br/> Acesso em: 05 set 2010.
16
Portal EcoDebate. Disponível em: <http://www.ecodebate.com.br/2008/10/09/reducao-de-emissoes-pordesmatamento-e-degradacao-redd-incentivos-para-preservacao-sao-falhos-dizem-liderancas/> Acesso em: 01 set
2010.
17
IRIGARAY, C. T. J. H. Op. Cit.
354
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
floresta e do carbono nela sequestrado, o que não significa necessariamente a garantia de um
título, mas também o reconhecimento e proteção das ocupações tradicionais, salvaguardando
assim, os interesses dos grupos vulneráveis. Especialmente no caso dos povos indígenas e
comunidades tradicionais, como quilombolas, cabe observar que, embora tenham seus direitos
resguardados pela Constituição Federal, eles enfrentam problemas com a falta de demarcação
de suas terras, o que gera litígios com os ocupantes do entorno que não hesitam em invadir
essas áreas especialmente protegidas, mesmo quando demarcadas.
3 O PL 5586/2009 E SUAS INOVAÇÕES NOS PROJETOS DE REDUÇÃO DE
EMISSÕES POR DESMATAMENTO E DEGRADAÇÃO
Este Projeto de Lei Federal n. 5586/2009 18, de autoria do Deputado Lupércio Ramos
do PMDB do Amazonas, apresentado na Câmara dos Deputados, em julho de 2009, que
propõe, como novidade neste cenário, a instituição da redução certificada de emissões do
desmatamento e da degradação (RCEDD) como título representativo de uma unidade padrão
de gases de efeito estufa, correspondente a uma tonelada métrica de dióxido de carbono
(CO2) equivalente, em área afetada à preservação florestal.
Este PL foi estruturado para incentivar a conservação de estoques florestais em
projetos locais privados mediante mecanismo muito similar ao regime do Mecanismo de
Desenvolvimento Limpo19 em que uma parte interessada (no caso o projeto limita aos
proprietários privados de terras com florestas) apresenta à autoridade designada pelo Poder
Executivo um projeto de redução de emissões desenvolvido de acordo com metodologia
estabelecida em regulamentação e se habilita ao registro de um volume definido de Carbono
mediante a emissão de RCEDD. As RCEDDs constituem-se em títulos transacionáveis nos
mercados de crédito de carbono
O PL em apreço já tramitou pela Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento
e Desenvolvimento Rural da Câmara dos Deputados tendo sido aprovado na forma do
relatório do deputado Celso Maldner do PMDB de Santa Catarina.
O PL estabelece que podem ser afetadas à preservação para fins de habilitação à
emissão de RCEDD as seguintes áreas florestais: a) de Reserva Particular do Patrimônio
Natural (RPPN) legalmente instituída; b) de reserva legal instituída voluntariamente sobre a
18
Veja
a
íntegra
da
tramitação
do
PL
em:
<http://www.camara.gov.br/internet/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=441407>. Acesso em: 15 set 2010.
19
O MDL – Mecanismo de Desenvolvimento Limpo – é um dos mecanismos de flexibilização criados
pelo Protocolo de Quioto para auxiliar o processo de redução de emissão de gases do efeito estufa (GEE) ou de
captura de carbono.
355
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
vegetação que exceder os percentuais exigidos pela Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965,
que instituiu o Código Florestal20; c) mantidas sob regime de servidão ambiental; e d) de área
de preservação permanente instituída voluntariamente em dimensões excedentes às exigidas
pela Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965, que instituiu o Código Florestal.
Um parecer a cerca do referido PL foi elaborado a pedido do IDPV – Instituto “O
Direito por um Planeta Verde”21, de autoria do seu Diretor de Assuntos parlamentares, André
Lima 22, diz-nos:
O Projeto tem um mérito importante que é o de buscar regulamentar atividade que já
vem sendo desenvolvida principalmente (mas não somente) na Amazônia Brasileira
em projetos privados espalhados e sem qualquer articulação ou integração. A
regulamentação da matéria é fundamental para dar credibilidade ao REDD. Vale
dizer que hoje mais de 50% das emissões brasileira de CO2 são oriundas de
desmatamento e degradação florestal 4 de sorte que para que o Brasil alcance as
metas propostas no artigo 12 da Lei Federal nº 12.187/0923 que trata da Política
Nacional de Mudanças Climáticas será absolutamente necessário que o governo
federal defina em conjunto com os Estados da federação uma estratégia ousada de
redução de desmatamentos e consequentemente das emissões de CO2 derivadas.24
O que este projeto visa é que iniciativas como as políticas públicas implantadas pelo
Estado do Amazonas, infra, não sejam atos isolados neste país. O projeto de REDD deve ser
um dos instrumentos que compõem uma estratégia nacional para alcance das metas
estabelecidas na Lei Federal 12.187/09, que é de redução entre 36,1 e 38,9%% das emissões
projetadas até 2020. Sem uma estratégia nacional básica não faz sentido regulamentar REDD
por lei e apenas para permitir que projetos locais desarticulados possam ocorrer beneficiando
muito poucos atores sociais relevantes no contexto da conservação das florestas e do combate
aos desmatamentos e queimadas ilegais.
Sobre isso, o parecer esclarece-nos: “somente haverá compensação financeira para
REDD se houver reduções de desmatamento na escala nacional, ou seja, de nada adianta um
ou vários bons projetos locais se a conta (taxa) nacional de desmatamento fechar no negativo
20
Um novo Código Florestal está em processo de tramitação, precisando ainda ser votado no Congresso
Nacional.
21
Disponivel em: <www.planetaverde.org/clima/documentos>. Acesso em: 15 set 2010.
22
André Lima (OAB-DF 17878) é Coordenador de Políticas Públicas do Instituto de Pesquisa Ambiental da
Amazônia.
23
“Art. 12. Para alcançar os objetivos da PNMC, o País adotará, como compromisso nacional voluntário, ações
de mitigação das emissões de gases de efeito estufa, com vistas em reduzir entre 36,1% (trinta e seis inteiros e
um décimo por cento) e 38,9% (trinta e oito inteiros e nove décimos por cento) suas emissões projetadas até
2020. Parágrafo único. A projeção das emissões para 2020 assim como o detalhamento das ações para alcançar o
objetivo expresso no caput serão dispostos por decreto, tendo por base o segundo Inventário Brasileiro de
Emissões e Remoções Antrópicas de Gases de Efeito Estufa não Controlados pelo Protocolo de Montreal, a ser
concluído em 2010.
24
Parecer sobre o Projeto de Lei Federal n. 5586/2009 que trata dos Projetos de Redução de Emissão por
Desmatamento e Degradação. Disponível em: <www.planetaverde.org.br>. Acesso em: 15 set 2010.
356
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
(se houver aumento de desmatamento em relação ao nível de referência adotado)”.25
Há um outro conceito de interesse, tanto para o momento em discussão, quanto para
o direito ambiental em si; a governança ambiental. Governança 26 é um termo-chave na
implementação de políticas ambientais e de desenvolvimento. Uma boa governança seria
capaz de aumentar a eficiência e a legitimidade na elaboração e na operação dessas políticas.
Porém, muitos projetos calcados na tentativa de instituir e se valer de condições ideais de
governança têm apresentado impasses estruturais. Por outro lado, mesmo diante de evidentes
limitações, os critérios considerados necessários para a boa governança se multiplicam. Essa
dinâmica, que amplia o fosso entre o discurso e a prática no tratamento da questão ambiental,
vem se reproduzindo e ampliando ao longo do tempo.27
Sem investimento real em governança ambiental (pelos estados e pelo governo
federal) e sem respaldo à legislação florestal federal não haverá segurança mínima aos
potenciais investidores, nacionais ou estrangeiros, em ações de REDD. As mudanças no
código florestal propostas pela bancada ruralista no Congresso e a omissão do governo
federal em relação às demandas das carreiras ambientais e dos governos estaduais em relação
aos seus órgãos de meio ambiente constituem hoje, ao lado da crise econômica internacional e
da falta de regulação sobre o tema na convenção de Clima, o maior obstáculo à captação de
recursos em escala no mercado internacional de carbono florestal. Se é verdade que é preciso
investir em mecanismos econômicos para valorizar a floresta em pé como forma de induzir a
conservação de florestas e de inibir o desmatamento, é verdade também que é preciso
fortalecer a governança florestal.
O Parecer guia-nos por este mesmo caminho, a saber:
O papel dos estados da federação é chave, pois de acordo com a Lei de Gestão de
Florestas Públicas (Lei Federal 11.248/06) são os Estados os principais responsáveis
pela fiscalização, monitoramento e o licenciamento de desmatamento, manejo
florestal e transporte de produtos florestais. Se a gestão florestal está centrada nos
estados eles serão determinantes na governança ambiental sobre o tema e no desenho
da estratégia nacional de REDD. Não é razoável deixar somente as ações de controle
25
Idem.
Governança consiste em: distribuição de poder entre instituições de governo; a legitimidade e autoridade
dessas instituições; as regras e normas que determinam quem detém poder e como são tomadas as decisões sobre
o exercício da autoridade; relações de responsabilização entre representantes, cidadãos e agências do Estado;
habilidade do governo em fazer políticas, gerir os assuntos administrativos e fiscais do Estado, e prover bens e
serviços; e impacto das instituições e políticas sobre o bem-estar público. Quando o conceito de governança é
estendido à esfera do desenvolvimento sustentável e das políticas ambientais, emprega-se a expressão
governança ambiental. Trata-se, na verdade, apenas de uma delimitação temática do conceito.
27
FONSECA, Igor Ferraz da; BURSZTYN, Marcel. A banalização da sustentabilidade: reflexões sobre
governança ambiental em escala local. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/se/v24n1/a03v24n1.pdf>.
Acesso em: 16 set 2010.
26
357
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
sob a responsabilidade dos Estados sem que eles possam complementar sua
estratégia com mecanismos econômicos. Além disso, cada estado brasileiro, mesmo
dentre das mesmas regiões ou Biomas como é o caso da Amazônia, possui realidades
socioeconômicas, geográficas, ecológicas e culturais distintas, sendo necessário que
a estratégia de REDD seja adaptada a realidade sub-nacional. É o caso, por exemplo,
das diferenças entre os Estados de Mato Grosso e Amazonas, em que o MT foi
responsável por mais de 50% de todo desmatamento nos últimos 10 anos e o
Amazonas é hoje responsável sozinho por 50% de toda floresta. As dinâmicas de
ocupação, os vetores de desmatamento, as densidades demográficas, as realidades
fundiárias, as categorias sociais que ocupam os territórios a serem usados de forma
sustentável ou preservados também se diferenciam muito de um estado para o outro
mesmo dentro da Amazônia Brasileira.28
Percebamos como o REDD é uma política de peso, e que precisa urgentemente da
regulamentação, haja vista ser um mecanismo econômico que atua em prol da floresta e em
prol das populações tradicionais. Porém, um dos principais temores referentes ao REDD é o
de que ao compensar os atores que detém florestas o mecanismo pode estimular a especulação
e a grilagem de terras na Amazônia inclusive em detrimento de populações tradicionais e
povos indígenas cujos direitos fundiários não tenham ainda sido reconhecidos pelo Estado. O
Brasil, nesse ponto, é superior, pois já tem salvaguardado o direito dessas populações
assegurados; tema que será melhor debatido no item seguinte.
3 O TRATAMENTO DADO ÀS POPULAÇÕES TRADICIONAIS, E AS POLÍTICAS
AMBIENTAIS DO ESTADO DO AMAZONAS
Primeiramente é útil conhecermos um pouco deste gigante bioma amazônico, para
que só então partamos para o entendimento de seus povos e suas soluções apresentadas.
Em dados, a Amazônia ocupa cerca de 8 milhões de Km², correspondentes a quase
65% da área do Brasil; possui o maior rio do mundo; e, o mais importante para este trabalho,
cerca de 48 bilhões de tCO (Toneladas de Monóxido de Carbono) estocadas, o que equivale a
5 anos de emissões globais de Gases do Efeito Estufa, os GEEs. A biodiversidade gera outros
dados espantosos: 1/3 de todas as espécies do planeta; 40000 espécies de plantas superiores
catalogadas; 2500 espécies de peixes; 1000 de aves; e um detalhe interessante, em um única
árvore da Amazônia foram identificadas 95 espécies de formigas – 10 a menos do que existem
na Alemanha toda.29
Os serviços ambientais proporcionados pela Floresta Amazônica vão desde a
manutenção de chuvas na América Latina, passando pela manutenção da maior biodiversidade
28
Parecer sobre o Projeto de Lei Federal n. 5586/2009.
Dados colhidos no sítio do Portal Amazônia, e na Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento
Sustentável
do
Estado
do
Amazonas.
Disponível
em:
<http://portalamazonia.globo.com/pscript/amazoniadeaaz/artigoAZ.php?idAz=134>,
<http://www.geomatica.ita.br/purus/wmeebhge/apresentacoes/WMEEBHGE_SDS_CECLIMA.pdf> Acesso em:
15 set 2010.
29
358
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
do mundo, até a oferta de remédios naturais, alimentos, materiais de construção e utensílios
domésticos para as populações da floresta, cerca de 150 mil famílias, e aos municípios
vizinhos.
O Estado do Amazonas e seus povos tradicionais são os protagonistas dessa história.
É o maior estado brasileiro, e possui 39% da Floresta Amazônica; 98% da cobertura florestal
ainda se encontra preservada e tem cerca de 64 etnias indígenas, segundo dados da Secretaria
de Meio Ambiente amazonense. Mas vale ressaltar que o termo populações tradicionais não se
aplica somente aos povos indígenas, mas sim “à existência de populações capazes de utilizar e
ao mesmo tempo conservar os recursos do meio ambiente em que vivem”, segundo definição
do IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais. 30
A ideia de Populações Tradicionais está essencialmente ligada à preservação de
valores, de tradições, de cultura. As populações tradicionais são, portanto, dinâmicas, estão
em constante mudança, em sintonia com as mudanças que ocorrem na região e que chegam
até elas. Estas mudanças não descaracterizam o tradicional, desde que sejam preservados os
principais valores que fazem dela uma população conservadora do meio ambiente.
Dois aspectos importantes devem ser levados em conta por quem trabalha com
populações tradicionais: primeiro, fazer com que elas não se sintam excluídas,
marginalizadas, pelo fato de terem um sistema econômico e de vida diferentes. Segundo, que
as pessoas passem a incorporar o fato de serem populações tradicionais como uma opção,
como uma forma positiva de vida. O dinamismo destas populações deve levar a tal
incorporação, como também a assimilar o que de positivo possam ter outro grupos humanos,
sem perder os valores que fazem a essência da sua tradição.
Para a política ambiental amazonense, um tripé de valores foi feito: a) a floresta vale
mais em pé do que derrubada; b) as populações locais são os verdadeiros guardiões da terra; e
c) pobreza e ineficiência na educação são os grandes vetores do desmatamento. A partir daí
foi feita uma série de incentivos visando a valoração dos produtos e serviços ambientais, e
seus respectivos produtores – o povo e a mata – e os principais são: isenção de ICMS sobre
produtos florestais não madeireiros e o financiamento para projetos ambientais de pequena
escala. Houve também, como parte dessa valoração, um aumento considerado do número de
áreas protegidas no Estado, que em 2002 tinham apenas 12 áreas protegidas, e em 2009 já
eram computadas 41 áreas, totalizando aproximadamente 83 milhões de hectares, cerca 51%
30
Disponível em: <http://www.ibama.gov.br/resex/pop.htm> Acesso em: 5 set 2010.
359
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
31
do estado. Foram criados também 3 órgãos estaduais; o CEUC – Centro Estadual de
Unidades de Conservação; o CECLIMA – Centro Estadual de Mudanças Climáticas32; e a
Fundação Amazônia Sustentável, responsável pelo programa Bolsa Floresta.
O Programa Bolsa Floresta é estruturado da seguinte maneira: os serviços ambientais
responsáveis pelo clima, biodiversidade e carbono, supracitados, geram mecanismos
financeiros que dão origem aos benefícios, estes, por sua vez, combatem a pobreza e garatem
a manutenção dos serviços ambientais, contribuindo, assim, para a redução de emissões por
desmatamento e degradação. Cada família inscrita no programa recebe a quantia de R$
50,00/mês, e cada comunidade recebe em torno de R$ 4000/ano. Em julho de 2006 foi criado
o programa de REDD da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Juma, atingindo 322
família de 22 comunidades; visando a validação de 3,6 bilhões de tCO no período entre 2006
e 2016, de acordo com os padrões da CCBA - Climate, Community & Biodiversity (ou Clima,
Comunidade e Biodiversidade)33; com ele, as famílias que vivem na RDS Juma e ajudem a
conservar o meio ambiente receberão R$ 60 por mês.
Uma outra iniciativa interessante que foi adotada pelo Estado do Amazonas é o
Programa Zona Franca Verde (ZFV) de desenvolvimento sustentável, que foi iniciado em
2003, com geração de emprego e renda aliado à conservação da biodiversidade. Representa o
compromisso do Estado com a melhoria da qualidade de vida da população do interior e, ao
mesmo tempo, com a proteção ao extraordinário patrimônio natural do Amazonas: as
florestas, rios, lagos, igarapés e campos naturais. Promove, entre outros, o manejo florestal
(madeireiro e não madeireiro) sustentável, assim como a criação e viabilização de Unidades
de Conservação.
Assim como já explicitado anteriormente, há gargalos jurídicos quem impedem a
implementação de projetos e programas de PSA e REDD amazônicos, tais como a legalização
fundiária, que é o grande problema da Amazônia; o estabelecimento de acordos legais entre as
partes interessadas (pagador e recebedor de benefícios financeiros); e necessidade de
documentação civil por parte dos contratuantes, pois que poucos comunitários tradicionais
possuem tais documentos em dia.
Irigaray lembra-nos:
É certo que a sustentabilidade ambiental e social das políticas para reduzir o
31
Dados apresentados pelo CEUC – Centro Estadual de Unidades de Conservação do Estado do Amazonas.
Lei Estadual n. 3.244 de abril de 2008, do Estado do Amazonas.
33
Disponível em: <http://www.socioambiental.org/uc/4774/noticia/55338> Acesso em: 5 set 2010.
32
360
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
desmatamento depende do envolvimento de todas as partes interessadas,
especialmente daqueles que vivem na floresta ou em seu entorno. A participação
pode contribuir significativamente para garantir que o potencial de co-benefício de
REDD (tais como a redução da pobreza, a proteção dos direitos humanos, a
conservação da biodiversidade, a prestação de outros serviços ecológicos) seja
maximizado e os potenciais impactos negativos evitados ou minimizados.
No caso da participação pública há de se reconhecer que esta constitui um dos
princípios fundamentais do direito ambiental, consagrados internacionalmente, e
fortemente amparada no ordenamento nacional.34
Vejamos agora, de acordo com fontes da Secretaria de Meio Ambiente e
Desenvolvimento Sustentável do Estado do Amazonas – SDS, as cinco propostas de inclusão
dos serviços ambientais e REDD no plano estadual. 1 – Estabelecer metas de redução de
desmatamento compartilhadas com o governo federal e estados amazônicos, considerando
competências constitucionais e legais; 2 – Estabelecer valor econômico para as florestas com
base no pacto federativo (pagamento por serviços ambientais, mercado de carbono e
compensações florestais); 3 – Estabelecer estratégias de captação de recursos compensatórios
pela conservação das florestas, redução de emissões por desmatamento e degradação florestal,
em cooperação com os estados na gestão territorial e florestal; 4 – Criar um Fundo ou discutir
critérios de repartição de benefícios junto ao Fundo Amazônia em áreas de alta e baixa
pressão de desmatamento; e 5 – Os instrumentos legais e financeiros devem reconhecer e
garantir os direitos dos povos indígenas, comunidades locais, populações tradicionais,
agricultores familiares, produtores rurais, florestais, empresariais e agrícolas, entre outros. 35 A
partir daí foram criados o Plano Estadual de Prevenção e Combate ao Desmatamento e o
Plano de Ação Climática, todos vinculados ao CECLIMA/SDS.
O primeiro e principal objetivo fora a implementação do Projeto de Pagamento por
Serviços Ambientais no Mosaico de Unidades de Conservação do Apuí – AM, que incluirá, a
partir do segundo semestre de 2010, promover educação ambiental e capacitações sobre
mudanças climáticas e serviços ambientais aos atores locais do projeto; desenvolver estudos
técnicos sobre serviços ambientais, PSA e Redução de Emissões por Desmatamento e
Degradação florestal na área do projeto; e criar mecanismos financeiros, tal qual outros
projetos assinados pela SDS, para garantir a sustentabilidade das famílias e comunidades da
área.36
No que se refere à segurança quanto a propriedade do imóvel, ou mesmo do carbono
nele existente, a situação da Amazônia é dramática e a violência no campo, o trabalho
34
IRIGARAY, C. T. J. H. Op. Cit.
Disponível em: <www.ceclima.sds.am.gov.br> Acesso em: 06 set 2010.
36
Disponível em: <www.ceclima.sds.am.gov.br> Acesso em: 06 set 2010.
35
361
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
escravo, a invasão de terras públicas e os crimes ambientais revelam a ausência do Estado,
que dificilmente será contornada apenas com a outorga de títulos de propriedade. As políticas
públicas implementadas para enfrentar esse problema contemplam a execução de um amplo
programa de regularização fundiária, fundamentado na controvertida Lei 11.952, de 25 de
junho de 2009.37 A iniciativa, que recebeu do Greenpeace a pecha de “Programa Nacional de
Aceleração da Grilagem”, pois premia os latifundiários que desmataram ilegalmente terras
públicas, ignora aspectos ambientais relevantes de um bioma que constitui patrimônio
nacional. Embora não exista na mencionada Lei qualquer referencia à regra constitucional
prevista no art. 225 § 5º38, “é certo que nenhuma alienação de terras públicas na Amazônia
poderá ser considerada juridicamente perfeita, sem a prévia manifestação dos órgão
ambientais relativamente à inexistencia de interesse na conservação da área alienada.” 39
No que se refere à falta de planejamento do uso da terra, a questão passa não apenas
pela aprovação de um zoneamento ambiental na região, mas sobretudo na utilização
do zoneamento para o licenciamento das propriedades rurais na Amazônia que
considere não apenas a existência de reserva legal e APPs, mas que condicione e
utilização econômica do imóvel com respeito à variável ambiental. Todos esses
aspectos estão associados à fragilidade e ineficiência das políticas ambientais
existentes para conter o desmatamento na Amazônia; se por um lado, as taxas de
desmatamento tiveram uma redução significativa nos últimos anos, não existe
nenhuma garantia de que essa tendencia persistirá se a conjuntura econômica for
favorável ao agronegócio. 40
Estes são os bons, e os maus, exemplos do Estado do Amazonas, que aqui foram
mostrados, porém ensejam ainda muita discussão. É certo que muitas dessas iniciativas
deveriam ser levadas a outras partes do país, e do mundo.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não há um conceito jurídico claro, tampouco uma política oficial para valorização
dos serviços ambientais compatível com a relevância que o tema tem para o desenvolvimento
sustentável de um país que possui mais de 50% de seu território coberto por florestas,
cerrados, caatinga, pantanal, pampas, mangues, dentre outros ecossistemas altamente
relevantes para os processos ecológicos essenciais à manutenção da qualidade de vida
humana.
37
Dispõe sobre a regularização fundiária das ocupações incidentes em terras situadas em áreas da União, no
âmbito da Amazônia Legal; altera as Leis n. 8.666 de 21 de junho de 1993, e 6.015, de 31 de dezembro de 1973.
38
O referido parágrafo 5° tem a seguinte redação: § 5º - São indisponíveis as terras devolutas ou arrecadadas
pelos Estados, por ações discriminatórias, necessárias à proteção dos ecossistemas naturais.
39
IRIGARAY, C. T. J. H, VIEIRA, Giselle F. e SILVA, Lygia M. Rosa. Regularização Fundiária na
Amazônia: a lei e os limites. Revista de Estudos Sócio-Jurídico-Ambientais Amazônia Legal, n. 5. Cuiabá:
EditUFMT, 2009.
40
Idem.
362
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Após os avanços mostrados pelo Estado do Amazonas, festejamos a diminuição nos
índices de desmatamento na Amazônia que alcançaram o patamar mais baixo das últimas
duas décadas, todavia o desmamento segue um ritmo ainda inaceitável e, se não contido, pode
levar à destruição da floresta num curto espaço de tempo. Irigaray assevera-nos que “por isso
mesmo, o pagamento por esses serviços ecológicos prestados constitui importante alternativa
jurídico-política para conter o desmatamento e a degradação desse patrimônio natural e
adicionalmente melhorar a condição de vida da população local” 41. Para as populações
tradicionais, que vivem da floresta, é um reconhecimento da função ecológica que
desenvolvem e um incentivo para que possam permanecer vivendo de atividades extrativistas
não impactantes, porém tendo algum retorno para a própria sobrevivência.
Os estados brasileiros já deviam estar com suas legislações atualizadas, e os
mecanismos de PSA ativos, como pretende o PL n. 5586/2009. A prova de que todos devem
estar trabalhando é que o bioma da Caatinga está sendo seriamente ameaçado pela
desertificação, e a situação nesta região do nordeste do país, que já sofre com a falta de
chuvas, pode se agravar ainda mais.
Já foi citado neste trabalho, e vale a pena o ressalte, de tudo aquilo que têm impedido
o manejo dos mecanismos de PSA e REDD, entre eles: a grilagem de terras públicas, a
violência e o trabalho escravo na fronteira agrícola, os conflitos legislativos, a reduzida
implementação da normas ambientais, a deficiência no controle e fiscalização das atividades
ilegais e os incentivos econômicos à conversão da floresta para usos alternativos do solo
(pecuária e agricultura). Reverter esse quadro pressupõe, portanto, não apenas medidas de
comando-e-controle42 e ajustes do gerenciamento ambiental no setor florestal, mas também
medidas econômicas que possibilitem o realinhamento de incentivos econômicos em favor da
conservação dos ativos florestais e a estruturação de uma economia de base florestal com o
fomento de meios de subsistência alternativos atraentes para as populações tradicionais.
REFERÊNCIAS
IRIGARAY, C. T. J. H. O pagamento por serviços ecológicos e o emprego de REDD para
contenção do desmatamento na Amazônia. In: Congresso Internacional de Direito
Ambiental, 14., 2010, São Paulo. Anais... São Paulo: Imprensa Oficial, 2010. p. 65-88.
NEVES, R. F. Das. PSA e REDD na política ambiental acreana. In: Congresso Internacional
de Direito Ambiental, 14., 2010, São Paulo. Anais... São Paulo: Imprensa Oficial, 2010. p.
325-342.
41
42
IRIGARAY, C. T. J. H. Op. Cit.
Termo usado por Irigaray.
363
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
IRIGARAY, C. T. J. H, VIEIRA, Giselle F. e SILVA, Lygia M. Rosa. Regularização
Fundiária na Amazônia: a lei e os limites. Revista de Estudos Sócio-Jurídico-Ambientais
Amazônia Legal, n. 5. Cuiabá: EditUFMT, 2009.
SOUZA, Roberta Fernanda da Paz de. Economia do meio ambiente: aspectos teóricos da
economia
ambiental
e
da
economia
ecológica.
Disponível
em:
<http://www.sober.org.br/palestra/9/282.pdf> Acesso em: 26 ago 2010.
_________________. Ecosystems and Human Well–being.
<www.millenniumassessment.org> Acesso em: 25 ago 2010.
Disponivel
em:
PADUA, Suzana. O que é REDD (Redução de emissão por desmatamento e degradação)
e o que pode representar para a conservação de nossas florestas? Disponível em:
<http://www.oeco.com.br/suzana-padua/18264-oeco26975> Acesso em: 29 ago 2010.
PARKER, C., MITCHELL, A., TRIVEDI, M., MARDAS, N. The Little REDD+ Book.
Global Canopy Foundation 2009. Disponível em português no site <www.littleREDbook.org>
Acesso em: 29 ago 2010.
FONSECA, Igor Ferraz da; BURSZTYN, Marcel. A banalização da sustentabilidade:
reflexões sobre governança ambiental em escala local. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/se/v24n1/a03v24n1.pdf>. Acesso em: 16 set 2010.
LIMA, André. Parecer sobre Projeto de Lei Federal nº 5586/20091 que trata dos Projetos de
Redução de Emissões por Desmatamento e DegradaçãoFlorestal (Redd). Disponivel em:
<www.planetaverde.org.br/clima/documentos> Acesso em: 15 set 2010.
364
OS CONFLITOS RESULTANTES DO USO DA ÁGUA DAS FONTES
SUBTERRÂNEAS PARA ABASTECIMENTO HUMANO: ESTUDO DE CASO DA
FONTE GUARIBAS EM CRATO-CE
Márcia Maria dos Santos Souza 1
RESUMO: O presente artigo tem por objeto apresentar as dificuldades enfrentadas quanto ao
uso de água subterrânea, Fonte Guaribas, para fins de abastecimento humano, abordando
aspectos legais da dominialidade à luz da legislação vigente na época imperial e da
Constituição Federal, abordando ainda aspectos ambientais da intervenção antrópica na área
de estudo. Após relato sobre os problemas vivenciados pela comunidade e a atuação das
instituições públicas, busca-se verificar a efetividade das ações dos poderes constituídos e
apresentar alternativa ao uso sustentável do referido corpo hídrico.
PALAVRAS-CHAVE: Acesso, Água subterrânea, Dominialidade, Direitos, Conflitos.
ABSTRACT: This article intends to present the difficulties encountered in the use of
groundwater Source Guaribas, for purposes of drinking, discussing legal aspects of dominion
in the light of current legislation in the imperial era and of the Federal Constitution, also
addressing the environmental aspects of intervention anthropogenic in the study area. After
reporting on the problems experienced by the community and the performance of public
institutions, we seek to verify the effectiveness of the actions of the constituted authorities and
provide sustainable alternative to the of that water resource.
KEY-WORDS: Access, Groundwater, Dominion, Rights, Conflicts.
1 INTRODUÇÃO
A gestão dos recursos hídricos tem sido um tema palpitante numa época em que a
sociedade passa a ter consciência da escassez desses recursos e ao mesmo tempo caminha
para a compreensão de que, sendo a água um bem integrante do meio ambiente, o seu acesso
passa a ser direito das presentes e também das futuras gerações.
1
Advogada, assessora jurídica do Conselho de Políticas e Gestão do Meio Ambiente, especialista em Direitos
Humanos Fundamentais pela URCA, especialista em Gestão Integrada de Recursos Hídricos em Bacias
Hidrográficas pela UFC.
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Nesse sentido o acesso a água em especial a água subterrânea em condições que
viabilizem a satisfação das necessidades prementes do ser humano, é estudada como um
direito humano fundamental.
A despeito do tema sentimo-nos instigados a pesquisá-lo, sobretudo pela situação
peculiar existente na Região do Cariri, em especial no Município de Crato, visto que os
costumes alicerçaram a prática da venda das águas das fontes situadas em terrenos de
particulares, através do sistema de mediação denominado “telhas”, o que fez gerar o
sentimento social de apropriação dos recursos hídricos e a concretização por ato formal desse
sentimento nos cartórios locais.
Os antecedentes históricos dessa prática remontam ao ano de 1854 quando foram
editadas as resoluções provinciais n.º 640 e 645, ambas de 17 de janeiro de 1854.
Considerando que a Constituição de 1988 e a Lei de Política Nacional dos Recursos
Hídricos datada de 1997 estabelecem um novo sistema de gerenciamento dos recursos
hídricos, onde a apropriação pelo particular é vedada e ao Estado é conferido o poder/dever de
gerenciar esses recursos para o bem da coletividade, procuramos confrontar essa nova ordem
constitucional e legal ao Código das Águas de 1934 que previa e possibilitava a apropriação,
inclusive das águas das fontes, pelo particular.
Após a análise dos instrumentos legais buscamos identificar se hodiernamente na
região do Cariri, mais precisamente no município de Crato, ainda subsistem conflitos pelo uso
das águas das fontes e então nos deparamos com o caso da comunidade residente no Sítio
Guaribas.
Antes, porém, de discorrer sobre o caso em si direcionamos o trabalho ao estudo da
Outorga, visto que, tal instrumento de gestão tem por escopo autorizar o uso dos recursos
hídricos nos casos previstos em lei, dentre eles a captação de água subterrânea para fins de
abastecimento humano.
Analisamos a legislação existente no Estado do Ceará, cuja política estadual de
recursos hídricos foi instituída em 1992, ou seja, antes mesmo que o Governo Federal, através
do poder competente, editasse a Lei n.º 9.433/97, Lei que instituiu a Política Nacional dos
Recursos Hídricos.
Compreendidos os aspectos legais e conceituais da outorga, voltamo-nos à análise
do caso concreto, que dizia respeito justamente ao embate travado no Sítio Guaribas pelo uso
da água da fonte através do sistema de captação de água para fins domésticos.
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A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Esse é o ponto alto do trabalho onde procuramos discorrer sobre as tentativas de
resolução do problema extrajudicialmente, inclusive com a instigação do representante do
Ministério Público Estadual, o qual tem limitado sua interferência no caso, no âmbito
processual, ou seja, nos limites em que a demanda foi proposta em juízo.
Buscamos como método de pesquisa fazer levantamento bibliográfico acerca do
tema e no que pertine ao caso concreto entrevistar os dirigentes da Associação Prol
Desenvolvimento Guaribas, a advogada que acompanha o processo na via judicial e ao
mesmo tempo colher dados dentro da comunidade através do método da observação sobre as
formas de consecução de água para as necessidades básicas.
Visando ainda conhecer a fonte Guaribas fizemos pesquisa junto à Companhia de
Gestão dos Recursos Hídricos – COGERH, para coletar dados referente a vazão e aspectos
atinentes ao pedido de outorga formulado pela Associação Guaribas.
Da mesma forma fizemos trabalho de campo no Sítio Guaribas com a finalidade
específica de conhecer a fonte, medir sua atual vazão e refazer a identificação geográfica
usando o aparelho de GPS, todavia, quanto a este último intento não foi possível, visto que o
aparelho apresentou defeito. Nesse caso usamos os dados apresentados pela Secretaria de
Recursos Hídricos do Estado no instrumento de concessão de outorga.
A visita à fonte foi também importante para alertar neste trabalho a situação de
degradação ambiental ocorrida naquele espaço fundamental à manutenção do aqüífero. Sem
alternativas para executar as atividades domésticas em suas residências, já que não têm água
encanada, as mulheres da comunidade usam diretamente a água da fonte para lavar roupas e
tomar banho.
Verificamos que a área que é instituída por lei como Área de Preservação
Permanente tem sido usada de forma insustentável e as marcas deixadas pelos visitantes e
usuários é evidente, como os lixos inorgânicos espalhados no entorno da fonte.
Essa situação só reforça a necessidade de uma ação urgente dos poderes competentes
no que tange ao gerenciamento das águas da fonte guaribas, posto que, a demanda judicial
interposta pela comunidade em 2004 até hoje tramita na justiça sem qualquer sinal de que o
processo vai chegar ao fim com uma solução que assegure o acesso a água através do sistema
de abastecimento nas residências e ao mesmo tempo possibilite o equilíbrio do ecossistema.
367
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
1.1 Localização geográfica
A Fonte Guaribas, objeto do presente estudo, está localizada na Chapada do Araripe,
mais precisamente no Município de Crato-CE localizado na região Sul do Ceará e faz parte da
Bacia do Rio Salgado. A localização geográfica foi feita com base nos dados fornecidos pela
Secretaria dos Recursos Hídricos constantes no instrumento de Outorga e consiste: LAT
9201714, LOG 9201714.
A vazão, conforme dados constantes no Relatório Golder Pivot datado de
05/12/2003, é de 2m3/h.
1.2 Aspectos acerca da área de preservação da fonte Guaribas
Aos oito de fevereiro de 2008 fizemos uma pesquisa de campo no local da fonte com os
técnicos da COGERH2 fazendo a medição baseada no método volumétrico, o que resultou
numa vazão de 2,5m3/h. É importante ressaltar que este período da pesquisa ocorreu numa
época em que as chuvas têm sido constantes na região, o que pode ter aumentado o volume da
vazão em razão da maior recarga do aqüífero.
Observamos no decorrer da visita à fonte Guaribas a realização de atividades
corriqueiras como lavagem de roupa e banho, em área tida por lei como de Preservação
Permanente. Da mesma forma a entrada e a saída constante dos usuários na APP deixa as
marcas firmadas por restos de resíduos, lixos, inorgânicos, tais como restos de roupas,
plásticos, papel e outros.
Indagamos às mulheres ali presentes se não havia outra alternativa para lavar as várias
roupas estendidas na vegetação que correspondia à mata ciliar, entretanto, ouvimos a resposta
de que nenhuma delas possuía água encanada em casa e que a distância daquela fonte para as
suas residências, obrigava-as a trazer o considerável volume de roupas para ser lavada ali
mesmo.
Indagamos ainda sobre qual a água usada para elas e suas famílias beberem e todas
disseram que era daquela fonte.
Esse contra-senso em relação a intervenção em area de preservação permanente nos
instiga a discorrer sobre as cautelas que devem ser tomadas em relação às áreas de
preservação permanente, Calheiros 3 discorre:
2
COGERH é a Companhia de Gestão de Recursos Hídricos do Ceará criada por meio da Lei Estadual n.º 12.217
de 18 de novembro de 1993.
3
CALHEIROS, Rinaldo de Oliveira et al. Preservação e Recuperação das Nascentes. Piracicaba: Comitê das
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A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
A área adjacente à nascente (APP) deve ser toda cerca a fim de evitar a penetração
de animais, homens, veículos, etc. Todas as medidas devem ser tomadas para
favorecer seu isolamento, tais como proibir a pesca e a caça, evitando-se a
contaminação do terreno ou diretamente da água por indivíduos inescrupulosos.
Quando da realização de alguma obra ou serviço temporário, deve-se construí
fossas secas a 30m, no mínimo, mantendo-se uma vigilância constante para não
haver poluição da área circundante à nascente.
É curioso pensarmos na aplicação da legislação ambiental acerca da proteção aos
recursos hídricos, bem como na efetivação do princípio do Desenvolvimento Sustentável
propalado pela Conferência das Nações Unidas ocorrida no Rio de Janeiro em 1992 quando a
comunidade não dispõe dos meios necessários para realizar suas atividades diárias no âmbito
do lar.
É importante lembrar que o acesso à água potável é também pressuposto ao
exercício da dignidade humana e que a preocupação com a proteção e defesa do meio
ambiente não está dissociada da sadia qualidade de vida a que o ser humano faz jus.
1.3 Conflito pelo uso da água
A escassez dos recursos hídricos ou a ineficiência do seu gerenciamento aliada a
disparidade social, reflexo do injusto sistema econômico e social que norteia as relações
hodiernas, podem gerar conflitos pelo uso da água ou em decorrência deste, comprometer o
sagrado direito de acesso ao referido recurso, comprometendo assim a efetivação do princípio
da dignidade da pessoa humana, cerne e fundamento do estado democrático de Direito.
Em âmbito nacional se pode citar os reiterados confrontos existentes entre os
movimentos oriundos da sociedade civil e os órgãos estatais nos embates relacionados às
construções de barragens, para fins de aproveitamento energético do potencial hídrico. Nesse
sentido Zen4 relata conflitos existentes nas regiões norte e sudeste do Brasil, ao discorrer
sobre o tratamento que as populações ribeirinhas recebem, segundo ele, quando estão
organizadas e em luta pela garantia dos seus direitos:
[...]
Em 2004 uma comunidade inteira atingida pela barragem de Candonga, em Minas
Gerais, passou por essa situação. Na Vila de São Sebastião do Soberbo, dezenas de
famílias resistiram durante semanas contra as investidas da polícia militar com
apoio da Polícia Federal para efetuar o despejo de todos. No final, com aumento do
efetivo policial ocupando a vila, as famílias não puderam conter as
retroescavadeiras que destruíram suas casas. Perto dali, no dia 08 de março de
2005, 35 pessoas ficaram feridas durante a realização de uma audiência pública
para discutir a construção da barragem de Jurumirim, no Município do Rio Casca.
Bacias Hidrográficas dos Rios PCJ – CTRN, 2004, p. 24.
4
Direitos Humanos no Brasil, 2005. Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos.2005, p.56.
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A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Mulheres e crianças foram espancadas pela polícia, que também manteve presos
por um dia, seis pessoas apontadas como líderes do Movimento dos Atingidos por
Barragens (MAB). No estado do Pará, tropas do Exército com autorização para
agirem como polícia, chegaram a ser utilizadas no mês de março de 2005, para
“proteger” as instalações da Usina Hidrelétrica de Tucuruí, Pará, que há duas
décadas expulsou duas mil pessoas de suas terras, a maioria sem reparação até hoje.
Mais recentemente no dia 05 de outubro de 2005, 50 policiais invadiram e
destruíram completamente um acampamento de agricultores próximo ao Rio
Canoas, na região atingida pela Barragem de Campos Novos em Santa Catarina.
Após esta ação, a tropa dirigiu-se a outro acampamento localizado próximo ao
canteiro de obras da usina, onde houve confronto e um agricultor foi preso.
No Estado do Ceará, especificamente na região do Cariri os conflitos que envolvem
os recursos hídricos decorrem também de uma prática iniciada na época desde 1854, onde se
estabeleceu um sistema de alocação de direito de água das fontes, pautado na medição com
base na unidade denominada “telhas5”.
KEMPER6 cita o exemplo da fonte Batateiras, cujas águas foram apropriadas por
particulares em sua maioria, agricultores que moravam ao longo do Rio Batateiras e que
concordaram em alocar uma certa quantidade de água para cada propriedade a fim de
evitarem os conflitos pelo uso.
A prática da venda das telhas d‟água terminou sendo formalizada nos cartórios de
registro de imóveis do município, muito embora, tal atitude fosse incompatível a legislação
brasileira, visto que já no Código das Águas de 1934, estabelecia que toda água no polígono
das secas é de propriedade pública.
Em dissertação de Mestrado elaborada por SABIÁ7 identificamos que o cerne da
partilha das águas na Região do Cariri antes da edição do Código de 1934 tinha guarida em
instrumentos normativos provinciais, mormente, Resoluções Provinciais n.ºs 640 e 645 ambas
de 17 de janeiro de 1854. A partir da edição da Resolução Provincial n.º 640 estabeleceu-se
horários aos proprietários de terras beneficiadas pela passagem da água da fonte batateiras
com o fito de assegurar a todos os foreiros a igualdade de direitos das águas das nascentes,
indicada na referida lei, como “patrimônio da Câmara”.
No ano seguinte o juiz municipal substituto Afonso de Albuquerque de Melo manda
proceder auto de partilha da água do Rio Batateira, alimentado pela fonte batateira, admitindo
5
Telhas: antiga unidade de vazão portuguesa que consiste em um tubo de 18cm de diâmetro com uma inclinação
de 1:1000.
6
KEMPER, E. Karin, GONÇALVES, José Yarley de Brito, BEZERRA, Francisco William Brito. Um sistema
Local de Gerenciamento e Alocação de Água – O caso da Fonte Batateira no Cariri.
7
SABIÁ, Rodolfo José. Gerenciamento das Fontes do Cariri, uma perspectiva integrada e multidisciplinar,
Dissertação de Mestrado UFC.
370
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
de forma expressa e oficial o direito de propriedade das referidas águas.
Nesse cenário observamos claramente que o direito de propriedade dos imóveis
trazia, na visão jurídica da época imperial, o direito de propriedade das águas oriundas das
fontes, gerando o mercado das águas na região do Cariri cearense.
Os conflitos, porém, não se restringem apenas ao uso das águas das fontes, uma vez
que também na região do Cariri a gestão das águas dos açudes Tomaz Osterne e Manuel
Balbino, foi estudado por STUDART8 e “considerado como o caso de maior número de
construção de obras hidráulicas ao longo do rio Carás”. Como o foco da pesquisa centra-se na
gestão das águas subterrâneas, especificamente água das fontes, faz-se relevante discorrer
sobre o caso objeto de estudo.
No município de Crato, especificamente no Sítio Guaribas, cuja fonte foi
devidamente identificada no item anterior, o conflito fez-se realidade quando oitenta e duas
famílias residentes na referida localidade, unidas em associação legalmente reconhecida,
lançaram mão dos instrumentos legais com o objetivo de assegurar o acesso a água para
abastecimento humano.
Segundo Cícero Luciano Ferreira Alves, vice-presidente da Associação em Prol do
Desenvolvimento Rural de Guaribas, em 2000, a associação decidiu lutar por melhores
condições de vida buscando primordialmente o acesso a água encanada, visto que, os
residentes no sítio Guaribas necessitavam do precioso líquido para as necessidades básicas,
contudo, só dispunham do acesso a água através de latas d‟água, carrinhos de mão e animais
de carga, como o jumento, sendo essa água colhida da Fonte Guaribas, localizada em terreno
de propriedade privada.
A Associação tomou conhecimento do Projeto São José, cujo objetivo era canalizar
água para as famílias carentes das comunidades rurais, e através do então presidente foi
buscar os recursos necessários para a implementação.
Foram liberados aprovados e liberados pelo Estado R$ 100.694,35 (cem mil
seiscentos e noventa e quatro reais e trinta e cinco centavos) com o objetivo de implantar um
sistema para captação de água tratada e hidrometrada a partir da perfuração de poço profundo
8
PINHEIRO, Maria Inês Teixeira, CAMPOS, José Nilson B., STUDART , Ticiana M. de Carvalho, SILVA,
Arnaldo Pinheiro. Conflito pelo Uso da Água no Estado do Ceará: Estudo de caso do Vale do Rio Carás. Acesso
em:07/02/2008
http://www.deha.ufc.br/ticiana/Arquivos/Publicacoes/Congressos/2005/Conflitos_de_uso_da_agua_Ceara_SILU
SBA_30_03_2005.pdf
371
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
e com capacidade de beneficiamento de oitenta e duas famílias.
Embora a comunidade seja atualmente formada por 120 famílias, segundo dados do
Programa de Saúde de Família do Município de Crato, a implementação do Projeto São José
iria solucionar o problema de mais da metade da comunidade e a proposta, segundo o atual
vice-presidente da associação era expandir com a consecução de mais recursos. Acontece que
após três perfurações na localidade Guaribas, a equipe de geólogos da CAGECE9 e da
SOHIDRA10, concluíram que não seria possível a captação de água através da perfuração de
poços para fins de abastecer a comunidade, visto que os poços perfurados não apresentavam
água.
A partir de tal constatação e não existindo corpos hídricos mais próximo onde a
comunidade pudesse satisfazer as necessidades diárias e vitais, a associação buscou
novamente as instituições do Estado ou a ela vinculadas, no intuito de solucionar o problema
da falta de água. Foi então que a COGERH e engenheiros da CAGECE, colaboraram no
processo identificando as fontes existentes na Chapada do Araripe, chegando então a fonte
guaribas, a qual poderia suprir as necessidades vitais das famílias, obedecidas os critérios
constantes na Outorga.
Instigada a conceder outorga de uso de água da Fonte Guaribas em prol da
comunidade, a Secretaria de Recursos Hídricos do Estado concedeu o benefício aos 12 de
agosto de 2003. São estes os elementos da Outorga conferida 11:
ELEMENTOS DA OUTORGA:
VALIDADE: 10 ANOS
MODALIDADE DA OUTORGA: Autorização de uso
PERÍODO DA OUTORGA: agosto de 2003 a agosto de 20013
VOLUME OUTORGADO: 12000m3
VAZÃO OUTORGADA: 0,36 l/s
TEMPO DE APLICAÇÃO DA VAZÃO OUTORGADA: 15 horas/dias 7 dias semana
FINALIDADE DO USO DA ÁGUA: Abastecimento humano
A outorga tem por escopo assegurar o acesso a água respeitando os aspectos
9
CAGECE é a Companhia de Água e Esgoto do Ceará criada sob a forma de empresa de economia mista por
meio da Lei Estadual n.º 9.499 de 20 de julho de 1971.
10
SOHIDRA é a Superintendência de Obras Hidráulicas criada por meio da Lei Estadual n.º 11.380 de 15 de
dezembro de 1987 e é vinculada à Secretaria de Recursos Hídricos do Ceará.
11
Dados oriundos do Instrumento de Outorga da Secretaria de Recursos Hídricos do Estado.
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A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
quantitativos e qualitativos e ainda as prioridades estabelecidas na lei de política nacional de
recursos hídricos, assim, em princípio a situação apresentada poderia estar resolvida, não
fosse pelo impasse que aconteceria em seguida.
Ao tentar adentrar na propriedade onde está situada a fonte Guaribas, os moradores,
os engenheiros da CAGECE e o empreendedor responsável para realizar um novo
levantamento topográfico com vistas a implementação do projeto de captação de água, foram
surpreendidos com a resistência do dono do terreno, visto que este alegou, segundo os
moradores, ser proprietário da terra onde está situada a fonte de guaribas e já fazer uso da
água da mesma para fins de irrigação e, portanto, não permitiria a realização das obras
necessárias à captação, visto que isto também causaria impacto ambiental.
Gerado o conflito pelo uso da água da fonte guaribas a associação enveredou pelas
vias administrativas junto ao Ministério Público local, no intuito de dirimir o problema de
forma amigável, não logrando êxito. Por fim ajuizaram ações judiciais acautelatória e
ordinária, com a contratação de advogada particular, com o objetivo de ver solucionado o
problema.
Neste ponto faz-se indispensável discorrer sobre o papel do Ministério Público nas
demandas que envolvem interesses de uma coletividade determinada em busca do acesso a
um bem juridicamente tutelado e constitucionalmente classificado como bem essencial a sadia
qualidade de vida, no caso a água.
Não se poderia deixar de questionar o fato de o representante do MPE, cônscio do
conflito de interesse envolvendo a questão do acesso a água, ter deixado a comunidade à
mercê da situação, quando frustrada as tentativas de acordo junto ao DECON de Crato.
Em artigo publicado na Revista do Ministério Público Cearense, o promotor Marcus
Vinicius Amorim de Oliveira 12, discorre justamente sobre o poder/dever de intervenção do
Ministério Público nos conflitos que têm por escopo “defender a existência de um direito
subjetivo de acesso aos recursos hídricos”.
Embora trate especificamente da experiência vivida na Comarca de Irauçuba-CE,
onde as ligações irregulares na adutora do Açude Jerimum foram o mote para a interposição
de ação civil pública, os fundamentos utilizados pelo Promotor e Justiça no caso por ele
narrado poderiam também servir de base para a defesa dos interesses da comunidade
Guaribas.
12
http://www.acmp-ce.org.br/revista/ano4/n10/artigos02.php acesso em 06/02/2008
373
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Isto porque, dentre outros argumentos citados para robustecer a legitimidade do
Ministério Público em impetrar Ação Civil Pública com a finalidade proteger a ordem jurídica
e o patrimônio público, e o acesso a água de forma lídima, democrática e justa, são
mencionados os arts. 127 e 129 da Constituição Federal que assim exaram:
Art. 127 - O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função
jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime
democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
Art. 129 - São funções institucionais do Ministério Público:
III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio
público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;
Desta feita, parece-nos que a Constituição Federal ao traçar as funções do Ministério
Público deixou evidente que os interesses difusos e coletivos, assim como os interesses
sociais, isto é, os interesses da coletividade, podem e devem ser defendidos pelo representante
do órgão ministerial.
Especificamente no caso, objeto de estudo, verifica-se a inércia do representante do
MPE, o que impulsionou a associação a buscar a tutela jurídica do Estado por meio de
advogada particular.
1.4 A demanda judicial na busca pela pacificação do conflito de interesse
O fim do direito, como leciona Ihering13 é a paz, entretanto, o meio que serve para
consegui-lo é a luta. Ao referir-se a este instrumento de conquista o autor deixa claro que não
quer fazer apologia a discórdia e ao espírito de emulação, mas que invoca a necessidade da
luta naqueles casos em que a agressão ao direito representa um desrespeito à pessoa humana.
A água como mencionado anteriormente é um bem indispensável à existência e à
vida digna, assim sendo e diante da frustração em dirimir o conflito pelo uso de forma
extrajudicial, a Associação Guaribas, valendo-se dos instrumentos que o Estado dispõe,
legitimamente interpôs Ação Judicial contra o proprietário do imóvel, com o objetivo de
conseguir edificar em terreno de sua propriedade obra hidráulica que possibilitasse a captação
de água da Fonte Guaribas para abastecimento humano.
Em princípio foi ajuizada Ação Cautelar Inominada registrada sob n.º
2003.0012.8042-8 com pedido de liminar com o objetivo de assegurar o uso da água da fonte
13
IHERING, Rudolf Von. A Luta pelo Direito. São Paulo: MartinClaret, 2001.
374
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
pelos moradores, o que foi, segundo o processo consultado, deferido pelo juízo da 4ª vara da
Comarca de Crato aos 24/11/2005, tendo sido deixado para a demanda principal a discussão
acerca da implantação do sistema de abastecimento de água.
Como dita a lei processual civil a interposição de ação cautelar deve ser sucedida no
prazo máximo de 30 (trinta) dias contados da efetivação da medida cautelar, de ação
principal, sob pena de perda de sua eficácia. 14
Assim, foi interposta perante o mesmo juízo Ação Ordinária registrada sob n.º
2004.0001.6427-9, aos 16 de fevereiro de 2004. Verifica-se no processo referente a ação
ordinária, que aos 25 de novembro de 2005, a magistrada da 4ª vara concedeu em sede de
antecipação de tutela autorização para a imediata execução e construção do sistema de
captação da água da fonte, visto que a advogada da associação juntou aos autos, prova da
concessão dos recursos provenientes do Projeto São José, outorga para captação da água para
abastecimento humano e ainda laudos dos órgãos ambientais competentes, como IBAMA,
COGERH, CAGECE, manifestando-se no sentido de não vislumbrar empecilho de ordem
ambiental a execução da obra, ao passo que a SAAEC 15 informou não ter “competência
técnica para informar sobre possível impacto ambiental que por ventura ali venha ocorrer”.
A questão é que a antecipação de tutela conferida foi condicionada ao pagamento de
caução no valor de R$ 78.670,71 (setenta e oito mil seiscentos e setenta reais e setenta e um
centavos) pela entidade autora, com base, segunda a excelentíssima juíza no saldo
remanescente dos recursos proveniente do Projeto São José e com vistas a assegurar a contracautela ao possível desrespeito às recomendações prescritas no relatório técnico.
Segundo a comunidade foi impossível prestar a caução imposta, visto que de tais
recursos ela não dispunha.
Não é objeto deste trabalho analisar os instrumentos processuais utilizados pela
causídica que interpôs as ações judiciais, nem tampouco, adentrar no mérito das decisões
firmadas pela juíza ou nos pareceres emitidos pelo representante do MPE já na fase judicial,
mesmo porque tal enfoque resultaria numa pesquisa eminentemente processual e doutrinária,
ensejando aprofundamento jurídico acerca de reflexões sobre as ações propostas e sobre os
atos jurisdicionais praticados. Assim, reportamo-nos aos dias atuais para verificar o
andamento do processo.
14
15
ART. 808, I CPC.
Fonte: Processo n.º 2003.0012.8042-8 oriundo da 4ª vara da Comarca de Crato-CE, fls. 17.
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A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Aos 28 de novembro de 2007, o Sr. Cícero Luciano Ferreira Lopes, que à época da
interposição das ações judiciais era o presidente da associação e, portanto, seu representante
legal, foi intimado da seguinte decisão: a parte autora deverá especificar o pedido formulado
na petição inicial, ou seja, o pedido feito aos 16/02/2004, e “adequá-lo aos termos da
pretensão ordinária, considerando-se, inclusive, o reclamado e decidido em sede cautelar”.
Na mesma decisão a digna magistrada enumera os pedidos formulados pelo
Promotor de Justiça, os quais vão desde ao pedido de anulação dos atos decisórios realizados
no processo antes da citação do requerido, ou seja, anulação dos atos decisórios praticados
antes do dia 29/05/2006, data da juntada ao processo da peça de Contestação firmada pelo
demandado, até o chamamento ao processo, através de litisconsórcio passivo, dos demais
proprietários do imóvel onde se localiza a fonte guaribas, dentre outros pedidos, cuja
apreciação a magistrada optou por decidir após a manifestação da parte autora.
Em síntese, o processo permaneceu até o final de 2007 sem uma decisão definitiva e
a comunidade até a data da pesquisa de campo, isto é, 08/02/2008, permanece sem ter água
encanada, valendo-se dos carrinhos de mão para buscar a água da fonte, das latas de água na
cabeça e da boa vontade do proprietário do terreno da fonte Guaribas, posto que o direito de
propriedade privada assegurado pela constituição, no caso concreto, ainda não encontrou
sintonia e equilíbrio com o direito fundamental ao acesso a água para fins de abastecimento
humano.
Passaram-se, portanto, três anos de demanda judicial, os recursos conseguidos com o
Estado através do Projeto São José, tiveram que ser devolvidos em agosto de 2006. Os
representantes da Associação alegam que já procuram o Bispo, o Prefeito da cidade, outros
promotores de justiça da comarca e várias entidades, contudo, a situação permaneceu sem
resolução até a época da pesquisa de campo realizada, não obstante a demanda tenha ganhado
espaço na veiculação de jornais e revistas âmbito estadual e nacional. Foi impossível durante
mais de quatro anos de batalha judicial, exercitar o lídimo direito de acesso a água de forma
digna, através do abastecimento doméstico.
Tal situação faz crescer a descrença da comunidade do Sítio Guaribas nas
instituições públicas, em especial a última instância por eles procurada, qual seja, o Poder
Judiciário.
376
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
CONCLUSÃO
O presente artigo prestou-se a apresentar as dificuldades enfrentadas pela
coletividade e pelas instituições públicas quanto ao uso de água subterrânea situada em
terreno particular para fins de abastecimento humano. O relato partiu da apresentação de um
estudo de caso da fonte Guaribas, localizada no Município de Crato-CE.
Além do relato acerca do caso foram observados em pesquisa de campo os aspectos
ambientais do referido corpo hídrico, assim como o início e desfecho de tentativa de solução
do conflito de interesse, analisando-se o papel do Ministério Público na fase extrajudicial e a
sua competência para atuar nos conflitos que envolvem interesses difusos e coletivos.
Da mesma forma foram analisados os processos judiciais oriundos do litígio pelo
uso da água da fonte Guaribas, buscando-se compreender a efetividade das decisões na
solução do caso concreto. Da apresentação do caso concreto e da análise no suporte teórico
utilizado no decorrer do estudo, infere-se o seguinte:
1) embora as leis ambientais sejam enfáticas quanto a necessidade de proteção e
conservação das matas ciliares e da não intervenção na área de preservação
permanente, o uso direto da água da fonte Guaribas
tem sido feito de forma
inadequada com comprometimento qualitativo e quantitativo para o aqüífero, o que
evidentemente demanda ação integrada dos órgãos ambientais não apenas na
fiscalização, mas também na realização de programas ou projetos de educação
ambiental com a comunidade do entorno;
2) o uso sustentável dos recursos naturais, especificamente da água, também está
relacionado ao dever do Poder Público em fornecer acesso digno a esse recurso, visto
que dele depende também o exercício da dignidade humana;
3) o Ministério Público tem o poder/dever de agir nos conflitos que envolvem
comunidades pelo direito de acesso a água visto que a Constituição Federal
determinou que é função institucional do mesmo, promover inquérito civil e ação civil
pública para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros
interesses difusos e coletivos;
4) a interposição de demandas judiciais para solução do conflito não assegurou a
implementação de um sistema de captação da água da fonte Guaribas, nem trouxe à
comunidade perspectiva positiva em relação a atuação do Poder Judiciário, tendo sido
frustrado o direito de acesso digno a água da comunidade para abastecimento humano;
377
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
5) o uso pela água das fontes no Estado do Ceará desafia os poderes constituídos, na
medida em que não se tem claramente assegurado à população o acesso à água das
fontes situadas em propriedade privada, para fins de abastecimento humano. O poder
legislativo precisa se sensibilizar e propor a servidão obrigatória para estes casos, a
exemplo do já acontece com os proprietários de terras contíguas aos espelhos das
águas de açude construídos pelo poder público ou com participação do Estado, como
preceituado no art. 325 da Constituição Estadual.
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380
A PROPRIEDADE INTELECTUAL DOS TRANSGÊNICOS NO BRASIL
Patrícia Santos Précoma Pellanda *
Rubens Onofre Nodari **
RESUMO: O presente artigo traz à discussão a propriedade intelectual dos transgênicos no
Brasil, por meio da pesquisa documental, doutrinária e buscas em sítios eletrônicos oficiais de
órgãos nacionais e internacionais sobre o tema. Tem início com um breve relato acerca da
legislação referente à propriedade intelectual no Brasil, abrangendo os tratados internacionais
ratificados pelo país, com ênfase na Lei de Propriedade Industrial e Lei de Proteção de
Cultivares. Na sequência é desenvolvida a norma e procedimento de concessão de patentes de
OGMs, que se resume ao sistema simplificado determinado pelo Tratado de Cooperação em
Matéria de Patentes (PCT), trazendo como exemplo a patente do algodão transgênico
Cry1Ab. Diante disso, verificam-se as controvérsias e efeitos negativos dessas patentes, que
podem ser visualizados na economia, cultura, meio ambiente e direito do consumidor, os
quais são examinados por meio de exemplos fáticos e exame da legislação, para, ao final,
concluir pela apropriação indevida dos recursos naturais e seus reflexos éticos.
PALAVRAS-CHAVE: Patente, proteção de cultivares, biodiversidade, direito dos
agricultores.
ABSTRACT: This article discusses the intellectual property of the transgenics in Brazil,
throughout documentary and doctrinal research and electronics sites of national government
agencies and intergovernmental institutions. The brief introduction about focuses on the
Brazilian legislation of intellectual property, including the internationals treaties ratified by
the country, with emphasis on the Law of Industrial Property and Law of Cultivar Protection
(Plant Act). Follow the introduction, it is shown the rules and procedures to issue patent to the
GMOs, which is resumed to a simplified system established by the Patent Cooperation Treaty
– PCT. An example of a patent issued to a transgenic cotton (Cry1Ab) is provided. The
controversies and negative effects generated by those patents can be verified in economy,
cultural, environment and consumer law, which are examined throughout phatic examples and
legislation analysis. Raised arguments provide enough evidence to conclude that there are a
misappropriation of the natural resources and concerning ethic implications.
KEYWORDS: Patent, cultivar protection, biodiversity, farmer‟s rights.
*
Formada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR). Mestranda em Direito
Ambiental na Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Bolsista CAPES. ([email protected])
**
Formado em Agronomia pela Universidade de Passo Fundo (UPF/RS). Mestre em Fitotecnia na Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Doutorado em Genética pela University of California, Davis
(UCDavis, USA) e Bolsista do CNPq ([email protected])
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
INTRODUÇÃO
A biotecnologia, apesar de sugerir ser uma ciência moderna, tem sua origem em
conhecimentos primitivos, a exemplo da produção de queijos, vinhos, cervejas e pães. Essa
ciência desenvolve-se a partir das técnicas do DNA recombinante, da engenharia genética e
demais métodos de melhoramento. De acordo com Rubens Onofre Nodari e Miguel Pedro
Guerra (2004, p. 111) a expressão biotecnologia foi utilizada pela primeira vez pelo
engenheiro húngaro Karl Ereky, com a finalidade de designar todas as linhas de trabalho pelas
quais os produtos são produzidos a partir de uma matéria-prima com a ajuda de organismos
vivos.
Umas das principais e mais polêmicas criações da biotecnologia foram os organismos
geneticamente modificados ou transgênicos, que têm a finalidade de alterar geneticamente
plantas, animais e microrganismos, atribuindo-lhes novas características. Entretanto, desde o
seu surgimento, os transgênicos foram foco de diversas discussões e incongruências, uma vez
que estão envoltos de incertezas científicas, especialmente no que se refere aos efeitos
causados ao meio ambiente e à saúde humana, por meio da produção e consumo desses
organismos e seus derivados.
Os transgênicos também podem ser objeto de pedidos de patentes, garantindo
altíssimos lucros aos seus detentores, onerando outros setores, como no caso de
patenteabilidade de plantas geneticamente modificadas. Nesse caso, além de arrecadação
financeira por meio da venda de sementes, o titular da patente ainda tem o direito de receber
royalties pelo uso da tecnologia de que detêm o monopólio.
O presente trabalho tem início com uma breve descrição acerca dos organismos
geneticamente modificados, com ênfase nas plantas. Além do relato quanto à maneira em que
as primeiras sementes transgênicas foram inseridas no Brasil, bem como as variedades que
podem ser encontradas nos país, a partir das liberações autorizadas pela Comissão Técnica
Nacional de Biossegurança.
Em seguida, faz-se uma abordagem histórica acerca da legislação sobre propriedade
intelectual no Brasil, incluindo os tratados internacionais, devidamente ratificados e
internalizados pela legislação nacional. De forma específica, traz as normas e processamento
para a concessão de patentes de transgênicos, a qual se resume no sistema simplificado
definido pelo Tratado de Cooperação em Matéria de Patentes (PCT), exemplificando com o
pedido de patente do algodão transgênico Cry1Ab.
382
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
A partir da análise legislativa e do procedimento utilizado para a concessão de
patentes, são examinados os efeitos e as controvérsias geradas no âmbito econômico, cultural,
ambiental e no direito do consumidor, por meio de exemplos fáticos. Para, finalmente,
concluir pela apropriação indevida dos recursos naturais, bem como seus reflexos na ética.
1 TRANSGÊNICOS
Os transgênicos - também conhecidos por organismos geneticamente modificados ou
apenas por sua sigla OGMs - referem-se a plantas, animais ou microrganismos alterados
geneticamente, por meio das técnicas do DNA recombinante, sendo-lhes atribuídas novas
características, em geral impossíveis de serem adquiridas de forma natural.
A primeira divulgação acerca da existência comercial de organismos geneticamente
modificados no mundo deu-se em 1978, com a produção em laboratório de insulina humana, a
partir das técnicas do DNA recombinante. Desde então diversos foram os microrganismos
geneticamente modificados desenvolvidos, contribuindo para diversas áreas, como: indústria
farmacêutica, indústria têxtil, polpa de papel e celulose, etc.
Quanto aos animais transgênicos sustenta-se a ideia de garantir maior segurança
alimentar e benefícios nutricionais, através de animais que produzam leite, carnes e ovos de
maior qualidade e de forma acelerada, por exemplo. No entanto, até o momento, os animais
transgênicos têm sido obtidos para viabilizar a produção de substâncias de uso terapêutico, no
leite ou animais cobaias para fins de pesquisa.
Entretanto, os avanços mais significativos e preocupantes surgiram a partir da criação
de plantas geneticamente modificadas. No Brasil, as primeiras plantações de soja ocorreram
em 1996, por meio de sementes adquiridas de forma clandestina da Argentina, tanto que
ficaram conhecidas como “soja maradona”, em homenagem ao jogador de futebol, por serem
pequenas, precoces (rapidamente florescem) e argentinas. Agricultores, como Beno Arns, do
Rio Grande do Sul, adquiriram as sementes por meio de sua troca - como é culturalmente
realizado entre os agricultores - desconhecendo a sua ilegalidade e fruto de polêmicas que
ainda estavam por surgir. A partir de denúncias à Polícia Federal, em outubro de 1998, foi
feita a primeira apreensão de soja transgênica no Rio Grande do Sul, quando já se estimava
que passavam de 30% o total da área irregularmente cultivada em todo o estado (GASPAR,
2003).
Após inúmeras polêmicas e a judicialização da soja no Brasil, por meio de medidas em
383
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
1
caráter de urgência , abriu-se precedentes ao investimento e criação de novas variedades de
plantas geneticamente modificadas, tanto que, até agosto de 2010, já foram liberados pela
CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança): 5 pedidos de soja transgênica, 6 de
algodão transgênico e 12 de milho transgênico 2.
Uma das mais recentes variedades de planta transgênica - tolerante a herbicidas (do
grupo químico das imidazolinonas) - aprovada pela CTNBio é a chamada soja transgênica
brasileira, Soja CV127, desenvolvida pela EMBRAPA Soja em parceria com a alemã BASF,
para efeito de liberação no meio ambiente, comercialização, consumo e quaisquer outras
atividades relacionadas a esse OGM e progênies dele derivados. Segundo o parecer técnico,
“considerando os critérios internacionalmente aceitos no processo de análise de risco de
matérias-primas geneticamente modificadas é possível concluir que a Soja CV127 é tão
segura quanto seus equivalentes convencionais” 3.
Como já mencionado, os transgênicos envolvem plantas, animais e microrganismos,
mas devido à polêmica e a variedade de plantas transgênicas liberadas no Brasil (21 estavam
registradas em 17/09/20104), este será o principal enfoque deste trabalho, abrangendo, ainda,
a contestável legalização de sua patenteabilidade. Tal limitação, como se verá, envolve
controvérsias e polêmicas, uma vez que gera o monopólio de minorias empresariais,
detentoras de altíssimos lucros.
2 A PROPRIEDADE INTELECTUAL E A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
A Constituição Federal de 1988, de forma genérica, garante o direito de propriedade
a todos, nos termos do artigo 5º, caput e inciso XXII5. O atual Código Civil prevê ser
proprietário aquele que tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa e o direito de reavê-la
do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha, nos termos do artigo 1.228,
1
Os plantios de soja transgênica foram legalizados pelo Presidente da República Luís Inácio Lula da Silva, em
caráter emergencial, por meio da Medida Provisória 113, de 26 de março de 2003 - convertida na Lei nº
10.688/2003 -, que autorizava o plantio e a comercialização da soja transgênica da safra de 2003. Em ato
contínuo, foi sancionada a Medida Provisória 131, de 25 de setembro de 2003 e a Medida Provisória 223, de 14
de outubro de 2004 - convertidas nas Leis nº 10.814/2003 e 11.092/2005, respectivamente -, autorizando o
plantio e a comercialização da soja transgênica no Brasil das safras de 2004 e 2005. Essas medidas emergenciais
foram por diversas vezes questionadas, pois se tratam de atos que interferem nos direitos de toda a coletividade,
que podem trazer prejuízos ao meio ambiente e à saúde humana em longo prazo.
2
Informação encontrada no site da CTNBio: http://www.ctnbio.gov.br/index.php/content/view/12482.html
3
Processo nº 01200.000010/2009-06, deferido na 129ª Reunião Ordinária da CTNBio, em 10 de dezembro de
2009.
4
http://www.agricultura.gov.br
5
CF, art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e
aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade,
nos termos seguintes: (...) XXII – é garantido o direito de propriedade..
384
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
caput. Ressalte-se, no entanto, que esses dispositivos tratam de norma geral no que se refere à
propriedade, sendo ela corpórea ou incorpórea, móvel ou imóvel.
O direito à propriedade abrange a propriedade intelectual, a qual se refere tão
somente aos bens incorpóreos, também chamados de imateriais. Estes resultam da capacidade
intelectual humana e, portanto, não constituem corpo (matéria), não sendo palpáveis e
visíveis. A propriedade intelectual, juntamente com o direito do autor, é espécie do gênero
propriedade industrial, a qual é considerada pela legislação brasileira como bem móvel 6.
O direito de propriedade intelectual foi reconhecido e assegurado no Brasil em 1830,
quando D. Pedro I decretou uma lei, em 28 de agosto, concedendo privilégios àquele que
conseguisse descobrir, inventar ou melhorar algo útil para a indústria, além de um prêmio a
quem o introduzisse na indústria estrangeira. Em 1882, D. Pedro II promulgou a Lei nº 3.129,
de 14 de outubro de 1882, que regulava a concessão de patentes aos autores de invenção ou
descoberta industrial (INPI, 2007).
De acordo com Marcelo Dias Varella (1997) a legislação da propriedade intelectual
ganhou relevo com a Convenção de Paris, de 1883, da qual o Brasil é o quarto país signatário.
Essa Convenção surgiu da necessidade de proteção internacional da propriedade intelectual,
que se tornou evidente quando expositores estrangeiros se recusaram a participar do Salão
Internacional de Invenções em Viena, em 1873, porque tinham medo que suas ideias fossem
roubadas e exploradas comercialmente em outros países (WIPO, s.d.). Além disso, deu
origem ao, hoje, chamado Sistema Internacional da Propriedade Industrial, que tem por
objetivo a harmonia internacional dos diferentes sistemas jurídicos acerca da propriedade
intelectual.
Em 1934 foi promulgado o Decreto nº 24.507, de 29 de junho de 1934, que
regulamentava a concessão de patentes de desenho ou modelo industrial, para o registro do
nome comercial e do título de estabelecimentos, objetivando reprimir a concorrência desleal.
Em 27 de agosto de 1945 foi criado o Código de Propriedade Industrial, pelo Decreto-lei nº
7.903, regulando os direitos e obrigações concernentes à propriedade industrial. E, em 21 de
outubro de 1969, por meio do Decreto-lei nº 1.005, o mencionado código passou a estabelecer
a proteção dos direitos relativos à propriedade industrial por meio da concessão de privilégios
de invenção, de modelos industriais e de desenhos industriais; concessão de registros de
6
Lei nº 9.279/96, art. 5º Consideram-se bens móveis, para os efeitos legais, os direitos de propriedade industrial.
Lei nº 9.456/97, art. 2º. A proteção dos direitos relativos à propriedade intelectual referente a cultivar se efetua
mediante a concessão de Certificado de Proteção de Cultivar, considerado vem móvel para todos os efeitos legais
(...)”.
385
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
marcas de indústria, de comércio e de serviço; de títulos de estabelecimento e de expressões
ou sinais de propaganda; repressão a falsas indicações de proveniências e repressão à
concorrência desleal. Entretanto, em 21 de dezembro de 1971, foi instituído um Novo Código
de Propriedade Industrial, através da Lei nº 5.772 (INPI, 2007).
O histórico legislativo, acerca da propriedade industrial no Brasil, teve intensa
influência internacional, sendo possível citar alguns tratados, que ratificados pelo país, vieram
a integrar a legislação brasileira e o procedimento de patentes, como o PCT e o TRIPS.
O PCT - Patent Cooperation Treaty (TCP - Tratado de Cooperação de Patentes) foi
estabelecido em 19 de junho de 1970, em Washington (EUA), com o objetivo de desenvolver
um sistema de patentes e de transferência de tecnologia (WIPO, s.d.). No Brasil, o PCT só
entrou em vigor em 1978 (devido a sua especial importância para o desenvolvimento do tema
nesse trabalho, este acordo internacional será trabalhado em capítulo próprio). Já o TRIPS Trade-Related Aspects of Intellectual Property (ADPIC - Acordo sobre Aspectos dos Direitos
de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio), resultado da 8ª Rodada do Uruguai do
GATT7, realizada no período de 1986 e 19938, representa uma tentativa de regular e proteger
bens imateriais no mundo, em razão da expansão da circulação de mercadorias gerada pela
globalização da economia, que trouxe como consequência a pirataria.
De acordo com o TRIPS, seus membros podem considerar como não patenteáveis as
plantas e animais, salvo microrganismos e processos essencialmente biológicos para a
produção
de
plantas
ou animais,
excetuando-se os processos
não-biológicos
e
microbiológicos. Ainda assim, será concedida a proteção de variedades vegetais, seja por
meio de patentes, seja pode meio de um sistema sui generis eficaz ou pela combinação de
ambos (artigo 27, item 3, “ b”).
Diante do surgimento de normas internacionais acerca da propriedade intelectual,
novas interpretações e discussões sobre assunto foram desenvolvidas. Assim, após 5 anos de
conflitos e polêmicas, foi aprovada e publicada no Brasil a atual Lei de Propriedade
Industrial, Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996 e, posteriormente, a Lei de Proteção de
7
GATT - General Agreement on Tariffs and Trade (Acordo Geral sobre Pautas Aduaneiras e Comércio): foi
estabelecido em 1947, com a finalidade de harmonizar as políticas aduaneiras dos Estados signatários. Foi a base
da criação da OMC - Organização Mundial do Comércio (WTO - World Trade Organization) com sede em
Genebra, na Suíça. Tem por objetivo ajudar os produtores de bens e serviços, exportadores e importadores, à
conduzir os seus negócios, através de acordos negociados e assinados pela maioria das nações do mundo
comercial (WTO, s.d.).
8
O TRIPS foi incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto nº 1.355, de 30 de dezembro
de 1994.
386
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Cultivares, Lei nº 9.456, de 25 de abril de 1997.
Essas duas normas fundamentam as espécies de proteção intelectual admitidas no
Brasil: proteção por patentes e proteção por cultivares. Tais normas são apresentadas como
importantes instrumentos de proteção ao acesso à “biodiversidade” brasileira 9. Todavia, o
próprio texto legislativo afirma que a proteção dos direitos relativos à propriedade industrial
(que engloba a propriedade intelectual, conforme já mencionado), por meio destes
instrumentos, considera o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do
país (art. 2º, Lei nº 9.279/96), não sendo mencionado em quaisquer de seus dispositivos, de
maneira expressa, a finalidade de proteção à biodiversidade.
Diante dos efeitos visualizados na prática, especialmente quando relacionados às
patentes de plantas transgênicas, subsiste a falsa ideia de proteção à biodiversidade, verificase o predomínio dos interesses econômicos das minorias (multinacionais detentoras dessa
tecnologia) e privilégios comerciais, resultando no monopólio de plantações de certas
variedades.
A Lei de Propriedade Industrial permite apenas a patente de microrganismos
geneticamente modificados, sendo inadmissível que plantas e animais, ou parte destes,
venham a ser apropriados por meio das patentes. Neste sentido prevê o artigo 18 da Lei nº
9.279/96 que:
Art. 18. Não são patenteáveis:
(...)
III - o todo ou parte dos seres vivos, exceto os microorganismos transgênicos que
atendam aos três requisitos de patenteabilidade - novidade, atividade inventiva e
aplicação industrial - previstos no art. 8º e que não sejam mera descoberta.
Parágrafo único. Para os fins desta Lei, microorganismos transgênicos são
organismos, exceto o todo ou parte de plantas ou de animais, que expressem,
mediante intervenção humana direta em sua composição genética, uma característica
normalmente não alcançável pela espécie em condições naturais.
Conforme a lei expressamente prevê, para obter o título de proteção por patente é
9
Nesse sentido, a seguinte citação: “As principais normas referem-se à proteção intelectual, dando ensejo ao
patenteamento de microrganismos transgênicos e à legislação de proteção de cultivares, uma forma sui generis
de propriedade intelectual, para plantas; referem-se ainda à biossegurança, no tocante à segurança biológica,
tanto em âmbito laboratorial quanto para liberação de organismos geneticamente modificados no meio ambiente;
referem-se, enfim, ao acesso à biodiversidade brasileira, um dos temas mais importantes ao se tratar do
desenvolvimento sócio-econômico de países pobres, mas ricos em biodiversidade, no próximo século”.
(VARELLA, 1997)
387
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
necessário preencher os seguintes requisitos: novidade, atividade inventiva e aplicação
industrial. Portanto, para que algo possa ser objeto de patente, ele deve corresponder a uma
invenção destinada a um processo industrial, tendo uma aplicação prática. Essa invenção
(atividade inventiva) será considerada nova (novidade), quando não estiver compreendida no
estado da técnica, ou seja, não estiver acessível ao público antes da data de depósito do pedido
de patente (art. 11, §1º, Lei nº 9.279/96).
A respeito da patente de microrganismos, Marcelo Dias Varela (1997) conclui que se o
pesquisador simplesmente identifica, isto é, isola um microrganismo que já existia na
natureza, ele está apenas o descobrindo. Mas, se alterar geneticamente e chegar a um novo ser
(um novo ser vivo) - que não existia antes e que não viria a existir com a evolução natural das
espécies - será considerado invenção.
Ressalte-se que a própria Lei de Propriedade Industrial define os microrganismos
transgênicos como organismos, de forma genérica. Entretanto, não traz qualquer conceito de
fácil entendimento aos operadores do direito. Tratando-se de organismos geneticamente
modificados, abrangidos pela ciência denominada biotecnologia moderna, a lacuna deixada
pela Lei de Propriedade Industrial poderia ser preenchida com o conceito definido pela Lei de
Biossegurança, a qual define organismo como “toda entidade biológica capaz de reproduzir
ou transferir material genético, inclusive vírus e outras classes que venham a ser conhecidas”
(art. 3º, I, Lei nº 11.105/2005)10.
Além da proibição do artigo 18, transcrito acima, também é possível mencionar outra
limitação determinada pela Lei de Propriedade Industrial, prevista no artigo 10, IX, que
afirma não ser considerada invenção (nem modelo de utilidade) “o todo ou parte de seres
vivos naturais e materiais biológicos encontrados na natureza, ou ainda que dela isolados,
inclusive o genoma ou germoplasma de qualquer ser vivo natural e os processos biológicos
naturais”.
Apesar dessa proibição de patenteabilidade das plantas, o ordenamento jurídico
brasileiro, adotando um sistema sui generis, traz norma específica ao setor agrícola, através da
proteção de cultivares11, admitida pela, já mencionada, Lei nº 9.456/97. Segundo este diploma
10
É relevante mencionar que a antiga Lei de Biossegurança, Lei nº 8974/1995 (em vigor antes da publicação da
Lei de Propriedade Industrial) já definia organismo como “toda entidade biológica capaz de reproduzir e/ou de
transferir material genético, incluindo vírus, príons e outras classes que venham a ser reconhecidas” (art. 3º, I).
11
O conceito de “cultivares” pode ser retirado da própria legislação, qual seja: a variedade de qualquer gênero ou
espécie vegetal superior que seja claramente distinguível de outras cultivares conhecidas por margem mínima de
descritores, por sua denominação própria, que seja homogênea e estável quanto aos descritores através de
gerações sucessivas e seja de espécie passível de uso pelo complexo agroflorestal, descrita em publicação
388
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
legal, para que o titular tenha o direito de proteção também é necessário que cumpra alguns
requisitos, tais como: distinguibilidade, denominação própria, homogeneidade e estabilidade.
Esses requisitos são avaliados a partir de “descritores” que concentram um conjunto de
características suficientes para descrever uma cultivar específica. Neste sentido, Marcelo Dias
Varella (1997) afirma que:
A planta deve ser claramente distinta das demais cultivares conhecidas, o que é
verificado pelo seu conjunto de descritores. Assim, é essencial que a diferença com
relação à cultivar de que se pede a proteção seja claramente distinta para evitar que
se modifique alguma característica insignificante da planta e se obtenha a proteção.
Estável é a planta que, "reproduzida em escala comercial, mantenha a sua
homogeneidade através de gerações sucessivas". Logo, se a produtividade da planta
cai rapidamente, como nos híbridos, a cultivar não é estável e, portanto, não pode ser
protegida.
Em suma, as duas modalidades, apesar de parecerem semelhantes, apresentam
características que as distinguem, sendo estas sintetizadas no quadro abaixo:
PROTEÇÃO POR PATENTES
PROTEÇÃO DE CULTIVARES
Requisitos para a proteção: novidade,
Requisitos para a proteção: distinguibilidade,
atividade inventiva e aplicação industrial.
denominação própria, homogeneidade e
estabilidade.
Responsável pela administração das patentes:
Responsável pela administração do registro:
INPI, vinculado ao Ministério da Indústria e
Ministério da Agricultura.
Comércio.
Não admite o desenvolvimento de pesquisas
Admite que se desenvolvam pesquisas a
a partir de uma variedade protegida, sem a
partir de uma variedade protegida, sem a
autorização do titular da patente.
autorização do seu titular.
Proíbe-se a formação de campos de replantio
Permite o uso de campos de replantio para
para a formação de sementes pelo agricultor.
formação de sementes pelo agricultor.
Todo e qualquer agricultor que utilize o
Isenta os pequenos agricultores do
objeto da patente, deve pagar royalties por
pagamento dos direitos de propriedade
direito de propriedade intelectual.
intelectual.
especializada disponível e acessível ao público, bem como a linhagem componente de híbridos (art. 3º, IV, Lei nº
9.456/97).
389
A efetivação do direito de propriedade para o desenvolvimento sustentável:
relatos e proposições
Prazo de proteção: prazos variáveis. Em
Prazo de proteção: 20 anos
geral, 15 anos – exceto videiras, árvores
frutíferas, árvores florestais e árvores
ornamentais.
De qualquer forma a proteção de patentes e a proteção de cultivares estão muito
próximas em sua essência, pois ambas garantem o monopólio da comercialização do produto
protegido, ao titular da proteção. Ocorre que, o texto das leis em análise é criticado pelos
operadores do direito, ante a falta de uma disciplina jurídica sistêmica, no seguinte sentido:
No contexto das normas disciplinadoras da propriedade intelectual, verifica-se que a
proteção da Biotecnologia encontra-se prevista tanto na Lei de Propriedade
Industrial, quanto no contexto da Lei de Proteção de Cultivares. Sendo assim, não
existe uma disciplina jurídica sistematizada e nem sistemática, no referencial
normativo para a proteção da Biotecnologia. As normas ou os dispositivos
encontram-se esparsos, o que dificulta para o aplicador do direito compreender a
forma pela qual a proteção da biotecnologia se efetiva no País. Além do mais,
conforme verificado, as incidências de termos inerentes à Biologia no contexto
normativo, culminam por dificultar o trabalho do profissional do direito. (NERO,
2005, p. 359)
Além da mencionada legislação, específica acerca da propriedade intelectual, a atual
Lei de Biossegurança (Lei nº 11.105/2005) determina a proibição de patentes de tecnologias
genéticas de restrição d
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