2 César Augusto Battisti Michelle Silvestre Cabral Libanio Cardoso Neto Roberto S. Kahlmeyer-Mertens Wilson Antonio Frezzatti Jr. (Organizadores) Anais do XVIII Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea da UNIOESTE Toledo – PR 2013 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 3 Catalogação na Publicação elaborada pela Biblioteca Universitária UNIOESTE/Campus de Toledo. Bibliotecária: Marilene de Fátima Donadel - CRB – 9/924 S612a Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (18. : 2013, out. 21-24 : Toledo - PR) Anais (do) XVIII Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE) (recurso eletrônico) / Organização de Cesar Augusto Battisti, Michelle Silvestre Cabral, Libanio Cardoso Neto, Roberto Kahlmeyer-Mertens e Wilson Antonio Frezzatti Jr. – Toledo : (s. n.), 2013. World wide web http://www.unioeste.br/filosofia/ Evento realizado no período de 21 a 24 de outubro de 2013, na Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE. Toledo, Pr. ISSN: 2176-2066 Universidade 1. 1. Filosofia moderna – Congressos 2. Filosofia contemporânea – Congressos I. Battisti, Cesar Augusto, Org. II Cabral, Michelle Silvestre, Org. III. Cardoso Neto, Libanio, Org. IV. Kahlmeyer-Mertens, Roberto, Org. V. Frezzatti Jr., Wilson Antonio, Org. VI. T. CDD 20. ed. 190.63 106.3 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 4 Comitê Científico: Epistemologia: Andre Leclerc (UFPB) Douglas Antonio Bassani (UNIOESTE) Marcelo do Amaral Penna-Forte (UNIOESTE) Remi Schorn (UNIOESTE) Estética: Olímpio José Pimenta Neto (UFOP) Pedro Costa Rego (UFRJ) Wilson Antonio Frezzatti Jr (UNIOESTE) Ensino de Filosofia: Altair Fávero (UPF) Ana Miriam Wuensch (UnB) Célia Machado Benvenho (UNIOESTE) Ester Maria Dreher Heuser (UNIOESTE) Filosofia da Mente: Marcos Rodrigues da Silva (UEL) Luiz Henrique Dutra (UFSC) Metafísica: Alberto Marcos Onate (UNIOESTE) Alexandre Tadeu Guimarâes de Soares (UFU) Clademir Luís Araldi (UFPel) Claudinei Aparecido de Freitas da Silva (UNIOESTE) César Augusto Battisti (UNIOESTE) Cristiano Perius (UEM) Eder Soares Santos (UEL) Eneias Junior Forlin (UNICAMP) Erico Andrade Marques de Oliveira (UFPE) Libanio Cardoso (UNIOESTE) ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 5 Luciano Carlos Utteich (UNIOESTE) Marisa Carneiro de O. F. Donatelli (UESC) Roberto Saraiva Kahlmeyer-Mertens (UNIOESTE) Filosofia Política: Aylton Barbieri Durão (UFSC) Carlo Gabriel Pancera (UFMG) Cláudio Boeira Garcia (UNIJUÍ) Delamar José Volpato Dutra (UFSC) Jadir Antunes (UNIOESTE) José Luiz Ames (UNIOESTE) Luis Portela (UNIOESTE) Marciano Adilio Spica (UNICENTRO) Tarcílio Ciotta (UNIOESTE) Rosalvo Schütz (UNIOESTE) Vânia Dutra de Azeredo (PUC-CAMPINAS) ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 6 APRESENTAÇÃO O Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea é um evento promovido anualmente pela Graduação e pelo Mestrado em Filosofia da Unioeste. Ininterruptamente realizado desde 1996, ele se consolidou como espaço privilegiado de discussão e de debate filosóficos e de socialização da produção realizada na área, bem como ocasião de integração e de inserção dos referidos cursos e de seus membros, estudantes e professores, no cenário filosófico nacional. O evento se destaca também por conseguir congregar pesquisas dos diferentes níveis em que ela é feita. Talvez por essa razão, ele tenha conseguido atrair estudantes, mestrando, doutorandos e jovens professores de diferentes lugares do país, e trazer palestrantes e minicursistas que muito contribuíram para a determinação do evento por seu perfil aberto, acolhedor e em conformidade às exigências do fazer filosófico rigoroso. Esta nossa 18ª. edição, como as anteriores, foi resultante do engajamento de estudantes e de professores, sempre contando com o apoio da Universidade e dos órgãos de fomento. Em conformidade a esse espírito de trabalho conjunto e sempre voltados à busca da mais fecunda e profunda experiência do saber filosófico, apresentamos parte substantiva dos resultados do evento em forma de Anais. César Augusto Battisti Coordenador do XVIII Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea da Unioeste ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 7 SUMÁRIO Apresentação ......................................................................................................................................6 Programação Geral ............................................................................................................................8 Programação Comunicações ..........................................................................................................10 Resumos Expandidos* ....................................................................................................................21 Artigos Completos* ......................................................................................................................131 Índice de autores dos resumos expandidos ...............................................................................583 Índice de autores dos artigos completos ....................................................................................585 * A redação e a revisão finais dos textos são de responsabilidade dos próprios autores. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 8 Programação Geral Segunda-feira: 21/10/2013 Manhã: Miniauditório do Campus 08:30 – 09:15 Abertura 09:30 – 11:30 Conferência: Andrea Díaz Genis (Universidad de la República del Uruguay): “La biografía y la ausencia de Sujeto en la Filosofía del Nietzsche póstumo”. Tarde: Salas de aula 13:30 – 17:00 Comunicações e mesas redondas Noite: Miniauditório do Campus 19:10 – 20:40 Conferência: Eduardo Ferreira Chagas (UFC): “A ética em Marx e seus pressupostos críticos às éticas de Kant, Hegel e Feuerbach”. 21:00 – 22:30 Conferência: Ronai Pires da Rocha (UFSM): “Iris Murdoch, ética e linguagem”. Terça-feira: 22/10/2013 Manhã: Salas de aula 08:30 – 11:40 Minicursos: “A noção de Filosofia na Alemanha do século XIX”; “Origens e primeiros desenvolvimentos do copernicanismo”; “Ceticismo e Montaigne”; “Figuras da Alteridade”. Tarde: Salas de aula 13:30 – 17:00 Comunicações e mesas redondas Noite: Miniauditório do Campus 19:10 – 20:40 Conferência: Luiz Antonio Alves Eva (UFPR): “Questões céticas em Montaigne”. 21:00 – 22:30 Conferência: Maria Cristina Theobaldo (UFMT): “Conversação à “maneira” de Montaigne”. Quarta-feira: 23/10/2013 Manhã: Salas de aula 08:30 – 11:40 Minicursos: “A noção de Filosofia na Alemanha do século XIX”; “Origens e primeiros desenvolvimentos do copernicanismo”; “Ceticismo e Montaigne”; “Figuras da Alteridade”. Tarde: Salas de aual 13:30 – 17:00 Comunicações e mesas redondas ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 9 Noite: Miniauditório do Campus 19:10 – 20:40 Conferência: Thamy Claude Ayouch (Université de Lille 3 – França): “Existe uma psicanálise foucaultiana? Saber, poder e transferência”. 21:00 – 22:30 Conferência: Cláudio Almir Dalbosco (UPF): “Rousseau e o pensamento iluminista”. Quinta-feira: 24/10/2013 Manhã: Salas de aula 08:30 – 11:40 Minicursos: “A noção de Filosofia na Alemanha do século XIX”; “Origens e primeiros desenvolvimentos do copernicanismo”; “Ceticismo e Montaigne”; “Figuras da Alteridade”. Tarde: Salas de aula 13:30 – 17:00 Comunicações e mesas redondas Noite: Miniauditório do Campus 19:10 – 20:40 Conferência: Marcelo Silva de Carvalho (UNIFESP): “Juízos e Regras: algumas considerações sobre Kant, Wittgenstein e o hiato entre as regras e sua aplicação”. 21:30 – 21:45 Encerramento ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 10 Programação Comunicações 21/Outubro: SEGUNDA-FEIRA 13h30 SALA 04 – Mesa ―Hannah Arendt‖ Marcelo Barbosa Andrei Gati da Costa Josete Rockenbach (Coordenadora da mesa) Anisia Ripplinger de Abreu CONSIDERAÇÕES SOBRE O PENSAMENTO POLÍTICO DE HANNAH ARENDT HANNAH ARENDT: NOÇOES DE POLITICA, PODER E LIBERDADE NOVO HOMEM HANNAH ARENDT: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A CRISE NA EDUCAÇÃO SALA 06 – Mesa ―Filosofia Antiga‖ Eliza Menezes de Lima Luiz Carlos de Abreu Saulo Sbaraini Agostini Libanio Cardoso (Coordenador de mesa) EXPLICAÇÕES SOBRE AS TEORIAS QUE SUSTENTAM A TESE DA IMORTALIDADE DA ALMA NO DIÁLOGO FÉDON DE PLATÃO TEORIA DOS CONTRÁRIOS E A PROVA DA IMORTALIDADE DA ALMA NO FÉDON DE PLATÃO A CARACTERIZAÇÃO DA ERÍSTICA NO EUTIDEMO DE PLATÃO CRÍTICA ARISTOTÉLICA À DIALÉTICA PLATÔNICA SALA 13 – Mesa ―Deleuze I‖ Evânio Márlon Guerrezi (Coordenador de mesa) Paulo Roberto Schneider Rafael Saragoça Ortolan Lucas Henrique Nunes Batista CAN YOU SEE THE REAL ME, DOCTOR? APROXIMAÇÕES ENTRE QUADROPHENIA E O RIZOMA DE DELEUZE E GUATTARI ÉTICA E LITERATURA: A NOÇÃO DE LEI A PARTIR DO AGENCIAMENTO FILOSÓFICO-LITERÁRIO KAFKA, DELEUZE E GUATTARI PROUST E DELEUZE: REFERENCIAIS PARA OFICINAS DE ESCRILEITURAS DELEUZE, O TEATRO E A PRODUÇÃO DE UMA POLÍTICA MENOR ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 11 SALA 20 – Mesa ―Filosofia da Ciência‖ Luiz Antonio Brandt O PROJETO COPERNICANO DE GALILEU GALILEI Pedro Henrique A VISÃO DE KEPLER NA REVOLUÇÃO COPERNICANA Ciucci da Silva Douglas Antonio O PAPEL DA OBSERVAÇÃO NA CIÊNCIA Bassani (Coordenador de mesa) SALA 26 – Mesa ―Filosofia da Linguagem‖ Ulisson da Silva Pinheiro (Coordenador de mesa) Maria Lucia Matuczak Jarbas Mauricio Gomes JOHN R. SEARLE E SUA CONCEPÇÃO DE CONSCIÊNCIA: MATERIALISTA OU DUALISTA? FUNDAMENTOS EPISTEMOLÓGICOS DO COGNITIVISMO: AS CONTRIBUIÇÕES DE NOAM CHOMSKY PARA A PERSPECTIVA INATISTA DA MENTE CONCEPÇÃO DE MUNDO E LINGUAGEM EM GRAMSCI 21/Outubro: SEGUNDA-FEIRA 15h30 SALA 04 - Mesa ―Política Moderna‖ Luís Fernando Jacques (Coordenador de mesa) CONSIDERAÇÕES SOBRE O PACTO DOS RICOS E OS FUNDAMENTOS DA DESIGUALDADE CIVIL EM ROUSSEAU: A RECUSA DOS PRESSUPOSTOS LIBERAIS DE LIVRE CONCORRÊNCIA E COMPETIÇÃO SADIA Carlos Henrique Lemes da Silva CONDORCET E A IDEIA DE VOTO, SUFRÁGIO E MATEMÁTICA SALA 20 – Mesa ―Kant‖ Pedro Henrique Vieira (Coordenador de mesa) Christian Carlos Kuhn Gustavo Ellwanger Calovi JACOBI E A MORALIDADE DO IDEALISMO TRANSCENDENTAL REFLEXÕES FILOSÓFICAS ACERCA DO MISTICISMO À LUZ DO INTUICIONISMO E DO NEO-KANTISMO: KANT E JUNG A POSSIBLIDADE DE EFETIVAÇÃO DO SUMO BEM POLÍTICO SEGUNDO KANT ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 12 Jaime José Rauber A LIBERDADE COMO INDEPENDÊNCIA DE DETERMINAÇÕES SENSÍVEIS EM KANT SALA 26 – Mesa ―Discurso e Linguagem‖ Kátia R. Salomão Rodrigo Wenceslau (Coordenador da mesa) RAZÃO COMUNICATIVA E OS POTENCIAIS EMANCIPATÓRIOS DO DISCURSO O CAMINHO DA LÓGICA PARA FELICIDADE 22/Outubro: TERÇA-FEIRA 13h30 SALA 04 – ―Filosofia e Educação I‖ Luciano de Almeida / Paulo Evaldo Fensterseifer A NOÇÃO DE LINGUAGEM E SEUS DESDOBRAMENTOS PARA PENSAR O SE-MOVIMENTAR NA EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR Nilva Aparecida F. da Silva Caroline Recalcatti Silveira (Coordenadora da mesa) O ENSINO DA FILOSOFIA, A EJA E A ESCOLA JOAQUINA MATTOS – CEEBJA/CASCAVEL, PR POR UM NOVO ESPAÇO FILOSÓFICO CRIATIVO: FILOSOFIA NO ENSINO FUNDAMENTAL SALA 06 – Mesa ―Maquiavel I‖ Alan Rodrigo Padilha Douglas Antônio Fedel Zorzo José Luiz Ames (Coordenador de mesa) O ESTADO REPUBLICANO E O EXERCÍCO DE GOVERNANÇA EM NICOLAU MAQUIAVEL ENTRE AS BOAS LEIS E AS BOAS ARMAS: OS FUNDAMENTOS DO ESTADO EM MAQUIAVEL E A PRIMAZIA MILITAR MAQUIAVEL E A AÇÃO POLÍTICA: UMA TENTATIVA DE APROXIMAÇÃO CONCEITUAL SALA 13 – Mesa ―Filosofia e Música‖ ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 13 Rodrigo Lopes (Coordenador de mesa) Fabricia Piva Alberto Carlos de Souza NÚMEROS E PAIXÕES: RENÉ DESCARTES E AS TEORIAS MUSICAIS FRANCESAS DO SÉCULO XVII MUSICA COMO FATOR ESTÉTICO E A TEORIA DAS PAIXÕES OS LUGARES DE MEMÓRIA NAS OBRAS FONOGRAFICAS ―MINAS‖ E ―GERAES‖ DE MILTON NASCIMENTO SALA 20 – Mesa ―Filosofia Alemã I‖ Márcia Elaini Luft Dennis Donato Piasecki (Coordenador de mesa) Maglaine Priscila Zoz A METAFÍSICA DE SCHOPENHAUER A FINITUDE E SUA RELAÇÃO COM O TEMPO NA FILOSOFIA DA NATUREZA DE HEGEL A VERDADEIRA LIBERDADE SALA 26 – Mesa ―Descartes‖ Felipe Ricardo Deuter Becker Marcos Alexandre Borges João Antônio Ferrer Guimarães (Coordenador de mesa) A DÚVIDA COMO BUSCA DA VERDADE A NOÇÃO DE IDEIA E A SAÍDA DO SOLIPSISMO NA FILOSOFIA PRIMEIRA DE DESCARTES O COGITO COMO CONSCIÊNCIA DE SI SALA 27 - Mesa ―Política I‖ Rodrigo Fampa Negreiros Lima Ricardo Corrêa (Coordenador de mesa) Maurício Rebelo Martins REVOLUCIONÁRIOS DE 1776: ENTRE A AGONIA E A APOSTA DA DEMOCRACIA À HIPERDEMOCRACIA: UM DIÁLOGO POSSÍVEL ENTRE ALEXIS DE TOCQUEVILLE E JOSÉ ORTEGA Y GASSET REFLEXÕES SOBRE AS MANIFESTAÇÕES DE JUNHO DE 2013 E A TEORIA DO RECONHECIMENTO DE AXEL HONNETH 22/Outubro: TERÇA-FEIRA 15h30 SALA 04 – Mesa ―Filosofia e Educação II‖ Luiz Carlos Frederick (Coordenador de A QUESTÃO DA ALFABETIZAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: UMA REFLEXÃO DIALÓGICA A PARTIR DE FREIRE E DUSSEL ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 14 mesa) Francisco Luna Pereira A HISTÓRIA DA EJA, A ALFABETIZAÇÃO E A FILOSOFIA SALA 06 – Mesa ―Maquiavel II‖ Jorge dos Santos de Araujo Carla Musa Latsch Cherem Gabriel Allan Drehmer Gonçalves (Coordenador de mesa) Mariana da Silva Pereira A CONSTITUIÇÃO DE ESTADO NA OBRA ―O PRÍNCIPE‖ DE MAQUIAVEL PODER E POVO N‘O PRÍNCIPE DE MAQUIAVEL LIBERDADE POLÍTICA EM ―O PRÍNCIPE‖ DE NICOLAU MAQUIAVEL A OPRESSÃO DE GÊNERO NA POLÍTICA E NA HISTÓRIA: HÁ UM CONCEITO DE HOMEM E MULHER EM MAQUIAVEL (1469-1527)? SALA 13 – Mesa ―Filosofia e Arte‖ Samon Noyama Danilo Persch (Coordenador de mesa) Elizandra Bruno Sosa NOSTALGIA E METÁFORA NA GRÉCIA DE WINCKELMANN REFLEXÕES SOBRE O TEMPO: ANÁLISE DO ROMANCE MONTANHA MÁGICA DE THOMAS MANN A MODERNA ALEGORIA DA CAVERNA SALA 20 – Mesa ―Schelling‖ Kayenne Cristine F S Vosgerau Rosalvo Schütz (Coordenador de mesa) SCHELLING E O PROBLEMA DA INTUIÇÃO INTELECTUAL ENQUANTO INTUIÇÃO OBJETIVADA SCHELLING: ELEMENTOS PARA UMA FILOSOFIA POSITIVA SALA 26 – Mesa ―Filosofia e Conhecimento‖ Hélio da Siqueira (Coordenador de mesa) Sérgio Luís Persch ELUCIDAÇÃO DA CRÍTICA HOBBESIANA AO CONCEITO DE MOVIMENTO DE ARISTÓTELES APONTAMENTOS SOBRE O MOS GEOMETRICUS NA FILOSOFIA DE ESPINOSA ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 15 23/Outubro: QUARTA-FEIRA 13h30 SALA 04 – Mesa ―Sartre‖ Helen Aline Santos Manhães (Coordenadora de mesa) Jussara Teresinha Henn Luiza Helena Hilgert A NOÇÃO DE VALOR NO PENSAMENTO DE SARTRE: O DESEJO DE SER NO SEIO DO PARA-SI REFLEXÕES SOBRE A CONDIÇÃO DO JOVEM INFRATOR A PARTIR DO OLHAR EXISTENCIALISTA DE SARTRE FILOSOFIA E TEATRO EM SARTRE SALA 06 – Mesa ―Filosofia e Educação III‖ Letícia Nunes Goulart (Coordenadora da mesa) Cleder Mariano Belieri Claudeonor Antônio de Vargas / Cleriston Petry LIPMAN: APRENDENDO A PENSAR NA EDUCAÇÃO O DIÁLOGO NAS AULAS DE FILOSOFIA DO ENSINO MÉDIO O PAPEL DA VERGONHA E DA CULPA NO RECONHECIMENTO DO EU E DO OUTRO E SEU PAPEL NA EDUCAÇÃO SALA 13 – Mesa ―Nietzsche I‖ Estevão Bocalon Felipe José Schmidt Marioni Fischer de Mello (Coordenadora da mesa) NIETZSCHE: A DOUTRINA DA VONTADE DE POTÊNCIA A PSICOFISIOLOGIA NA EDUCAÇÃO EM NIETZSCHE APONTAMENTOS SOBRE A FISIOPSICOLOGIA NO ÚLTIMO PERÍODO DE NIETZSCHE SALA 20 – Mesa ―Rousseau‖ Alexandre José Krul (Coordenador da mesa) Marisa Ignes Orsolin Morgan Marlene de Fátima Rosa A EDUCAÇÃO PARA A CONDIÇÃO HUMANA PROPOSTA POR ROUSSEAU NO EMÍLIO DA INFLUÊNCIA ILUMINISMO AO DESENVOLVIMENTO DA CONSCIÊNCIA MORAL NA NOVA PEDAGOGIA DE JEAN-JACQUES ROUSSEAU LIBERDADE E IGUALDADE EM ROUSSEAU ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 16 SALA 27 – Mesa ―Popper I‖ Leonardo Edi Ignácio Carlos Henrique Favero Remi Schorn (Coordenador da mesa) O PROGRESSO DA CIÊNCIA EM KARL R. POPPER INVESTIGAÇÃO ACERCA DO UNIVERSO E SUA POSSIBILIDADE DE COMPREENSÃO O RACIONALISMO CRÍTICO EM KANT E POPPER 23/Outubro: QUARTA-FEIRA 15h30 SALA 04 – Mesa ―Merleau-Ponty‖ Diogo Heber Albino CONSTRUÇÃO, DE CHICO BUARQUE, E O ÉTICOde Almeida ESTÉTICO: UMA POSSIBILIDADE DE ANÁLISE EM SARTRE E MERLEAU-PONTY Rodrigo Volz SOBRE CORPO E MÁQUINA NA CONTEMPORANEIDADE (Coordenador da mesa) Litiara Kohl Dors A ALTERIDADE INFANTIL: MERLEAU-PONTY E WINNICOTT SALA 06 – Mesa ―Filosofia e Educação IV‖ Hélio Clemente Fernandes (Coordenador da mesa) Daniel Salésio Vandresen Josiane Beloni da Cruz / Kátia Aparecida Poluca Proença / Neiva Afonso Oliveira A FILOSOFIA E A EDUCAÇÃO NO CAMPO A FORMAÇÃO FILOSÓFICA NA EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA: UMA REFLEXÃO SOBRE A EDUCAÇÃO, O TRABALHO E AS TECNOLOGIAS A RELAÇÃO DA EDUCAÇÃO E TRABALHO NOS ESTUDOS MARXIANOS SALA 13 – Mesa ―Nietzsche II‖ Douglas Meneghatti Neomar Sandro O ESPÍRITO LIVRE DE SÓCRATES: UMA LEITURA A PARTIR DE NIETZSCHE O PERSONAGEM ZARATUSTRA NA FILOSOFIA DE ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 17 Mignoni (Coordenador da mesa) André Vinícius Nascimento Araújo NIETZSCHE DIFERENÇA E PENSAMENTO SELETIVO NA CONCEPÇÃO DELEUZIANA DO ETERNO RETORNO SALA 20 – Mesa ―Marx‖ Gerson Lucas Padilha de Lima (Coordenador da mesa) Jonece Beltrame Daltro Lucena Ulguim APONTAMENTOS SOBRE A TEORIA DA ALIENAÇÃO NO JOVEM MARX A TEORIA DA EMANCIPAÇÃO EM KARL MARX E JÜRGEN HABERMAS OS MOMENTOS EVOLUTIVOS DO SER SOCIAL: ONTOLOGIA E TELEOLOGIA DE MARX A LUKÁCS SALA 26 – Mesa ―Adorno‖ Luana A. de Oliveira EDUCAÇÃO E POLÍTICA EM THEODOR ADORNO (Coordenador da mesa) Zaira Canci MAIORIDADE E AUTONOMIA: CONTRIBUIÇÕES KANTIANAS AO PENSAMENTO DE THEODOR W. ADORNO SALA 27 – Mesa ―Popper II‖ Vitor L.P. Diogo LINGUAGEM E OBJETIVIDADE: CONSIDERAÇÕES DE KARL POPPER BERKELEY E A VISÃO INSTRUMENTALISTA DAS TEORIAS CIENTÍFICAS Angelo Eduardo da Silva Hartmann (Coordenador da mesa) 24/Outubro: QUINTA-FEIRA 13h30 SALA 04 – Mesa ―Fenomenologia‖ André Dutra Zanolla Devair Gonçalves Sanchez (Coordenador da mesa) Janilce Silva Praseres ESTUDO SOBRE A FENOMENOLOGIA DE HUSSERL NATUREZA E INTERSUBJETIVIDADE NA FENOMENOLOGIA DE HUSSERL AFETIVIDADE E NÃO-INTENCIONALIDADE: ASPECTOS DA FENOMENOLOGIA DA VIDA DE MICHEL HENRY ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 18 SALA 06 – Mesa ―Nietzsche III‖ Paulo Cesar Jakimiu Sabino Francisco Jhon Lennon Nogueira Rêgo Maurício Smiderle (Coordenador da mesa) NIETZSCHE E UMA ÉTICA DIONISÍACA CONVERSAÇÕES ACERCA DA PRIMEIRA DISSERTAÇÃO DA OBRA GENEALOGIA DA MORAL DE NIETZSCHE A CIVILIZAÇÃO ENQUANTO ENFRAQUECIMENTO DO HOMEM SALA 13 – Mesa ―Deleuze II‖ Leandro Nunes / Brendha Evaristo Luana Borges Giacomini (Coordenadora da mesa) Ricardo Niquetti A GEOGRAFIA DO CONCEITO E O RITORNELO NA FILOSOFIA DE GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATARRI: O PROBLEMA DA DESTERRITORIALIZAÇÃO PENSAR INTUITIVAMENTE PARA O ULTRAPASSAMENTO DA RAZÃO CLÁSSICA POLÍTICA EM GILLES DELEUZE: N-1 E SUAS IMPLICAÇÕES NOS MODOS DE SE ESTAR NOS VERBOS DA VIDA SALA 20 – Mesa ―Política II‖ Gilmar Derengoski (Coordenador da mesa) Ricardo Bernardi Castilhos O CONCEITO DE MERCADORIA EM O CAPITAL DE MARX: A TEORIA DO VALOR E O FETICHE DA MERCADORIA A INEFICIÊNCIA DO ESTADO DE BEM ESTAR SOCIAL E AS MANIFESTAÇÕES POPULARES SALA 26 – Mesa ―Ciência e Ética I‖ Erickson dos Santos Adaiana Pinto Orcheski (Coordenadora da mesa) Maurício Tavares Pereira A RESPONSABILIDADE DO CIENTISTA REFLEXÃO ACERCA DE UMA EDUCAÇÃO AMBIENTAL EM H. JONAS LIBERTAÇÃO E ECOLOGIA: A MUDANÇA PARA O PARADIGMA ECOLÓGICO NO PENSAMENTO DE LEONARDO BOFF SALA 27 – Mesa ―Ceticismo‖ ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 19 Henrique Zanelato (Coordenador da mesa) Josué do Nascimento Sandro Nogueira Borges QUESTÕES CÉTICAS DO PIRRONISMO: DE PIRRO A ENESIDEMO O CETICISMO PIRRONIANO E O CETICISMO ACADÊMICO MACHADO DE ASSIS: UM CÉTICO BRASILEIRO NA MODERNIDADE 24/Outubro: QUINTA-FEIRA 15h30 SALA 04 – Mesa ―Heidegger‖ Roberto S. Kahlmeyer-Mertens (Coordenador da mesa) Marcos Antonio de Souza Brito Jean Tonin Renata Ribeiro Tavares as Silva A FUNDAMENTAÇÃO DILTHEYANA DAS CIÊNCIAS HUMANAS DESDE O PONTO DE VISTA DAS VIVÊNCIAS O ESQUECIMENTO DO SER NA FILOSOFIA DE HEIDEGGER O PROBLEMA DO SER NO ÂMBITO DO ACONTECIMENTO-APROPRIATIVO ZUBIRI E HEIDEGGER SALA 06 – Mesa ―Nietzsche IV‖ Mariély Cássia da Silva (Coordenadora da mesa) Osmilto Moreira Silva Eduardo José Lobo Rodrigues ENTRE JOGOS: A FILOSOFIA DE NIETZSCHE E A LITERATURA DE JULIO CORTÁZAR O SOFRIMENTO COMO POSSIBILIDADE DE CRESCIMENTO HUMANO: UMA LEITURA NIETZSCHANA À LUZ DO PERSPECTIVISMO O PROBLEMA DA CULTURA NAS CONFERÊNCIAS DE NIETZSCHE SALA 13 – Mesa ―Filosofia Francesa Contemporânea‖ Nadimir Silveira de Quadros (Coordenador da mesa) Suellen Dantas Godoi Daiane Lemes A ―PRESENÇA‖ NA FILOSOFIA CONCRETA DE GABRIEL MARCEL FOUCAULT E A QUESTÃO CIENTÍFICA DA PSICOLOGIA: POSITIVIDADE E NEGATIVIDADE NA PESQUISA PSICOLÓGICA NOÇÃO DE PESSOA E AGENTE EM PAUL RICOEUR ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 20 Pereira Odair Salazar da Silva A METÁFORA ENTRE O SENTIDO E A REFERÊNCIA: UMA ABORDAGEM RICOEURIANA SALA 20 – Mesa ―Política III‖ Jéssica Fernanda Jacinto de Oliveira (Coordenadora da mesa) Leandro de Araújo Crestani A FILOSOFIA DA CULTURA E O POTENCIAL REVOLUCIONÁRIO DA CULTURA POPULAR E INDÍGENA EM ENRIQUE DUSSEL RELAÇÕES DE PODER NAS FRONTEIRAS TRANSNACIONAIS: ARGENTINA E BRASIL (1857/1895) SALA 26 – Mesa ―Ciência e Ética II‖ Luiz Roberto Zanotti (Coordenador da mesa) Wagner Hoffmann BIOÉTICA: UMA ÉTICA PRÁTICA A BIOÉTICA PERSONALISTA COMO RESPOSTA À CRISE DE SENTIDO SALA 27 – Mesa ―Montaigne‖ Angela Maria da Silva (Coordenadora da mesa) Anderson Lucas ENSAIANDO O PENSAR FILOSÓFICO: DA PINTURA DE SI AOS CANIBAIS CRÍTICA DA RAZÃO EM REYMOND SEBOND ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 21 RESUMOS EXPANDIDOS* * A redação e a revisão finais dos textos são de responsabilidade dos próprios autores. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 22 CRÍTICA DA RAZÃO NA “APOLOGIA DE RAYMOND SEBOND” Anderson Lucas UNIOESTE [email protected] Gilmar Henrique Conceição Palavras-chave: Crítica, Razão, Ceticismo, Raymond Sebond A Apologia de Raymond Sebond constitui um dos tratamentos mais ―sistemáticos‖ da discussão cética de Montaigne acerca do critério para decidir o critério, retomada no século XVI, em razão dos conflitos entre o partido protestante e o partido católico. Neste escrito Montaigne realça sua adesão ao ―mais sábio partidos dos filósofos‖ (II, 15, p. 419). Isto ocorre dado o fato que, conforme Villey (2006, p. 158), Montaigne renuncia ao uso absoluto de sua razão individual e vê com preocupações a situação de dilaceramento da França. Montaigne defende o critério cético para a vida prática: é o ―phainómenon” (―o que aparece‖), por isso mesmo, os céticos são ―philántropoi‖ (―amantes da espécie humana‖). De acordo com Eva, o mesmo juízo sobre a superioridade da posição dos ―Skeptiques‖ se apresenta nesta obra com mais detalhes, ainda que de forma indireta. De acordo com este intérprete a exposição dos conceitos principais do ceticismo, que ocupa as páginas centrais desse capítulo, é delimitada por juízos relacionados ao exame da busca humana da verdade. Desse modo, na Apologia observa-se que a apresentação do ceticismo se realiza quase exclusivamente com base em elementos pirrônicos. (EVA, 2007, p. 30). É este o motivo porque neste capítulo dos Ensaios (II, 12, p. 157), o pirrônico Montaigne critica severamente a razão por meio da razão. Ou em outras palavras, os pirrônicos se servem da razão para investigar e para debater, mas não para sentenciar e escolher baseado na certeza. O ceticismo de Montaigne é influenciado fundamentalmente por Sexto Empírico, mas ele dialoga com os Acadêmicos. Como é sabido, o ensaísta traduziu a obra de Raymond Sebond do latim para o francês, a pedido de seu pai. Posteriormente, frente às objeções levantadas contra Sebond, Montaigne se propôs defendê-lo e isto deu origem à Apologia a Raymond Sebond, onde ele enfrenta as referidas objeções que lhe são dirigidas. A resposta que o ensaísta dá à primeira objeção é a de que a razão por si só não pode demonstrar as verdades da religião. Mas julga que é melhor apoiar ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 23 sua crença com razão humanas. Na resposta à segunda objeção o ensaísta argumenta que se os argumentos de Sebond são insuficientes, seus críticos também não têm nada melhor para opor-lhe, visto que a razão é incapaz de fundamentar qualquer coisa. Villey acrescenta a isto o fato de que na Apologia encontramos a crítica da vanidade do homem, da vanidade da ciência e da vanidade da razão (instrumento da ciência). Vale a pena salientar que a crítica à ―vaidade‖, ainda que reverbere dos Eclesiastes, o argumento de Montaigne trava-se na esfera da pura razão humana. Trata-se de uma ―vanidade‖ porque com a razão defendemos qualquer ideia. A toda afirmação pode-se opor outras afirmações. O núcleo da argumentação montaigniana está em apontar que o ser humano se distingue pela arrogância. Ainda que possa fazer com a razão tudo o que quisermos, dado que se trata de algo maleável, a ciência é muito útil e importante. É este o sentido da própria abertura da Apologia: (A) na verdade, a ciência é uma coisa muito útil e grande; os que a menosprezam dão prova bastante de tolice; mas nem por isso estimo seu valor até essa medida extrema que alguns lhe atribuem, como o filósofo Herilo, que colocava nela o soberano bem e afirmava que estava em seu poder tornar-nos sábios e contentes; não creio nisso, nem no que disseram outros; que a ciência é mãe de toda virtude e todo vício é produzido pela ignorância. Se isto for verdade, está sujeito a uma longa interpretação (II, 12, p. 160). Na realidade, Montaigne critica não só a capacidade da razão como também a razão antropocêntrica no contexto do Renascimento. Critica a ―dignidade humana‖ e a ―miséria humana‖. Não estamos nem acima nem abaixo dos animais. Porém, se pudermos sintetizar a Apologia em um único enfoque temos: trata-se, aí, de uma crítica radical a toda forma de dogmatismo. Constata-se que o esforço desta crítica aponta para a tese de que a razão é incapaz de validar qualquer objeto ou se apresentar como verdade inquestionável. A partir deste diagnóstico arrola comparações entre animais e homens. Os partidos dos filósofos são conflitantes e discordantes. As ciências que são os principais produtos da razão, são contraditórias. Temos, assim, a concordância montaigniana com a questão da ―diaphonia‖ elaborada pela tradição do ceticismo pirrônico. Por isso mesmo a razão não pode conduzir o domínio da vontade contra as paixões; ao contrário, as paixões podem ameaçar a teórica ―constância da alma‖, pois a razão inclina-se para diferentes lados porque é defeituosa e cega: (...) ela é tão defeituosa e tão cega que não há nenhuma facilidade tão clara que lhe seja suficientemente clara; que o fácil e o difícil lhe são semelhantes; que todos os assuntos por igual e a natureza em geral renegam sua jurisdição e intermediação (II, 12, p. 176). ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 24 O que temos é no mais alto grau, o exercício da razão em sua autonomia: O eu dos Ensaios, portanto, apesar de proceder à crítica das ilusões da razão, não tem nada de irracionalista: é ainda à razão que cabe conhecer seus limites, reconhecer os seus outros e proceder a uma ética da medida‖. (BIRCHAL, 2007, p. 204). De certa forma, a razão se nega radicalmente e se afirma nessa mesma negação. A razão teórica conserva valor em seu uso negativo, como crítica que destrói os ídolos da razão errante, as ―verdades‖, as instituições, o costume, a lei, o Estado, etc. O que Montaigne constata são as perpétuas variações e contradições, desse modo a razão humana é incapaz de determinar a lei moral. Este o sentido dos exemplos que encontramos em sua escrita, totalmente destrutivos para a perspectiva dogmática e antropocêntrica. Montaigne escreve, por exemplo, que há uma perfeição na sociedade e em toda organização das abelhas, que que muitos humanos não conseguem fazer sua sociedade ―superior‖ ao de simples insetos. Outros argumentos que podem ser ressaltados neste ensaio é o comunicação entre os animais, ou seja em especial o ensaísta se refere à linguagem dos animais. Salienta que muitos animais ―sem voz‖ conseguem se comunicar facilmente através de gestos ou até mesmo de movimentos com significações específicas. Outros fortes exemplos apresentados por Montaigne visam mostrar que o homem é o animal mais fraco e desgraçado em qualidades de proteção. Muitos animais têm seus meios de proteção já anexados a eles como as garras de um caranguejo, o odor de um gambá. Sem falar que boa parte dos animais tem garras, dentes, chifres para o ataque. Por seu lado, o homem nasce ―sem nada‖ apenas sabendo chorar, sem nenhuma proteção além dos da sua espécie. Se formos pensar profundamente sobre esse aspecto vemos que não temos nada além de ―armas artificiais‖ para nossa sobrevivência no mundo. Com isso vemos que os mais simples seres, como o piolho ou vermes, podem destruir ―qualquer príncipe ou imperador‖. Há muitos outros exemplos que reforçam a ideia de que a razão humana é análoga ao de vários animais. Sendo, portanto, uma loucura buscar razões decisivas para o debate acerca do critério para decidir sobre a verdade religiosa. Considera outra loucura ser a imagem e semelhança de Deus. Nunca - como alguns objetores de Sebond propõem - nossa razão pode ser comparada a de Deus, pois Deus é um ser uno, inigualável (e até impensável, dado que não cabe em nossa razão). Montaigne por isso afirma que não conseguimos nem mesmo pensar em que seja Deus, nem muito menos falar dele. É algo que ultrapassa nossa compreensão. Montaigne se opõe ao mundo e adere ao mundo, critica a política e se insere na política, critica a razão e recorre à razão. Starobinski refere-se ao movimento de ―oposição ao mundo‖ enquanto recusa da mentira e da ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 25 dissimulação em Montaigne, e talvez isso componha, na verdade, sua ―adesão ao mundo‖ enquanto veracidade e plenitude; são faces do mesmo homem: Ao denunciar os prestígios do parecer, Montaigne toma partido, implicitamente, pela plenitude sem equívoco do ser verdadeiro. Mas ele só o conhece pela força da recusa que o faz considerar inaceitáveis a mentira e a máscara. Montaigne, no instante em que se opõe ao mundo, não pode valer-se de nenhuma verdade possuída; proclama apenas o seu ódio da ‗simulação‘. O verdadeiro é o positivo ainda desconhecido implicado pela negação dirigida contra o mal pululante; o verdadeiro não tem fisionomia determinada, é apenas a energia não aplacada que anima e que arma o ato da recusa. (STAROBINSKY, 1992, P. 1516). Qual seja o ensaísta revela uma figura da subjetividade não estritamente racionalista, ancorada no mundo e em relação com o outro: ele recusa a ideia de que a razão defina, essencialmente, o ser humano, ao modo do que viria ocorrer na perspectiva cartesiana. Montaigne não é inconsequente, em sua decisão filosófica pessoal de levar o uso da razão às últimas consequências, e isso o conduz a uma constatação, e esta o impele, por sua vez, à recusa em adotar uma filosofia como verdadeira. Coerente com o seu ceticismo, Montaigne não se engaja em nenhuma ―seita‖ preexistente ou, mais precisamente, em nenhum dos partidos dos filósofos que, por se estreitar nos limites de um pensamento filosófico que pretende ser, se não ―o único‖, ―o verdadeiro‖ e ―para todos‖, descarta a subjetividade e acaba por se constituir em seita; por isso concorda com o partido dos pirrônicos. Não há razão que não tenha uma razão contrária dela, como dizia Sexto Empírico. Montaigne não considera em política, conotações objetivas dos conceitos, dado que considera a razão desprovida de autonomia e constituída da mesma matéria da qual são feitos os hábitos. Para ele, a razão é incapaz de resolver problemas políticos, religiosos e metafísicos. Referências Bibliográficas: BIRCHAL, Telma. O eu nos Ensaios de Montaigne. Belo Horizonte: ed. UFMG, 2007. CARDOSO, Sérgio . Villey e Starobinski: duas interpretações exemplares sobre a gênese dos Ensaios. Kriterion, Belo Horizonte, v. 33, n. 86, p. 9-28, 1992. MONTAIGNE, Michel de, Os Ensaios. Tradução de Rosemary Costhek Abílio. São Paulo: Martins Fontes, 2000. – (Paideia). ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 26 SEXTO EMPÍRICO. Hipotiposes Pirrônicas. Tradução de Danilo Marcondes. http://portalveritas.blogspot.com.br/2009/06/sexto-empirico-hipotiposes pirronicas.html. Ac.: 02/08/2013. STAROBINSKI, Jean. Montaigne em movimento. Tradução de Maria Lúcia Machado. São Paulo: Cia da Letras, 1992. VILLEY, Pierre. A vida e a obra de Montaigne. MONTAIGNE. Os Ensaios: Livro I. São Paulo : Martins Fontes, 2006. – (Paideia). ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 27 ENSAIANDO O PENSAR FILOSÓFICO: DA PINTURA DE SI AOS CANIBAIS Angela Maria da Silva UNIOESTE/PET- Filosofia [email protected] Gilmar Henrique da Conceição Palavras-chave: Alteridade. Ceticismo. Ensaio. Filosofia. O objetivo deste trabalho visa discutir o movimento próprio da filosofia montaigniana. A partir deste entendimento metodológico buscaremos fundamento nos próprios Ensaios, como uma espécie de guia que se revela no ato da escrita. Intérpretes buscam conduzir o leitor ao sentido próprio dos Ensaios, porém também se colocam como dificuldades a serem transpostas, porque são escritos que também exigem entendimento acerca de suas interpretações. Inicialmente destacamos o argumento de que a escrita montaigniana se encontra sempre em aberto, estando continuamente por ser desvelada de forma paradoxal, mesmo quando se revela. Isso implica em registrar os fatos, sem ideias preconcebidas, e em abandonar uma hipótese se ela não concordar com a realidade. Montaigne, ao propor, então, seu exercício de pensador na forma de ensaio, entende sua filosofia, como oposta a um sistema fechado. O que não invalida a perspectiva de se apresentar como uma profunda reflexão cética e, neste contexto, rigorosamente honesta como expressão de um eu aberto ao mundo, como ―pintura de si‖. Portanto parece-nos correto dizer que, para ele, tanto corpo, quanto o espírito são de mesma grandeza. Não há separação antagônica entre estas duas realidades em seu pensamento. Ao revelar-se a si mesmo e ―completamente nu‖, o filosofo se retrata de inteiro. Segue-se então que sua original maneira de filosofar, a partir de si, acaba por se constituir em um radical exercício da dúvida de Pirro, por ele estudada a partir das Hipotiposes Pirrônicas. Seus Ensaios tratam de diversos aspectos daquilo que se apresenta como próprio da natureza humana, sejam eles da vida prática, sejam eles da vida teórica. Para Montaigne a filosofia tem caráter investigativo e incessante de revelação e ocultamento. Como ele mesmo afirma desafiadoramente: ―Arranquemos as máscaras às coisas como às pessoas...‖ (I, 20, p.55). O que ele concluindo é que embaixo de cada máscara há outras máscaras. Neste sentido há a denúncia da máscara e o reconhecimento de que só nos apresentamos com máscaras. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 28 Nesta investigação sem fim, ele se desfaz das máscaras e se retrata como puro aparecer. De modo que, talvez, o ato da morte seja nossa última máscara: ―(...) e por baixo veremos muito simplesmente a morte‖ (I, 20, p. 55). Os Ensaios vão revelando, em cada capítulo, um Montaigne desnudo e forte na construção de uma interpretação do homem e do mundo. Não obstante, em Montaigne encontramos mais o paradoxo e menos o repouso. Ele elabora seu pensamento para um fim que não tem fim; todavia há certa alegria na procura: ―(B) Meu andar é rápido e firme; e não sei qual dos dois, o espírito ou o corpo, tenho mais dificuldade em deter no mesmo lugar‖ (III, 13, p. 484). Há um movimento visceral na sua escrita pirrônica: ―(...) Prefiro, porém, que me vejam na minha simplicidade natural, sem artifício de nenhuma espécie, porquanto é a mim mesmo que pinto. Vivos se exibirão meus defeitos e todos me verão na minha ingenuidade física e moral,pelo menos enquanto permitir a conveniência. Se tivesse nascido entre essa gente de quem se diz viver ainda na doce liberdade das primitivas leis da natureza, asseguro-te que de bom grado me pintaria por inteiro e nu... (Ao Leitor, 2002, p. 03). Em seu célebre ensaio intitulado ―Dos Canibais‖ o ensaísta descreve o ―outro‖, o bárbaro. Sua abordagem crítica nos leva a questionar nossa posição cultural diante daquele que se nos apresenta como ―desconhecido‖. Ao comparar os europeus aos tupinambás, Montaigne avalia que os verdadeiros selvagens são os primeiros, pois estavam promovendo atrocidades não apenas em suas conquistas por toda América como também nas guerras de religião. Ou seja, em seu movimento argumentativo mostra que atribuímos ao termo ―bárbaro‖ tudo aquilo que não conhecemos. Assim aqueles selvagens são apresentados por Montaigne, na realidade, como seres naturais ou integrados e ―intactos‖, ou seja sem a intervenção (ou colonização) de outros povos, ditos evoluídos. Neste ponto do Ensaio surge outra questão relevante para nosso entendimento, a partir da inversão argumentativa de que chamamos de barbárie aquilo que não é de nosso costume: ―(...) Podemos, portanto qualificar esses povos como bárbaros em dando apenas ouvidos à inteligência, mas nunca se os compararmos a nós mesmos, que os excedemos em toda sorte de barbaridades‖ (I, 31, p. 107). Estabelecendo esses parâmetros levantados pelo filosofo fica evidente sua intenção em dizer que natural e selvagem são sinônimos no caso dos povos indígenas do Brasil por ele abordado. Avança ainda dizendo ser uma espécie de preconceito (palavra não dita por ele, mas cabível neste caso), pois se trata de uma violência aplicada a estes povos. Para ele os bárbaros são deveras os ditos europeus abastardados, por sua corrupção interna e de natureza corruptiva, ou seja, corruptor de outros. A propósito disto Montaigne cita em seguida Propércio: ―A hera cresce ainda melhor sem cuidados; o medronheiro nunca se apresenta mais belo como nos antros solitários e o canto ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 29 dos pássaros é assim tão suave porque natural‖ (I, 31, p. 105). Neste momento do texto fica claro a sua intenção de clarificar o conceito do que seja o ―outro‖, bem como de se posicionar, avaliando o povo indígena como admirável e sábio, e não desprezível e ignorante como quer significar a própria palavra empregada como ―bárbaros‖, ao contrário. Em razão disso cita Sêneca: ―(...) São homens que saem das mãos dos deuses‖ (I, 31, p.106). Finalmente, não é na solidão, ou na pura volta a si que Montaigne encontra a solidez de uma vida verdadeira, a real existência de si mesmo, mas numa relação paradigmática com o outro. O filósofo propõe uma abertura para além do senso comum, ou seja, leva o leitor, juntamente com ele, a repensar essa questão do diferente e que não esteja determinada por nossos usos e costumes. Montaigne alerta para o ―império dos costumes‖ do qual ninguém escapa: ―(...) E é natural, porque só podemos julgar da verdade e de razão de ser das coisas pelo exemplo e pela ideia dos usos e costumes do país em que vivemos‖ (I, 31, p. 105) Aprofundando tais questões ele indaga: o que são os outros, os desconhecidos, aqueles os quais ignoramos? Nossos usos e costumes, porém, não podem ser considerados como supostamente superiores aos de outros povos. Assim, ele também parece problematizar essa ideia, ao apontar para o fato de que, em quase todos os homens, há um defeito generalizado de ver e seguir apenas o que se praticou desde o berço, e que isso frequentemente é tomado como a única ―verdade‖. De modo que os usos e costumes de outros povos e de outros tempos são vistos como bárbaros e selvagens porque tais povos não se vestem como nós e não têm hábitos como os nossos. Reconhecendo o limite da razão e a diversidade dos costumes humanos, o filósofo aponta as atitudes dogmáticas dos que se pretendem portadores da verdade, do certo e do errado. Faz necessária a prática de reconhecer a diversidade de cada cultura e nela a parcialidade da verdade, sempre situada em seu contexto próprio. Nesse caminho do conhecer, dúvidas cortantes perpassam toda sua obra. O limite do sujeito que conhece circunscreve cada capítulo, a constatação de que quando afirmamos algo de um objeto, não é da verdade desse objeto que falamos, mas da maneira de como nós o percebemos. E são essas impressões e percepções que comunicamos. Do mesmo modo ao falarmos de valores, não falamos em valores da coisa, mas da maneira subjetiva, como reflexos do juízo do sujeito que pensa. Mas, o sujeito não é puro pensamento, nem constitui a identidade do eu. Tudo são fenômenos, inclusive a nós mesmos somos fenômenos a nós. Para Montaigne tudo serve como objeto de reflexão e de aprendizagem, pessoas, livros, acontecimentos, etc. Todavia, o estudo de si mesmo constitui seu núcleo dinâmico: ―Estudo a mim mais do que a outro assunto. Essa é minha física, essa é minha metafísica‖ (III, 13, p. 434). Tendo claro que o examinar-se primorosa e ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 30 profundamente não é espontâneo, e requer do sujeito muita determinação, visto que as afecções podem distrair-nos de nós mesmos. Por isso, ainda que o nosso autor vá a todas as direções ele não se perde. Somente assim se pode aprender a lógica da produção da própria identidade. Afinal, para ele, o pensamento sobre si mesmo é o centro unitário das mais diferentes experiências humanas e pode permitir algum tipo de ―exatidão‖, pois o eu pode se conhecer, observando-se, mais do que observando o outro. Todavia, em Montaigne o projeto do conhecimento de si não se exerce sobre uma interioridade fechada. O outro é trazido para o exercício do julgamento e trazido para o círculo da interioridade (BIRCHAL, 2007, p. 205). Referências Bibliográficas: MONTAIGNE, Michel de, Os Ensaios. Tradução de Rosemary Costhek Abílio. São Paulo: Martins Fontes, 2000. – (Paideia). SEXTO EMPÍRICO. Outlines of Pyrrhonism. Tradução para o inglês de R. G. Bury. Cambridge, Massachusetts, London, England: Harvard University Press, 2000. BIRCHAL, Telma. O eu nos Ensaios de Montaigne. Belo Horizonte: ed. UFMG, 2007. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 31 BERKELEY E A VISÃO INSTRUMENTALISTA DAS TEORIAS CIENTÍFICAS Angelo Eduardo da Silva Hartmann UNIOESTE/MEC-SESu [email protected] Orientador: Remi Schorn Palavras-chave: Empirismo. Nominalismo. Universais. A visão oficial da ciência contemporânea, insistentemente (re)colocada em debate por Karl Popper (1902-1994), é fruto do legado deixado pela posição ortodoxa de Copenhagen – a concepção instrumentalista das teorias científicas (Cf. Popper, 1982, p.127). Empenhados em defender a completude da teoria quântica e o fim do percurso daquilo que se pode conhecer acerca da natureza e estrutura da matéria, físicos como Niels Bohr (1885-1962) e Werner Heisenberg (1901-1976) convenceram-se de que o velho ideal de uma descrição causal da realidade física estava fadado ao fracasso; de que a mecânica quântica conquistara a última revolução da física; e de que as dificuldades envolvidas pelos recentes desenvolvimentos da física quântica deveriam ser abandonadas, uma vez que o domínio do formalismo matemático e o sucesso de suas aplicações era o suficiente (Cf. POPPER, 1982, 128; 1989, p.27). Por maior espanto que essa breve descrição possa provocar a um estudante de Filosofia ou a um admirador da ciência, a posição ortodoxa de Bohr e Heisenberg se tornou a maior tendência da ciência física na primeira metade do Século XX e enraizou-se como a sua visão oficial. O princípio de complementaridade – pedra de toque da interpretação de Copenhagen, como afirma o prof. Mario Bunge (1973, p.180) – foi apresentado e acolhido com grande satisfação pela grande maioria dos físicos presentes na Conferência de Solvay de 1927, em Bruxelas. Duas exceções brilhantes – Einstein e Schrödinger – recusaram-se a aceitar a posição ortodoxa e traçaram, por caminhos independentes, suas próprias linhas de investigação em busca de melhorar a compreensão física das dificuldades envolvidas no formalismo. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 32 A herança da visão instrumentalista das teorias científicas, uma das formas do positivismo, no entanto, não é uma novidade filosófica do século passado. A concepção de que as teorias científicas buscam, não descrever verdadeiramente o mundo (como se manteve Galileu perante a Inquisição), mas proceder ―por pura hipótese matemática‖ com a aplicação do instrumento que for ―mais conveniente para os cálculos astronômicos e para as predições‖ (POPPER, 1982, p.125) emerge na modernidade por meio de vários defensores da Igreja – com Andreas Osiander (1458-1552) em seu prefácio ao De Revolutionibus de Copérnico (1473-1543); com o cardeal Roberto Bellarmino (15421621), um dos inquisidores de Giordano Bruno (1548-1600); e, cem anos depois, com o bispo irlandês George Berkeley (1685-1753) contra a mecânica de Newton. O objetivo dessa comunicação é mostrar como Popper localiza na crítica de Berkeley à mecânica de Newton a formulação do primeiro sério ataque à tradição galileana da busca pela ―verdadeira constituição da natureza‖ (GALILEU, 1973, p.120). A crítica mais assídua contra a teoria de Newton foi apresentada por Berkeley em um curto ensaio escrito em latim e intitulado De Motu (―Sobre o movimento ou sobre o princípio, a natureza e a causa da comunicação dos movimentos‖, 1720). Sua investigação filosófica com uma preocupação especial – o emprego correto dos termos da linguagem. Em sua Introdução ao Tratado sobre os Princípios do Conhecimento Humano (1710), se atenta que para preparar o leitor a mais fácil inteligência do que se segue, convém pôr como introdução alguma coisa sobre a natureza e o abuso da linguagem. Mas o deslindar deste tema de certo modo antecipa o meu plano, por tratar-se do que parece ter sido a origem principal da dúvida e complexidade da especulação como de erros e dificuldades inúmeras em quase todos os domínios do conhecimento (BERKELEY,1980, p.6). Dez anos depois, ao iniciar o De Motu, insiste novamente que ―nada é tão importante quanto o cuidado de não sermos enganados por termos que não compreendemos corretamente‖ (De Motu, 1). Podemos, assim, reformular a preocupação de Berkeley nos seguintes termos: como empregar corretamente os termos da linguagem sem incorrer em erros de compreensão? Sua resposta a tal problema – e o objeto da presente investigação – configura uma abordagem nominalista da linguagem, permitida (i) pela distinção entre termos abstratos e particulares, e consequentemente, (ii) entre hipóteses matemáticas e a natureza das coisas; e ainda (iii) pela delimitação do domínio de três diferentes áreas do conhecimento humano. A concepção nominalista da linguagem (quais termos possuem significado) constitui, na leitura de Popper (1982, p.136), o principal argumento a favor da concepção ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 33 instrumentalista das teorias científicas e, consequentemente, o principal ataque desferido pela modernidade à tradição galileana – ataque este continuado, ainda que despercebidamente – pela posição ortodoxa de Copenhagen. Referências Bibliográficas BERKELEY, George. Tratado sobre os Princípios do Entendimento Humano. São Paulo: Abril Cultural, 1980. ___________. ―De Motu‖. Scientiae Studia, São Paulo, v.4, p.115-37, 2006. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ss/v4n1/v4n1a05.pdf (último acesso: 30/9/2013). COPLESTON, Frederic. A History of Philosophy, vol. V – Hobbes to Hume. New York: An Image Book, 1985. GALILEU, Galilei. O Ensaiador. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Coleção Os Pensadores, vol. XII.) LOCKE, John. Ensaio sobre o Entendimento Humano. Lisboa: Fundação Calouste Gubenkian, 1999, vol.1. MARICONDA, Pablo R. ―Notas ao Diálogo‖ In: GALILEU, Galilei. Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo ptolomaico e copernicano. São Paulo: Associação Filosófica Scientiae Studia: Editora 34, 2011 (pp.539-872). POPPER, Karl. Conjecturas e Refutações. Brasília: Ed. UnB, 1982. ___________. A Teoria dos Quanta e o Cisma na Física. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1989. ___________. Realism and the Aim of Science. (Ed. W.W. Bartley III) New York: Routledge, 2011. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 34 POR UM NOVO ESPAÇO FILOSÓFICO CRIATIVO: FILOSOFIA NO ENSINO FUNDAMENTAL Caroline Recalcatti Silveira Universidade de Évora [email protected] Leandro de Araújo Crestani Universidade de Évora [email protected] Palavras-chave: Filosofia; Ensino Fundamental; Espaço Criativo. A proposta de Filosofia para o Ensino fundamental apresenta-se como um conhecimento que possibilita o desenvolvimento de um estilo próprio de pensamento para o ensino fundamental de 5ª a 8ª séries. Diante dessa necessidade social, a Filosofia é um elemento fundamental no Ensino fundamental, pois é nessa fase que o aluno está no período de operações formais ou adolescência, no qual demonstra uma criticidade diante das normas que regem a vida social, começando a conhecer o mundo. Essa é uma etapa na qual o aluno tem os primeiros contatos com o mundo do trabalho e, logo percebe que ele está cada vez mais competitivo devido ao avanço tecnológico e que para manter-se ativo e conquistar seu lugar precisa de qualificação. Com o objetivo de proporcionar a formação de pessoas críticas, não no trabalho de conceitos científicos, mas sim nos assuntos do seu cotidiano. Foi desenvolvido na ―Escola Intentus‖, com base no material ―O Novo Espaço Filosófico Criativo‖ de 5 ª a 8ª série de Alberto Thomal professor de Filosofia no Curso de Extensão da PUC/PR; na rede pública Estadual no Ensino Médio; coordenador do Departamento de Filosofia e responsável pela implantação da Filosofia Educação para o Pensar na Educação Infantil e Ensino Fundamental da Rede Municipal de Ensino de São José (SC). Dessa forma, os conteúdos estavam organizados, para que os alunos refletissem sobre ―o pensar‖ e para que venham a produzir conhecimentos, pensem suas próprias ideias e possam ser autônomos. Isso em comunidade de aprendizagem investigativa. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 35 Na 5ª série, trabalhar o ―pensar‖, ou seja, que está em nós a capacidade de pensarmos bem sobre o pensar, aprendermos a aprender, indagada pela Teoria do conhecimento. Na 6ª Série desenvolve-se a investigação lógica, na qual se apresenta para o educando que somos seres racionais, lógicos, temos a capacidades que nos diferenciam uns dos outros. Sendo criativos, inventivos, e usando da linguagem para podermos expressar o que pensamos. Na 7ª série, trabalhar a investigação ―ética‖, enfatizando para o educando, por sermos racionais, aspiramos à liberdade de pensamento, buscamos pensar bem para viver bem. Dessa forma as questões éticas, são da ação humana: a liberdade, a escolha, a autonomia moral, a religião, etc. Nesse projeto com a 8ª série a investigação sobre a ―Política e Estética‖. Pensar, através da filosofia em alertar que, como seres racionais, pensamos sempre e podemos pensar melhor ainda sobre o mundo, as ideias, os outros; incentivar para que, cada vez mais, suas ideias possam ser lógicas, estruturadas com coerência; despertar uma reflexão filosófica e investigação política e estética. Contudo, o ensino de Filosofia no Ensino Fundamental neste ―Novo Espaço Filosófico Criativo‖, recria e desenvolve a imaginação, a crítica e a reflexão. Os campos de estudo da Filosofia para o Ensino Fundamental pode ajudar em vários momentos do processo educacional. Privilegiando ao aluno que discuta, argumente, proteste, pesquise, se emocione com as suas ideias. Referências Bibliográficas: CHAUÍ, M. Convite à filosofia. 13. ed., São Paulo: Ática, 2003. THOMAL, Alberto. Novo Espaço Filosófico Criativo. Editora: Sophos. 2006 . ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 36 NOÇÃO DE PESSOA E AGENTE EM PAUL RICOEUR Daiane Lemes Pereira Universidade Federal da Fronteira Sul [email protected] Dr. Elsio José Corá Palavras-chave: Hermenêutica. Cogito. Alteridade. Identidade. No presente texto discorre-se sobre a noção de pessoa e agente no pensamento do filósofo francês Paul Ricoeur (1913-2005). Procura-se analisar o afastamento das chamadas filosofias do cogito e, consequentemente, a afirmação de uma hermenêutica do si. Tal discussão terá como plano de fundo a visão de identidade admitida por Paul Ricoeur, uma identidade dividida em duas, composta por partes que são equivalentes, mas não idênticas entre si. Ele as chama de identidade-idem e identidade-ipse. A primeira é parte de mim que é só minha e permanece no tempo e no espaço, e a outra que é minha, mas tem participação do altero no seu forjar, participa no tempo-espaço, mas como sendo manutenção de si. Num primeiro momento analisa-se o afastamento do Cogito assumido pelo nosso autor que, como sustentação à sua proposta oferece-nos a hermenêutica do ―si‖, onde diz que uma análise detalhada sobre o si-mesmo levará à consciência de si, não sendo esta, portanto, uma dedução imediata. Ricoeur foge tanto do triunfo do Cogito, quanto do niilismo de Nietzsche, ele se viu entre a verdade primeira cartesiana e o rebaixamento ao grau de ilusão sugerido por Nietzsche. Quando encara o niilismo, nosso autor não reconhece uma alternativa verdadeira, porque o ―si‖ não é um ―eu‖ que existe independente do outro, que existe no aqui e no agora, e não se repete. Portanto o sujeito não é um eu, um substrato metafisico, atemporal e a-histórico sendo ele o contrário a tudo isto, um si, um singular, capaz de ser o agente de uma ação. Num segundo momento, no âmbito da gramática, onde se tem o termo ―si‖ equivalendo ao reflexivo de todos os pronomes pessoais e impessoais, o percurso abordará três dialéticas: a dialética entre reflexão e análise; entre ipseidade e mesmidade; entre ipseidade e alteridade. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 37 Quando desviamos a reflexão pela analise, mostramos a estrutura reflexiva do si, onde se analisa o roteiro dos atos do agente através de suas experiências linguísticas, práticas, narrativas e éticas. O primeiro ponto de abordagem sobre o sujeito no autor é a abordagem semântica linguística, dentro desta abordagem conseguimos individualizar o sujeito que, segundo nosso autor, analisado desta forma o si torna-se referência e potência. Para especificar o indivíduo, Ricoeur vai empregar a tese da obra ―Os indivíduos‖ de P. F. Strawson, teoria esta que pretende por isolar, entre todos os particulares aos quais podemos nos referir, aqueles que Strawson chama ―particular de base‖, conceito que denomina uma amostra em meio a uma gama de ―mesmas coisas‖. Nessa teoria o conceito admitido é o conceito primitivo de pessoa: uma coisa da qual falamos em meio a uma gama de objetos que existem no mundo dito real: montanhas, árvores, homens, animais. Os particulares são os corpos físicos e as pessoas, enquanto que as pessoas não são apenas corpos físicos. Mas como é definir pessoa como particular de base? Ricoeur conserva três teses de Strawson: ―1.-nós nos atribuímos dois tipos de predicados, predicados físicos e predicados psíquicos (X pesa 60kg, X se lembra de uma viagem recente); 2.- é à mesma entidade, a pessoa, e não ha duas entidades distintas, a alma e o corpo, que nós predicamos os dois tipos de propriedade; 3.- os predicados psíquicos são tais que conservam a mesma significação, quer sejam atribuídos a si-mesmo ou a um diverso de si (eu compreendo a inveja, mesmo que ela seja dita de Pedro, de Paulo ou de mim).‖ ( Le concept de responsabilité. Essai d‘analyse sémantique, Esprit, 1994, p. 36) Como sendo pessoa um particular de base a pessoa existe no plano da referência pública. Mas como foi afirmado acima, pessoa não é apenas corpo, pois possui como seus, os predicados psíquicos além dos físicos, embora os psíquicos, por serem eventos mentais ocorrem apenas no plano da referencia privada, afirma nosso autor seguindo por pensadores lógicos como D. Davidson e E. Anscombe. Esta abordagem, no entanto, assume somente a identidade-idem. A abordagem pragmática que, por sua vez, ocorre nos contextos de interlocução e recai sobre a ipseidade, vai permitir a passagem de ―pessoa como particular de base‖ ao ―sujeito capaz de autodesignar-se como um si‖, sendo assim passa-se à terceira dialética proposta acima. Ora, o engajamento do ser falante no seu discurso narrativo que solicita a presença de outro, sendo essencialmente o si que fala a um o outro que escuta, colocamos aqui a 1º e 2º pessoa em primeiro plano. Esta teoria chamada de atos de discurso, afirma que todo ato de discurso designa reflexivamente seu locutor, portanto, seria incompleto ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 38 sem a noção de intersubjetividade resultante da relação entre o si e o outro, consequentemente o si também seria incompleto sem a presença do outro. E. Benveniste pensou serem a 1º e a 2º pessoa opostas à 3º, ou seja, que o eu e o tu opõem-se ao ele, como pessoa opõe-se a não-pessoa. Ricoeur não aceita essa delimitação, pois afirma que o eu só deixa de ser um signo vazio quando aquele que fala faz uso do termo para designar-se a si mesmo naquele instante, por isso ele é diferente a cada vez que se ouve afirmar ―eu prometo‖ o que gera uma aporia. Operação de inscrição é a solução proposta por nosso autor como solução dessa aporia. Um nome próprio que designa a um único e determinado sujeito, documentado na história e é aclamado por seu dono quando este se autonomeia, tudo isso mostra que o ―eu‖ admite ser qualquer um. Conclui-se que a linguagem é usada na teoria, como ferramenta identificante e na capacitação de fazer com que o outro saiba de quem aquele que fala está falando. Referências Bibliográficas: RICOEUR, Paul. Soi-même comme um autri. França: Éditions de Seuil, 1990. SINTESE, Revista de Filosofia. Belo Horizonte: Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, 1999. STRAWSON, P.F. Individuals: Essay of Desciptive Metaphysics. London: Rout Ledge, 1996. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 39 REFLEXÕES SOBRE O TEMPO: ANÁLISE DO ROMANCE MONTANHA MÁGICA DE THOMAS MANN Danilo Persch Professor da Universidade do Estado de Mato Grosso - UNEMAT E-mail: [email protected] Palavras-chave: Thomas Mann. Montanha mágica. Tempo cronológico. Tempo psicológico. Nosso intuito como o presente texto é analisar o tratamento dispensado por Thomas Mann ao ―problema do tempo‖ (Zeitproblem), na sua obra Montanha Mágica. Selecionaremos algumas passagens desse livro em que o autor faz menções à discrepância existente entre o tempo dos relógios (cronológico/objetivo/quantitativo) e o tempo psicológico (subjetivo/qualitativo). Além desses dois aspectos de tematização do tempo, Mann também faz referências (no último capítulo) à questão do ―tempo narrado‖ (erzählter Zeit) e do ―tempo do narrar‖ (Erzählzeit). No que segue, tentar-se-á elucidar essas três diferentes perspectivas do ―tempo‖, ou seja, pretende-se demonstrar como Thomas Mann tratou do tempo e em quais fontes ele se inspirou para tal tratamento. ―Um homem simples e novo viaja no alto verão de Hamburgo, sua cidade natal, para Davos-Platz. Ele viaja a visita por três semanas‖. (MANN, 2004, p. 11). Com essas duas frases, Thomas Mann inicia sua grande obra Montanha Mágica, pouco antes do começo da Primeira Guerra Mundial, mais especificamente em 1912, ocasião em que fez uma visita a sua mulher Katia, que se encontrava internada em sanatório suíço para curar-se de uma leve doença respiratória. O homem (simples e novo) em questão chama-se Hans Castorp, um jovem engenheiro de vinte e poucos anos que, antes de iniciar-se em sua profissão (Castorp iria ocupar posto em estaleiro na sua cidade natal Hamburgo), faz uma visita a seu primo Joachim Ziemssen, aspirante a oficial e que se encontrava internado no Sanatório Internacional Berghoff localizado em Davos (Alpes suíços), destinado ao tratamento de doenças respiratórias, sobretudo a tuberculose pulmonar. Estava planejada uma visita de apenas três semanas. Porém, antes de retornar à planície, Castorp foi convencido por seu primo a fazer consulta, quando então o médico detectou nele sinais de tuberculose ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 40 pulmonar. Os sete dias transformaram-se então em meses e anos (também sete), período esse em que Hans Castorp vai se afastando pouco a pouco da vida que levava ―na planície‖. Não é necessário ler várias páginas da Montanha Mágica para encontrar referências ao tempo. Estas se encontram já no prefácio/propósito (Vorsatz) quando Thomas Mann discorre sobre tempo medido (objetivo) e tempo sentido (subjetivo). Por exemplo, na passagem em que ele diz que a história de Hans Castorps será contada ―... minuciosamente, com exatidão e pormenorizada...‖ (MANN, 2004, p. 10), e pergunta: ―... quando foi que o agradável ou o maçante de uma história dependeram do espaço e do tempo, a qual ela recorre?‖ (MANN, 2004, p. 10), percebe-se claramente o confronto entre o tempo objetivo e o tempo subjetivo. As palavras alemãs Kurzweilig (cativante, agradável, divertido, de curta duração) e Langweilig (aborrecido, maçante, de longa duração) se prestam muito bem para expressar o paradoxo que pode ocorrer em relação a essa bipolaridade temporal. Um determinado espaço de tempo, a princípio, cronologicamente longo, pode parecer subjetivamente curto, se estiver recheado de muitos pormenores interessantes. E o contrário também acontece. Mann soube trabalhar isso de forma genial na Montanha Mágica. A história de Hans Castorps que ele ali narra nos mínimos detalhes não é apenas a história de um personagem. Trata-se também do espaço em que esse personagem viveu sua história (anos anteriores à Primeira Guerra Mundial), bem como o tempo que ele mesmo, como autor, levou para escrever essa história. Mais especificamente em relação ao espaço e ao tempo em que a história de Hans Castorps se desenrolou, o autor, no segundo capítulo, faz a seguinte descrição: ―O homem não vive sua vida pessoal apenas como um ser isolado, mas, consciente ou inconsciente, também a de sua época ou contemporaneidade‖ (MANN, 2004, p. 49). Trata-se aqui, repetindo, da época pré-guerra (Primeira Guerra Mundial). Nesse contexto a vida doentia e de tédio que os integrantes da comunidade internacional do sanatório suíço de Davos Platz levavam pode ser concebida como um retrato da condição psíquico-espiritual da sociedade europeia dessa época pré-guerra, sobretudo a classe mais abastada economicamente que, por isso, estava liberta das preocupações materiais e de subsistência. Vale lembrar que todos os personagens (habitantes da Montanha Mágica) eram oriundos de famílias com condições econômicas no mínimo razoáveis. O próprio Hans Castorps era recém-formado engenheiro naval. Estava, portanto, apto a entrar no mercado de trabalho e fazer parte desse grupo mais bem situado em termos econômicos. Mas essa condição não libertava as pessoas do sofrimento, que na obra é retratado de duas formas: o sofrimento com e sem causa orgânica. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 41 A evolução crônica da tuberculose pulmonar (conhecida popularmente em alemão por Schwindsucht) era uma doença daquela época, e atingia muitos cidadãos bem situados da sociedade. Outra doença que atacava muitas pessoas da época era a fraqueza de nervos (Nervenschwäche), uma doença sem causas orgânicas específicas, cujos sintomas se manifestavam por meio da irritabilidade, nervosismo, hipersensibilidade, cansaço generalizado, incapacidade de descontração, além de desconfortos tais como: batimentos cardíacos, dores vasculares, dores de cabeça, altas temperaturas, tremedeira nas pernas etc. Na obra de Mann quem mais sofre dessa doença são os protagonistas Hans Castorps e Clawdia Chauchat. Esse esgotamento nevrálgico pode ser considerado uma doença de moda da virada do século XX e, de uma ou de outra forma, o próprio Thomas Mann foi atingido por tais malefícios. Nesse sentido, já ao final da obra, (sétimo capítulo), os subtítulos ―A grande estupidez‖ (Der große Stumpfsinn) e ―A grande irritação‖ (Die große Gereiztheit), são textos bem típicos em que Mann procura retratar esse cenário doentio da virada de século. Todas as citações do presente texto são provenientes da editora franfurtiana FischerTaschenbuch: MANN, Thomas. Der Zauberberg. 17. Auflage. Frankfurt am Main: FischerTaschenbuch Verlag, 2004. A tradução (livre) é autoria do autor deste texto. Referências Bibliográficas: MANN, Thomas. Der Zauberberg. 17. Auflage. Frankfurt am Main: Fischer-Taschenbuch Verlag, 2004. ___________. A Montanha Mágica – uma concepção política peculiar. Conferência apresentada por Thomas Mann em maio de 1939 aos estudantes da Universidade de Princeton. Trad. Richard Miskolci. Perspectivas (revista de ciências sociais). São Paulo, 19, p. 131-142, 1996. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 42 NATUREZA E INTERSUBJETIVIDADE NA FENOMENOLOGIA DE HUSSERL Devair Gonçalves Sanchez CAPES [email protected] Palavras-chave: Mundo; Natureza; Intersubjetividade; Fenomenologia. Husserl considera a possibilidade do conhecimento do outro a partir da identificação de sua corporeidade e do reconhecimento que o ego tem para ele enquanto índice de uma experiência concordante bilateral, ou seja, a experiência da intersubjetividade dá-se a partir do surgimento do corpo estranho ao ego e, tal aparecer indica que esse corpo vivo é uma sede de vivências intencionais e o ―ponto zero‖ (HUSSERL, 2001, p. 137) de um horizonte infinito de possibilidades e constituinte de um mundo comum. Trata-se de uma presentificação original do alter ego. Husserl afirma que ―de início, preciso explicitar, como tal, o que pertence a mim propriamente, a fim de compreender que no ―próprio‖ o ―nãopróprio‖ adquire, também ele, seu sentido existencial, principalmente por analogia‖ (HUSSERL, 2001, p. 162). Os dados de aparição do ego lhe são dados de forma original, enquanto os do outro são concedidos ao ego por meio da presentificação (Vergegenwartigung), portanto não de forma original. A outra mônada que se encontra na posição primordial diante do eu-mônada mostra-se como estranha na perspectiva ontológica. Esse mostrar-se num sentido meramente apresentativo confere existência a essa mônada, possibilitando uma verificação constante e doando sentido ao ego. Nessa forma primitiva de comunicação, o alter ego permite um vislumbre de si, no entanto, as vivências permanecem restritas ao próprio da mônada e da outra mônada, levando em conta que se reconhece aquela mônada como outra semelhante à do ego. Quando se fala em vivências nesse caso, é necessário estar atento ao estatuto semântico do conceito de vivências puras do cogito transcendental. De que maneira esclarecer tais vivências? Como elas se dão e de que maneira o ego as percebe enquanto vivências do alter ego? Não é possível ao ego tê-las na sua representação, o que não o impossibilita de efetivar uma penetração intencional na esfera primordial das vivências do outro. Husserl ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 43 reconhece a existência, na comunidade primordial das mônadas, de uma espécie de introspecção empática. Nas palavras do filósofo, tal dinâmica ―é uma ligação que em princípio é sui generis, uma comunhão efetiva, esta que é precisamente a condição transcendental da existência de um mundo, de um mundo dos homens e das coisas‖ (HUSSERL, 2001, p. 142). Na análise da nova esfera em que acontece o segundo grau de comunidade do eu se relacionando com os outros, leva-se em conta o caráter psicofísico desse eu e desse outro. Quando Husserl propõe essa nova configuração constitutiva, a dinâmica de apreensão do outro na esfera do eu ganha um sentido de assimilação como reciprocidade. Mas qual a novidade dessa intercomunhão subjetiva? A grande novidade consiste na concepção perceptiva do outro como numa espécie de reflexo. O eu não tem o outro como um par somente; não se opõe e ainda, tem a possibilidade de inaugurar a esfera de pertença do outro a si mesmo. Nessa reciprocidade existencial é certo dizer que há a emergência de um corpo central, polo das vivências e a partir da consecução da ―refletividade‖ analógica corporal, descubro o outro como polo também. No entanto, com a evidência da comunidade intersubjetiva abre-se um novo campo transcendental de averiguação. Num primeiro momento da análise, tendo como foco a comunidade intermonádica, o eu ainda não se apercebe na condição de homem. Devido à redução transcendental rigorosamente atribuída a esse eu – condição que colocaria o sujeito na condição de solus ipse – o ego retém somente sua postura genética em relação ao conhecimento. No plano da relação intermonádica, temos a alma pura como o eu do homem concreto. O importante é ter presente a preocupação de Husserl em atestar que, no final das contas, mesmo tendo o eu esse caráter metodologicamente necessário de pura relação consigo mesmo, tudo converge para um fundamento da comunidade intersubjetiva. Esse outro com quem o ego estabelece vínculo intencional possui, aos moldes transcendentais, uma noção de mundo tal como a do ego primordial. Um mundo que se configura ―não como uma obra de minha atividade sintética de alguma forma privada, mas como de um mundo estranho a mim, ―intersubjetivo‖ existente para cada um, acessível a cada um em seus ―objetos‖ (HUSSERL, 2001, p. 106). No entanto, sendo essa noção de mundo similar a do ego, restam ainda as noções particulares que atribuem sentido ao ego e ao outro em coesão às noções particulares e diferentes lançadas nas esferas individuais de apreensão do mundo. Cada sujeito faz sua experiência particular de ―fenômeno do mundo‖ e diante dessa gama de atos intencionais algum sentido último deve prevalecer no âmbito da experiência comum. É importante frisar o sentido que Husserl está dando ao conceito ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 44 de comunidade. No entender do filósofo, a fenomenologia está preocupada com o sentido das relações que possibilitam ao sujeito livrar-se das ―contingências‖ que caracterizam uma abordagem ôntica acerca do mundo e das comunidades que se formam nesse âmbito. A preocupação deve ser exclusivamente transcendental. A partir dessa inteligibilidade de sentido o mundo passa a ser constituído no âmbito eidético, possibilitando uma ontologia. Referências Bibliográficas: ALVES, P. Empatia e Ser-para-outrem: Husserl e Sartre perante o problema da intersubjectividade. Revista Psi: Estudos e Pesquisas em Psicologia – UERJ. Ano 8, nº 2. p. 334-357, 2008. HUSSERL, E. Méditations Cartésiennes. Trad.G. Peiffer e E. Lévinas, Paris: Vrin, 1996. Trad. brasileira (Frank de Oliveira): Meditações Cartesianas. São Paulo: Madras, 2001. PELIZZOLI, M. A relação ao Outro em Husserl e Levinas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1994. STEIN, Edith. Sobre el problema de la empatía. Traducción de José Luis Caballero Bono. Madrid: Editorial Trotta, 2004. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 45 O PAPEL DA OBSERVAÇÃO NA CIÊNCIA Douglas Antonio Bassani Professor de Filosofia-UNIOESTE-Toledo e-mail: [email protected] Palavras-chave: Experiência. Significado. Operações. O objetivo desta análise é destacar o papel da experiência nas estruturas teóricas das ciências naturais. O destaque é em relação à discussão teórica dos elementos inobserváveis das teorias. Os chamados elementos inobserváveis têm papel discutível entre os teóricos da ciência, em particular, entre os realistas, que os consideram justificáveis cientificamente, enquanto os anti-realistas tendem a uma concepção mais prudente de não aceitação até que algum tipo de experiência física for possível. Além disso, empiristas modernos acreditam ser uma questão de convenção ou de discussão meramente acadêmica a aceitação ou não de tais elementos. Nessas oposições situa-se o problema filosófico abordado aqui, tendo como inspiração o artigo Operacionalismo: confusión entre significado y medición, em especial, a partir da seguinte citação: ―A física surgiu da conjunção entre especulação e experienciação. Portanto, não devemos achar estranho que desde sempre houve uma certa tensão entre esses dois aspectos fundamentais da atividade científica‖ (CAMPOS & JIMÉNEZ & DEL VALLE, 2001, pg 65). Trarei um exemplo da modernidade para ilustrar. Historicamente, Galileu Galilei (1564-1642) foi aconselhado pelo Papa Urbano VIII (seu amigo na época) a admitir que sua concepção astronômica de Universo deveria ser tomada apenas como um instrumento melhor do que a teoria anterior (a de Copérnico). Isso significava que o papel da teoria era apenas o de um instrumento de explicação diferente e, talvez, melhor do que o anterior. Acreditar no papel instrumental da teoria significava não se comprometer com uma descrição verdadeira do Universo, nem com uma realidade aos objetos não observados (como seria uma postura do cientista/astrônomo realista), mas em conceber tal teoria apenas como um instrumento melhor para as previsões. Desta forma, não há um compromisso com a verdade da teoria, nem com uma suposta realidade aos termos inobservados. O problema é que Galileu não seguiu os conselhos do Papa e na publicação ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 46 do Diálogos (1632) já aparece sua decisão por defender o heliocentrismo não como uma descrição apenas melhor do que a anterior, mas sim, como uma descrição verdadeira do Universo. O comprometimento teórico é muito maior neste último caso, porque aponta para descrições verdadeiras do Universo e para a existência dos inobserváveis apontados pela teoria. O anti-realista não acredita em tal comprometimento e, mais do que isso, não o adere. Isso apenas para citar um caso. Aderir a uma dessas concepções não significa defendê-la para todo o sempre. Um exemplo claro é a concepção de Einstein. No início de suas principais publicações aparece claramente uma concepção anti-realista em filosofia da ciência, porém, revelando seu realismo mais tarde. Há uma reclamação explícita de um empirista moderno (Percy Bridgman 1882-1961) de que Einstein teria abandonado a concepção anti-realista adotada no princípio da relatividade restrita de 1905, por uma concepção realista em 1916 quando da publicação da teoria da relatividade geral. Na teoria de 1905, Einstein criticou duramente as concepções de espaço e tempo absolutos da teoria de Newton, por este ter adotado conceitos que seriam supostamente ―metafísicos‖ longe da possibilidade de experienciação. Einstein teria exigido a substituição por conceitos que fossem experienciáveis, como espaço e tempo relativos, ao invés destes conceitos serem concebidos como ―absolutos‖ como aparece em Newton. Já na teoria da relatividade geral há uma tentativa teórica de forçar os dados empíricos, uma característica do realismo em filosofia da ciência. Essa tentativa passou pela noção de curvatura espaço-temporal da teoria da relatividade, publicada e defendida por Einstein em 1916, sem que uma experiência de algum tipo viesse acompanhada. A demonstração do que estava propondo Einstein na teoria da relatividade veio apenas mais tarde, em 1919, com a demonstração telescópica num eclipse solar de que espaço-tempo realmente eram curvos, corroborando a teoria de Einstein. As principais chapas fotográficas dessa demonstração foram feitas no Brasil, na cidade de Sobral-CE. A crítica do empirismo moderno de Bridgman revelou não ser tão radical, considerando que o próprio Bridgman eliminou o excessivo empirismo de sua concepção para aderir a uma não exigência de que todos os conceitos teóricos devam ter um correspondente empírico. Assim: ―Inerente aos requerimentos do próprio modelo , parece não ser necessário que todas as operações matemáticas devam corresponder a processos reconhecíveis no sistema físico. Também não há nenhuma razão porque todos os símbolos que aparecem nas equações matemáticas fundamentais devam ter correspondentes físicos, nem razão para excluir a introdução de quantidades auxiliares puramente matemáticas criadas para facilitar as ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 47 operações matemáticas, se isso for possível. Um bom exemplo é a tensão dentro de um corpo sólido na teoria da elasticidade. Uma tensão jamais é medida como tal, mas é uma quantidade puramente construtiva, um composto de seis componentes que podem ser calculados em constantes elásticas, e isso é útil porque as forças agem através da face livre do sólido e são diretamente mensuráveis, podendo ser facilmente calculadas‖ (BRIDGMAN, 1980 (1936), p. 66). Desta forma, o operacionalismo (concepção defendida por Bridgman) se tornou uma concepção que enfraquece seu empirismo, mas o torna mais aceitável enquanto concepção filosófica. Quanto a aceitar ou não entidades não observáveis como tendo uma realidade, Bridgman preferiu o empirismo, admitindo que esta era uma questão convencional ou acadêmica. Referências Bibliográficas: BRIDGMAN, P. W.: The Nature of Physical Theory. Princeton: Princeton University Press, 1936. ___________. Einstein‘s Theories and the Operational Point of View. In Library of Living Philosophers, v. VII, Evaston, p. 335-354, 1949. EINSTEIN, A., LORENTZ, H., WEYL, H. & MINKOWSKI, H.: Os Fundamentos da Teoria da Relatividade Geral. In: O Princípio da Relatividade. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, p. 141-215, (1916) 1978. CAMPOS, I; JIMÉNEZ, J. L.; DEL VALLE, G.; Operacionalismo: confusión entre significado y medición. Em: Revista Contactos 42, p. 65-68, 2001. POPPER, K. R. ―Três pontos de vista sobre o conhecimento humano‖ In: Conjecturas e Refutações. Tradução de Sérgio Bath. Brasília, Ed. UNB, 1994. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 48 O PROBLEMA DA CULTURA NAS CONFERÊNCIAS DE NIETZSCHE: SOBRE O FUTURO DOS NOSSOS ESTABELECIMENTOS DE ENSINO Eduardo José Lobo Rodrigues Unesp/SEED - PR [email protected] Márcio Benchimol Barros(orientador) Palavras-chave: Cultura; Política; Nietzsche. Trata-se de investigar, a partir das conferências pronunciadas pelo professor Nietzsche, intituladas Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino, o problema da cultura na Alemanha do século XIX, enquanto um problema de ordem política. O formato das conferências estabelece-se como de um diálogo ficcional, ao modelo do diálogo platônico, mantendo, no entanto, um tom biográfico com vistas a trazer proximidade com os ouvintes e buscando ter um timbre de romance de formação (Bildungsroman). Neste diálogo, o jovem Nietzsche e um amigo presenciam a discussão entre um velho filósofo e seu discípulo travavam acerca da decisão do discípulo de abandonar a carreira de professor e dedicar-se a solidão. Diante das acusações do mestre, que qualifica a ação de orgulhosa e presunçosa, o discípulo apresenta um diagnóstico sobre os estabelecimentos de ensino alemães que procuram dar razão e justificativa a sua decisão. Neste diagnóstico que é a tese central para o problema da cultura na Alemanha, o discípulo afirma que duas orientações passam a conformar a cultura e a educação alemã, que se mostrando aparentemente opostas, elas estão atadas pelos seus efeitos, submetendo os estabelecimentos de ensino. A primeira é a tendência a extensão, ―à ampliação máxima da cultura‖ e, a segunda, a tendência a redução, ―ao enfraquecimento da própria cultura‖. Nestas duas orientações que se apresentam, a cultura passa ―a ser estendida a círculos cada vez mais amplos‖ e, de outro modo, que ―a cultura abandone as suas ambições mais elevadas, mais nobres, mais sublimes‖, que se ponha a serviço do Estado, por exemplo. Apresentado o diagnóstico, o que se coloca de modo imediato em disputa são os princípios de uma cultura forte e autêntica que reivindica sua herança na antiguidade clássica, e os princípios modernos de igualdade e utilitarismo. Esta disputa se apresenta em primeiro plano no livro Cinco prefácios para cinco livros não escritos, de Nietzsche, em particular nos ensaios: ―O Estado grego‖ e ―A ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 49 disputa de Homero‖, em que se percebe na análise de Nietzsche a descrição da formação do homem grego que, voltado para as determinações do Estado, tinha como finalidade o desenvolvimento cultural, o surgimento do grande artista e da obra de arte. Sendo que a partir destes homens superiores e suas necessidades artísticas era criado um sentido para existência que superava o pessimismo prático da cultura popular. O processo civilizatório grego mesmo sendo fundado na escravidão tinha ainda como base a criação de sentido para a existência, ainda que um sentido simbólico. Já a modernidade, com seu horror à escravidão, procura se fundamentar na ideia de ―dignidade do homem‖, centrada na ―dignidade do trabalho‖ e na defesa da igualdade e liberdade. No entanto, o que os modernos encobrem é que todo trabalho é indigno, uma vez que é mera luta pela existência, não havendo sentido para a vida. Se a cultura popular grega via nesta condição apenas vergonha e expiação, os modernos procuram encobri-la, fazendo a vida mera conservação pelo trabalho livre que, na verdade, se trata de uma forma mascarada de escravidão. O partido de Nietzsche pela cultura grega, que é também reivindicada pelo discípulo do velho filósofo no diálogo, se sustenta não pela retomada do mundo grego e da escravidão, no entanto, do modelo de uma cultura autêntica, que possa ressurgir pela possibilidade de confronto entre fundamentos diferentes, entre gregos e modernos e, na possibilidade de se criar novos paradigmas para a vida. O que se descortina é a ilusão da cultura moderna de se estabelecer como absoluta e o reconhecimento da historicidade de toda cultura. Referências Bibliográficas: CAVALCANTI, Anna Hartmann. Nietzsche e a História. O que nos faz pensar – Cadernos do Departamento de Filosofia da PUC – Rio. Rio de Janeiro, nº 1, 29-36, junho de 1989. ___________. Arte da Experimentação: Política, Cultura e Natureza no Primeiro Nietzsche. In: Trans/Form/Ação. São Paulo, nº 30 (2), 2007, p.115-133. CHAVES, Ernani. Cultura e política: o jovem Nietzsche e Jakob Burckhardt, cadernos Nietzsche, São Paulo, 9, p. 41-66, 2000. KOFMAN, Sarah. Os Conceitos de Cultura nas Extemporâneas ou a dupla dissimulação. Nietzsche Hoje. São Paulo: Brasiliense, 1986. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 50 NIETZSCHE, Friedrich. Œuvres T. 1; La Naissance de La Tragédie. Considérations inactuelles. Trad. de L‘allemanda pra Philippe Lacoue-Labathe. Édition de Giorgio Colli, Mazzino Montinari. Éditions Gallimard, 2000. __________________. Cinco prefácios para cinco livros não escritos. Trad. de Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Editora 7 Letras, 2005. __________________. Escritos sobre Educação. Tradução, apresentação e notas de Noéli Correia de Melo Sobrinho. Rio de Janeiro: editora PUC – Rio. São Paulo: Edições Loyola, 2003. __________________. Obras incompletas. Coleção ―Os Pensadores‖. Tradução de Rubens Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1974. __________________. Segunda Consideração Intempestiva – Da utilidade e desvantagem da história para a vida. Tradução Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003. SAFRANSKI, Rüdiger. Nietzsche – Biografia de uma tragédia. Trad. de Lya Luft. São Paulo: Geração Editorial, 2001. WEBER, J. Fernandes. Formação (Bildung), educação e experimentação em Nietzsche. Londrina: Eduel, 2011. __________________. Autoridade, singularidade e criação: sobre o problema da Formação (Bildung) em Sobre o Futura dos Nossos Estabelecimentos de Ensino, de Nietzsche. Educ. Soc. , Campinas, vol. 29, nº 103, p. 515-532, maio/ago. 2008. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 51 A RESPONSABILIDADE DO CIENTISTA Erickson dos Santos UNESPAR/FAFIUV [email protected] Palavras-chave: Ciência, cientista, autonomia, neutralidade, imparcialidade, responsabilidade, ética normativa. RESUMO: O ato de pesquisar cientificamente é uma tarefa extremamente específica nos dias atuais e, por essa razão, merece uma descrição mais detalhada do que são a ciência e o cientista. A atividade científica estabelece uma agenda capaz de comprometer-se com a qualidade de vida das pessoas atualmente. O debate sobre o lugar social que cabe à ciência deve ser um tema que se conecta com a responsabilidade do cientista e a sua pesquisa. Este trabalho terá, portanto, a perspectiva de aplicar uma ética normativa ao ambiente científico com a discussão dos valores na atividade da ciência. A ciência nos dias atuais é composta por um conjunto de várias áreas do conhecimento humano. Esse fato se apresenta como significativo para a diversidade de disciplinas que compõem a formação do cientista e o que se denomina, costumeiramente, por ciência. Além de ser um tipo de conhecimento praticado por pessoas altamente especializadas, cada uma com seu método bastante específico de investigação, também tem implicações para com outras atividades usuais da sociedade, ou seja, a ciência é percebida em vários âmbitos sociais. Ela detém um status altamente relevante na tomada de decisões do desenvolvimento social de um país. Atualmente a agenda científica de um país compromete-se com o que se pode chamar de desenvolvimento da ciência pura e suas aplicações, que resultam em conquistas tecnológicas. A primeira busca uma prática científica que visa ao progresso de si mesma, do corpo teórico que ela sustenta por meio de valores racionais, experimentais, lógicos etc. Por outro lado, as aplicações buscam consequências nas diversas perspectivas tecnológicas, em geral, que se encontram no âmbito de políticas públicas. Tem-se em vista a expectativa de alguma compensação para a sociedade que à ciência cabe responder e, por isso, procura-se oferecer aplicações dos resultados científicos em vários setores sociais que, por sua vez, apresentam uma forte demanda por tecnologias. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 52 A relação existente entre o que um cientista produz e o que retorna para a sociedade como aplicação se apresenta sob alguns aspectos positivos e, muitas vezes, negativos. Os benefícios trazem elogios que se apresentam como a face positiva da evolução do pensamento científico; muitas vezes se acredita que é a solução para diversos males das sociedades contemporâneas; que muitos problemas poderão ser resolvidos com o uso de novas tecnologias, facilitadoras do mundo mecanizado e informatizado. Trata-se de um sonho humano de dominar a técnica. Porém, há consequências que podem ser descritas como nefastas nessa trajetória de domínio da natureza pelo conhecimento produzido cientificamente. É preciso, para o propósito do trabalho aqui apresentado, estabelecer que as seguintes questões precisam ser esclarecidas: o que é ciência? Quem são os cientistas? Qual o propósito de se fazer ciência? Quais os limites das investigações e aplicações científicas? Os fundamentos da ciência devem ser preservados como um corpo de conhecimento racional e bem construído na análise aqui apresentada. Porém, cabe uma discussão sobre a ética da atuação científica e, como pode ser feita a relação entre a ciência e a sociedade, dentro da perspectiva que a racionalidade produz na interação social. Além disso, pode-se estabelecer, se possível, algumas diretrizes que possibilitem maior compreensão do alcance da razão científica. Algo que o senso comum não tem com clareza porque se trata de um conhecimento restrito ao meio acadêmico. Os grupos de cientistas, cada um em seu campo de ação, são os maiores responsáveis por construir uma terminologia, geralmente, impenetrável ao público leigo. Isso torna a questão da avaliação da responsabilidade da pesquisa circunscrita ao seleto grupo capaz de dominar uma literatura bastante específica. Assim, discutir os temas relativos à ciência reúne o peso da influência sociocultural que a atividade científica carrega consigo. Todas as áreas do conhecimento concebidas como ciências, quais sejam elas, humanas, biológicas ou exatas conferem aos seus praticantes, os cientistas, a confiança de que são indivíduos preparados para desempenhar suas funções que, comumente, são acadêmicas e, portanto, de pesquisa concebida em universidades, institutos etc. Por sua vez os laboratórios apresentam uma limitação de espaço de interação com a sociedade. Os pesquisadores fazem parte do grupo considerado como representantes de cada atividade denominada como ciência, o que implica na formação de uma comunidade de pessoas com autoridade para dirigirem seus interesses de pesquisa com certa autonomia. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 53 Essa liberdade de atuação produz uma situação inusitada. Se por um lado os cientistas precisam de livre acesso para tomar decisões sobre suas pesquisas, por outro eles dependem fortemente de condições de pesquisa que são institucionais; bolsas de fomento, orçamentos de laboratórios etc. A questão institucional indica como a relação econômica que, diante do apelo de critérios de escolha apresentados por pessoas que estão em cargos institucionais, decide pelos rumos que as pesquisas devem tomar. Não é difícil de verificar que muitos dos temas de pesquisa estão ligados aos interesses econômicos de alguma instituição, pública ou privada. Isso caracteriza pouca autonomia de trabalho oferecido aos cientistas; por sua vez implica em pouca capacidade escolha dos pesquisadores. Outro aspecto bastante importante é a questão ética que envolve o trabalho do cientista. Trata-se de um prolongamento das questões de autonomia, imparcialidade e neutralidade. No âmbito ético as questões que percorrem a comunidade científica são bastante complexas. Alguns indivíduos na sociedade podem receber certo benefício pelo progresso de uma determinada área tecnológica, que acontecerá somente com o investimento financeiro para tal linha de pesquisa. Outros podem sofrer prejuízos por causa da competição criada pelos resultados apresentados da mesma pesquisa. A autonomia é um dos pontos mais caros aos cientistas. A defesa dela está fundamentada na liberdade de pensar que, é claro, pode ser garantida, mas não a livre iniciativa de aplicar os resultados da pesquisa. Eles prezam pela autonomia sem aprofundarem a temática que ela envolve. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 54 NIETZSCHE: A DOUTRINA DA VONTADE DE POTÊNCIA Estevão Bocalon UNIOESTE/Fundação Araucária [email protected] Wilson A. Frezzatti Jr. Palavras-chave: Nietzsche. Espírito Livre. Vontade de Potência. Uma das noções mais profundas e discutidas em Nietzsche é a vontade de potência. A discussão sobre esta noção se faz necessária para entendermos uma personagem importante no pensamento nietzschiano: o espírito livre. A vontade de potência é a busca incessante pelo essencial em todo ―querer‖. Em outras palavras, para o pensador todo querer é querer algo e, essencialmente, esse algo é ―mais potência‖. Em Além do bem e do mal, o filósofo alemão traça as características principais da vontade de potência, criticando os fisiologistas ainda ligados à metafísica. A fisiologia nietzschiana entende os organismos como uma configuração de impulsos, na qual há uma luta por mais potência. A autoconservação não é impulso cardinal de toda criatura viva, ela é mera consequência da vontade de potência: a busca sempre por mais, esta sim essencial à luta de impulsos por mais potência. Este pensamento expande a ação do homem frente ao mundo, pois reconhece que ele está imerso no fluxo contínuo de mudança (vir-a-ser) do próprio mundo. O homem se dá, portanto, nessa relação com o mundo que é a vontade de potência: para poder crescer deve-se dominar os impulsos adversários. Essa relação de dominação remete-se sempre a um vir-a-ser, portanto, não se refere a nada fixo. A luta entre impulsos sempre por mais potência é o próprio movimento do mundo e da existência. Assim, o homem é resultado dessa luta de impulsos, um caso particular na multiplicidade. A noção de vontade de potência compreende não só ―resistência‖ entre o impulso dominante e o dominado, não se trata apenas de ―conservação‖, ela se dá sempre pela busca por mais potência. Essa luta não cessa, a relação básica é a de dominação: Vontade de potência não é um caso especial do querer. Uma vontade ―em si‖ ou ―como tal‖ é uma pura abstração: ela não existe factualmente. Todo querer é, segundo Nietzsche, querer algo. Esse algo-posto, essencial em todo querer é: potência. Vontade de potência ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 55 procura dominar e alargar incessantemente seu âmbito de potência. Alargamento de potência se perfaz em processos de dominação. Por isso querer-poder (Macht-Wollen) não é apenas ―‗desejar‘, aspirar, exigir‖ (MULLER-LAUTTER, 1997, p. 54. Tradução modificada). Essa relação de dominante-dominado é equivalente a comando-obediência, o dominante cresce a expensas do dominado. A partir disso, a noção de realidade entra em cena: o mundo é uma efetividade (Wirklichkeit, do verbo wirken, fazer-efeito). Pois, como a vontade de potência constitui sempre uma relação de luta de impulsos, é dessa mesma forma que a realidade se manifesta, como movimento, transformação contínua. Com isso, entende-se o mundo e o homem enquanto vontade de potência, e nada mais. Embora essa doutrina trate da constituição do mundo, ela não deve ser tomada apressadamente como metafísica. O que de fato ocorre aqui é a própria desconstrução da metafísica, já que rejeita os valores absolutos e dualistas que nela estão contidos. A noção de espírito livre não é novidade no último período de produção de Nietzsche, ela passou por aprimoramentos para, assim, tornar-se o espírito capaz de encarar o mundo a partir da doutrina da vontade de potência. O que antes possuía a postura antidogmática, de caráter científico, agora é capaz de conceber a transformação contínua do mundo, sua efetividade, a partir de um caráter agonístico universal, uma postura bem mais abrangente para o antidogmatismo. O pensador contrapõe o espírito livre aos homens da ciência, que, com sua vontade de verdade, simplificam o mundo. Aqui o espírito livre leva a vantagem, pois leva em conta tanto a vontade de saber como a vontade de não-saber, não como opostas, mas sim como expressões de um só processo (vontade de potência). O espírito livre, com esta nova característica, assume os riscos de conceber um mundo imoralmente, no sentido de não possuir valores de verdade, ou falsidade: embora a arraigada tartufice da moral, que agora pertence de modo insuperável a ―nossa carne e nosso sangue‖, chegue a nos distorcer as palavras na boca, a nós, homens do saber: de quando em quando nos apercebemos, e rimos, de como justamente a melhor ciência procura nos prender do melhor modo a esse mundo simplificado, completamente artificial, fabricado, falsificado, e de como, involuntariamente ou não, ela ama o erro, porque, viva, ama a vida. (NIETZSCHE, 1992, p.31). O espírito livre é um prelúdio para uma filosofia do futuro, na qual o reconhecimento das verdades seria tão importante quanto o das inverdades, ou nãoverdades. Ele se tornará o ―homem do saber‖, com o fortalecimento do espírito, oriundo do reconhecimento da efetividade do mundo, e da doutrina da vontade de potência. Mas ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 56 este saber, apesar de aparentar uma concepção metafísica, não pode ser considerado, segundo o filósofo, enquanto tal: a vontade de potência é unidade enquanto multiplicidade, deve ser entendida imersa em uma totalidade caótica, sempre mutável, como movimento contínuo. Portanto, o ente não é fixo, é um processo. O espírito livre é capaz de desconstruir a metafísica, nesse sentido: O mundo de que fala Nietzsche revela-se como um jogo e contrajogo de forças ou de vontades de potência. Se ponderarmos, de início, que essas aglomerações de quanta de poder ininterruptamente aumentam e diminuem, então só se pode falar de unidades continuamente mutáveis, não, porém, da unidade. Unidade é sempre apenas organização, sob a ascendência, a curto prazo, de vontades de potência dominantes. (MULLERLAUTTER, 1997, p. 75. Tradução modificada) O divisor de águas que esta noção representa nos mostra que o pensamento de Nietzsche é inevitavelmente parte ativa na história da metafísica. Com isso, o pensador traz uma desconstrução útil ao saber como um todo, de acordo com seu próprio pensamento, e de acordo com a figura do espírito livre. Referências Bibliográficas: NIETZSCHE, F. W. Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. MULLER-LAUTER, W. A Doutrina da vontade de poder. São Paulo: Annablume, 1997. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 57 A PSICOFISIOLOGIA NA EDUCAÇÃO EM NIETZSCHE Felipe José Schmidt UNIOESTE [email protected] Palavras-chave: Psicofisiologia. Educação. Transvaloração. Consiste em uma investigação acerca da produção do pensamento e do conteúdo mental deste, ambos constituídos a partir da realidade fisiológica em Nietzsche. De modo mais específico, discutir-se-á a elaboração da consciência como efeito do modo de vida e de existência que estes podem sugerir, bem como, por conseguinte, pretende-se esclarecer a meta da Erziehung (educação) nietzschiana que tem em vista a criação do exemplar individual superior. Para isso, explicitar-se-á em que sentido Nietzsche compreende o processo contínuo da construção de si por meio da vontade de poder, assim como tematizar-se-á em que medida a Erziehung produz grandes homens e causam os tipos mais elevados. Desse modo, enfim, buscar-se-á mostrar como tal compreensão permite ao filósofo elaborar uma concepção psicofisiológica na qual a vontade de potência seja capaz de produzir impulsos bem hierarquizados gerando no intelecto e seus conteúdos. A reflexão sobre educar a si próprio, isto é, sobre o crescimento de potência é a mensagem de Nietzsche/Zaratustra, o diagnóstico, crítica e superação deste processo, encontram-se no âmago do filósofo do martelo. Um capítulo especial na educação nietzschiana é a formação do verdadeiro filósofo, que não se preocupa com a ―verdade‖, como queria Kant e Hegel, mas sim com a criação de valores. Neste sentido, toda temática desenvolvida pelo filósofo acerca dessa questão norteia-se mediante um eixo comum de discussão: a ótica da vida. Deve-se lembrar da dinâmica da fisiologia nietzschiana, uma luta de impulso por mais potência. Nietzsche coloca a ideia de vontade de potência afirmando que o corpo e suas funções devem ser entendidos em termos de obediência e domínio, não havendo causalidade ou mecanismo. Após a longa luta com condições desfavoráveis suscitadas pelo devir, o filósofo alemão afirma que um tipo se fixa, independente do acaso, mas por meio da educação. Uma educação que produz interpretações partindo do indivíduo como referencial. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 58 Enfrentando-se o niilismo que constitui a lógica da decadência que irrompe mediante um ―necessário‖, lento e insuspeitado processo de desvalorização dos valores, Nietzsche faz uma crítica à educação, afirma que a humanidade sempre pôs ênfase naquilo que não era importante para a educação, na verdade, ao desprezar a vida, valorizou aquilo que a negava e desvalorizou o que incrementava. Devemos para o filósofo evitar a degeneração, o que o fez assumir, em seus escritos, uma tarefa: estimular a humanidade a tomar decisões que determinam todo o futuro em uma ação direta da cultura e da educação sobre o que o homem pode tornar-se. A crítica nietzschiana dos códigos e do pensamento moral se apóia, portanto, numa recusa ao dualismo e ao recurso à transcendência. A pluralidade das forças deixa margem a uma interpretação monista. Para Nietzsche, existem infinitas possibilidades de interpretação do mundo, e cada uma delas seria por si mesma, um símbolo da ascendência ou de decadência. A primeira acepção, entendida como dualista pode ser esclarecida mediante a análise genealógica empreendida pelo filósofo e a segunda, monista dialético, entendida mediante a análise da crítica ao idealismo, da qual suscita a grande chave para o entendimento da homologia daquilo que entende por fisiológico e psicológico. É em relação a esta última acepção que nossa problemática se desenvolve. Mediante estes questionamentos e de uma leitura pertinente, a presente proposta buscará investigar a concepção nietzschiana acerca da construção do psicológico capaz de adentrar em suas próprias profundezas corporais e physicas, retraduzindo o homem na natureza para torná-lo senhor do perspectivismo interpretativo e surdo às lisonjas de todos os pássaros metafísicos. Investigar-se-á também a questão acerca do pensamento como um princípio imaterial que é a força. Referências Bibliográficas: FINK, E. A Filosofia de Nietzsche. Lisboa: Editora Presença, 1988. FREZZATTI, Wilson Antônio. Educação e cultura em Nietzsche: o duro caminho para ―tornar-se o que se é‖. In Nietzsche: Filosofia e educação. Ijuí: Unijuí, 2008, p. 39-66. KAUFMANN, W. Nietzsche Philosopher, Psychologist, Antichrist. New Jersey: Princeton University Press, 1974. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 59 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A Vontade de Poder. Trad. Marcos Sinésio Pereira Fernandes e Francisco José Dias Moraes. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008. ___________. Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007. ___________. Assim falou Zaratustra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. ___________. Genealogia da Moral. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009. RIBEIRO, Mário Sérgio. Vida e Liberdade: a psicofisiologia de Nietzsche. Londrina: UEL, 1999. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 60 A DÚVIDA COMO BUSCA DA VERDADE Felipe Ricardo Deuter Becker UNIOESTE/Bolsista PET [email protected] Palavras-chave: Dúvida, Método, res cogitans. É inegável a influência cartesiana no decorrer da modernidade e contemporaneidade. Sendo um dos aspectos mais debatidos e discorridos, a dúvida como método para uma investigação acerca do indubitável. Tal método levado ao seu radicalismo extremo, onde tudo o que realmente não traz uma certeza indubitável ou apresenta motivo para duvidar é rejeitado como possibilidade de um conhecimento seguro para as ciências. Este método leva a uma questão de cunho crucial para a compreensão da obra cartesiana: Qual o papel da dúvida como meio de acesso a verdade, se ela por si não é capaz de fundar nenhuma verdade? Assim temos como objetivo trazer uma discussão que remete tanto ao método da dúvida como as regras do método cartesiano, - Regras essas citadas no inicio das meditações, onde fica claro o norte que Descartes toma para a busca do indubitável. Tal compreensão é necessária tanto para a continuidade da leitura da meditação proposta pelo filósofo, como para a fundamentação da própria compreensão do que esta sendo duvidado, pois, assim que a dúvida começa a exercer seu papel dentro da meditação, começa a necessidade da compreensão da relação que esta provoca, em primeiro, pela dúvida e o duvidado, mas também pela formulação do que é realmente indubitável, assim, chegando a uma verdade reconhecendo ela como tal. Assim, cabe a busca da resposta para a questão que fora proposta no inicio da meditação, qual o fundamento realmente seguro para as ciências? Para tal fundamentação Descartes estabelece uma hierarquia entre as ciências, e o fundamento desta é a metafísica. Esta afirmação leva assim a busca do fundamento. Diante das dificuldades de um ponto de partida, mas com um ponto de chegada já pretendido, sendo eles: Ou o da afirmação de que não a verdade alguma ou o encontro com o indubitável, encontrando assim uma verdade ou mais. Instaura-se a questão por onde começar a duvidar. Um dos aspectos que estão postos como pano de fundo e que é fundamental para entender o principio do método, o ataque aos sentidos. É a crítica feita ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 61 por Descartes ao aristotelismo de sua época, onde a base do conhecimento aristotélico é os sentidos, o primeiro a ser atacado pela dúvida, demonstrando assim a fragilidade do conhecimento adquirido por estes, mas não apenas isso, os sentidos agora junto com os prejuízos causados por eles, começam a dar espaço a razão. Dentro da questão, entra um ponto de suma importância, a normatização da dúvida ou melhor, quais as regras que esta deve seguir até a indubitabilidade. Surgem então as regras, estas agem como um complemento ou norteador da dúvida, pois não basta duvidar é necessário estabelecer o que é realmente seguro e para isso, surgem as diretrizes básicas necessárias para se constatar a verdade, caso o método da dúvida encontre algum limite. Diante deste inicio, que se pauta na busca da verdade e que já obteve o seu primeiro ponto, surge então a retomada da relação, a normatização da dúvida agora se torna necessária mais do que nunca. Pois já esta posto o que é primeiro no caminho a ser percorrido, e os instrumentos para a busca do indubitável - Dúvida como método, duvidado e regras já estabelecidas para o que é o indubitável. Neste inicio onde ocorre cada vez mais uma redução dos itens a serem duvidados, levando cada vez mais a dúvida ao limite. Embora cada passo da dúvida sempre deixe algo fora de seu alcance, mas principalmente a cada novo grau da dúvida surge a necessidade de uma mais forte, até chegar a seu limite intitulado Deus enganador. A dúvida, em todo seu trajeto se torna um meio de acesso ao indubitável a res cogitans, esta a primeira verdade encontrada na meditação. Deste modo a dúvida é apenas um instrumento utilizado por Descartes, para a fundamentação que este procurava, uma verdade indubitável. Referências Bibliográficas: DESCARTES, René. Descartes obras escolhidas. São Paulo: Perspectiva, 2010. FORLIN, Eneias. A teoria cartesiana da verdade. São Paulo: Associação Editorial Humanitas / Editora da Unijuí, 2005. FORLIN, Eneias. O papel da dúvida metódica no processo de constituição do cogito. São Paulo: Humanitas, 2004. GOMBAY, André. Descartes. Porto Alegre: Artmed, 2009. LANDIM FILHO, Raul Ferreira. Evidência e verdade no sistema cartesiano. São Paulo: Loyola, 1992. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 62 SCRIBANO, Emanuele. Guia para leitura das Meditações metafísicas de Descartes. São Paulo: Loyola, 2007. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 63 LIBERDADE POLÍTICA EM “O PRÍNCIPE” DE NICOLAU MAQUIAVEL Gabriel Allan Drehmer Gonçalves Fundação Araucária [email protected] José Luiz Ames Palavras-chave: Conflito; Liberdade; Monarquia. Diferente dos clássicos, onde o conflito é a ausência, ou corrupção da vida política, para Maquiavel é justamente no conflito enquanto movimento interno que faz do Estado algo vivo e autônomo. Em outras palavras, para Maquiavel o ideal político não é mais fundamentado em uma metafísica ou teologia, mas sim no mundo fatual, no jogo político. Assim, para argumentar sua concepção política como inerente ao Estado, Maquiavel coloca no centro do jogo político a dicotomia de humores, o povo e os grandes, cada qual tendo um fim conflitante com o seu oposto, não sendo mais esse fim um bem comum, fundado na natureza do homem enquanto animal político e/ou social. Em Maquiavel a ordem de fins é dissimétrica, heterogênea. O conflito não está à parte da relação política, mas é o que legitima a mesma, a política nunca atinge um fim ideal, uma harmonia perfeita, porém está sempre em manutenção, sendo constantemente autolegitimada, de acordo com o movimento interno em relação ao jogo de humores. O conflito, enquanto tal, enquanto liberdade política, permanece sem resolução conclusiva. Cabe ao príncipe regulá-lo, não neutralizá-lo, pois tal seria a morte da vida pública como pensa Maquiavel. O conflito deve ser regulado não em vista de um fim ideal, mas sim, a manter o estado das coisas. Assim, uma vez que é tarefa do príncipe regular os humores no Estado ele estará sempre no campo do contingente, daquilo que não se deixa prever. Cabe ao príncipe de virtù antecipar-se à fortuna, não prever seus efeitos e, além disso, usando-a a seu favor. Como diz Lefort 1972, p.11: ―Ao afirmar a permanência do conflito, ao rejeitar a ideia de que uma forma política carrega em si estabilidade, o pensador reconhece a permanência dos acidentes e, consequentemente, designa a função do príncipe como a de um sujeito que conquista a ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 64 verdade num movimento continuado de racionalização da experiência. Ao mesmo tempo se arroga o direito de conceber as relações de força em sua generalidade, ensina que estas se instituem sempre pelas operações empíricas de agentes colocados em condições contingentes. Ao mesmo tempo em que extrai de toda situação os termos de um problema e nos torna sensível à exigência de um método, mostra que os dados deste problema não deixam de mudar e que a solução jamais é fornecida antecipadamente‖. Assim, em relação ao conflito, o príncipe de virtù deve ser capaz de regulá-lo para que se mantenha deste modo a vida política, dando vazão institucional para que ocorra a manutenção necessária para assegurar-se a liberdade política na relação entre os humores e seus fins. O príncipe deve usar a força ou os favores, dependendo de sua forma de governo. Ao conflito interno só resta essa opção uma vez que não deve ser neutralizado, mas somente regulado. A pergunta que se coloca a seguir é a de que, como, em um principado tem-se tal regulação institucional entre os humores para que se conserve a vitalidade do Estado? Para tratar de tal tema, mesmo que de modo superficial, comecemos pela questão da fundação. Para Maquiavel, diferente dos medievais, a fundação do Estado não é algo natural, precisando somente de um impulso por parte de um agente legislador para que as partes sejam um só corpo buscando um só fim comum à harmonia, mas sim por uma coesão das partes que tem interesses diferentes. O ato fundador sempre pressupõe um ato de violência, mas esta por si só não mantém o poder. Manter o poder é necessitar de algo que vem depois do ato fundador. Para isso o legislador deve instituir uma ordem que, coagindo as partes, as unifique em grupos sociais dentro de um Estado consolidado. É a necessidade de o príncipe dar vazão institucional aos humores que compõem a cidade. Essa ação por parte do príncipe deve sempre renovar-se. Em Maquiavel o ato, ou ação política, é o legitimar-se enquanto tal constantemente. A manutenção do estado, do conflito de humores por parte do governante, é ele mesmo, sua própria legitimação enquanto ato de governo. Assim, manter o estado é legitimá-lo constantemente pela ação do príncipe acerca do conflito inerente a vida política. O estado é refundação contínua. A legitimidade não se dá mais em um finalismo moral ou divino, nem em vista de um único bem visado por todos os cidadãos, mas sim a ação política consequente da relação entre os humores. Deste modo, ação é legitimação, ação é poder manter-se enquanto tal sabendo usar de força coerciva e modos de governo. Do mesmo modo que a ação deve ser ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 65 continuamente revivida o conflito não pode, ou não deve, ser neutralizado pois é justamente aí que se dá a liberdade na vida política segundo Maquiavel. Referências Bibliográficas: ADVERSE, Helton. O olho o juízo e o inganno: a produção da imagem. In: ADVERSE, Helton. Maquiavel: política e retórica. 1ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009, p.33-115. CASSIRER, Ernst. La nuevaciencia política de Maquiavelo: La leyenda de Maquiavel, El triunfo Del maquiavelismo, Consecuencias de La nueva teoria del Estado. In: CASSIRER, Ernst. El Mito del Estado. Tradução de Eduardo Nicol. 7ed. México: Fondo de Cultura Económica, 1992, p.138-166. CHABOD, Federico. Post res perditas. Lo que queda de El príncipe. In: CHABOD, Federico. Escritos sobre Maquiavelo. Tradução de Rodrigo Ruza. 2ed. México: Fondo de Cultura Económica, 1994, p.91-115. LEFORT, Claude. Le travail de l‟oeuvre Machiavel. Tradução para uso didático de José Luiz Ames. Paris: Gallimard, 1972. MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe e escritos políticos. Tradução de Lívio Xavier. 5ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991. POCOCK, John GrevilleAgard. La restauración de losMédicis. In: POCOCK, John GrevilleAgard. El momento maquiavélico: El pensamiento político florentino y La tradición republicana atlántica. 2ed. Madrid: Editora Tecnos, 2008, p.245-270. SKINNER, Quentin. Os fundamentos da política moderna. 1ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 66 A LIBERDADE COMO INDEPENDÊNCIA DE DETERMINAÇÕES SENSÍVEIS EM KANT Jaime José Rauber Doutor em Filosofia Professor e pesquisador da PUCPR - Campus de Toledo. [email protected] Palavras-chave: Kant. Liberdade. Filosofia moral. O objetivo desta comunicação consiste em mostrar que o conceito de liberdade é um conceito-chave da filosofia moral de Kant e que ser livre consiste em agir com absoluta independência de toda e qualquer influência sensível. O fundamento do conceito de liberdade na filosofia moral de Kant não se encontra nas obras dedicadas à filosofia prática, mas, antes disso, em sua filosofia teórica, mais especificamente na Crítica da Razão Pura. Nessa obra, Kant não tem como objetivo central a discussão do problema da liberdade. Não obstante isso, a investigação apurada para avaliar o que é possível à razão pura conhecer de maneira absolutamente a priori faz com que o problema da liberdade inevitavelmente apareça no âmbito da investigação acerca dos princípios e limites da razão pura especulativa. Mostrar-se-á que o conceito de liberdade não é algo que pode ser conhecido pela razão pura especulativa. Contudo, trata-se de uma ideia necessária da razão sem a qual não se poderia compreender o homem como um ser dotado de livre arbítrio, mas como um ser plenamente determinado segundo as leis da causalidade natural. De acordo com o pensamento de Kant, o homem é sujeito de dois mundos: por um lado, é afetado por inclinações sensíveis, podendo inclusive orientar seu agir por essa influência, e assim pertence ao mundo dos fenômenos; por outro, também pode guiar-se pelas leis da causalidade inteligível e, como tal, pertence ao mundo inteligível. Enquanto membro do mundo dos fenômenos, o homem segue as leis da causalidade natural e, portanto, é determinado, não livre, pois não é a razão prática pura que determina para si como deve agir, mas segue as determinações das inclinações sensíveis, que se encontram em conformidade com as leis da causalidade natural. Quando, porém, o homem determina para si mesmo a sua vontade seguindo unicamente as determinações da razão prática pura, ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 67 isto é, seguindo as leis da causalidade inteligível, ele é membro do mundo inteligível e, como tal, é efetivamente livre. Segundo Kant, não há dúvidas sobre a existência de apenas duas espécies de causalidade em relação ao que acontece, quais sejam a causalidade segundo a natureza e a causalidade pela liberdade (cf. CRP, B 560; trad. port. p. 462.). A causalidade pela liberdade é uma faculdade capaz de iniciar por si só um estado de coisas sem que esteja subordinada a outra causa que a determine na ordem tempo (cf. CRP, B 561; trad. port. p. 463). Sob esse aspecto, a liberdade é ―uma ideia transcendental pura que, em primeiro lugar, nada contém extraído da experiência e cujo objeto, em segundo lugar, não pode ser dado de maneira determinada em nenhuma experiência‖ (CRP, B 561; trad. port. p. 463). Visto que na ordem dos fenômenos tudo tem uma causa, através do conceito de liberdade explica-se a existência de uma ordem causal não atrelada ao mundo natural (fenomênico) e que, portanto, pode iniciar uma série nova de causas não subordinada às leis da natureza. A liberdade transcendental é compreendida, em Kant, como uma ideia necessária da razão pura, pois, considerado apenas o entendimento (razão especulativa), tudo no mundo se seguiria dependente unicamente da causalidade segundo a natureza e, assim, todos os acontecimentos seriam determinados por outros segundo leis absolutamente necessárias (cf. CRP, B 562; trad. port. p. 463). Como consequência, o arbítrio humano (vontade) também seria determinado somente segundo a causalidade da natureza, e não haveria a possibilidade de ações humanas livres. Se não fosse possível admitir a causalidade pela liberdade, não haveria um domínio próprio para a liberdade prática (moralidade), pois cada ação humana seria sempre apenas conforme à causalidade natural. A determinação das ações por causas inteligíveis faz com que o sujeito agente seja capaz de determinar a sua própria vontade segundo as leis da liberdade. Em tal situação, a razão prática pura determina a vontade e, consequentemente, inicia uma ação sem que essa tenha uma causa anterior, como é o caso da série pertencente à causalidade natural. Sem a causalidade inteligível, todos os eventos do mundo natural seriam regidos e determinados plenamente de modo mecânico-causal e não haveria espaço algum para se falar de liberdade nem de responsabilidade moral. Pelo fato de o sujeito agente ser capaz de determinar sua ação a partir da razão prática pura, ele se torna pertencente ao mundo inteligível (noumeno) e suas escolhas são determinadas com absoluta independência de qualquer influência sensível. Sem a liberdade, todas as ações do homem se compreenderiam sob o domínio do arbitrium brutum, segundo o qual todas as ações são patologicamente necessitadas, isto é, determinadas sempre por impulsos sensíveis (cf. CRP, B 562; trad. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 68 port. p. 463). Nesse sentido, mostrar-se-á que a liberdade consiste em agir, não segundo as leis da causalidade natural, mas segundo as leis da causalidade inteligível com absoluta independência de toda e qualquer influência sensível, o que constitui a base de toda a filosofia prática de Kant. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 69 CONCEPÇÃO DE MUNDO E LINGUAGEM EM GRAMSCI Jarbas Mauricio Gomes PPGE-UFSCar/CNPq [email protected] Palavras-chave: Filosofia. Linguagem. Gramsci. Cadernos do Cárcere. O presente texto tem como tema o pensamento do italiano Antonio Gramsci (1891-1937) e se dedica a explorar as notas dos Cadernos do Cárcere (QC) com o objetivo de analisar a relação entre linguagem e concepção de mundo. Busca-se determinar se essa aproximação entre linguagem e concepção de mundo permite afirmar a presença de uma Filosofia da Linguagem nos QC. Gramsci defendia que a filosofia é a própria linguagem e que esta era um fator determinante no processo de superação do senso comum e da concepção de mundo hegemônica no início do século XX. O problema da linguagem apresentado por Gramsci nos QC dizia respeito à influência da concepção religiosa de mundo sobre a formação cultural dos italianos (BOOTHMAN, 2009), em especial dos grupos subalternos onde o predomínio de dialetos era um empecilho à apropriação e ao exercício da crítica filosófica (FROSINI, 2009). A aproximação entre os conceitos de linguagem e concepção de mundo se consolida na medida em que Gramsci considerava que a linguagem era o instrumento de apropriação e exercício da filosofia (SCHIRRU, 2009). Gramsci indagava se era preferível participar de modo inconsciente de uma concepção de mundo imposta ou era preferível elaborar a própria concepção de mundo de modo consciente e crítico (QC 8, § 204). Gramsci apresentou a filosofia como a crítica da religião e do senso comum, isto é, à uma concepção de mundo determinada (FROSINI, 2009). Considerando que todo homem participa de uma concepção de mundo seja por meio do senso comum ou da religião, apontou a relação entre religião, senso comum e filosofia, afirmando que não existia um único senso comum, dado que este, produto do devir histórico, é uma desagregação da própria concepção religiosa de mundo, manifesta no domínio e o uso que o sujeito faz da linguagem (QC 8, § 204). A questão da linguagem, presente nos QC, é decorrente de um problema prático, a unificação do Estado italiano operada durante o século XIX em um movimento político ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 70 que ficou conhecido historicamente como Risorgimento. Gramsci entendia que a unificação política da Itália não era suficiente para dar uma identidade ao povo italiano que não possuía uma cultura homogênea. A linguagem se apresentava como principal elemento desagregador da cultura, um problema a ser superado. Nos QC Gramsci fez a distinção entre os conceitos de língua e linguagem. Ele concebia a língua como o modo de falar e se expressar de um determinado grupo social. Isto é, Gramsci considerava a língua um produto social a expressão cultural de um povo determinado (QC 6, § 71). A linguagem, por sua vez, era a expressão mais ampla da cultura, caracterizando-se como a própria filosofia, como expressou Gramsci no QC 10-II, § 44 ao afirmar que a linguagem é uma multiplicidade de fatos mais ou menos coerentes, organizados de maneira orgânica e coordenada. A indicação de que a linguagem remete aos fatos foi retomada por Gramsci no QC 11 § 12, mediante a afirmação de que a linguagem contém em si os elementos de uma concepção de mundo e se caracterizar como um conjunto de noções e conceitos determinados (QC 11, § 12). Demonstrando que todos são filósofos, a seu modo, que não existem homem normal e sadio intelectualmente que não participe de uma determinada concepção de mundo, ainda que inconscientemente, porque toda linguagem é uma filosofia, passe ao segundo momento, ao momento da crítica e da consciência (QC 8, § 204, p. 1063). Gramsci considerava que o domínio da linguagem estava diretamente atrelado a capacidade de filosofar e fazer a crítica à concepção de mundo hegemônica. Do mesmo modo, afirmava que era possível estabelecer a complexidade da concepção de mundo de um individuo a julgar pela complexidade de sua linguagem (QC 11, § 12). A relação entre a linguagem e a concepção de mundo, apresentada por Gramsci, conferia a linguagem uma historicidade, por meio da qual ela se desenvolve e representa a realidade. (...) Toda língua é uma concepção de mundo integral, e não só uma veste que sirva indiferentemente como forma a qualquer conteúdo. Mas, e então? Não significaria isto que estavam em luta duas concepções de mundo: uma, burguês-popular que se expressava no vulgar, e outra, aristocrático-feudal que se expressava em latim e se referia à antiguidade romana? E que esta luta, e não a serena criação de uma cultura triunfante, é que caracteriza o renascimento? (QC 5, § 131, p. 645). ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 71 Gramsci pensou a questão da linguagem partindo das condições históricas e dos problemas de seu tempo. Na análise gramsciana, a linguagem é portadora de uma concepção de mundo, uma elaboração intelectual que remete a realidade do mundo material. Desta forma, o desenvolvimento da linguagem se encontra na origem do projeto gramsciano de superação da concepção de mundo hegemônica pela elaboração de uma filosofia originária da necessidade da classe trabalhadora, elaborada consciente e criticamente, a filosofia da práxis. É possível concluir que a abordagem que Gramsci fez da linguagem nos QC, aproximando-a da noção de concepção de mundo, garantiu a presença de uma filosofia da linguagem no interior dos QC. Essa filosofia da linguagem se desenvolveu ora pela investigação filosófica acerca da natureza da linguagem e de seus significados, ora pela abordagem crítica de problemas filosóficos orientada pela crítica da própria linguagem. Os Cadernos do Cárcere foram citados a partir da Edição Italiana organizada por Valentino Gerratana em 1975, indicada PELA abreviatura QC, o numero do caderno, do parágrafo e da página da edição consultada. EX: QC 1, § 1, p. 1. Referências Bibliográficas: BOOTHMAN, Derek. Linguaggio. In: LIGUORI, Guido; VOZA, Pasquale. (Org.). Dizionario gramsciano 1926-1937. Roma: Carocci, 2009. p. 482-483. FROSINI, Fabio. Filosofia. In: LIGUORI, Guido; VOZA, Pasquale. (Org.). Dizionario gramsciano 1926-1937. Roma: Carocci, 2009. p. 305-308. GRAMSCI, Antonio. Quaderni del Carcere: Edizione crittica dell‘Istituto Gramsci a cura di Valentino Gerratana. Torino: Einaudi, 2007. 4 vol. SCHIRRU, Giancarlo. Filosofia da Linguagem e Filosofia da Práxis. In: AGGIO, Alberto; HENRIQUES, Luiz Sérgio; VACCA, Giuseppe (Orgs.). Gramsci no seu tempo. Brasília: Fundação Astrogildo Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto, 2010. p. 309-337. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 72 A FILOSOFIA DA CULTURA E O POTENCIAL REVOLUCIONÁRIO DA CULTURA POPULAR E INDÍGENA EM ENRIQUE DUSSEL Jéssica Fernanda Jacinto de Oliveira Unioeste/Capes [email protected] José Luiz Ames Palavras-chave: Reconhecimento. América Latina. Transformação. Na perspectiva de uma filosofia da libertação acredita-se que a cultura latinoamericana se constituiu na exterioridade de toda a cultura eurocêntrica, na medida em que se encontrava fora da história das culturas. Em seguida notamos o fenômeno da dominação cultural na qual comumente vemos e ouvimos argumentos de que somente manifestações euro-norteamericanas são adequadas, completas e satisfatórias. Que o produzido na América Latina não possui importância nem complexidade artística, uma vez que os fatos comprovam o atraso educacional de séculos se comparado com países de primeiro mundo. Encontramos, então, outra característica de opressão: os primeiros sobre os últimos (ou terceiros). Logo, no interior do nosso continente também podemos visualizar blocos de oprimidos pelas ruas das metrópoles. Ou seja, a cultura popular encontra fortes barreiras ao se deparar com a cultura elitista, burguesa, o que o filósofo Enrique Dussel denomina de ―cultura dos crioulos-brancos‖1. Podemos observar, por exemplo, o desprezo pelo artesanato, músicas e lendas indígenas em comparação com os produtos chineses, as músicas estadunidenses e os mitos gregos; o desprezo pela comida camponesa em comparação com os fast-foods; o desprezo pelo história da América Latina em comparação com a história europeia; o desprezo pela religiosidade ameríndia em comparação com a religiosidade (e racionalidade) europeia. 2 Na poesia encontramos uma forma mais direta: ―são caboclos querendo ser ingleses‖ (Cazuza, Burguesia). Esta avaliação se fundamenta na observação do comportamento social da população brasileira (quiçá americana), desde as grades curriculares de cursos acadêmicos até constatações fáticas como as exemplificadas, que são visíveis e notórias a qualquer observador, sem muito – ou nenhum – esforço teórico. Vejamos o tanto que as escolas ensinam sobre a Revolução Francesa e o tanto que ensinam sobre a Revolução Zapatista. Vejamos o tanto que conhecemos de religião católica e o tanto que conhecemos da 1 2 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 73 Mas o que caracteriza a cultura do oprimido? Qual o momento da cultura indígena no processo de libertação? Qual o potencial destas culturas? Refletir sobre estas questões relacionando-as ao contexto prático, cotidiano, de existência de leis, de mortes, de dados empíricos e contextualizados é o objetivo deste trabalho. Justo porque reconhecer a dominação histórica da cultura indígena e originalmente americana não é um trabalho árduo e inovador, mas pensar como estas questões estão ocorrendo sob a égide de uma ligeira liberdade e igualdade é no mínimo assustador. Por um lado temos a liberdade de escolha, de modo que não existe fundamento moral ou racional que imponha para a maioria da população continental o dever de voltar às suas raízes culturais, por outro lado o reconhecimento do outro como Outro, isto é, como oprimido e vítima do sistema, é algo plenamente exigível desde uma metafísica da alteridade. Além disso, a cultura popular em uma perspectiva dusseliana não consiste somente em uma caracterização externa ou ideológica, todavia possui um potencial revolucionário peculiar. Resta-nos a questão: como utilizar os traços étnicos e tradicionais para a libertação? Com qual ponto de partida? Como os indígenas podem resistir à séculos de opressão e exclusão tendo em posse a cultura como sua arma primordial? Falamos em revolução cultural ou perpassamos para os níveis ônticos de uma revolução social? Por conseguinte este trabalho terá a preocupação em analisar estes pontos a partir de uma filosofia que se propõe a pensar o ponto de vista do oprimido, fazendo uso das obras Oito Ensaios Sobre Cultura Latino-Americana e 1492: o encobrimento do Outro ambas de Enrique Dussel. Partiremos da opressão cultural indígena pelo fato de ser a originária na América Latina, mas reconhecendo obviamente as dominações culturais de outros povos aqui existentes. Deste modo, além de pensar a dominação cultural elencando suas características e conotações, a práxis filosófica nos convida a interagir com as comunidades e grupos populares para que seja possível um diálogo real entre as culturas oprimidas, entre os países latino-americanos (ou de ―terceiro mundo‖) para que a visão do colonizador (ou do ―primeiro mundo‖) não seja totalmente incorporada ao ideário popular, mas que também não se corra de o risco de cair em um populismo extremo. Certamente a reflexão sobre a religião xamã. Vejamos o tanto que sabemos de Aquiles (personagem grego) e o tanto que sabemos de Maculelê ou Nhanderú (personagens indígenas, latino-americanos). A fonte para o parágrafo de afirmações é o conhecimento geral, senão, a observação social. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 74 temática cultural cedo ou tarde convergirá em debates econômicos, ambientais, políticos, dentre outros, pois como se percebe na filosofia dusseliana um campo de atuação perpassa o outro, mas ainda assim é possível se pensar a Filosofia da Cultura como um campo altamente influente para a prática da libertação. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 75 O COGITO COMO CONSCIÊNCIA DE SI João Antônio Ferrer Guimarães UNIOESTE [email protected] Palavras-chave: Metafísica. Consciência de si. Subjetividade. Cogito. O caminho através do qual são delineadas as bases da metafísica cartesiana apresenta-se mais claramente exposto – como sabemos – em suas Meditações Metafísicas. Numa primeira abordagem – considerando que muitas outras são possíveis –, duas características emergem do projeto metafísico proposto neste pequeno texto que abrange seis etapas meditativas na busca por três verdades de existência – a consciência, Deus e o Mundo. Primeiramente, há um aparente velamento, no que concerne aos conceitos-chave e suas relações, do processo de gênese dos mesmos; vale dizer, há como que um esquecimento das fontes nas quais estes conceitos – no processo histórico da filosofia – foram sendo lapidados, e mesmo transformados; isto não constitui novidade significativa se atentarmos ao pensamento e aos objetivos de filósofos do mesmo período. No entanto, esta característica, no que se refere precisamente à subjetividade como princípio que reflete sobre si, terá importância decisiva, na medida em que reforçará a originalidade e trará luz a uma metafísica concebida ao mesmo tempo como ontologia e epistemologia fundamentais. Em segundo lugar, a obrigatoriedade de aceitar o ―caminho‖ metafísico que leva à subjetividade, como caráter essencial do pensamento cartesiano, implica também corroborar a tese – tese esta nem sempre explicitada claramente nos textos cartesianos – de que o papel da metafísica, muito mais do que perquirir o ser enquanto ser3, propõe uma transformação da ontologia tradicional – e mesmo um corajoso abandono de suas teses fundamentais – em direção a uma concepção que supõe uma noção profunda de consciência – uma consciência de si que se volta para si – em busca de uma solução para a questão da evidência e certeza do conhecimento. Isto, em outras palavras, indica que o 3 É preciso frisar aqui que a pergunta ―o que é o ente?‖, que deve perpassar a reflexão filosófica como um todo, segundo muitos autores, deverá ser respondida por Descartes no âmbito de sua metafísica, mas não como análoga à resposta da tradição e sim como questão fundamental de sua teoria do conhecimento como fica implícito, principalmente, no transcurso da investigação de suas Meditações Metafísicas. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 76 tema central de todas as ponderações cartesianas consiste no problema da certeza e da evidência (LANDIM, 1992, p. 121), tanto do ponto de vista metodológico – onde se analisa como opera a razão, o cogito –, quanto do ponto de vista metafísico – onde são legitimadas suas operações. Esta temática constituirá, por fim, um âmbito psicológico que se abrirá para as muitas possibilidades da razão inquirir sobre si mesma culminando diretamente nos questionamentos e nas tentativas de síntese propostas pelo século do iluminismo. Por outro lado, este segundo ponto coloca Descartes como principal articulador da superação da noção aristotélica de ―ente substancial‖ em prol de uma metafísica da subjetividade – de uma noção particular de subjetividade. Na verdade, como tentaremos mostrar, estes dois pontos podem ser reduzidos apenas à questão que gravita em torno dessa subjetividade e que pode ser expressa pela pergunta sobre a presença do ego como instância metafísica privilegiada; o existente como ente de razão do qual emana o conhecimento tanto da existência de uma ciência verdadeira e universal quanto de seus princípios, ou seja, de seu fundamento. Em todo caso, ao analisar com mais acuidade o desenrolar do sistema proposto por Descartes devemos pensar tais afirmações com certa relativização. Não que elas não contenham verdades ou não se sustentem no contexto reflexivo cartesiano – os testemunhos de dezenas de comentadores da grandeza de Gueróult, Gouhier, Beyssade, etc., que descrevem Descartes como o desbravador de uma nova subjetividade na qual está implícita uma nova epistemologia, não deixam dúvidas sobre a natureza inovadora de seu pensamento. O que devemos ter sempre em mente é que não há – na modernidade, pelo menos – uma ruptura tão radical a ponto de prescindir totalmente de, pelo menos, alguns pressupostos da tradição4. Sendo assim, é inegável que o papel da subjetividade surge, enquanto manifestação de uma consciência fundamentadora, como princípio essencial da filosofia moderna e, em Descartes, funda uma metafísica do sujeito, cujas consequências mostrar-se-ão tanto mais fortemente quanto mais nos debruçarmos sobre os sistemas filosóficos – principalmente no que concerne ao pensamento metafísico – dos pensadores posteriores. Deste modo, neste trabalho, o que propomos é o aprofundamento da investigação sobre esta consciência, o ego cogito, princípio metafísico fundamental, no intuito 4 É claro que devemos levar em consideração afirmações como as de Husserl que considera as Meditações Metafísicas como tendo um sentido único dentro da história da filosofia pelo fato de sua volta radical ao puro ego cogito. (Conf. HUSSERL, 1996: 40). Isto, no entanto, não encerra a questão; o sujeito que emerge da reflexão cartesiana apresenta ainda, implícita em sua natureza, a noção de substância, por exemplo. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 77 de tentar entender, primeiramente, sua natureza a partir dessa consciência pura que parece ser o centro para onde gravitam o conhecimento e o ―mundo‖ e, em segundo lugar, tentar apontar, no que concerne à noção de subjetividade, em que consiste sua originalidade baseada na noção de consciência de si. Referências Bibliográficas: DESCARTES, R. Obras: Discurso do método, Meditações, Objeções e respostas, As paixões da alma, Cartas. Coleção os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1983. HUSSERL, E. meditaciones cartesianas.Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1996. LANDIM, R. Evidência e verdade no sistema cartesiano. São Paulo: Edições Loyola, 1992. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 78 MAQUIAVEL E A AÇÃO POLÍTICA: UMA TENTATIVA DE APROXIMAÇÃO CONCEITUAL José Luiz Ames Unioeste/CNPq [email protected] Palavras-chave: Maquiavel. Ação política. Virtù e Fortuna. Maquiavel se propõe a questão da análise das condições de possibilidade da ação política. Em relação a isso, sua tese é: nada predetermina a priori a ação (providência, astros, fortuna, etc.) e, por isso, o resultado depende unicamente da capacidade do ator. A afirmação da ausência de um determinismo divino ou dos astros poderia nos levar a pensar que a ação humana seria totalmente desimpedida; que o homem seria capaz de controlar plenamente todos os fatores que intervêm na sua execução. Ainda que o homem seja responsável por seu destino, Maquiavel reconhece a intervenção de forças que fogem ao seu controle: a fortuna e a corrupção. A reflexão sobre estes elementos evidencia que a ação política, embora sofra limitações de fatores que escapam ao controle humano, não é impossível. O fato de não ser eficaz em todos os momentos não pode justificar um desencorajamento prévio, mas também não ilusões sobre o resultado das ações políticas, pois o êxito delas se decide em função das circunstâncias e do caráter mais ou menos propício da ocasião. Isto remete à ideia de virtù: termo de significado polissêmico no pensamento maquiaveliano e que é empregado para indicar todo aquele complexo de aptidões que permite aos homens destacar-se e impor às coisas o rumo por eles decidido. É, assim, a principal qualidade requerida para o êxito na ação política. Uma vez analisadas as condições de possibilidade da ação política, tanto dos elementos que se opõem ao êxito – fortuna e corrupção – quanto a principal qualidade responsável pelo sucesso, ou seja, a virtù, é possível tentar delinear a concepção de ação política para Maquiavel. Esta pode ser captada por uma rede de metáforas dentre as quais se destacam três principais: a da arquitetura (que remete à ação de fundar e edificar), a de forma e matéria e a de arte médica. Qual concepção de ação política se desprende do conjunto das três metáforas? Todas mostram que a ação política em Maquiavel está orientada, antes de tudo, para o estabelecimento de uma ordem, sua manutenção, sua reforma ou ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 79 transformação e sua salvaguarda. Maquiavel não pretende oferecer receitas prontas para o sucesso, e sim convidar o ator político a recriar, segundo as circunstâncias concretas em que a ação se desenvolve, as condições de êxito desta. Por outro lado, porém, entende que a leitura dos acontecimentos passados e presentes será capaz de fornecer referências para uma ação segura, desde que o ator político saiba adaptar sua personalidade à ―qualidade dos tempos‖. Sugeriria com isso que circunstâncias semelhantes se reproduzem na história tornando possível a imitação do modelo de ação política? O que levanta este problema é uma situação antitética: por um lado, a afirmação da possibilidade da imitação fundada sobre a identidade dos tempos e, por outro, a relativização desta identidade. Pensar a imitação sob o prisma da invenção ou da criação de modos de ação, situa a ação política na esfera da verità effettuale. Ao estabelecer esta como objetivo, o discurso maquiaveliano constitui-se numa recusa do modelo de príncipe moral em proveito de outro capaz de dizer ―coisa útil a quem a entende‖. Com isso, Maquiavel declara sua ruptura com uma tradição à qual acusa de ocupar-se de governos imaginários e, consequentemente, de coisas inúteis proclamando-se ele próprio o descobridor da verdade política. Em que consiste esta verdade? Nas palavras de Maquiavel, a verdade política de uma ação pode ser captada unicamente por meio de seus efeitos (isto é, a verdade é effettuale) e não pelas motivações: quer dizer, ela se situa nas consequências, nas repercussões - sejam elas afortunadas ou infelizes - no sistema complexo das condições a partir das quais a ação se desenrola. A concepção de verità effettuale proposta por Maquiavel permite pensar que a realidade se esgota completamente na aparência, não porque somente trapaceando o príncipe seria capaz de satisfazer suas ambições, e sim porque é o único modo de aceder ao vivere politico. Em outras palavras, a vida política se desenvolve na esfera da aparência: a verdade da política é possível de ser captada tão somente pelos efeitos (resultados ou consequências) das ações. É nisto que consiste a conhecida ruptura maquiaveliana com a ética e a instituição da política como um domínio autônomo, pensado a partir dele mesmo. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 80 O CETICISMO PIRRONIANO E O CETICISMO ACADÊMICO Josué do Nascimento Unioeste – 1º ano de filosofia noturno [email protected] Vários autores da Antiguidade atribuíram a origem da tradição do ceticismo à figura do filósofo Pirro de Élis (365-275 a.C.). Sexto Empírico, por exemplo, explica o emprego do termo ―pirronismo‖ para designar a orientação cética, ―a partir do fato dePirro parecer ter se dedicado ao ceticismo de forma mais significativa que seus antecessores‖. E Diógenes Laércio, após enumerar os discípulos de Pirro, afirma ―que estes chamaramsepirronianos por causa de seu mestre subdividiram em aporéticos, céticos, eféticos ezetéticos‖. Pirro, um personagem não muito diferente de Sócrates, ou quem sabe, igual a Sócrates em alguns aspectosideológicos e exposição de pensamentos, explorava seu discurso cético, levando em diante ideias voltadas a mudança do mundo antigo, com atitudes espirituais indo ao encontro das do Oriente. Seu intuito era exatamente relembrar Sócrates na sua maneira de filosofar. Junto com Anaxargo, viajou com Alexandre o grande em suas explorações no oriente, e estudou na Índia com os ginosofistas e com os Magi na Pérsia. Da filosofia oriental parece ter adotado uma vida de reclusão. Voltando a Elis, viveu pobremente, mas foi muito reconhecido pelos habitantes desta região e também pelos atenienses, que lhe concederam a cidadania. Suas doutrinas são conhecidas principalmente pelos escritos satíricos de seu pupilo Timon. Os princípios de sua obra são expressos, em primeiro lugar, pela palavra acatalepsia que define a impossibilidade de se conhecer a própria natureza das coisas. Qualquer afirmação pode ser contraditada por argumentos igualmente válidos. Em segundo lugar, é necessário preservar uma atitude de suspensão intelectual, ou, como Timon expressa, nenhuma afirmação pode ser considerada melhor que outra. Em terceiro lugar, estes resultados são aplicados na vida em geral. Pirro conclui que, dado que nada pode ser conhecido, a única atitude adequada é ataraxia ―despreocupação‖. Pirro falava de uma paz de espírito possível de se alcançar e lutava a favor de estabelecer uma política ética.A impossibilidade do conhecimento, mesmo em relação à nossa própria ignorância ou dúvida, deve induzir o homem sábio a resguardar-se, evitando o stress e a emoção que acompanha o debate sobre coisas imaginárias. Este ceticismo drástico é a primeira e mais completa ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 81 exposição de agnosticismo na história do pensamento. Seus resultados éticos podem ser comparados com a tranquilidade ideal dos estóicos e os epicuristas O caminho do sábio, diz Pirro, é perguntar-se três questões. Primeiro deve perguntar o que são as coisas e de que são constituídas. Segundo, como estamos relacionados a estas. Terceiro, perguntar qual deve ser nossa atitude em relação a elas. Sobre o que as coisas são, podemos apenas responder que não sabemos nada. Sabemos apenas de sua aparência, mas somos ignorantes de sua substância íntima. A mesma coisa aparece diferentemente a diferentes pessoas, e assim é impossível saber qual opinião é a correta. A diversidade de opiniões entre os sábios, como entre os leigos, prova isso. A cada afirmação pode-se contrapor outra contraditória, mas com base igualmente boa, e qualquer que seja minha opinião, a opinião contrária é defendida por alguém que é tão inteligente e competente para julgar quanto eu. Podemos ter opiniões, mas certeza e conhecimento são impossíveis. Daí nossa atitude frente às coisas (a terceira pergunta) deve ser a completa suspensão do julgamento. Não podemos ter certeza de nada, mesmo as afirmações mais triviais. Diz-se que Pirro era tão cético que isso o teria levado a agir de maneira insensata. Segundo Diogenes Laércio não se guardava de risco algum que estivesse em seu caminho, carroças, precípicios ou cães. Certa vez, quando Anaxarco caiu em um poço, Pirro manteve-se imperturbável, conforme a sua filosofia, não socorrendo o mestre.Enesidemo argumenta, porém, que Pirro ―filosofava segundo o discurso da suspensão do juízo, mas que não agia de maneira inaudita‖. Parece confirmar essa observação o fato de Pirro ter vivido até os 90 anos. Pirro deixou por escrito somente um poema para Alexandre, portanto a maior parte do que sabemos sobre a filosofia dele foi escrito por seu seguidor Timon e os comentários que Aristocles fez sobre os escritos de Timon. Pirro, ao trazer essa influencia oriental, se preocupou com a valorização da pobreza e este criou três princípios: 1) É impossível se conhecer a natureza das coisas 2) Todas as afirmações tem igual valor, ou seja, não há afirmação melhor que a outra, as opiniões são iguais. 3) Já que não podemos conhecer a natureza das coisas, como definir uma afirmação melhor, sugere que devamos ser despreocupados com debates filosóficos. O primeiro cético, sem se preocupar em fundar uma escola nos moldes tradicionais, e não deixou nenhum escrito. As informações de que dispomos para tentar reconstruir a ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 82 vida e pensamento de Pirro são encontradas em fragmentos de obras de autores que se consideraram discípulos do filósofo, sobretudo nos textos de Timon de Fliús, e nos testemunhos apresentados por Diógenes e Laércio. Segundo Diógenes, Pirro dedicou-se primeiro a pintura. Sem grande sucesso, voltou sua atenção para Filosofia. Inicialmente teria sido discípulo de certo Brison, filósofo ligado à escola de Mégara, e, posteriormente, de Anáxarcos de Abdera, de quem pode ter recebido lições acerca do atomismo de Demócrito. Na companhia de Anáxarcos, Pirro participou da expedição de Alexandre ao Oriente, onde teve contato com os chamados gimnosofistas, espécie de sábios indianos, que, segundo contam, levariam uma vida de tipo monástico, voltada à superação das necessidades humanas e à conquista da impassibilidade. Esta passagem da biografia de Pirro é considerada, de forma unânime, de fundamental importância para compreensão do ulterior desenvolvimento de seu ceticismo. Ao lado de Alexandre, Pirro assistiu à reprodução, em outras terras, das transformações político-culturais que a pouco haviam abalado em muitos aspectos a vida na Grécia. A experiência da diversidade dos valores, crenças, costumes, leis e religiões, com os quais Pirro se deparou ao longo da expedição, seria incorporada definitivamente ao repertório de argumento céticos, como indício maior da relatividade dos padrões normativos de conduta. Mas foi do contato com dos os gimnosofistas que Pirro retiraria a principal lição de sua visita ao Oriente. Segundo Diógenes, fora desses sábios que Pirro recolhera o que parece ser a pedra de toque de seu pensamento, a saber: o princípio da akatalexía, a irrepresentabilidade, ou incompreensibilidade das coisas. O mais significativo texto acerca do pensamento de Pirro – um testemunho de seu discípulo imediato Tímon, colhido de uma de suas obras por Arístocles, e reproduzido na obra Preparação evangélica, de Eusébio – permite que compreendamos sumariamente a forma como o filósofo constrói seu pensamento sobre o primado da akatalexía. Conforme Arístocles, Tímon resumiria a filosofia de Pirro como se segue: (...) aquele que quiser ser feliz deve considerar três pontos: em primeiro lugar, o que são as coisas em si mesmas? Depois, que disposições devemos ter em relação a elas? Finalmente, o que nos resultará dessas disposições? As coisas não têm diferença entre si, e são igualmente incertas e indiscerníveis. Por isso, nossas sensações e nossos juízos não nos ensinam o verdadeiro nem o falso. Por conseguinte não devemos nos fiar nos sentidos nem na razão, mas permanecer sem opinião, sem nos inclinarmos para um lado ou para o outro, impassíveis. Qualquer que seja a coisa de que se trata, diremos que não se deve mais afirmá-la do que negá- ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 83 la, ou que se deve afirmá-la e negá-la ao mesmo tempo, ou que não se deve nem afirmá-la nem negá-la. Ao analisamos esses seis pontos – as três questões levantadas por Pirro e suas respectivas respostas –, tendo como pano de fundo o contexto no qual são enunciados, o período helênico, temos aqui reunidos, de um lado, o que haveria de se tornar o mais convencional no discurso filosófico do período, mas, de outro, nos deparamos com alguns elementos que nos parecem sem precedentes na história da Filosofia. O pensamento de Pirro desdobra-se explicitamente em função do ético: é àquele que quer ser feliz que seu discurso se dirige. Conduzir aquele que busca a felicidade, à compreensão de que, para alcançá-la, se faz necessário um tipo de conhecimento da ―natureza das coisas‖, de si mesmo, de sua ―medida‖ e conveniência, de seu lugar na ordem geral das coisas, para poder, então, saber como dispor-se perante a elas, também é algo que dita a rotina do discurso moral helênico. O que faz de Pirro uma voz destoante desse contexto, o que há de inédito em seu pensamento, não é, pois, propriamente a estrutura de seu discurso (sua forma), ou as questões que ele enuncia, mas, como veremos a seguir, as respostas por ele elaboradas para estas questões. O que são as coisas em si mesmas? Para Pirro, o que há para saber acerca da natureza das coisas é o fato de não haver natureza alguma, bem entendido, nenhuma ―ideia‖, ―essência‖ ou ―substância‖ (mesmo material), que permaneça como ponto de estabilidade. E, neste sentido, não há ser. Mas apenas aparência. O conhecimento quer o ser, a essência, a forma... Mas se não há ser, essência, forma, ou qualquer outro termo que represente uma dimensão estável e, mais do estável, eterna do real; o que há, pois, para se conhecer (cientificamente)? A esse respeito, lembremos a definição do objeto do conhecimento científico apresentada por Aristóteles, no livro Ética à Nicômaco: Todos supomos que aquilo que conhecemos cientificamente não é sujeito a variações; quanto às coisas sujeitas a variações, não sabemos, quando elas estão além de nossa observação, se elas realmente existem ou não. O objeto do conhecimento científico, portanto, existe necessariamente. Ele é consequentemente eterno, pois todas as coisas cuja existência é absolutamente necessária são eternas. (ARISTÓTELES, 1996, p. 218). A quase totalidade das filosofias antigas concebeu-se como um tipo de discurso capaz de desvelar o ser mesmo, ou a natureza íntima das coisas, concebeu-se como a ciência (episteme), nos moldes aristotélicos. Ultrapassando o âmbito da aparência – domínio marcado ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 84 pela impactante experiência da contingência, precariedade e multiplicidade dos seres, e cujo correlato epistemológico seria a opinião, as filosofias levantam a pretensão de dar conta dos aspectos universais e necessários das coisas, aspectos estes postulados como elementos supra-sensíveis, não imediatamente evidentes e accessíveis apenas à razão. O discurso filosófico seria a tradução adequada e o correlato epistemológico de tais aspetos, seria ele mesmo universal e necessário. Pirro universaliza o domínio das ―coisas sujeitas a variações‖. A aparência, nas palavras de Timon, é ―onipotente onde quer que ela se mostre‖ (Vidas, IX, 11, §105). Não se trata, explica Marcel Conche, de uma ”aparência de‖, isto é, a manifestação de algo que teria uma natureza em si intangível (fenômeno). Tampouco se trata de uma ―aparência para‖, ou seja, representação subjetiva. Mas uma ―aparência pura‖, absoluta. (CONCHE, 2000 p.69) A consequência epistemológica dessa ―ontologia‖, que resolve o ser no aparecer é um tipo de ceticismo, onde o conhecimento fracassa, não por alguma deficiência de natureza cognitiva ou dificuldade metodológica, mas por absoluta falta de objeto. Que disposições devemos ter em relação às coisas? Sem referencial absoluto, nossas sensações e opiniões não podem mais ser ditas rigorosamente verdadeiras ou falsas, e, por isso, não teríamos, na compreensão de Pirro, razão para conceder-lhes maior atenção. Devemos ser, pois, sem opinião e sem inclinação. A mesma recomendação se aplica às opiniões dos filósofos, como sugere outro fragmento da obra de Tímon: Como e onde, Pirro, encontraste salvação, em face de submissão às vãs e falsas opiniões dos sofistas, e rompestes as cadeias de todos os enganos e o encanto de suas charlatanices? Não te preocupaste com a investigação de quais são os ventos que correm na Helade, nem quiseste saber de que se formam todas as coisas e em que as mesmas coisas se resolvem. (Vidas, IX, 11, §65) Esse princípio de indiferença especulativa que encontramos, nesta citação, aplicado às opiniões filosóficas no campo físico, estende-se às demais áreas da filosofia, em especial, ao campo da Ética, entendida com arte de viver que conduziria a felicidade. Aqui também encontramos um desdobramento absolutamente estranho ao pensamento grego: a ideia de quê para ser feliz, para viver com arte, não é necessário possuir um critério para discernir o que nos é por natureza conveniente daquilo que devemos evitar a todo custo. Segundo Diógenes: Pirro afirmava que nada é honroso ou vergonhoso, nada é justo ou injusto, e aplicava igualmente a todas as coisas o princípio que nada existe realmente, sustentando ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 85 que todos os atos humanos são determinados pelos hábitos e pelas convenções, pois cada coisa não é mais isso que aquilo. Exemplos de como esse princípio de indiferença fora posto em prática são variados. Desde o caricato passeio em que, encontrando Anarxarco preso em um pântano, Pirro não teria se preocupado em ajudá-lo, continuando seu passeio (e ainda teria sido louvado pelo amigo por conta de sua indiferença), até coisas bastante simples, como o fato de Pirro limpar ele mesmo sua casa ou levar um leitão para vender no mercado. Um exemplo mais significativo para compreensão da postura de Pirro é a narrativa do episodio em que, perseguido por um cão, o filósofo teria buscado refúgio no alto de uma árvore. À alguém que assistindo a cena lhe cobrará coerência com seu pensamento, Pirro respondeu não ser fácil abandonar a debilidade humana. O que nos resultará dessas disposições? Não ter opinião sobre essas coisas, considerá-las sem inclinação, sem agitação, podemos dizer, indiferentemente, conduz segundo Pirro, primeiro, a afasia, o silêncio, o fim da tagarelice acerca de uma suposta natureza das coisas. E como consequência disso, sobrevém a ataraxia, a imperturbabilidade (mais literalmente), ideal de perfeição moral em seu pensamento... Mas por que não falar em serenidade ou tranquilidade como ideal de vida feliz que o filósofo parece ter sido capaz de alcançar? A atitude do filósofo é interromper em si mesmo a ação de fazer juízos, parar de julgar e conceituar as convenções pois esses juízos e conceitos são indiferentes para o homem. É inútil preferir algo em detrimento de outra coisa, todas as duas coisas são somente combinações feitas pelos homens e são combinações passageiras. O homem não deve se perturbar com nada no mundo, nem mesmo pelas paixões, essa é a atitude que ele chama de ataraxia, que é uma indiferença para com o mundo e suas coisas. A ataraxia leva o indivíduo à felicidade através da tranquilidade e da serenidade, indiferente ao mundo que o circunda. Sobre as coisas do mundo não vale a pena nem sequer pronunciarmos nossas opiniões, a atitude mais coerente é ficarmos totalmente indiferente a elas.Toda afirmação positiva,para o cético é dogma. Referências Bibliográficas: A CURA: Fernanda Declara Cizzi – PIRRONE TESTEMONIANZE 1981 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 86 Pirro De Elis – O Ceticismo Pirroniano E Ceticismo Acadêmico ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 87 SCHELLING E O PROBLEMA DA INTUIÇÃO INTELECTUAL ENQUANTO INTUIÇÃO OBJETIVADA Kayenne Cristine F S Vosgerau Bolsista PET FILOSOFIA - UNICENTRO Orientador: Manuel Moreira da Silva [email protected] Palavras-chave: Intuição objetivada. Intuição de si mesmo. Intuição do Absoluto. Schelling na oitava carta das Cartas Filosóficas sobre o Dogmatismo e o Criticismo (1795) desenvolve sua concepção de intuição intelectual partindo da noção de intuição de si mesmo, tal como ensinara Fichte em sua Doutrina da Ciência de 1794. Ao fazer isso, afirma que a intuição de si mesmo se apresenta como base da intuição intelectual do Absoluto. Intuição intelectual do Absoluto significa aqui os dois modos de intuição, tanto a intuição de si mesmo, quanto a assim chamada intuição objetivada – termo utilizado por Schelling para referir-se à concepção espinosana da intuição intelectual da substância ou de Deus. Contudo, a intuição em si mesmo se apresenta como tendo primazia em relação à intuição objetivada pelo fato de constituir-se como o ponto de partida da passagem do finito ao infinito, na medida em que, possuí a mesma estrutura desta, ao passo que a intuição objetivada se mostra como desdobramento da intuição de si mesmo, sem elevar-se à consciência disso. Ao afirmar a intuição de si mesmo como base da intuição intelectual do Absoluto5, Schelling apresenta uma crítica à filosofia de Espinosa pelo fato deste ter entendido a intuição intelectual enquanto intuição objetivada. Não obstante, ao fazer tal crítica alega que mesmo objetivando a intuição intelectual, Espinosa teve que pressupor a intuição de si mesmo, na medida em que a intuição objetivada se desdobra da primeira da própria intuição de si mesmo. Assim, sobre a intuição intelectual, entendida desse modo, Schelling nos diz que: Este trabalho de constituí em duas partes distintas, mas respectivamente coordenadas. Na primeira, tratouse da intuição de si mesmo como base da intuição intelectual do absoluto. Na segunda parte, tal como exposta aqui, trata-se do problema da intuição objetivada, mas especificamente, da crítica de Schelling à Espinosa quanto ao procedimento da intuição intelectual enquanto intuição objetivada. 5 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 88 ―Essa intuição intelectual se introduz, então, quando deixamos de ser objetos para nós mesmos e quando, retirado a si mesmo, o eu que intuí é idêntico ao intuído. Nesse momento da intuição, desaparecem para nós tempo e duração: não somos nós que estamos perdidos no tempo, mas o tempo – ou antes, não ele, mas a pura eternidade absoluta – que está em nós. Não somos nós que estamos perdidos na intuição do mundo objetivo, mas é este que está perdido em nossa intuição‖ (SCHELLING, 198, 1973). Assim, há uma intuição de um eu (Selbst) que intuí a si mesmo e ao fazer isso deve-se considerar que o Absoluto não é um mero objeto, ―ele se encontra em nós e é acessível, por esse motivo, apenas por meio da contemplação de si‖ (PUENTE, 1997, P. 30). Quando há uma autointuição há a unificação do eu e do não-eu. Deste modo, a posição schellinguiana de intuição intelectual afirma que o eu que intui torna-se, de modo imediato, idêntico ao absoluto e, por conseguinte, esta se introduz quando deixamos de ser objetos para nós mesmo, na pura eternidade absoluta. Neste momento da intuição, o mundo objetivo se perde nessa intuição. Com efeito, segundo Schelling: Foi essa intuição de si mesmo que Espinosa objetivou. Enquanto intuía em si o intelectual, o Absoluto não era mais, para ele, um objeto. Isso era uma experiência que permitia duas interpretações: ou ele se havia tornado idêntico ao Absoluto, ou o Absoluto a ele. Neste último caso a intuição intelectual era intuição de si mesmo; no primeiro, intuição de um objeto absoluto. Espinosa preferiu esta última. Acreditou que ele mesmo era idêntico ao objeto absoluto e que estava perdido em sua infinitude (SCHELLING, 1973, p. 198). No entanto, Espinosa se iludia ao acreditar nisso, pois na intuição intelectual do Absoluto, é o mundo objetivo, isto é, o objeto que se dissolve na intuição, não inversamente. Não era ele, Espinosa, que desaparecia nessa intuição. Dessa forma, deve-se considerar que ―o sujeito, como tal, não pode aniquilar-se a si mesmo; já que, para poder se autoaniquilar, ele teria de sobreviver à sua própria aniquilação‖ (PUENTE, 1997, p. 31). Ressalta-se assim, a diferença da filosofia crítica que poderia alegar à filosofia dogmática6: ―Não te forces por te aproximar da Divindade, mas sim deixa que ela te conduza ao Infinito7―. O objetivo das Cartas é uma tentativa de mediação entre o criticismo (tendo como expoente Fichte) e o dogmatismo (apresentado por Espinosa). Em carta a Hegel de 4 de fevereiro de 1795, Schelling alega que ―a diferença essencial entre a filosofia crítica e a filosofia dogmática parece residir em que a primeira tem como ponto de partida o eu absoluto que ainda não é condicionado por nenhum objeto, a segunda parte do objeto absoluto ou não-eu‖. 7 Schelling apud Puente, 1997, p. 31. 6 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 89 Não obstante, Schelling pensa que, na medida em que a intuição intelectual do Absoluto é sempre a intuição de um eu que intui a si mesmo, a intuição pode ser interpretada de duas maneiras. De um lado, o eu que intui torna-se idêntico ao Absoluto; de outro, o Absoluto torna-se idêntico ao Eu que intui. Espinosa preferiu aceitar a ultima delas, o erro da filosofia dogmática é ter acreditado que ele próprio era idêntico ao objeto absoluto e que tinha se perdido em sua infinitude. Diante disso, para Espinosa, o terceiro gênero de conhecimento, o conhecimento intuitivo é mais importante do que o conhecimento do primeiro e segundo gênero, sendo que é só por meio deste que chegamos às ideias adequadas e alcançamos a condição de indivíduos ativos, que conhecem as ideias, suas causas e efeitos e suas ligações, isto é, disso ―procede a ideia adequada da essência formal de certos atributos de Deus.‖ Assim, ―o terceiro gênero propicia um conhecimento de nossa essência e da essência de cada coisa particular, isto porque, através dele, temos um conhecimento da essência de Deus‖ (MACHADO, 2006, p. 89). Se o conhecimento de terceiro gênero é conhecimento intuitivo e este se dá pelo conhecimento adequado, então tal adequação é a uma intuição, a rigor, imediata, na medida em que não se perfaz por nenhuma mediação e, então é adequada. Só a partir desse modo é que ―a mente humana tem um conhecimento adequado da essência eterna e infinita de Deus‖ (II, Prop. XLVII). Assim, essa intuição, sendo este conhecimento adequado, é o ultimo grau ao qual podemos chegar, pois se assim se compreende, assim se conhece a Deus, isto é, o Absoluto segundo Schelling. Por esse supremo gênero de conhecimento descobre-se a origem das essências infinitas, o que se consegue mediante a compreensão da ordem necessária e imutável da substância única. É o que Espinosa chama de amor intelectual a Deus que ―é parte do amor infinito com que Deus ama a si mesmo‖ (V, prop. XXV). Com isso, segundo Rubens Filho (1973, p. 197) ―todos os conhecimentos adequados, isto é, imediatos, são, segundo Espinosa, intuições de atributos divinos‖. Com isso, o problema da filosofia espinosana se dá na medida em que, segundo Schelling, apesar deste defender certa união entre o eu e não-eu, no entanto, dá-se prioridade ontológica ao ultimo – ao não eu. Assim, Espinosa havia ―elevado o próprio não-eu ao eu‖ (AMORA, 2010, p. 67.) na medida em que se serviu da intuição intelectual caracterizada enquanto intuição objetiva para admitir a substância única e infinita e deste modo, sem o saber, acabou por fazer uso do eu como instância definidora e produtora da própria substância. Dito isso é que se explicita a crítica de Schelling à Espinosa quanto a procedimento da intuição intelectual, pois ―de onde mais poderia ele ter tirado a ideia dessa ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 90 intuição, se não de sua intuição de si mesmo‖? (SCHELLING, 1973, p. 198), pois esta está pressuposta na objetivação e, tendo a mesma estrutura da primeira por se desdobrar dela, mesmo Espinosa objetivando tal intuição, fazia uso da intuição de si mesmo, sem o saber, para produzir conhecimento da Substância infinita. Logo, a base da intuição intelectual do Absoluto é a intuição de si mesmo. Referências bibliográficas: AMORA, K. Dinâmica da Natureza, de Deus e da Liberdade em Schelling. Revista Conatus – Filosofia de Spinoza. Fortaleza: vol. 4, nº 8. p. 65-72, dez, 2010. ESPINOSA, B.. Ética. In: Os Pensadores. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. MACHADO, R. O nascimento do trágico: de Schiller a Nietzsche. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. PUENTE, F. R. As concepções antropológicas de Schelling. São Paulo: Loyola, 1997. SCHELLING, F. W. J. Cartas filosóficas sobre o dogmatismo e o criticismo.. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1973. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 91 PROPRIEDADE, GOVERNO E RESISTÊNCIA EM LOCKE Leandro da Silva Bertoncello Universidade de Caxias do Sul [email protected] Palavras-chave: Locke. Propriedade. Governo. Resistência. O pensamento moderno destaca a razão individual como meio para o desenvolvimento da humanidade. O interesse do indivíduo encontra na coletividade os meios de sua defesa, e o Estado passa a ter como papel a proteção do indivíduo e dos seus direitos fundamentais. Conhecido como o pai do liberalismo político e um pensador contratualista, John Locke entendia que os seres humanos viviam inicialmente em estado de natureza, com a mais perfeita liberdade e igualdade, previamente à organização social. Desde então, o homem é dotado de direitos inalienáveis, conferidos pela própria natureza. Na teoria de Locke, é central o direito individual natural à propriedade. Por propriedade, deve ser entendido a propriedade que os homens têm de si mesmos, tanto quanto dos seus bens, além de suas vidas e liberdade (sentido lato); ou apenas de seus bens (sentido estrito). A propriedade de si mesmo significa que sobre a minha pessoa ninguém tem qualquer direito, a não ser eu mesmo. Qualquer coisa que o homem retire da natureza, mistura com o seu trabalho e junta algo que é seu, torna essa coisa sua propriedade, e a exclui do direito comum dos demais homens. A terra e seus frutos foram dados pelo Criador em comum à espécie humana. Nenhum consentimento alheio é necessário a sua apropriação. Dois postulados justificam a apropriação individual: 1) os homens têm direito à conservação de suas vidas; 2) o trabalho de um homem é propriedade sua (MACPHERSON, p. 212). Mas há três limitações ao direito de propriedade, duas explícitas e a terceira implícita. 1ª) Alguém pode apropriar-se somente de um tanto que deixe bastante e de igual qualidade para os demais em comum. 2ª) Qualquer pessoa pode fazer uso de qualquer vantagem da vida antes que se estrague; o que excede isso pertence aos outros, nada pode ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 92 perecer inutilmente nas mãos do apropriador. 3ª) Para Macpherson (1979, p. 213), a terceira limitação seria a quantidade que cada pessoa pode obter mediante seu trabalho. Essas limitações ao direito de propriedade podem ser transcendidas. A invenção do dinheiro e o acordo tácito de atribuir-lhe um valor possibilitaram um direito a posses maiores. Das limitações, a do desperdício pareceu obviamente transcendida pela criação do dinheiro. O desejo de ter mais do que o necessário ao consumo era um desejo de acumular terra e dinheiro como capital. Quanto à limitação da suficiência, não é absoluta, mas sim derivada do direito natural de cada homem à subsistência. Perceba-se que Locke fala em subsistência e não em direito à vida. A Constituição Federal do Brasil fala em direito à vida e, para os juristas, trata-se de um direito à vida digna. Mas Locke fala em subsistência ou autoconservação. O direito à subsistência ou autopreservação só pode ser atendido de duas maneiras. Uma é determinar que todos tenham acesso à apropriação da terra, enquanto existir muita terra não apropriada. Mas a outra maneira, viável quando já não houver terras livres, é garantir aos despossuídos o direito de trabalhar para os proprietários. O fim principal para a união dos homens em sociedade política e submissão a um governo é a preservação da sua propriedade. Às vezes Locke refere-se a propriedade em sentido lato (vida, liberdade e bens), mas às vezes apenas a bens e fortuna. Dessa ambiguidade resulta que os despossuídos podem ou não estar dentro da sociedade civil. Para Macpherson (1979, p. 260), todos são membros da sociedade civil, tendo ou não propriedade, e nela estão incluídos como interessados na preservação das próprias vidas e liberdades. Ao mesmo tempo, somente os proprietários podem ter plena cidadania, pois apenas eles têm interesse na preservação da propriedade e apenas eles são capazes de vida racional. A ambiguidade com relação a quem é membro da sociedade civil permite que Locke considere que todos são membros para efeito de serem governados, mas apenas os proprietários é que devem governar. Vale lembrar que, na Constituição do Império do Brasil, o direito de ser votado era baseado na propriedade e na renda. Nenhuma sociedade civil pode existir sem ter os meios necessários para preservar a propriedade e, para tanto, punir os culpados de delitos contra a propriedade. A sociedade política implica a renúncia ao poder natural de punir de acordo com o juízo particular de cada um. O fim do governo é o bem da humanidade, mas se o povo estiver exposto à vontade ilimitada da tirania, esse é o exercício do poder visando ao interesse próprio do ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 93 governante e não ao bem comum. O Estado foi criado para garantir o direito à propriedade e, quando deixa de cumprir esse fim ao qual foi destinado, torna-se ilegal e degenera em tirania. Com a violação do direito à propriedade, Locke reconhece ao povo o direito de resistência, mediante o recurso à força para a deposição do governo rebelde Referências Bibliográficas: CINTRA, Rodrigo Suzuki. Locke e o direito de resistência. Disponível em: < http://www.estig.ipbeja.pt/~ac_direito/Rodrigo_Suzuki2.pdf> Acessado em: 01/08/2013 HENRICHSEN, Chris. Locke on Property: A Critique. Disponível em: < http://www.patheos.com/blogs/faithpromotingrumor/2012/02/locke-on-property-acritique/> Acessado em: 30/07/2013. LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil - e outros escritos: ensaio sobre a origem, os limites e os fins verdadeiros do governo civil. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1999. MACPHERSON, C. B. A teoria política do individualismo possessivo de Hobbes até Locke. Rio de Janeiro: Paz e Terra Ltda, 1979. 318 p. MELLO, Leonel Itaussu Almeida. John Locke e o individualismo liberal. In: Os clássicos da política: Maquiavel, Hobbes, Locke, Montesquieu, Rousseau (Org. Francisco C. Weffort). V: 1. 6a ed., São Paulo: Ática, 1995, pp. 79-110. NODARI, Paulo César. A emergência do individualismo moderno no pensamento de John Locke. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999. John Locke. Conjectura, Caxias do Sul, RS , v.9, n.1/2, p. 19-41, jan. 2004. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 94 LIPMAN: APRENDENDO A PENSAR NA EDUCAÇÃO. Letícia Nunes Goulart UNIOESTE [email protected] Palavras-chave: Crianças. Educação. Filosofia. Na perspectiva de Matthew Lipman a sala de Aula vem apresentar todos os passos para orientar o professor a desenvolver nas crianças o pensar. A cuidar de si em qualquer idade. Desenvolvendo o cultivo nas diversas habilidades de raciocínio, investigação e formação de conceitos. Lipman mostra que elas podem ler, discutir e raciocinar. As crianças conseguem falar das mesmas coisas sobre as quais falam os filósofos: a verdade, a justiça, a beleza, etc. Pensar e organizar pensamentos melhorar a lógica das crianças para esta racionalização ética do pensamento assim como fala no fragmento abaixo: ―A criança que adquiriu proficiência nas habilidades de pensar não é simplesmente uma criança que cresceu, mas uma criança cuja verdadeira capacidade de crescer foi ampliada‖. (LIPMAN, 1994, p.36) A filosofia para crianças é este conjunto de saberes que causam o espanto, a indagação a curiosidade, que esta profundamente ligada a esse impulso fundamental que une pensamento e vida. É um método que alimenta da ideia de autonomia e capacidade de desenvolvimento do sujeito. As crianças têm um espaço em suas mentes brilhantes para perguntas metafísicas extraordinárias que pode nos causar espanto, o fato de que as crianças pequenas são capazes de fazer perguntas desse porte, é que existem alguns exemplos desses níveis de perguntas metafísicas que as crianças podem já nos ter feito (ou estão se preparando para nos fazer) tais como: O que é espaço? O que é memória? O que é número? O que é matéria? ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 95 O que é a mente? O que são possibilidades? O que é a vida? O que é a morte? O que é o valor? Poderíamos dizer: ―- Bem, só porque meus alunos me fazem perguntas que eu não sei responder isto não os tornam filósofos‖. Com certeza eles não sabem que estão formulando perguntas metafísicas! Podem não saber, mas não é isso o que importa. O que se tem que levar em conta é que as crianças, com sua necessidade de totalidade e globalidade, juntamente com sua ingenuidade e falta de informação, tentam alcançar respostas completas. Para elas, é tudo ou nada; não querem saber apenas como isso ou aquilo começou, mas como tudo começou. Não apenas o que é melhor ou pior, mas o que é ser perfeito. (LIPMAN, 1994, p.63) A criança tem esta admiração do mundo, este espanto com as coisas que estão ao seu redor. Uma das coisas mais maravilhosas da filosofia é que as pessoas de qualquer idade podem refletir sobre os temas filosóficos e discuti-los de um modo proveitoso. As crianças ficam fascinadas quando os adultos com noções como amizade ou imparcialidade, e tanto as crianças quanto os adultos podem reconhecer que ninguém ainda disse a ultima palavra sobre esses temas. O fato de adultos e crianças, conjuntamente, explorarem as possibilidades filosóficas, é uma das consequências mais agradáveis e estimulantes da filosofia na escola de 1° grau. Na perspectiva de Lipman o ato educacional encerra esta energia humana, capaz de manter e estimular a capacidade natural de espanto da criança para que esta sinta a necessidade e o desejo de continuar a se espantar e perguntar ao todo: por quê? E, mais importante: Lipman acusa o sistema educacional de cultivar a síndrome do avestruz. Um visitante de outro planeta cujos habitantes fossem absolutamente racionais ficaria muito espantado com nosso sistema educacional. Não pelo fato de ignorarmos a ineficiência do sistema, mas sim pelo método com que combatemos essa ineficiência. Procuramos, sistematicamente, remedia-lo em vez de reformá-lo para remedia-lo. Quando o conserto se mostra ineficiente, surgem abordagens compensatórias para remedia-lo. A origem fundamental do fracasso do sistema em efetivamente distribuir educação – a imperfeição do seu modelo básico- continua sem serem examinadas, e ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 96 enormes quantias vão sendo investidas em inúteis tentativas de como pensar tanto a ineficiência do sistema quanto a dos esforços compensatórios e assim sucessivamente. (Lipman, Sharp e Oscanyan, 1980, A Filosofia e as Crianças p.19). Para Lipman, as crianças têm as mesmas características dos adultos, mas são dotadas do pensar bem, ele acredita que uma criança é capaz de analisar ou compreender um elemento filosófico quanto um adulto, ele afirma também que no programa existe somente uma diferença entre a criança e o adulto, o programa não pretende modificar o pensamento infantil, mas explorá-lo naquilo que ele é. Na visão do programa lipmaniano a criança é um conjunto das aprendizagens essenciais ao desenvolvimento individual e a uma integração social de qualidade. Portanto, a filosofia graças à reflexão comum, ajuda o jovem a compreender sua educação e a sua realidade existêncial. Neste sentido á uma educação do julgamento e do agir que torna ela uma educação moral. Referencias Bibliográficas: LIPMAN, Matthew A filosofia na sala de aula/ Matthew Lipman. Ann Margaret Sharp. Frderick S. Oscanyan: tradução Ana Luiza Fernandes Falcone – São Paulo: nova Alexandria. 1994. DANIEL, Marie. France A Filosofia e as Crianças/ Marie – France Daniel; tradução de Luciano Vieira machado; prefaciação de Matthew Lipman. São Paulo, SP – Nova Alexandria, 2000. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 97 FILOSOFIA E TEATRO EM SARTRE Luiza Helena Hilgert UNICAMP/FAPESP [email protected] Palavras-chave: Teatro de situações. Situação limite. Outro. Liberdade. Projeto. O estudo da relação entre teatro e filosofia em Sartre permite um recorte importante dentro de um questionamento muito mais amplo – também mais tenso e ambíguo – que diz respeito às relações entre as artes e a filosofia. Sem adentrar na discussão sobre os domínios de uma ou outra, nossa proposta tem o caráter de fomentar a leitura da dramaturgia sartriana colocando-a lada a lado com sua filosofia, sem buscar encontrar elementos de representação de uma na outra, mas avizinhando-as de forma a dotá-las, ambas, com estatuto reflexivo, ainda que cada forma de expressividade mantenha sua singularidade. O teatro do modo como Sartre o concebe privilegia o momento da ação, apresenta, concomitantemente, a construção do ato e do caráter do personagem, revelando a ligação fundamental entre homem, ação e situação. Assumindo que são os atos que determinam o caráter de alguém – e não o avesso –, o momento próprio em que a ação acontece, a sua gênese, os aspectos que a circundam, as consequências e os seus significados, enfim, a situação toda na qual aquela ação nasce, deverá ser realçada e destacada, isso vale tanto para a filosofia quanto para os romances e peças de teatro sartrianos. Esse tipo de teatro que coloca em relevo a situação em detrimento da psiqué dos personagens, ou de lições morais, foi nomeado de teatro de situações. Nele, são apresentados os grandes mitos da sociedade contemporânea: morte, exílio, amor, loucura, violência. São comuns no teatro e na literatura de Sartre temas como a morte e a violência, exemplos contundentes de circunstâncias extremas, chamadas por Sartre de situaçõeslimite. A iminência da morte demonstra, de forma privilegiada, a vulnerabilidade e a fragilidade humanas, o que pode configurar como momento especial para constatação da condição humana por parte de cada homem em sua singularidade. Seria desnecessário dizer que numa situação de violência e de perigo de morte as ações têm importância e consequência maiores. Uma escolha errada e a vida é ceifada. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 98 Na filosofia existencialista de Sartre, a morte é o domínio do Em-si, do ser, da inércia, da fixidez, da totalização, da impossibilidade da ação; em oposição ao Para-si, ao nada, à liberdade, à vida, à ação, aos possíveis. Vivo, cada homem constrói sua essência pelos seus atos, agregando vivências a um passado presentificado, cujo sentido pode ser modificado a cada novo ato ou nova reconfiguração dos projetos existenciais. Morto, os atos cometidos são encerrados na totalização do passado, na cristalização da essência e a vida é agora tornada como coisa que dependente da interpretação daqueles que permanecem vivos para que ela tenha algum sentido. Com a intenção de analisar e refletir acerca do lugar do teatro no conjunto da obra de Sartre, escolhemos três peças. A primeira delas é Huis clos, escrita em 1943, encenada pela primeira vez no fim da Segunda Guerra Mundial, em 1944; traduzida para a língua portuguesa como Entre quatro paredes. A segunda peça é Les mouches, As moscas em português. Escrita entre 1942 e 1943, foi encenada pela primeira vez em 1943 no teatro de la Cité sob ocupação alemã. A terceira, La putain respectuese, ou A prostituta respeitosa, encenada em 1946, causou polêmica com os Estados Unidos por conta do seu conteúdo. Ricas em metáforas e símbolos, todas as peças contêm as principais temáticas do conjunto da filosofia sartriana, em especial, a liberdade, responsabilidade, projeto, má-fé, autenticidade, Outro, etc. A presente comunicação busca ser muito mais um convite à leitura e à pesquisa do teatro de Sartre que propriamente o esgotamento das possibilidades de estudo sobre a dramaturgia sartriana ou sobre as peças aqui tratadas ou ainda sobre a relação entre filosofia e teatro em Sartre. Serão apontados alguns caminhos que visam instigar novas possibilidades de discussão teórico-filosófica ao aproximar e relacionar filosofia e teatro, evidenciando a reciprocidade e, inclusive, a exigência entre ambos, principalmente no caso das obras de Sartre, uma vez que este estudo parte da perspectiva de conjunto da obra, expandindo a investigação teórica para o campo ficcional, vinculando a uma pesquisa muito mais ampla e profunda que procura compreender o estatuto e o lugar dessa dupla expressividade – ficção e filosofia – em Sartre. Mais do que querer encontrar filosofia nas obras ficcionais, esse texto coloca como proposta encarar a dramaturgia como uma outra linguagem que expressa questões sobre a condição humana, tema privilegiado na filosofia contemporânea, sobretudo, no existencialismo. A dinâmica da apresentação consiste em três momentos. Inicialmente visa compreender a ideia de teatro de situações em Sartre, para tal lançaremos mão de conceitos filosóficos como situação-limite, projeto, desvelamento, liberdade, má-fé, autenticidade, ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 99 etc. presentes na obra O ser e o nada vinculados à proposta presente em Un théâtre de situations. O segundo momento pretende demonstrar como personagem e situação se relacionam em cada uma das três peças escolhidas para serem trabalhadas, a fim de evidenciar a característica de teatro de situação. Por último, será exposta uma breve tentativa de aproximação entre as peças referidas e as obras teóricas de Sartre no ensaio de uma compreensão da relação entre filosofia e ficção no conjunto da obra de Sartre. Referências bibliográficas: COX, Gary. Sartre and fiction. London; New York: Continuum, 2009. NOUDELMANN, François. Huis clos et Les mouches de Jean-Paul Sartre. Paris: Gallimard, 1993. O‘DONOHOE, Benedict. Sartre‟s theatre: acts for life. Modern French Identities, 34. Bern: Peter Lang, 2005. SARTRE, Jean-Paul. A prostituta respeitosa. Trad. Maria Lúcia Pereira. Campinas: Papirus, 1992. ___________. As moscas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005 ___________. Entre quatro paredes. Trad. Alcione Araújo e Pedro Hussak. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. ___________. La responsabilité de lʼécrivain. Lagrasse: Verdier, 1998 ___________. L‟être et le néant. Essai d‘ontologie phénoménologique. Paris: Gallimard, 1943. ___________. Qu´est-ce que la littérature? Paris: Gallimard, 2008. ___________. Un théâtre de situations. Paris : Gallimard, 1973. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 100 A VERDADEIRA LIBERDADE: POR QUE, PARA HEGEL, A FILOSOFIA NÃO PODE COMEÇAR PELOS ORIENTAIS? Maglaine Priscila Zoz UNIOESTE/CAPES [email protected] Luciano Carlos Utteich Palavras-chave: Hegel. História. Liberdade. Filosofia Oriental. Diferentemente da Ciência da Lógica, onde Hegel se pergunta ―qual deve ser o começo da ciência?‖, tratando assim do começo da filosofia dentro de estruturas lógicas do pensamento; nas suas Lições Sobre História, o foco da sua resposta é quanto aos critérios para o florescimento da filosofia em um determinado povo e o não florescimento em outros povos. A perspectiva de explicar o começo da filosofia por um víeis histórico, nos lança na busca dos elementos que caracterizam este florescimento do pensamento, de forma que, neste texto, a busca será por esclarecer o porquê Hegel reconhece o começo da filosofia em berço grego e não oriental. Com o esclarecimento desta diferença, teremos uma analise de como Hegel concebe historicamente o desenvolvimento do pensamento nestes povos, e reconhecer o que vem a ser o cerne para o início do filosofar. A noção de história universal representa a evolução da consciência que o espírito tem de sua liberdade e a evolução que tal consciência lhe traz. Ou seja, a filosofia surge onde ela pode encontrar naturalmente a liberdade, a liberdade do pensar. Para um povo poder desenvolver a filosofia ele deve ter como principio básico à liberdade, o que para Hegel exige também que esse povo tenha uma liberdade política, que para ele é a verdadeira liberdade. ―Devido a esta ligação geral de liberdade política com liberdade de pensamento, a filosofia só aparece na história em que e na medida em que são criadas constituições livres (...)‖8. (Hegel, 1996, p.92) É importante se ter claro que para Hegel a liberdade não é uma coisa individual, mas deve ser algo coletivo, de um povo. Enquanto liberdade individual ela é apenas algo ―Por razón de esta conexión general de la libertad política con la libertad de pensamiento, la filosofía sólo aparece en la historia allí donde y en la medida en que se crean constituciones libres (…)‖ 8 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 101 negativo, sendo um capricho, e assim limitada; Consequentemente, a verdadeira liberdade é a política, dado que é somente por um Estado plenamente racional que podemos ver o desenvolvimento do Espírito, pois, é somente quando a vontade se torna geral, por meio de uma lei geral, é que temos um fortalecimento do espírito, pois, temos a projeção de um pensamento sobre o pensamento, a vontade deixa de ser finita. ―(...) quando um povo quer ser livre, o que se faz é suspender seus apetites a uma lei geral, mesmo que antes o que ele queria era somente algo particular.‖9 (Idem). A vontade finita é uma característica específica dos povos orientais, para Hegel, esses povos vivem num estado de senhor e servo, e desta forma, a vontade não é livre, ―(...) aqui a vontade não se libertou do finito, somente se pode conceber negativamente: e este sentimento de negação, de que algo não pode fazer frente ao que se opõem, é precisamente o medo (...)‖10 (Idem, p.93). A consciência oriental pode chegar ao infinito, contudo isso seria algo abstrato, sendo considerado apenas um acidente, pois vai contra o poder que o indivíduo teme. Aquele que domina pelo medo, por mais que as suas obras sejam boas, a sua vontade não se configura como lei, mas apenas arbitrariedades. Para Hegel, onde a vontade é finita e a infinitude só chega por meio de abstrações, não é terreno para se brotar a liberdade. Diante disso, somente onde exista uma relação entre homens livre com homens livre, existe uma vontade geral, leis essenciais, é neste meio que se encontra o terreno para o florescimento da filosofia, algo que para Hegel só aconteceu com a chegada do povo grego. Com isso, Hegel não está negando a existência de escravos na Grécia, porém, em comparação com os povos orientais, os gregos possuíam uma liberdade real, ou o florescimento desta, dado que ―(...) no Oriente só é livre um indivíduo, o déspota; na Grécia, são livres alguns indivíduos; no mundo germânico, rege a norma que todos sejam livres (...)‖11 (Idem, p.96). Em suma, a liberdade não se constitui de apenas um indivíduo livre, mas somente quando este indivíduo livre pode fazer frente a outro indivíduo livre, quando as vontades individuais são deixadas em prol de uma vontade mais geral, é que constituímos a liberdade. ―(...) cuando un pueblo quiere ser libre, lo que hace es supeditar sus apetitos a la ley general, mientras que antes lo por él querido era solamente algo particular.‖. 10 ―(...) aquí la voluntad no se ha liberado todavía de lo finito, sólo se puede concebir negativamente: y este sentimiento de la negación, de que algo no podrá hacer frente a lo que se opone, es precisamente el medo (…)‖. 11 ―(...) en el Oriente sólo es libre un individuo, el déspota; en Grecia, son libres algunos individuos; en el mundo germánico, rige la norma de que todos sean libres (…)‖. 9 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 102 Referências Bibliográficas: HEGEL, G. W. F. Lecciones Sobre la Historia de la Filosofía I. Tradução de Wenceslao Roces. México: Fundo de cultura económica, 1996. ____________. Lecciones sobre la filosofía de la Historia Universal. Tradução de José Gaos. Madri: Editora Tecnos, 2005. TAYLOR, Charles. Hegel e a Sociedade Moderna. Tradução de Luciana Pudenzi. São Paulo: Edições Loyola, 2005. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 103 LIBERDADE E IGUALDADE EM ROUSSEAU Marlene de Fátima Rosa Mestranda em filosofia pela UNIOESTE (Universidade Estadual do Oeste do Paraná). [email protected] Palavras-chave: Liberdade. Igualdade. Poder político. O presente artigo tem como objetivo reunir alguns elementos que nos possibilite entender como Rousseau resolve o problema da ilegitimidade do poder político, através dos princípios de liberdade e igualdade presentes no modelo de ordenamento político apresentado por ele na obra Do contrato social. As questões da liberdade e da igualdade sempre estiveram presentes nas investigações de Rousseau, na obra do Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, onde ele descreve a história hipotética da humanidade para demonstrar como os homens saíram do estado de natureza para ingressaram na sociedade civil, podemos encontrar uma série de argumentos que mostram que a liberdade e a igualdade são princípios que fazem parte da vida nesse no estado. Princípios esses que foram desaparecendo à medida que os homens foram se afastando de sua condição primitiva e tornando dependentes uns dos outros. A desigualdade existente entre os homens no momento da instituição da sociedade civil fez com que o pacto social, proposto como alternativa de instituir ―regulamentos de justiça e paz‖ (ROUSSEAU, 1989. P. 99), não cumprisse a sua função. Os homens ao pactuarem em condições de desigualdades ao invés de resolver os problemas existentes na sociedade, ―destruíram de maneira irremediável a liberdade natural, fixaram para sempre a lei da propriedade e da desigualdade (...) sujeitaram daí em diante todo o gênero humano ao trabalho, à servidão e à miséria (ROUSSEAU, 1989. P. 100)‖. Para Rousseau a condição humana de miséria e servidão vivida pela maioria das pessoas só tende a piorar se não forem mudado os modelos de ordenamento existentes até o Século XVIII. A desigualdade política ou moral observada nas sociedades é algo maléfico, ela priva os homens do exercício da liberdade. Sendo assim, se não for criado um modelo de ordenamento legítimo e seguro que garanta o exercício da liberdade e a ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 104 igualdade entre os homens os poderes políticos chegarão ao mais alto grau de degeneração que é a tirania. Para evitar que as coisas cheguem a esse ponto e por acreditar que existe um caminho que pode reconduzir os homens a condição de liberdade, Rousseau propõe na obra Do contrato social um pacto que ―parte de um consentimento unânime‖, onde ocorre ―a alienação total de cada associado, com todos os seus direitos à comunidade toda‖ (ROUSSEAU, 1987. p 32). O grande diferencial desse modelo de ordenamento dos existentes, é que nele não existe um superior comum porque cada um ―põe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a direção suprema da vontade geral‖ (ROUSSEAU, 1987. p. 33). Segundo Rousseau, esse deve ser o caminho para recobrar a liberdade perdida nos descaminhos tomados pela sociedade, um tipo de ordenamento político onde os indivíduos livremente limitam sua liberdade natural e passam a obedecer á vontade geral da sociedade a fim de proteger sua pessoa e os seus bens. A ideia é estar submetido às leis expressa pela vontade geral e não a nenhum particular. Os indivíduos após esse pacto se encontram comprometidos em uma dupla relação com o corpo coletivo. Enquanto membro do soberano que cria as leis e enquanto súdito que obedece às leis que ele mesmo ajudou a criar. Um modelo de poder político assim constituído resulta em uma soberania: absoluta, inalienável, indivisível e infalível. Quando qualquer uma dessas características é ferida a soberania deixa de ser da vontade geral e o poder legitimamente constituído se torna ameaçado, e, se nenhuma medida for tomada corre o risco desse poder se degenerar, por isso, Rousseau depois de estabelecer os princípios do direito político segue suas análises mostrando uma série de cuidados que devem ser tomados para que o poder político legitimamente constituído não se degenere em poder ilegítimo. Referências Bibliográficas: RUSSEAU, Jean-Jacques, Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Tradução de Iracema Gomes Soares e Maria Cristina Roveri Nagli. Brasília: Ed. UnB; São Paulo: Ática, 1989. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 105 _________. Do contrata social. Tradução de Lourdes Santos Machado. 4ª. Ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Coleção os Pensadores). ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 106 O ESQUECIMENTO DO SER NA FILOSOFIA DE HEIDEGGER Marcos Antonio de Souza Brito [email protected] Palavras-chave: Metafísica, esquecimento, Ser Explorar os sentidos para ―esquecimento do Ser‖ não se resume em expor a questão norteadora do pensamento heideggeriano, em simplesmente explicitar o ponto de partida das suas reflexões mais dedicadas. A análise deste fato implica na exposição da história da metafísica, da história do homem. Neste sentido a filosofia de Heidegger adquire o mérito de representar uma história do pensamento ocidental sem, no entanto, apresentar-se como tal. A composição de uma história da filosofia não representa o cumprimento de uma deliberação, não importa sua exposição pura e simplesmente, desvinculada do seu contexto.Repensar esta história é parte imprescindível à tarefa de recolocação de uma questão há muito esquecida.A proposta de Heidegger não é de apenas retomar, mas de destruir esta tradição, tendo em vista sua disposição em seguir por uma via incapaz de fornecer o desvelamento do Ser. A preocupação central da filosofia de Heidegger gira em torno da questão do Ser: esta pode ser declarada como o motivo original de seus trabalhos quando trata do pensamento, da ciência, da arte, etc. Ainda quando explora a conjuntura política de sua época, é no horizonte desta questão que se movimentam seus esforços.Com efeito,se assumimos como estratégia de penetrar em seu pensamento a mediação desta questão, logo perceberemos o quanto se tornará oneroso visto sermos forçados a tocar em quase toda obra. Mesmo a exploração de um dos seus aspectos, o esquecimento, resulta em árdua tarefa pois aí não poderá ser negligenciada a história daquele modo de pensamento ocupado com o Ser: a metafísica. Sendo mais claro, independente do ponto de inserção adotado para se chegar ao centro da obra iremos passar invariavelmente por esta problemática e nela, quando da chegada, seremos obrigados a permanecer demoradamente. Tão presente entre os filósofos ditos pré-socráticos o sentido do Ser tornou-se problemático à medida que caiu no esquecimento. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 107 O fenômeno do esquecimento do ser na modernidade é perfeitamente ilustrado pelo discurso da ciência; mas em que sentido esta representa entrave ao desvelamento? A análise detida o suficiente sobre o operar da ciência nos revela que esta se satisfaz (mesmo se compraz) com a exploração dos entes; não o faz, porém, a propósito de uma desconsideração deliberada sobre o sentido do ser, mas tão somente por acreditar que tal exploração quando plenamente realizada irá conduzir ao desvelamento pretendido. Desta forma o método científico mostra-se como o que há de mais nocivo, pois, valendo-se autoridade autoconferida incute no imaginário propriedades exclusivamente suas: a ciência é o instrumento apropriado,a exploração dos entes é o método infalível.Com estes fundamentos à mão convém ao ―homem teórico‖, no dizer de Nietzsche, divulgar os benefícios provenientes da racionalidade igualmente desenvolvida em todo humano,para tanto bastando haver liberdade de expressão suficiente.Destruir os ídolos,erigir o cogito,a tarefa das críticas, etc, deram o impulso decisivo ao ocultamento do ser,quanto mais fossem claras e distintas as verdades dos entes. Quando se fala em esquecimento do esquecimento a referência aí é a modernidade, exatamente ao caminhar da ciência moderna. Se antes o ser ressurgiu para depois desaparecer novamente dando lugar a Deus a modrnidade operou a destituição completa da importância de sua problemática. Não se coloca mais a questão, nem para atribuir seu sentido a algo que não lhe diz respeito, nem mesmo para remeter a discussão a um rumo totalmente alheio. Banir a reflexão sobre o ser requer prepararmo-nos para o domínio da banalidade consequente. A história do pensamento, a partir de Platão, adquiriu como característica central a ―entificação do ser‖; considerando o peso de suas ideias para a filosofia e a ciência ocidentais, sem dúvida, podemos dizer que somos herdeiros diretos do platonismo, independente da versão: popular ou erudita. Além de Platão e, mais que isso, somos herdeiros do modo grego de pensar e produzir conhecimento; com eles adquirimos o hábito de perguntar primeiramente ―o que é?‖, tomando geralmente esta pergunta como a mais importante. O que deveria ser apenas o impulso inicial, a indagação ―o que é?‖ se consolidou como sendo a principal. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 108 A CIVILIZAÇÃO ENQUANTO ENFRAQUECIMENTO DO HOMEM Maurício Smiderle Unioeste/PET Filosofia [email protected] Wilson Antonio Frezzatti Junior Palavras-chave: Má consciência. Impulso. Nietzsche. Ao necessitar do convívio social, segundo Nietzsche, o homem precisou controlar os seus instintos. Realizando isto, gerou-se a má consciência, isto é, a doença do sofrimento do indivíduo com si próprio. Ela serviu de pré-condição para a civilização, pois é o resultado da transformação de animais inconstantes e violentos em seres pacíficos e uniformes. Na pré-história, o homem era um ser que dava livremente vazão aos seus instintos básicos. Aquela vontade de praticar o mal pelo prazer de fazer o mal era realizada sem nenhuma culpa ou repressão. O ser humano agia de modo instável, exteriorizando os seus impulsos ou instintos livremente. Entretanto foi necessário, segundo Nietzsche, que o indivíduo obtivesse uma memória para que fosse possível o convívio social. A memória é engendrada através da dor, isto é, por meio da produção de sofrimento, grava-se certos pensamentos na mente do animal homem. Ela foi fundamental para criação da civilização, pois serviu de base para a relação que propiciou a má consciência: a relação entre credor e devedor. Pensando em adquirir a confiança do credor, o devedor dispunha-se a ceder algo que possuía, caso não conseguisse pagar a dívida, tal como o seu corpo. Ou seja, caso o devedor não pagasse a dívida, o credor poderia aplicar todo o tipo de martírios sobre o seu corpo. A ideia era substituir um dano ocorrido pelo prazer de causar sofrimento. O sofrimento alheio sempre foi encarado como uma fonte de satisfação. Na comunidade da pré-história, quando o devedor não restituía a dívida, ele era considerado um criminoso. Assim, segundo o filósofo, era aplicado o castigo: deixando que a ira do credor pudesse ser descarregada sobre o devedor. Foi a relação entre credor e devedor que originou o sentimento de culpa no animal homem, ou seja, a relação entre o indivíduo e os seus antepassados. A comunidade percebe uma forma de dívida para com as antigas gerações, pois foi devido a elas que a geração ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 109 atual possui as suas vantagens. Com isto, crescerá o sentimento de dever e culpa conforme cresce as vantagens da comunidade, encerrando por divinizar os antepassados. Haverá um sentimento de culpa e dever para com os antigos por causa da impossibilidade de efetuar o pagamento da dívida ou, até mesmo, de realizar o castigo. Desta forma, o sentimento de culpa irá penetrar no indivíduo no qual a má consciência já se encontra presente, provocando um agravamento na situação dessa doença. Para o filósofo alemão, a má consciência surgiu quando uma população de conquistadores e senhores dominaram seres nômades. Os senhores expressavam os seus impulsos básicos nos fracos, fazendo com que estes reprimissem os instintos, criando a má consciência. Esta não foi criada nos conquistadores, mas foi preciso deles para que ela surgisse nos demais indivíduos. Com a má consciência, que foi gerada pela sociedade, o homem passou a torturar e violentar a si mesmo, pois não era possível realizar isto exteriormente. A má consciência se caracteriza por realizar uma inversão na direção da expressão impulsional: antes os instintos eram descarregados para fora, agora os instintos possuem como alvo o próprio indivíduo. Deste modo, a má consciência é ―a profunda doença que o homem teve de contrair sob a pressão da mais radical das mudanças que viveu – a mudança que sobreveio quando ele se viu definitivamente encerrado no âmbito da sociedade e da paz‖ (NIETZSCHE, 2009, p.67). O sentimento de culpa apenas piorou a gravidade dessa doença, porque o sentimento de estar em débito foi utilizado pelo homem como justificativa para violentar a si mesmo. ―O que revolta no sofrimento não é o sofrimento em si, mas a sua falta de sentido‖ (Idem, p.53). Com a má consciência e o sentimento de culpa, o ser humano tortura a si pelo prazer de causar o sofrer. A má consciência, segundo o filósofo, se mostra extremamente necessária para a existência da civilização (Civilisation). Esta não possui como significado o melhoramento do animal homem, mas o seu enfraquecimento. ―Nietzsche, portanto, considera a civilização como um esquema que distorce e reprime as capacidades propriamente humanas‖ (FREZZATTI, 2006, p. 91). Ela amansa e doma o indivíduo, procurando transformar o ser humano em um ser doente. A civilização é vista como o alastramento da doença da má consciência, convertendo todos os indivíduos em seres fisiologicamente decadentes. Assim, segundo Nietzsche, a interiorização dos instintos se mostra necessária para o processo civilizatório. Com a má consciência, o ser humano consegue obter as ―virtudes‖ para a vida na civilização. Isto não representou uma melhora da humanidade, mas transformou o animal homem em um animal doente. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 110 Referências Bibliográficas: NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. FREZZATTI Jr, Wilson Antonio. A fisiologia de Nietzsche: a superação da dualidade cultura/biologia. Ijuí: Ed. Unijuí, 2006. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 111 A METÁFORA ENTRE O SENTIDO E A REFERÊNCIA: UMA ABORDAGEM RICOEURIANA Odair Salazar da Silva SED/SC [email protected] Palavras-chave: Metáfora. Sentido. Referência Paul Ricoeur apresenta em sua produção linguístico-filosófica o fenômeno da metáfora (viva) como um instrumento epistemológico, que objetiva defender a tese de que o referido tropo não tem apenas função de plasticidade, de imitar as ações humanas na tragédia ou colmatar uma lacuna linguística. Pensando assim, o filósofo francês procura criar uma nova metodologia linguístico-filosófica, aplicando-a à metáfora, que garante um novo significado passível de aceitação. A partir da compreensão do conceito de ―sentido‖ e ―referência‖, adaptado ao discurso literário, cuja origem está Gottlob Frege, é que Ricoeur propõe não só descrever linguisticamente, mas pensar filosoficamente o poder heurístico da metáfora. A pesquisa parte da hipótese de que a metáfora é uma ferramenta legítima que tem o poder de oferecer novos insights sobre a realidade, no momento em que o absurdo linguístico de uma dada sentença se autodestrói ao eliminarem-se o sentido e a referência primários, para darem lugar a um sentido e referência secundários, de onde brota uma nova visão de mundo, válida, passível de aceitação. Esta metodologia adotada por Ricoeur assegura que não só os discursos ordinários são os detentores de verdades de mundo. Ao contrário, os discursos literários são também possuidores de informação inédita, a partir de um erro sentencial já calculado (mistake error- Gilbert Ryle) e resolvido. Afinal, o ―poema é uma metáfora em miniatura‖, cuja função é desvelar um novo mundo compreensível, no dizer de Monroe Beardsley, de quem Ricoeur é seguidor. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 112 O SOFRIMENTO COMO POSSIBILIDADE DE CRESCIMENTO HUMANO: MA LEITURA NIETZSCHANA À LUZ DO PERSPECTIVISMO Osmilto Moreira Silva Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), [email protected] Palavras-chave: Friedrich Nietzsche. Sofrimento. Destino. Perspectivismo. Crescimento Humano. O presente texto enseja pensar o tema do sofrimento na filosofia do filólogo e poeta alemão Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900). A pre-tensão de nosso estudo é adentrar na questão do sofrimento, abordado por Nietzsche, na tentativa de problematizalo, sobretudo em sua autobiografia (Ecce Homo), algumas obras ( Gaia Ciência; O Nascimento da Tragédia; Aurora; Assim Falou Zaratustra e Humano, demasiado humano) e consequentemente os fragmentos póstumos. Por conseguinte, reconhece-se a importância do perspectivismo como método nietzschiano redigido em sua obra aforismática juvenil intitulada ―Gaia Ciência‖, no aforismo §374, que traz como subtítulo ―Nosso Novo Infinito”. Nesse pequeno aforisma, parafraseado sinteticamente, Nietzsche reforça que as distintas perspectivas é a condição básica de infinidades ópticas de vida. Suscintamente, o ponto de partida gira em torno de que o sofrimento é inerente à espécie humana em sua permanente trajetória na terra. Sendo assim, o primeiro passo consiste em dedicar-nos exclusivamente a cultura grega arcaica. O problema é que a questão do sofrimento (phatos), porventura, foi à condição pela qual emergiu por meio das narrativas mitológicas, o nascimento da tragédia grega representada pelos escritores da antiguidade (Ésquilo, Eurípedes e Sófocles). Posteriormente, as peças teatrais gregas davam ênfase ao sofrimento pessoal no cotidiano como algo inevitável na/da vida humana. Configurava-se assim então, a ideia de que viver é colocar-se em abismo (ex-perion) constantemente. Talvez, o sentido crucial da tragédia grega seja o fato de que existem coisas que estão dadas no mundo como destino (moíras) de fatalidade para a existência humana. E esse é também o fato do porque Arthur Schopenhauer (1788-1860) não conseguiu libertar-se do pensamento clássico grego. Pressuposto levantado por Friedrich Nietzsche. Isto é a experiência da tragicidade se dá a astuta existência humana, como destino traçado dos deuses pela própria existência, isto é, o ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 113 instante trágico que segundo Nietzsche passa por meio de uma esfera antropológica, como vontade de superação ética do próprio destino da existência, fazendo com que o SobreHomem (Übermensch), afirme integralmente a vida em sua máxima e corpórea-vital expressividade artística. Pois, para Nietzsche é somente a arte que em última instância, confere pleno significado incondicional a própria vida. Em suma, partir da cultura grega artística e filosófica significa recomeçar o caminho experiencial (empeiria), de aceitação do destino, em seu aspecto trágico, porém, normal e alegremente a existência humana, cuja vontade de potência reforça no Sobre-Homem, a superação do sofrimento, como possibilidade de crescimento humano, que adquire constantemente, no pensamento trágico do eterno retorno-do-mesmo, uma hipó-tese, cosmológica-ética, de justificação est-ética da existência. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 114 JACOBI E A MORALIDADE DO IDEALISMO TRANSCENDENTAL Pedro Henrique Vieira UFPR/REUNI [email protected] Orientador: Marco Antonio Valentim Palavras-chave: Crença. Niilismo. Idealismo transcendental. As objeções publicadas por Jacobi no posfácio ao seu diálogo David Hume sobre a crença ou Idealismo e Realismo, de 1787, representa um momento decisivo para a assimilação histórica do pensamento de Kant. Com suas críticas, Jacobi pretende localizar o ponto preciso do mal entendido kantiano, bem como o caminho da real concretização do idealismo transcendental. Segundo ele, Kant se afasta do espírito de seu sistema quando admite que objetos afetam a sensibilidade humana. Isso porque admite que espaço e tempo, com tudo o que contêm, em nada dizem respeito às coisas mesmas e, com isso, limita todo conhecimento humano à experiência subjetiva. Contudo, pressupondo uma afecção sensível, Kant implicitamente aceitaria coisas em si como causa das impressões recebidas, o que seria contrario à sua própria filosofia. É essa a razão pela qual Jacobi afirma que Kant deveria deixar de lado a admissão de um objeto que afeta a sensibilidade e, sendo coerente, reduzir inteiramente a natureza ao sujeito. A realização do idealismo transcendental seria, segundo ele, a assunção de seu inevitável egoísmo especulativo. Essa compreensão que Jacobi faz da filosofia crítica alcança grande repercussão na Alemanha de fins do século XVIII e início do XIX, exercendo influência direta sobre o desenvolvimento de perspectivas que, ainda que profundamente divergentes, se encontram todas estreitamente ligadas a interpretações da filosofia de Kant, como por exemplo, o pensamento de Hegel e o de Schopenhauer. O célebre ―dilema de Jacobi‖, como ficou tradicionalmente conhecido, possui tal importância no devir histórico das diversas compreensões do pensamento kantiano que ainda hoje é encarado muitas vezes como um obstáculo e um desafio necessários de se ultrapassar e combater, se se quer estabelecer a coerência interna da filosofia crítica. Por isso, pretendemos aqui investigar os fundamentos dessas objeções a partir do pensamento do próprio Jacobi. Essa tarefa, necessária para a compreensão do estatuto ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 115 dessas críticas, nos conduzirá a um diagnóstico acerca da moralidade do idealismo transcendental implícito numa objeção aparentemente revestida de elementos puramente epistemológicos. Partindo da noção central de crença, compreenderemos que a filosofia de Kant representa, para Jacobi, o ápice de um afastamento do homem em relação ao cerne fundamental da vida. A acusação de egoísmo especulativo é fundada na intenção de restituir ao pensamento de Kant seu verdadeiro espírito, sua moralidade própria, que consiste na arrogância humana de tentar guiar a si mesmo independentemente de qualquer outra coisa, e, por fim, se revestir de nada e se pôr distante das coisas divinas. Para Jacobi, a fé é o elemento primordial da vida. A fé revela a natureza, possibilitando a percepção e fundamentando qualquer vivência posterior – qualquer anseio, ação ou conhecimento. O aprofundamento vital da revelação efetuada pela crença é o caminho pelo qual o homem pode conduzir a si mesmo em consonância com o verdadeiro. Por este caminho ele se torna consciente de sua liberdade, de sua origem em Deus e da vida eterna a que se destina sua alma. É assim que, num salto mortal, o homem acede da transitoriedade de sua natureza rumo a uma experiência interna e intuitiva do infinito. Contudo, o afastamento em relação ao que ensina a fé primordial se caracteriza como um desvio do verdadeiro que, no homem, o coloca no caminho do nada. A complexidade de seu mecanismo vital, expressão de seu alto grau de vida, permite ao homem compreender os objetos com tal generalidade e universalidade que ele corre o risco de deixar de lado todo o particular, embrenhando-se num mundo de conhecimentos no qual confunde as coisas com os conceitos que ele mesmo cria. Ao inventar um conhecimento que toma como sendo a própria natureza, ele é conduzido a derivar todas as coisas a partir de si mesmo, abandonando completamente o que a ele se revela pela fé. Por consequência, é levado a compreender a si mesmo como fundado em nada, como um nada a partir do qual se derivam todas as coisas que, ao cabo, se reduzem também a nada. É nessa esteira, derivando toda a experiência humana de si e do mundo a partir do processo vital engendrado pela crença, que Jacobi interpreta o idealismo transcendental de Kant. Tratar-se-ia este último de um afastamento do homem em relação à crença que revela a natureza, afastamento esse que o direcionaria a um mundo de puro conhecimento em que tudo se converte em nada. Transformando dessa maneira a natureza num produto subjetivo, fruto da mera razão, o homem encontraria aval para o direcionamento de si próprio unicamente através da concordância consigo mesmo. Nisso, porém, ele progressivamente se distanciaria das coisas divinas e da possibilidade de alcançar a consciência do infinito. É essa a moralidade do idealismo transcendental: a arrogância do ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 116 homem que, querendo se assenhorear de sua própria vida, transforma a natureza num nada criado por ele próprio. Criticando a Kant, Jacobi pretende restituir-lhe o inevitável egoísmo especulativo implícito na presunção de sua época. Apenas no coração de um homem vazio pode a natureza toda converter-se numa forma também vazia e o idealismo transcendental apenas reflete a morte da crença reveladora em favor de um saber sem objeto. Referências Bibliográficas: JACOBI, F. H. Über den transzendentalen Idealismus. Tradução de Leopoldina Almeida. In: (org.) GIL, F. Recepção da Crítica da razão pura : Antologia de escritos sobre Kant (1786-1844). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1992, pp. 99-111. ___________. The Main Philosophical Writings and the Novel Alwill. Tradução do alemão, com estudo introdutório, notas e bibliografia por George di Giovanni. Montreal & Kingston, London, Buffalo: McGill-Queen‘s University Press, 1994. ___________. Carta de Jacobi a Fichte sobre el nihilismo. Tradução, apresentação e notas de Vicente Serrano. Anales del Seminario de Historia de la Filosofía, v. 12. Madrid: Servicio de Publicaciones UCM, 1995, pp. 235-263. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 117 POLÍTICA EM GILLES DELEUZE: N-1 E SUAS IMPLICAÇÕES NOS MODOS DE SE ESTAR NOS VERBOS DA VIDA Ricardo Niquetti Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/CNPq [email protected] Palavras-chave: Política. N-1. Criação. Devir. Temos cada vez mais nos afastado das teorias políticas clássicas, não porque elas se tornaram obsoletas, mas porque elas não são as únicas maneiras de se viver, pensar em política. Deste modo, a proposta do trabalho não é cartografar os inúmeros e criativos modos singulares de se experimentar política, nem propor um reformismo ou engajamento nas instituições que quiçá se proclamam representantes sociais. O estudo pretende-se como dispositivo que insiste na afirmação de um pensamento político outro, não no sentido dialético formal (um/outro), mas como promotor de uma proliferação intensa de bons encontros ao mesmo tempo em que assume o ponto de vista a favor de uma singular ética vitalista. É inegável que esta pretensa discussão salienta a importância do exercício do pensamento político, porém reivindica a porosidade de outras vozes nesse campo do conhecimento. Deleuze propõe, nesse sentido, uma filosofia política, que ele chamará de menor, que tem sua marca na inseparabilidade entre filosofia, política e produção de vida. Essa inseparabilidade que trata da integralidade da vida humana pode ser vista em toda sua obra, entretanto nos concentraremos em três conceitos que a meu ver são fundamentais para pensarmos os modos de se estar nos verbos da vida, a saber, micropolítica, criação e n-1, ideias essas que procuraremos esclarecer nas suas conectividades e em seus afastamentos. Assim, por exemplo, no ensaio que dedica à obra de Carmelo Bene ―Um manifesto de menos‖, Deleuze estabelece duas operações opostas que nos ajudam a entrar em seu intenso pensamento político filosófico: Por um lado, eleva-se ao ‗maior‘: de um pensamento faz-se uma doutrina, de uma maneira de viver se faz uma cultura, de um acontecimento se faz a História. Pretende-se assim reconhecer e admirar, mas de fato normaliza-se. (...) Então, operação por operação, ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 118 cirurgia por cirurgia, pode-se conceber o inverso: como ‗minorar‘ (termo empregado pelos matemáticos) como impor um tratamento menor ou de minoração, para liberar os devires contra a História, as vidas contra a cultura, os pensamentos contra a doutrina, as graças e as desgraças contra o dogma. (DELEUZE, 2010, p.36). Essa tentativa de subtrair, amputar, retirar, neutralizar alguns elementos de Poder, a fim da liberação de virtualidades, a fim de praticas que escapem da dominação, parece ser o grande legado político deleuzeano, ou seja, n-1 como processo de minoração, de fuga ou impossibilidade de formação do Uno do Um, impondo assim a criação de novas relações com o corpo, tempo, sexualidade, trabalho, cultura, etc. Esse processo não é nenhuma superação de um estágio anterior em direção a uma figura mais alta, mas um ficar a espreita contra aquilo que em nós e no mundo pode ser qualificado de totalitário ou fascista. Depois desse diagnostico é preciso desencadear combates, fazer com que o n-1 entre em cena, ou seja, devemos investir na possibilidade de um uso menor da política, um uso de resistência e revolucionário, que faça nossos modos de estar nos verbos da vida agirem de outras maneiras, podendo desta maneira haver novas possibilidades de viver. Minorar para Deleuze é se engajar em devir, é subtrair o único da multiplicidade a ser constituída, minorar é conjurar o n-1. Esta afirmação tem inúmeras consequências políticas e filosóficas, pois estamos constantemente imersos em processos de variação contínua que podem ser interrompidos por uma operação que procura forjar o uno, ou seja, como podemos desviar desse destino causal? Como podemos permanecer num estado menor? Como o n-1 se entrelaça com a criação e a resistência? Sem avançarmos nestas problemáticas, podemos dizer em linhas gerais que pensar uma política menor, segundo Deleuze, em que o devir torna-se preponderante e implica necessariamente uma libertação das singularidades, é provocar um curto-circuito da ordem linear, cronológica e historicista, desencadeando variações imprevisíveis que produzem rupturas com as representações que, de um ponto de vista de uma política maior, nos definem como sujeitos. Essa ruptura desarticula a intensidade da política maior, cujo efeito é o confisco de nossa potência de variação e de criação, de mudança e de pensamento, em troca de uma representação e um lugar no status quo. Essa crítica, entretanto, não inviabiliza uma política maior, mas evidência que os processos políticos mantêm vitalidades outras, que procuram priorizar aquilo que nos liga à experiência dos encontros, às circunstâncias de suas ocorrências, ao que nos abre ao seu jogo de forças, ao que nos absorve em suas tensões, etc. Política em devir, no sentido ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 119 deleuzeano, não é uma utopia, mas a possibilidade de alcançar uma linha de transformação, oriunda da experimentação, que não proclama uma verdade universal, apenas estratégias singulares não totalizáveis. E mais, constroem desta forma políticas a espreita das alianças, das suas conectividades, complicações, vizinhanças, afastamentos... Assim a pergunta recorrente de Lênin ―O que fazer?‖, ganha em Deleuze uma dimensão nova, pois o que pulsa na experiência intensiva dos encontros implica que não há solução política que não passe pela criação. Criar em política, na esteira da experimentação e do devir, é lutar a favor das micropotências inovadoras do pensar, essas que se agitam em certos entretempos da filosofia, das artes, das ciências e, de outro lado, potencializar linhas de fuga e de resistência que modulam agenciamentos do desejo como larvas de uma ―cólera contra a época‖, contra o ―intolerável‖ e a favor da invenção de modos mais suaves de coexistência entre os entes (DELEUZE, 2006, p.7). O primeiro ato político, para esta filosofia imanente, consiste em desfazer em nós aquilo pelo que vivemos sob controle, contribuindo para que o afecto político novamente seja possível, e que desta maneira possamos desdobrar todas as nossas forças em favor de um mundo sempre por vir, ou seja, não há verbo que não esteja à disposição das subversões de um intenso processo de minoração e de alianças. Referencias Bibliográficas: DELEUZE, G. Conversações, 1972-1990. São Paulo: Editora. 34, 2006. DELEUZE, G. Sobre teatro: Um manifesto de menos; O esgotado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2010. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 120 REVOLUCIONÁRIOS DE 1776: ENTRE A AGONIA E A APOSTA Rodrigo Fampa Negreiros Lima Universidade Federal Fluminense (UFF) [email protected] Orientador: Renato Lessa Palavras-chave: Filosofia; História; Revolução, imitação; invenção. Com palavras mais sofisticadas e metáforas provocadoramente esclarecedoras, Renato Lessa defende que a Filosofia Política poderia ser descrita como um campo de batalha onde se desenrola uma guerra semântica na qual palavras e conceitos fazem às vezes de artilharia decisiva; onde sistemas filosóficos – cada um acreditando deter em si os modos de descrição do real, ou seja, acreditando estar enunciando a verdade acerca do mundo – se digladiam numa luta interminável, indecidível, porém decisiva: a luta pelo estabelecimento de padrões de realidade. Decisiva porque essa luta de conceitos decanta na Vida Comum sob a forma de efeitos práticos e sob a forma de normatização da vida em sociedade. Portanto, as variadas ilhas da Utopia – ou das utopias - estão ligadas ao continente do real por pontes de ida, mas também por pontes de volta (o filósofo, afinal de contas, volta para a caverna). Em termos humeanos, a decantação filosófica sobre a Vida Comum em não poucas ocasiões tem o poder de causar os tão primordiais configuradores dor e prazer. Em outras palavras, a História acaba por desempenhar o papel de laboratório de exercício público desses enunciados filosóficos. É nela onde se decide quais seguirão com vida e quais serão descartados. Mais do que isso, é nela onde se decidirá se sequer esses enunciados merecerão algum tipo de experimentação. Lessa enxerga nessa luta três momentos essenciais: agonia, aposta e ceticismo12. Agonia porque a confrontação é inevitável; aposta porque, apesar do caráter solipsista desses enunciados pretensamente verdadeiros, está-se a por em jogo proposições e prescrições que podem ou não vir a ser acolhidas pelos costumes da vida ordinária; e, Lessa, Renato. Agonia, aposta e ceticismo: ensaios de filosofia política/ Renato Lessa – Belo Horizonte: Editora UFMG (Coleção Origem). 12 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 121 finalmente, ceticismo porque só assim seria possível observar que a configuração (no caso, Política) do mundo não passa de uma angustiante, porém, revigorante disputa entre mundos sociais possíveis (metáfora lessa-borgeana). Partindo de duas premissas epistemológicas acerca do mundo fenomenológico como amálgama e confronto de mundos semânticos possíveis e que tem na História o lugar de reverberação dos conceitos filosóficos enunciados como se fossem de validade universal -, pretendo analisar filosoficamente o episódio histórico conhecido como Revolução Americana sob a luz do arsenal conceitual de dois pensadores fundamentais: Hannah Arendt e David Hume. A escolha por um evento histórico não é aleatória, pelo contrário. Trata-se, antes, de uma crença filosoficamente fundamentada: a de que conceitos e assertivas filosóficos só ganham consistência e movimento quando historicamente exercidos. De outro modo, exercem uma função muito próxima a da Literatura: serem imaginados enquanto não são vividos; em suspenso nas prateleiras da biblioteca dos mundos possíveis. Além disso, episódios históricos onde muitas coisas estão em jogo, tal como acontece nas revoluções, parecem ser aqueles momentos nos quais a agonia se manifesta da maneira mais intensa e quando as apostas não podem ser mais adiadas. Momentos em que não é possível adotar a postura cética de observar de cima da montanha. Momentos nos quais a História deixa de ser a ―ciência‖ do passado e se apresenta como o tempo de agir em algum lugar indeterminado entre o passado e o futuro, como bem nos lembra Hannah Arendt. O tempo-dilema é quando os homens ordinários se fazem filósofos matando o inimigo ou escrevendo constituições; quando se veem entre a hesitação da Vida Comum e a excitação de criar algo novo, ambos os sentimentos fundamentais para que os homens possam sobreviver na guerra entre mundos. Por vezes, o camponês que decapita o rei é produtor mais eficaz de novas vivencias ontológicas do que o asceta que apenas quer descrever. Partindo da análise que Hannah Arendt faz do conceito de Revolução, primeiro como desejo de retorno a um ponto de origem (à vida como ela era antes) e depois como a dolorosa descoberta de que o retorno não é possível, pois agir é produzir algo novo; primeiro como desejo de imitação e depois como necessidade de invenção, pretendo sugerir que em nenhum dos dois momentos o homem deixa de ser um animal que crê, como nos aponta a antropologia humeana. Contudo, mesmo sem deixar de ser um crente, é nos momentos de tempo-dilema que o homem pode observar o caráter efêmero de ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 122 qualquer crença que seja, mas não sem agonia e sem poder abrir mão de apostar. O homem, animal que tem prazer na previsibilidade da imitação, por vezes tem de inventar. A agonia fica evidente quando nos fica claro que o mundo em que vivemos é uma possibilidade. Piora quando nos damos conta de que não se trata apenas de uma possibilidade, mas de um frágil conjugado de possibilidades e dói ter de escolher. Com isso, pretendo fazer uma breve apresentação dos revolucionários americanos como que esmagados entre uma Vida Comum que já não mais podia ser e a necessidade de ter lidar com a incerteza do vir a ser. Entre David Hume e Hannah Arendt. Entre a agonia e a aposta. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 123 O CAMINHO DA LÓGICA PARA FELICIDADE Rodrigo Wenceslau (PPGFIL-Unioeste-CAPES) [email protected] Prof. Dr. César Augusto Battisti Palavras-chave: Wittgenstein – Tractatus – heurístico – mundo – vontade. Na tentativa de romper com abordagens de cisão da obra do jovem Wittgenstein surgiu a hipótese de pesquisa que está no pano de fundo desde trabalho – ora direcionando interpretações, ora exigindo – e que pretende entrelaçar lógica e ética de modo justificado. Nesta comunicação nos deteremos em explicar como a ética – enquanto o alcançar da correta visão de mundo – depende do exercício lógico. A única obra publicada em vida e com anuência de Wittgenstein inicia tratando do mundo, dos componentes ontológicos e do modo como este está estruturado, não obstante, segundo o próprio autor, o livro ser de temática ética. Devemos especificar agora de que tipo de ética trata-se; afinal em 6.422 o autor nos diz que uma ética do tipo imperativa (uma ética do dever) não é de maneira nenhuma compatível com sua proposta. Em se considerando isto, a ética proposta no livro é uma ética que não implica punição ou recompensa no sentido comum, no sentido de consequência de algum ato. Ela, de algum modo, gera algo de agradável ou desagradável, mas o que ela gera é algo intrínseco ao próprio ato. O ato, enquanto fato descrito pela linguagem não é bom nem mal, pois a linguagem não pode exprimir nada de valor, isto faria com que o valor perdesse seu valor, exigiria dele o fator contingencial, condição da linguagem – o valor de verdade da proposição. A vontade, enquanto portadora de decisão ética, não altera o mundo, nem mesmo toca o mundo, pois não existe vinculo lógico entre o mundo e a vontade. É claro que o jovem filósofo austríaco não nega a vontade enquanto fenômeno. Porém uma vontade que infla o mundo alterando, não seus fatos, mas seu limite não pode estar no mundo enquanto fenômeno, ela tem de estar nos limites do mundo. Entendemos que uma decisão assim nunca estará ao alcance do homem dos fatos, que olha a vontade enquanto fenômeno, mas com um sujeito transcendental, que reconhece a impotência da vontade sob os fatos. A pergunta que surge então é: de onde vem uma ideia de sujeito ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 124 transcendental? Aonde ele surge? - torna-se palpável-; se o próprio autor também diz que o sujeito não pode estar no mundo. Se não há valor nos fatos (mundo); o valor, que pode gerar algo agradável, tem de estar fora do mundo dos fatos, e a decisão ética, pelo valor, deve alterar algo que não é mundo, deve então segundo o filósofo alterar os limites do mundo. Assim o mundo se tornará outro mundo, logo o que deve mudar é a visão mundo, já que mundo mesmo não pode mudar. Mas a pergunta que surge profundamente e como um eco no vazio dentro do leitor mais atento é: Como faço para ver meu mundo diferente? Como faço para ter uma visão de mundo feliz e não uma visão de mundo infeliz? A resposta de Wittgenstein – acreditamos – seria algo como: estudando lógica. Isto explica em parte porque um livro que trata de lógica e tem na lógica o tema com a maior parte de texto dedicada poderia ser um livro de ética. A lógica é proposta no livro como hermenêutica para a felicidade segundo entendemos. Ela fornece o caminho de reconhecimento, de descoberta do mundo entendido como contingente, que implica fatos que poderiam ser totalmente diferentes sem mudar a estrutura de mundo. O estudo da lógica, tomada no modelo tractariano, leva o homem, que lida com os fatos, deseja fatos, tem frustrada sua vontade e enxerga a infelicidade para um lugar em que pode se colocar nos limites do mundo e enxergar um mundo diferente, um mundo do feliz. Para mostrar este ―caminhar‖ pelo livro, este subir a escada, foca-se atenção sobre o conceito de mundo, que inicia o livro e permanece até próximo do final, sendo entendido como o mais importante na mudança de visão, já que esta mudança opera-se sobre ele. Um cuidado e uma dificuldade que este trabalho enfrenta é o aviso do autor de que seu livro não deve ser entendido como um manual, dificuldade que se pretende superar em favor da coesão no entendimento da obra. Referências Bibliográficas: WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico Philosophicus. São Paulo. Edusp, 2004. ___________. Diário Filosófico 1914-1916. Madrid. Planeta de Agostini, 1986. MONK, R. Wittgenstein: o dever do gênio. Trad. Carlos Afonso Malferrari. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 125 A CARACTERIZAÇÃO DA ERÍSTICA NO EUTIDEMO DE PLATÃO Saulo Sbaraini Agostini UNIOESTE/PET Filosofia [email protected] Libanio Cardoso Neto Palavras-chave: Erística. Sofística. Aporia. Críton conversa com um ouvinte de um diálogo entre Sócrates, Ctesipo, Clínias e dois estrangeiros, que o ocorreu no Liceu. Esse espectador anônimo, ao sair do debate, relata que a conversa entre os sábios era tolice e que a filosofia é coisa medíocre feita por pessoas ridículas. No dia seguinte, Críton encontra Sócrates e pergunta com quem ele discutiu no Liceu. As perguntas formuladas por Críton nos levam a questão: o que é a erística? Esta é, como chamam, a arte de discursos dos estrangeiros que foram interlocutores de Sócrates no dia anterior. Uma arte que pretende vencer qualquer discurso e conduzir qualquer pessoa a qualquer ação. O diálogo acontece com o aviso do daemon para que Sócrates permanecesse no Liceu. Ao continuar no local, entram: (1) Clínias, que pela descrição feita por Platão é um jovem de extrema beleza, seria o personagem escolhido pelo filósofo para representar o belo no diálogo; (2) Eutidemo e Dionisodoro, os irmãos e sábios erísticos. Todos se sentam e Sócrates propõe aos irmãos demonstrem a erística exortando o jovem Clínias à virtude. Clínias é perguntado sobre quem são os manthánontes (apreender/compreender), os sophoí (sábios/inteligentes) ou os amatheîs (ignorantes/estúpidos). Ao responder essas perguntas, Eutidemo leva seu intelocutor à contradição. Dionisodoro cochicha para Sócrates que, independente da resposta dada pelo belo jovem, ela seria contraditória. De forma aparente, os irmãos, ao invés de conduzirem o jovem à virtude, apenas demonstram como podem vencer alguém, argumentativamente, em um debate. Sócrates, diante desta situação, recoloca a sua proposta aos eristas de conduzir, discursivamente, o jovem Clínias à virtude. Neste período do diálogo, ele oferece um discurso protréptico a ser tomado como exemplo de tentativa discursiva de condução à virtude. Após esta exemplificação, Dionisodoro toma a palavra e ataca o discurso socrático. O erista atenta à impossibilidade de Clínias passar de não-sábio para sábio sem que morra. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 126 Pois assim estaria passando do que se é (Clínias não-sábaio) para o não-ser (Clínias sábio), ocorrendo a morte de Clínias. Esse argumento, entre muitos outros do diálogo, é considerado sofístico. Iglésias, nos mostra o que é chamado de ―problema da predicação‖, em que conciliar o predicado universal com a pluralidade de coisas atribuídas ao sujeito se torna problemático. Mais especificamente nesse último argumento de Dionisodoro, da passagem do Clínias não sábio para sábio, está sendo apresentada a dificuldade de apreender uma coisa por meio de suas mudanças. Na fala dos eristas, transparece que a predicação de algo é sempre essencial. Destarte, se há a passagem de Clínias não sábio para sábio, o mesmo perde o que faz com que ele seja o que é. Durante o diálogo Eutidemo, inúmeros outros argumentos sofísticos são apresentados. Ao que parece, o que caracteriza a erística é o uso desses argumentos para vencer qualquer debate. Todavia, sempre que um erista está em contradição, o outro vem em cobertura e defesa para salvaguardar aquele que está a perder o debate. Dialogo, para a erística, é sempre uma luta entre opostos em busca de vitória, mesmo que o conteúdo da conversa não tenha nenhuma conexão com o que há no kósmos. Esse caráter de dupla defesa da erística permite que comentadores como Claudia Mársico e Hernán Inverso, comparem os irmãos erísticos com a Hidra e o Caranguejo do mito de Héracles. A erística tem uma forma característica monstruosa (como a da Hidra e do Caranguejo), porque visa apenas a vitória discursiva. Referências Bibliográficas: MARQUES, Marcelo P. A significação dialética das aporias no Eutidemo de Platão. Revista Latinoamericana de Filosofia XXIX 1 (2003) p.5-32. PLATÃO. Diálogos II. Górigas, Eutidemo, Hípias Maior, Hípias Menor. Tradução, textos complementares e notas de Edson Bini – Bauru, SP: EDIPRO, 2007. ___________. Diálogos Critão, Menão, Hípias Maior e outros. Trad. Carlos Alberto Nunes – 2. Ed – Belém: EDUFPA, 2007. ___________. Eutidemo. Trad. Apresentação e notas de Maura Iglésias. Rio de Janeiro; Ed. PUC-Rio; Loyola, 2011. PLATO. Euthydemus. Trad. W. R. M. LAMB. Loeb Classical Library: London, 1999. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 127 PLATÓN. Eutidemo. Trad. Claudia Mársico e Hernán Inverso. 1ª Ed. Buenos Aires: Losda, 2012. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 128 APONTAMENTOS SOBRE O MOS GEOMETRICUS NA FILOSOFIA DE ESPINOSA Sérgio Luís Persch (Professor da UFPB) Ainda que seja unânime o reconhecimento de que a principal característica da filosofia de Espinosa seja a de expô-la à maneira dos geômetras, as possibilidades de se investigarem os motivos e os efeitos de tal modo de exposição nunca se esgotam. Queremos apresentar uma hipótese explicativa desse modelo argumentativo, que se distancia um pouco da via comumente tomada para identificar tal característica na obra de Spinoza. O que se costuma fazer é tomar como um uso completo e acabado do modelo geométrico, a Etica, que começa com definições e axiomas e, em seguida, parte para a dedução de toda a doutrina spinozana, através de proposições rigorosamente enumeradas e cada qual sendo demonstrada com base no que já está escrito anteriormente. Os outros escritos e tratados seriam menos rigorosos e sistemáticos e, portanto, não se orientariam propriamente pela exposição à maneira dos geômetras. Entretanto, nesses escritos, Spinoza também fala com muita frequência das matemáticas e vez por outra ensaia uma pequena exposição sumária de algum assunto que também se pretende geométrica. Em vista disso, levantamos a hipótese de que nesses escritos ocorra um emprego elementar do modelo matemático de explicação filosófica que nos permite compreender algo acerca da essência mesma desse modelo, compreensão essa que vem a ser bastante útil ao nos depararmos com o seu emprego explícito e codificado na Etica. Isso ocorre em operações que seguem a estrutura de uma ‗quarta proporcional‘, que se encontram já no Tratado breve e no Tratado da emenda do intelecto, e reaparecem na Etica. Portanto, pretendemos mostrar que essas operações já contêm o que há de essencial no modelo de exposição geométrica e que a Etica consiste num desenvolvimento exaustivo desse modelo. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 129 NIETZSCHE: A FILOSOFIA COMO VIVÊNCIA Wilson Antonio Frezzatti Jr. UNIOESTE [email protected] Palavras-chave: Filosofia. Fisiologia. Nietzsche. Tragédia. Vivência. A filosofia, para Nietzsche, nada mais é do que a transmutação dos estados fisiológicos, ou seja, da dinâmica dos impulsos em luta por mais potência, para formas elaboradas intelectualmente, isto é, o pensamento filosófico é originado de acordo com a dor e com os impulsos fisiológicos. Em outras palavras, a filosofia é expressão do modo de existência do filósofo. Viver, para os filósofos, significa transmutar constantemente em luz e chama tudo o que são, assim como tudo o que os atinge. No prefácio à segunda edição de A gaia ciência (1886), o sofrimento e a doença proporcionam uma observação privilegiada dos sintomas que indicam a condição impulsional. O abandono à própria doença permite, através de um auto-questionamento, a ação exploratória dos mecanismos do pensamento. Dessa forma, esse estudo descobre como pensa um corpo doente e sofredor: pressionado por suas necessidades, ele pensa em direção ao medicamento em qualquer sentido, ou seja, em direção a um abrandamento seguro. Se o pensamento elaborado afirmar a vida, ele provém de um corpo fundamentalmente saudável e pleno de força e, ao contrário, se negála ou destruir seu crescimento, é oriundo de um corpo fundamentalmente doente, decadente e degenerado. Nos estados mórbidos, descortina-se algo que o orgulho do homem saudável impede o acesso: a dor, especialmente uma grande dor, faz com que se atinja a profundidade de nossa humanidade e que surja a desconfiança de tudo que se considerava anteriormente como humano e verdadeiro. Pela experimentação dos pensamentos originados pelos estados fisiológicos, conhecem-se os caminhos do pensamento: pode-se identificar as ideias filosóficas sãs e doentias. A doença, para o filósofo alemão, inspira as noções desejosas de um além, um apartado, um fora, um acima: a filosofia do transcendente origina-se de uma interpretação equivocada do corpo e sobre o corpo – é sintoma de um determinado tipo de corpo, ou seja, o filósofo transforma necessidades fisiológicas de seu corpo doente em conceitos metafísicos. No entanto, esse caminho rumo ao transcendente não é traçado se o ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 130 organismo afetado pela doença e pela dor, por constituição, isto é, por fundamento fisiológico, possuir a grande saúde. Ela é a capacidade de aceitação da própria condição e do modo que se interage com o mundo; em outras palavras, a aceitação da efetividade, do ―vir-a-ser‖. Aplica-se, assim, o critério da vida para avaliar as expressões fisiológicas: a filosofia de Nietzsche deve afirmar a vida em oposição à tradição filosófica. A filosofia nietzschiana é expressão de uma vivência saudável e afirmativa. A perspectiva da filosofia enquanto vivência não é exclusiva do período em que Nietzsche desenvolve a doutrina da vontade de potência. Em sua produção filosófica inicial, a vivência inscreve-se em outro contexto, na condição trágica da existência. Em O nascimento da tragédia (1871), Nietzsche afirma que a fonte da Tragédia como obra artística provém de dois impulsos cósmicos e artísticos diferentes em essência e metas: o impulso apolíneo e o impulso dionisíaco. O espectador trágico vivencia experiências que propiciam uma sabedoria sobre sua condição no mundo por meio desses impulsos. O impulso apolíneo (o discurso e o drama, o mito trágico) transfigura por meio do principium individuationis e promove a redenção do pessimismo através da aparência. O impulso dionisíaco (a música dissonante do coro) rompe a ilusão da individuação e abre caminho para o conhecimento imediato do fluxo ininterrupto de criação e destruição de formas. O mito trágico fala através de símiles, de representações, sobre o conhecimento dionisíaco: é a transposição da sabedoria dionisíaca (a vida eterna da totalidade não é tocada pelo aniquilamento do indivíduo) para a linguagem das imagens. A figuração da sabedoria dionisíaca realizada pelo mito trágico através dos meios artísticos apolíneos leva ao limite o mundo da aparência, o que provoca a auto-negação e a busca das coisas verdadeiras: o eterno movimento do Uno-Primordial. Enquanto arte, o mito trágico transfigura o mundo fenomênico de sofrimento no sentimento de que mesmo o feio e o desarmônico são um jogo artístico que o Uno-Primordial joga consigo mesmo. Em outras palavras, nessa transfiguração atinge-se o objetivo máximo da metafísica da arte de Nietzsche: a existência e o mundo são justificados apenas como fenômeno estético. Este resumo refere-se à palestra ministrada no minicurso ―A noção de Filosofia na Alemanha do século XIX‖, coordenado pelo Prof. Dr. Jadir Antunes, no XVIII Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea da Unioeste, em 2013. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 131 ARTIGOS COMPLETOS* * A redação e a revisão finais dos textos são de responsabilidade dos próprios autores. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 132 REFLEXÃO ACERCA DE UMA EDUCAÇÃO AMBIENTAL EM H. JONAS Adaiana Pinto Orcheski UNIOESTE [email protected] Rosalvo Schütz RESUMO: Compreendemos na contemporaneidade a importância dos assuntos que envolvem o meio ambiente, pois considerando as mudanças arrasadoras que emergem do progresso tecnológico podemos perceber a situação periclitante em que nos encontramos. A natureza parece indefesa diante das atividades humanas. A formação de uma mentalidade, ou mesmo postura ética, capaz de contribuir para a superação desta realidade muitas vezes carece de fundamentação. Nossa hipótese é de que a proposta ética de Hans Jonas poderá subsidiar de forma muito produtiva a formulação de ações e posturas educativas no campo da educação ambiental. Palavras-chave: Tecnologia. Natureza. Educação Ambiental. Responsabilidade. O risco que corremos diante de tamanhos inventos resultados do mau uso das tecnologias percebidos na atualidade são assustadores. Criamos meios mais rápidos e eficientes para produzir, mas que também se tornam mais eficientes para destruir a natureza como, por exemplo, bombas atômicas, transgênicos, mecanismos de desmatamento enfim, estruturas que são prejudicais para o desenvolvimento natural do meio em que vivemos. A preocupação com a natureza figura, por isto, na obra de Jonas, como um dos termos chaves na compreensão do panorama ético contemporâneo, no qual a tecnologia muniu o homem de uma capacidade de intervenção e destruição sem igual a ponto de podermos destruir por completo grande parte da vida no planeta. Por isto, preocuparmo-nos com a natureza e com tudo o que habita nosso planeta é essencial para termos um futuro, ou para novas gerações terem ambientes apropriados para viver. Essas preocupações são encontradas na obra Princípio Responsabilidade na qual, se preocupando com o todo, Jonas elabora uma ética a qual visa à integridade do planeta. A vida humana é repleta de transformações as quais foram se evidenciando ao longo da história, desde as primeiras civilizações até o século XX. Natureza e ser humano passaram por diversas mudanças e muitas delas prejudiciais para o seu desenvolvimento e ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 133 permanência. Meio ambiente e homem estão sendo modificados com a chamada evolução tecnológica, na qual o grande causador é compreendido como: progresso desenfreado. Percebemos que ao longo da história o planeta sofreu alterações, tanto na sua estrutura física como na sua organização natural. Consequentemente o agir humano também se modificou. Além disto, a própria condição humana, sempre em busca do ―ser mais‖, com a infinita capacidade de criar e recriar coisas no mundo, não permite que o ser humano seja definido como um ser estático ou, então, determinado sobremaneira por seus instintos, como parece ser o caso da maioria dos animais. Podemos pensar que a principal característica identificada, segundo Jonas, no homem, é a resultante de um ser inacabado frente ao mundo. Este não acredita que o mundo o satisfaça plenamente, na maneira como ele é. Isto na modernidade se traduziu numa crença exacerbada no progresso, ou seja, o ser humano, principalmente o ocidental, desacredita que o mundo sem o progresso possa trazer algum bem para sua vida. O homem parece ter atitudes visando apenas o progresso e este parece ter, por sua vez, se tornado um fim em si mesmo. O progresso transformado em ―fim em si mesmo‖ degradou tudo mais em mero instrumento. Neste sentido, pode-se afirmar que o homem procura fazer da natureza e dos seres extra-humanos instrumentos do seu desejo de dominar o mundo. Jonas nos apresenta em seu Princípio Responsabilidade a teoria da elevação do homem sobre a natureza. Para que entendamos esta questão é necessário compreendermos a técnica, justo porque, antes de tudo é preferível rever as características passadas do agir humano para as tomarmos como comparativos ao estado atual das coisas, pois segundo Jonas, depois da técnica o mundo sofrera alterações significativas. Não podemos dizer que a tecnologia que encontramos seja ruim em si mesma, pelo contrário, ela pode ser muito boa. No entanto, podemos nos transformar em seus objetos, passando a ser meras extensões dela. A tecnologia pode ofuscar nossos olhos diante da percepção de nossas próprias ações. Diante dessa problemática se faz necessário, segundo Jonas, uma ética que se preocupa com o todo, uma ética que defenda a vida na sua totalidade e que abranja seres humanos, animais, meio ambiente e tudo o que tem vida na esfera total do planeta; essa nova ética proposta por Jonas é chamada de ética da responsabilidade. Para Jonas a vulnerabilidade da natureza não será reconhecida até não se conhecer os danos a ela já produzidos. Ou seja, antes que o homem, detentor da técnica, não perceber que suas ações estão afetando todos os ciclos de vida, a natureza permanece simples e exclusivamente a sua disposição. Os estudos relacionados ao meio ambiente levaram ao que conhecemos por ecologia, ou a ciência do meio ambiente. Achávamos que ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 134 a natureza era infinita, ou inesgotável, que jamais a afetaríamos com nossas ações e técnicas. Hoje, percebemos que muitas pessoas já estão fazendo acontecer, salvando florestas, lutando por uma produção limpa e um consumo consciente. No entanto, estruturalmente ainda continuamos tendo uma postura destrutiva em relação ao meio ambiente. A proposta do Princípio Responsabilidade é a de possibilitar uma reflexão do homem frente a suas ações objetivando modificar nossa postura ética diante do que nos cerca. Há uma necessidade de superarmos a mentalidade do consumismo, grande causador de conflitos. Segundo Jonas, o que o mundo necessita é de um novo pensamento, que vise o bem estar do todo, sustentado por uma ética da responsabilidade a qual possamos recriar a partir do que temos para melhor conviver e deixar de herança para as gerações vindouras a possibilidade de construir suas perspectivas e melhorias. Para Jonas o futuro é aquele que possibilita a condição da continuidade da humanidade e de todas as outras formas de vida. Jonas (2006. p. 229) se preocupa com o futuro da humanidade e admite que o dever precisa vir em primeiro lugar no nosso comportamento, ao passo que a civilização tecnológica está se tornando cada vez mais ―poderosa‖ quando nos referimos ao seu potencial de destruição. O futuro da humanidade obviamente coloca em cheque o futuro da natureza e vice-versa. Deve ser levado em consideração que o homem está se tornando cada dia mais perigoso e ameaçador não só perante ele mesmo, mas diante de toda a biosfera. Segundo Jonas, o interesse do homem coincide com o dever diante de toda forma de vida, afinal a terra é sua ―pátria‖, não se deve reduzir nossa concepção ao antropocentrismo. Para Jonas esse dever está estritamente ligado à biosfera total do planeta, é um dever diante do humano e do extra-humano. Deve-se deixar a vida prevalecer, preservar e proteger o direito de existir das futuras gerações. Jonas propõe que nos utilizemos do medo para compreendermos o que podemos sofrer no futuro, ou seja, nosso filósofo se utiliza do temor diante de projeções de grandes probabilidades de catástrofe para alertar os seres humanos diante das suas atitudes frente ao meio ambiente e todas as formas de vida. Faz-se necessário atermos aos dados atuais que a própria modernidade nos oferece para compreender antecipadamente algumas consequências, caso nós humanos não alteremos nosso modo de agir diante do ―outro‖ estaremos afetando gravemente todas as formas de vida. A heurística do medo, segundo Jonas (2006, p. 353) pode nos auxiliar a entendermos as reais probabilidades do perigo como também fazer com que respeitemos todos os seres que possam existir. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 135 Antigamente, segundo a visão de Jonas, a técnica seria capaz de afetar apenas superficialmente a natureza, de modo que não era concebido ―a questão de um dano duradouro à integridade do objeto e a ordem natural em seu conjunto‖ (JONAS, 2004. p. 35). E como podemos perceber todo o agir ético era organizado dentro deste horizonte. Isso era compreendido com os olhos do sujeito que possuía a techne, mas de modo que não percebia ainda como de alguma forma o seu agir especificamente humano (através de instrumentos técnicos) afetariam a ordem das coisas. Por isso, essa atuação do homem segundo Jonas sobre tais objetos não era tida como domínio eticamente significativo. A significação ética só era compreendida na relação homem com homem e o de cada homem com ele mesmo, por isto pode-se afirmar que ―toda ética tradicional é antropocêntrica‖ (JONAS, 2006. p. 35), ou seja, Jonas compreende toda a ética tradicional como sendo aquela que é entendia somente na relação com homens, sendo este o referencial único para conceber o agir ético. ―O bem e o mal, com o qual o agir tinha de se preocupar, evidenciavam-se na ação, seja na própria práxis ou em seu alcance imediato, e não requeriam um planejamento de longo prazo.‖ (Idem p. 35) Para Jonas a ética tradicional tem relação apenas com o que acontece aqui e agora, com as ocasiões tanto da vida pública como da vida privada. Para Jonas tudo está modificado diante do contexto tecnológico atual. A ética antiga não consegue mais ajustar-se a técnica moderna e aos desafios e exigências éticas específicas que esta apresenta. Foi introduzida uma ação de tal ordem de grandeza que nos deparamos com novas consequências e objetos. Diante da história o prognóstico da natureza era entendido como indestrutível ou invulnerável, ficando assim, disponível aos interesses particulares do homem. Sabemos que uma espécie é dependente da outra para sobreviver, ou é contribuinte para modificar o meio em que vive, ou seja, preservar cada ser é contribuir para o equilíbrio de toda forma de vida. Daí a necessidade de uma ética que leve em conta a totalidade integrada da natureza. A perspectiva da ética tradicional, baseada, fundamentalmente no presente antropológico, nos levou, segundo o autor, a certo afastamento da vida. Diante de muitos acontecimentos ocorridos ao longo da história recente percebemos que os seres humanos são também carentes de uma educação voltada para a vida. A conservação da vida e a possibilidade dela vir a existir se faz necessária em uma educação ambiental, ou seja, uma educação voltada para o todo; para tal educação Jonas nos sugere algumas possibilidades de aprendizado. Encontramos, por exemplo, no Princípio Responsabilidade reflexões que podemos tomar por base para construir uma educação consciente com questões como a ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 136 necessidade de preservar a vida humana e a extra-humana. Em sua obra é ressaltada também a importância de uma ética de responsabilidade que forneça a base para atitudes e comportamento humano orientado por uma perspectiva mais responsável com o meio ambiente e as gerações futuras. Deve-se preservar o outro e o aqui e agora visando o futuro das novas gerações. Jonas não é tecnofóbico apenas acredita que o progresso deve ser usado moderadamente e com vistas à qualidade de vida, mas sobremaneira, está convencido de que devemos estar cientes de que a técnica tem efeitos cumulativos, e que usá-la de maneira irresponsável e sem necessidade põem em risco as novas gerações. Para Jonas ninguém deve pagar por nossas irresponsabilidades, pela nossa má utilização da tecnologia – o futuro não tem que pagar por nossas hipotecas. Devemos valorizar a vida, o nosso maior bem e de onde todas as coisas derivam. Segundo Jonas, não podemos apostar nada que arrisque a vida, não temos esse direito. Embasada nesses princípios certamente uma educação ambiental se construiria de forma pertinente e necessária para uma civilização tecnológica carente de cuidados. Jonas defende a tese de que de acordo com novos tipos e limites do agir exige-se uma ética de responsabilidade que seja compatível com esses limites. Diante desses limites decorrentes das ações humanas se faz necessário uma educação ambiental que tenha como base valores que visam a autopreservação de todas as espécies e do meio ambiente. Para compreender essa educação ambiental embasada no Princípio Responsabilidade de Jonas se faz necessário fazer um percurso histórico a fim de perceber que vivemos uma ética antropocêntrica, na qual os seres humanos só se responsabilizam por seres semelhantes a eles, e a qual precisa ser superada. Jonas demonstra a importância de nos preocuparmos com o todo e refletirmos a respeito da situação apocalíptica em que o planeta se encontra. A obra de Jonas nos proporciona meios para justificar a existência de uma educação ambiental bem preparada, com vistas a compreender a fundamental importância da sobrevivência de tudo o que vive e poderá vir a nascer. Referências Bibliográficas: JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC – Rio, 2006. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 137 SANTOS, Robinson dos. O problema da técnica e à crítica a tradição na ética de Hans Jonas. In: ___________. Ética para a civilização tecnológica: em diálogos com Hans Honas. 1. ed. São Paulo: Centro Universitário São Camilo, 2011. 21-40. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 138 O ESTADO REPUBLICANO E O EXERCÍCIO DE GOVERNANÇA EM NICOLAU MAQUIAVEL Alan Rodrigo Padilha13 UNIOESTE/ESCRILEITURAS/CAPES/INEP [email protected] RESUMO: O presente texto é uma introdução ao pensamento político de Maquiavel visando mostrar os aspectos de governança como fundamento central do pensamento maquiaveliano. As análises dos textos do Príncipe e do Discurso sobre a primeira década de Tito Lívio permitem compreender que interessa a Maquiavel o que diz respeito ao exercício poder e não a forma. Maquiavel se ocupa de uma política ligada à história; isto quer dizer que ele faz das ações concretas um caminho para pensar a vida política, inserindo nela a perspectiva do realismo político, rompendo com a longa tradição grega. Outro aspecto importante é mostrar o Maquiavel republicano, tão pouco difundido e de suma importância para pensar vários aspectos da política contemporânea, tais como o Estado republicano, as instituições políticas e seu funcionamento, as leis, à liberdade e a corrupção. Palavras-chave: Maquiavel, Governança, Estado e República. Nicolau Maquiavel é responsável pelo pensamento político autônomo sem ser condicionado por princípios válidos como modelo, sinteticamente; isto quer dizer que Maquiavel inaugura uma nova fase do pensamento político, a qual representou uma quebra no paradigma vigente entre os teóricos da política. Foi ele quem separou o estado da religião. Maquiavel opõe-se à ideia clássica grega de que toda ação política tem um ―telos‖, isto é, um fim. Não há um bem comum ou a concórdia entre os seus cidadãos, mas há uma sociedade política caracterizada por desejos antagônicos. Maquiavel, ao invés disso, coloca no centro de sua teoria o conflito. Por isso, podemos sustentar que ele rompe radicalmente com uma longa tradição, que remonta à filosofia grega, segundo a qual a comunidade civil está fundada na sociabilidade humana, no desejo do bem e do amor à concórdia. No lugar deste ideal Maquiavel coloca o conflito, fundado sobre a oposição dos humores que divide a sociedade em dois grupos 13Professor do Ensino Básico Técnico e Tecnológico do Instituto Federal do Paraná, IFPR, campus Umuarama. Pesquisador do Observatória Nacional de Educação/Projeto Escrileituras/CAPES/INEP. Mestrado em andamento em Filosofia na Universidade Estadual do Oeste do Paraná, UNIOESTE, Brasil. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 139 antagônicos – grandes e povo – impossíveis de serem saciados conjuntamente. (AMES, 2012, p. 213). O elemento central da teoria política em Maquiavel são os fatos políticos e é com essa característica que os enunciados do Príncipe e do Discurso são levados a efeito, é pela força do factual que as análises políticas ganham sentido. O realismo político é confirmado pelo capítulo XV de O Príncipe, que apresenta a noção de governo atrelado aos fatos políticos e não mais ao modelo falido dos princípios morais de um bom governo. Isto quer dizer que a manutenção do poder depende do governo comprometido com os aspectos da necessidade e não da moralidade. Resta ver agora como um príncipe deve conduzir-se com os súditos e os aliados. (...) Muitos já conceberam repúblicas e monarquias jamais vistas, e de cuja existência real nunca se soube. De fato, o modo como vivemos é tão diferente daquele como deveríamos viver, que quem despreza o que se faz e se atém ao que deveria ser feito, aprenderá a maneira de se arruinar. (MAQUIAVEL, 2001, p.93). Tal postura opõe-se ao pensamento político de Platão e de Aristóteles, caracterizado por um ideal de estado vinculado a princípios éticos e religiosos; ao propor um realismo político, Maquiavel inaugura uma nova perspectiva: a dos fatos políticos. A política maquiaveliana está comprometida com os aspectos gerais do pensamento político. Maquiavel, ao pensar Florença de sua época, não se restringe empiricamente a um dado particular, mas associa e atribui à natureza do governo questões próprias de governança, ou seja, indica as ações a seguir para obter êxito no governo do estado. É necessário que um homem só dite o modo, e que de sua mente dependa qualquer dessas ordenações. Por isso, um ordenador prudente, que tenha a intenção de querer favorecer não a si mesmo, mas ao bem comum, não sua própria descendência, mas a pátria comum deverá empenhar-se em exercer a autoridade sozinho; e nenhum sábio engenho repreenderá ninguém por alguma ação extraordinária que tenha cometido para ordenar um reino ou construir uma república. (MAQUIAVEL, 2007, p.41). No segundo capítulo de O Príncipe, Maquiavel versa sobre os principados hereditários e justifica a ausência do conteúdo sobre a república visto que outrora já dela tratara longamente (tal referência pressupõe os escritos do Discurso ou talvez de algum ensaio sobre a república que futuramente viria a se constituir no Discurso). A passagem de O ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 140 Príncipe para os escritos do Discurso sobre a primeira década de Tito Lívio representa mais precisamente o pensamento político maquiaveliano. Não tratarei aqui das repúblicas porque, em outra ocasião, discorri longamente sobre o assunto. Ocupar-me-ei somente dos principados e, retomado o raciocínio anterior, discutirei de que forma podem ser governados e mantidos. (MAQUIAVEL, 2001, p.5). Maquiavel trabalha com essas duas formas de governo visto ser essa a principal condição política em análise em suas obras, mas a questão que lhe é cara é a governança. As obras Discurso sobre a primeira década de Tito Lívio e O Príncipe representam uma mudança radical na forma de pensar a política porque têm como ponto de partida a realidade, ao contrário da República de Platão, que tem um modelo de estado ideal cuja experiência nunca veio a ser realizada. Muitos imaginaram repúblicas e principados que jamais foram vistos e que nem se soube se existiram na verdade, porque há tamanha distância entre como se vive e como se deveria viver, que aquele que trocar o que se faz por aquilo que se deveria fazer aprende antes sua ruína do que sua preservação; pois um homem que queira fazer em todas as coisas profissão de bondade deve arruinar-se entre tantos que não são bons. Daí ser necessário a um príncipe, se quiser manter-se, aprender a poder não ser bom e a se valer ou não disto segundo a necessidade. (MAQUIAVEL, 2001, p.73). O Discurso sobre a primeira década de Tito Lívio de Nicolau Maquiavel é organizado em três grandes partes, podendo ser compreendido da seguinte maneira; na primeira parte, o autor aborda questões sobre o funcionamento interno das repúblicas, desde sua origem à organização social política de governo estabelecimento das cidades; na segunda parte, versa sobre os aspectos da vida militar e, na terceira, discute a dinâmica dos Estados, sua ascensão e queda. No Discurso há uma proposta investigativa da ação política, uma metodologia para o entendimento dos fatos e para levar a efeito as ações do presente, sob a finalidade de agir com mais efetividade e evitar os erros. Assim como é nas artes, na medicina e em outras áreas do conhecimento, é necessário que a política também parta da observação dos fatos histórico. Vendo, por outro lado, que as virtuosíssimas ações que a história nos mostra, ações realizadas por reinos e repúblicas antigas, por reis, comandantes, cidadãos, legisladores e outros que se afadigaram pela pátria são mais admiradas que imitadas; vendo, aliás, que tais ações, em suas mínimas coisas, todos fogem, e que daquela antiga virtú não nos ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 141 ficou nenhum sinal; em vista de tudo isso, não posso deixar de admirarme e condoer-me ao mesmo tempo. (...) No entanto, na ordenação das repúblicas, na manutenção dos estados, no governo dos reinos, na ordenação das milícias, na condução da guerra, no julgamento dos súditos, na ampliação dos impérios, não se vê príncipe ou república que recorra aos exemplos dos antigos. (MAQUIAVEL, 2007, p.6). Está presente no Discurso sobre a primeira década de Tito Lívio a noção de realismo histórico e político. Maquiavel entende a política no campo dos fatos históricos, desvinculada da providência divina, essa história intra-mundana feita pelos homens, ou seja, para Maquiavel a história não tem um ―telos” e, portanto, a vida política é construção, um jogo de interesses entre os homens. Maquiavel faz uso dessa concepção de história com finalidade prática, de maneira a estabelecer por meio de ideias correlatas, os critérios para não incorrer nos erros do passado. Desejando, pois, afastar os homens desse erro, julguei necessário escrever, acerca de todos os livros de Tito Lívio que não nos foram tomado pelos malefícios dos tempos, aquilo que, do que sei das coisas antigas e modernas, julgar necessário ao maior entendimento deles, para que aqueles que lerem estes meus comentários possam retirar deles mais facilmente a utilidade pela qual se deve procurar o conhecimento das histórias. (MAQUIAVEL, 2007, p.7). Um exemplo dessa análise factual maquiaveliana é a fundação territorial do estado. O pensador florentino orienta os que instituirão as cidades a tomarem o devido cuidado em organizar o estado em local estratégico do ponto de vista militar para que possam garantir a segurança e evitar que tal organização represente ameaça aos estados vizinhos, por serem esses os dois motivos que gera o estado de guerra. Acredito que, para criar uma república que durasse muito tempo, seria necessário ordená-la internamente como Esparta ou como Veneza, situála em lugar fortificado, e com tal poder que ninguém acreditasse capaz de subjugá-la em pouco tempo; por outro lado, não deveria ser tão grande que infundisse terror nos vizinhos, e assim poderia gozar por longo tempo de seu estado. É por duas razões que se trava guerra contra uma república: uma é querer assenhorear-se dela: outra é ter medo de ser dominado per ela. (MAQUIAVEL, 2007, p.31). Para Maquiavel, o estado se funda no antagonismo entre o desejo do povo e dos grandes; a liberdade e a lei se constituem mais importante para a segurança do estado republicano, pois, nessa configuração os atores políticos transferem legitimamente ao estado a força de defender a própria liberdade. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 142 Ao caracterizar o desejo dos grandes como um desejo de comandar e o do povo como de viver em liberdade, Maquiavel deixa claro que o que funda a relação política não se confunde nem com a regulação do desejo de poder (dos grandes), nem com a regulação do desejo de liberdade (do povo). O que funda a relação política é, pelo contrário, a diferença definitiva dos humores. (AMES, 2009, p.184). O exercício da vida política no estado republicano se dá por duas formas fundamentais: a liberdade e a igualdade. A liberdade tem a ver com o espaço público da ação política, pois nela se revela um permanente embate entre grandes e o povo, o qual somente será mediado pela figura do estado. O importante nesse processo não é a igualdade formal perante a lei, nem se trata de igualdade material: a igualdade política é aquela em que ninguém tem precedência de comando, sendo a força da lei o que rege as ordenações políticas. Em Maquiavel, a construção de um estado funciona como uma organização da população em torno de seus interesses. Mesmo que conflitante, o estado é capaz de estabelecer e organizar, por meio da legislação, tais ordenamentos para a efetiva vida pública dentro de suas capacidades produtiva, assegurando aos cidadãos a liberdade e a segurança. A liberdade da república deve ser salvaguarda pelo povo. Este, por sua vez, deve zelar para manter as instituições alicerçadas no princípio da igualdade e evitar a qualquer custo a corrupção e toda sorte que atentem contra o estado livre. A observação da lei exige, por sua vez, os bons costumes, isto é, instituições sólidas e um povo moralmente forte. Entende-se que uma república na qual se insira a desigualdade faz com que as instituições e as leis, que outrora virtuosas e fortes, se tornem insuficientes e fracas, submetendo o estado à ruína. No estado republicano, o uso da força, ou seja, da violência deve ser praticado em último caso, em vista da legislação que seja capaz de diminuir e controlar as tensões. O emprego da força é importante, entretanto as leis devem limitar o seu emprego para que a população possa sentir segurança no estado livre. Todos os que com prudência constituíram repúblicas, entre as coisas mais necessárias que ordenaram esteve a constituição de uma guarda da liberdade: e, dependendo do modo como esta seja instituída, dura mais ou menos tempo aquela vida livre. E, como em toda república há homens grandes e populares, não se sabe bem em que mãos é melhor depositar tal guarda. Entre os lacedemônios e, nos nossos tempos, entre os venezianos, ela foi posta nas mãos dos nobres; mas entre os romanos, foi posto nas mãos da plebe. Portanto, é necessário examinar qual dessas repúblicas fez a melhor escolha. (MAQUIAVEL, 2007, p.23 – 24). ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 143 Na obra O Príncipe, encontramos a formação de uma unidade política em torno dos principados e sua ordenação, que pode determinar a duração e o exercício do poder. As ações políticas do príncipe na governança dos principados colocam em evidência a preocupação de Maquiavel, que é a manutenção do poder e a direção do estado. O que parecia ser uma apologia do estado absolutista não passa de um momento político para a criação e a manutenção do poder do estado. Evidentemente, não nos podemos furtar de conhecer o Discurso Sobre a Primeira Década de Tito Lívio, que vem ampliar nosso campo de visão sobre o pensamento maquiaveliano numa perspectiva do republicanismo e torna possível uma prática política vinculada à noção de estado como coisa pública e corpo político. Referências Bibliográficas: AMES, José Luiz. Liberdade e conflito: o confronto dos desejos como fundamento da ideia de liberdade em Maquiavel. In: Kriterion. Belo Horizonte, nº119, pp. 179-196, jun. 2009. ___________. Republicanismo conflitual e agonismo democrático pluralista: Um diálogo entre Maquiavel e Chantal Mouffe. In: Princípios. Rio Grande do Norte, nº31, pp. 209-234, jun/jun. 2012. MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. Tradução de MF. São Paulo: Martins Fontes, 2007. ___________. O Príncipe. 2ªed. Tradução de Maria Júlia Goldwasser. São Paulo: Martins Fontes, 2001. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 144 A EDUCAÇÃO PARA A CONDIÇÃO HUMANA PROPOSTA POR ROUSSEAU NO EMÍLIO Alexandre José Krul Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências [email protected] RESUMO: Rousseau propõem em suas obras reflexões a cerca da educação do homem para viver sua condição humana. A criança nasce e precisa ser inserida no mundo pelos adultos que vivem em sociedade. A única autoridade humana é sua capacidade racional de inserir-se no mundo sob o acompanhamento de um adulto, mas sem que esse tome as decisões, ou seja, o homem possui as rédeas de sua própria vida. Por meio da pesquisa de revisão bibliográfica objetivamos refletir sobre algumas ideias propostas por Rousseau principalmente no seu livro Emílio que definem a importância da educação da criança para viver sua condição humana em sociedade. Podemos entender que a ideia de Rousseau é fundamentar uma educação que visa a autonomia do homem que vive em sociedade com outros homens. A educação proposta por Rousseau não visa formar cidadão nem soldado, mas apenas desenvolver a humanidade do ser humano. Palavras-chave: Condição humana. Sociabilidade. Humanizar. A educação proposta por Rousseau, coloca o indivíduo como centralidade, mas percebemos que Rousseau não quer formar homens individualistas. Verificamos que em toda a sua obra, seus personagens, estão envoltos em questões propriamente humanas, e seus sentimentos nos direcionam a reflexões sobre a condição humana. A obra Emílio apresenta que a educação centrada no indivíduo que vive na sociedade inicia por questões de necessidade propriamente na espécie, ou seja, próprias de quem chegou ao mundo por via da natureza (ser biológico) e que necessita constituir-se humano, ou seja, ser humanizado. Rousseau não propõe uma educação instrumental e utilitária de ordem singular e nem meramente que vise suprimir necessidades técnicas do homem. Se por momentos Emílio fez uso de instrumentos e aprendeu uma profissão, essa aprendizagem objetivou suprir uma necessidade cultural capaz de facilitar o acesso e o uso a técnica. Por exemplo, para Rousseau, o aprendizado de técnicas visa a supressão de circunstanciais necessidades, sendo até mesmo que a maioria delas são criadas pelo próprio ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 145 homem quando vive em sociedade, cujas aprendizagens não são menosprezadas. O ato de saber tocar um instrumento musical, ou ser um hábil marceneiro, é tão importante quanto saber se relacionar com os outros indivíduos. A obra Emílio nos remete à reflexão sobre a atenção que se deve ter em relação a infância, pois o homem que conhecemos nasce na sociedade e nela deve viver. Possuímos dificuldades e desafios no processo de humanização. Quando o homem nasce suas principais necessidades são as do corpo e aquelas que brotam do amor de si. Chegará o dia em que esse homem terá que conviver com os outros; e o tempo é rápido, tanto que quando menos se espera, no menor descuido, este infante poderá estar dando ordens ao adulto. O sentimento propriamente humano é o amor de si, que quer tudo para si, que busca superar as necessidades, sendo indiferente aos outros; em primeiro lugar está o ―Eu‖, o indivíduo. Rousseau afirma ―O primeiro sentimento do homem foi o de sua existência; o seu primeiro cuidado, o de sua conservação‖ (ROUSSEAU, 2009, p.61.). Esse sentimento que parece ser individualista, não é um sentimento errado ou ruim, pois é um instinto de sobrevivência; visar o provimento das próprias necessidades não é um ato que deve ser ajuizado pela moral. Para colocar o amor de si sob freios, o homem precisa ser educado. Um indivíduo que está em desenvolvimento e sendo acompanhado pelo preceptor, vai estar muito mais ligado ao físico e a si mesmo, sem condições morais, até mesmo para chorar pela morte de outro homem. Não conhecendo o que é a dor, a não ser a sua própria dor, o homem não tem experiência da dor do seu semelhante. O indivíduo está tão preocupado consigo que nada está além de suas necessidades. Rousseau preocupa-se com a educação que inicia na infância porque percebe que a sociedade de sua época quer tratar a criança como um adulto, e isso é um problema, pois a constituição do ser deve reconhecer a ordem da natureza. Um infante não possui condições de resolver sobre questões políticas. Rousseau ressalta que as discussões políticas não podem ser a pauta de círculos infantis, por isso justamente se faz necessária a educação do indivíduo, que sai das ―mãos da natureza‖ e um dia irá ser adulto. A educação proposta por Rousseau em sua obra Emílio salienta os seguintes pontos: que a educação segundo a natureza oferece as condições para que os infantes desenvolvam, livremente, suas faculdades e disposições físicas e morais; no Livro I do Emílio, Rousseau (2004), afirma que ―antes da idade da razão, fazemos o bem e o mal sem sabê-lo, e não há moralidade em nossas ações, embora às vezes ela exista no sentimento das ações de outrem ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 146 que se relacionam conosco‖ (p.56). A educação de Emílio deve prepará-lo, tanto para ser homem, quanto para viver em sociedade, pois o homem não nasce homem, nem nasce preparado para a vida civil, sendo um ser amoral. Desde seu nascimento até a juventude, os indivíduos devem ser acompanhados, cuidados e protegidos pelo preceptor para que possam desenvolver suas capacidades físicas e intelectuais respeitando etapas e evitando que sejam influenciadas pelos preconceitos e vícios sociais estabelecidos. A educação promovida pela sociedade, com base na razão, quer adiantar e prevenir o homem, não o deixando fazer experiências próprias antes, e assim cria hábitos que atrapalham seu desenvolvimento. Por exemplo, querer que a criança aprenda por meio de sequências lógicas e abstratas um determinado conhecimento que o adulto demorou décadas para construir. Caso o adulto não deixe a criança fazer suas próprias experiências, e não a proporcione experiências, ele estará criando hábitos com base em seus gostos e conhecimentos, exigindo que a criança entenda e haja conforme informações recebidas em vez de ela mesma realizar a sistematização. Rousseau diz que a natureza fez o homem criança antes de ser adulto. Não temos autoridade para mudar esta ordem, e se assim quisermos estaremos pervertendo a ordem e as corrompendo e facilmente os motivos secretos tomaram o lugar dos verdadeiros motivos. Não há como querer instruir uma criança pensando e decidindo tudo por ela, ou querer realizar raciocínios que não envolvem os sentidos, mas podemos ensinar a criança a ser criança, para que na vida adulta, quando a razão aos poucos tomará o lugar dos sentidos, possamos o formar como homem. Não cabe ao preceptor suprimir reações causadas pelo próprio aluno, pois senão ele não aprenderá com os sentidos os resultados, por exemplo, de uma mentira. No Livro IV, Rousseau (2004) define que o homem possui um segundo nascimento, que é o nascimento para a vida moral, e a partir daí a educação deverá se preocupar em controlar as paixões para que não se corrompam, por meio da razão consciente que está tomando forma. Rousseau (2004) salienta que seria loucura, e até mesmo impossibilidade e insensatez por parte de alguém querer impedir o nascimento das paixões, pois elas são naturais e necessárias para a nossa conservação e desenvolvimento; ao mesmo tempo esclarece que o preceptor deve continuar presente, problematizando e provocando o raciocínio do aluno para que ele não se deixe afetar pelos ―mil riachos estranhos que são somadas as águas da fonte natural. A paixão natural é aquela que brota do íntimo e que é ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 147 denominada de amor de si, e as paixões estranhas que surgem do relacionamento com os outros, do amor-próprio. O amor de si, que só a nós mesmos considera, fica contente quando nossas verdadeiras necessidades são satisfeitas, mas o amor-próprio, que se compara, nunca esta contente nem poderia estar, pois esse sentimento, preferindo-nos aos outros, também exige que os outros prefiram-nos a eles, o que é impossível. Eis como as paixões doces e afetuosas nascem do amor de si, e como as paixões odientas e irascíveis nascem do amor-próprio (ROUSSEAU, 2004, p.289). Rousseau (2004), diz que há necessidade do preceptor acompanhar o homem neste momento ―para prevenir no coração humano a depravação que nasce de suas novas necessidade‖ (ROUSSEAU, 2004, p.190). As necessidades podem levar o homem à satisfação de desejos próprios a qualquer custo, e com isto facilmente dispensará qualquer forma de sacrifício. Nesse momento da vida os sentidos e o corpo estão preparados para satisfazer necessidade que brotam da natureza, mas a razão ainda não está madura para regrar a vontade de satisfazer as necessidades que brotaram das novas paixões. A educação do aluno sempre é racional e lhe reforça o poder de escolher e preferir o que lhe é melhor, e mais lhe agrada, mas no contato com os outros, os gostos podem ser transformados, e a comparação tornar-se a referência para tomar qualquer decisão. Cabe ao professor encontrar um método que previna e alerte o aluno sobre a ideia de que: o amor que quer tudo para si pode ser influenciada pelas ideias e gostos dos outros, quando a opção estiver embasada na comparação. Na relação com os outros facilmente ―a torrente de preconceitos arrasta-o; pra segurá-lo, é preciso puxá-lo em sentimentos contrários. É preciso que o sentimento acorrente a imaginação e a razão cale a opinião dos homens‖ (ROUSSEAU, 2004, p.298). A relação que o aluno tem com seus sentidos e com as coisas a sua volta é desafiante, mas bem mais tranquila, pois são relações de necessidade de sobrevivência, onde ele estará sozinho e precisará se resolver com o mundo das coisas. Em contrapartida, na relação com os outros ele terá que lidar com as próprias necessidades e aprender a decidir racionalmente sobre elas frente à diversidade de opiniões que brotam do amor de si dos outros homens. O amor de si quer tudo para si, neste sentido não há como imaginar uma sociedade na qual cada sujeito somente pense em si mesmo, e queira que todos pensem em agradar a um homem. Cada um estaria pensando em si mesmo, logo não poderia estar pensando nas ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 148 necessidades dos outros. Quem ama muito a si mesmo não consegue viver com os outros, pois sempre o eu virá em primeira instância. Conforme Rousseau (2004), a amizade será o primeiro sentimento de reconhecimento e valorização do outro. Dos sentimentos de amizade poderá brotar o amor, que é uma superação do sentimento de amor de si. Desta relação com os outros resultará o amor-próprio, que é corrupto em si mesmo, mas pode ser superado com o tempero da compaixão. Para Rousseau (2004) os homens devem se resolver por si mesmo, e nada está garantido neste mundo das relações. A educação dos homens, não é garantida previamente por nenhuma instituição. A educação do homem, mesmo proporcionada com grande maestria por outro homem, não está garantida. Pode corrompê-lo ou torná-lo virtuoso. Há educação dos homens cabe ―instruir o jovem mais pela experiência dos outros do que peça sua própria‖ (Ibid., p.326). A educação do homem a partir do estudo das relações que os homens possuem entre si na sociedade, é desafiantes, segundo Rousseau (2004), pois o mundo está cheio de grandes espetáculos e seus atores vestem belas máscaras. E nesta educação não basta mostrar a sociedade e afirmar que ali está o exemplo a ser seguido, mas justamente deve-se alertar e proporcionar ao aluno um exame mais cuidadoso sobre as relações sociais, afim de que perpasse o verniz superficial e generalista. Rousseau (2004) no Livro V realiza uma confissão para o seu aluno dizendo: Quando entraste na idade da razão, protegi-te da opinião dos homens; quando teu coração se tornou sensível, preservei-te do império das paixões. (...) No entanto, caro Emílio, ainda que tenha mergulhado tua alma no Estige, não pude torná-la invulnerável por inteiro; ergue-se um novo inimigo que ainda não aprendeste a vencer e do qual não te pude salvar. Este inimigo és tu mesmo. A natureza e a fortuna deixaram-te livre. Podias suportar a miséria, podias suportar as dores do corpo, mas as da alma eram-te desconhecidas; só estavas preso à condição humana, e agora estás preso a toas as afeições que adquiriste; aprendendo a desejar, tornaste-te escravo de teus desejos (p.654). A criança deve ser iniciada na vida social, mas afastada das opiniões prontas e fechadas que não permitem a formação da autonomia. Ela precisa observar as relações sociais não para julgar, mas para conhecê-las e escolher as mais adequadas; pois a opinião não pode resultar em opção, mas a opção deve ser racional e independente de qualquer instituição e autoridade. A única autoridade válida para o homem deve ser sua própria razão. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 149 Um adulto que já teve várias experiências de vida em sociedade, e já possui um conhecimento elaborado, precisa empregar um esforço enorme para se colocar no lugar da criança para acompanhá-la no desenvolvimento. Cada momento dia é desafiador para o preceptor conseguir mediar as experiências que seu aluno realiza. Não me parece errado pensar que depois que um conhecimento é elaborado, muitas vezes até esquece-se os detalhes de como ocorreu tal processo de sistematização. A educação nunca pode atropelar o tempo, pois se isto acontecer, com o objetivo de aligeirar processos de desenvolvimento por meio de resumos ou explicações abstratas, uma ideia pode ser corrompida, e com isto, a razão autônoma não estará sendo desenvolvida. A elaboração de conhecimento depende de cada indivíduo, por isso Rousseau (2004) preza pela educação individual que respeita a natureza humana. A razão sobre as coisas do mundo e as relações não são inatas ao homem, mas pode ser desenvolvida com auxilio de um acompanhamento adulto, que provoque por meio de situações reais o desenvolvimento racional. O preceptor estará cumprindo sua missão quando conseguir acompanhar o homem, e fazer com que esse desenvolva conhecimentos. De maneira alguma se deve perder de vista que todo o tempo dedicado a educação tem o foco a vida do homem em sociedade; e nessa vida, não cabe o egoísmo e mesquinharia. O homem deve estar preparado para decidir por si, mesmo sentido as opiniões dos outros homens fervilharem ao seu redor. Rousseau considera que as opiniões são os vícios da sociedade, pois elas impedem o desenvolvimento do homem. As opiniões são atitudes que facilmente podem manipular, caso não estejamos racionalmente preparados para detectar esse mal. Um homem preparado com uma educação natural terá mais sensibilidade, clareza e liberdade para decidir, pois terá condições de dialogar de igual para igual com outro homem; qualquer argumento não o convencerá. Hábitos, paixões e vontades não podem ser confundidas com necessidade, utilidade e liberdade. O homem deve nascer e crescer livre, sem esquecer que sua vida não é vivida no isolamento, mas na sociedade. Quantas pessoas vivem numa mesma sociedade, e todas possuem liberdade! De que forma poderão viver conjuntamente? Em associações regradas pela compaixão, mantendo assim os laços humanos e repugnando a maldade. A vida na República, onde as instituições e as leis são criadas pelos homens livres para os próprios homens que amam a verdade e a justiça, é o melhor locar para se viver. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 150 ―A sociabilidade não é, portanto, uma inclinação natural, ela foi instituída pelos próprios homens. Tal é a conclusão à qual Rousseau tinha chegado no Discurso sobre a desigualdade‖ (DERATHÉ, 2009, p.224). A leitura que Derathé (2009) faz sobre a sociabilidade proposta por Rousseau, é a de que ela é um sentimento inato, que só existe ―em potência‖ no homem natural, desenvolvendo-se somente com a troca entre semelhantes. A sociabilidade é a condição que o homem deve alcançar por meio do entendimento interior, baseado no livre arbítrio, de que não se pode somente agir com base no amor-próprio. Não é por meio dos raciocínios de outrem que o homem consegue raciocinar. Mas também ninguém consegue viver bem em uma sociedade se somente pensar em si mesmo, e achar de que tudo e todos vivem para satisfazer suas vontades. Em resumo: a educação deve oferecer condições para que a criança quando se torne adulta faça bom uso de suas capacidades de julgamento e de escolha; a educação segundo a natureza destaca e relaciona, pois, a dimensão da formação do indivíduo, (infante que chega ao mundo), com a sociedade na qual será integrado quando adulto, exercendo seus deveres de cidadão. Para Rousseau todo o caminho educacional proposto em sua obra Emílio visa formar o homem para viver na sociedade. Quando Rousseau fala em sociedade, se refere a esta palavra como sendo de cunho local, no sentindo do indivíduo viver sua vida em um determinado espaço e tempo (caracterizado com patriota), mas possuir sentimentos cosmopolitas, ou seja, de um cidadão global, que saiba ―ler‖ e interpretar o mundo em que vive. Embora segundo Garcia (2010): nenhuma lei, nenhum costume de um povo pode ser critério, ou medida, para os outros. Por isso, ao conhecer as boas inclinações do homem, as virtudes e os vícios sociais e os princípios do direito político, Emílio deve viajar para curar-se de uma quimera. Isso feito, Emílio poderá escolher um lugar no mundo sem a expectativa de encontrar um bem absoluto para si mesmo e para a sociedade em que viverá (p.89). A educação segundo Rousseau (2004, p.7) não pode deixar-se ao cargo da sociedade, senão esta abafaria a educação natural. A educação não pode iniciar por mostrar à criança como ela deve agir frente à determinada situação, pois esta seria uma educação para a sociedade com base em ensinamentos corrompidos; o homem possui suas paixões pessoais com as quais deve aprender a lidar, para não querer exercer domínio sobre os ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 151 outros e as coisas; então percebemos que para viver na sociedade o homem deve ser acima de tudo educado para ser homem. Rousseau propõe uma educação do homem natural com o objetivo de fazer com que este desenvolva suas faculdades individuais livremente; então pensa a educação para seu aluno imaginário de uma maneira que primeiramente respeite a liberdade física, pois não há como ir contra a natureza humana; posteriormente seria a vez da educação moral. A condição humana para Rousseau está no próprio humano, pois de que vale a educação se não considerar o homem enquanto tal na sua única condição humana que é viver na sociedade? ―Aquele que, na ordem civil, quer conservar o primado dos sentimentos da natureza não sabe o que quer. Sempre em contradição consigo mesmo, sempre assando das inclinações para os deveres, jamais será nem homem, nem cidadão; não será bom nem para si mesmo, nem para os outros‖ (ROUSSEAU, 2004, p.12). Com o desenvolvimento físico, a educação moral reforça as premissas diretamente ligadas à razão autônoma do indivíduo, que fará com que este viva sem se deixar influenciar pelas opiniões sociais ou individuais. Referências Bibliográficas: GARCIA, Claudio Boeira. Rousseau: a condição humana e a política. Cadernos de Ética e Filosofia Política 16, 1/2010, pp. 81-96. http://www.fflch.usp.br/df/cefp/Cefp16/indice.html DERATHÉ, Robert. Rousseau e a ciência política de seu tempo. São Paulo: Editora Barcarolla, 2009. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio, ou, Da educação. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. ___________. Textos autobiográficos & outros escritos. São Paulo: Editora UNESP, 2009. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 152 HANNAH ARENDT: NOÇÕES DE POLÍTICA, PODER E LIBERDADE. Andrei Gati da Costa UNIOESTE/CNPQ [email protected] Orientador: Rosalvo Schutz RESUMO: O presente trabalho procurou compreender a relação existente entre política e liberdade segundo a teoria da pensadora Hannah Arendt, mais especificamente em sua obra ―A condição Humana‖. Percebemos que a autora diferencia liberdade de livre arbítrio. Condição originária da liberdade, segundo a autora é a política, experimentada em espaços públicos onde indivíduos simultaneamente diferentes embora não desiguais fazem uso da ação e do discurso. Palavras-chave: Condição humana. Vita activa. Politica. Liberdade. Poder Em sua obra ―A Condição Humana‖ Hannah Arendt nos sugere o que seja condição humana propriamente dita e quais são os elementos que a constituem. Segundo a referida autora a condição humana diz respeito aos modos sistemáticos de vida, seja ele o natural (a vida dada ao homem na terra em seu estágio mais elementar) ou o convencionado (onde os seres humanos em conjunto deliberam e criam paradigmas regulamentadores do modo de vida da sociedade como um todo). A condição humana nos remete diretamente ao conceito de vita activa, que para a autora consiste em três atividades fundamentais, a saber: Labor, Trabalho e Ação. Quando a pensadora analisa a condição humana, observa que essas atividades não podem ser de forma alguma dispensadas enquanto a condição humana não mudar. Façamos uma breve analise da cada atividade e suas personagens humanas correspondentes. Faz-se sabido que dentre todas as atividades o Labor é a primeira, justamente por ser esse movimento fundamental e garantidor da vida e de manutenção da espécie, ou seja, é um processo que corresponde ao âmbito dos mecanismos biológicos e fisiológicos da vida, é necessariamente uma labuta da dimensão orgânica. Sendo que o processo vital não é ligado a liberdade, pois possui sua própria necessidade que é a vida, só podemos falar em liberdade no âmbito do labor na medida em que ele é um processo que acontece de forma livre, mas não como um desígnio apolítico da política, ele constitui um fenômeno de margem, que estabelece limites ao qual o governo não deve transpor, pois podem pôr em ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 153 jogo a própria vida e seus interesses imediatos, que constituem a labuta orgânica. A condição humana do Labor é a própria vida, ele corresponde às atividades de manutenção, tudo o que visa à manutenção seja do próprio corpo ou de objetos é Labor. Tomar banho, fazer comida, lavar roupa, as atividades de manutenção de uma ponte, enfim todas essas atividades em conjunto com os processos biológicos pertencem ao Labor. O produto gerado por ele é consumido quase tão rapidamente quanto o esforço é despendido, justamente por ser de caráter incessante, ou seja, enquanto houver vida deve necessariamente existir o labor. A personagem humana do labor corresponde ao animal laborans, sendo este que ganha à vida, mas está enredado fundamentalmente em mantê-la. Visto que esta é de caráter urgente uma vez que este é um movimento primordial, ou seja, é a partícula que garante a vida enquanto tal e, portanto não pode sofrer influência das duas outras atividades. A saber: Fabricação e Ação (política). A segunda atividade da condição humana é o Trabalho ou Fabricação, que corresponde a um movimento por meio do qual o homem transforma a natureza, e é capaz de trazer coisas novas ao mundo, trata-se da ação transformadora do homem sobre a matéria natural. Natureza aqui tomada como algo não modificado pela forca de trabalho exercida pela mão do homem, aquilo que se mantem intocado desde os primórdios do mundo. A personagem humana do trabalho, a saber, é o Homo Faber, aquele que fabrica que cria, e com suas próprias mãos age e transforma a matéria em objetos claramente distintos das coisas naturais. Diferente do labor o trabalho gera produtos utilizáveis (ex: Carros, estradas, prédios, pontes, cadeira, etc.) e dotados de durabilidade, ou seja, transcendem a existência de seus criadores. A atividade da fabricação tem início e fim. A condição humana do Trabalho é a própria mundanidade, e o seu resultado é o mundo, sendo que este é essencialmente diferente da natureza, e portanto, concernente ao artefato humano como produto das mãos do homem. A terceira atividade é a ação ou política que se configura como o nosso principal objeto de estudo, a partir deste ponto explicitaremos a sua relação com os conceitos de poder e liberdade. Partiremos de uma máxima que se infere a partir do pensamento político de Aristóteles e que nos diz o seguinte: ―a razão de ser da política é a liberdade‖. Mas o que é a política para Hannah Arendt? Essa diz respeito aos modos que os homens se relacionam sem violência, a fim de sanar necessidades e problemas em comum. Porém para poder exercer a política os ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 154 homens devem ter se libertado das atividades de manutenção do organismo e fabricação, uma vez que, para a autora, essa não sofre influência nem do labor enquanto uma necessidade, nem do trabalho enquanto utilidade. Aqui se afirma a importância do conceito de liberdade, e liberdade para Hannah Arendt não é: ―um ―liberum arbitrium‖, uma liberdade de escolha arbitrária e decide entre duas coisas dadas, uma boa e uma má‖ (ARENDT, 2007, p. 197) Liberdade para a referida autora se afirma como ação no âmbito do espaço público, ou seja, uma liberdade essencialmente política, na qual necessita: (...) além da mera liberação, da companhia de outros homens no mesmo estado, e também de um espaço público comum para encontrá-los – um mundo politicamente organizado, em outras palavras, no qual cada homem livre poderia se inserir por palavras e feitos (ARENDT, 2007, p. 194). Não existe nessa atividade intermédio das coisas ou matéria, pois por habitarem juntos o mundo, os homens são capazes de colocar a si mesmos mediante a ação e o discurso. A Ação remete a condição humana que se revela quando os seres-humanos em sua pluralidade se reúnem em espaços públicos, e para além dos interesses individuais decidem livremente. É a única atividade humana que não pode ser pensada fora do âmbito de uma sociedade de homens, uma vez que a condição humana da ação é a própria pluralidade. Seu tipo humano de Ação denominaremos de “Homo Politicus” (mesmo sabendo que esse termo não aparece na obra). É como vemos na própria obra: Não nos é imposta pela necessidade, como o labor, nem se rege pela utilidade como o trabalho, pode ser estimulada, mas nunca condicionada, pela presença dos outros em cuja companhia desejamos estar; seu ímpeto ocorre do começo que vem ao mundo quando nascemos e ao qual respondemos começando algo novo por nossa própria iniciativa. Agir, no sentido mais geral do termo significa tomar iniciativa (ARENDT, 2007, p.190). Hannah Arendt não considera o homem de ação um ―Animal‖ que apenas labora em prol da manutenção da vida e muito menos uma espécie de ―fabricante‖ que cria um mundo a partir de objetos, mas a Ação é a atividade política por excelência, e a política é a expressão por excelência da liberdade possível quando indivíduos plurais se juntam em espaços públicos e por meio de ações e palavras iniciam algo novo. A pluralidade humana é esse fator que comporta duplo aspecto, igualdade e diferença, se não possuíssemos ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 155 estruturas e alguns pressupostos iguais, seriamos incapazes de nos entendermos entre nós, ou de elencarmos metas ou planos que prevejam as necessidades das futuras gerações, por outro lado, se os homens fossem todos iguais e não diferissem em relação a qualquer outro que existe, existiu ou vai existir, não seria necessários a ação e o discurso para se fazerem entender. Podemos perceber a importância e o duplo aspecto contido na pluralidade no próprio texto: A pluralidade humana, condição básica da ação e do discurso tem o duplo aspecto de igualdade e diferença. Se não fossem iguais, os homens seriam incapazes de se compreender entre si ou a seus ancestrais, ou de fazer planos para o futuro e prever as necessidades das gerações vindouras. Se não fossem diferentes, se cada ser humano não diferisse de todos os que existiram, existem ou virão a existir, os homens não precisariam do discurso ou da ação para se fazerem entender. Com simples sinais ou sons, poderiam comunicar suas necessidade imediatas e idênticas (ARENDT, 2007p.188). Mas interligado a esse conceito de liberdade temos o conceito de poder, que veremos a seguir. Diferente de outros pensadores da ciência política, Hannah Arendt entende o poder não como a possibilidade da imposição da vontade individual de um sujeito, mas uma faculdade que possibilita um acordo em relação ao exercício da ação (política) no contexto da livre comunicação desprovida de violência, ou seja, há uma grande valorização do diálogo e do espaço público. Para Hannah Arendt, poder é o acordo quanto à ação comum, a comunicação livre de violência e orientada para o entendimento recíproco, há uma grande valorização da comunicação e da reciprocidade comunicativa. O poder resulta da capacidade humana, não somente de agir ou de fazer algo, como de unir-se a outros e atuar em concordância com eles. O conceito de poder possui um fim em si mesmo, serve para preservar a atividade humana em sociedade, o poder das convicções orienta o entendimento recíproco e não para o sucesso próprio, ele é construído na ação comunicativa e é a consequência do discurso e entendimento mútuo entre os participantes. Pode-se dizer que é muito trivial confundir ―poder‖ como expressão de ―força‖. Sendo que a convivência humana pacifica é a verdadeira e legitima fonte de geração do poder,visto que o poder se configura como possibilidade de ação e tomada de iniciativa que ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 156 se afirma no âmbito público levando em consideração a necessidade da pluralidade humana, na tão disseminada acepção do ditame popular: A união faz a força. Desse modo, Arendt identifica naquele que se isola por algum motivo da convivência humana, renúncia ao poder e torna-se impotente, mesmo que todos os seus motivos e razões sejam válidos. Assim a geração do poder não é uma espécie de trabalho, mas uma ação conjunta, entre os homens, na qual propicia por meio do discurso a revelação de suas peculiaridades. A não-violência é um fator fundamental e que é capaz de proporcionar o encontro dos homens por meio da palavra. E esta é necessária, pois na condição humana, não se mira um determinado fim (individual), mas a constituição de uma meta de caráter comum e que sirva como fator de aglutinação. Segundo nossa autora, quando a palavra é usada tão-somente para atingir um fim em especifico, consequentemente perde sua significação política original. Visto que está atrelada fundamentalmente a política, e entende a política não como algo instrumental e, ou pragmático, mas um espaço no qual vige a igualdade e o interesse comum. Como exemplo do contraste entre poder político e a violência, temos a ação estratégica, que para H. Arendt é essencialmente apolítica. Ela é violenta e instrumental e por isso é colocada fora da esfera da política. A não-violência é esse movimento fundamental que, por conseguinte é fonte geradora do poder, que advêm do agir e viver conjuntos pautados na união e harmonia, sendo a violência o extremo contrário, o produto gerado é exclusão da interação e cooperação social. Em suma a ausência de diálogo. Como dito anteriormente, devemos sempre ter em mente que liberdade em Hannah Arendt remete necessariamente a liberdade política, ou seja, é um meio de tornar a ação efetiva, da qual se podem originar inúmeras consequências, visto que as mesmas dentro do âmbito da ação são imprevisíveis. Mas, para se conservar a possibilidade da prática da liberdade, os seres humanos devem conservar o espaço público, e tendo em vista a manutenção do direito básico, que é ter cidadania, ou seja, o direito a ter direitos. Se partirmos de uma breve analise do mundo grego, principalmente o cenário político de Atenas, concluiremos que a Pólis sempre foi e continua sendo a origem da liberdade para a referida autora, pois como vimos anteriormente liberdade neste pensamento em especifico diz respeito ao âmbito civil, ou seja, só há liberdade a partir do ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 157 momento em que o estado é fundado, e que a política não é instrumentalizada, a fim de atingir interesses próprios. Arendt discorda de Aristóteles na medida em que diz que o homem não é um ser essencialmente político, mas sim apolítico, justamente por conceber que em seu estágio mais elementar não passa de uma espécie de ―animal‖ que labora em prol da própria vida, nem a medida em que se configura como um fabricante que apenas constrói coisas por meio da modificação da matéria, mas a medida em que ascende a esfera política, por consequência, o homem cria o estado à medida de sua liberdade. Neste ponto Arendt se aproxima de Hobbes, justamente por este entender que a política é uma convenção, mas não um instrumento, que serve de apetrecho a manutenção da vida, muito pelo contrário, quando se configura de tal forma, constatamos segundo a autora que, temos um processo de degradação e não de construção. Tomemos como exemplo um homem isolado em uma ilha remota, este pode exercer duas atividades, o Laborans e o Faber, mas nunca a atividade política, pois este, segundo o pensamento arendtiano necessita da pluralidade. Mas, em suma, a não-violência é o elemento definidor do exercício do poder, deste modo a política deixa de ser pragmática, e passa a ser a construção do espaço público e da possibilidade de exercer a liberdade em sua totalidade. Onde há política, há espaço público, vige o diálogo e há liberdade, uma vez que essas são as condições fundamentais para a existência da mesma, visto que um sistema onde impera o autoritarismo ou seja o não dialogo não pode se não, ser considerado uma violenta ditadura e jamais poderá se configurar como a legitima política. Referências Bibliográficas: ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. ___________. O que é política? Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. ___________. O que é liberdade? In: Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2007. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 158 INVESTIGAÇÃO ACERCA DO UNIVERSO E SUA POSSIBILIDADE DE COMPREENSÃO Carlos Henrique Favero UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná [email protected] Orientador: Marcelo Penna-forte RESUMO: O presente trabalho trará em discussão ideias relevantes sobre a caracterização do universo. Virá à tona a possibilidade de sua infinitude, que resultaria na sua incompreensibilidade do mesmo, ou sua finitude, sendo o motivo de seu não conhecimento, nossa limitação cognitiva. A defesa principal é o fato histórico da situação racional aquém em relação ao desenvolvimento do universo: muito tempo de evolução natural para pouco tempo de entendimento humano. Esse engendramento se passa em toda obra, tendo como base um ensaio acerca de conceitos de filosofia e ciência, as mesmas como inseparáveis na procura do conhecimento. Palavras-chave: Universo. Infinitude. Limitação Cognitiva. A quantia de teorias levantadas a respeito dessa questão – que me parece tão imensurável quanto o próprio universo – serviram e servirão de base para criações de paradigmas, possibilitando sempre o progresso da ciência e da filosofia. Como tal estudo não se encontra resolvido, são bem vindas, quaisquer que sejam, teorias que apresentem validações lógicas com as bases científicas tidas atualmente. Em toda a história dos estudos cosmológicos, uma das coisas que mais se discute é a infinitude do universo. No entanto, pouco se ressalta – é o que no momento posso afirmar – que tal predicação possa vir de nossa incompreensão da natureza em uma situação aquém - não um postulado de que jamais seremos capazes de compreendê-la, mas de que ambos se desenvolvem, estando o universo além de nossa compreensão - não descartando a hipótese de que futuramente podemos conhecê-lo plenamente. A partir daí, entende-se que o universo não é infinito, mas sim, nossa capacidade de compreensão que não alcança os limites do mesmo. Quando cito acima que paradigmas foram criados, possibilitando o avanço dos estudos científicos e filosóficos, um dos principais a ser referir, é a descoberta feita por Edwin Hubble, em 1920 sobre a expansão do universo. De fato, ele se encontra em ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 159 constante expansão; e o mais assustador é que, quanto mais distante os corpos se encontram, mais rápido isso acontece. Temos pois, dois principais pontos a serem discutidos: nossa limitação, seja cognitiva ou instrumental – que podemos atribuir, respectivamente, filosófica e científica – a cerca do universo; e o mais desconfortante, para onde nosso universo está expandindo. Antes disso, vale discorrer algumas linhas deste trabalho a respeito das devidas limitações atribuídas à filosofia e à ciência que servirão de base para um melhor entendimento. Tendo em vista uma das principais ideias de ―O balde e o holofote‖ de Karl Popper (1902), de que a filosofia precede a observação - sendo a primeira aquilo que induz ao conhecimento e a segunda aquilo que comprova - atribuir a limitação cognitiva em termos filosóficos, nos coloca aquém de apresentar teorias que dêem conta de explicar o funcionamento do universo; e nossa limitação instrumental, ligando-a à científica, nos colocando ainda incapazes de criar utensílios que cheguem a observar o que realmente acontece – seja lá o que o temos a conhecer. Filosofia precede ciência, a segunda dá garantia à primeira, mas não se separam. Do que vale uma filosofia apenas ideológica e uma ciência sem uma base teórica? A primeira pode parecer uma brincadeira de fazer de conta – levada muito a sério – de exercícios lógicos - que na maioria das vezes tende a provar a existência de um deus -, e a segunda, nos colocando em uma situação estática, sem evolução – e se houver alguma, muito lenta -, pois não há comprovação apenas por consecuções de fatos, ou seja, sem antes ter algo que induzisse àquilo. Pode-se afirmar, portanto, que a filosofia é aquilo que liga todas as ciências – o estudo primeiro das coisas. Como que se todas as ciências tivessem um fio condutor lógico, cada uma com suas distinções, tendo a filosofia como refúgio a se buscar conceitos estabelecidos, seja da moral, dos fenômenos, do ser, ou qualquer assunto. Se levarmos em conta, de que a filosofia levanta as hipóteses e a ciência comprova, seria como se essa primeira lançasse suas ramificações – ciência – para resolver suas próprias questões; como se o inventor usasse de suas invenções para buscar respostas para suas indagações e quando resolvidas, arquivadas quase que como dogmas. Esse levantamento, apontando especificações da filosofia e da ciência, é crucial para tentarmos entender o universo, nesse caso, trazer em discussão a possibilidade de caracterizá-lo. Ver-se-á, a partir deste trabalho, a ascensão desse problema, colocando a filosofia um tanto limitada para explicação do mesmo; e sua ramificação científica, ainda mais. Hipóteses serão levantadas advindas de hipóteses, induções atribuídas com base nos ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 160 paradigmas já estabelecidos, e tendo como preceito, sobre esse assunto não estar resolvido, isso abre um leque de ideias a serem discutidas. É comum termos na história da filosofia autores que negam a possibilidade de conhecer plenamente qualquer objeto da natureza, sendo esse o ponto de partida desse trabalho. Segundo David Hume, por mais que estejamos acostumados com vários acontecimentos naturais, como o aparecer do Sol, não temos como ter a certeza que o mesmo aparecerá no próximo dia; Kant já deixa claro que não vem ao caso estudar o objeto em si, mas sim sua representação; ambos creditam à razão, a responsável de estabelecer verdades. Alguns racionalistas conseguem ―provar‖ a existência de uma Substância necessária através de argumentos lógicos e nada mais disso, negligenciando a experimentação. De certa forma, os exemplos dados acima, nos mostram que nossa capacidade intelectual não dá conta de explicar o mundo, seja ele por ser infinito, ou por nossa limitação cognitiva. Minha defesa, a partir desses escritos, é em prol à segunda opção, entendendo que estamos ―atrasados‖ em relação à expansão do universo. Façamos o seguinte exercício mental: há mais de dez bilhões de anos, segundo a teoria do ―Big Bang‖, houve a tal explosão que se desenvolveu - e continua desenvolvendo – no que temos hoje por universo. Ou seja, todo ele estava condensado em algo extremamente minúsculo. Com o passar do tempo foi crescendo e ganhando forma. Tenho como válido imaginar o universo, pouco tempo após seu surgimento, ter o tamanho de uma maçã, algum tempo depois de uma melancia, e por conseguinte, o universo todo tendo o tamanho do planeta Terra. Agora, levemos em consideração o mais avançado e potente telescópio e imaginemos logo o seu limite; de fato, esse instrumento não tem a devida capacidade de alcançar o possível limite do universo, e boa parte da ciência acredita estar ―infinitamente‖ longe dessa façanha. Logo, se relacionarmos nossas capacidades cognitivas e instrumentais de hoje, com a hipótese acima, do universo ainda muito pequeno – do tamanho da Terra -, saberíamos pelo menos seu tamanho. Minha intenção é a defesa de que há muito tempo o universo está em expansão e nós, seres humanos, habitamo-lo enquanto homo erectus14 segundo o livro ―O homem pré-histórico‖ de principal autoria de Clarck Howell – há pouco mais de 500 mil anos. Também devemos levar em consideração o fato de duas espécies de homo-sapiens terem sido extintas, o que pode ter deixado mais lenta a evolução humana. Ou seja, é muito tempo de expansão para pouco tempo de O homo-erectus foi o primeiro homem de nosso gênero, seus traços físicos estão muito próximos do homem atual; foi a primeira espécie a fazer uso do fogo. 14 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 161 conhecimento! Há pouco menos de mil anos, a crença ainda era na teoria geocêntrica e nosso universo não passava - ideologicamente – de nosso sistema solar, com sérias desavenças com a teoria atual; e não pensemos através disso, que os paradigmas da época não foram importantes, pelo contrário, tais bases foram necessárias para a nossa concepção atual. É precoce deliberarmos a ideia de um universo infinito, ou já nos colocarmos incapazes de compreendê-lo. Caracterizado por Alexandre Koyré, por ―espalhar o ceticismo e a perplexidade‖ (1979, p. 38), Copérnico revoluciona a ciência não só pela ideia de mudar o local de visão das orbes, isto é, de simular sua visão como se fosse estar na posição do Sol para tentar entender melhor os movimentos celestes15 - e a partir daí, sendo o grande autor da teoria heliocêntrica -, mas, tendo em sua teoria um detalhe crucial, a afirmação de um universo finito, em um espaço ilimitado . Enquanto a teoria ptolomaica era sustentada, advinda da teoria aristotélica de mundo, Copérnico, tem a ideia inovadora, sendo para muitos, a mais importante revolução científica de todos os tempos. Para entendermos melhor, devemos ter conhecimento de como era a descrição ordenária cosmológica do medieval: (...) a primeira e suprema dentre todas (esferas) é a esfera das estrelas fixas, que contem a tudo e a si própria e que está, por conseguinte em repouso. Na verdade, trata-se do lugar do mundo que serve como referência para o movimento e a posição para todos os outros astros. (...) (depois da esfera das estrelas fixas) vem Saturno, que executa seu circuito em trinta anos; depois dele, Júpiter, que se move numa revolução duodecenal. Então, Marte, que circungira em dois anos. O quarto lugar nessa ordem é ocupado pela revolução anual, que, como já dissemos, contém a Terra, como um orbe da Lua como um epiciclo. No quinto lugar, Vênus resolve em nove meses. Finalmente, o sexto lugar, é ocupado por Mercúrio, que gira no espaço de oitenta dias. (KOYRÉ, 1979, p. 41).16 O universo de Copérnico é finito e esférico, tendo como centro o Sol. Por mais que pareça que Copérnico seja um defensor da infinitude do universo, por trazer superficialmente em discussão que além da esfera das estrelas teríamos uma ―extensão espacial indefinida‖, ele apenas a coloca em condição de imensurável; não podemos conhecer seus limites e dimensões, por tamanha grandeza. Cabe aqui evidenciar Tendo também a crença e a confortabilidade de que é muito mais aceitável a condição de estar em repouso - também considerando nobre e divino - do que a idéia de mudança, dessa forma, a estaticidade do universo se encontra no Sol; atribuindo movimento à terra. 16 A necessidade de explicação matemática do universo vem à tona, sua medição é de 200.000.000 de quilômetros. 15 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 162 que tal afirmação, da não compreensão desse espaço, se dá por nossas limitações. No entanto, deixa brechas para discutir o que viria além dessa última esfera e curiosamente tal assunto é colocado como filosófico por ser imensurável17. Remete-se o pensamento copernicano, ao que foi colocado acima: essa é uma oportunidade de levantar hipóteses. Trazendo em cheque a interpretação por Koyré de Copérnico que ―o infinito, na verdade, não pode ser movido ou atravessado‖ (1979, p.40), temos pois, a prova lógica e ideológica de que o universo não pode possuir qualquer estrutura infinita. Se compreendo algo e constato esse mesmo como finito, não tenho como somar extensões desse mesmo com a intenção de obter o infinito; pois de partes finitas não se faz infinito; não há também, como repartir o infinito – duas ―metades‖do mesmo: (...) inter finitum et infinitum non est porportio18. Não nos aproximamos do universo infinito aumentando as dimensões de nosso mundo. Podemos torná-lo tão grande quanto quisermos; isto não nos situa em nada perto da infinitude. (KOYRÉ, 1979, p.42). É claro que se tem como premissa a compreensão de algo, e sendo assim, posso evoluir à partir do mesmo. No entanto, podemos nos lançar em emaranhados céticos declarando que nada se pode conhecer pela possível estrutura infinita da natureza em geral. A questão é: se todos os objetos possuem tais infinitudes, ou nossa mente é possuidora de estruturas infinitas – capaz de entender o objeto - ou nada que dizemos – por entender – é verdadeiro. A segunda opção não é de descartar, pois a própria ciência não trabalha com verdades, mas sim, aproximações, ―verdades momentâneas‖, e basta uma teoria que comprove que a atual esteja errada, para que tenhamos o possível início de uma crise científica, necessitando de novos paradigmas. Me parece mais válido, crer na finitude do universo – e mais confortável. Mesmo nesse ―conforto‖, Copérnico foi também capaz de despertar um desconforto maior. Levando em consideração a constante expansão do universo - de Hubble -, e esse mesmo, finito – de Copérnico -, nos cabe pensar: para onde tudo isso está indo? Segundo Copérnico, o mundo é finito, distribuído em um espaço ilimitado; nesse caso, há uma segunda questão a se preocupar – como se a discussão da finitude ou infinitude do universo fosse estar resolvida – para onde segue tal expansão, ou em que se Fica claro que Copérnico não se coloca como filósofo, estando à disposição de discorrer apenas o mensurável; o oposto é puramente de caráter filosófico. 18 Pode-se traduzir como ―Não há proporção entre o finito e o infinito‖. 17 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 163 sustenta? Algo que podemos constatar é que, já existia esse ―espaço ilimitado‖ antes do Big Bang. O que muda aqui é apenas o alvo da discussão, no entanto, caímos no mesmo problema – pois o que pode se entender de ilimitado, senão infinito? É de se concluir que, se quisermos ―resolver‖ tal questão, deve ser em usos lógicos racionais. Pode-se levantar a hipótese advinda de Nicolau de Cusa, em sua obra De Docta Ignorantia (1440), que a incompreensibilidade do universo tem como base seu estado infinito e proporções inacabadas; o mesmo é afirmado em relação à incompreensão da natureza de Deus, por Ele mesmo possuir estado infinito. Logo, se ligarmos essa ideia de Deus e universo à noção de espaço ilimitado de Copérnico, podemos afirmar que o mundo se distribui no próprio Deus – o Espaço Ilimitado. Confesso um devido desconforto na limitação de não poder afirmar outra coisa senão a colocação dessa ―Substância primeira‖ como um dos resultados desse trabalho; no entanto, é tudo que temos. A crença que coloco, de que algum dia, algum ser racional possa compreender o universo, seja o ser humano ou outra espécie que possivelmente habitaria em nosso lugar – ou talvez outra espécie que já dê conta de resolver tal assunto – nos remete à uma outra colocação, talvez utópica: seguindo o raciocínio tido no decorrer desse trabalho – na colocação de um universo limitado, em constante progressão e de que ainda não encontramos limites para nossa mente - basta que ―alcancemos‖ o desenvolvimento do universo para compreendê-lo. Referências Bibliográficas: HAWKING, Stephen. Uma nova história do tempo. Rio de janeiro: Ediouro, 2005. HOWELL, F. Clark. O homem pré-histórico. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1969. HUME, David. Uma investigação sobre o entendimento humano. São Paulo: UNESP, 2003. KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008. KOYRÉ, Alexandre. Do Mundo Fechado ao Universo Infinito. São Paulo: Forence-universitária, 1979. KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2006. POPPER, Karl. Conhecimento objetivo: Uma abordagem Evolucionária. Belo Horizonte: Itatiaia, 1902. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 164 REFLEXÕES FILOSÓFICAS ACERCA DO MISTICISMO À LUZ DO INTUICIONISMO E DO NEO-KANTISMO: KANT E JUNG Christian Carlos Kuhn [email protected] Orientador: Marcelo Pennaforte PIBIC – PRPPG RESUMO: As contribuições de Emmanuel Kant deixam seu marco na história da Filosofia, cujos vestígios se encontram nos conceitos de Intuição e Símbolo, utilizados e modificados por pensadores posteriores considerados expoentes do neo-kantismo. O conceito de intuição que tem raízes gregas, perpassa o medievo, a modernidade e chega até nós, no senso comum, sendo compreendido em sentido de insight, também é utilizado pelos místicos na exposição de suas ideias. De acordo com Kant, como veremos, não é um assunto tão simples de se tratar, pois, como o próprio autor apresenta, o conteúdo intuitivo da experiência humana comporta representações inconscientes (ou obscuras), e até mesmo o esquematismo do entendimento, com sua confiabilidade que traz ao conhecimento é considerado ―uma arte oculta das profundezas da alma humana‖. As ideias ou conceitos que se apresentam nas narrativas místicas, devem ser compreendidas à luz da lei moral e do simbolismo. A crítica de Kant ao misticismo se refere ao modo como se utiliza do intuitivo. Se utilizado corretamente, este, o intuitivo, será um ótimo aliado na tarefa por vezes árdua do conhecimento. Porém, se mal utilizado, pode seduzir e levar ao desvario. Finalmente, o trabalho de Jung, considerado um expoente do neokantismo, parece demonstrar que se pode compreender a verdade (em sentido simbólico e intuitivo e não demonstrativo e conceitual) das exposições de certas experiências místicas, somente compreendendo o contexto compatível a tais experiências. Compreendida sob esta perspectiva, a doutrina kantiana da intuição, se aliada à importância que Jung concede a este fator hermenêutico indispensável, ou seja, a visão-de-mundo, pode ser um primeiro passo para, tal como apresenta Karl Jaspers, seguirmos com Kant a tarefa crítica da Filosofia de compreender o mundo, e algo não menos importante segundo Jung, compreender a nós mesmos. Palavras-chave: Intuição, Misticismo, Conhecimento simbólico, Visão-de-mundo Pretende-se neste trabalho apresentar algumas reflexões acerca deste tema que a muitos inquieta e contudo, a outros é objeto de indiferença. Primeiramente serão ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 165 apresentadas algumas referências de Kant a este tema, as quais utilizaremos como princípio de nossas reflexões, para então refletir com Kant a respeito deste tema, trazendo à discussão, apontamentos de comentadores de Jung. Logo de início nos defrontamos com a dificuldade em se precisar o conceito de misticismo para Kant, pois não encontramos uma definição kantiana clara para essa corrente filosófico-religiosa. Como veremos mais adiante, a crítica de Kant ao misticismo se refere ao modo como se utiliza do intuitivo. Se utilizado corretamente, este, o intuitivo, será um ótimo aliado na tarefa por vezes árdua do conhecimento. Porém, se mal utilizado, pode seduzir e levar ao desvario. Conforme se dá esse processo de associação ou relação entre o material intuitivo (sensibilidade) e o conceitual (entendimento) é que se pode distinguir o gênio e desvario. Antes de adentrarmos mais profundamente no tema proposto, são necessárias algumas considerações sobre um conceito que permeia nossa discussão: a intuição. Como veremos mais adiante, segundo referências de J.J.Clarke, Jung parece ter sido um grande expoente do simbolismo e do intuicionismo contemporâneo e, por isso, julgamos pertinente trazê-lo à discussão. No entanto, a compreensão deste conceito não é algo pacífico na história da filosofia. A intuição perpassa a escolástica, o neoplatonismo e o aristotelismo medieval até atingir, no senso comum, um sentido de insight. Além do conceito de intuição temos outro conceito relacionado que parece permear a discussão do tema proposto e que Jung dera especial atenção: o conceito de visão-de-mundo. As formulações kantianas acerca da intuição parecem abrir margem para duas interpretações do termo alemão Anschauung, ora compreendido em um aspecto meramente negativo e arbitrário, em sentido de ―algo ainda não conceitual‖ e, portanto, ainda não passível de ser considerado um conhecimento em sentido superior, ou, sob outro ponto de vista, algo análogo a uma faculdade de conhecimento, porém restrita à sensibilidade. A dificuldade que se apresenta a essa última perspectiva parece consistir justamente em se admitir a imediaticidade no conhecimento, ou seja, a não mediação do entendimento discursivo, e também na relação entre sujeito e objeto, tendo-se em vista as objeções de Kant à Intuição Intelectual. Kant compreendia que o conhecimento humano se encontra limitado fenômenos, mera aparência dos objetos, e, disso se segue que não podemos conhecer as coisas em si mesmas. Kant afirmava: ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 166 A intuição de nossa mente é sempre passiva; e, por isso, só é possível na medida em que algo pode afetar os nossos sentidos. Mas a intuição divina, que é o princípio dos objetos e não o principiado, dado que é independente, é um arquétipo e, por isso, é perfeitamente intelectual. (KANT, 1982, p.50) A distinção kantiana entre uma intuição arquetípica (intelectual) e uma intuição sensível parece se fundamentar justamente em um conceito limite que pressupõe a existência de um ser originário e um ser derivado, e, nisso parece residir a herança medieval do conceito kantiano de intuição. Enquanto o ser supremo cria seus objetos pela intuição arquetípica, o ser humano pode somente ter acesso aos objetos de modo reprodutivo, de modo a ter somente uma representação do objeto sendo a ele impossibilitado um acesso à sua realidade intrínseca. Ora, a intuição, a partir da segunda perspectiva anteriormente apresentada, ou seja, abrindo a possibilidade de se pensar em uma faculdade de intuição como um modo de relação imediato entre sujeito e objeto, se poderia então, compreender a intuição em um sentido de visão, contemplação, algo que não parece ser absurdo de se conceber ao se estabelecer contato com as observações de Kant acerca do sentido da visão contidas em sua Antropologia. No entanto, não se deve esquecer que já aí, segundo Kant, poderia haver uma contradição, pois não se poderia estabelecer a relação imediata entre sujeito e objeto se somente podemos conhecer nos limites de nossa faculdade de representação (fenomênica) e dos nossos sentidos. Acerca do sentido da visão Kant afirma: (...) Se não é mais indispensável que o ouvido, a visão é seguramente o sentido mais nobre, porque é, dentre todos, o que mais se distancia do tato, como condição mais limitada das percepções, e não só contém a maior esfera delas no espaço, mas também sente seu órgão menos afetado (porque do contrário, não seria mera visão), e, com isso, se aproxima, portanto, de uma intuição pura (a representação imediata do objeto dado sem que nela se note mistura de sensação). (KANT, 2006, §19, p.55). Para os leitores mais familiarizados com o rigoroso pensamento kantiano logo pode se recordar do desenvolvimento do conceito de intuição de acordo com sua estética transcendental, onde Kant chega à conclusão de que são o espaço e o tempo, exemplos genuínos de intuições puras. Obviamente, isto se fundamenta em uma concepção marcante em seu tempo, a visão newtoniana e euclidiana de espaço e tempo, tidos por Kant como um caminho seguro para fundamentar uma possível nova Metafísica. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 167 A matemática é considerado um instrumento legítimo e confiável para as ciências e até mesmo a filosofia, pois suas demonstrações são dadas a priori. isto é, apesar de se referir à experiência, não é totalmente dependente à esta. No entanto, apesar da segurança e evidência que o conhecimento matemático possui, ao se averiguar a fundo de que modo ele é possível, se encontra aí algo que parece demonstrar a fragilidade do entendimento humano. Trata-se de um conceito também custoso para os leitores kantianos: o conhecimento simbólico ou intuitivo. Estamos aqui, diante de uma oposição crucial: conhecer as coisas abstratamente e corrermos o risco de incorrer em uma pretensa universalidade de conceitos ou se restringir a aspectos meramente singulares e sensitivos da experiência. Kant afirma que ―Não é dada ao homem uma intuição das coisas intelectuais, mas apenas um conhecimento simbólico, e a intelecção só nos é permitida mediante conceitos universais em abstracto, e não mediante um singular no concreto.‖ (KANT, 1982, §10). Na Crítica da Faculdade do Juízo, §59, que tem como título Da beleza como símbolo da moralidade, Kant distingue dois modos de apresentação de conceitos, a saber, esquemático e simbólico. O primeiro ocorre quando ―a intuição correspondente a um conceito que o entendimento capta é dada a priori (...)‖ e o segundo quando ela ―é submetida a um conceito, que somente a razão pode pensar e ao qual nenhuma intuição sensível pode ser adequada‖. O pensador parte do pressuposto de que todo conceito do entendimento ou ideia da razão possui um modo ideal de apresentação, isto é, para que estes sejam claramente compreendidos, é necessário sua sensificação19, a aplicação dos mesmos a intuições, sem as quais aqueles correm o risco de serem vazios ou não possuírem significado. O intuitivo pode ser adequado a um uso esquemático ou simbólico, este último não podendo ser considerado nas palavras de Kant um esquema legítimo, no entanto, serve de análogo de esquema do entendimento. Kant diferencia, ainda, o modo direto e indireto de apresentação. Os esquemas apresentam demonstrativamente e diretamente os conceitos de modo a priori. Os símbolos indiretamente, mediante analogia. Kant resume, a seguir, como se dá o processo de apresentação simbólico: ―(...) a faculdade do juízo cumpre uma dupla função: primeiro, de aplicar o conceito ao objeto de uma intuição sensível e então, segundo, de aplicar a simples 19 Possui praticamente o mesmo sentido de sensibilização. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 168 regra da reflexão sobre aquela intuição a um objeto totalmente diverso, do qual o primeiro é somente um símbolo.‖ (KANT, 2002, p.196). Mas poderia se questionar, afinal, e, que tem a ver intuição com o misticismo? O quê Kant diria a este respeito? Conceber introvisões em espécies de revelações divinas ou visões de espíritos seria um pouco estranho para se pensar, pois parece fugir do âmbito de realidade, isto é, do ponto de vista materialista. Que dizer então da clarividência e da adivinhação? A primeira, considerada por alguns místicos uma faculdade de conhecimento, supostamente permite ao sujeito contemplar certos fenômenos impossíveis e imperceptíveis a humanos não dotados da mesma, como por exemplo, ver um fenômeno natural ocorrer a uma distância inconcebível para a visão humana.20 Para que em uma narrativa ou relato se encontre material que se possa considerar como digno do status de conhecimento, e essa é uma condição epistemológica indispensável em Kant, são necessários dois elementos harmoniosamente associados: intuição e conceito. Certas ideias da razão não podem encontrar uma correspondência na intuição, daí decorre a necessidade de se recorrer a analogias com certas intuições para, no máximo se pensar determinados objetos. Ora, essa abordagem kantiana parece ficar mais atraente quando indica um problema de fundo: o inconsciente. Embora Kant não admitisse explicitamente a existência um campo ou instância da mente a que se poderia chamar de inconsciente, demonstrava certa inquietação acerca desse campo de representações. Cito Kant: Que seja imenso o campo das nossas sensações e intuições sensíveis, isto é, das representações obscuras no ser humano de que não somos conscientes ainda que possamos concluir indubitavelmente que as temos; (...) que, por assim dizer, no grande mapa de nosso espírito só haja poucos lugares iluminados, isso pode nos causar espanto com relação ao nosso próprio ser; pois bastaria apenas que um poder superior esclamasse: ―faça-se a luz!‖, que, mesmo sem o acréscimo de quase nada,(...) meio mundo, por assim dizer, se abriria diante de nós. (KANT, 1982, §5, p.35). Tendo-se em vista o quê já apontamos anteriormente acerca do simbolismo e da intuição em Kant poderíamos retomar algo a respeito da apresentação dos conceitos ou Teria chegado a Kant relatos acerca de um místico sueco chamado Emmanuel Swedenborg ao qual era atribuído o dom da clarividência. Obviamente tais relatos inquietaram o filósofo o levando a investigar a fundo a possibilidade de tais fenômenos. 20 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 169 ideias da razão. Os conceitos do entendimento devem apresentar diretamente, e na intuição, de modo a priori, já para certas ideias da razão não se encontram com facilidade intuições que lhes sejam correspondentes, isto se agrava quando partimos de um âmbito meramente teórico e discursivo da razão para um prático, pois, a Liberdade, a Lei moral não devem ter um fundamento empírico mas sim supra-sensível. A crítica de Kant ao misticismo parece incidir de modo mais intenso sobre a obscuridade de seus conceitos. A esse obscurantismo da razão, chamado contemporaneamente de ocultismo, poderia se inferir a desconfiança causada acerca desse posicionamento, pois, este pode ser o método utilizado por charlatães para seduzir novos fieis a suas falsas doutrinas. Outro motivo que parece ser bem mais evidente consiste no uso equivocado da razão, ao deixar a sensibilidade tomar as rédeas no conhecimento, e, desse modo, se tornando um hábito estabelecer certas conexões absurdas e inadequadas entre intuições e conceitos. Para simular penetração e profundidade usa-se, muitas vezes com o resultado desejado, até mesmo uma obscuridade estudada, assim como, no crepúsculo ou através de uma névoa, os objetos são vistos sempre maiores do que são. O skotíson (torna obscuro!) é a palavra de ordem de todos os místicos para, mediante uma obcuridade artificial, simular atraentes tesouros de sabedoria. – Mas em geral, um certo teor enigmático numa obra não é desagradável ao leitor, porque com isso se lhe tornará sensível a própria sagacidade para resolver oquê é obscuro em conceitos claros. (KANT, §5, p.37). No entanto o posicionamento de Kant a respeito dessa corrente filosóficoespiritual, se observado à luz do intuicionismo e do simbolismo, parece não ser totalmente inadequado a uma posição filosófica genuína. Por outro lado, Kant se apresenta como um defensor do simbolismo religioso, com a condição de não se cair em idolatria: Mas nas exposições dos conceitos (denominados ideias) pertinentes à moralidade, que constitui a essência de toda a religião, e portanto à razão pura, distinguir o simbólico do intelectual (o culto da religião), distinguir o invólucro, necessário e útil por algum tempo, da coisa mesma, é esclarecimento, porque senão se troca um ideal (da razão prática pura) por um ídolo, e não se atinge o fim-último. (KANT, 2006, §38, p.90) Como se pode observar, demos ênfase no conceito de intuição em Kant. Isto ocorreu com o propósito de prepararmos o terreno para trazer à discussão outro conceito que julgamos pertinente a este trabalho, a saber, o conceito de visão-de-mundo. Retomando o quê dissemos acerca da intuição, poderíamos compreender a relação entre ambos os ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 170 conceitos. Todo conteúdo recebido pelo sujeito mediante as experiências, formam uma espécie de ―arquivo intuitivo‖ que pode ser acessado pelo entendimento e pela consciência sempre se constate a necessidade. Carl Gustav Jung, considerado um herdeiro da doutrina crítica kantiana, adota como ferramentas para sua obra filosófica, concepções kantianas, sobretudo os conceitos de arquétipo, símbolo, representação e fenômeno. No entanto, procura superar o mestre desenvolvendo seu conceito de representações obscuras ou inconscientes sobre um panorama muito mais abrangente e complexo. Segundo o psicólogo, a crise espiritual do homem contemporâneo, e isso se constata empiricamente em seu trabalho, se dá devido a uma separação entre homem, tradição, religião e de modo geral no enfraquecimento do aspecto simbólico do homem. Isso se constitui em um perigo enorme para a humanidade, pois, uma vez ignorados estes aspectos primitivos e inerentes à natureza humana, estes conteúdos inconscientes podem emergir de modo catastrófico. Segundo Marco Heleno Barreto, o conceito de visão-de-mundo para Jung constitui um elevado grau de importância, sobretudo no que tange o contexto do resgate do simbolismo como uma preocupação que ocupou o mente não só de Jung, mas de uma geração de filósofos. Finalmente, relembremos o diagnóstico de Jung a respeito da crise espiritual do homem contemporâneo atribui ao fator “visão de mundo” uma importância decisiva. Sendo assim, o significado terapêutico e cultural do resgate da sensibilidade simbólica almejado por ele atinge o seu limite máximo quando, com sua extensão aos fenômenos sincronísticos, o simbolismo reclama uma ―visão de mundo‖ compatível com a experiência de que o sentido não pode ser pensado como produto exclusivo do arbítrio humano, mas encontra um fundamento que transcende o próprio sujeito, um fundamento que Jung não teria dificuldade em descrever como cósmico. (BARRETO, 2008, p.147) Os limites conceituais de um sujeito coincide com os limites de alcance de sua visãode-mundo. É compreensível a indignação de certos interlocutores ao ouvir uma narrativa sobre fenômenos tidos como sobrenaturais como, por exemplo, comunicação com espíritos da natureza, humanos falecidos ou com seres divinos, pois, em geral, todas as coisas que escapam o alcance da experiência humana exige esforço demasiado do entendimento e da imaginação para se pensá-las. O misticismo, de fato, parece ser incompatível com o ideal epistemológico kantiano. No entanto, rechaçar veemente suas concepções com pretensa objetividade é uma atitude apressada e superficial para não dizer negligência e imaturidade filosófica. Sob ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 171 esta perspectiva, Jung demonstrou profundidade e seriedade filosófica em encarar o desafio de compreender o quê estes homens tinham a nos dizer. Segundo Marco Heleno Barreto, o conceito de visão-de-mundo para Jung constitui um elevado grau de importância, sobretudo no que tange o contexto do resgate do simbolismo como uma preocupação que ocupou a mente de uma geração de filósofos. Finalmente, em Kant, apesar das intensas críticas dirigidas a esta corrente, o misticismo possui algo especial em comparação com o empirismo. A posição favorável de Kant se refere ao seu resultado moral. O filósofo, apesar das severas críticas ao misticismo considera essa corrente filosófica menos prejudicial que o empirismo da razão que extermina na raiz toda moralidade de disposições e aniquila o arquétipo da intenção moral, portanto da ideia pura de bem supremo, em favor de um interesse meramente empírico da dita felicidade que nada mais é, na maioria das vezes, que uma satisfação egoísta das próprias inclinações, distante do arquétipo de homem agradável a Deus. O misticismo, portanto, ainda é compatível com a beleza e sublimidade da lei moral. Referências Bibliográficas: BARRETO, M. H. Símbolo e Sabedoria Prática: C.G.Jung e o mal-estar da modernidade. CLARKE, J. J. Em busca de Jung: Indagações históricas e filosóficas. Rio de Janeiro: Ediouro, 1993. DILTHEY, W. Psicologia e Compreensão. Lisboa: Edições 70, 2002. NAGY, M. Questões filosóficas na psicologia de C.G.Jung. Petrópolis: Vozes, 2003. KANT, I. Antropologia de um ponto de vista pragmático. São Paulo: Iluminuras, 2006. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 172 O PAPEL DA VERGONHA E DA CULPA NO RECONHECIMENTO DO EU E DO OUTRO E SUA RELAÇÃO COM A EDUCAÇÃO: ESPECULAÇÕES TEÓRICAS Claudeonor Antônio de Vargas Universidade de Passo Fundo (UPF) [email protected] Cleriston Petry Universidade de Passo Fundo (UPF)/PROSUP-CAPES [email protected] Enquanto, sentado, num bosque, repousava, Mil combinações sonoras ouvi. Quando, naquele doce estado de ânimo, agradáveis pensamentos Ao meu espírito trazem pensamentos tristes. Uniu a natureza às suas belas obras A alma humana que em mim penetrou. O coração por demais afligiu-me ao pensar Em que se transformou o gênero humano. (...) Se esta convicção divina mensagem me for, Se tal possa ser da natureza um sagrado plano, Não tenho eu motivos para lamentar O que de si mesmo fez o homem? William Wordsworth (1770 – 1850).21 RESUMO: Para pensar questões relativas à formação do indivíduo e sua relação com o ―outro‖, o artigo se propõe a analisar os conceitos de vergonha, culpa e estigma social a partir dos estudos realizados pela filósofa Martha Nussbaum. Nesse sentido, analisam-se as Nussbaum cita os poemas de Wordsworth como um dos fatores que contribuiu no desenvolvimento de John Stuart Mill, o qual se valeu da leitura da obra do poeta como parte integrante do cultivo de si mesmo. A referência ao filósofo ocorre para respaldar sua tese da importância de uma educação que inclua a poesia e cultive o prazer no mundo interior. 21 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 173 distinções dentro da emoção da vergonha (vergonha primitiva, vergonha construtiva e vergonha social), bem como sua relação com o narcisismo infantil. Defende-se a relevância da educação e os cuidados do adulto, em relação à criança, que deve se basear numa concepção de ser humano como um ser vulnerável, possibilitando a ela o desenvolvimento pessoal e o rompimento com a vergonha primitiva e o narcisismo infantil. O não rompimento com tais fatores pode conduzir à constituição de hierarquias sociais com sua consequente estigmatização de grupos tidos como ―vergonhosos‖. Palavras-Chave: Martha Nussbaum, vergonha, culpa, estigma social, educação. Introdução Martha Nussbaum propõe, a partir de sua pretensão de discutir políticas públicas, uma retroação à infância e a formação do narcisismo infantil como forma de desvendar a origem da formação das hierarquias socialmente produzidas. No referido conceito, gerado pala psicanálise freudiana, a criança vive uma profunda e idílica unicidade com o ventre e o seio materno, o que lhe fornece a ilusão de perfeição e completude. A percepção posterior de imperfeição e vulnerabilidade leva o sujeito, diante da não superação da referida patologia, a buscar readquirir tal condição. Esta recuperação dá-se pela via da normatização das existências humanas que passam a receber classificação como ―normais‖ ou ―inusuais‖. Seleção realizada, o ato seguinte é a constituição de dois mundos separados onde no primeiro habitam seres e/ou grupos considerados perfeitos, completos e qualificados - em outras palavras, superiores -, e, no segundo, os outros, geralmente considerados imperfeitos, incompletos e desqualificados - em suma, inferiores -, por não atenderem a norma. Toda esta ramificação resulta na hierarquização das relações humanas, instância na qual os ―normais‖ reencontram a sensação de perfeição e completude original sentida na embrionária relação com a mãe. Deriva disto a tese de Nussbaum de estigmatização social como ato reativo ao narcisismo infantil não superado e da vergonha nascida de nossa condição de seres incompletos, o que deságua em uma postura de desumanização dos atingidos. 1 Vergonha primitiva e o sentimento de culpa ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 174 Pensar a prática pedagógica ou a educação de modo geral, mesmo em ambientes pré-escolares e socializadores, implica que se construa uma representação do que é o homem, ou melhor, de sua condição. O que de si mesmo fez o homem? pergunta o poeta, com a sensação de que extrapolamos nossa condição na direção de algo que não somos, não conseguimos ser, mas, equivocadamente, desejamos ser. Martha Nussbaum (2006, p.210), afirma que ―os seres humanos nascem em um mundo que não fizeram e que não controlam. Depois de permanecer um tempo no ventre materno em que suas necessidades foram satisfeitas de maneira automática, entram no mundo (...)‖22. Essa entrada no mundo já existente e diferente delas exige uma introdução que a permita diferenciar-se dele e de seus objetos (que são diferentes de si mesma) e reconhecêlos como iguais em dignidade e em suas limitações. Em suma, desenvolver uma empatia com aqueles que também são necessitados, limitados e indefinidos. É em virtude dessa indefinição que os seres humanos precisam conduzir seu processo de desenvolvimento considerando a carência de uma definição a priori do que são. Sem ela, podem construir uma imagem equivocada de si mesmos, enquanto indivíduos, levando a consequências individuais e sociais. Para a criança, todos os agentes externos causam dano, pois são passíveis de não fornecer os elementos essenciais para a promoção do prazer e a supressão das necessidades. Em relação às necessidades, podemos estabelecer um vínculo com a emoção da ―vergonha primitiva‖, relacionada a esta fase do desenvolvimento infantil e que deve ser trabalhada positivamente para evitar problemas posteriores, como por exemplo, a ira em relação ao outro (ou outros) e a construção de um falso self na vida adulta. O que é a ―vergonha primitiva‖? Por que ela tem um estatuto negativo quando não é superada por outros tipos de vergonha? Qual a relação entre a vergonha primitiva e o narcisismo? Qual o papel da formação na superação desse tipo de vergonha? Em que medida a ―culpa‖ pode auxiliar na superação desse sentimento e no reconhecimento do outro como um ser igual em direitos? Ao tratar da ―vergonha primitiva‖, Nussbaum faz referência à origem do amor, feita por Aristófanes no Banquete de Platão. Nesse mito, descreve a autora, os seres humanos, em outros tempos, eram completos e redondos, cuja forma esférica inspirava poder (importante destacar o fato de que o círculo ou as formas esféricas representavam o ideal de perfeição, de completude, no mundo grego). 22 A tradução das citações do livro supracitado é de nossa autoria. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 175 Em consequência, os humanos atacaram os deuses com o objetivo de estabelecer o controle sobre o universo em sua totalidade. Em vez de exterminá-los por completo, Zeus, tornando-os mais débeis, simplesmente nos converteu em humanos criando-nos a situação de necessidade, de insegurança e a condição de incompletos (...) (NUSBAUM, 2006, p.216). A partir daí, os homens sentem vergonha de sua condição. Tal emoção aparece relacionada com o vestígio de uma onipotência original, que se imbrica com a incompletude, debilidade e fragilidade no que é ser humano. Agora o ser humano se sente desamparado, como a criança que ao nascer toma consciência de si e dos outros, bem como de suas necessidades. Ela é um ser frágil, débil, necessitado, mas ao mesmo tempo, conserva o ímpeto de ser onipotente, completa. A relação entre a vergonha e a onipotência pode conduzir ao encobrimento das fragilidades, a fuga do outro que ―me olha‖ e vê ―minhas imperfeições‖. A ―vergonha primitiva‖, portanto, refere-se: a) a uma emoção dolorosa por não alcançar um estado ideal. A vergonha é uma emoção mais ou menos realista, pois constata que somos frágeis, por exemplo, sem a tentativa de negar essa condição. ―Nesse sentido, não é inerentemente autoenganadora, nem expressa sempre o desejo de ser quem não é. Em consequência, nos diz a verdade (...)‖ (NUSBAUM, 2006, p.244). Veremos adiante que em determinadas circunstâncias, a vergonha pode impulsionar o indivíduo a negar-se a si mesmo, a construir uma auto-imagem enganosa que evite aqueles elementos que causam vergonha, ou seja, o que o lembra de sua humanidade. b) Ocorre pela consciência de necessidade e vulnerabilidade. Desde o nascimento, quando o bebê espera o alimento e ele não chega, percebe-se como vulnerável, apesar dos pensamentos característicos do sentimento de vergonha não aparecerem tão cedo. Esses sentimentos dizem respeito ao, c) sentido de inadequação em relação ao que é adequado; que promove uma d) reação de esconder-se dos olhos de quem pode ver a deficiência e, por seu turno, a ―vergonha primitiva‖ e) é vinculada a falta de perfeição. O narcisismo estabelece uma relação com a ―vergonha primitiva‖ quando o primeiro é ―derrotado‖, quando se veem como humanos, vulneráveis, necessitados e débeis, frente ao desejo de ser o centro na vida de outras pessoas que, por sua vez, nem sempre estarão dispostas a sê-lo. Assim, o tipo de vergonha aqui analisado é particularmente punitivo, substituindo o narcisismo primário. Para Nussbaum, ―a vergonha primitiva que está relacionada com a onipotência infantil e com o fracasso narcisista (inevitável), anda ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 176 furtiva por nossas vidas, só superada parcialmente pelo posterior desenvolvimento e autonomia da criança‖ (2006, p.219). Quando a criança adquire essa autonomia? O que ela significa? Partimos da ideia de que autonomia significa se auto-determinar. Mas, como é possível se auto-determinar se somos seres frágeis, vulneráveis, débeis e incompletos? A consciência dessa condição humana é um primeiro passo. Saber-se ―constituído‖ por esses fatores implica iniciar um processo de construção do eu a partir de elementos que não são enganosos. Entretanto, essa ―consciência‖ de si como vulnerável pode ser um estágio da autonomia, mas não é o fator que irá possibilitar a superação da ―vergonha primitiva‖.23 Utilizando os estudos feitos por Winnicott, Nussbaum analisa as circunstâncias em que a vergonha pode deformar a personalidade adulta. O Paciente B, objeto de análise, sofre com a impossibilidade de se revelar ao outro, constituindo-se como uma pessoa sem vida e petrificada, que busca manter o controle onipotente sobre seu interior. Winnicott descobre que a criança havia sofrido um excesso de atenção ansiosa por parte da mãe, para quem o filho perfeito não deveria chorar e estar sempre dormindo. A demanda de perfeição da criança fez com que ela não se aceitasse como uma criança necessitada. Revela ainda, que em determinados momentos, quando se deparava com suas imperfeições, o paciente B procurava dormir. ―Devido ao desejo de sua mãe de querer a perfeição (...) não podia permitir-se depender ou confiar em nada‖ (NUSSBAUM, 2006, p.225). A autora supracitada afirma ainda, que havia um excessivo cuidado da mãe, sempre disposta a atender ao filho, não o permitindo desenvolver a capacidade da confiança e da criatividade. Se o objetivo da educação é o desenvolvimento da autonomia, e num aspecto particular, a da superação da ―vergonha primitiva‖, a primeira só é conquistada mediante a aceitação da humanidade, pois não há como se determinar o que é desconhecido. E aquele indivíduo que constrói uma imagem falsa de si, como um ser perfeito, não se autodeterminou? No sentido aqui tratado não, pois ele negou a possibilidade de se individuar na medida em que construiu o que é a partir de um pressuposto antropológico falso ou ainda, Um conceito estrito de consciência como, por exemplo, a consciência moral, implica afirmar que ela ―supõe acrescentar ao simples ‗saber algo‘ ou ‗saber fazer algo‘ a duplicação desses saberes: um ‗saber que se sabe‘‖ (PUIG, 1998, p.79). Ter consciência de sua vulnerabilidade, ao contrário da vergonha primitiva que parte de uma noção ―verdadeira‖ do que se é, a consciência de um ‗saber que se sabe‘ implica uma postura diferente daquela de rejeição de sua condição. A autonomia, portanto, diz repeito a não deixar se determinar por essas fragilidades, debilidades e incompletudes, mas muito menos, em torná-las ―vergonhosas‖ a ponto de se esconder dos outros ou culpá-los por essas condições. Significa, por seu turno, ―tornar-se melhor‖ dentro dessas possibilidades, fazendo escolhas a partir da vontade própria e por razões fundamentadas e, quiçá, passíveis de universalização. 23 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 177 quando negou a si mesmo, enquanto um ser humano. No caso do Paciente B, ―os sinais de humanidade foram excluídos por parte da mãe que, devido a sua própria ansiedade, só estava contente com um bebê calado, perfeito‖ (NUSSBAUM, 2006, p.225), portanto, não houve autonomia, mas heteronomia, pois o que determinou o self do Paciente B foi a conduta de sua mãe, não sua própria. A ―vergonha primitiva‖, que demanda a perfeição, é autopunitiva no sentido de que o indivíduo não se aceita como ser humano e tenta esconder dos outros aquilo que ele é. Deste modo, está relacionada com a onipotência infantil e com o narcisismo. Para Nussbaum, esse estágio da vergonha que se estende na vida adulta pode ser um perigo para a vida social e moral, pois verá o ―outro‖ como uma ameaça, que pode ver o que está escondido na imagem de perfeição (conduzindo o indivíduo ao isolamento e a fuga de relações mais ―profundas‖ com os outros), ou que é o causador da vergonha. Winnicott e Nussbaum defendem que a família e a sociedade são cruciais para o desenvolvimento da vergonha, seja qual for o tipo. Para superar a ―vergonha primitiva‖ e evitar seus efeitos nocivos para o indivíduo e a sociedade, a autora retoma a prescrição de Winnicott em que essa vergonha é superada ou transformada numa ―vergonha construtiva‖ com a adoção de uma ―forma de vida que os pais vejam e se apresentem como imperfeitos, e encorajem na criança o sentido de deleite do tipo de ‗interação sutil‘ que podem ter as figuras igualmente incompletas‖ (2006, p.228). Essa ‗interação sutil‘ ocorre com o concomitante desenvolvimento da confiança. Na medida em que a criança ―sai‖ cada vez mais ao mundo, experimenta quem é e quem são os outros, sem precisar dos cuidados constantes do cuidador ou adulto. Confiança esta que é depositada na criança por ele. A criança passa a desenvolver um sentimento de si mesma, a partir das experiências que faz com o mundo e consigo própria. Lembra a autora, ainda, que a estabilidade no cuidado, adequadamente sensível, conduz a criança à crença de que pode confiar no outro, pois esse também é imperfeito e a aceita e se aceita como tal. Assim, a criança deixará sua onipotência, pois perceberá que pode confiar nos demais. Além do desenvolvimento da confiança e interdependência, Nussbaum afirma que a origem do amor e da criatividade humana, a ser desenvolvida a partir da superação do estágio da ―vergonha primitiva‖, ocorre quando a criança começa a perceber que a demanda por ser o centro do mundo causa um dano aos outros (culpa). ―Agora começa a fazer coisas pelos outros, mostrando que reconhece que outras pessoas também tem o direito de viver e ter seus próprios planos‖ (2006, p.223). O amor que surge aí difere daquele narcisista, baseado na necessidade de ser atendido nos desejos e necessidades, no ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 178 controle do outro; agora, o amor é entendido em termos de intercâmbio e reciprocidade, pois ambos se aceitam como seres humanos, incompletos e parciais. Sentir vergonha não é o mesmo que sentir-se culpado. Nesse aspecto, Nussbaum retoma seu conceito de ―vergonha primitiva‖, para esclarecer que a culpa é um tipo de ira dirigido a si mesmo, uma reação ante a percepção de que se cometeu uma injustiça ou um dano contra alguém. Nesse sentido, a culpa implica um reconhecimento do direito de outra pessoa, algo que não ocorre com a vergonha. Esta se refere ao que o indivíduo é, centrando-se em seu defeito ou imperfeição. A culpa, por outro lado, diz respeito não ao que o indivíduo é, mas a sua ação ou omissão. Se inferirmos que a autora refere-se aí também ao conceito de vergonha mais amplo, distinto do ―primitivo‖, consideraremos ainda que em termos morais a culpa tem um estatuto mais abrangente, pois a moral implica um conjunto de regras, valores e desejos que compartilhamos com os outros. ―Ter culpa‖, nesse sentido, significa que se sabe do erro cometido ante uma moral estabelecida, garantidora dos direitos dos outros e com os outros. O Paciente B, citado anteriormente, era incapaz de sentir culpa, vendo-se não como alguém que fez uma ação má, mas como um indivíduo mau. A resposta da ―vergonha primitiva‖ não é o reconhecimento de um direito igual válido também ao outro, mas o ocultamento e o fechamento em si mesmo. ―Em consequência, se tornou, assim, totalmente incapaz de moralidade, dado que esta envolve o uso de capacidades de reparação, respeito pela humanidade de outra pessoa e atenção à necessidade do outro‖ (NUSSBAUM, 2006, p.245). Sem o desenvolvimento do sentimento de culpa, que se inicia quando a criança percebe que seus desejos causam um dano a outro, não é possível imaginarmos uma convivência democrática, considerando que não existe o ―outro‖ enquanto ser dotado de dignidade. Apesar de a ―vergonha construtiva‖ poder se tornar um móbil para o desenvolvimento da moralidade, a culpa parece ser aquele fator que garante a constituição completa da moralidade a partir do indivíduo que se relaciona consigo mesmo, com o mundo e os outros que o cercam. No desenvolvimento infantil, e a desejável superação da vergonha primitiva e a renúncia da onipotência infantil, a culpa exerce um papel central, pois ―funciona como uma ajuda nesta tarefa, porque contém a grande lição de que outras pessoas são seres separados com direitos, que não devem ser afetados (...)‖. Contudo, continua Nussbaum, ―a vergonha ameaça minar a tarefa do desenvolvimento por completo, ao subordinar os outros as necessidades do eu‖ (2006, p.246). Tal ameaça é ampliada pela relação entre a ―vergonha primitiva‖ e a ira. A segunda, como tratado acima, refere-se a uma reação ante uma injustiça. Diferentemente da ira ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 179 produzida pela culpa, a que se vincula à vergonha busca culpar alguém pela própria condição. No caso das crianças, sua inadequação volta-se ao cuidador, que é o mais próximo de si. Se esse tipo de emoção não for superado, na vida adulta é possível se deparar com eventos que marcam a relação entre a vergonha primitiva e a ira, como se observou na Alemanha depois da Primeira Guerra Mundial, em que existia a necessidade da imagem de um homem que não pudera ser envergonhado. ―A meta, como vimos, era ser duro, um homem de aço e metal, capaz de qualquer coisa, insensível a tudo‖ (NUSSBAUM, 2006, p.247). Isso significa que os alemães se reconhecem enquanto débeis, frágeis, vulneráveis e incompletos (obrigados a se submeter a condições humilhantes pelos vencedores24), mas presos ao imperativo da perfeição que, quando vinculado à ira, tende a escolher um ―outro‖ como fonte de frustração, para se autoafirmar. As fontes de frustrações são conhecidas: judeus, comunistas, pobres, mulheres, etc. 2 A possibilidade de uma vergonha construtiva Nussbaum se questiona se seria bom que os adultos sentissem vergonha e em que medida o seria se os conhecidos e concidadãos estimulassem uns aos outros a sentir essa emoção. Para dar conta deste questionamento opta por dialogar com Barbara Ehrenreich através da avaliação da obra Por cuatro duros, na qual a referida autora descreve a experiência de viver algum tempo fazendo-se passar por uma mulher necessitada de trabalho, sem titulações e sem antecedentes. Das peripécias resultantes de tal empreitada recolhe a conclusão (universal?) de que a ausência de segurança, para os trabalhadores, de opções de vida e emprego adequados é um importante problema social americano. Apresenta ainda a afirmação de Ehrenreich de que o sentimento de culpa não se aproxima nem remotamente ao que se deve sentir e de que a emoção apropriada é a vergonha, ao que busca entender então o que a mesma que dizer com tal postulação. Segundo Hobsbawm, ―impôs-se à Alemanha uma paz punitiva, justificada pelo argumento de que o Estado era o único responsável pela guerra e todas as suas consequências (...),para mantê-la permanentemente enfraquecida. Isso foi conseguido não tanto por perdas territoriais, embora a Alsácia-Lorena voltasse à França e uma substancial região Leste à Polônia restaurada (...), além de ajustes menores nas fronteiras alemãs; essa paz punitiva foi, na realidade, assegurada privando-se a Alemanha de uma marinha e uma força aérea efetivas; limitando-se seu exército a 100 mil homens; impondo-se ‗reparações‘ (pagamentos dos custos da guerra incorridos pelos vitoriosos) teoricamente infinitas; pela ocupação militar de parte da Alemanha Ocidental; e, não menos, privando-se a Alemanha de todas as antigas colônias ultramar‖ (2010, p.41). 24 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 180 A proposição de Ehrenreich envolve o reconhecimento de que a situação dos trabalhadores pobres de nossa sociedade e o fato de que pessoas prósperas vivam a partir da dependência do trabalho mal pago a outrem não é um ato levado a cabo por este ou aquele indivíduo. Com clareza e contundência, afirma: Ao contrário, é consequência de padrões de pensamento e compromisso de raízes profundas e de larga data na sociedade americana: o amor ao luxo, o ressentimento comum contra os impostos redistributivos, a crença de que são os pobres que causam a sua própria pobreza e muito mais (NUSSBAUM, 2006, p. 249). Segue então, com evidente inspiração socrática em termos do ―Conhece-te a ti mesmo‖ e estabelece que o que temos que fazer não é pura e simplesmente enunciar um pedido de desculpas diante da situação e sim buscar um reexame de nossa própria vida, hábitos e caráter, agora com vistas à dimensão total da existência. Defende a substituição da postura fácil do simples ―não fazer mais assim‖ pela adoção de coragem necessária para mudar aspectos humanamente nocivos tais como a cobiça, o materialismo, a hostilidade frente à igualdade e etc. Neste ponto de seu raciocínio, situa a vergonha no âmbito da constatação de vigente cumplicidade individual ou de colaboração com um elemento normativo ruim mesmo que este contenha a desejada formulação de norma moral pública, valiosa e seja kantianamente universal. Entende a mesma como expressando a dicotomia excesso e insuficiência - a primeira de avareza e a segunda de compaixão -, advertindo ainda para a subversão dos ideais de igualdade e democracia em face da desatenção para com os demais. E também chama a atenção para a gênese estar na falta de atenção ao problema e na não participação política com vistas à produção de alteração da situação. Na relação com a vergonha primitiva, estabelece: Ademais, aceitar estes ideais (*igualdade e democracia) e sentir vergonha pela sua não realização em mim mesmo não reforça a vergonha primitiva; opera ativamente contra ela. Porque a pessoa que sente vergonha está deixando para trás a cômoda convicção narcisista de que tudo está bem a respeito de seu mundo e reconhece as demandas justificadas dos outros de que invista tempo, esforço, dinheiro. Em vez de seguir por seu caminho sem perturbar-se, reconhece o fato de que tem sido consciente da realidade da vida de outras pessoas e dá passos no sentido de deixar para trás o narcisismo e de cultivar uma ―sutil interação‖ (NUSSBAUM, 2006, p. 250). ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 181 Finaliza a interlocução com Ehrenreich reconhecendo a estratégia da obra como sendo reveladora da vulnerabilidade comum a todos os humanos, sendo que esta se apresenta na dupla, dinâmica e instável estruturação existencial. Em um momento, um indivíduo pode ser titulado como inteligente, trabalhador, atraente, exitoso e em bom estado físico; em outro, sendo-lhe retirada tal titulação e antecedência, este mesmo indivíduo pode fundir-se em um mundo de miséria no qual permanece emaranhado e contido. A vergonha então - para Nussbaum -, gerada nos leitores da obra, emerge da verificação de que a diferença abissal entre os status de vida privilegiada e vida miserável pode não ser meramente uma questão de talento e sim de circunstâncias. Amparada nesta avaliação, Nussbaum expõe dois aspectos pontuais contidos na obra de Ehrenreich e que a fazem merecedora de sua defesa. Primeiro, que as normas geradoras de vergonha são, em geral, moralmente boas, básicas e compartilhadas mesmo por quem difere politicamente a respeito da temática meios e fins. Segundo, que o antinarcisismo inspirado pelo conteúdo e gerador da emoção de vergonha reforça a percepção de vulnerabilidade compartilhada e a inclusão de todos os seres humanos nos ideais de interdependência e responsabilidade mútuas. Feito o percurso no mundo adulto, Nussbaum inicia a prospecção temática no universo infantil e, logo de saída, deixa muito clara a sua posição a respeito da vulnerabilidade das crianças: Minha análise sugere que qualquer apelação a vergonha relacionada às debilidades humanas das crianças, sejam físicas ou mentais, seria uma estratégia muito perigosa e potencialmente debilitante. E dado que a criança sempre é tão vulnerável ao poder do progenitor e facilmente pode interpretar, inclusive, uma vergonha moral limitada como uma humilhação dolorosa, me inclino a afirmar que a vergonha é sempre perigosa no processo de criação (NUSSBAUM, 2006, p.251). Alerta, na sequência, que a apelação à vergonha pode facilmente significar desprezo, sendo mais inteligente centrar-se na culpa acerca de atos ruins e expressar amor pela criança, mesmo diante de atos repetidos e persistentes. Ressalva, todavia, que em uma situação em que a criança habitualmente mostra-se desatenta frente às necessidades dos semelhantes, com comportamento depreciativo, insensível e manipulador, o recurso à culpa pode ser insuficiente. Assim, utilizar o sentimento de vergonha baseado em traços ou padrões de conduta pode ser moralmente apropriado. A autora, após rápida inserção na questão da vergonha infantil, enfatiza aqui haver sentido construtivo em um sentir vergonha a partir de aspirações elevadas, porém, ressalta ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 182 que o mais apropriado é que tal motivação emerja do interior do indivíduo, gerada pela sua própria conscientização. Faz ainda uma interessante distinção entre o apontamento externo de distanciamento dos ideais a partir dos níveis de identidade e comportamento. No primeiro, pode ser criada uma situação de atrito a partir da interpretação de que se está sugerindo a existência de um defeito na pessoa; no segundo, evita-se a personalização da crítica, indicando ser melhor centrar-se em atos específicos, ainda que estes estejam estruturados em padrões geralmente defeituosos. Nussbaum alerta também para a repercussão do sentimento de vergonha na pessoa atingida; esta pode ser estimulante ou limitante. No primeiro caso, cita como exemplo a vergonha pelo padrão de baixo desempenho em atividade de equipe, o que pode resultar construtivo e motivar o aumento da dedicação e do esforço - particularmente se tal incitação à vergonha parte do indivíduo mesmo. No segundo, a vergonha sentida pode ser paralisante se vier a ser estimulada por sugestão de outrem, e pode vir a minar a confiança em si mesmo, piorando ainda mais as coisas. Relativamente às crianças Nussbaum dá ênfase aos perigos inerentes a estimulação da vergonha centrada em ideais, especialmente se a ação provier dos pais: Os progenitores podem pensar que estão promovendo ideais valiosos (trabalho duro, excelência) e estimulando seus filhos a comportarem-se de acordo com eles. No entanto, geralmente há algo mais em jogo: os progenitores impõem, de forma rígida, ideais e expectativas pessoais a uma criança que tem talentos e ou desejos diferentes. O progenitor pode estar expressando uma falta de amor e aceitação pela criança (NUSSBAUM, 2006, p. 252). Ou seja, independentemente de que tal imposição se dê de maneira consciente ou inconsciente por parte dos pais, abre-se a possibilidade de que a criança veja-se às voltas com uma declarada ode à perfeição. A interpretação da criança pode girar em torno da compreensão de que a atitude de causar vergonha significa desamor e distanciamento e concluir pela ideia de que somente a perfeição merece amor. Retomando concepção anterior, a autora observa que o fato de os pais concentrarem-se no ato em si, dentro de um contexto de manifestação de amor pela criança apresenta-se como uma mensagem mais construtiva e mais clara. 3 A vergonha a partir de si mesmo: auto-avaliação e interação sutil ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 183 Seguindo as palavras de Nussbaum, independente de faixa etária, a disponibilidade à incitação ao sentimento de vergonha com a sua consequente autoavaliação parece apropriada, em especial quando se dá pela via de pessoas amadas e respeitadas. Ao contrário, a indisponibilidade à emoção de vergonha frente a pessoas com as quais compartilha os ideais e nas quais confia indica o perigo explícito da presença do narcisismo. Configura-se aqui um requisito da ―interação sutil‖, a saber, a ideia de que alguém pode beneficiar-se moralmente através da interação com um amigo. Neste contexto, ao confiar em um amigo ou em um ser que ama, surge a necessidade de se observar a dupla repercussão resultante, conforme seja a postura de considerar ou de ignorar o que ele representa. Por um lado, dando devida e positiva consideração, o indivíduo aprende a prestar atenção às opiniões daquele a respeito de si mesmo e de seu caráter. Por outro lado, ignorando-o em suas assertivas e não sentindo vergonha diante de suas críticas referente a traços de caráter significa isolar-se do mesmo, impedindo com esta postura a concretização da intimidade amigável. Esclarece Nussbaum que isto mostra a problemática inerente a incitar o outro a sentir vergonha: há uma grande exposição e vulnerabilidade na intimidade. Alerta também para os perigos de uma relação de intimidade que não esteja baseada em valores compartilhados e respeitados, citando o exemplo dos danos psicológicos sofridos por muitas mulheres envolvidas em relacionamentos íntimos vividos à margem da ideia de respeito mútuo. Afirma com ênfase: Assim, a vergonha, por certo, pode ser construtiva. A pessoa totalmente livre de vergonha não é um bom amigo, amante ou cidadão, e há instâncias em que a incitação a sentir vergonha é algo bom, sobretudo quando parte de si mesmo e, ao menos algumas vezes, quando surge de outro (NUSSBAUM, 2006, p. 254). Em resumo, as instâncias construtivas mostram, concomitantemente, os benefícios e perigos inerentes à incitação da emoção de vergonha a outrem, sendo que tais incitações podem ter caracteres antinarcísicos e narcísicos. Podem ainda ocultar estes últimos, como no exemplo dos progenitores que, sob a aparência do estímulo à criança para esforçar-se, tratam de controlá-lo e constituí-lo a sua imagem de ideal. Da mesma forma, podem ser expressões de crítica respeitosa em uma relação de amor e amizade e, no seu reverso nocivo, podem levar mensagens de sutileza narcísica de controle do outro, depreciando a humanidade da pessoa envergonhada. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 184 4 O padrão social estigmatizante: o normal e o inusual Em determinada sociedade, cada pessoa olha para o mundo desde a perspectiva de seu padrão de normalidade. E, se o que observa quando se olha no espelho não se ajusta a esse padrão, é provável que o resultado seja a vergonha (grifo nosso) (NUSSBAUM, 2006, p. 254). As ocasiões em que a vergonha social surge estão diretamente imbricadas a questões físicas: limitações e incapacidades diversas, obesidade, feiura, torpeza, inabilidade desportiva, carência de característica sexual secundária desejável, etc. Outra fonte refere-se à forma de vida da pessoa: minorias sexuais, criminosos e desocupados, por exemplo. O ato de estigmatizar pessoas acompanha a história da humanidade, como demonstra a autora ao citar a tradição grega antiga. Nesta, estigma significava tatuagem, e esta era largamente utilizada para propósitos penais: a marca geralmente situava-se no rosto do indivíduo delinquente com o objetivo de envergonhá-lo publicamente. Conforme Nussbaum, as evidências mostram que tal ato não se restringia aos delinquentes: marcava também outros indesejáveis, tais como os escravos, os pobres e os membros de minorias sexuais e religiosas. Nussbaum trabalha, então, com a ideia de que no centro da questão está presente a noção de ―normal‖ - estranha em sua avaliação -, e o movimento de vínculo que contém, ao relacionar algo que simplesmente representaria duas ideias completamente distintas. Por um lado, está a ideia de frequência estatística: o normal é o usual, o que a maioria das pessoas fazem. O oposto ao ―normal‖, nesse sentido, é o ―inusual‖. Por outro lado, temos noção de bom ou normativo: o normal é o correto. O oposto de ―normal‖, neste sentido, é ―inapropriado‖, ―mau‖, ―desonroso‖. As noções sociais de estigma e de vergonha podem vincular ambos estreitamente: aquele que não faz como a maioria das pessoas é tratado como desonroso ou mau. Resulta um feito intrigante que a gente tenha feito esta relação em particular, porque, obviamente, o que é típico pode ou não ser bom (NUSSBAUM, 2006, p. 255). Citando Mill25, indica que grande parte do progresso em assuntos humanos é produzida por pessoas inusuais e que tem formas de vida que a maioria não possui e nem sequer aprecia (interessante constatação em uma sociedade pautada pela ideia de maioria democrática). Questiona, a partir desta indicação, o porquê de, em quase todas as 25 MILL, John Stuart (1806,1873), autor de obras como O Utilitarismo e Sobre a Liberdade, entre outras. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 185 sociedades, a noção de normal e usual cumprir função normativa produtora de estigmatização para com os diferentes. E diz crer que o uso da categoria ―normal‖ com intuito estigmatizador deve ser entendido como um desenvolvimento da vergonha primitiva que de alguma maneira afeta a todos. Tal desenvolvimento deve-se ao fato de termos consciência das inúmeras provas de que não estamos à altura das demandas excessivas do narcisismo infantil. Este aspira a um controle completo de todas as fontes do bem em função de reter um anseio nostálgico de felicidade advinda da unidade infantil com o útero e o seio; diante da impossibilidade de realizar tal demanda a substitui em busca de segurança e completude. O elemento surgido a partir desta premissa gira em torno do estabelecimento do conceito de ―normalidade‖, gestado e vivenciado em grupos sociais que, pelo entrelaçamento de seus pares, julgam-se e apresentam-se como bons e aos quais nada falta. Segue que: Ao definir certo tipo de pessoas como completas e boas, e rodear-se delas, os normais se sentem reconfortados e tem a ilusão de segurança. A ideia de normalidade é como um útero substituto, que anula estímulos intrusos do mundo da diferença (NUSSBAUM, 2006, p. 256). O contraponto social destes é a postura de estigma para com algum grupo de pessoas, a fim de confirmar e afirmar sua superioridade diante daqueles. Os que se consideram normais sabem de suas vulnerabilidades e fragilidades, porém, estigmatizando os fisicamente incapacitados e os de modo de vida inusual, sentem-se melhor acerca de suas próprias debilidades e incompletudes humanas. Em síntese: Ao lançar a vergonha para fora, ao marcar o rosto e o corpo dos demais, os normais alcançam um tipo de harmonia substituta: satisfazem seu desejo infantil de controle e de invulnerabilidade (NUSSBAUM, 2006, p. 257). Entretanto, acreditamos que é de se observar aqui o paradoxo: ao estigmatizar minorias e isolá-las o efeito concreto é o de identificar grupos com características consideradas nocivas. Estes, uma vez catalogados, deixam a condição de passivos recebedores da carga preconceituosa e tornam-se ativos refletores àqueles que os segregam. Então, uma vez que relembram aos ―normais‖ a sua própria condição básica, alertando-os assim para a possível alteração de seu status vigente e frágil, os recolocam na mesma postura de insegurança narcísica à qual anseiam refutar e da qual objetivam separar-se. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 186 Poderia estar nesta constatação paradoxal um dos elementos motivadores que levaram Hitler a primeiro criar os guetos para depois lançar-se à loucura do holocausto? Na sequência desta avaliação acerca da emoção da vergonha com gênese nas interações sociais, onde determinados grupos consideram-se superiores a outros - seja por características físicas e/ou de forma de vida -, esboça sua tese: Para resumir, sugiro que a conduta estigmatizante de todas as sociedades é comumente uma reação agressiva ao narcisismo infantil e a vergonha nascida de nossa própria condição de incompletos (grifo nosso) (NUSSBAUM, 2006, p. 257). Ciente da condição de perfectibilidade humana, diz ela que, mesmo considerando a capacidade humana de superação do narcisismo infantil e o consequente desenvolvimento de relações de interdependência com o reconhecimento da coexistência de realidades separadas entre as pessoas, existem riscos. Estes podem incorrer a partir da instabilidade desta interdependência e reconhecimento, em face de emergente anseio de negar a mortalidade e debilidade humana, aspectos que, uma vez sentidos, implicam uma possível suspensão da valoração qualificada do outro e de sua consideração como igual em termos humanos. Na esteira de suas reflexões, faz duas importantes considerações acerca da geração e do estabelecimento de normas sociais. Na primeira, explica que sua análise acerca do tema não retira do mesmo a sua potencialidade positiva, ao contrário, afirma que, se as normas socialmente instituídas são valiosas e boas, a vergonha social pode cumprir uma importante função moral na relação com bons ideais. Na segunda, ao pensar nas raízes infantis da vergonha, faz um alerta no sentido de que não se deve confiar facilmente nas condutas sociais que visam provocá-la e nem aceitá-la pelo que diz ser. Solicita então especial atenção ao que segue: Por trás do desfile de moralismo e de altos ideais, geralmente é provável que haja algo muito mais primitivo para o qual é basicamente irrelevante o conteúdo preciso dos ideais em questão e seu valor normativo. Tais reflexões deveriam fazer-nos mais céticos inclusive a respeito do tipo de vergonha moralizante, mais decididos a eleger e a analisar os ideais em questão para ver se tem algo mais a seu favor que sua mera generalidade (NUSSBAUM, 2006, p. 258). Fechando esta instância de seu trabalho, Nussbaum aponta para o que considera um aspecto central da operação geradora de estigma social: a ação de desumanização da vítima, seja esta situada e concretizada em um sujeito em particular, seja representada por ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 187 um determinado grupo. Retomando, reflexivamente, a prática sócio-histórica anteriormente detalhada, mostra que, ao marcar os delinquentes e/ou grupos específicos, a sociedade na verdade lança-os à margem da mesma, condenando-os a uma existência ―manchada‖. Coloca-os ainda em situação de ruptura com a unicidade humana ao distingui-lo como membro de uma classe degradada. Classificar um sujeito como mutilado, mongoloide ou homossexual significa negarmos tanto a humanidade que compartilhamos com ele quanto retirarmos a sua individualidade. Isto equivale a situá-la socialmente (ou não socialmente?) na dimensão do inusual, incompleto, ―manchado‖ e desvalorizado, abrindo as comportas para a discriminação diversa e ―justificada‖. Finalizando: Uma das vantagens de nossa abordagem de temas de políticas públicas através de questões do desenvolvimento da criança é que nos alerta a respeito da dinâmica frequentemente envolvida em envergonhar e nos dá motivo para supor que sua tendência desumanizante não é nenhum acidente, nada que possamos eliminar facilmente, retendo, ao mesmo tempo, o potencial expressivo e dissuasório da vergonha (grifo nosso) (NUSSBAUM, 2006, p. 259). Considerações finais Da exposição desenvolvida até aqui emergem inúmeros aspectos de grande relevância para toda e qualquer estruturação de estratégias de formação que aspire a realização educacional nos moldes iluministas. Entre estes, destacaríamos a necessidade de trabalhar teoricamente com adequados conceitos de condição humana e de infância, sem os quais seria temerário projetar um itinerário educacional. A correta, profunda e atualizada compreensão destes dois conceitos apresenta-se como componente imprescindível à que se possam traçar estratégias funcionais com possibilidades de eficácia ampliada e que resultem em elevação da própria condição humana. Utilizando expressões próprias à Nussbaum, diríamos que a superação da ideia de ocultamento do humano e a priorização de seu inverso, ou seja, da consciente e natural consideração de nossas imperfeições e vulnerabilidades, é algo próprio à educação. Ao menos da educação entendida como um produto histórico-social que tenha por objetivo último a construção de uma vida a ser vivida em um ambiente que propicie a preservação e a elevação da vida de todos, indistintamente. E que tal preservação seja o mais ampla possível: física, mental, ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 188 psicológica, emocional, moral, espiritual e, em suma, atinja o limiar da existência em sua máxima kantiana que estabelece ser a conquista de humanidade o fim último do homem. Referências Bibliográficas: ARAÚJO, Ulisses Ferreira de. Contos de escola: a vergonha como um regulador moral. São Paulo: Moderna; Campinas, SP: Editora da Universidade de Campinas, 1999. LA TAILLE, Yves de. O sentimento de vergonha e suas relações com a moralidade. Psicologia: Reflexão e crítica. 2002, 15(1), p.13-25. HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). 2.ed. São Paulo: Cia das Letras, 2010. NUSSBAUM, Martha C. El ocultamiento de lo humano: repugnancia, vergüenza y ley. Buenos Aires: Katz Editores. 2006. PUIG, Joseph Maria. A construção da personalidade moral. São Paulo: Ática, 1998. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 189 O DIÁLOGO NAS AULAS DE FILOSOFIA DO ENSINO MÉDIO Cleder Mariano Belieri Doutorando em Educação - PPE/UEM [email protected] RESUMO: Neste trabalho, será analisada uma situação de aprendizagem em busca de evidências sobre o papel do diálogo como princípio educativo nas aulas de Filosofia. O estudo está fundamentado em pressupostos de autores da Teoria Histórico-Cultural acerca da aprendizagem e do desenvolvimento do pensamento. Os dados empíricos foram obtidos por meio de um experimento didático, desenvolvido com os alunos do 3º ano do Ensino Médio de um colégio estadual do Paraná, que tinha como objetivo a localização de princípios didáticos para o ensino de Filosofia. Observamos, por meio da análise dos dados, que as situações dialógicas, quando mediadas pelo conceito filosófico, permitem ao professor acompanhar o nível de pensamento do aluno em relação ao conteúdo de ensino, encaminhar e reencaminhar suas ações para que a atenção esteja dirigida para o conceito filosófico, permitindo a reordenação das operações mentais do aluno. Palavras-chave: Diálogo. Ensino. Filosofia. Introdução É comum entre professores de Filosofia relatos de que o diálogo entre professor e alunos e entre alunos e seus pares, durante as aulas, permite o desenvolvimento da capacidade crítica. Em algumas situações em que o diálogo se apresenta como um princípio didático, cabendo ao professor coordenar a discussão, atento ao desempenho argumentativo (lógico) dos alunos. Assim, considera-se que, por meio do diálogo, os alunos vão aprendendo a distinguir um argumento bom de outro ruim, a exigir dos outros e de si mesmos coerência na argumentação e a se autocorrigir; ou seja, mediante o processo de argumentação e contra-argumentação os estudantes aprendem a ―pensar melhor‖. Ocorre que esse processo de argumentação e contra-argumentação tem consistido na emissão de opiniões fundadas apenas em vivências cotidianas, distanciando-se dos conteúdos próprios da ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 190 Filosofia. Esse fato tem dificultado a elaboração de argumentos mediados por conceitos filosóficos e, assim, impedido que o pensamento do aluno atinja níveis mais teóricos. Diante disso, é lícito questionar se os momentos de interação dialógica entre alunos e entre eles e o professor podem ser transformados em um princípio educativo para as aulas de Filosofia, e, em caso afirmativo, em como essa transformação pode se efetivar. No presente artigo, buscaremos analisar – ainda que de modo bastante breve – uma experiência ―didático-dialógica‖ que nos permite enfrentar às questões formuladas. O diálogo em uma situação de aprendizagem Pautados em pressupostos da Teoria Histórico-Cultural, consideramos que é a aprendizagem dos conceitos sistematizados, mediante a instrução escolar, o meio de desenvolvimento das funções psíquicas superiores, como reflexão, análise e síntese, enfim, o meio para o desenvolvimento humano (VIGOSTSKI, 2001). Assim, defendemos a necessidade de um ensino que resulte em aprendizagem, em nosso caso, um ensino que favoreça a aprendizagem de conceitos filosóficos e o desenvolvimento do pensamento do aluno. Considerando a compreensão acima apresentada, a pesquisa Aprendizagem de Conceitos Filosóficos no Ensino Médio26 (BELIERI, 2012), desenvolvida com o propósito de investigar como o ensino de Filosofia pode ser organizado para que haja a aprendizagem de conceitos filosóficos e o desenvolvimento do pensamento teórico dos alunos no Ensino Médio, identificou alguns elementos sobre o papel do diálogo nas aulas de Filosofia por meio de um experimento didático27. O experimento foi desenvolvido de setembro a novembro de 2010 com alunos do 3º ano do Ensino Médio de um colégio estadual do Estado do Paraná. A turma era composta por 25 alunos, cuja idade oscilava entre 16 e 18 anos. Durante o experimento, o A pesquisa de mestrado foi realizada pelo professor Cleder Mariano Belieri, sob a orientação da professora Dra. Marta Sueli de Faria Sforni, no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá. Ela está disponível em http://www.ppe.uem.br/dissertacoes.html. 27 O experimento didático ―(...) caracteriza-se pela intervenção ativa do pesquisador nos processos mentais que ele estuda. Neste sentido, ele difere essencialmente do experimento de constatação, que somente enfoca o estado já formado e presente de uma formação mental. A realização do experimento formativo pressupõe a projeção e modelação do conteúdo das formações mentais novas a serem formadas, dos meios psicológicos e pedagógicos e das vias de sua formação (...) plasma uma combinação (unidade) entre a investigação do desenvolvimento mental das crianças e a educação e ensino destas mesmas crianças‖ (DAVIDOV, 1988, p. 196) 26 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 191 professor atuou como pesquisador, organizando uma atividade de ensino na qual alguns dados foram coletados. Optou-se por trabalhar o conceito de alienação, por ser um conteúdo presente no programa da disciplina para o semestre no qual o experimento foi realizado. Pretendia-se que os alunos internalizassem o núcleo conceitual, ou seja, o princípio geral básico que dá unidade ao sistema conceitual que constitui o conceito de alienação. Os estudos para a organização do experimento haviam revelado que o princípio geral que uniria as diferentes representações sobre alienação estaria relacionado a perder o ser; perder o que o faz ser; perder a humanidade; perder o que o faz ser o que é; enfim, perder a essência do que define o homem como tal. Desse modo, a alienação seria, de um modo geral, a perda do ser. Assim, o homem estaria alienado quando perdesse o que o define como homem. Devido às poucas horas possíveis para a realização do experimento, optamos por focar o ensino na produção de apenas um autor. Foi trabalhado, então, o conceito de alienação no pensamento de Sartre. Inicialmente organizamos uma atividade em grupo para a leitura de uma narrativa que culminava com uma situação-problema a ser revolvida coletivamente, com o objetivo de reconstruir os traços essenciais que compõem o conceito de alienação. Pretendíamos que a chave para a resolução dessa situação-problema seria o uso do conceito de alienação. Não pretendíamos um ensino que viesse apenas aumentar o vocabulário dos alunos, mas que possibilitasse a eles um maior nível de consciência da realidade. E o meio para isso, segundo Vigotski (2003), é a internalização dos conceitos sistematizados. A quantidade de estudantes por grupo ficou estabelecida em no máximo 5, sendo esse o único critério que utilizamos para o primeiro momento do experimento. Esse número nos pareceu adequado, pois permitia desencadear uma reflexão coletiva em que os alunos tentariam em conjunto responder ao problema apresentado na narrativa. Para viabilizar o trabalho, solicitamos à turma que nenhum aluno permanecesse fora dos grupos. Os alunos, como já esperávamos, agruparam-se de acordo com os laços de amizade já existentes na turma. Tendo em vista os limites impostos pela extensão do presente texto, não nos é possível apresentar todo o experimento didático, assim, optamos por destacar apenas uma das situações de diálogo ocorridas durante a leitura da narrativa, ocorrido no primeiro momento do experimento. O episódio descrito a seguir evidencia o papel do diálogo na ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 192 promoção da reflexão28 pelos alunos, bem como a possibilidade que a verbalização, manifestada nas argumentações e contra-argumentações, ofereceu ao professor no acompanhamento do nível de pensamento do aluno em relação ao conceito de alienação. No episódio a seguir, o professor e alguns alunos organizados em um grupo, Adriá, Kal, Lídia e Maya29, colocam-se em uma situação de diálogo na tentativa de responderem ao problema presente na narrativa: Problema: Mas a que fim estava voltada a minha opção em continuar varrendo, a um fim meu, próprio, interno (a minha vontade), ou a um fim determinado exteriormente? Estaria de fato deixando de ser humana caso continuasse a varrer todos os dias aquelas ruas? Não estaria submetida a essa condição por ter como maior valor a possibilidade de poder viver? A que fim e o que justificava o modo de agir dos goim, dos jundenrat e do prefeito? A atitude dos goim, dos jundenrat e do prefeito também consiste em abrir mão da sua humanidade? Estariam os goim os jundenrat e o prefeito em uma condição semelhante a minha? Por quê? Que condição traduz a minha atitude de continuar varrendo? Estaríamos em uma condição de alienação? Kal: Ela fez o que ela queria, ela fez a vontade dela, foi uma opção dela. Adriá: Por que naquela época mesmo que os nazistas vissem a pessoa varrendo ou não fazendo nada eles matavam. Eles achavam que tinham que matar e já matavam. Eles matavam também para mostrar o poder... Lídia Então ela preferia a vida e não ligava em perder a liberdade dela, mas preferia continuar vivendo. Lídia: Eles (os jundenrat) eram judeus também? Kal: Sim. Professor: E a resposta à questão: “Que condição traduz a minha atitude de continuar varrendo? Estaríamos em uma condição de Alienação?” Como ficou? Grupo: Sim! Sim! Sim! Professor: Por quê? 28A reflexão ―(...) consiste na descoberta, por parte do sujeito, das razões de suas ações e de sua correspondência com as condições do problema‖ (SEMENOVA, 1996, p. 166). Pelo fato de a narrativa apresentar condições para a solução do problema do experimento didático, ela subsidiaria os alunos para que estes pudessem encontrar a razão da sua ação, que nesse caso seria encontrar a generalização conceitual substancial (DAVIDOV, 1988), o conceito de alienação. Assim, durante a realização do experimento caberia ao professor estar atento ―(...) ao plano intrapsíquico, à presença e à qualidade das negociações entre os alunos e destes com o professor acerca dos critérios utilizados na resolução das tarefas‖ (SFORNI, 2004, p. 117), ou seja, o professor deveria estar atento aos mecanismos utilizados pelo aluno na tentativa de responder ao problema. Portanto, era fundamental criarmos momentos e situações em que os alunos verbalizassem o seu pensamento. Nesse sentido, as discussões em pequenos grupos e a socialização das ideias de cada grupo foram previstas no experimento. 29 Para garantir o anonimato dos sujeitos envolvidos nessa pesquisa foram utilizados nomes fictícios. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 193 Kal: porque era uma coisa obrigada, imposta pelo prefeito dela também, pelo líder, pela ditadura... Adriá: Ela foi induzida a fazer aquilo... Kal: É, ela foi induzida. Kal: Se não ela (Léa) agisse assim ela morreria então ela teria que fazer. Adriá: tem pessoas que estão alienadas sem perceber. Mas ela está alienada impondo aquilo a ela. Kal: O prefeito também estava em condição de Alienação. Por que se ele se opusesse a esse regime ele morreria. Então ele estava na mesma situação que ela. Adriá: Quando aconteceu o Nazismo eles colocavam o poder... por exemplo... eles foram lá mataram as crianças, os filhos, para mostrar que ele poderiam fazer aquilo com todos. Maya: Eles tinham o poder! Adriá: É, eles tinham o poder e esse poder era baseado na força que eles tinham, eles demonstravam para as pessoas para amedrontar. Eles estão em situação de alienação não só pelo o que está acontecendo, pelos acontecimentos, mas pelo medo, pelo... Para conservar a vida! É claro que eles não tinham liberdade, mas eles se apegavam naquilo para preservar a vida. Ela mesma se apegou varrer as ruas como uma ultima esperança... É o que dá para entender... Ela queria viver. No trecho relatado, podemos verificar que o diálogo se estabelece para tentar responder de modo coletivo o problema apresentado. Isso possibilitou o envolvimento desse grupo de alunos com a temática, desencadeando a atividade reflexiva. A reflexão pode ser observada quando os alunos tentam encontrar os fundamentos e os limites de seus posicionamentos, despertando neles o desejo de superação da condição que se encontravam em relação ao conceito de alienação. É o que podemos ver nas falas de Adriá e Lídia: Adriá: Por que naquela época mesmo que os nazistas vissem a pessoa varrendo ou não fazendo nada eles matavam. Eles achavam que tinham que matar e já matavam. Eles matavam também para mostrar o poder... Lídia: Então ela preferia a vida e não ligava em perder a liberdade dela, mas preferia continuar vivendo. Por meio da observação atenta do diálogo nos grupos, foi possível ao professor verificar que o nível do pensamento dos alunos em relação ao conceito filosófico não era o esperado. Isso levou o professor a intervir por meio dos seguintes questionamentos: E a resposta à questão: “Que condição traduz a minha atitude de continuar varrendo? Estaríamos em uma condição de Alienação?” Como ficou? Por quê? ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 194 O acompanhamento e a intervenção do professor, por meio de seus questionamentos, contribuiu para colocar em sintonia os passos do professor e dos alunos rumo à aprendizagem almejada. Isso pode ser observado na sequência do diálogo: Grupo: Sim! Sim! Sim! Kal: porque era uma coisa obrigada, imposta pelo prefeito dela também, pelo líder, pela ditadura... Adriá: Ela foi induzida a fazer aquilo... Kal: É, ela foi induzida. Kal: Se não ela (Léa) agisse assim ela morreria então ela teria que fazer. Adriá: tem pessoas que estão alienadas sem perceber. Mas ela está alienada impondo aquilo a ela. Kal: O prefeito também estava em condição de Alienação. Por que se ele se opusesse a esse regime ele morreria. Então ele estava na mesma situação que ela. Com isso, podemos afirmar que a intervenção do professor mediada pelo conceito filosófico, após a identificação do nível do pensamento dos alunos em relação ao conteúdo de ensino, permitiu-lhe reencaminhar suas ações para que a atenção dos alunos fosse dirigida para o conceito de alienação e não se desviasse para outros aspectos não essenciais do conceito. Após termos mobilizado a atenção dos alunos por meio diálogo promovido pela tentativa de responder a situação-problema presente na narrativa, foi apresentado aos alunos conceitos de alienação de diferentes dicionários (incluindo dicionário filosófico), comparando-os à situação existencial das personagens da narrativa a fim de que saíssem da situação particular apresentada no texto e percebessem nela traços de um fenômeno geral, ou seja, que caminhassem em direção à elaboração de uma síntese geral relativa ao conceito de alienação. Não esperávamos, nesse momento, que os alunos chegassem ao conceito, já que eles não tinham ao seu dispor reflexão proveniente dos clássicos da Filosofia, apenas elementos do seu cotidiano, somados às definições dos dicionários; nossa intenção era a de que tentassem elaborar uma síntese provisória que seria ampliada ou modificada à medida que tivessem contato com o pensamento filosófico. Ao chegarem ao pensamento de Sartre, que ocorreu no terceiro momento do nosso experimento, os alunos já estariam mentalmente ativos com o conceito em pauta. Considerações finais ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 195 O presente estudo permitiu concluir que o diálogo pedagogicamente orientado, mediado pelo conceito filosófico, possibilita ao aluno reordenar as suas operações mentais. Entre essas operações está a reflexão, capacidade que entendemos ser de extrema importância para a aprendizagem de conceitos, pois permite ao educando localizar os fundamentos e os limites de seus posicionamentos em relação ao conceito filosófico. A análise dos dados nos permite reforçar a ideia de que o diálogo durante as aulas potencializa o desenvolvimento dos sujeitos envolvidos na atividade, contudo, esse diálogo deverá ser sempre mediado por determinado conhecimento, em nosso caso, pelo conceito filosófico. A interação entre os alunos e entre eles e o professor, na tentativa de se resolver de maneira conjunta um problema de aprendizagem, promove novas conexões com o objeto de estudo por meio da manifestação de ideias contrárias apresentadas (SEMENOVA, 1996). O enfrentamento da situação-problema, por meio do diálogo, além de ter sido um importante procedimento para mobilizar o pensamento dos estudantes em torno do objeto de conhecimento, também possibilitou ao professor acompanhar a relação que o aluno está estabelecendo com o conteúdo em questão. Isso contribui para colocar em concordância as ações e as operações realizadas pelo aluno e pelo professor no caminho rumo à aprendizagem conceitual, colocando o aluno como sujeito da aprendizagem. Com base nesse estudo, também podemos afirmar que situações de diálogo possibilitam ao professor intervir e fazer com que o aluno deixe de ter como foco de sua atenção apenas os elementos advindos das experiências cotidianas e dirija sua atenção para o que acreditamos ser essencial no ensino de Filosofia: os conceitos filosóficos. Com isso, destacamos que nos momentos de interação dialógica ocorrida nas aulas de Filosofia os conceitos filosóficos devem ocupam um lugar central, tanto no processo de argumentação e contra- argumentação como na organização desse processo pelo professor. Pois, é a aprendizagem dos conceitos filosóficos o meio para instrumentalizar os alunos para realizar a crítica consistente da realidade. Referências Bibliográficas: BELIERI, C. M. Aprendizagem de conceitos filosóficos no Ensino Médio. Dissertação (Mestrado), Universidade Estadual de Maringá, Programa de Pós-graduação em Educação, Maringá, Paraná, 2012. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 196 DAVIDOV, V. La enseñanza escolar y el desarrollo psíquico: investigación teórica y experimental. Moscu: Editorial Progresso, 1988. SEMENOVA, M. A formação teórica e científica do pensamento nos escolares. In: GARNIER, C., BEDNARZ, N. e ULANOVSKAYA, I. Após Vigotsky e Piaget. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. SFORNI, M. S. de F. Aprendizagem conceitual e organização do ensino: contribuições da teoria da atividade. Araraquara: JM Editora, 2004. VIGOTSKI L. S. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2001. _________. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 2003. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 197 OS MOMENTOS EVOLUTIVOS DO SER SOCIAL: ONTOLOGIA E TELEOLOGIA DE MARX A LUKÁCS. Daltro Lucena Ulguim Universidade Federal de Pelotas - FEPráxiS [email protected]; [email protected] Orientador: Avelino da Rosa Oliveira RESUMO: O tema tratará especificamente de dois momentos evolutivos do ser social: a ontologia e a teleologia. Tem-se como objetivo principal a intenção de explicar de forma básica como pode ser visto o ser social através destes importantes momentos. Elaborou-se como problema uma questão que se insere no tema: ―Como a ontologia e a teleologia contribuem para a visibilidade do ser social?‖. Para tal problema tem-se como hipótese que ―a compreensão do ser social passa pelo entendimento de sua ontologia e teleologia originária‖. Sabe-se que existem diversos momentos evolutivos do ser social, contudo estes dois momentos são inicialmente os mais importantes. Para esta tarefa trabalhar-se-á com Marx e György Lukács, por que embora todos saibam que foi Marx quem criou esta categoria, também sabe-se que foi Lukács foi quem a organizou. Palavras-chave: Ser social, ontologia, teleologia e generalidade. Partindo para os fatos concretos: é possível afirmar que Lukács escreveu uma grande obra sobre a categoria do ser social: mesmo que sobre os ombros de Karl Marx, ele sistematizou de tal forma a categoria que sem sombra de dúvidas se tornou um estudo muito organizado. Para esta abordagem, selecionou-se dois dos diversos momentos do desenvolvimento do ser social conforme estudos de Lukács: a ontologia e a teleologia. Não se entrará em detalhes dos outros momentos em razão do espaço e do momento, que aqui são apenas propícios aos escolhidos. Assim organizado, entende-se que a categoria do ―ser social‖ será melhor entendida desde que, analisando-se a tese e a antítese se realize uma síntese dialética concreta sobre a categoria em estudo. A ontologia30 e a teleologia 31. 2 1 Ontologia: ―on.to.lo.gi.a sf (onto+logo +ia ) 1 Ciência do ser em geral. 2 Filos Parte da metafísica que estuda o ser em geral e suas propriedades transcendentais (…)‖ (DICIONÁRIO MICHAELLIS). 30 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 198 Conforme Lukács (2010, p. 59), nas decisões teleológicas desparece o fato de que os atos derivados da consciência, que muitas vezes parecem funcionar como única fonte de alternativa de atividade do ser humano pudessem também constituir ontologicamente, de modo isolado, o fundamento real da práxis e da existência humana. Essa aparência é um elemento no ser social que não deve ser negligenciado. ―Mas, o que vem a representar em Lukács a palavra teleológico?‖ Para Lukács a teleologia não tem o sentido comum de finalidade, objetivo ou meta. No domínio do ser social o processo genético já é em si um processo teleológico. Isto tem como consequência que o seu produto só mais tarde ganharia uma forma fenomênica de produto definido e acabado, fazendo desaparecer sua própria gênese, quando o resultado alcança sua finalidade (LUKÁCS, 2007, p. 79-80). As formas de objetividade do ser social desenvolvem-se no rastro da emergência e do desenvolvimento da práxis a partir do ser natural, tornando-se cada vez mais social. Esse desenvolvimento é um processo dialético, que começa com um salto com o ―pôr teleológico‖ do trabalho sem o qual não pode ocorrer analogia alguma na natureza. O salto ontológico não pode ser revogado pelo fato de que na realidade se trata de um processo de longo alcance e com múltiplas formas de transição. Com o ato da posição teleológica do trabalho temos em si o ser social (LUKÁCS, 2007, p. 71). Sobre o ato da posição de trabalho, Marx deixa claro em Para a Crítica da Economia Política do capital que: ―(...) o trabalho de um se torna o trabalho do outro, ou seja, os respectivos trabalhos de ambos se tornam um modo de ser social‖ (MARX, 1996, p. 62). Explicado o sentido da palavra ―teleológico‖ em Lukács, é necessário esclarecer a expressão ―pôr teleológico‖. Para Lukács (2010, p. 61) não é um fim posto, mas um fim consciente que separa as formas biológicas antigas do novo ser social. É a linha primária de separação que mostra o ilimitado desenvolvimento da adaptação ativa do ser social. O ―pôr teleológico‖ distingue ontologicamente as formas antigas de adaptação passivas fundadas apenas no biológico. É essa necessidade de adquirir forma humana que, quando relativamente estática, é o elemento de importância decisiva para a humanização do ser humano em seu processo de socialização. ―Teleologia. Doutrina que considera a finalidade como princípio explicativo da realidade‖ (DICIONÁRIO HOUAISS, 2009, p. 720). 31 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 199 Lukács (2010, p. 71) entende que a ontologia crítica de Marx não é só crítica, não se limitando apenas a controlar, mas é criativa e reveladora de novos processos dialéticos. Desde o começo essa crítica partia dos princípios mais profundos do ser social e da prioridade ontológica da práxis em contraposição a simples contemplação da realidade efetiva por mais enérgica que se orientasse para o ser. A crítica de Marx é uma crítica ontológica: ela se origina do fato do ser social ser uma adaptação ativa do homem ao seu ambiente, repousando irrevogavelmente na práxis. Todas as características reais relevantes do ser social só podem ser compreendidas a partir dessa práxis e do exame ontológico das premissas de sua essência em sua verdadeira constituição. No capítulo ―Crítica da Economia Política‖ em Para uma ontologia do ser social, vol. 1, Lukács deixa expresso: (...) A prioridade do ontológico com relação ao mero conhecimento, portanto, não se refere apenas ao ser em geral; toda objetividade é, em sua estrutura e dinâmica concretas, em seu ser-propriamente-assim, da maior importância do ponto de vista ontológico (LUKÁCS, 2012, p. 303). Acrescendo-se componentes puramente sociais na convivência dos seres humanos uma descrição tão abstrata da situação social mostra que uma exigência da sociedade de realizar seu ser social na forma de ―pôr teleológico‖ consciente feita a seus membros tem de estar contida em seu crescimento (LUKÁCS, 2010, p. 92). Assim, todos os traços específicos que distinguem qualquer outro ser do ser social seriam eliminados. Se não quiser falsear os nexos ontológicos uma ontologia do ser social deve tentar apreender exatamente seus traços específicos no ―ser-propriamente-assim32― originário. É característico que todos os processos dinâmicos dos complexos da práxis sejam em sua gênese fundado no respectivo modo de desenvolvimento social, em sua economia e determinados em suas características específicas (LUKÁCS, 2010, p. 100). Lukács (2010, p. 102) afirma, de forma sistemática e concreta, ser possível uma ontologia do ser social com base em uma teoria ontológica apoiada sobre si mesma e nas diversas fases e formas da práxis social dos seres humanos. É uma teoria da generidade 33 que operaria quanto a forma e conteúdo que poderá ajudar a expressar com razoabilidade a problemática do ser social. 32 Ser-propriamente-assim: conceito de Lukács para designar a essência do ser antes de se tornar ser social. generidade é uma teoria que auxilia a entender os momentos evolutivos do ser social. 33A ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 200 Diante desse amplo espectro, só uma análise do novo ser social perante a natureza pode avançar no sentido da verdadeira existência do ser (Seinsbestand). Lukács percebe que a ―concepção coisificada do ser‖ passa a ser substituída pela ―prioridade ontológica do ser‖ e descreve: Todavia, apenas o conhecimento e o reconhecimento de que a concepção ―coisificada‖ do ser começou a ser substituída pela prioridade ontológica do ser dos complexos, e a simples explicação causal dos processos dinâmicos substituída pelo conhecimento de sua irreversibilidade tendencial, nos deixa em condições de reconhecer e descrever os problemas categoriais do ser, sobretudo do ser social, em termos marxistas autênticos (LUKÁCS, 2010, p. 156). As categorias do ser são formas e determinações da existência, nelas há um contraste radical com a gnosiologia idealista, segundo a qual as categorias são produtos do pensar sobre a constituição do ser e de suas determinações concretas. Elas são isso, na medida em que são reproduções imediatas do pensamento e do que existe. Elas são operantes no processo de movimento do ser em si como momento do próprio ser. A importância dessa inversão da relação entre categoria e ser atinge toda relação prática com o meio ambiente no sentido mais amplo: em relação ao trabalho todo ―pôr teleológico34― pressupõe o conhecimento do determinado ou categorialmente determinado existente (LUKÁCS, 2010, p. 171-172). É difícil distinguir os procedimentos técnicos das determinações existentes em si, tendo como base a mera gnosiologia e a metodologia de um domínio específico. Só uma crítica ontológica revelaria a real constituição do ser e as consequências amplas que tais atos produzem sobre as relações entre as ciências particulares e a filosofia (LUKÁCS, 2010, p. 172). O devir homem ou surgimento do ser social se entrelaçam necessária e ontologicamente, mas, de maneira tal que o devir homem, conforme o trabalho, torna-se uma adaptação ativa ao ambiente, ocultando em si uma tendência à auto-superação que vai além da determinidade biológica sucessiva e incompleta (LUKÁCS, 2010, p. 231). No âmbito das possibilidades humanas que se forma, os efeitos retroativos da constituição do homem é determinado por exigências práticas da necessária adaptação ao ambiente. Isso revela a direção de desenvolvimento no qual o controle crescente do ambiente e do domínio dos princípios sociais sobre os naturais se tornam visíveis. Sócio34 A explicação sobre ―pôr e pores teleológicos‖ já foi dada anteriormente. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 201 ontologicamente se pode falar de tendência de progresso, quando os traços específicos do ser social se tornam dominante no curso desse processo (LUKÁCS, 2010, p. 246-247). Quando o pensamento projeta na natureza as relações categoriais que só podem surgir no ser social como determinações, comete ontologicamente o falseamento do ser produzindo um mito, não um conhecimento objetivo da natureza (LUKÁCS, 2010, p. 262). Do ponto de vista da ontologia do ser social, na práxis e no pensamento que lhe dá fundamento e lhe conduz, só e em raras exceções os membros da sociedade se defrontam com uma objetividade que opera particularmente se confrontando antes com seus complexos reais que se processam realmente (LUKÁCS, 2010, p. 276). Ao avançar para problemas das categorias, Lukács (2010, p. 325) constata que Marx explicou o ser social de modo amplo. Nele está evidente que a ontologia do ser social só seria pensável levando em conta a propriedade dos outros seres, suas conexões e diferenças. A conexão e a contraposição entre a constituição ontológica das categorias devem ser concretizadas em sua objetividade e em seu ser independente da consciência e de suas formas do pensamento com que procura intelectualmente apreendê-los. Mas, a consciência só se torna um elemento importante na causalidade do social pelo significado do ―pôr teleológico‖ no ser social. Todavia, nunca se pode esquecer que neste caso não pode ocorrer processos de tipo teleológico, mas apenas um ―pôr-emandamento‖ especial e por esta via uma influência dos processos causais que foram iniciados pelos pores teleológico (LUKÁCS, 2010, p. 338). Conforme Lukács (2010, p. 338), o conhecimento ontológico do nexo do ser entre causalidade e teleologia produz a possibilidade de determinar mais precisamente suas interrelações quanto ao ser em geral, em especial o ser social, único modo do ser em que ocorrem de maneira faticamente comprovável e em determinações recíprocas. Para Lukács (2010, p. 339), em relação ao trabalho, no interior da autonomia necessária das atividades humanas e na práxis em geral destaca-se o ser social que surge simultaneamente com ele: nunca é demais repetir que não se trata de processos teleológicos desencadeados, mas apenas influências dos processos causais de modo teleologicamente correspondente. Lukács destaca que o novo o ser social já se encontrava na primitiva teleologia do trabalho: ―O momento, pois, em que o trabalho se relaciona, do ponto de vista da ontologia do ser social, com o surgimento do pensamento científico e a evolução deste, ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 202 precisamente é aquele âmbito que foi denominado investigação dos meios‖ (LUKÁCS, 2004, p. 73)35. Ensina Lukács (2010, p. 339) que a formação do ser social advinda dos processos ontológicos da espécie humana, que no início eram analogicamente tomadas, e o crescente domínio prático e teórico que o fundamenta mostram por toda parte um recuo das representações objetivas transcendentes36 e teleológicas. No posfácio de Prolegômenos Para uma Ontologia do Ser Social, Tertulian (2010, p. 390), mostra que, para a religião, a necessidade é onipotente, transcendente e funcional às determinações do real, derivando conexões, mudando premissas e o curso dos fenômenos. Para Lessa (1992, p. 46), mesmo na questão da fé religiosa a unidade essencial do espírito só poderá ser postulada num plano que transcenda a bipartição do mundo imediato. Ensina Lessa (2007, p. 45), como ensina Lukács, que a relação entre o projetar a forma ideal e prévia da finalidade de uma ação (teleologia) corresponde à essência do trabalho, permitindo compreender claramente sua ontologia. Relevante para Lukács (2010, p. 349), se trata daquilo que se torna qualitativamente novo. No qualitativamente novo não se deve ignorar que essas reações no ser social, por vezes, não são puramente espontâneas e materiais. Elas são desencadeadoras de novos tipos de pores teleológicos que respondem de maneira consciente com novos pores teleológicos. Isso não apenas às próprias modificações, mas, principalmente, às constelações por elas provocadas: as necessidades e tarefas decorrentes. Lukács (2010, p. 358) exige serem objetivamente corretos os postulados da efetividade dos pores teleológicos que surgem durante o curso do metabolismo do novo. E tal exigência só pode ser efetivada em dimensão, conteúdo e formas no modo e ao ponto em que permitir a respectiva constituição econômica e ideológica daquela etapa do desenvolvimento do ser social em que tem lugar o metabolismo concreto. Em relação a teleologia e a ontologia é preciso dar destaque a categoria trabalho. Lukács (2010, p. 347-348) é categórico afirmando que o ponto ontológico da gênese do ser social é o trabalho. Isso expressa uma adaptação ativa dos modos de vida socializado, fazendo surgir novas determinações para novos modos de ação em que os processos Gyorgy Lukács. Ontologia del ser social: el trabajo. ―El punto, pues, en que el trabajo se relaciona, desde el punto de vista de la ontología del ser social, con el surgimiento del pensamiento científico y la evolución de este, es precisamente que aquel ámbito que fue denominado investigación de los medios‖ (2004, p. 73). 36 Transcendente: (…) 2 que transcende a natureza física das coisas; metafísico. Ex.: entidades t.; 4 que está acima das ideias e conhecimentos ordinários. Ex.: <simbolismo t.> <verdades t.> (...) (DICIONÁRIOS HOUAISS, 2009, p. 736). 35 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 203 ontológicos precedentes não puderam revelar o momento decisivo do ser e sua relação com a casualidade normal: o ―pôr teleológico‖, onde não menos importante para a ontologia do ser social são as consequências subjetivas deste ―pôr‖ e o fato de que ele seja caracterizado pela objetivação do processo de trabalho. E neste caso, para encerrar a questão da ontologia, muito propriamente Lukács cita Marx e seu famoso exemplo: Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha supera mais de um arquiteto ao construir sua colmeia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção, antes de transformá-la em realidade. No fim do processo de trabalho aparece um resultado que já existia antes idealmente na imaginação do trabalhador (MARX, 1999, p. 211-212). Certamente ontologia e teleologia são partes de uma teoria da generidade que opera quanto a forma e conteúdo pelo trabalho, expressando a problemática do ser social. Em Lessa (1992, p. 43), os indivíduos desenvolvem personalidades autênticas em individualidades cada vez mais socializadas mediadas por categorias sociais cada vez mais genéricas e as formações sociais adquirem formas materiais e espirituais genéricas cada vez mais desenvolvidas. Esta generalidade não é mera abstração, mas universalização realizada pelo real e pela história. A esta universalidade concreta Lukács denominou generidade. Para Carli (2009, p. 20-21) quanto menos se desenvolve uma sociedade, quanto menos é intrínseca a retração dos limites naturais, menor é a variedade de questões postas para seus membros e sua diferenciação resulta do desenvolvimento social. À proporção que a sociedade avança, a sociabilidade e a natureza cede espaço à intervenção das categorias sociais, o homem alcança níveis maiores de humanização e individualidade da mesma maneira que a generalidade ganha em complexos. Em Tertulian (2010, p. 384), a ontologia compreendida nos Prolegômenos, culmina efetivamente numa teoria do gênero humano, distinguindo entre generidade em-si e generidade para-si: esta problemática é resolvida por meio da Ética. Em conclusão: a compreensão do ser social passa pela compreensão de sua ontologia e teleologia originária como prevê nossa hipótese, resolvendo-se a questão de como ambas contribuiriam para a visibilidade do ser social. Ontologia e teleologia mostram os momentos bem definidos do desenvolvimento dos ser, antes de atingir a humanização transformadora, através de saltos qualitativos ontológicos e teleológico que se mostra por pores teleológicos dentro de um movimento finalístico de transformação do não ser em ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 204 ser, do inorgânico em orgânico, do orgânico em animal e, por fim, neste salto qualitativo se mostra também o movimento de transformação do ser animal em ser social. Referências Bibliográficas: CARLI, Ranieri. Práxis, consciência e individualidade na filosofia marxista. In: Prometeus Filosofia em Revista Viva Vox - DFL – Universidade Federal de Sergipe Ano 2 - no.4 julhodezembro/ 2009 ISSN 1807-3042. LESSA, Sérgio. 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Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 1999. 966 p. ___________. Para A crítica da economia política: do capital. Tradução de Edgard Malagodi e Arthur Giannotti. São Paulo, SP: Círculo do Livro/Editora Nova Cultural, 1996. 256 p. TERTULIAN, Nicolas. Posfácio. In: LUKÁCS, Giorgy. Prolegômenos Para Uma Ontologia do Ser Social: questões de princípios para uma ontologia hoje tornada possível. Tradução de Lya Luft e Rodnei Nascimento. São Paulo: Boitempo, 2010. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 205 A FORMAÇÃO FILOSÓFICA NA EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA: UMA REFLEXÃO SOBRE A EDUCAÇÃO, O TRABALHO E AS TECNOLOGIAS Daniel Salésio Vandresen IFPR/Assis Chateaubriand [email protected] RESUMO: O objetivo deste trabalho é refletir sobre o papel da filosofia na educação tecnológica. Neste estudo pretende-se analisar a inter-relação educação, trabalho e tecnologias através da problematização do ensino técnico, principalmente do Ensino Médio, como formação para adaptação as necessidades mercadológicas ou como subjetividade emancipatória. Daí a importância da formação filosófica como ferramenta para a construção do pensamento crítico e autônomo, bem como, para o exercício da cidadania. Também, procura-se analisar como aparece o conceito de trabalho como princípio educativo como requisito para a compreensão histórica do conhecimento científico e tecnológico. Palavras-chave: Filosofia. Educação. Trabalho. Tecnologias. O presente trabalho se insere na área temática da relação entre filosofia e educação, buscando refletir sobre o papel da formação filosófica na educação tecnológica. O objetivo é analisar a contribuição do pensamento filosófico no Ensino Médio da educação tecnológica. Para isso, trata-se de investigar como aparece o conceito de trabalho como princípio educativo como requisito para a compreensão histórica do conhecimento científico e tecnológico. Este conceito de trabalho educativo remete ao pensamento de Antonio Gramsci em sua reflexão sobre a escola unitária. Para o autor o princípio educativo da educação é o trabalho, porque este não pode se realizar sem o conhecimento de sua produção. O conceito e o fato do trabalho (da atividade teórico-prática) é o princípio educativo imanente à escola primária, já que a ordem social e estatal (direitos e deveres) é introduzida e identificada na ordem natural pelo trabalho. O conceito do equilíbrio entre ordem social e ordem natural com base no trabalho, na atividade teórico-prática do homem, cria os primeiros elementos de uma intuição do mundo liberta de toda magia ou bruxaria, e fornece o ponto de partida para o posterior desenvolvimento de uma concepção histórica, dialética, do mundo, para a compreensão do movimento e do devir (...) (GRAMSCI, 2001, p. 43). ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 206 Nessa citação, Gramsci mostra que o trabalho como atividade teórica (conceito) e prática (fato) permite ao processo educativo uma formação histórico-dialética do mundo. Segundo Frigotto, Ciavatta e Ramos (2013) esse duplo sentido do trabalho também está expresso no pensamento de Lukács, o qual aborda o trabalho pela dimensão ontológica e histórica. A dimensão ontológica do trabalho revela que por meio dele o ser humano se humaniza, cria, produz conhecimento e se aperfeiçoa. Pela dimensão histórica, o trabalho permite compreender sua utilização como força produtiva e sua consequência de trabalho explorado. Para Saviani (2007) em uma concepção ontológico-histórico do vínculo entre educação e trabalho, o homem torna-se homem, porque trabalha e educa. Os autores Frigotto, Ciavatta e Ramos (2013) alertam ainda que na relação educação e trabalho é preciso não ser inocente e reconhecer que esta relação é parte da luta hegemônica entre capital e trabalho. É preciso admitir que o trabalho não é necessariamente educativo. Então, como entender esta relação? Para estes autores: ―o trabalho, no sentido ontológico, é princípio e organiza a base unitária do ensino médio‖. Assumir esta postura significa também assumir o trabalho como princípio éticopolítico, ou seja, uma educação emancipatória que reconhece a dimensão criativa do trabalho na produção existência humana e social. Segundo Ramos (2003) é importante notar que historicamente o Ensino Médio esteve predominantemente centrado na formação para o mercado de trabalho. Isso significa que é preciso deslocar o foco de seus objetivos para a pessoa humana. Ainda, afirma que a finalidade do Ensino Médio deve ser o sujeito e o conhecimento, ou seja, garantir o direito ao conhecimento historicamente construído em uma base unitária em que o sujeito tenha uma formação que sintetiza humanismo e tecnologia. Assumir o trabalho como princípio educativo implica defender um projeto unitário de educação que supere a dualidade histórica entre a formação básica e a formação profissional. Outro importante pensador que trabalha a dimensão ontológica da relação educação e trabalho é Álvaro Vieira Pinto37. Segundo Pinto (2003, p. 20) ―a educação é parte do trabalho social‖, pois é por meio do trabalho que o homem expressa e define sua Álvaro Vieira Pinto (1909-1987) é considerado um filósofo marxista e chamado por Paulo Freire de ―mestre brasileiro‖. Cito uma de suas principais obras: O Conceito de Tecnologia (em 2 volumes). Através de seu enfoque da filosofia da técnica vinculava, em plena ditadura militar, a relação filosofia, antropologia e história em um projeto emancipador para países em dependência tecnológica. Este autor é utilizado como referência teórica em documentos dos Institutos Federais, daí a importância de uma análise mais profunda desta referência teórica para a educação tecnológica. 37 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 207 essência, o homem é produto do trabalho, pela maneira como dialeticamente constrói a si mesmo. Em relação a educação e tecnologia afirma: ―(...) a proposição mais geral da teoria do desenvolvimento social é a seguinte: é o trabalho que transforma o trabalho (cria as novas formas de trabalho - conceito da técnica como invenção, como o ―fazer o novo‖)‖ (PINTO, 2003, p. 47). Isto porque, na visão do autor, através da técnica como trabalho criativo é possível pensar a emancipação. Desde a leitura marxista o trabalho passou a ser a categoria pelo qual utilizamos para nos situarmos no mundo. Karl Marx em sua interpretação do trabalho pela dimensão ontológica compreende esta atividade como construção do humano, ou seja, o homem é o que é pelo trabalho criativo e transformador que realiza. Já, por outro lado, sua crítica histórica ao trabalho alienante da sociedade indústria entende que o trabalhador se desumaniza, pois através de atividades repetitivas e delimitadas o operário perde o vínculo com a identidade do trabalho criativo. A passagem para a formação flexível do modelo do toyotismo provocou alterações no trabalho como formação fechada do modelo fordista-taylorista. Segundo Foucault, na obra Nascimento da Biopolítica, a partir da Teoria do Capital Humano da ótica neoliberal, o trabalho passa a ser analisado a partir das estratégias de conduta de quem trabalha. O trabalhador deixa de ser um objeto no processo do capital e passa a ser sujeito. Nesse panorama neoliberal o trabalho aparece como retorno ao homo oeconomicus, mas não mais como homem parceiro da troca na concepção clássica e, sim, como um empresário, um empresário de si mesmo. ―(...) homo oeconomicus empresário de si mesmo, sendo ele próprio seu capital, sendo para si mesmo seu produtor, sendo para si mesmo a fonte de (sua) renda‖ (2008, p. 311). Se na economia clássica o indivíduo era explorado pela sua força de trabalho, agora na concepção neoliberal o indivíduo vale enquanto seu capital humano é útil para os interesses do mercado. A constituição de um capital humano funciona na racionalidade neoliberal como exercício do biopoder (poder sobre a vida). Agir sobre a população com o objetivo de estimular e garantir que haja capital humano é a meta da biopolítica neoliberal. Na educação este reflexo é visível na concepção de educação permanente. Gilles Deleuze (1992), no texto Post-Scriptum sobre as Sociedades de Controle, relaciona a educação permanente com o que chama de ―sociedade de controle‖. Para o autor, a educação em uma sociedade de controle aparece sob o modelo da empresa, ou seja, nessa realidade criase um ambiente de competição, tendo como princípio o salário por mérito e a ênfase na formação permanente. O autor aponta que na sociedade disciplinar era preciso sempre ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 208 recomeçar, seja na escola, na fábrica, etc., já na sociedade de controle nunca se termina nada. No texto a seguir, Deleuze descreve o que marca a escola nesta sociedade de controle: ―No regime das escolas: as formas de controle contínuo, avaliação contínua, e a ação da formação permanente sobre a escola, o abandono correspondente de qualquer pesquisa na Universidade, a introdução da ‗empresa‘ em todos os níveis de escolaridade‖ (DELEUZE, 1992, p. 226). Nesse sentido, a ideia de formação permanente/continuada além de constituir na sociedade de controle uma ferramenta capaz de instigar o indivíduo a estar sempre investindo em seu capital humano, também funciona como um poderoso elemento de construção de subjetividade, ou seja, um instrumento político para direcionar as condutas individuais e coletivas sob o modelo das competências e da criatividade. Para Aranha (1996, p. 244) a educação permanente é, ao mesmo tempo, uma exigência dos novos tempos e, também, uma condição de manter as pessoas ocupadas. Então, seria ilusório pensar que por meio dela haja transformação social e que, ao contrário, sua prática mantém os indivíduos ocupados consigo e, por consequência, fechados aos problemas éticos e políticos? No atual cenário de adaptação a economia informacional, a educação tecnológica tem exigido a ampliação da necessidade de formação permanente. Para buscar as competências requeridas pelo capital humano a educação torna-se um investimento, alvo não só do Estado e escolas privadas, mas também de empresas e do próprio trabalhador individualmente. Por um lado, teóricos como Manuel Castells e Gustavo Cardoso (2005, p. 19s) defendem que essa sociedade tecnológica, a qual denominam como Sociedade em Rede, caracterizada por um sistema de produção baseado na flexibilidade, na autonomia e na criatividade tem capacidades de performance superiores em relação aos anteriores sistemas tecnológicos. Afirmam ainda que: ―Sabemos, pelos estudos em diferentes sociedades, que a maior parte das vezes os utilizadores de Internet são mais sociáveis, têm mais amigos e contactos e são social e politicamente mais activos do que os não utilizadores‖ (CASTELLS; CARDOSO, 2006, p. 23). Por outro lado, segundo Moacir Viegas (2010, p. 173s) no modelo tayloristafordista o cotidiano da produção constitui-se em um ambiente de pura alienação, já no novo paradigma da economia informacional os trabalhadores tem maiores condições de expressar sua subjetividade. E o autor questiona: teria essa condição maior possibilidade de ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 209 emancipação? O autor afirma que os teóricos da teoria crítica já mostraram sua visão cética da possibilidade de emancipação da tecnologia. Assim expressa um dos teóricos: Parece que enquanto o conhecimento técnico expande o horizonte da atividade e do pensamento humanos, a autonomia do homem enquanto indivíduo, a sua capacidade de opor resistência ao crescente mecanismo de manipulação de massas, o seu poder de imaginação e o seu juízo independente sofreram aparentemente uma redução (HORKHEIMER, 2002, p. 26). Diante do paradoxo dos autores expostos uma questão surge: nessa sociedade tecnológica, onde os indivíduos têm maiores espaços para expressarem suas subjetividades, também estaríamos formando trabalhadores com maiores condições de emancipação social? Precisamos investigar se a formação que a nossa escola proporciona está problematizando esta relação entre trabalho, tecnologias e emancipação. Outra questão ainda se pode colocar: essa subjetividade que o trabalho flexível exige está funcionando a partir de que lógica, como adaptação ou autonomia? Retomando o conceito de capital humano a partir da visão de Foucault, percebe-se a construção de uma subjetividade38 para atender os interesses econômicos. A formação de competências visa formar um indivíduo com capital humano para o mercado de trabalho. (...) um capital humano no curso da vida dos indivíduos, que se colocam todos os problemas e que novos tipos de análise são apresentados pelos neoliberais. Formar capital humano, formar, portanto essas espécies de competência-máquina que vão produzir renda, ou melhor, que vão ser remuneradas por renda, quer dizer o quê? Quer dizer, é claro, fazer o que se chama de investimentos educacionais (FOUCAULT, 2008, p. 315). Quanto melhor seu capital humano maior a possibilidade de aumento da renda, mas também maior a possibilidade de desenvolvimento e crescimento para uma empresa, para o capitalismo. A busca pela permanente atualização do capital humano torna o indivíduo sujeitado pelos interesses econômicos, ou seja, seduzido pelos seus estímulos o A subjetividade, para Foucault, se refere às práticas por meio das quais o indivíduo constrói uma verdade sobre si. Em suas palavras, define subjetividade como: ―a maneira pela qual o sujeito faz a experiência de si mesmo num jogo de verdade, no qual ele se relaciona consigo mesmo‖ (FOUCAULT apud REVEL, 2005, p. 85). Abordar o tema da subjetividade na perspectiva foucaultiana significa tratar dos modos de subjetivação, ou seja, os modos – as práticas, as técnicas, os exercícios – colocados em ação em um determinado espaço institucionalizado, no qual o sujeito se constrói nas relações de saber-poder e na produção de verdade. Entender como os indivíduos através de práticas que os relacionam a si mesmo, se produzem e se transformam. E como isso, buscam a afirmação de uma subjetividade autônoma, como meio de superação das práticas de subjetivação (dominação do sujeito). 38 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 210 indivíduo direciona sua vida para escolhas e desejos que ele não fez, já foram estabelecidos por outros. Este cenário demonstra que estamos diante da construção de uma subjetividade submetida. Ideia também defendida por Viegas (2010, p. 186), o qual aponta que ao mesmo tempo em que há uma liberação da subjetividade do trabalhador, há também, uma submissão dela aos objetivos da produtividade. Retomando a relação educacional, Jean-Claude Forquin (1993, p. 20) ao tratar da educação na modernidade defende que não podemos nos satisfazer com um discurso pedagógico instrumentalista, que faz da tarefa da educação como único alvo a formação de espíritos ágeis, adaptáveis, flexíveis para estarem preparados para as eventualidades. Segundo Lukács (1969) nesta sociedade em que se tem ênfase o desenvolvimento das capacidades se tem na verdade uma alienação da personalidade humana, pois ela assume um caráter coercitivo em sua própria produção. Para superar esta coerção e buscar a autonomia se faz necessário designar o homem pelo trabalho como um ser que dá respostas. Pode-se ainda complementar afirmando que o homem só responde, porque há perguntas, problemas. E nisso a dimensão filosófica tem papel indispensável, como veremos a seguir. Desta maneira, retomemos a questão: como construir uma subjetividade emancipadora em meio a uma sociedade de consumo passivo de tecnologias e informação para adequar-se as necessidades do capital? A resposta pode estar na problematização da estrutura que sustenta a complexidade desta realidade: a informação/o conhecimento. Nesta sociedade tecnológica em que se exige do trabalhador cada vez mais domínio dos mais variados conjuntos de informação, dificilmente se está formando um sujeito capaz de produção de conhecimento, mas apenas como instrumento de reprodução do capital. ―Nenhuma outra criação humana tornou-se instrumento mais valioso na atualidade do que o conhecimento capaz de fazer com que o capital se reproduza‖ (BAIBICH; MENEGHETTI, 2008, p. 90). Ainda, segundo Baibich e Meneghetti (2008, p. 93) tal como a postura da dialética negativa de Adorno é preciso questionar os próprios pressupostos racionais que constroem a ciência. Já para Saviani (2007) o conhecimento deve ser o objeto do processo de ensino, pois compreender sua construção é indispensável para uma visão crítica do processo ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 211 produtivo. ―O papel fundamental da escola de nível médio será, então, o de recuperar essa relação entre o conhecimento e a prática do trabalho‖ (SAVIANI, 2007, p. 160)39. Para tal empreendimento, entende-se como indispensável a postura teórica assumida por Gilles Deleuze e Félix Guattari na definição de filosofia. Para esses autores, a tarefa da filosofia é o de criar conceitos, atitude que só é possível pela problematização. Todo o conceito remete a um problema, a problemas sem os quais não teria sentido, e que só podem ser isolados ou compreendidos na medida de sua solução (…). Mas, mesmo na filosofia, não se cria conceitos, a não ser em função dos problemas que se considerem mal vistos ou mal colocados (pedagogia do conceito) (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 27-28). Em Deleuze a criação de conceitos implica em uma atitude de criação de sentido, daquilo que é capaz de nos afetar, sendo que isso se realiza pela problematização. Os problemas são primeiros. É ponto de partida para construção de sentido e de criação de conceitos. A verdadeira liberdade de pensamento está no movimento de problematização. Estar envolvido pelo problema é questão indispensável para construir sentido e conhecimento. Ideia defendida também por Silvio Gallo no texto Filosofia e o exercício do pensamento conceitual na Educação Básica (2008). Para o autor, o problema é o ―motor de arranque do pensamento‖, aquilo que força a pensar, coloca o pensamento em movimento. O problema produz novas conexões, criações, conceitos. ―(...) problema e conceito são as duas pontas da filosofia, de um pensamento não ortodoxo. (...) Problema suscita conceitos e conceito suscita problemas. Uns retornam sobre os outros produzindo novas experiências de pensamento‖ (GALLO, 2008, p. 70). Pensar a filosofia a partir da articulação dos elementos conceito e problema é fundamental para a problematização da atualidade, da relação informação versus conhecimento e, reconhecer a filosofia como uma atividade política, no sentido, de que a formação do aluno na educação tecnológica seja voltada para sua emancipação. Referências Bibliográficas: Em uma primeira análise se percebe que os currículos dos cursos técnicos do IFPR não têm a disciplina de filosofia como componente curricular. Isso seria imprescindível para que o aluno tenha uma visão crítica do processo de construção do conhecimento e da ciência. Geralmente os cursos tem a disciplina de ética, a qual não abarca essa temática. 39 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 212 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. História da educação. Moderna. 1996. BAIBICH, Tânia M. B; MENEGHETTI, Francis K. Ética, educação e formação na sociedade tecnológica: contribuições de Adorno, Horkheimer e Marcuse para a pedagogia do antipreconceito. In: SCHMIDT, M.A; GARCIA, T. M. F. B; HORN, G.B. (Org.). Diálogos e perspectivas de investigação. Ijuí: Unijuí, 2008, p. 77-94. CASTELLS, Manuel; CARDOSO, Gustavo (Org.). Sociedade em Rede: do conhecimento à acção política. Conferência promovida pelo Presidente da República. Imprensa NacionalCasa da Moeda. 2006. DELEUZE, G. (1992b). Post-Scriptum sobre as Sociedades de Controle In - Conversações: 1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. FORQUIN, Jean-Claude. Escola e Cultura: as bases sociais e epistemológicas do conhecimento escolar. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993. FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (19781979). Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008. FRIGOTTO, Gaudêncio; CIAVATTA, Maria; RAMOS, Marise. 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ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 214 A FINITUDE E SUA RELAÇÃO COM O TEMPO NA FILOSOFIA DA NATUREZA DE HEGEL Dennis Donato Piasecki UNIOESTE/CAPES [email protected] Orientador: Luciano Carlos Utteich RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo analisar as relações entre o tempo, tal como concebido por Hegel na sua Naturphilosophie, e a finitude da matéria, que é determinada por sua própria natureza múltipla e dispersa, cujo estilhaçamento é exposto pela divisão entre o antes e o depois. Buscar-se-á também fazer alguns apontamentos sobre a tríade tempo, duração e eternidade e suas relações com a finitude das coisas expostas no tempo, inclusive no que concerne ao indivíduo vivo e a alterabilidade que lhe é inerente. Palavras-chave: Morte; tempo; Filosofia da Natureza; Hegel. Na sua Naturphilosophie, Hegel trata principalmente do conceito de tempo (Zeit) envolvido nas ciências físicas e não em sua relação com algum aspecto da consciência de sua percepção. O tempo é o ser, que, enquanto é, não é, e, enquanto não é, é; ele é o vira-ser intuído. O tempo é uma pura forma da sensibilidade ou do intuir40, é o sensível insensível. O tempo é a negatividade abstratamente referindo-se a si. No tempo, diz-se, tudo surge e (tudo passa) perece. Mas não é que no tempo surja e pereça tudo, porém o próprio tempo é este vir-a-ser, surgir e perecer, o abstrair essente, o Kronos que tudo pare, e que seus partos destrói (devora)41. A imagem da mitologia grega42 é pontual: o tempo é aquele que consome a si mesmo no seu vir-a-ser. È em seu devir referente a si, que lhe é a própria negatividade, a ―Não pode entender-se como se o espaço e o tempo fossem formas apenas subjetivas. A tais formas Kant queria reduzir o espaço e o tempo. Contudo, em verdade, as coisas mesmas são espaciais e temporais; essa dupla forma do ‗fora-um-do-outro‘ não lhes é introduzida unilateralmente por nossa intuição; mas já lhes é fornecida originariamente pelo espírito infinito essente em si, pela ideia eterna criadora‖. Cf. HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das ciências filosóficas. – A filosofia do espírito, 1995, p. 231, (§ 448 A). 41 HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das ciências filosóficas. – Filosofia da natureza, 1997, p. 55, (§ 258 A). 42 Kronos é o deus do tempo na mitologia grega, tendo em Saturno seu correspondente na mitologia romana. Por ter medo de ser destronado, comia todos os seus filhos quando nasciam. Devorou todos, menos Zeus, que conseguiu escapar e se vingar de seu pai. Não dá para deixar de mencionar a famosa obra de Francisco Goya (1746-1828), um dos mestres na representação do sofrimento humano, Saturno devorando seu filho (181940 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 215 negação da negação. O tempo é a própria morte exposta na constituição de seu criar e destruir, que é dado no agora, no instante, na constante mudança que não pode ser mediatizada a não ser por si, no momento do atualizar de sua abstração: Kronos destrói tudo que ele cria. Como indica Moraes43, pensar o tempo como esta abstração do consumir implica não toma-lo nem como coisa, nem com inerente às coisas, nem como ente da subjetividade da consciência finita, mas como algo que se abstrai do ato do consumir. Tal abstrair é uma necessidade do entendimento na sua função de separar e distinguir; o tempo mesmo é algo que não se deixa apreender empiricamente, pois, sempre que se tenta agarrá-lo pelos sentidos, ele se mostra inapreensível em sua fluidez. No tempo se faz justiça ao finito44, que não é finito por estar no tempo, mas, antes, está no tempo por ser finito. Por isso o finito é transitório e temporário, porque ele não é, como o conceito nele mesmo, a negatividade total, mas tem esta em si, de fato, como sua essência universal, entretanto – diferentemente da mesma essência – é unilateral, e por isso se relaciona à mesma (essência) como à sua potência. Só o natural é portanto, enquanto é finito, sujeito ao tempo; o verdadeiro, porém, a ideia, o espírito, é eterno45. Todo o finito está submetido à força do tempo e sucumbe no mesmo, assim como também se torna temporal por meio do tempo46. Traz consigo a sua temporalidade, porque tem em si a contradição da finitude e do ser natural, a sua unilateralidade no processo, que toma o negativo como essência, mas não em sua totalidade; a sua temporalidade, assim, é a forma na qual a contradição aparece nele. Já no conceito a contradição resolve-se, o finito não tem lugar nele e o tempo não consegue impor sua potência sobre ele: o conceito está fora do tempo, visto que a temporalidade é a forma da exterioridade do próprio conceito. 1823). Amargurado pela surdez e pela turbulência de sua época, no fim da vida (curiosamente!) Goya criou várias obras sombrias e perturbadoras. Algumas das mais notáveis fazem parte das Pinturas negras (entre elas a mencionada acima) – assim chamadas por causa das cores escuras e do clima sóbrio – que ele começou a pintar em 1820, na Quinta del Sordo, sua casa nos arredores de Madrid. Cf. FARTHING, Stephen (org.). 501 grandes artistas. 2009, pp. 164-167. 43 MORAES, Alfredo de Oliveira. A metafísica do conceito, 2003, pp. 176-180. 44 ―O tempo é o modo geral do nascimento e da morte, vistos no grau do ser outro e da exterioridade. O fato de tudo nascer e morrer ―no tempo‖ é muito conhecido, mas não é a verdade do tempo, pois o tempo não é qualquer coisa de diferente desse nascer e morrer: se se lhe removesse o conteúdo que nele nasce e morre nem por isso careceria do devir‖. Cf. HARTMANN, N. A filosofia do Idealismo alemão, 1983, p. 574. 45 HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das ciências filosóficas. – Filosofia da natureza, 1997, p. 56, (§ 258 A). 46 ―A cada instante do tempo o ser finito, enquanto efetivamente existente, é (existe), mas, por depender de condições por ele não controladas para existir, pode por igual não-ser (deixar de existir): ele não é capaz de eliminar a possibilidade de sua própria dissolução‖. LUFT, Eduardo. As sementes da dúvida, 2001, p. 180. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 216 Ora, quando lidamos com o finito estamos já no tempo, pois só o ser finito parece comportar uma separação entre um antes e um depois. A possibilidade de tal dissociação em geral deve, pois, encontrar-se no seio do ser finito: aquilo que constitui a definição das coisas finitas, aquilo que as torna corruptíveis e mortais é a diferença que apresentam entre o conceito e a realidade, onde corpo e alma se cindem. A finitude das coisas, como já foi observado, inscreve-se sobre o plano de fundo desta divisão originária (Urteil). Que o finito desapareça não é consequência de uma mera contingência. Ele volta-se à desaparição por sua própria natureza múltipla e dispersa, cujo estilhaçamento é exposto pela divisão entre o antes e o depois47. No tocante ao que até agora foi abordado, cabe fazer alguns apontamentos sobre a tríade tempo, duração e eternidade e suas relações com a finitude das coisas expostas no tempo. Que se permita a longa citação da Filosofia da natureza: O agora tem um enorme direito – ele é nada como o agora singular; mas este excludente em seu pavonear-se é dissolvido, liquefeito, pulverizado enquanto eu o (digo ou) pronuncio. A duração é o universal deste agora e daquele agora, é o ser-suprassumido deste processo das coisas, que não duram. Porém as coisas finitas são todas temporais, pois estão sujeitas à alteração por pouco ou por longo (tempo); sua duração, com isto é relativa. A intemporabilidade absoluta é diferente da duração; é a eternidade que é sem o tempo natural. A eternidade não será, nem foi, mas ela é. A duração é apenas um relativo suprassumir do tempo; mas a eternidade é duração infinita. O que não está no tempo é o semprocesso; o péssimo e o mais perfeito (isto) não está no tempo, dura. Mas a duração não é vantagem. O duradouro é mais altamente cotado do que o (breve) transitório; mas toda florescência, toda bela vitalidade tem morte cedo48. O agora (jetzt) é o simples indivisível; é um limite simples e vazio, não sendo determinável e que exclui de si toda a multiplicidade. Esta singularidade do agora traz consigo também a característica de ser um imediato, onde o limite simples é o que se diferencia absolutamente, logo o tempo não é senão o seu próprio diferenciar-se, que tem no momento da dimensão do presente (com o agora) seu acontecer. A duração diferenciase do tempo, do agora, por ser a suprassunção destes no seu constituir. ―O entendimento visa a essência passageira e temporal do finito, mas não consegue concebe-la, ainda mais por mostrar-se incapaz de captar o finito como um nada e o ser deste como um ser que tem apenas o valor e a significação do não ser. Tal é a impotência do entendimento, justamente aquela que está na origem do destino que põe o entendimento à mercê da oni-potência do tempo‖. Cf. ARANTES, Paulo Eduardo. Hegel – a ordem do tempo, 1981, pp. 73-80. 48 HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das ciências filosóficas. – Filosofia da natureza, 1997, pp. 56-57, (§ 258 A). 47 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 217 Mas isso não quer dizer que durar seja algo vantajoso para a coisa. Por exemplo, ―a terra aparece como um produto morto. Ela dura. Os membros da terra por isso permanecem, e isto não é nenhuma vantagem; o ser vivo, ao contrário, tem o privilégio de surgir e desaparecer49―. Algo como o Sol, a natureza inorgânica e até as pirâmides50 do Egito duram; mas esta sua ―durabilidade‖ não lhes dá o certificado de serem superiores ao transitório ou efêmero: Hegel assume que é exatamente o inferior que têm uma duração especialmente longa, como é o caso, por exemplo, do inorgânico em relação ao orgânico, de figuras medíocres comparadas com indivíduos que pertencem à história mundial51. Como nos aponta Hosle, um nível de ―maior complexidade oferece mais ocasião de ataque: um organismo unicelular, justamente por ser tão simples e exercer tão poucas funções, corre menos perigo que o de um vertebrado‖52. Porém as coisas finitas estão todas no tempo e mais dia, menos dia, também terão seu desaparecimento, pois estão envoltas na mudança, pelas alterações que se dão através do próprio tempo. Quanto à eternidade53 (Ewigkeit), se deve fazer diferença entre ela e a temporalidade. A eternidade, ainda que possa se apresentar como duração infinita, não está no tempo. Hegel não compreende a eternidade como algo além, que viesse após o tempo, pois desse modo ―a eternidade seria transformada no futuro, em um momento do tempo‖54. Hegel sugere que a eternidade é anterior ao próprio tempo e isto tem consequências no pensamento do alemão no que tange à imortalidade. A imortalidade genuína requer uma Idem, Ibidem, p. 360, (§ 339 A). Curioso provérbio árabe: ―O tempo ri-se de tudo, mas as pirâmides riem-se do tempo‖. 51 ―Alexandre Magno, esta individualidade infinitamente forte, não permanece; somente persistem seus feitos, suas ações, isto é, o mundo por ele suscitado‖. HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das ciências filosóficas. – Filosofia da natureza, 1997, p, 57, (§ 258 A). 52 HOSLE, Vittorio. O sistema de Hegel, 2007, pp. 345-346. 53 Sobre o entrelaçamento das dimensões do tempo em Hegel: ―No sentido positivo do tempo pode-se pois dizer: só o presente é, o antes e depois não é; mas o presente concreto é o resultado do passado, e está prenhe do futuro. O verdadeiro presente é assim a eternidade‖. Cf. HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das ciências filosóficas. – Filosofia da natureza, 1997, p. 60, (§ 259 A). Uma explicação: ―Ora, pode-se dizer, então, que as dimensões do tempo não apresentam entre si nenhuma diferença efetiva. Só o entendimento no que lhe é peculiar, ou seja, na sua capacidade de separar e distinguir, pode hipostasiar cada dimensão do tempo e permitir assim a cada uma corresponder ao seu conceito. Passado é presente que já não é, o futuro é presente que não é ainda, e o presente esmo sempre se esfuma num e noutro, quando tentamos surpreendê-lo‖. Cf. MORAES, Alfredo de Oliveira. A metafísica do conceito, 2003, p. 179. 54 HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das ciências filosóficas. – Filosofia da natureza, 1997, p. 56, (§ 258). ―A eternidade não é antes nem depois do tempo, não antes da criação do mundo nem quando ele se acaba; mas a eternidade é presente absoluto, o agora, sem antes nem depois. O finito é temporal, tem um antes e um depois; e quando se tem o finito diante de si se está no tempo. Seu tempo começa com ele e o tempo é só do finito. A filosofia é compreensão intemporal também do tempo e de todas as coisas em geral, segundo sua determinação eterna. O tempo infinito é só uma representação, um ir-além que permanece no negativo‖. Idem, Ibidem, p. 28, (§ 247 A). 49 50 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 218 constância no tempo; logo o conceito e o espírito55, que são eternos, não podem ser imortais, pois estão desvinculados do tempo. A imortalidade no sentido de eternidade que Hegel reivindica para o espírito equivale apenas à capacidade do homem para abstrair de sua posição espaço-temporal e estudar tais assuntos não-temporais como lógicos, e à significação universal, espiritual, que uma pessoa adquire por sua morte. Hegel admite a possibilidade de pensamento puro, no qual eu me abstraio do meu contexto histórico a fim de me dedicar a um pensar lógico, intemporal, acerca da natureza das coisas. Mas, ao fazê-lo, perco todo o senso de mim mesmo como indivíduo distinto cuja sobrevivência é possível ou desejável. O que importa para Hegel é a persistência não de indivíduos, mas das estruturas intersubjetivas do espírito 56. Esta caracterização hegeliana de uma impossibilidade da imortalidade individual 57 e até mesmo espiritual, visto que o espírito não está no tempo, encontra reflexos nas suas críticas a respeito da infinitude, ou melhor, da má infinitude aos moldes kantianos. Para Hegel, Kant havia concebido uma má infinitude nas suas ideias teóricas e práticas ao nível do conceito. As infinitudes criticadas por Kant na sua Crítica da razão pura58 eram más infinitude das intermináveis séries matemáticas, prolongando-se até ao infinitamente grande e recrudescendo até ao infinitamente pequeno. No mesmo feixe de ideias, a infinitude postulada na filosofia prática kantiana59 era de uma espécie que fazia da moralidade uma tarefa sem fim, algo que não se podia poupar esforços para alcançar através de toda a eternidade. Em vez dessas noções de infinitude, Hegel propõe uma infinitude em que o infinito não é visto simplesmente como negação do finito, mas como internalizado no mesmo. Em Hegel, temporalidade e finitude são co-extensivos; as coisas finitas são mortais e contingentes, isto é, estão no tempo – sua potência – porque se definem pela separação de seu conceito e de seu ser; em contrapartida, somente o espírito, que está no elemento do universal, evolui no elemento da eternidade. 56 INWOOD, Michael. Dicionário Hegel, 1997, pp. 228-230. 57 ―Conforme sua crítica ao mau infinito, que permanece um finito justamente como algo do além, na medida em que tem algo em face de si, Hegel rejeita a concepção segundo a qual a alma existiria independente do corpo. De fato Hegel parece simpatizar com a concepção aristotelizante-averroísta, segundo a qual apenas a razão supra-individual é imortal – ela é, afinal, a essência do mundo. Segundo consta, quando sua mulher uma vez o interrogou sobre isso (a imortalidade da alma), ele teria, ‗sem gastar uma só palavra, apontado com o dedo para a Bíblia‖. Cf. HOSLE, Vittorio. O sistema de Hegel, 2007, p. 393. 58 Cf. KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura, 2010, pp. 392-418 (B 454 – B 489 ). 59Kant define o que é um postulado da razão prática pura: ―Uma proposição teórica mas indemonstrável enquanto tal, na medida em que ele é inseparavelmente inerente a uma lei prática que vale incondicionalmente a priori‖. Cf. KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática, 2003, pp. 425 – 477. Para se aproximar da santidade, requerida como prática de toda razão, e que só pode se espraiar num progresso ao infinito, este (progresso ao infinito) só é alcançável através da postulação da imortalidade: uma existência do ente racional que perdure ao infinito. Para uma crítica de Hegel aos postulados da razão prática, cf. MULLER, Marcos Lutz. A crítica de Hegel aos postulados da razâo prática como deslocamentos dissimuladores. IN:_ Veritas, Porto Alegre, Vol. 43, Nº 4, 1998 , pp. 927-960. 55 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 219 Desta forma, a filosofia prática, tema da segunda crítica de Kant, podia tornar-se concretizada dentro desta vida e não exigia a interminável tarefa implícita no postulado da imortalidade da alma, por exemplo. Quanto a isso, Hegel assim se expressa: Essa infinitude é a má ou negativa infinitude, enquanto nada é senão a negação do finito, o qual entretanto nasce também de novo; por isso igualmente não está suprassumido; ou seja, essa infinitude exprime apenas o dever-ser do suprassumir do finito. O progresso até o infinito fica no enunciar da contradição que o finito contém – de que é tanto Algo como é seu Outro; e é o prosseguir, que se pereniza, da alternância dessas determinações que se causam uma á outra60. De resto, se pode fazer uma contraposição a esta crítica de Hegel, no que Kant expõe no seu opúsculo O fim de todas as coisas (1794). Nele, como explica Artur Morão, Kant busca transformar a teologia em antropologia, a religião em moralidade, retirando todos os elementos místicos da fé histórica e transmudando-os para uma fé moral, onde ―tudo o que é histórico e sobrenatural se circunscreve à medida do homem com a sua razão e se subordina à sua realização moral61―. A imortalidade, que se apresenta como uma espécie de vida eterna nas doutrinas religiosas (principalmente no catolicismo) é criticada por Kant, pois ela teria a característica de ser uma passagem do homem, ao morrer, no tempo para a eternidade, o que, segundo Kant, é um erro se por eternidade for entendido um tempo que se estende até ao infinito, o que resultaria também numa má infinitude. Nesse sentido, Kant e Hegel parecem convergir na mesma perspectiva da impossibilidade de uma genuína imortalidade das coisas e até mesmo do próprio espírito. Mas como se dá a relação do tempo com o indivíduo imerso no mundo natural? No indivíduo, como tal, é de outro modo, (aí) está de um lado o gênero; a vida mais bela é a que une perfeitamente o universal e sua HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das ciências filosóficas. – A ciência da lógica, 1995, pp. 189-190, (§ 94). Cf. KANT, Immanuel. O fim de todas as coisas. In: Biblioteca online de Filosofia e cultura. Disponível em: < http://www.lusosofia.net/textos/kant_o_fim_de_todas_as_coisas.pdf>. Acesso em: 10 jul. 2013. Continua Morão: ―(Neste texto) aborda-se tão-só a doutrina que, tradicionalmente, se refere aos Novíssimos (morte, juízo, inferno e paraíso). Respeitoso para com o cristianismo (que, no entanto, empobrece e desfigura), coerente consigo mesmo, Kant expurga o tema do Juízo de todos os resquícios míticos e reduz a sua substância à exigência e ao veredicto da razão moral‖. Segundo Kant: ―É uma expressão corrente, sobretudo na linguagem religiosa, aplicar a um homem que está a morrer a expressão de que ele passa do tempo à eternidade. Esta expressão nada diria se por eternidade se entendesse aqui um tempo que se estende até ao infinito; porque assim o homem nunca sairia do tempo, antes passaria constantemente de um a outro. Deve, pois, entender-se por ela um fim de todo o tempo, com a ininterrupta duração do homem. Mas tal duração (olhada a sua existência como grandeza) considerar-se-á, todavia, como uma grandeza de todo incomparável (duração noúmenon) com o tempo, da qual não podemos fazer conceito algum (excepto apenas negativo)‖. Idem, Ibidem,, p. 1. 60 61 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 220 individualidade em uma figura (Gestalt). Mas também então o indivíduo está separado do universal, e assim é um lado do processo, a alterabilidade; após este momento mortal ele cai no tempo62. No pensar de Hegel, o ser-aí, a determinidade, põe-se também como a negação, que é limite e fronteira, de tal modo que a finitude e a alterabilidade pertencem especificamente ao ser-aí. O ser-aí (dasein) sendo alterável, logo está submetido à mudança, justamente por ser finito. O conceito de indivíduo implica a determinação da alteração e esta é a manifestação daquilo que o ser-aí é em si. Assim sendo, a alterabilidade constitui um dos lados do processo, e é por isso que, de acordo com sua determinação, o indivíduo finito cai no tempo. A sua separação do universal, a alteração mesma inserida no próprio indivíduo, é o seu limite, sua realidade; mas também é a sua negação. Com isso está expressa, de maneira geral, a natureza do finito, que enquanto Algo não defronta indiferentemente o Outro, mas é em si o Outro de si mesmo, e por isso se altera. Mas essa ―alterabilidade‖ do seraí aparece à representação como uma simples possibilidade, cuja realização não está fundada nela mesma. De fato, porém, alterar-se reside no conceito do ser-aí, e a alteração é só a manifestação do que o ser-aí é em si. O vivente morre, e na verdade simplesmente pelo motivo de que, como tal, carrega dentro de si mesmo o gérmen da morte63. Esta contradição, que envolve todo o ser-aí (ser vivo), de ser em si o gênero, apesar de existir como indivíduo, e só ganhar sua verdade de singular no espírito, onde a universalidade (gênero) é para si, e desta forma, a morte animal não sendo conduzida a um mau infinito de vidas e mortes sem significação, é o que ganha sentido na morte do indivíduo e força do gênero, ponto mais alto da natureza em sua exteriorização. Referências Bibliográficas: ARANTES, Paulo Eduardo. Hegel – a ordem do tempo. São Paulo: Editora Polis, 1981. FARTHING, Stephen (org.). 501 grandes artistas. Rio de Janeiro: Sextante, 2009. HARTMANN, N. A filosofia do Idealismo alemão. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1983. HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das ciências filosóficas. A Ciência da lógica. São Paulo: Edições Loyola, 1995. 62 63 HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das ciências filosóficas. – Filosofia da natureza, 1997, p. 57, (§ 258 A). HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das ciências filosóficas. – A ciência da lógica, 1995, p. 189, (§ 92 A). ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 221 --------------------- Enciclopédia das ciências filosóficas. Filosofia da natureza. São Paulo: Edições Loyola, 1997. -------------------- Enciclopédia das ciências filosóficas. A Filosofia do espírito. São Paulo: Edições Loyola, 1995. HÖSLE, V. O Sistema de Hegel. São Paulo: Loyola, 2007. INWOOD, M. Dicionário Hegel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997. KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2010. ----------------------- Crítica da Razão Prática. São Paulo: Martins Fontes, 2003. ---------------------- O fim de todas as coisas. In: Biblioteca online de Filosofia e cultura. Disponível em: < http://www.lusosofia.net/textos/kant_o_fim_de_todas_as_coisas.pdf>. Acesso em: 10 jul. 2013 MORAES, Alfredo de Oliveira. A metafísica do conceito. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003. MULLER, Marcos Lutz. A crítica de Hegel aos postulados da razâo prática como deslocamentos dissimuladores. IN:_ Veritas, Porto Alegre, Vol. 43, Nº 4, 1998. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 222 ENTRE AS BOAS LEIS E AS BOAS ARMAS: OS FUNDAMENTOS DO ESTADO EM MAQUIAVEL E A PRIMAZIA MILITAR Douglas Antônio Fedel Zorzo Mestrando em Filosofia pela UNIOESTE/PR – Bolsista Capes/CNPq [email protected] Orientador: Prof. Dr. José Luiz Ames RESUMO: Os Estados, para Maquiavel, devem possuir como fundamento de suas estruturas políticas dois sólidos elementos: boas armas e boas leis. Essa normal geral da ação política é construída pelo Secretário florentino desde seus Primi Scritti Politici ecoando fundamentalmente em suas obras clássicas. No entanto, o aspecto positivo dessas esferas essenciais pode ser observado somente na medida em que atuarem concomitante e articulatoriamente: leis, por si, não bastam; a força, sem dispositivos legais, é malograda. Porém, Maquiavel entrelaça estruturalmente o campo legal e o militar de modo que a eficácia das leis acaba condicionada à realidade das boas armas. De fato, a necessidade de amar-se encaminha os dispositivos legais ao aperfeiçoamento político, enquanto condição para as milícias próprias. Palavras-chave: Maquiavel. Fundamentos do Estado. Leis e armas. Armas próprias. Todos os Estados para serem erigidos com segurança, e assim manter-se, devem possuir em sua base dois sólidos elementos: boas armas e boas leis. Para Nicolau Maquiavel são esses os fundamentos de todo e qualquer organismo político. Este postulado aproximase de uma verdade axiomática para o Secretário. A existência dos Estados está sujeita ao modo como essas duas esferas são constituídas e articuladas no interior do aparelho estatal. Esta é uma lei universal e imutável da política: um exército forte e a capacidade governativa são as duas pilastras sobre as quais se apoia qualquer Estado. Considerando a importância que a teoria maquiaveliana atribuiu a essas duas esferas, o trabalho aqui apresentado possui um duplo propósito: por um lado, a partir de uma breve análise das obras do Secretário florentino, situar o modo pelo qual essa tese alcançou proeminência e se fixou como uma verdade inquestionável; por outro lado, indicar a dinâmica de complementaridade que leis e armas desempenham no interior de um Estado, dedicando particular atenção ao aspecto de superioridade que a esfera militar granjeia. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 223 A construção da tese maquiaveliana: as boas armas e as boas leis Nos Primi scritti politici64 de Maquiavel a ideia de que boas armas e boas leis eram os fundamentos dos Estados já estava fortemente presente. Esse conjunto de textos, redigidos enquanto servia a segunda Chancelaria de Florença, possuem em estágio embrionário algumas das concepções políticas que serão desenvolvidas com maior rigor e acuidade em suas obras clássicas. De modo particular, o posicionamento acerca dos fundamentos do Estado é algo enunciado por Maquiavel nesses escritos de forma acabada, atravessando posteriormente todas as obras ―maduras‖ do Secretário, escritas no isolamento das atividades práticas da política em Sant‘Andrea in Percussina. Dessa forma, armas e leis são os alicerces da política: essa é uma assunção teórica que não apresenta a oportunidade de ser reformulada ou sequer questionada. A constatação do papel decisivo desempenhado pela força aliada às leis no interior do Estado é apresentada pela primeira vez nas Parole da dirle sopra la provisione del danaio, facto un poco di proemio et di scusa65, texto de 1503 composto para solucionar um problema muito específico e prático da República de Florença: a carência de armas e a resistência da classe governativa em aprovar novas taxas para armar a cidade. Assim, diz Maquiavel com o intuito de persuadir as esferas governativas a abandonaram sua postura irresoluta e aprovar as indispensáveis taxas, que ―Todos os Estados (città) que em um momento determinado (...) tenha sido governado por um príncipe absoluto, por optimates ou pelo povo (...) tem contado como base de sua defesa com a força unida à prudência‖. Essa interação decorre de que a prudência ―sozinha não basta‖, e a força ―ou não chega a resolver os assuntos, ou, se os resolve, não consegue torná-los duradouros‖. Assim, essas duas esferas ―são o nervo de todos os Estados (signorie) que foram ou serão no mundo‖ (Parole, p. 12). Consequentemente, a privação de um desses âmbitos é a razão do esfacelamento dos corpos políticos. Nesse sentido, afirma o Secretário florentino, a mutação dos reinos, a ruína das províncias e das cidades não é nada além ―do que a carência de armas ou de sentido comum (senno)‖. (Parole, p. 12). E o fim desses Estados é essencialmente desastroso, fatidicamente ocorrendo ou ―pela destruição ou pela servidão‖ (Parole, p. 13). No entanto, apesar da dramaticidade com que Maquiavel realiza essas afirmações, em um texto voltado exatamente para alertar os florentinos da carência dessas armas, como Seguimos a designação dada por J. J. Marchand na edição de 1975, Niccolò Machiavelli. I primi scritti politici (1499-1512). Pádua: Antenore. 65 Doravante, Parole. Todas as passagens que porventura utilizarmos são de nossa tradução. 64 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 224 era o caso das Parole, o mais relevante para nosso propósito é observar a dimensão que a tese alcança: força e prudência não são princípios diretivos que apenas Florença deveria providenciar, mas algo que todos os corpos políticos deveriam prezar. Assim, do caso particular florentino emana uma norma geral que preanuncia fortemente O Príncipe, os Discursos e aqui também a Arte da Guerra: ―todo Estado, para manter-se, deve estar bem armado; a força, e a força somente, é aquela que induz os outros ao respeito nas relações entre Estados‖ (CHABOD, 1964, p. 325). Com o mesmo teor universalista Maquiavel reapresentava sua tese em um documento de 1506 que serviria de base para uma futura lei sobre as ordenanças florentinas, o La cagione della‟ordinanza, dove la si truovi et quel che bisogni fare.66 Assim, como uma verdade claramente manifesta, afirma que ―todos sabem que quem diz império, reino, principado, república, quem diz homens que comandam (...), está dizendo justiça e armas‖ (La cagione, p. 26). Certamente, isto fica ainda mais explícito na própria lei que regulamentava e institucionalizava as milícias em Florença, a Provisione della Ordinanza67, escrita (tanto a lei quanto o projeto) pelo então Secretário florentino. O texto é aberto com termos similares aos apresentados anteriormente. Assim, considerando todas as repúblicas ―que em tempos passados se mantiveram e engrandeceram, contaram sempre com duas coisas como seu principal fundamento, isto é: a justiça e as armas‖ (Provisione, p. 31). Nos escritos políticos clássicos essa posição ecoa claramente as Parole, a La cagione e a Provisione. Nos capítulos voltados aos assuntos militares do Príncipe, Maquiavel afirmava em termos análogos que ―os principais fundamentos de todos os estados, tanto dos novos como dos velhos ou dos mistos, são boas leis e boas armas‖. Mas acrescenta uma importante observação – que analisaremos posteriormente – de que ―não se podem ter boas leis onde não existem boas armas, e onde são boas as armas costumas ser boas as leis‖ (O Príncipe, XII, p. 57). Essa passagem parece ser recordada por Maquiavel, quando nos Discursos escreve que ―embora doutra vez já tenha dito que o fundamento de todos estados é a boa milícia, e que onde ela não existe não pode haver boas leis nem coisa alguma que seja boa, não me parece supérfluo repeti-lo‖ (Discursos, III, 31, p. 416-7). A complementaridade e a primazia militar 66 67 A partir de agora, La cagione. São nossas as traduções. Ou apenas Provisione. A tradução do italiano, novamente, é de nossa autoria. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 225 Com essa investigação, em parte bibliográfica e em parte histórica, identificamos o par indissociável de elementos que conferem solidez e segurança ao corpo político: de um lado a prudência, o sentido comum, a justiça e as boas leis, que podem ser apontados como termos sinônimos, enquanto expressão das capacidades de governo da classe política dirigente, e por outro, a força, as boas armas, a boa milícia, o braço armado do Estado responsável pela segurança dos indivíduos em seu interior e por assegurar sua posição exterior diante das demais potências. Todavia, é essencial notarmos o caráter complementar e articulatório existente entre essas duas esferas. Como salientava Maquiavel nas Parole (p. 12), as leis, por si, não são suficientes para assegurarem a ordem, tanto interna quanto externa, do corpo político; a força, por sua vez, também sozinha não é capaz de conferir segurança ao Estado, ou ainda que conseguisse algum resultado satisfatório, sem os mecanismos legais, dificilmente teria a capacidade de conservá-lo. Logo, a possibilidade de criar algo sólido e duradouro só pode ser observada na medida em que atuarem concomitantemente, isto é, cada qual desempenhando sua devida função no organismo político, porquanto nenhuma delas é capaz de manter o bom funcionamento do aparelho estatal por si. Mas esse aspecto necessário de complementaridade que assumem não isenta Maquiavel de traçar, em termos qualitativos, a superioridade de um desses âmbitos sobre o outro. É justamente isso que o Secretário afirmava na passagem supracitada do capítulo XII do Príncipe e que reforçava no capítulo 31 do terceiro Livro dos Discursos: só existe a possibilidade de existirem boas leis no lugar onde as boas armas também se revelarem presentes. Apenas a capacidade militar pode conferir estabilidade ao conjunto legal do Estado. Todas as ordenações estabelecidas em uma cidade ―para que se viva no temor das leis e de Deus‖ seria em vão caso ―não fossem preparadas para suas defesas‖. Defesas essas que ―se bem ordenadas, mantêm tais coisas, ainda que estas não sejam bem ordenadas‖. E, caso contrário, as boas ordenações, sem o socorro militar se desordenariam ―tanto quanto as instalações de algum soberbo e régio palácio que, conquanto ornadas de gemas e de ouro, em não estando cobertas, nada teriam que da chuva as protegesse‖. (Arte da Guerra, Proêmio, p. 77-8). A primazia pelas armas não pode ser simplificada como um mero movimento estilístico por parte do autor, como propõe Gennaro Sasso. Escorado no capítulo XII d‘O Príncipe, o comentador afirma que ―aquilo que unicamente Maquiavel diz é que, posta a complementaridade dos dois termos, a ele é bem lícito, segundo a específica oportunidade ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 226 do discurso, tratar das armas e deixar sobre o fundo as leis‖ (SASSO, 1980, p. 343). A insistência maquiaveliana sobre este ponto não nos autoriza a resolver o problema desta maneira. Com efeito, apesar de compartilharem a mesma condição, a de base do corpo político, Maquiavel entrelaça estruturalmente esses termos de maneira que a eficácia das leis acaba, de certo modo, condicionada à realidade das boas armas. A relativa diferença das posições ocupadas pela estrutura militar e pela estrutura política pode ser explicada se compreendermos que a qualidade bélica do corpo político mantém uma estreita relação com a qualidade de sua organização política e constitucional. Um aparato militar razoável pressupõe que as leis que o regulamentaram também sejam favoráveis, uma vez que possibilitaram o estabelecimento dessa estrutura. Todavia, isso ainda não esgota a questão da superioridade das armas sobre as leis. Por certo, prover a cidade de um exército só é algo possível se a própria organização política também sofrer significativas alterações. É nesse sentido que Maquiavel afirma que onde são boas as armas também as leis costumam ser boas: ali, o conjunto legal sofreu modificações – para melhor, é lícito supormos – que permitiram a inclusão dessa estrutura no corpo político, algo que só é possível se algumas condições políticas bem determinadas também forem observadas. Além disso, a questão da prioridade das armas é permeada pela necessidade da sobrevivência do próprio organismo estatal. Nesse sentido, a exigência de um bom governo é determinada por um motivo maior: a existência do próprio Estado. Armar os súditos ou cidadãos, no entanto, só se torna uma realidade possível se existir uma estreita relação de fidelidade68 entre os indivíduos e o Estado ao qual pertencem. Favorecer essa ligação, através das leis, é uma das principais circunstâncias – quiçá a principal – para que a defesa dos interesses políticos estatais seja feita através dos seus próprios meios. Em suma, boas leis são necessárias para que haja essa maior identificação entre cidadãos e Estado. E a razão essencial que impele a essa identificação é a imprescindibilidade do corpo armado para garantir a autonomia do corpo político. Do mesmo modo, compreendemos, no encalço de Frosini (2004, p. 16), que existe aqui um problema de consenso, uma vez que é ingenuidade pretender ―fidelidade e lealdade se não existe uma base de reciprocidade dada pelo bom governo e pelos direitos‖. Ao faltar o bom governo, a fidelidade entra em processo de colapso, expondo o Estado a qualquer potência disposta a dominá-la. Existe assim, destaca o comentador italiano, ―uma prioridade lógica da guerra sobre a política, pela qual a guerra Era justamente a falta dessa fidelidade em Florença que Maquiavel denunciava com veemência nas Parole (Cf. p. 13). 68 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 227 determina as formas ―boas‖ da política‖. Em outras palavras, somente quando os indivíduos não encaram o próprio Estado como um inimigo em potencial é que surge a possibilidade de um bom exército florescer. Desse modo, as armas assumem de modo definitivo sua posição no jogo político. No final das contas são elas que asseguram a existência do próprio jogo. Externamente, são responsáveis por asseverarem a posição política de um Estado diante das demais potências, isto é, por criarem uma condição de igualdade política na esfera internacional, que torna possível o relacionamento com os demais Estados sem o temor de uma latente invasão e submissão.69 Internamente, enquanto exigência para sua própria implementação, as armas são responsáveis pelo reordenamento constitucional, adequando as estruturas estatais para uma maior identificação entre Estado e indivíduo, entre pátria e patriota. E, exatamente por esse movimento de reestruturação, superiores às leis. Mas, além disso, e não menos importante, essa relação entre a esfera militar e a legal se apresentará como pano de fundo para orientar o pensamento maquiaveliano em sua noção de soldado cidadão e milícias próprias, fortemente presente n‘A Arte da Guerra, mas que perpassa todas as obras clássicas. Cidadão e soldado, reunidos na figura do mesmo indivíduo, seriam a expressão sublime da participação política ativa do povo em sua totalidade na esfera pública de governo. Assim, leis e armas estariam direcionadas ao modelo mais fluído do republicanismo primado por Maquiavel: a república popular, mas por ora investigar esses pormenores excede o esforço aqui proposto. Referências Bibliográficas: CHABOD, Federico. Scritti su Machiavelli. Torino: Giulio Einaudi Editore, 1993. FROSINI, Fabio. Guerra e Politica: considerazioni su alcuni testi di Machiavelli. Università di Urbino - IESA, 2004. Disponível em: < http://digital.csic.es/bitstream/10261/2093/1/17-04.pdf>. Acesso em 20/09/2013. MACHIAVELLI, Niccolò. Opere. Org. Corrado Vivanti. Torino: Einaudi-Gallimard, 1997. MAQUIAVEL, Nicolau. A Arte da Guerra. Trad. de MF. São Paulo: Martins Fontes, 2006. A política entre Estados só é possível se escorada em um eficaz regimento militar, pois se "entre os homens privados são as leis, os escritos e os pactos o que fazem observar a fé", "entre os senhores somente as armas a mantém" (Parole, p. 14) 69 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 228 ______. Discursos sobre a primeira década de Tito Livio. Trad. de MF. São Paulo: Martins Fontes, 2007. ______. O Príncipe. 2ª ed. Trad. de Maria Júlia Goldwasser. São Paulo: Martins Fontes, 1998. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 229 O ESPÍRITO LIVRE DE SÓCRATES: UMA LEITURA A PARTIR DE NIETZSCHE Douglas Meneghatti UNIOESTE/Campus de Toledo [email protected] RESUMO: Nietzsche apresenta Sócrates como o responsável pela dissolução da tragédia e pelo declínio da sabedoria trágica grega, além de criticá-lo por seus comportamentos racionais e moralizantes diante da vida e da ciência, para se referir ao filósofo ateniense usa expressões como: ―demônio‖, ―moribundo‖ e ―doente‖. A partir disso, o trabalho se restringe a analisar a outra face de Sócrates descrita por Nietzsche na obra Humano, demasiado humano, na qual Sócrates se torna exemplo positivo de otimismo teórico científico, uma vez que o filósofo alemão não hesita em classificá-lo como espírito livre. Palavras-chave: Sócrates, Espírito livre, Trabalho, Educação, Marx. Espíritos livres No capítulo referente à Humano, demasiado humano da obra Ecce homo, Nietzsche explica o significado da expressão espírito livre: ―(...) a expressão ‗espírito livre‘ quer ser entendida: um espírito tornado livre, que de si mesmo de novo tomou posse‖ (EH/EH ―Humano, demasiado humano‖ § 1). Para que um espírito se torne livre, ele deve desprender-se das imposições e amarras sociais e religiosas, por isso Nietzsche volta-se contra os ideais que tolhem a ―liberdade‖ dos espíritos: ―(...) onde vocês vêem coisas ideais, eu vejo – coisas humanas, ah, somente coisas demasiado humanas!‖ (EH/EH ―Humano, demasiado humano‖ § 1). Em palavras quase redundantes, mas dotadas de significado explícito, podemos dizer que o espírito livre é aquele que aprendeu a viver a sua própria humanidade. Espíritos livres vivem numa perspectiva diferente dos espíritos tradicionais, têm como característica a negação dos valores metafísicos e religiosos, são alimentados pela dúvida que abre horizontes para novas descobertas, oriundas da investigação científica. Por seu caráter investigativo, são contrários à tradição sobre a qual se constroem os valores milenares da moral, sustentada unicamente devido à obediência aos costumes. A ação de ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 230 um espírito livre é precedida por um estado de tensão, o resultado da ação ocorre de modo inusitado, somente a partir dele os princípios universais construídos pelo estado e pela religião são dilacerados. O conhecimento revela o seu poder criador e repentino, as velhas certezas pautadas sobre princípios lógicos e verdades dogmáticas cedem lugar à gratuidade e à desmedida da experiência sempre singular e aberta a novas interpretações. Referindo-se a eles, Nietzsche descreve: Um homem do qual caíram os costumeiros grilhões da vida, a tal ponto que ele só continua a viver para conhecer sempre mais, deve poder renunciar, sem inveja e desgosto, a uma coisa, a quase tudo o que tem valor para os outros homens; deve lhe bastar, como a condição mais desejável, pairar livre e destemido sobre os homens, costumes, leis e avaliações tradicionais das coisas. Com prazer ele comunica a alegria dessa condição, e talvez não tenha outra coisa a comunicar – o que certamente envolve uma privação, uma renúncia a mais. Se não obstante quisermos mais dele, meneando a cabeça com indulgência ele indicará seu irmão, o livre homem de ação, e não ocultará talvez um pouco de ironia: pois a ‗liberdade‘ deste é um caso à parte (MA I/HH I § 34). Espíritos livres vivem aquém das imposições e imperativos morais, o único ―imperativo‖ que se faz presente é a dúvida, que incita o homem à criação. A interrogação é o crivo pelo qual o conhecimento é estabelecido, valores e verdades absolutas deixam de existir. O mundo perde assim sua rigidez ontológica, abrindo margens para novas interpretações que passam a caracterizar o surgimento de uma nova cultura. Enfim, as certezas indefectíveis do ―velho‖ homem ocidental cedem espaço à investigação e às experiências vitais que circundam e caracterizam os espíritos livres. Nietzsche ainda diferencia os ―espíritos livres‖ dos ―espíritos cativos‖, afirmando que, na busca da verdade, os primeiros exigem razões que são fruto de um pensamento peculiar e independente da tradição, enquanto os outros exigem fé, que nasce do hábito por meio da observação dos costumes. Nesse viés: ―É chamado de espírito livre aquele que pensa de modo diverso do que se esperaria com base em sua procedência, seu meio, sua posição e função, ou com base nas opiniões que predominam em seu tempo‖ (MA I/HH I § 225). O ―espírito livre‖ possui uma nítida autonomia, estando desvinculado dos hereditários valores morais e culturais, enquanto o ―espírito cativo‖ carrega consigo a soma desses valores transmitidos pela tradição. O espírito cativo não possui autonomia, pois não é capaz de discernir entre as escolhas possíveis; ao contrário, o espírito livre, rompendo com as razões pré-estabelecidas, constrói sua existência a partir das próprias escolhas. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 231 Sócrates como espírito livre No que se refere à classificação de Sócrates como ―espírito livre‖, cabe mencionar os aforismos 433 e 437 de Humano, demasiado humano, nos quais Nietzsche relata o casamento e a morte de Sócrates, respectivamente. No § 433 Nietzsche demonstra o heroísmo do espírito livre de Sócrates que encontrou uma mulher (Xantipa) tal como precisava, mas que não a teria buscado se a conhecesse suficientemente bem. Na sequência, no § 437, assim se expressa: ―Há várias espécies de cicuta, e geralmente o destino encontra oportunidade de pôr nos lábios do espírito livre um cálice desse veneno – para ‗puni-lo‘, como diz depois o mundo inteiro‖. O parágrafo termina com Sócrates pedindo a Críton que mande alguém retirar as mulheres. Mas o importante é perceber, em ambos os parágrafos, o tratamento peculiar de Nietzsche para com Sócrates, que é claramente incluído entre os espíritos livres. Nos dois casos Sócrates é apresentado como vítima, primeiramente de sua mulher que, tornando sua casa inabitável e inóspita, lhe impeliu à profissão de viver e ensinar nas ruas de Atenas e, depois, do destino, que lhe apresentou a cicuta. Além da metáfora acima descrita, encontramos ainda em O andarilho e sua sombra (2º volume de Humano, demasiado humano) algumas das mais positivas referências a Sócrates de toda a obra nietzschiana, em que transparece a preocupação com a questão da educação. Chamado de ―professor apolínio‖ por Nietzsche, Sócrates é visivelmente oposto a todos os educadores idealistas, ou mesmo, propagadores de ideais ascéticos, Nietzsche assim expõe um Sócrates voltado para os problemas cotidianos, como um exímio professor que não negligência às coisas humanas. No § 6 do Andarilho e sua sombra: A fragilidade terrena e sua causa principal, Nietzsche demonstra que as pessoas raramente atentam às coisas simples do dia-a-dia, o que resulta em enfermidades físicas e psíquicas, a saber, que devido a um mau direcionamento na educação infantil, as crianças são habituadas à busca de coisas ideais, tais como: ―a salvação da alma‖, ―o serviço do Estado‖, a ―promoção da ciência‖, enfim, serviços que visam ao bem da humanidade, deixando de lado as questões vitais diretamente ligadas ao bem estar do indivíduo, como, por exemplo, o ―sentimento pela natureza e pela arte‖, a ―escolha dos relacionamentos‖, a ―habilidade em obedecer e comandar‖, em suma, atividades como: comer, refletir (nachdenken) e trabalhar. Nietzsche assim critica a educação enquanto reprodutora dos moldes idealistas e reclama um modelo educacional voltado para as coisas ―mínimas e mais cotidianas‖: ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 232 Já Sócrates se defendia com todas as forças contra essa orgulhosa negligência das coisas humanas em nome do ser humano, e gostava de lembrar, com uma frase de Homero, a área e o conteúdo reais de toda a preocupação e reflexão: é aquilo é somente aquilo, dizia ele, ―que em casa me sobrevém, de bom e de ruim‖ (WS/AS § 6). Além de espírito livre, Sócrates é também lembrado por se preocupar com as coisas próximas e, portanto, humanas. Outras passagens, como, por exemplo, o § 72 de WS/AS, ressalta a alegria da ironia ática como auxiliar inerente à missão socrática, o que corrobora com a passagem de JGB/BM § 191, em que Sócrates é descrito como: ―(...) grande irônico rico em mistérios‖, enfim, para respondermos a questão: por que Sócrates é citado como espírito livre? Devemos levar em consideração, dentre outras coisas, o professor apolínio e a atitude irônica. Tais testemunhos sobre Sócrates revelam as nuances do pensamento nietzschiano, que vai se construindo em meio à diversidade de personagens e conflitos que o próprio Nietzsche vai estabelecendo no decorrer dos seus livros. Numa perspectiva deleuziana, para a qual, ―(...) Cada personagem tem vários traços, que podem dar lugar a outros personagens, sobre o mesmo plano ou sobre um outro: há uma proliferação de personagens conceituais‖ (DELEUZE; GUATARI, 1992, p. 100). Sócrates teria sido um dos mais intrigantes e dinâmicos personagens conceituais retratados por Nietzsche, destarte, desde já, compete ressaltar, que embora personalidades como Sócrates e Voltaire 70 sejam, nesse momento do pensamento nietzschiano, retratados como ―espíritos livres‖, posteriormente o mesmo inverte sua concepção, concluindo que não existem e nunca existiram ―espíritos livres‖. A este respeito é conveniente citar uma passagem do prólogo da obra em discussão acrescido na primavera de 1886: Foi assim que há tempos, quando necessitei, inventei para mim os ―espíritos livres‖, aos quais é dedicado este livro melancólico-brioso que tem o título de Humano, demasiado humano: não existem esses ―espíritos livres‖, nunca existiram – mas naquele tempo, como disse, eu precisava deles como companhia, para manter a alma alegre em meio a muitos males (doença, solidão, exílio, acedia, inatividade): como valentes confrades fantasmas, com os quais proseamos e rimos (...) (MA I/HH I ―Prólogo‖ § 2). No § 221 de MA I/HH I, Nietzsche destaca que Voltaire foi o ultimo grande escritor que no tratamento da prosa oratória teve ouvido grego, consciência artística grega e simplicidade e graça gregas, além de reunir em si a suprema liberdade do espírito e uma mentalidade decididamente não revolucionária, sem ser covarde ou inconsequente. 70 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 233 Convém evidenciar que no período em que escreveu Humano, demasiado humano Nietzsche encontrava-se doente e solitário, o que não descarta o fato de ter inventado os ―espíritos livres‖ como uma espécie de ―interlocutores terapêuticos‖ que o ajudaram a suportar a própria doença. A esse respeito Nietzsche prescreve em Ecce homo: ―Tomei a mim mesmo em mãos, curei a mim mesmo: a condição para isso – qualquer fisiólogo admitirá – é ser no fundo sadio‖ (“Por que sou tão sábio‖ § 2). Levando em consideração, conforme assegura o próprio Nietzsche, que os espíritos livres não passaram de ―interlocutores terapêuticos‖, acreditamos que tal comparação é apenas um anestésico, em outras palavras, a liberdade socrática descrita por Nietzsche não passou de um momento de ―descanso‖ ou ―cura‖ do próprio Nietzsche que restabelecia suas forças, para usar a linguagem de Deleuze, o espírito livre de Sócrates foi um ―personagem conceitual‖ criado por Nietzsche para tornar a sua própria existência mais agradável, o que não deixa de ser intrigante e passível de outras interpretações. Deixando de lado os motivos que levaram Nietzsche a inventar os espíritos livres, nos deparamos com imagens antagônicas que revelam a dinamicidade do pensamento nietzschiano ao longo de sua produção intelectual, fator que revela a abrangência do seu pensamento e a necessidade de compreender o corpus da obra nietzschiano, que de modo algum deve ser fragmentada para servir de base a interpretações tecnicistas do seu pensamento. Considerações finais A principal dificuldade para classificar Sócrates como ―espírito livre‖ reside na aparente assertiva de que os espíritos livres possuem uma postura antimetafísica e Sócrates uma postura metafísica, haja vista que as conclusões socráticas remetem à existência de essências imutáveis e superiores às coisas sensíveis, dê-se o caso, por exemplo, da superioridade da alma sobre o corpo. Certamente seria um exagero fazermos da metáfora nietzschiana uma máxima para compreender sua imbricada relação com o filósofo ateniense, contudo, não podemos ignorar que algo de Sócrates despertou certa consideração em Nietzsche, caso contrário, o mesmo não seria vinculado aos espíritos livres. Consideradas em conjunto as imagens de Sócrates descritas por Nietzsche nos revelam um Sócrates mórbido e fisiologicamente degenerado com relação aos instintos. A ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 234 principal característica que nos permite melhor compreender a analogia nietzschiana encontra-se no estilo argumentativo adotado por Sócrates, de clara oposição ao dogmatismo filosófico, uma vez que o filósofo ateniense demonstra prontidão em acolher a dúvida como meio elucidativo para construir o conhecimento, não se prendendo em certezas indefectíveis na construção argumentativa da filosofia. Embora o procedimento filosófico de Sócrates não seja dogmático, boa parte de suas conclusões são estritamente dogmáticas e metafísicas, por isso, no que se refere às ―verdades filosóficas‖ construídas por Sócrates é insustentável a metáfora com os espíritos livres. Enfim, visto isoladamente Sócrates poderia ser descrito como um personagem da mais alta estima nietzschiana, o que seria um erro gravíssimo considerando o conjunto da obra, na qual Sócrates aparece como símbolo máximo da decadência e da mais alta morbidez entre os homens. Por isso, acreditamos que uma maneira plausível de compreender a metáfora nietzschiana, que vincula Sócrates aos espíritos livres, seja através da passagem do § 2 do ―Prólogo‖ de MA I/HH I, na qual Nietzsche nega a existência real dos espíritos livres, que lhe serviram de interlocutores terapêuticos durante um período de doença. Referências bibliográficas: DELEUZE G. e GUATARRI. F. O que é filosofia? Trad.: B. Prado Jr. e A. A. Muñhoz. 34 ed. Rio de Janeiro: 34, 1992. NIETZSCHE, W. F. Além do Bem e do Mal – prelúdio a uma filosofia do futuro. Trad.: P. C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. ___________. Ecce Homo. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. ___________. Humano, demasiado humano – um livro para espíritos livres. Trad.: P. C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. ___________. Humano, demasiado humano II – um livro para espíritos livres volume II. Trad.: P. C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 235 A MODERNA ALEGORIA DA CAVERNA Elizandra Bruno Sosa Universidade Estadual do Oeste do Paraná-UNIOSTE [email protected] RESUMO: O Presente trabalho tem como foco estabelecer relações, pontos de encontro entre os textos filosóficos e literários, apontar elementos possíveis e analogias entre literatura e filosofia. Como elemento comum dos textos temos a metáfora da visão, como referências serão usadas a alegoria da Caverna de Platão e o romance Ensaio sobre a Cegueira de José Saramago. Evidencia-se neste texto a distinção entre o olhar e o ver advindos de ambas as obras. Olhar neste caso é meramente o funcionamento do órgão sensitivo atribuído ao ser humano; já o ver é o resultado de um olhar cuidadoso, apurado. Tem-se uma crítica à sociedade atual, essa escrava da cultura audiovisual, trazida à tona pelo escritor português José Saramago. Palavras-chave: Ver. Cegueira. Caverna. Metáfora. Alegoria. Particularmente a paixão pela literatura e o compromisso acadêmico com a filosofia induz muitas vezes a enxergar pontos de convergência entre as duas. É comum nos depararmos com literaturas e incondicionalmente tentarmos ligar à filosofia. E nesse caso, explicitamente, ao ler as obras do escritor português José Saramago71 - isso se faz quase que necessário - é por sua sobriedade e forma de prender à história, que suas obras parecem não serem feitas para pessoas de extrema fragilidade, no entanto, é impossível terminar a leitura sem se sensibilizar. Não é permitido alívio até que a história acabe, e quando se acaba, particularmente, me encontro em um estado de desassossego. As obras citadas acima possuem em comum um tratado sobre a visão. Em ambas não é uma afirmação unicamente como ser dotado de olhos. No romance temos a distinção entre o olhar e o ver; sendo o segundo dotado do verdadeiro sentido: o mais apurado e cauteloso. Discorrerei um breve resumo do texto filosófico e do literário: com a Alegoria da caverna que se encontra no livro VII da República de Platão e o Ensaio sobre a cegueira de José Saramago. A primeira obra citada é constituída por um diálogo entre Sócrates e Glauco: José Saramago nasceu em 1922 na província do Ribatejo, Portugal. Filho de agricultores, foi serralheiro, desenhista, funcionário público, tradutor e jornalista. Romancista, poeta e teatrólogo, ganhou o prêmio Nobel da literatura, em 1988. Morreu em 18 de junho de 2010. 71 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 236 imaginemos seres humanos que desde que nasceram, vivem em uma caverna, acorrentados de forma que só podem ver o que há diante deles. Nessa caverna há uma entrada para a luz que chega de uma fogueira acessa numa colina detrás deles; entre a fogueira e os prisioneiros, passa uma estrada, e ao longo da mesma passam homens com os mais variados objetos. Esses sujeitos nada vêem além de sombras projetadas na parede da caverna pelo fogo e tomam como objetos reais as sombras. Considerando que um dos prisioneiros se liberte e é ―curado‖ de sua ignorância: Considera agora o que lhes acontecerá, naturalmente, se forem libertados das suas cadeias e curados de sua ignorância. Que se liberte um desses prisioneiros, que seja ele obrigado a endireitar-se imediatamente, a voltar o pescoço, a caminhar, a erguer os olhos para a luz: ao fazer todos esses movimentos sofrerá, e o deslumbramento impedi-lo-á de distinguir os objetos de que antes via as sombras (...) (PLATÃO, 2004, p. 226). No Ensaio sobre a cegueira temos uma história alegórica que não se passa em nenhum lugar e com pessoas sem nome, é uma história universal e os personagens se distinguem por características como: ―o médico‖, ―a mulher do médico‖, ―a rapariga de óculos‖, ―o velho de venda preta‖, entre outros. Nome, endereço, profissão são rótulos os quais nos reconhecemos e somos conhecidos, mas são irrelevantes quando todos se fazem cegos. A história começa com carros em um semáforo a espera do sinal verde, e quando há condições de seguir, o primeiro da fila permanece parado; os outros motoristas buzinam e uma situação estressante se desenvolve - o barulho estrondoso e pessoas batendo nos vidros - até que alguém consegue abrir uma porta e o motorista diz: ―Estou cego‖. A cegueira é descrita ―como se nadasse naquilo a que chamara mar de leite‖ (SARAMAGO, 2008, p.14). A ―treva branca‖ que assalta esse primeiro cego vai se espalhar pela cidade e haverá uma única pessoa que não será afetada: ―a mulher do médico‖. A epidemia de cegueira ocorre sem se saber a causa, a solução encontrada pelas autoridades é a quarentena; os homens numa situação dessa passam a agir de forma mesquinha, egoísta e injusta; todos os valores morais e hierárquicos são negligenciados. É uma historia com caráter abstrato mostrando a importância e a responsabilidade de ter olhos quando todas as outras pessoas os perderam; mesmo com os olhos perfeitamente ―normais‖ não se tem garantia de enxergar. Ter olhos não é uma garantia de ver, pois vivemos em um mundo de cegos que se encontram no pior estado - são os cegos que não querem ver. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 237 A cegueira se dá como um conjunto de representações falsas e na alegoria da caverna, mesmo os personagens possuindo visão, são enganados pelas falsas representações e essas mesmas, se fazem superiores às verdadeiras formas. Olhar se caracteriza por percepção visual, uma consequência física natural dos sentidos atribuídos ao ser humano; ver é possibilidade de observação cuidadosa, de exame daquilo que nos aparece à vista. Entende-se melhor tais passagens pela Epígrafe do livro: ―Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara‖. O objetivo do romance é causar um desconforto necessário para se pensar na situação em que nos encontramos72. A história é agonizante tanto quanto o movimento do prisioneiro que se liberta das amarras na alegoria da caverna: ele tem os olhos ofuscados pela luz do Sol e não consegue de imediato fazer distinções até ele se habituar a ver os objetos cobertos pela luz; depois disso poderá enfrentar a claridade mais facilmente e as sombras não serão mais verdadeiras. Na Caverna, tem-se uma espécie de dissimulação da realidade, o qual podemos atribuir a característica de ―cego‖, ―(...) não o são apenas dos olhos, também o são do entendimento‖ (SARAMAGO, 2008, p.213), isto é, não somente aquele sujeito que é desprovido de visão mas também de capacidade cognitiva. O Cego no romance possui sentido metafórico: a cegueira apresentada por Saramago pode ser encarada como um sintoma da alienação do homem em relação a si próprio e aos outros; e a falta de clareza, uma crítica à razão que se faz cega. No documentário Janela da Alma (2002) o autor explica como surgiu a ideia do livro: (...) de repente, eu pensei: se fossemos todos cegos? E depois, praticamente no segundo seguinte, eu estava a responder, eu respondia a esta pergunta que tinha feito, mas nós estamos realmente todos cegos! Cegos de razão, cegos de sensibilidade, cegos enfim, de tudo aquilo que faz de nós não um ser razoavelmente funcional no sentido da relação humana, mas, pelo contrario, um ser agressivo, um ser egoísta, um ser violento, enfim, isso é o que somos. (SARAMAGO, 2002). Nunca se esteve mais próximo da Caverna de Platão como atualmente. Em uma sociedade totalmente visual, que faz suas projeções e está longe de ver com nitidez a A descrição do próprio autor na apresentação do livro: "Este é um livro francamente terrível com o qual eu quero que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrevê-lo. Nele se descreve uma longa tortura. É um livro brutal e violento e é simultaneamente uma das experiências mais dolorosas da minha vida. São 300 páginas de constante aflição. Através da escrita, tentei dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso.". 72 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 238 cegueira metafórica - um olhar sem ver. Estamos vivendo em uma sociedade com a visão distorcida da realidade e acreditamos nas coisas que aprendemos através da cultura. Saramago faz uma colocação que vem a esclarecer: O que eu acho é que nós nunca vivemos tanto na caverna de Platão como hoje. Hoje é que nós estamos a viver de fato na caverna de Platão. Porque as próprias imagens que nos mostram da realidade de alguma maneira substituem a realidade. (...) estamos num mundo que chamamos Audiovisual. Nós estamos efetivamente a repetir a situação das pessoas aprisionadas ou atadas na caverna de Platão olhando em frente, vendo sombras, e acreditando que estas sombras são realidade. Foi preciso passarem todos esses séculos para que a caverna de Platão aparecesse finalmente num momento da história da humanidade, que é hoje. E vai ser, e cada vez mais. (SARAMAGO, 2002) A distinção que ocorre entre a alegoria e o romance é que na primeira a cegueira se encontra dentro - da caverna - e na segunda, fora – da cultura audiovisual. Na alegoria os prisioneiros foram habituados a enxergar apenas de uma forma – olhar – e ao se libertar passam a ver; e tal libertação exigirá um tempo e esforço para se habituar. Já no romance, a cegueira ocorre de forma externa: os homens se fazem cegos da visão, mas muito antes se faziam cegos de entendimento. Platão coloca que os olhos podem ser perturbados de duas formas: ―(...) pela passagem da luz à escuridão e pela escuridão à luz‖. (PLATÃO, 2004, p.229) A visão é semelhante ao Sol, sua luz fornece às coisas visíveis a capacidade de serem vistas. De nada adiantaria ter olhos numa treva profunda. A luz do Sol é um elemento necessário que podemos compreender de maneira semelhante à razão. ―A mulher do médico‖ tem o papel da Razão - todos se fazem cegos e ela é a única que pode ver tendo a responsabilidade de guiar os que não enxergam: responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam. É um fardo extremamente pesado ser o único que vê quando todos outros simulam uma cegueira; o pior do que estar cego é ser a única pessoa a enxergar em meio ao caos. E não ver em uma sociedade totalmente visual é tido como uma desgraça: Como toda a gente provavelmente o fez, jogara algumas vezes consigo mesmo, na adolescência, ao jogo do E se eu fosse cego, e chegara à conclusão, ao cabo de cinco minutos com os olhos fechados, de que a cegueira, sem dúvida alguma terrível desgraça, poderia, ainda assim, ser relativamente suportável se a vítima de tal infelicidade tivesse contornos, supondo, claro está, que a dita cegueira não fosse de nascença. Chegara mesmo ao ponto de pensar que a escuridão em que os cegos viviam não ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 239 era, afinal, senão a simples ausência da luz, que o que chamamos de cegueira era algo que se limitava a cobrir a aparência dos seres e das coisas, deixando-os intactos por trás do seu véu negro. Agora pelo contrário, ei-lo que se encontrava mergulhado numa brancura tão luminosa, tão total, que devorava, mais do que absorvia, não só as cores, mas as próprias coisas e seres, tornando-os, por essa maneira, duplamente invisíveis. (SARAMAGO, 2008, p.15-16). E ao final da história ―o primeiro cego‖ tem de volta a visão descrevendo: ―até me parece que vejo ainda melhor do que via‖ (SARAMAGO, 2008, p.307). O médico diz o que todos pensavam, mas não ousavam dizer em voz alta: ―É possível que esta cegueira tenha chegado ao fim, é possível que comecemos todos a recuperar a vista.‖ (SARAMAGO, 2008, p.307). A ―mulher do médico‖ começa a chorar, supostamente por estar contente e aliviada: estava esgotada de tanta resistência mental; ser a única a ver dava à ela extrema responsabilidade. Ao final do livro temos o seguinte pensamento que sintetiza o maior propósito da história: ―Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem.‖ (SARAMAGO, 2008, p.308). É esse o maior caráter metafórico do romance: a cegueira não é a deficiência física visual, somos cegos com os olhos perfeitos, cegos que não querem ver, nos fazemos cegos de entendimento, nos cegamos da razão. Concluímos que o texto filosófico e o literário muitas vezes convergem em suas intenções e José Saramago nos obriga a parar, fechar os olhos e ver. Nos induz a recuperar a lucidez em meio aos brilhos ofuscantes de nossa sociedade. Platão também nos mostra o libertar da escuridão e nos conduz em direção à luz que nos faz distinguir as coisas; a alegoria da caverna talvez seja a mais poderosa metáfora para descrever a situação geral dos homens que estão tendendo a ver as sombras e tomá-las como realidade. Assim, como na alegoria podemos concluir que estamos presos na caverna, apenas observando as distorções da realidade, não ousamos a sair dela: somos os piores tipos de cegos, aqueles que preferem cegar-se. Referências Bibliográficas: JARDIM , João ; CARVALHO , Walter . Janela da Alma . Rio de Janeiro : Copacabana filmes , 2002 . 1 DVD (73 minutos ) PLATÃO . A República . São Paulo : Nova Cultural , 2004 . SARAMAGO , José . Ensaio sobre a cegueira . São Paulo : Companhia das letras , 2008 . ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 240 MARÇAL, Jairo. Antologia de textos filosóficos. Curitiba : SEED, 2009. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 241 CAN YOU SEE THE REAL ME, DOCTOR? APROXIMAÇÕES ENTRE QUADROPHENIA E O RIZOMA DE DELEUZE E GUATTARI. Evânio Márlon Guerrezi PPG-Filosofia/UNIOESTE/CAPES [email protected] Dra. Ester Maria Dreher Heuser (orientadora) RESUMO: Pretendemos nesse texto apresentar as possíveis aproximações entre o enredo criado pela banda The Who em seu ópera-rock Quadrophenia e o conceito deleuzeguattariano de rizoma. O álbum da banda inglesa apresenta o que poderíamos compreender como a problemática da formação do sujeito. Quando o personagem Jimmy dispara a questão ―você pode ver o meu eu real, doutor?‖ tendo como plano de fundo a vontade de encontrar uma unidade para si, poderíamos nos perguntar sobre a necessidade ou não dessa unidade na formação de um sujeito. Acreditamos que Gilles Deleuze e Felix Guattari contribuem para essa questão, quando expõem a diferenciação entre o que chamam de modelo arbóreo e o rizoma. Jimmy, nesse sentido, parece-nos ser a expressão de uma subjetivação rizomática, que se forma mais pela força da multiplicidade do que da unidade. Palavras-chave: Rizoma. pensamento. multiplicidade. O que é um rizoma? Quando Mil Platôs é publicado em 1980, Deleuze e Guattari republicam o texto ―Rizoma‖ de 1976. A obra está dividida em platôs, os quais os próprios autores afirmam serem independentes uns dos outros quanto a sua necessidade de leitura seriada – embora se relacionem mutuamente. ―Rizoma‖ ocupa, contudo, o platô de número um, deixando transparecer seu caráter de introdução à obra, não só por ser o primeiro platô, mas por dar sinais de que a própria lógica do livro é apresentada pelo rizoma. Pretendemos desse modo, relacionar o conceito de rizoma apresentado por Deleuze e Guattari em sua versão que aparece em Mil Platôs (1995), com o álbum Quadrophenia da banda inglesa The Who, acreditando ser possível encontrar relações de ressonância entre ambos. Ao iniciarem a apresentação do rizoma, Deleuze e Guattari o fazem por meio da problematização acerca da forma pela qual um livro é criado e com o que o livro se ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 242 relaciona. É interessante notar como os autores dão grande importância para a relação que o livro estabelece para além de seus próprios limites: ―não se perguntará nunca o que um livro quer dizer, significado ou significante, não se buscará nada compreender num livro, perguntar-se-á com o que ele funciona, em conexão com o que ele faz ou não passar intensidades, em que multiplicidades ele se introduz e metamorfoseia a sua, com que corpos sem órgãos ele faz convergir o seu. Um livro existe apenas pelo fora e no fora‖ (DELEUZE, 1995, p. 18). O livro nesse sentido não é onipotente, não possui sentido algum em si mesmo, mas tão somente na potência que possui de estabelecer relações com aquilo que lhe é externo. Tendo apresentado essa concepção de livro, os autores procedem pela exposição de três ―modelos‖ distintos de livro – e que podemos estender a toda forma de criação e manifestação de modos de vida –, dos quais o rizoma se apresentará como um deles. Inicialmente nos apresentam duas formas de ―livro raiz‖. O primeiro sendo a raiz propriamente dita e o segundo afirmado como radícula. Esses dois modelos estão associados à figura da árvore, por procederem por meio de um fluxo linear raiz-caulefolhas, ou seja, há uma linearidade necessária para a compreensão do livro. Assim como no sistema cartesiano, deve-se partir do fundamento-raiz, atravessar o caule e somente então acessar os galhos e as folhagens. O sistema-raiz é tomado por Deleuze e Guattari como o modelo do livro clássico e se configura já como uma imagem do pensamento. Esse sistema é movido pela existência de um Uno, de um centro, do qual o múltiplo, se existente, está necessariamente ligado ao centro. Há toda uma relação de necessidade para com a identidade em um sistema-raiz. ―Isto quer dizer que este pensamento nunca compreendeu a multiplicidade: ele necessita de uma forte unidade principal, unidade que é suposta para chegar a duas, segundo um método espiritual. E do lado do objeto, segundo o método natural, pode-se sem dúvida passar diretamente do Uno a três, quatro ou cinco, mas sempre com a condição de dispor de uma forte unidade principal, a do pivô, que suporta as raízes secundárias‖ (DELEUZE, 1995, p. 19). A hierarquia é pressuposta nesse modelo de sistema e os livros que deles surgem expressam a grande dívida para o com seu fundamento. Quanto ao sistema-radícula, ou raiz fasciculada, vemos que Deleuze e Guattari o expõem como o sistema que abortou sua raiz principal e em seu lugar fez surgir uma multiplicidade de raízes secundárias. Essa alteração, no entanto, pouco modifica a relação do sistema-radícula para com a unidade pressuposta. Há ainda uma hierarquia subjacente. Ela, todavia, não se encontra de maneira imediata no pensamento, mas é compreendida ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 243 como passada ou como por vir. O livro ou a imagem do pensamento, nesse sentido, dá sinais de um aspecto fragmentário e múltiplo, mas ainda possui uma unidade que aparece como seu fundamento ou sua finalidade. A esses dois modelos de livro, os quais já podemos afirmar que são como modelos de pensamento em geral, e que por sua vezes exigem a presença de uma unidade tida como superior, Deleuze e Guattari irão contrapor outra forma de pensamento, o rizoma. Mas o que é um rizoma? Biologicamente, trata-se de uma espécie de caule, geralmente subterrâneo, e que tem a capacidade de se ramificar em qualquer direção, sem estabelecer pontos centrais. Essa noção será de grande utilidade para Deleuze e Guattari, já que diferentemente dos sistemas árvore-raiz apresentados até então, o rizoma não será tomado como um modelo de pensamento. Antes, é a própria reversão do modelo, outra compreensão do cosmos que se agita contra as figuras de unidade superior. ―O que conta é que a árvore-raiz e o rizoma-canal não se opõem como dois modelos: um age como modelo e como decalque transcendentes, mesmo que engendre suas próprias fugas; o outro age como processo imanente que reverte o modelo e esboça um mapa, mesmo que constitua suas próprias hierarquias, e inclusive ele suscite um canal despótico‖ (DELEUZE, 1995, p. 42). O rizoma, tomado como conceito filosófico faz valer, ao contrário dos modelos árvore-raiz, a força da multiplicidade e para tanto não possui elemento superior, na medida em que todas as multiplicidades são exaltadas. Não se trata aqui de operar por pontos de definição e identidade. Existem somente linhas de movimento em contrapartida aos pontos. Linhas essas que parecem ser sempre inseguras, sempre devir infinito. Temos aqui uma grande diferença do pensamento que opera por imagem da árvore-raiz para aquele que opera por rizoma. Em uma ciência, arte ou filosofia que demande de uma criação por pontos, temos sempre a força da unidade que opera por meio de raiz superior. Passa-se de uma raiz à outra, mas somente com o prejuízo de quem interrompe o movimento para apreender uma segunda unidade derivada de um fundamento superior. Quanto à criação por linhas, diremos que essa não procede por unidade, mas por processos, que não encontram nunca seu início e muito menos o seu fim. O rizoma ―não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes, de direções movediças. Ele não tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e transborda‖ (DELEUZE, 1995, p. 43). Desse modo, acreditamos que nosso excêntrico personagem Jimmy, que será apresentado adiante, procede por rizoma, que tem na sua própria vida a forma rizomática de ser. Jimmy é processo e mais n processos. A linha ao invés do ponto. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 244 O que é “Quadrophenia”? Quadrophenia é uma doença ou apenas um sintoma inevitavelmente natural de toda a lógica da imanência? Disso pouco se sabe. Sabe-se apenas que Quadrophenia, enquanto ―álbum conceitual‖ criado por The Who, surge em 1973 e está sim associado à esquizofrenia – ainda que por uma concepção com embasamento pouco científico. Todo o álbum, que veio a virar longa metragem em 1979, está baseado na história de Jimmy. As informações que temos e que aparecem no próprio encarte do álbum revelam-nos que o personagem padece de quadrophenia, um ―distúrbio‖ de personalidade múltipla, que no caso em questão são quatro. Desse modo, cada membro do The Who empresta a Jimmy sua própria personalidade, transformando-o na própria quimera em meio a um mundo de identidades. Vejamos a descrição das quatro personalidades, as músicas que a apresentam e a quais membros pertencem: Helpless Dancer - Um cara durão, um dançarino incapaz. Roger Daltrey. Is It Me? Um romântico, sou eu por um momento? John Entwistle. Bell boy - Um maldito lunático, eu até mesmo carrego tuas malas. Keith Moon. Love Reign O‟er Me - Um mendigo, um hipócrita, amor, reine sobre mim. Pete Townshend. Interessa-nos pouco, no entanto, saber desse empréstimo de personalidades, que é usado pela banda apenas como um trunfo para deixar mais clara a quadrophenia do personagem. O que se mostra como objeto de nosso interesse é a relação entre Jimmy, sua quadrophenia e as relações de identidade presente no mundo que o cerca, bem como as exigências de uma única identidade em nossa sociedade que opera pela lógica arbórea, fazendo com que ele mesmo deseje uma identidade, uma unidade superior pela qual possa se definir. A pergunta mais importante: o que se passa com Jimmy? O que se sabe do personagem é que se assume como um Mod, abreviatura para Modernismo, movimento cultural popularizado principalmente no Reino Unido dos anos sessenta. Os mods por sua vez, ou ao menos na concepção de Jimmy, possuem um laço de ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 245 fraternidade que os liga e os define enquanto os distingue do resto da população. A vestimenta refinada, o estilo musical e os lugares comuns frequentados pelos mods são fortes elementos para criar essa relação entre os membros. Se Jimmy sofre de quadrophenia, sua relação para com o movimento Modernista parece ser aquilo que ele mesmo compreende como sua cura. Ser um mod é a unidade que faltava em sua vida. Ao longo do álbum como também do longa-metragem somos apresentados aos variados aspectos das personalidade de Jimmy. Em The Real Me, segunda faixa do álbum, Jimmy vai para o que parece ser uma nova consulta ao psiquiatra. Daí surge a questão que irá atravessar todo o enredo: ―Você pode ver meu ‗eu‘ real, doutor?‖. Essa necessidade de Jimmy por uma identidade percorrerá todo o álbum. Já quase ao final em Doctor Jimmy, por exemplo, nosso personagem se pergunta se aquele seria ele por um momento. Pois bem, e como explicar a relação de Jimmy, um quadrophenico que deseja a todo custo encontrar sua identidade? Jimmy não é uma árvore. Árvores são apenas efeitos de uma lógica mais subterrânea. Jimmy é um rizoma, o que quer dizer que é quase impossível dizer o que Jimmy é. Jimmy é devir? Muito provavelmente um singular devir de processos de subjetivação. É a própria expressão de uma subjetividade rizomática. A história do rizoma não é, entretanto, a história de uma convivência pacífica com seus diferentes. Deleuze e Guattari afirmam que a história foi sempre contada a partir da lógica da árvore-raiz, configurando-se, como dotada de uma unidade fundante e fundamental (DELEUZE, 1995, p. 46). Ora, Jimmy nada mais é do que um rizoma em um mundo que supõe árvores, daí toda a necessidade que sente por se afirmar como um indivíduo definido e indivisível. Se enquadrar na subcultura Mod torna-se um subterfúgio para ele. Jimmy, para nós, enquanto subjetividade rizomática é a própria relação com o fora. As personalidades de Jimmy só podem surgir por conta de uma sensibilidade apurada para aquilo que lhe acontece na vida. Nesse sentido devemos ainda traçar uma diferença significativa quanto ao rizoma e a árvore-raiz. Na perspectiva arbórea, a quadrophenia de Jimmy será tratada como uma doença, um distúrbio que tem origem em uma série de sobrecódigos de poder. A genética da mãe, a relação familiar ou mesmo um fato da infância pode se afigurar como fonte do distúrbio, que deve ser tratado a fim de que Jimmy restabeleça aquilo que é de mais normal na sociedade contemporânea: sua identidade subjetiva. Na perspectiva do rizoma, no entanto, a quadrophenia do personagem pode ser compreendida como algo até mesmo afirmativo, como uma potência criadora. Jimmy é expressão da multiplicidade porque a unidade é algo de muito pobre. Se são quatro personalidades que operam em Jimmy, é porque sua vida é algo de muito grande. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 246 Jimmy é um processo, e ao final, ele próprio se aproxima dessa compreensão. Mesmo no movimento Mod, encontra a figura do negativo. Percebe que se trata de uma espécie de afirmação demasiadamente negativa – para ser um mod é necessária a negação de uma série de outros aspectos de sua vida. É assim que Jimmy opta por um suicídio simbólico, destronando o poder da unidade de sua vida. Não há mais um início nem uma finalidade para a vida, só existem rizomas. ―Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é aliança, unicamente aliança. A árvore impõe o verbo ―ser‖, mas o rizoma tem como tecido a conjunção ―e... e... e...‖ Há nesta conjunção força suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser. Para onde vai você? De onde você vem? Aonde quer chegar? São questões inúteis‖ (DELEUZE, 1995, p. 48-49). Acreditamos, portanto, ser possível afirmar que Jimmy está muito mais próximo de uma subjetivação rizomática do que de uma arbórea. E se tínhamos como questão motivadora a pergunta ―você pode ver o meu eu real, doutor?‖, parece-nos agora que a resposta para essa pergunta não pode ser dada a Jimmy em forma de um ponto de definição. Quando Deleuze e Guattari problematizam o verbo ―ser‖, parecem estar trabalhando justamente nesse nível. A resposta que em geral se busca é a que procede em forma de ponto, que define e que entrega uma unidade. O verbo ser é usado, desse modo, como forma de linguagem útil ao sistema-árvore. Mas a resposta mais interessante a ser dada para Jimmy exige que o verbo em questão se torne algo outro que não o anunciante de uma identidade. É preciso que ele sabote a unidade, que exprima processos, que dê conta das linhas: Jimmy é um rizoma. Não há a necessidade de que o personagem se reencontre com uma unidade quando visita seu psiquiatra. Pelo contrário, ao configurar-se como um sistema aberto, em constante relação com aquilo que lhe é externo e incapaz de encontrar uma unidade sólida, o rizoma permite a Jimmy a constituição de uma subjetividade que se dá na multiplicidade. Assim ele pode ser Helpless Dancer e Is It Me? e Bell boy e Love Reign O‟er Me e.... e.... e... Referências Bibliográficas: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira, Aurélio Guerra Neto e Celia Pinto Costa. São Paulo: Ed. 34, 1995. QUADROPHENIA. Direção: Franc Roddam. (S.I), The Who Films, 1979. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 247 WHO, The. Quadrophenia. Londres: MCA Records, 2011. CD. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 248 A HISTÓRIA DA EJA, A ALFABETIZAÇÃO E A FILOSOFIA Francisco Luna Pereira CTESOP, [email protected] Orientador: Hélio Clemente Fernandes SEED/CTESOP, [email protected] RESUMO: Este estudo apresenta como ponto inicial a alfabetização arraigada num Brasil Colônia, onde a Igreja Católica ocupava papel preponderante nas questões educacionais. Nesta perspectiva, busca-se compreender o processo de educação para jovens e adultos a partir da história. Os cursos de capacitação e as especializações são espaços em que o debate, a leitura corroboram com o aprofundamento desta temática em pauta. Destaca-se, dentro deste panorama, o livro: A Ação Cultural para a Liberdade de Paulo Freire que serve como fundamentação teórica. Enseja-se, desta forma, apresentar um pouco das inúmeras reflexões referentes à alfabetização de jovens e adultos. Objetiva-se que esta pesquisa contribua para que a EJA seja uma ferramenta em favor dos jovens e adultos para que saibam ler, escrever, interpretar e atuar de modo filosófico na sociedade do capital. Palavras-chave: Sujeito crítico. Alfabetização. Educação. EJA. Emancipação. Introdução Esta pesquisa tem como enfoque às práticas da Educação de Jovens e Adultos (EJA), ou seja, os inúmeros métodos de aprendizagem que foram surgindo ao longo do desenvolvimento do sistema educacional do nosso país. A partir de Álvaro Vieira Pinto compreende-se que ―na forma elementar, ingênua, a educação é considerada como o procedimento de transformação do não-homem em homem. Na forma superior, crítica, a educação se concebe como um diálogo entre dois homens, na verdade entre dois educadores‖ (1997, p. 35). Essa relação dialógica precisa ocorrer entre aqueles que com experiências de vida voltam aos bancos escolares e os trabalhadores em educação que se dedicam nesta modalidade de ensino. Neste sentido, com base na afirmação de Paulo Freire assinala-se para a relevância do trabalho enquanto um princípio educativo: ―(...) o processo do trabalho é o verdadeiro processo de educação. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 249 Mas o homem que vive hoje em dia mergulhado na sociedade de consumo não entende as coisas claramente‖ (1982, p. 24). Desvela-se, deste modo, o compromisso técnico e político que o docente precisa ter ao trabalhar na Eja. Com uma formação filosófica sólida terá condições de decodificar juntamente com os estudantes da Eja os mecanismos que regem a sociedade. No desenvolvimento deste trabalho, primeiramente, será realizada uma breve abordagem da História da EJA no Brasil, como foi seu surgimento e as várias etapas e transformações que houve desde o colonialismo passando pelo o império até chegar aos dias de hoje. Registram-se as dificuldades da época colonial onde quem promovia a Educação de Jovens e Adultos era a Igreja Católica. Mais tarde, no período imperial era premente o preconceito contra o analfabeto que, por sua vez, era desconsiderado por todos. No séc. XX, com influências tecnicistas, os cursos de Supletivos de várias formas pedagógicas foram instituídos e perduraram até os anos 90, aonde é substituído pela instauração da Educação de Jovens e Adultos (Eja) que perdura na atualidade. Num segundo momento é apresentada a problematização da educação na Eja, colocando em mostra as dificuldades dos professores com estes alunos que precisam de um ensinamento específico. Nesta parte, analisa-se a relevância da alfabetização e da formação filosófica do estudante da Eja para a sua participação na sociedade. A história da Eja no Brasil A Eja é uma modalidade de ensino, amparada por lei e voltada para pessoas que não tiveram acesso ao ensino regular, na idade apropriada, de acordo com o consenso estabelecido pela sociedade. No entanto, suas origens remontam à colonização do Brasil e o trabalho jesuítico: (...) destaca-se que as primeiras iniciativas de educação de Jovens e Adultos aconteceu com a intervenção dos missionários da Igreja Católica que chegaram ao Brasil e que vieram para evangelizar. A educação nesta fase confunde-se com a catequização e seus interesses intrínsecos. (FERNANDES, 2012, p. 267-268). Para tornar possível a catequese os padres jesuítas se empenharam na alfabetização dos nativos. Nesta época evangelização e educação caminharam juntas. Pode-se dizer que a influência dos missionários influenciou e influencia até os dias atuais. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 250 Cumpre registrar que o olhar educacional, no momento da colonização, é pautado pelo viés do colonizador. Por conseguinte, não podemos deixar de explicitar que ―os portugueses trouxeram um padrão de educação próprio da Europa, o que não quer dizer que as populações que por aqui viviam já não possuíam características próprias de se fazer educação‖ (BELLO, s/d, p. 1). Logo, a história da educação brasileira liga-se com a evangelização e, também, com o desrespeito ao nativo (herdeiro legítimo das terras do Brasil). Em linhas gerais, a história da educação brasileira passa pelo período jesuítico (1549-1759), politicamente ajustado ao ideal de combate ao protestantismo e com o objetivo de concretizar ―toda glória para Deus‖. No entanto, se o referencial dos jesuítas era a fé, o mesmo não ocorria com a corte portuguesa. Para Pombal o que importava era o lucro. A razão de ser de uma colônia era oferecer vantagens econômicas para a sua metrópole. Por isso, o período pombalino (1760-1808) representou o ―fazer com menos propagado na atualidade‖. Com pífios investimentos Pombal visou tornar a escola um ―braço do Estado‖ (Durkheim). Costuma-se assinalar que neste período foi derrubado o que tinha e nada foi posto no lugar. Com a vinda da Família Real temos o período joanino (1808-1821), onde melhorias foram apresentadas: ocorre no Brasil à criação do Jardim Botânico, a Biblioteca Real. Porém, no país tido com vocação para a agricultura a educação continuava a ocupar um plano subalterno. A questão econômica tinha preponderância sobre o âmbito educacional: ―(...) a abertura dos portos, além do significado comercial da expressão, significou a permissão dada aos brasileiros (madeireiros de pau-brasil) de tomar conhecimento de que existia, no mundo, um fenômeno chamado civilizaçõa e cultura‖ (LIMA, 1969). Na época do período Imperial (1822-1888) temos o Artigo 179 que determinava: ―instrução primária é gratuita para todos os cidadãos‖. Vale recordar, contudo, que poucos eram designados como cidadãos nesta época. O ―museu de coisas novas‖ na área da educação chegou ao século XX. Muitas coisas copiadas do exterior, extintas quando exitosas e bem recebidas pela população. Repetem-se os eternos reclames dos números de analfabetos e que a educação não é levada a séria no Brasil. Intencionalmente é feito de tudo para que a classe trabalhadora não se compreenda enquanto classe. Basta analisar o que aconteceu em 1961 com a iniciativa de Paulo Freire que propunha alfabetizar o povo em apenas 40 horas. Pelo fato de haver educação com politização o método Paulo Freire foi considerado ―comunizante e subversivo‖, e, portanto, posteriormente abortado. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 251 Assim sendo, feito estas considerações, num passado recente, observa-se a implantação do Ensino Supletivo em 1971 com base na Lei 5.692, no intuito de golpear todas as tentativas de se revolucionar a educação brasileira. O ano de 1971 constitui-se num fato histórico para os anais da Eja do Brasil. Campanhas progressistas do tipo: ―De pé no chão se aprende a ler‖ e tantas outras iniciativas foram suprimidas pelo Regime Militar, a Eja adquire oficialidade pela primeira vez na sua história. Foi organizado um capítulo exclusivo sobre esta modalidade da educação expresso na Lei nº 5.692/71: ―O artigo 24 desta legislação estabelecia com função do supletivo supri a escolarização regular para adolescentes e adultos que não a tenham conseguido ou concluído na idade própria‖ (VIEIRA, 2004, p.40). Além da questão da alfabetização o povo recebia formação política. Sujeitos politizados incomodam e a temática do momento político que o país vivia rendeu muitas reflexões. O movimento brasileiro de Alfabetização (MOBRAL) tinha como objetivo se contrapor a todas as iniciativas progressistas que se alardeavam pelos campos do país. Em todo o território brasileiro, foram criados os Centros de Estudos Supletivos, tendo como objetivo ser o modelo de educação no futuro, visando atender a necessidade de um processo de modernização. Suprindo a falta de mão de obra qualificada no mercado de trabalho, visando escolarizar o maior número de pessoas, mediante a um baixo custo operacional. O sistema não requeria frequência obrigatória e a avaliação era feita em dois módulos: uma interna ao final dos módulos e outra externa feita pelos sistemas educacionais. Contudo, a metodologia adotada gerou alguns problemas: o fato de os cursos não exigirem frequência fez com que os índices de evasão fossem elevados; o atendimento individual impediu a socialização no mercado de trabalho. O estudante teve restringida a busca apenas do diploma sem conscientização da necessidade do aprendizado, do estudar constantemente para a vida. A alfabetização e a filosofia Quem atua no ―chão da escola‖ percebe facilmente a problemática da evasão escolar. Além disso, as estatísticas apontam uma parcela considerável da população que quase não teve a oportunidade de frequentar os ―bancos escolares‖. Sem ater-se nas causas (que são inúmeras) o fato é que a quantidade de estudantes que precisam da modalidade de ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 252 Educação de Jovens e Adultos (Eja) é crescente e aumenta diuturnamente. Ao lado do crescimento da demanda por vagas é importante a ampliação da qualidade educacional que passa necessariamente pelos estudos filosóficos. Certamente, o modo de ensino na Eja é diferenciado. Trata-se de estudantes com responsabilidades, pais, mães, trabalhadores, que na sua maioria almejam recuperar o tempo perdido. Destarte, o professor que se dedica nesta modalidade da educação carece aprofundar-se no conhecimento dos eixos que direcionam o trabalho educacional na Eja que é o tempo, o trabalho, a cultura. Nesta esteira, pesquisadores apontam a necessidade de formação específica de formação docente aos trabalhadores da educação que visam laboram neste âmbito da educação. As universidades, as faculdades, os responsáveis em preparar os professores da educação básica, necessitam estarem atentos a essa realidade, pois ―Aprender a ler e escrever de forma autônoma é um direito que precisa ser assegurado a todos‖ (LEAL, ALBUQUERQUE e MORAIS, 2010, p 24). Sem este entendimento conceitual, corre-se o risco dos estudantes Jovens e Adultos serem tratados como criança, o que é - no mínimo - inadmissível. A filosofia ao lidar com o conceito, neste sentido, pode contribuir. De acordo com Paulo Freire a alfabetização do estudante da Eja não pode ser uma prática mecânica, dogmática, sem motivação, sem encanto e descolada com uma concepção filosófica de mundo. De modo envolvente o docente tem que conquistar a atenção de seus discentes para um fazer pedagógico dinâmico, comprometido, enobrecedor, com a finalidade de emancipação do ser social. ―Por essa razão, não acreditamos nas cartilhas que pretendem fazer uma montagem de sinalização gráfica como uma doação e que reduzem o analfabeto mais à condição de objeto de alfabetização do que de sujeito da mesma (FREIRE,1979, p.72)‖. Acrescenta-se, também, que a alfabetização não pode ocorrer de cima para baixo. Afinal, platonicamente, sabemos que ―a educação não se impõe, se desperta‖. Logo, o docente precisa contribuir para que de dentro para fora o saber do discente floresça. Este método filosófico faz do professor um estudante e vice-versa. Neste processo de comunhão ambos apreendem e ensinam. Considerações finais O processo de educação da Eja está em pleno desenvolvimento. A atuação de professores que procuram aprimorar-se constantemente: no planejamento das aulas, no ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 253 estudo sistemático dos textos filosóficos, na sistematização de conceitos etc. A Filosofia é fundamental para a construção e desenvolvimento dos estudantes da Eja. Certamente, para o professor potencializar sua prática na Eja ele precisa de embasamento teórico, filosófico e metodológico. Além disso, favorece o trabalho docente as políticas pedagógicas e a liberdade de desenvolver sua práxis educativa. É sabido que os estudantes da Eja demandam especificidades no processo de ensino-aprendizagem. Alguns adultos nunca estiveram numa escola e não podem aprender como as crianças e, sim, dentro da sua realidade, da sua vivência. Por sua vez, os mais jovens que pararam de estudar por algum motivo também carecem de uma preparação mais atenciosa. Não se pode olvidar, que alguns jovens são impacientes e precisam de apoio pedagógico para não desistir. No Brasil existem docentes comprometidos com a Eja e que escrevem e deixam suas obras como um legado para as novas gerações de trabalhadores em educação. Neste panorama, cita-se o professor Paulo Freire, que escreveu inúmeros artigos, livros imprescindíveis para quem almeja compreender a Eja e a educação na sua totalidade. A visão de Paulo Freire acerca da educação é amorosa, encantadora. Com seu trabalho, Paulo mostrou o quanto é importante saber ler e escrever para o exercício da nossa liberdade de pensar/filosofar, de viver. Envolve, também, o esclarecimento das relações que porventura possam existir entre o processo educacional e outros processos que, à primeira vista, parecem ser seus parentes chegados: doutrinação, socialização, aculturação, treinamento, condicionamento, etc. Uma análise que tenha por objetivo o esclarecimento do sentido dessas noções, dos critérios de sua aplicação, das suas implicações, e da sua relação entre si e com outros conceitos educacionais é tarefa da filosofia da educação e é condição necessária para a elucidação do conceito de educação. Referências Bibliográficas: ALBUQUERQUE, Eliana Borges Correia de; LEAL, Telma Ferraz, MORAES, Artur Gomes de. Alfabetizar Letrando Na EJA: fundamentos teóricos e formas didáticas /organização. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010. BELLO, José Luiz de Paiva. Educação no Brasil: a História das rupturas. Site: < HTTP://www.pedagogiaemfoco.pro.br/heb14.htm > Acesso em 11/03/2013. Ano 2001. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 254 FERNANDES, Hélio Clemente. Algumas considerações sobre a educação de jovens e adultos. In: Simpósio de Pesquisa Estado e Poder, III. :2011: Marechal Cândido Rondon. Processos de Construção de hegemonia no Brasil contemporâneo: Anais. Cascavel, PR: Edunioeste, 2012. FREIRE, Paulo. Ação Cultural Para A Liberdade E Outros Escritos. Rio de Janeiro: Paz E Terra S/A, 1976. ___________. Educação E Mudança. Tradução Moacir Gadotti e lillam Lopes Martins.Rio de Janeiro: Paz E Terra,1979. ___________. Trabalho e Mercadoria, São Paulo: Editora Loyola, 1982. LIMA, Lauro de Oliveira. Estórias da educação no Brasil: de Pombal a Passarinho. Rio de Janeiro: Brasília, 1969. PINTO, Álvaro Vieira. Sete Lições Sobre Educação de Adultos. Introdução e entrevista de Demerval Saviani e Betty Antunes de Oliveira: versão final revista pelo autor. São Paulo: Cortez, 1997. SAVIANI, Dermeval. Educação: do senso comum à consciência filosófica. São Paulo: Cortez, 1980. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 255 APONTAMENTOS SOBRE A TEORIA DA ALIENAÇÃO NO JOVEM MARX Gerson Lucas Padilha de Lima UNIOESTE/CAPES - CNPq [email protected] Dr. Rosalvo Schutz RESUMO: O propósito do estudo é investigar os significados da teoria da alienação no pensamento do jovem Marx. Para Marx a teoria da alienação é pensada a partir da noção do trabalho. O trabalho é atividade vital produtiva que intermedeia a relação do homem com a natureza, pelo qual, este produz os meios de produção e subsistência, além de desenvolver suas potencialidades físicas e mentais. Porém, no capitalismo, seu exercício é responsável pela alienação do homem e, por conseguinte, sua transformação em mercadoria. O plano geral, é evidenciar como Marx rompe com a perspectiva hegeliana do Estado Ético, avança nos debates sobre os temas da emancipação política e humana, até que ao se confrontar com o pensamento da economia política nos Manuscritos econômicoFilosóficos, desenvolve os fundamentos ontológicos e históricos da alienação. Palavras-chave: Marx, Trabalho, Alienação. As tendências filosóficas e as experiências políticas dominantes na época da Marx e as que o precederam, se incluem como motivações teóricas e práticas nas quais o autor se apropriou para tematizar o estatuto da teoria da alienação em seus escritos juvenis. No âmbito prático, presenciou e participou dos movimentos sociais e políticos do século XIX na Alemanha e Inglaterra; e no âmbito teórico, foi influenciado pelo idealismo de Hegel, o materialismo de Feuerbach, e pelos economistas políticos da Inglaterra: David Ricardo e Adam Smith. A tematização mais importante para a compreensão da teoria da alienação de Marx até 1843 está na obra Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. No linear da análise do Estado, Marx faz a crítica ao caráter especulativo da filosofia do direito e do Estado de Hegel. Para ele, a ―ideia‖ de vontade manifestada de forma concreta no Estado, encarnada na soberania do rei, é o momento ético unificador entre os fins particulares e universais da sociabilidade humana. Por essa razão o Estado é a instância onde predominam os interesses universais que, por intermédio das leis e de suas instituições, realizam e dão racionalidade, ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 256 objetividade e substância ética às vontades particulares dos indivíduos situados na sociedade civil. Nas instituições se opera a unidade, sendo que, por um lado, se forma a consciência do universal que nasce dos fins particulares e, por outro, como nas corporações, se tem garantido o direito da atividade dirigida ao universal. Em Hegel, o conceito, a ideia ou as categorias lógicas, em vez de reconstruírem idealmente o movimento do objeto real, acabam por constituí-lo, tornando-se sujeitos que tudo movimentam. O que Marx propõe é buscar a lógica específica do objeto específico. No entanto, ao invés de Hegel buscar a ―lógica da coisa‖, buscou a ―coisa da lógica‖, de maneira que ―a lógica não serve para justificar o Estado, ao contrário, é o Estado que serve para justificar a lógica‖ (MARX, 2005, p.39). Marx, valendo-se, especialmente, do aporte teórico de Feuerbach, promove a inversão crítica entre as esferas do Estado e da sociedade civil. Segundo Feuerbach, ―em Hegel, o pensamento é o ser; - o pensamento é o sujeito, o ser é o predicado (...) a verdadeira relação entre pensamento e ser é apenas esta: o ser é o sujeito, o pensamento é o predicado‖ (FEUERBACH apud ENDERLE, p. 26). Conforme Enderle, Marx assim como Feuerbach, não centra suas críticas ―à especulação Hegeliana na denúncia de um erro de método, mas sim na falsidade da determinação ontológica em que o método está assentado‖ (Enderle, 2005, p. 20). Marx não se contenta em apropriar-se da dialética para descrever a realidade enquanto tal, mas busca igualmente evidenciar os pressupostos e as contradições estruturais imanentes a lógica da sociedade capitalista, bem como a possibilidade efetiva de sua superação. O que Marx demonstra é que a sociedade civil expressa a determinação fundamental do Estado, portanto, sua razão de ser. O Estado tem sua raiz no antagonismo de classes e na defesa dos interesses da propriedade privada, constituindo a organização externa e alienada dos interesses da vida genérica dos homens. O Estado considera idealmente a propriedade, a cultura e a ocupação como diferenças não políticas, porém não promove a igualdade real; pelo contrário, subsiste sobre tais premissas. Já, a sociedade civil é o espaço real das relações privadas, do atomismo social, demarcado pelo conflito e pela oposição de interesses, ou seja, constitui o mundo ―das necessidades, do trabalho, dos interesses privados, do direito privado‖ (Marx, 1991 p. 50). Esse é o cenário da anarquia, análoga ao estado de natureza, caracterizado pela guerra de todos contra todos e da existência humana fortuita e corrompida pela organização social; da busca desenfreada pelo dinheiro – Deus secular. Os desdobramentos dessa contradição entre as esferas da vida política e econômico – social implicam a instituição dos direitos humanos, divididos em direitos do homem e do ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 257 cidadão. Os direitos humanos (igualdade, segurança, liberdade e propriedade) não constituem direitos universais efetivos, são apenas universais pela abstração política, de maneira que neles o ―homem real só é reconhecido sob a forma do indivíduo egoísta e o homem verdadeiro somente sob a forma de cidadão abstrato‖ (MARX 1991, p. 51). O estado se opõe formalmente ao burguês e este se opõe materialmente ao estado. O burguês não tem significado político pela sua vida e organização social, mas apenas enquanto individualidade privada. Então, a liberdade é o direito determinado pela lei de se fazer tudo o que não prejudique o outro, assim como as estacas demarcam o limite divisório entre duas terras. Logo, ―a aplicação prática do direito humano da liberdade é o direito humano à propriedade privada‖ (MARX, 1991, p. 42). Direito do ―membro da sociedade burguesa, do homem egoísta, do homem separado do homem e da comunidade‖ (MARX, 1991). Marx assemelha o lugar do Estado político em relação à sociedade civil, àquele lugar que na religião o céu representa para a terra. A democracia política realiza o ―fundamento humano‖ do cristianismo, porque eleva o homem de sua situação desumana à condição de cidadão, de ser supremo no Estado. O homem cindido existe, por um lado, como individualidade alienada em meio às relações sociais, por isso uma ―manifestação carente de verdade‖, e também na figura ilusória do cidadão de Estado, onde, enquanto ―membro imaginário de uma cidadania imaginária‖, é o ser genérico. Por isso, entre o homem religioso e o político existe a mesma contradição que ―entre o bourgeois e o citoyen, entre o membro da sociedade burguesa e sua aparência política‖ (MARX, 1991, p. 27). Nos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, o ponto de convergência dos complexos de alienação é a alienação no trabalho. Este é considerado em sua significação geral, enquanto atividade vital produtiva: a determinação ontológica fundamental do homem, isto é, o modo efetivamente humano de existência; bem como em sua acepção particular, na forma da divisão do trabalho, estruturado em moldes capitalista, que o trabalho é a base de toda alienação. Sob o conceito de trabalho alienado – trabalho que alcança sua mais clara expressão na sociedade capitalista – podemos, identificar quatro formas de alienação: a) Em relação ao produto do trabalho; b) Em relação a sua própria atividade produtiva; c) Em relação aos outros homens; d) Aliena-se em relação a sua própria espécie, seu ser genérico. A alienação em relação ao produto do trabalho – objeto - ocorre porque o trabalhador está impossibilitado de adquirir o objeto produzido. Após a consecução da produção, o operário entrega a um terceiro o objeto produzido, em troca de um salário ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 258 para atender a satisfação de suas necessidades básicas, indispensáveis à sobrevivência e assim continuar reproduzindo a força de trabalho. Constata-se então a venda não do produto do trabalho e do trabalhador propriamente dito, mas da força de trabalho, transformando-se assim em mercadoria. Então, ocorre uma dupla produção de mercadoria: aquelas produzidas pelo trabalho do operário que se objetiva mediante a transformação da natureza; e o trabalho do operário produzido como mercadoria. Marx observa que quanto mais o trabalhador se exterioriza pelo trabalho do mundo exterior, mais se afasta de sua riqueza produzida. O objeto produzido apresenta-se ao operário como algo estranho e alheio a si. Quanto mais gera mercadoria no sistema capitalista, em proporção equivalente, afasta-se delas, no que se refere a sua distribuição e aquisição das mesmas. Em contrapartida, acaba-se cada vez mais ficando a mercê da acumulação dessa mesma produção. Desse modo, o objeto produzido não só não lhe pertence como se lhe opõe, e, ainda passa a caracterizar a sua condição. Também argumenta Marx, que a alienação não se processa no trabalhador somente em relação aos produtos de seu trabalho, mas igualmente em face ao próprio ato de sua produção, no linear da própria atividade produtiva. Dado que o produto do trabalho não pertence ao trabalhador, o processo do trabalho tem que necessariamente ser passível de alienação. O objeto, em relação á produção aparece como um elemento passivo de uma alienação ativa, hostil e estranha para o operário. Mediante essas razões, O trabalho externo, o trabalho em que o homem aliena-se, é um trabalho de auto sacrifício, de mortificação. Em definitivo, a exterioridade do trabalho para o operário mostra-se como algo que não é seu, sendo de outro, que não lhe pertence, e em que ele mesmo, no trabalho, não pertence a si mesmo, senão que pertence a outro. (MARX, 2004, p.71) O trabalho alienado abafa e anula o desenvolvimento das potencialidades distintivas da condição humana enquanto tal. Reduz as funções propriamente humanas, em funções animais. Embora comer, beber e procriar são necessidades humanas inexoráveis, torná-las determinante, seria aproximar o homem ao estado animal. O diferencial do homem, é que este deveria exercer o trabalho, enquanto uma atividade livre, consciente e criativa, distinguindo sua humanidade. O trabalho aparece como atividade mediadora entre o homem e a natureza e entre o homem e o próprio homem, pois este é participante desta dimensão natural. Em função que o homem vive da natureza, esta se constitui como corpo inorgânico do homem. Tal fato acontece porque a natureza propicia as condições para o ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 259 ser humano prover a sua existência física, bem como o aporte de instrumentos para a realização de sua atividade vital. Todavia, em um trabalho onde o produto do trabalho objetivado não retorna ao trabalhador, dá-se a alienação em relação à natureza e em relação a sua atividade vital produtiva. Já, se interpõe outra mediação em face à atividade produtiva enquanto responsável pela intermediação entre o homem e a natureza, e o homem em relação aos outros homens. Por conseguinte, se dará a alienação do homem enquanto parte da natureza, de si próprio e enquanto homem entre os outros homens. O trabalho alienado, 1) porque converte a natureza em uma coisa alheia ao homem, e 2) porque aliena-se a si mesmo sua própria função ativa, sua atividade vital, faz do gênero algo alheio ao homem, faz que sua vida genérica se converta em meio à vida individual, e em segundo lugar, converte a vida individual em sua abstração, no fim da vida genérica, também sob sua forma abstrata e alienada. (MARX, 2004, p.73) Doravante, o trabalho alienado anula o homem, ao metamorfosear sua atividade social e real, em uma atividade individual e abstrata. A transformação da atividade produtiva consciente, livre e coletiva em atividade mecânica, imposta e individual, resulta na alienação do homem com relação ao seu próprio ser. Já que o trabalho alienado apresenta a alienação em relação ao objeto do trabalho, no ato da produção, e com relação ao próprio ser do homem, segue-se sua alienação em relação aos outros homens, uma vez que o produto do trabalho não pertence ao seu produtor, deve pertencer necessariamente a outro homem. Assim pertence a alguém que se apresenta ao operário como estranho. Como o produto fabricado não retorna ao trabalhador, se transforma na posse de um terceiro. Com isso, formam-se duas classes antagônicas: uma que se apropria da produção de outrem, e, outra que é despossuída dos meios de produção e dos objetos produzidos. Porém, segundo Marx, ambas as classes são alienadas, muito embora a classe burguesa é a privilegiada, pois porta em seu bojo as riquezas resultantes do excedente do tempo de trabalho não remunerado do trabalhador, isto é, a mais-valia ou o sobre valor. Contudo, há características distintas no que se refere à alienação da classe proletária em relação à classe proprietária. A primeira apresenta um comportamento ativo e concreto frente à atividade produtiva; enquanto a segunda, se comporta em relação a esta mesma produção com uma conduta teórica. Isto é, pertencem à classe parasitária da sociedade, ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 260 administrando o processo de subordinação hierárquica de exploração do trabalho em relação ao capital, uma vez que não produzem o conteúdo material da riqueza social. O produto da atividade alienada dá origem à propriedade privada. Da mesma forma, a propriedade privada que não pertence ao trabalhador é condição necessária para a efetivação da alienação. Igualmente, não só a propriedade privada aparece como meio e produto do trabalho alienado, mas também o salário. Este é a ratificação da usurpação do objeto produzido e da transformação do homem em mercadoria. Na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel – Introdução, aparece o conceito de revolução como responsável pela liberdade social do povo, e, por conseguinte, a superação das condições de alienação. A revolução tem como pressuposto, em seu movimento prático, ―a dissolução da ordem social existente‖ e a ―negação da propriedade privada‖, tarefa ―de uma classe na sociedade civil que não seja uma classe da sociedade civil‖ (MARX, 2005, p.159). Tal emancipação é atribuição da classe proletária, que, diferentemente da classe burguesa não tem interesses particulares a impor à sociedade, pois sua condição de subordinação e seus ―sofrimentos universais‖ não a levam a exigir uma ―reparação particular, mas a dispõe pela emancipação humana geral‖ (MARX, 2005, p. 155). Marx nos Manuscritos ao se confrontar com as tendências do comunismo grosseiro e político, democrático ou despótico, formula a sua própria noção de comunismo, entendido como a ―superação positiva da propriedade privada enquanto auto-alienação do homem‖ (MARX, 1978, p.8). Por um lado, o comunismo é um movimento de ruptura com a propriedade privada e as relações e condições de produção que dominam o produtor e, por outro, aparece como um horizonte em vista do qual o movimento da realidade histórica poderá ser constituído, sem que, no entanto, seja necessário. Contudo, o desenvolvimento da propriedade privada possibilitou a produção ampliada da riqueza material e cultural entre os homens, o desenvolvimento de suas carências humanas e a determinação social das relações da vida genérica, mesmo que estabelecidas sobre relações sociais de produção alienadas. Então, Marx levanta a suposição da produção social livre dos trabalhadores em relação à propriedade privada burguesa, possibilitando ao produtor contemplar, através do produto do trabalho, o poder objetivo de sua personalidade, fazendo de sua atividade uma manifestação singular de sua vida. Na produção livre, além de o objeto, por um lado manifestar as forças essenciais da individualidade de seu criador, o desfrute do objeto, por outro, o realizará na medida em que seu trabalho terá satisfeito uma necessidade humana genérica. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 261 Referências Bibliográficas: MARX, Karl. A questão judaica. São Paulo: Moraes, 1991. ___________. Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2005. ___________. Glosas críticas ao artigo “O rei da Prússia e a reforma social”. Por um prussiano (Vorwärts!). Práxis, Belo Horizonte, n. 5, 1995. ___________. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 262 O CONCEITO DE MERCADORIA EM O CAPITAL DE MARX: A TEORIA DO VALOR E O FETICHE DA MERCADORIA Gilmar Derengoski Graduado em Administração [email protected] RESUMO: O presente artigo objetiva investigar e problematizar o processo de produção capitalista pela ótica do filósofo alemão Karl Marx; tendo como ponto central o estudo do conceito de mercadoria e seus componentes essenciais. Em essência, trata-se de uma analise cuidadosa sobre os principais conceitos relacionados com o que Marx entende por mercadoria: quais sejam: Valor, Valor de Uso e Valor de Troca. Assim como, da teoria marxista sobre o Fetiche da Mercadoria e sua importância para o surgimento da teoria do valor. Salientando as relações sociais desenvolvidas entre homens e oriundas da interação entre o conceito Valor e o Capital. Sempre procurando evidenciar o caráter transitório do capital. Palavras-chave: Capital. Mercadoria. Valor. Fetiche. A Mercadoria A mercadoria é entendida por Marx como tendo dois fatores primordiais e indissociáveis, quais sejam: valor de uso e valor de troca. Uma vez que, toda coisa que possui alguma utilidade é considerada sobre estas duas categorias. Assim sendo, é forçoso concluir que ―a riqueza das sociedades onde reina o modo de produção capitalista parece como uma ―enorme coleção de mercadorias‖ e a mercadoria individual como sua forma elementar‖ (MARX, 2013, p.113). É sabido que em algum momento da história da civilização o homem deixou de se preocupar somente com o trabalho para prover suas necessidades básicas e passou a se preocupar com acumulo de riqueza, ou seja, o acumulo de mercadorias. A mercadoria, em resumo, é definida como sendo um objeto que visa (a partir de suas propriedades materiais) satisfazer as necessidades ou carências do homem. Logo, é essa utilidade inerente a mercadoria que constitui o valor de uso da mesma. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 263 Valor de Uso O valor de uso de uma mercadoria é apenas efetivado quando a mesma pode ser usada ou consumida: ―os valores de uso formam o conteúdo material da riqueza, qualquer que seja a forma social desta‖ (Idem, p. 114). Em primeira analise, o valor de uso de uma mercadoria não possui uma relação imediata com o trabalho humano despendido sobre a produção da mesma; todavia, na forma social capitalista, o valor de uso sempre estará presente no conteúdo material da mercadoria. Nesse sentido, quando retirada a utilidade de uma mercadoria, esta perde o seu valor de uso e, portanto, seu valor como mercadoria; uma vez que, sem o seu caráter útil a mercadoria se transforma em uma simples abstração pura: ―nenhuma coisa pode ser valor sem ser objeto de uso. Se ela é inútil, também o é o trabalho nela contido, não conta como trabalho e não cria por isso, nenhum valor‖ (Idem, p. 119). Segundo Marx, enquanto valor de uso, as mercadorias possuem uma grande diversidade. No entanto, tomadas enquanto valores, as mercadorias possuem uma igualdade qualitativa, diferenciando-se apenas na quantidade. Tal característica implica que a mercadoria tomada enquanto valor é divisível, entretanto, enquanto objeto físico, não o é; ou seja, enquanto valor, as mercadorias não se diferenciam de outras mercadorias que possuem o mesmo valor. Assim sendo, a troca de mercadorias existe justamente pela diversidade de necessidades do homem. Enquanto valor, toda mercadoria é universal – como mercadoria real, ao contrário, é uma particularidade; enquanto valor, toda mercadoria é continuamente cambiável – na troca real, pelo contrário, só o é em determinadas condições; enquanto valor, a medida da característica da troca da mercadoria é determinada por ela mesma (isto é, pelo quantum de trabalho nela contido) – na troca real, pelo contrário, é cambiável só em quantidade relacionada com a sua qualidade natural e correspondente às necessidades daqueles que efetuam as trocas (TROTTA, 1991, p. 16). Como dito, a mercadoria de certa forma é uma ―contradição, real, sensível e materialmente existente‖ (Idem, p. 17). Segundo Marx, a mercadoria existe como desigual a si mesma. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 264 O conceito de Valor de Uso é trabalhado por Marx em sua significação econômica; o que acarreta no estudo acerca da relação com ―as condições sociais de produção, tanto quando é influenciado por elas, como quando influi nessas condições‖ (CARCANHOLO, 1998, p. 1). Por tal razão, é chamado de formal o valor de uso em que o significado perpassa o caráter material da mercadoria. De modo que, tal entendimento é responsável ―pelas especificidades do que se chama de mercadorias especiais‖ (Idem, p. 1). Toda mercadoria carrega em si mesma uma representação de um duplo caráter do trabalho, uma vez que, intrinsicamente toda mercadoria surge de uma determinada atividade ou trabalho útil. Isso acontece pelo fato de que ―valores de uso não podem se confrontar como mercadorias se neles não residem trabalhos úteis qualitativamente diferentes‖ (MARX, 2013, p. 120). O trabalho despendido para a produção de uma mercadoria é um importante fator para a determinação do valor de uso da mesma, todavia, não é o único fator. Segundo Marx, a natureza e suas consequências também determinam o valor de uso de uma mercadoria: a escassez de um determinado produto aumenta seu valor de uso. Por sua vez, o caráter útil de uma mercadoria é adquirido pela determinidade do trabalho contido na mesma, ou seja, o padrão e o método pelo qual se produz tal mercadoria determina sua utilidade. O valor de uso pode ser entendido como uma espécie de receptáculo material/físico do valor. Como dito anteriormente, são as propriedades físicas que conferem o valor de uso da mercadoria; ―mesmo quando os objetos são diretamente tomados da natureza, situação na qual o valor de uso independe da quantidade de trabalho nele corporificada, é sua apropriação pelos seres humanos que faz do objeto valor de uso‖ (MIRANDA, 2009, p. 2). Isso acontece pelo fato de que o valor de uso é uma apropriação social, mesmo quando em sua forma natural. Pois, o homem ao apropriar-se de um objeto que advém da natureza acaba por reconhecer o valor de uso do mesmo. Através do reconhecimento correto das propriedades dos objetos, pode o ser humano conscientemente alterar sua forma material segundo uma finalidade inicialmente posta. A transformação do mundo natural (incluindo a natureza já previamente mediada pelo trabalho humano) responde a estímulos mais que imediatos – para além das necessidades imediatas de manutenção da existência biológica (da vida) dos indivíduos e da espécie –, sendo, portanto, específico da espécie humana e lei tendência indispensável ao desenvolvimento desta forma de ser. Ao pôr de novos valores de uso, sob a ineliminável base natural, corresponde ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 265 um processo de aumento da complexidade das relações sociais (Idem, p. 2). Isso significa que a criação oriunda do homem implica uma transformação continua da realidade dada para uma realidade cada vez mais social. Valor de Troca Como explanado, a mercadoria possui em sua gênese dois fatores indissociáveis que lhe conferem seu valor como mercadoria. Uma mercadoria abarca em si mesma tanto o valor de uso (―o corpo‖ da mercadoria: ferro, linho, papel, trigo), como também o valor de troca; isso porque, uma mercadoria só pode ser denominada como tal, quando possui essas duas categorias de valor. As mercadorias, segundo Marx, são algo duplo: ―objetos úteis e, ao mesmo tempo, suportes de valor. Por isso, elas aparecem como mercadorias ou só possuem a forma de mercadorias na medida que possuem esta dupla forma: a forma natural e a forma de valor‖ (MARX, 2013, p. 124). O valor de uma mercadoria permanece do âmbito da subjetividade, ao contrário da mercadoria, enquanto corpo inerte e em si-mesma um objeto sensível. Isto é, uma mercadoria possui ―objetividade de valor apenas na medida em que são expressões da mesma unidade social, do trabalho humano, pois sua objetividade de valor é puramente social e, por isso, é evidente que ela só pode se manifestar numa relação social entre mercadorias‖ (Idem. p. 124). O valor de uso de uma mercadoria tomado no modo de produção capitalista unicamente se realiza quando a mesma é usada ou consumida. Assim sendo, o valor de uso é precisamente o conteúdo físico/material do acúmulo de riqueza, algo que independe da forma social. No entanto, o valor de troca, por sua vez, surge (mesmo que de forma genérica) como uma relação quantitativa. Relação em que valores de uso se trocam com valores de uso de outra espécie, por exemplo: βx é trocado por Δx. Logo as mercadorias possuem múltiplos valores de troca em relação umas com as outras ou entre si. As mercadorias, em seus valores de troca, devem encontrar os seus respectivos pontos em comum (TROTTA, 1991. p. 5). ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 266 Isso significa que esse ponto comum referido anteriormente pode ser entendido como a utilidade que é dada para a mercadoria pelo valor de uso. É por tal motivo que as mercadorias são de variadas qualidades. Por sua vez, o valor de troca é concebido por Marx como uma equação ―sendo efetuada através da identidade dos objetos trocados (...) Marx concebe a troca como uma equação, expressando os valores de troca uma ‗igualdade de propriedade das coisas trocadas (identidade de seus tempos de trabalho)‖ (HIRST, 1980, p. 17-19). Não obstante, nenhuma mercadoria possui valor em si-mesma ou de forma isolada, o valor lhe é conferido pelo valor de uso através da troca de mercadorias. Dessa maneira, as mercadorias possuem um valor objetivo somente quando expressam uma mesma unidade social, isto é, um mesmo dispêndio de trabalho humano. Uma vez que, ―sua objetividade de valor é puramente social e, por isso, é evidente que ela só pode se manifestar numa relação social entre mercadorias‖ (MARX, 2013, p. 125). Forma de Valor Relativa e Forma de Valor equivalente De forma geral, Marx objetiva chegar na gênese do que ele denomina como formadinheiro. Para tanto, ele busca desvelar todo o desenvolvimento do que denomina-se valor na relação valorativa das mercadorias; os dois polos do que ele denomina como expressão valor, quais sejam: forma de valor relativa e forma de valor equivalente. Aqui, duas mercadorias diferentes, A e B – em nosso exemplo, o linho e o casaco –, desempenham claramente dois papéis distintos. O linho expressa seu valor no casaco; este serve de material para essa expressão de valor. A primeira mercadoria desempenha um papel ativo, a segunda um papel passivo. O valor da primeira mercadoria se apresenta como valor relativo, ou encontra-se na forma de valor relativa. A segunda mercadoria funciona como equivalente, ou encontra-se na forma de valor equivalente (Idem, p. 126). Para Marx, ambas as formas (relativa ou equivalente) são momentos inseparáveis que se inter-relacionam e que acabam por se determinar reciprocamente. No entanto, são polos mutuamente excludentes, ―isto é, polos da mesma expressão de valor; elas se repartem sempre entre mercadorias diferentes, relacionados entre si pela expressão de valor‖ (Idem, p. 126). Segundo Marx, o segredo de toda e qualquer forma de valor situa-se na forma de valor simples. Isso porque, a forma de valor simples é obtida na relação entre duas ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 267 mercadorias distintas. Sendo que, essa forma é a mais simples expressão do que dr denomina como valor. No entanto, para um total entendimento do conceito valor, é preciso que descubramos sua origem, seja ela, etimológica ou conceitual; e para descobrir como a ―expressão simples do valor de uma mercadoria está contida na relação de valor entre duas mercadorias é preciso, inicialmente, considerar essa relação de modo totalmente independente de seu aspecto quantitativo‖ (Idem, p. 126). De modo geral, o valor de uso de uma mercadoria obtém-se quando tal mercadoria posta-se na relação de mercadorias de valores equivalentes. Uma vez que, uma mercadoria tomada isoladamente prova somente que seu valor se encontra na relação valorativa obtida na comparação entre duas mercadorias distintas. Pois, o valor do casaco apenas ampara-se no casaco tomado como simples objeto, mas, o casaco em-si-mesmo, não altera qualquer aspecto que não seja inteligível previamente; ―somente a expressão de equivalência de diferentes tipos de mercadorias evidencia o caráter especifico do trabalho criador de valor, ao reduzir os diversos trabalhos contidos nas diversas mercadorias àquilo que lhes é comum: o trabalho humano em geral‖ (Idem, p. 128). O Fetiche da Mercadoria Uma mercadoria em primeira instância aparenta ser algo simplório e banal. No entanto, a suposta trivialidade está retida na parte sensível da mesma, uma vez que, o caráter útil da mercadoria é uma qualidade suprassensível. Pois, enquanto mercadoria, sua valorização abstém-se do material do qual ela é formada. A forma-mercadoria e a relação de valor dos produtos do trabalho em que ela se apresenta não tem (...) absolutamente nada a ver com sua natureza física e com as relações materiais que dela resultam. É apenas uma relação social determinada entre os próprios homens que aqui assume, para eles, a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas (Idem, p. 147). A forma-mercadoria possui um caráter misterioso, qual seja: as marcas sociais e as marcas objetivas inerentes ao próprio produto do trabalho refletem a totalidade do trabalho do homem posto no horizonte das relações sociais. Assim sendo, o caráter místico da mercadoria ―não resulta, (...) de seu valor de uso, tampouco resulta do conteúdo das determinações de valor‖ (Idem, p. 146). Desse modo, o ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 268 caráter fetichista da mercadoria surge da relação entre os produtos do cérebro humano e os produtos do manuseio humano que se colam perante os produtos do trabalho enquanto mercadorias: o ―produto do trabalho se torna assim um fetiche e o fenômeno da transformação desse produto em algo enigmático, misterioso, ao adotar a forma de mercadoria é o que Marx chama de fetichismo da mercadoria‖ (VÁSQUES, 1968, p. 445). Desse modo, o caráter místico da mercadoria se origina do fato de que ela reflete para os homens ―as características sociais do seu próprio trabalho como características objetivas dos próprios produtos de trabalho, como propriedades naturais sociais dessas coisas‖ (Idem, p. 71); por tal motivo, reflete também a relação social de quem produz a mercadoria com produto final de seu trabalho como se fosse uma relação social entre objetos; ―os objetos (produtos do trabalho, mercadoria, dinheiro ou capital) que só existem como fruto de sua atividade, apresentam-se como objetos autônomos, subtraídos a seu controle e dotados de um poder próprio‖ (Idem, p. 447). Por fim, segundo Marx, o homem acaba se tornando aquilo que possui, seu poder é o dinheiro que possui. Logo, o homem não é mais determinado pela sua individualidade. O dinheiro acaba transformando as incapacidades do homem em seu contrário (MARX, 2001, p. 516-517). Referências Bibliográficas: CARCANHOLO, Marcelo Dias. A importância da categoria Valor de Uso na teoria de Marx. São Paulo: Pesquisa & Debate, 1998. HIRST, Paul et alii em O capital de Marx e o capitalismo de hoje. Vol. I. RJ: Zahar Editores, 1980. MARX, Karl. O capital: Crítica da economia política: Livro I: o processo de produção do capital. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013. ___________. Grundrisse: Manuscritos econômicos de 1857-1858: Esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2011. MIRANDA, Flávio. A colonização da produção pelo capital: uma síntese do argumento de Marx. Rio de Janeiro: IE/UERJ, 2009. TROTTA, Wellington. Mercadoria, valor e trabalho como relações necessárias em O Capital. Rio de Janeiro: Edições Siciliano, 1991. VÁSQUES, Adolfo Sánchez. A filosofia da Práxis. São Paulo: Paz e Terra, 1968. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 269 A NOÇÃO DE VALOR NO PENSAMENTO DE SARTRE: O DESEJO DE SER NO SEIO DO PARA-SI Helen Aline Santos Manhães UNIOESTE [email protected] RESUMO: O ser da realidade humana consiste numa presença a um ser que ela não é. Como presença, pressupõe separação, distância, negação – caso contrário, a distância se anularia e recairia na identidade dos termos presentes. Pretende-se, neste escrito, abordar o surgimento do Para-si de modo a explicitar a ruptura no ser pleno e sua fundamental implicação: o movimento perpétuo de uma ausência ideal que constitui o próprio sentido de ser do Para-si. Palavras-chave: Falta. Para-si. Projeto. Valor. A ―história do humano‖, o desenrolar da aventura do ser em busca de si mesmo é o que Sartre chama ―ato ontológico‖. No princípio era o ser, indeterminado e indiferente, massa maciça de positividade empastada de si mesma, ―ausente‖ a tudo, inclusive a si; de tanto que é si, não se sabe ser. O ser é o que é, eis tudo. Desliza no seio desse mar de plenitude uma fissura que é sua única possibilidade de escapar à total positividade, ao ser maciço. Apenas sendo e não sabendo senão ser, o que lhe resta como fuga é negar o que é, negar seu ser desde dentro, desde seu coração. Uma negação que fosse pura negação, no entanto, seria tão plena como o ser que apenas é, seria também indiferenciada. O ser que nega a si mesmo ser o que é, relaciona-se intimamente com aquilo que nega, de tal modo que mantém em seu horizonte o ser que nadifica para permanecer na existência. É este ser negado que fornece sentido e razão ao próprio ato nadificador. Tendo em vista que o ser busca extravasar a plena positividade e sua única alternativa de se desprender é saindo dela através de sua negação, o negado permanecerá co-extensivamente ao ser que se constitui a partir da negação de ser simesmo. Este movimento de saída de si para poder existir (constituir sentido, abrir mundo, inventar possibilidades) desdobra-se na estrutura do desejo, e fica claro o porquê. Toda fuga é fuga de algo para algo. Todo desejo é busca, falta, tendência a algo que se encontra ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 270 ausente. Estas duas estruturas complementam-se na explicação do ato pelo qual o Em-si se perde de seu ser e dá origem ao Para-si. Inicialmente fuga de sua plenitude de ser através da negação de seu ser, sempre o mantendo à vista como aquilo que permanece sendo o sentido de seu movimento originário, o ser negado é, ao mesmo tempo, seu alvo, o ―para onde‖ o olhar se dirige por ser apenas o que o olhar conhece. Arrancado bruscamente do passado como aquilo de que se foge, é lançado ao futuro, torna-se a ausência, o ser negado de si mesmo que permite que o movimento de descompressão de ser permaneça e não se recaia novamente no puro ser. O ser perdido em negação, sempre presente enquanto ausência, o si-mesmo tão familiar que liga o ser e o não ser através da negação, permanece sendo a saudade do ser. Esta saudade é a busca, a tentativa de recuperação daquilo que havia de pleno; mas não só. Se fosse simplesmente desejo de ser o que é, o movimento se extinguiria na reabsorção no ser, a nadificação fundamental da existência cessaria e tudo deixaria de existir, porque não haveria mais a testemunha do ser, não haveria não-ser; tudo apenas seria, de volta em plena positividade empastada de si. O desejo, a tendência original do ser que busca aquilo mesmo que nega em seu coração é expressão duma união impossível entre ser e saber que se é. O Para-si, fruto deste movimento ontológico, é o ser que se arranca de si mesmo para fugir à indiferença de ser e apenas ser, ser o que se é, mas que não pode se desvencilhar do ser do qual foge: este permanece na partida e na chegada, o que deve ser negado, mas também o que é perseguido, porque é só o que o Para-si conhece: o Em-si que lhe falta, seu ser desfigurado, perdido quando de seu nascimento. Esta é a paixão fundamental do homem: o desejo de ser seu ser perdido. Não lhe basta ser esta plenitude, ser este ideal positivo que ele vislumbra separado de si e que o motiva em seu próprio seio a ser movimento. O Para-si não quer perder a ciência de si que conquistou, não quer retornar ao puro ser. Ele quer se saber enquanto este ser, quer trazer para si tanto a plenitude de existência daquilo que é o que é, quanto o afastamento que lhe permita saber-se este ser. Negando o puro ser do qual proveio, não admitindo também ser puro nada, isto é, ser somente a negação de ser tão indiferenciada quanto o próprio ser que nega, o Para-si visa a comunhão destes dois modos de ser excludentes por princípio, visa ser a totalidade ideal Em-si-Para-si daquele ser que perdeu em seu surgimento mesmo. Pode-se entender a frase emblemática de Sartre, como fecho desconcertante de sua grande obra: ―O homem é uma paixão inútil.‖ (SARTRE, 2009, p. 750). O homem não é um fruto alheio do movimento descrito, ignorante de sua condição. O homem vive esta ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 271 estrutura transcendental, vive seu fracasso fundamental em cada uma de suas ações, podendo vislumbrar sua condição, refletidamente, através da angústia, experiência de fundo transcendental e sempre possível na vida humana. O valor, acima citado, é esta totalidade ideal que o Para-si tem em vistas e que lhe é, por princípio, inalcançável. Constitui-se como um faltado, um todo desejado, o ideal de ser que o Para-si seria se pudesse coincidir consigo mesmo – o que seria se ―absorvesse‖ seu faltante, aquilo que lhe falta para ser-todo: seu si-mesmo, o ser singular que o Para-si nadifica enquanto pessoa, aquilo que ele é ao modo de não sê-lo, sua maneira singular de negar o ser – o que lhe confere individualidade. ―A ausência de ser não aparece diretamente, mas através do ser que é ausente. Assim, toda aparição remete a um ser que não aparece, mas que enquanto totalidade que a consciência deve ser, condiciona a aparição atual.‖ (SOUZA, 2009, p. 84). Esta totalidade ideal visada pelo Para-si tem seu sentido próprio determinado pelo projeto singular que constitui a individualidade, a pessoa particular que é cada homem-nomundo. A realidade humana, se não possui a substancialidade do ser, se não pode ser definida segundo uma natureza fixa e imutável, deve, entretanto, poder ser explicada a partir de uma estrutura que lhe confira sua singularidade; caso contrário, sequer se poderia falar duma realidade-humana. Há algo que confere ao homem sua particularidade em relação aos entes em geral, algo que, aliás, confere até certa primazia ao homem: ―Como se explica então que, dentre todos os entes, o homem ocupe uma posição tão privilegiada? É que ele é o único ente para o qual algo como existir pode ter um sentido.‖ (BEAUFRET, 1976, p. 15). Se é negada ao homem a consistência do ser, é porque seu modo de existência é ultrapassagem de si mesmo rumo a algo que ele não é. ―O ser-no-mundo, longe de ter a existência inalterável da coisa, é essencialmente um poder-ser. Por isso, pertence à sua essência revelar-se a si mesmo no impulso ou na ultrapassagem do projeto.‖ (BEAUFRET, 1976, p. 21). Perpétuo lançamento de si para o futuro, desgarramento de si em direção a uma ausência, o homem se defini por um perpétuo fazer através do qual escolhe seu ser. A ação se confunde com a essência humana. Por sua própria estrutura, toda ação desdobra-se em projeto de ser, de alcançar algo que ainda não se é. ―Agir é modificar a figura do mundo, é dispor de meios com vistas a um fim, é produzir um complexo instrumental e organizado (...). Com efeito, convém observar, antes de tudo, que uma ação é por princípio intencional.‖ (SARTRE, 2009, p. 536). Ou seja, uma ação implica dupla nadificação: 1) a que se efetua quando posicionamos um estado ideal em relação ao qual captamos o estado ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 272 presente concreto enquanto faltante ou insuficiente, sendo que este estado ideal está presente enquanto uma ausência, e 2) a nadificação de meu estado concreto, que não é o valor, aquilo que viso. Os fins que o Para-si visa determinam o modo como ele recorta o mundo em busca de motivos para a ação. É o ser que lhe falta que o motiva em seu ser a constituir o sentido do mundo: sua instrumentalidade, seus empecilhos, suas comodidades. Essas características que se atribui ao mundo só fazem sentido como horizonte de um projeto singular e fundamental que é o próprio homem. Sendo constituído a partir da negação de si pela nadificação do ser, o homem mantém-se no ser enquanto busca perpétua do ser que ele nega a si. Este ser ausente, que fornece sentido ao fazer humano, é o Para-si enquanto projeto fundamental de ser. de regressão em regressão, alcançamos a relação original com sua facticidade e o mundo escolhido pelo Para-si. Mas essa relação original nada mais é do que o próprio ser-no-mundo do Para-si, na medida em que este ser-no-mundo é escolha; ou seja, alcançamos o tipo original de nadificação pelo qual o Para-si tem-de-ser seu próprio nada. A partir daqui, não se pode tentar qualquer interpretação (...). (SARTRE, 2009, p. 564) Ou seja, a partir da apreensão desta totalidade que orienta toda ação de um homem e o torna determinado homem, este e não aquele, não se pode explicar o porquê de o projeto ser assim e não de outro modo. Percebe-se, neste ponto da investigação, a estrutura fundamental da consciência que substitui, funcionalmente, a figura do Ego tal como afirmada pela tradição73. A individualidade da consciência, a pessoalidade própria a um homem provém de seu projeto fundamental de ser, que ele realiza existindo, sendo homem-no-mundo. O sentido da existência, isto é, a própria constituição do mundo; a projeção do conjunto de possibilidades que o homem é; a relação com o Outro com o qual partilho a condição de ser-lançado-ao-mundo. Em suma, todos os aspectos constitutivos da vida duma consciência estão ancorados neste projeto inicial que é a escolha que o Para-si faz do modo como se relaciona com o ser que ele nadifica e, num segundo momento, idealiza74 Faz-se referência aqui especialmente a Kant e Husserl, interlocutores privilegiados de Sartre na obra A transcendência do Ego, na qual expõe sua teoria acerca do ego transcendente que existe como objeto para a consciência e não como princípio de unidade e individuação. 74 ―Talvez esta seja a origem do idealismo sartriano, visto que essa totalidade (o valor) é que vai, em última instância, determinar todos os fenômenos particulares; até mesmo a relação do Para-si com o Em-si da facticidade.‖ (SOUZA, p. 84 - Nota de rodapé 59). 73 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 273 como alvo de seu desejo. E esta decisão fundamental do sentido particular do ser-nomundo expressa-se em toda ação, manifesta-se na vida empírica do sujeito. Encontramo-nos frente a arquiteturas simbólicas muito complexas e que estão, pelo menos, em três níveis. No desejo empírico, posso discernir uma simbolização de um desejo fundamental e concreto que é a pessoa e que representa a maneira como esta decidiu que o ser estará em questão em seu ser; e esse desejo fundamental, por sua vez, exprime concretamente e no mundo, na situação singular que envolve a pessoa, uma estrutura abstrata e significante que é o desejo de ser em geral e deve ser considerada como a realidade humana na pessoa, como aquilo que constitui sua comunhão com o Outro, como aquilo que permite afirmar que há uma verdade do homem e não somente individualidades incomparáveis. (SARTRE, 2009, p. 694) Enquanto constituinte do Para-si, o projeto é vivido, coincide com a própria existência consciente singular do homem, mas não é, primeiramente, visado pela reflexão75. Sendo, em última instância, o que determina a ação, se expressa nela pela dupla estrutura de motivos e móbeis. Estes, correlatos entre si enquanto meios para realizar a ação, distinguem-se em surgirem no lado objetivo ou subjetivo da vivência, respectivamente. Enquanto o motivo aparece à consciência como estando no mundo, como dado ou circunstância objetiva da situação, o móbil, por sua vez, é a captação deste mesmo motivo mas pela via subjetiva, isto é, ressalta o aspecto ―relativo‖ do motivo, que é sua referência ao ato que visa empreender. O móbil aparece como motivação íntima da consciência porque ela o capta como sendo seu; ele é a consciência não-tética (do) projeto que realiza ao significar mundo e empreender ações. Referências bibliográficas: BEAUFRET, Jean. Introdução às filosofias da existência: de Kierkegaard a Heidegger; tradução Salma Tannus Muchail. São Paulo: Duas Cidades, 1976. SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Tradução de Paulo Perdigão. Petrópolis: Vozes, 2009. Sartre desenvolve um método de acesso ao projeto chamado psicanálise existencial, obviamente de inspiração freudiana. Partindo da premissa de que toda ação é significante da decisão fundamental que é o homem, e tendo na comparação de condutas e ações o modo de elucidar um projeto específico, Sartre afirma, no entanto, a impossibilidade da clarificação total do projeto. 75 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 274 SOUZA, Luiz Henrique Alves de. O estatuto da reflexão em Sartre. 2009. Tese de doutorado. UFSCar. São Carlos. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 275 A FILOSOFIA E A EDUCAÇÃO NO CAMPO Hélio Clemente Fernandes CTESOP/SEED/UNIOESTE [email protected] RESUMO: A finalidade do presente texto é contribuir com o debate acerca da Filosofia relevância entre os estudantes do Ensino Médio e, especialmente, da sua importância na Educação no Campo. O retorno da disciplina de Filosofia nos bancos escolares da educação básica não foi um consenso entre os estudiosos. Concernente a estes embates, num primeiro momento temos a problematização da filosofia no que tange ao bacharelado e a licenciatura. Depois temos um pouco da história do ensino da Filosofia e, na sequência, a apreciação da Filosofia enquanto disciplina capaz de contribuir com a educação no campo. Palavras-chave: Filosofia. Bacharelado. Licenciatura. Campo. Educação. A Filosofia, o bacharelado e a licenciatura Inicialmente, é pertinente enfatizar que a visão da Filosofia enclausurada numa torre de marfim, encontra-se constantemente revivida no debate acadêmico. Por um lado, é difícil sustentar que a Filosofia (ao bastar-se a sim mesma) independa do âmbito da pedagogia. A pesquisa que não visa divulgação/transmissão carece de sentido. Nesta perspectiva, o bacharelado é tão importante quanto à licenciatura. Pode-se dizer que a socialização das produções filosóficas é a razão que justifica o trabalho daqueles que entregam a vida nessa nobre causa. Além disso: A introdução do ensino de Filosofia na escola básica deve ser entendida como uma oportunidade de investigar outras práticas escolares que permitam que o ensino de Filosofia possa se transformar em um modo de vida por meio do cuidado de si que deve consistir no conhecimento de si (OLIVEIRA, 2012, p. 1). Por sua vez, o argumento daqueles que defendem o bacharelado é para valorizar a Filosofia enquanto pertencente à academia, aos ―doutos‖. Nem todos estão prontos para filosofar e desmitificar os mecanismos que regem o mundo. Entende-se que a difusão da ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 276 filosofia nos setores populares (em específico os que vivem no campo) tem em si o perigo da superficialidade. Certamente o risco da banalização existe. Interpretações equivocadas são possíveis, mas isso não pode servir de argumentação para tolher o direito de todos os setores da sociedade de entrarem em contato com tudo aquilo que foi produzido pela tradição filosófica. Todos possuem direito a uma educação de qualidade. E a materialização deste ideário representa uma contradição na sociedade capitalista, pois: A escola, a educação formal – um dos tipos de educação que a sociedade utiliza para preparar os indivíduos para viverem nela mesma – surge durante o escravismo, numa sociedade de classes, e torna-se uma escola a serviço da classe detentora do poder. E, como tal, deixa de estar voltada para o ensino da vida, pela vida e para a vida; passa-se a ensinar um saber ―especializado‖, privilégio das classes dominantes. Aos demais, resta a educação informal voltada para a resignação, aceitação da sua condição de subserviência estabelecida, para a aceitação da sua condição de classe e para o trabalho. Esta realidade estende-se desde o surgimento da escola até a modernidade (ORSO, 2002, p. 92). A partir do fragmento exposto, defende-se um processo de ensino e aprendizagem onde a disciplina de Filosofia possa contribuir com a emancipação das classes verticalmente menos favorecidas. Uma Filosofia engajada que não se reduz a aplicações de técnicas, instrumentalização de professores e estudantes moldados de acordo com interesses préestabelecidos. Conforme Immanuel Kant, não se ensina filosofia (conteúdo) e sim o filosofar (pensar). Reduzir as aulas de Filosofia a técnicas de aprendizagem, a memorização de conteúdos, a regras de como ela precisa ser consumida, diminui o entendimento do trabalho docente realizado pelo professor de Filosofia enquanto um autômato que aplica a teoria na prática. A saber, a educação extrapola essa noção minimalista. Caso contrário, o ensino da Filosofia torna-se mais uma disciplina em que o estudante é obrigado a assimilar no desejo de receber um certificado de conclusão de Ensino Médio sem, contudo, conseguir perceber a relação do que conteúdo estudado com os seus embates do cotidiano. Numa concepção estreita, os resultados pedagógicos da Filosofia e de qualquer disciplina são pífios. A educação transcende as divisões disciplinares, o ensino engavetado, enjaulado. Quiçá pelo fato de na universidade a Filosofia encontrar dificuldades para impor-se e livrar-se da pecha de curso de segundo plano, ela apostou no bacharelado, na pesquisa, no mestrado, no doutorado para livrar-se deste estigma. Assim sendo, o entendimento de que bastava formar o estudante com apropriação de toda tradição filosófica para ter-se o exímio professor de Filosofia relegou as questões pedagógicas a um apêndice, sem muita ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 277 importância. Na escola básica aos problemas para a cristalização desta disciplina se acrescentam os baixos salários, as salas de aula superlotadas, a desvalorização dos trabalhadores da educação dedicados à escola básica, a falta de apoio pedagógico, a falta de hora atividade para que sejam preparadas aulas atrativas para o adolescente em desenvolvimento físico, psíquico e cognitivo. Por conta de uma carga horária extenuante, o licenciado em Filosofia, terá que atender dezesseis turmas de em média trinta estudantes. Nem sempre consegue concentrar suas aulas em uma só escola e, por isso, passa a ter que conciliar seu planejamento de aulas com mais de uma escola. Em contato com mais de quatrocentos e oitenta alunos encontra no livro didático um aliado. Com trinta e duas horas em sala e com oito horas de atividade, o professor corre o risco de tornar-se um aplicador de receitas pré-estabelecidas por um livro pensado, elaborado por professores da universidade. Tido como salvação o livro didático pode ser a camisa de força daquele que ao exercer o magistério nestas condições debilitantes deixa-se vencer por uma rotina perversa. A defesa destes escritos é a de que a formação do professor licenciado é complementar a formação do bacharel em Filosofia. A licença para lecionar é tão importante quanto à capacidade de buscar constantemente o saber por meio da pesquisa. Além disso, o profissional da Filosofia transita pela comunidade, possui peculiaridades genéticas e psicológicas singulares, tem projetos pessoais e coletivos, sonha e almeja realizar ideais, vive segundo regras, enfrenta obstáculos, é pai, filho, esposo. É uma pessoa que influencia ao mesmo tempo em que se deixa influenciar pelo meio onde se encontra, logo, na sala de aula muito mais que saberes filosóficos historicamente construídos a serem transmitidos ocorre o exercício incessante do filosofar. Explicita-se, por conseguinte, que o ensino da Filosofia não pode desvencilhar-se da práxis filosófica, da ação do filosofar. Caso contrário, a Filosofia corre o risco de ser apenas mais uma disciplina que preenche o currículo e que o estudante precisa dar conta de assimilar. Com tal reducionismo, a disciplina de Filosofia afasta-se da dialética inerente ao exercício do pensamento, da criatividade, da reflexão. Isto é, ―a realidade muda‖ e o filosofar é um ―devir constante‖ (Heráclito). O ensino da Filosofia no Brasil ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 278 No Brasil, antes das determinações da LDB 9394/96, com algumas exceções, os cursos de Filosofia (e outras áreas de docência) formavam professores com licenciatura plena, com proficiência para atuarem nas escolas de ensino básico. Sem olvidar as variações ocorridas durante o século XX, recorda-se do esquema três anos para o bacharelado e mais um ano para a licenciatura. No primeiro caso, se buscava formar o pesquisador, o bacharel, os que pretendem avançar para o mestrado, doutorado. No segundo plano, se encontravam os estudantes com a intenção de lecionar e, por isso, no quarto ano realizavam as disciplinas de Prática de Estágio, de didática, para apropriarem-se das condições pedagógicas de repasse do conteúdo aos estudantes da escola básica. A partir de 1996, mudanças começam a serem introduzidas e este modelo de formação nos cursos de graduação de Filosofia é paulatinamente extinto. Com o apoio do Ministério da Educação, no ano de 2000 é elaborada a Proposta de Diretrizes para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica, em Cursos de Nível Superior. Destaca-se, a partir desta proposição, as Resoluções do Conselho Nacional de Educação-CNE/CP 01 e 02/2002 que condicionam os cursos de licenciatura a refletir acerca da sua obrigação de formar profissionais vinculados tanto a pesquisa quanto as questões relativas ao ensino. De certo modo, há um rompimento com as noções e práticas cristalizadas ao longo do tempo. A relação entre teoria e prática, materializadas por meio do estágio supervisionado e a prática de ensino são uma exigência nos cursos de licenciatura. Obviamente, numa sociedade meritocrática, elitista, as disputas no campo acadêmico refletem a disputa pelo poder. Como afirma Rosalvo Schutz: A função da educação é, assim, reduzida a um instrumento determinado no interior da luta de todos contra todos por uma melhor posição dentro das relações de produção, uma vez que, fundamentalmente, por esta posição, se define a parcela de cada indivíduo na riqueza socialmente produzida. Este é o pressuposto, que não apenas marca de forma progressiva o sistema de educação, reduzindo-o a mero instrumento na luta por posições no interior do sistema produtor de mercadorias, mas também é confirmado e aprofundado através deste (2012, p. 63). Talvez, por isso, as mudanças oriundas destes embates fazem-se sentir vagarosamente. A saber, é notório o fato de que ilibados doutores da área filosófica posicionaram-se contrários ao ensino da Filosofia na escola básica no entendimento que isso baratearia o conjunto dos saberes da tradição filosófica. Ironicamente, alguns iluminados do conhecimento filosófico, trancafiados em suas torres de marfim, por vezes, não perceberam o óbvio: não tem sentido a pesquisa se não houver o interesse pela sua ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 279 divulgação e preocupação para que haja o correto entendimento advindo pelo processo pedagógico do ensino e aprendizagem. O saber filosófico precisa ir onde os sujeitos históricos estão. O conhecimento é um bem inalienável e necessita ser socializado entre todos os seres humanos. Quer vivam na cidade, quer vivam no campo. A Filosofia e a educação no campo A Filosofia nasceu de um processo de superação do mito, numa procura de explicações metódicas, rigorosas a respeito da vida na Grécia Antiga. O homem não consegue viver no caos. Ele possui necessidade de explicar o que acontece ao seu entorno. Assim, num primeiro momento utilizou-se da mitologia para situar-se no mundo para posteriormente conseguir explicações no âmbito filosófico. Feita estas considerações, e tendo presente toda a problemática exposta anteriormente, pode-se afirmar que a Filosofia tem muito a contribuir com a educação no campo. Ela favorece o pensamento da ordem social construída pelos seres humanos que no (e do) campo buscam compreender o que ocorre no mundo. Deste modo, no campo ou na cidade existe o homem que nas palavras do filósofo Descartes ―pensa e se pensa, existe‖. E, no ato de exercitar o pensamento, o ser racional envolve-se nos problemas filosóficos (cosmológico, teológico e antropológico). Em todo caso: (...) O exercício filosófico ocorre numa determinada realidade social e política. Seu projeto pedagógico vela pelo bem público. Uma de suas finalidades é a superação do senso comum (imediato, acrítico) pelo saber científico (sistemático, crítico, reflexivo). Trata-se da passagem da aparência para a essência, da obscuridade para a luminosidade (FERNANDES, 2012, p. 2). A Filosofia trabalha com o conceito. O filósofo (no sentido lato) é todo aquele que se esforça para compreender a realidade na qual se encontra inserido. Filósofo, no sentido abrangente da palavra é todo ser racional que faz perguntas, que deseja conhecer, amante do saber. Por isso, o homem e a mulher do campo que se questionam constantemente são filósofos. E por falar em questionamento, importa enfatizar as indagações propostas pelos Cadernos Pedagógicos preparados para fundamentar o Seminário de Educação no Campo ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 280 realizado na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE) nos dias 11,12 e 13 de julho de 2013. A teoria educacional tem como função formular uma concepção de educação a partir de um projeto histórico e discutir relações entre educação e sociedade. As perguntas que dizem respeito à teoria educacional são: Que tipo de homem se quer formar? Quais os fins da educação? Educar com que concepção de sociedade? A Filosofia é a indagação constante. Perguntas abrem novos horizontes, novas possibilidades. Respostas, na medida do necessário, são importantes para nos fazerem caminhar com segurança. A educação é condicionada pela sociedade. Para cada conceito de homem corresponde um modo de educação e de luta para a construção da sociedade. Todavia, não se trata de qualquer Filosofia e, sim, daquela que se liga a criticidade e compromisso de uma teoria do agir comunicativo que: (...) é construída a partir do horizonte da compreensão do mundo e da realidade por parte dos educandos. Na comunicação solidária e intersubjetiva, o sujeito aparece em sua dignidade própria como alguém que não pode ser reduzido a sua dimensão instrumental. A relação professor-aluno depende do reconhecimento recíproco entre sujeitos e se encaminha numa dimensão libertadora (TESSER; HORN; JUNKES, 2012, p. 117). Neste sentido, Marcos Gehrke corrobora com a reflexão compromissada com a educação no campo. Seu empenho é pela edificação da identidade da escola no campo. De acordo com seu entendimento isso não é uma dádiva, por isso depende do engajamento, da mobilização dos trabalhadores que defendem a vida no campo. Logo, a escola do campo vincula-se as lutas dos movimentos sociais (Movimento Sem Terra, Via Campesina, entre outros). A manutenção da memória favorece a renovação da luta. A história da origem, do desenvolvimento, dos embates conduz a vivência da organicidade e favorece a educação humanizada. O filosofar engajado fortalece a práxis daqueles que se dedicam ao ensino no campo. Nas escolas do campo enfatiza-se a construção do conhecimento comprometido, fundamentado teoricamente em função da práxis social transformadora. A mística, os rituais, os debates, o diálogo ocorre na direção de fortalecer a consciência de classe. O campo possui suas especificidades em relação à cidade e, deste modo, a educação no ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 281 campo é peculiar e demanda uma reflexão filosófica que contribua com o fortalecimento de sua identidade. Destaca-se, entre os trabalhadores da educação vinculados ao campo, a importância da base teórica pautado nas categorias de contradição e totalidade. Por isso, o engajamento social e político, a filosofia da práxis, serem partes essenciais neste processo de luta por uma escola no campo com qualidade: O Brasil já passou por vários movimentos pedagógicos em torno da escola e da educação no campo democrático, e todos surgem vinculados a um movimento político maior. Compreendemos que a Escola do Campo só acontece e se sustenta no projeto político dos movimentos sociais, caso contrário será apenas uma experiência alternativa ou ficará condicionada à política de governo (GEHRKE, 2009, p. 198). É complexa a sociedade capitalista, os interesses são muitos e não há espaço para o amadorismo, para a consciência ingênua. A cobrança dos docentes empenhados na educação no campo é constante. O ideário filosófico é construir a educação no campo a partir dela mesma. Para tanto, é indispensável uma formação filosófica, humana capaz de possibilitar leituras e escritas do mundo campestre inserido numa lógica social-político e econômica maior. ―A leitura da palavra é precedida pela leitura do mundo‖ (Paulo Freire) e os pressupostos da Filosofia são basilares na solidificação de uma educação no campo consistente, sistematizada, profunda e radicalmente voltada aos interesses dos habitantes do campo. Considerações finais Nestes escritos buscou-se apresentar uma reflexão em defesa dos estudos filosóficos de licenciatura, num primeiro momento. Na sequência, se apontou alguns elementos históricos do ensino da Filosofia na história do Brasil. E, por fim, destacou-se a relevância da Filosofia, quando voltada aos interesses da educação no campo em favor dos que trabalham e defendem a sobrevivência a partir do campo. Por sua vez, sabe-se das dificuldades enfrentadas pela educação no campo na atualidade. O êxodo rural intensificado a partir da década de 70 fez as favelas nos grandes centros aumentarem e na proporção inversa os moradores do campo diminuíram. Com a falta de incentivos os pequenos produtores diante da falta de incentivo do Estado ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 282 Capitalista sucumbem diante da concorrência com os grandes proprietários de terra. Com o esvaziamento do campo em detrimento do inchaço da cidade, a defesa da educação no campo fica ainda mais complexa. A reflexão filosófica, a educação comprometida em formar o ser humano na sua totalidade é aquela que respeita as especificidades de cada educando. Numa educação assim: (...) a relação entre professor e aluno é uma relação ativa, de vinculações recíprocas, e que, portanto, todo professor é sempre aluno e todo aluno, professor (GRAMNSCI, 2004, p. 399). Ao compreendermos o ato de filosofar enquanto um processo contínuo tal qual a vida. Ao entendermos a complexidade da sociedade capitalista, então, percebemos a atualidade da afirmação de que ―o mundo precisa de filosofia‖. E, conforme o que fora supracitado, é preciso uma reflexão filosófica que vá de encontro às especificidades dos educandos do campo. Deste modo, entre outras coisas, explicita-se que não existe ‗a‘ filosofia e, sim, ‗as‘ filosofias. Que o saber filosófico contribua com uma educação no campo engajada e em favor dos seres racionais que defendem a vida a partir do trabalho na terra, especialmente, daqueles que dedicam-se a agricultura familiar. Referências Bibliográficas: DESCARTES, R. Meditações metafísicas. São Paulo: Martins fontes, 2000. GEHRKE, Marcos. Formação de infâncias ledoras-escrevedoras: desafios da Escola do Campo. Santa Maria, RS: Revista Educação, v. 34, n. 1, jan./ab. Disponível em: < http://www.ufsm.br/revistaeducacao > Acesso em 24/09/2013. FERNANDES, Hélio Clemente. O Ceebja e a Filosofia. Cascavel, PR: Jornal Hoje, 25/03/2012. 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São Paulo: Ícone, 2002. TESSER, Gelson João; HORN, Geraldo Balduíno; JUNKES, Delcio. A Filosofia e seu ensino a partir de uma perspectiva da teoria crítica. In: Educar em Revista, Curitiva, Brasil, n. 46, out./dez. 2012. Editora UFPR. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 284 ELUCIDAÇÃO DA CRÍTICA HOBBESIANA AO CONCEITO DE MOVIMENTO DE ARISTÓTELES Hélio da Siqueira Unioeste CAPES [email protected] Orientador: Jadir Antunes Resumo: O objetivo deste trabalho é elucidar a crítica hobbesiana ao conceito aristotélico de movimento. Para isso, faremos uma breve exposição da teoria do movimento de Aristóteles. É o livro III da física de Aristóteles que traz uma definição rigorosa do movimento. A física aristótelica é, do princípio ao fim, uma teoria do movimento nesse sentido. A partir dessa definição mostraremos como Hobbes transporta a teoria do movimento para as teorias da moral e política, ele entende que não apenas os corpos em geral, mas também os homens se movem inercialmente, de modo que não apenas seus movimentos físicos, mas também suas emoções se movem sem fim e sem repouso. Por fim, mostraremos em que medida a teoria do movimento utilizada para explicar o comportamento dos corpos em geral é utilizada por Hobbes para explicar o poder cognitivo do homem, bem como as suas paixões e o seu comportamento. Palavras-Chave: Movimento, zoon politikon, telos A teoria do movimento para Aristóteles Segundo Aristóteles, o movimento natural é teleológico, causado por uma tendência natural do corpo a obter sua completude, a atualizar sua essência; sendo assim, ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 285 ele é a ―atualização do que é em potência, a atualização do que é potencialmente, enquanto é potencialmente, é movimento‖ (ARISTÓTELES, 1995, 179). O movimento tem um telos e termina quando este passa da potência ao ato. Tudo o que se move naturalmete o faz para a realização de sua essência natural, para seu acabamento. Desta forma ele é teleológico, pois é causado por uma atração na direção de um fim, um propósito, um objetivo, que os corpos têm tendência natural a realizar. Segundo Yara Frateschi a teoria da tendência natural explica tanto o movimento de uma pedra que cai como a natureza política do homem. O movimento natural do homem que se inicia na união do macho com a fêmea, passando pela família, pela aldeia e terminando na cidade, não é senão o movimento do homem tendendo naturalmente para o seu bem, que reside na cidade. Pois é somente nela que os homens realizam plenamente a sua natureza, atualizando o que são potenciamente. De acordo com o conceito aristotélico de movimento, no que se refere ao repouso nenhuma causa externa é necessária para o seu término, que ocorre naturalmente quando se completa a atualização daquilo que se move. Um objeto repousa por si mesmo quando alçança o seu lugar próprio, pois não há outra razão para se mover senão alcançá-lo. Quando a causa final é iliminada por meio da realização do fim, é iliminada uma das condições necessárias do movimento natural e, portanto, torna-se interiramente natural que o movimento cesse. Sendo assim, a principal causa do movimento é a causa final. De acordo com Ricardo Ernesto Rose, ao final do primeiro capítulo de a Política, Aristóteles deixa claro o quanto a vida em sociedade é a situação ideal para o homem. Na realidade, o estado natural da espécie humana é a associação. Fora da cidade, o homem deixa de ser humano para se tornar uma fera (ROSE, 2011, p. 2). Ainda segundo Rose, o homem assim que se associa aos seus semelhantes para viver em sociedade, passa a pavimentar o seu caminho para a virtude; o mais nobre objetivo da vida do homem. Além disso, em todo este processo civilizacional por que passa o homem aristotélico, este adquirirá também uma formação cultural e política cada vez mais elaborada, a paideia, no sentido grego. Na analise do homem feita por Aristóteles, esse, é necessariamente predestinado a viver em sociedade, sendo este seu estado natural (ROSE, 2011, p. 5). A sociedade que se formou através desse movimento natural e da junção de várias aldeias constitui a cidade, que tem a faculdade de se bastar a si própria, sendo organizada não somente para conservar a existência, mas também para procurar o bem-estar. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 286 A cidade, ou sociedade politica, é mesmo o primeiro objeto que a natureza se propôs. O todo é, necessariamente, anterior à parte. As sociedades domésticas e os indivíduos não são mais do que as partes integrantes da cidade, totalmente subordinadas ao corpo na sua totalidade, perfeitamente distintas pelas suas capacidades e pelas suas funções e completamente inúteis se se separam, semelhantes ás mãos e aos pés, que, uma vez separados do corpo, só conservam o nome e a aparência, sem qualquer realidade, como acontece com uma mão de pedra. O mesmo se passa com os membros da cidade; nenhum se pode bastar a si próprio. Quem quer que seja que não tenha necessidade dos outros homens ou que não seja capaz de viver em comunidade com eles ou é um deus ou um animal. Desta forma, a própria inclinação natural conduz através de um movimento natural todos os homens a este género de sociedade. Crítica de Hobbes a teoria aristotélica de movimento Transportando a teoria do movimento para as teorias da moral e política, Hobbes entende que não apenas os corpos em geral, mas também os homens se movem inercialmente, de modo que não apenas seus movimentos físicos, mas também suas emoções se movem sem fim e sem repouso. No mundo inercial todas as coisas tendem à perscistência, sendo o homem uma criatura natural este não constitui uma execeção. A diferença entre Hobbes e Aristóteles no que se refere ao conceito de movimento é iluminada pela substituição de uma concepção teleológica de natureza (Aristóteles) por outra que é mecânica (Hobbes). Pois como já foi visto anteriormente, para Aristóteles o movimento natural é teleológico, causado pela tendência natural do corpo a obter a sua completude, a atualizar a sua essência (FRATESCHI, 2008, P. 62). Para Hobbes movimento é apenas mudança de lugar, indiferente a qualquer processo teleológico: os homens não se movem na direção da atualização do que são potencialmente, mas na direção dos benefícios almejados, exclusivamente por efeito de causas efientes. Para ele o movimento não é a atualização do que é em potência como afirma Aristóteles, mas pura e simplesmente mudança de lugar, ou seja, o estado de movimento de um corpo só muda pela ação de outro corpo. Dado que, todo corpo, uma vez em movimento tende a mover-se eternamente, salvo se algo ou alguma força o faça parar, assim eles tendem, necessariamente, uma vez em movimento, manter-se em tal condição cinética. É aparentemente, em torno dessa ideia ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 287 que se fundamenta todas as ações humana (VASCONCELOS 2011, p. 263). Ao contrário de Aristóteles, para Hobbes o movimento é explicado apenas e tão somente pela causa eficiente, não restando na natureza hobbesiana nenhum lugar para a causa final. Para ele, um corpo que está em movimento só para se um outro corpo o fizer parar. Se o movimento não termina com a atualização do que é em potência, mas sim com a ação de algo externo, é porque a carateristica básica do movimento é a perscistência a continuação. Desta forma, Hobbes adere definitivamente ao novo modelo cosmológico inercial que substitui o modelo teleólogico tradicional, de origem aristotélica. A aplicação da teoria mecânica do movimento ao homem resulta na constatação de que ele tende a persistir, isto é, a procurar os meios que lhe permita continuar vivo, continuar o movimento. As circunstâncias em que se encontra o homem conjuga-se com sua tendência ou inclinação natural à autopreservação; daí resultam suas paixões, enquanto reações mecânicas a tais circunstâncias, reações de aproximação ou afastamento, conforme os objetos externos afetem favorável ou desfavoravelmente o movimento vital. É essa concepção da natureza humana, articulada em torno de uma formulação mecanicista de tendência à autopreservação, que constitui a base da explicação hobbesiana do processo de formação das afeições, escolhas e ações humanas. A tendência do homem é procurar os meios para fazer com que o seu movimento, isto é, a sua vida, se perpetue (FRATESCHI, 2008, p. 72). Tendo Hobbes alterado radicalmente a filosofia natural de Aristóteles, altera em igual medida, as concepções de desejo felicidade e bem. Enquanto para Aristóteles o desejo tende à sua aniquilação e, portanto, a um fim que é o bem, para Hobbes o desejo transita continuamente de um objeto a outro. Assim que se atinge o fim proposto, este se torna meio para outro fim. Dessa filosofia hobbesiana esta excluída, portanto, a existência de um fim último, ou dito de outra forma, o sumo bem. Cedo ou tarde fins se tornam meios para uma outra empreitada. A felicidade consiste, então, na possilbilidade de continuidade desse movimento na direção dos objetos do desejo. Para Hobbes, enquanto o homem viver possuirá desejos, e será feliz uma vez que possua os meios para realizá-los. O homem nunca deixa de desejar, isto é, o homem sempre almeja algo que não possui no presente. Com isso, ele recusa a existência de um fim que seja a própria atividade. Uma vez extraída da natureza humana essa instabilidade e essa inquietude, que se traduzem na busca incessante de fins que logo se transformam em meios para outros fins, o que Hobbes faz é negar, em última instância, a possibilidade de sua efetivação, por ser contrária à natureza humana. É importante ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 288 entendermos a causa dessa inquitude do homem hobbesiano e saber porque ele deseja algo que não tem. O que podemos dizer é que tem uma explicação mecânica para essa instabilidade. Hobbes descarta a possibilidade de que o homem viva em estado de indiferença quanto aos objetos externos, ou de que possa atingir a perpétua tranquilidade de espírito. Porque a vida é movimento, porque estar vivo é estar em movimento, enquanto vivermos estaremos reagindo à ação dos objetos externos: pois não existe uma perpétua tranquilidade de espirito enquanto vivemos, porque a própria vida não passa de movimento, e jamais pode deixar de haver desejo, ou medo, tal como não pode deixar de haver sensação. Não existe o estado absoluto de indiferença ou de tranquilidade porque de acordo com os Elementos da Lei, 2010, p. 29 ―todas as concepções que temos imediatemente pela sensação ou são de prazer, ou de dor, ou de apetite, ou de medo‖. Há uma explicação mecânica para isso, os corpos sofrem a ação de outros corpos, e essa ação, que é movimento, gera movimento. Portanto, enquanto houver sensação, haverá desejo. Se não há reação, a um determinado objeto, é porque estamos sob a efeito da ação de um corpo fisíco mais potente ou porque estamos mortos. O homem é um ser racional e não procura apenas o bem presente, mas também é capaz de projetar o bem futuro, ele deseja ter poder não apenas para satisfazer o desejo de agora, mas também para continuar em movimento e garantir a satisfação de desejos futuros. A expectativa de um bem ou de um prazer futuro envolve a concepção do nosso próprio poder para alcançá-lo. Diante da insegurança gerada pela possibilidade constante de que alguém venha a impedir a satisfação de seus desejos, o homem busca sempre aumentar o seu poder, isto é, munir-se cada vez mais de novos meios para realizar seus fins (HOBBES, 2008, p. 75). A felicidade não consiste na posse de um bem soberano, mas na persistência segura da vida enquanto movimento; ser feliz não é ter prosperado, mas prosperar: o sucesso contínuo na obtenção daquelas coisas que de tempos em tempos os homens desejam, quer dizer, o prosperar constante, é aquilo a que os homens chamam felicidade. A vida é movimento, e todo o movimento tende a perscistir. A instituição do poder absoluto é a única solução para a guerra, por ser ao mesmo tempo restrição e reordenação do movimento humano, restrições e reordenações das paixões humanas, as quais permitem a continuidade do movimento com mais seguraça e permanência. O que o homem deseja primeiramente é a obtenção daquilo que julga benéfico para ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 289 si mesmo. Por natureza, não tende necessariamente a se reunir com os outros, mas tão somente a procurar o que julga ser benéfico. A aplicação da teoria mecânica do movimento na investigação do comportamento humano resulta no estabelecimento daquilo que é vantajoso para o homem e na negação do princípio aristotélico de zoon politikon. Se a sociedade política chegou a se constituir foi porque cada membro reconheceu os meios mais eficazes para obtenção de benefícios permanentes e isso em virtude das circunstâncias externas particulares vividas por eles no estado de natureza. Assim, a sociedade não é um produto natural da atividade humana, mas um meio artificial para a obetenção do que de fato é natural no homem, ou seja, o desejo de preservar sua existênia. Por fim, Hobbes não concorda com Aristóteles de que sendo o fim da cidade o sumo bem do homem, a cidade é natural, já que o homem tende naturalmente para o seu bem. Em primeiro lugar a finalidade da cidade não é o sumo bem, por que não a há nada nesse mundo que seja um sumo bem, todo o bem é sempre meio para que possamos atingir um outro bem mais distante. Em segundo lugar, os homens se movem continuamente na direção daquilo que consideram ser um bem para si mesmos, e não para atualização do que eles são potencialmente. A cidade não é, portanto, um fim em si mesma, mas o meio mais eficaz para que possamos garantir a nossa segurança e o nosso conforto. (FRATESCHI, 2008, p. 84). Referência Bibliográfica: ARISTÓTELES, Física, Editorial Gredos, S.A, Madri, 1995 ______________, A Política. Martins Fontes, São Paulo, 2006 HOBBES, Thomas, Leviatã. Martins Fontes, São Paulo, 2008 ______________Os elementos da lei natural e política, Martins Fontes, São Paulo 2010 FRATESCHI, Y. A. “A física da política – Hobbes contra Aristóteles”. Editora da UNICAMP, São Paulo, 2003. LUZ, Vasconcelos, Gerson. Força vital e Movimento animais: Fundamentação das ações humanas na Filosofia de Hobbes. Disponível em: http://periodicos.ufpb.br. Acessado em: 01/07/2013 ROSE, Ernesto, Ricardo. O modelo político de Aristóteles e o de Hobbes. Disponível em: http://www.consciencia.org. Acessado em: 01/07/2013 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 290 QUESTÕES CÉTICAS DO PIRRONISMO: DE PIRRO A ENESIDEMO Henrique Zanelato UNIOESTE [email protected] Gilmar Henrique da Conceição RESUMO: O presente trabalho é fruto do desenvolvimento de meu projeto de iniciação científica, que é centrado no estudo do ceticismo grego. Meus estudos visam estudar como o ceticismo se estruturou a partir de Pirro, seu fundador, até Enesidemo, que teria organizado os argumentos de forma mais sistemática que seus predecessores. Portanto, estudo aqui a centralidade que tem os Tropos para esta estruturação do ceticismo. Para isso, pretendo expor quais são os chamados Tropos, e de que forma eles foram utilizados para refutar os argumentos dogmáticos acerca do conhecimento da verdade. Para tal, me basearei nas duas principais obras para o estudo do ceticismo antigo: Hipotiposes Pirrônicas, de Sexto Empírico, As vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, precisamente o capítulo A vida de Pirro, de Diógenes Laércio. Palavras-chave: Ceticismo. Pirronismo. Epoché. Tropos. Enesidemo. O ceticismo grego é geralmente dividido em quatro períodos: o antigo ceticismo, a nova academia, ceticismo dialético, e ceticismo empírico76. Depois de Pirro e de seu discípulo, Tímon, é Enesidemo quem constrói, ou, pelo menos, organiza boa parte do que se conhece do ceticismo. É basicamente sobre esse ―avanço‖ que tentaremos discorrer aqui: a enumeração dos dez tropos e a busca de sua elucidação. É concedido a Pirro o título de pai, ou fundador do ceticismo. Nascido em Élis, Pirro teria exercido a pintura quando jovem, e, depois de algumas experiências, aplica-se ―ao caminho mais nobre da filosofia77―. Discípulo de Demócrito, Pirro foi um dos seguidores de Alexandre em sua grande expedição que radicalizou a visão de mundo entre os antigos no período helenista. Nesta viagem, ao ter contato com os magos persas e com os gimnosofistas, ele teria incorporado ao seu modo de vida a epoché, ou suspensão do juízo, para que fosse possível o alcance da tranquilidade do espírito (ataraxia), noção comum 76 77 BROCHARD, 2009. LAÊRTIOS, 2008, p. 267. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 291 entre as demais correntes helênicas – estoicismo, epicurismo. Notando alguns aspectos da filosofia e da própria vida dos homens comuns, encontra discórdia entre as opiniões de todos, sentindo-se inseguro quanto a tomar posição a favor ou contra qualquer uma delas. Aplicando a suspensão do juízo, Pirro evitaria afirmar qualquer coisa dogmaticamente, chegando até a ataraxia, por não preocupar-se com as ―querelas dos dogmáticos‖. Ele, então, passa a agir, na vida cotidiana, de forma a seguir os fenômenos, limitando-se a dizer somente como as coisas lhe aparecem. Como parece sustentar Brochard, os contemporâneos de Pirro parecem ter apenas imitado seu modo de vida. Como admiradores, eles teriam tentado atingir a ataraxia, assim como Pirro teria supostamente alcançado. Entre eles, destaca-se a figura de Tímon de Fliunte: Tímon nasceu em Fliunte, por volta de 325 a.C., e morreu em Atenas, por volta de 235. Exerceu inicialmente o ofício de dançarino, depois renunciou a ele e foi para Mégara, onde ouviu Stílpon. Retornou em seguida para sua pátria, onde se casou; depois foi encontrar Pirro em Élis; nessa época, Tímon já era célebre. A pobreza o obrigou a partir; ele seguiu para a Calcedônia, onde enriqueceu ensinando e ainda aumentou sua reputação. Enfim, estabeleceu-se em Atenas e, salvo uma curta temporada em Tebas, nela permaneceu até a sua morte78. Apesar de várias obras atribuídas a ele e algumas especulações sobre o que teria sido tratado em algumas obras perdidas, o ceticismo em Tímon parece ter sido, ―como em Pirro, mais uma reação contra as pretensões da antiga filosofia, uma renúncia a toda filosofia sábia e ao aparato dialético do qual ela se cerca. Como seu mestre, é a prática, a maneira de viver que ele tinha sobretudo em vista‖79. Desse modo, o ceticismo de antigo, ainda não tão exigido pelo debate, não ultrapassa os limites da ética teleológica antiga, ficando simplesmente preocupado com a coerência entre a doutrina e a vida prática para alcançar a felicidade. Mas, conforme o desenvolvimento das críticas ao ceticismo faz-se necessária uma espécie de elaboração, requerido pelo aprofundamento dos debates filosóficos com os dogmáticos e com os acadêmicos. Nessa perspectiva, metodologicamente não levaremos em conta aqui, o ceticismo acadêmico, restringindo-nos ao estudo apenas do chamado pirronismo. 78 79 BROCHARD, Idem, p. 92. BROCHARD, Idem, p. 102. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 292 Descartando a discussão acerca de uma possível lacuna do pirronismo encontrada entre Tímon, discípulo de Pirro, e o chamado ceticismo dialético de Enesidemo, vamos expor como este desenvolveu os seus tropos, ou tópicos, mostrados por Sexto Empírico e por Diógenes Laércio. A respeito de Enesidemo, pouco se sabe sobre sua vida. Enesidemo nasceu em Cnossos, Creta, ou talvez na Egeia; ensinou em Alexandria, não se sabe em que época. Num período de duzentos e dez anos (80 a.C. a 130 d.C.) não se pode designar-lhe um lugar com certeza. Alguns historiadores dizem que ele viveu por volta de 130 d.C.; outros, no começo da era cristã; outros, finalmente, veem nele um contemporâneo de Cícero80. Comumente se diz81 que Enesidemo foi o primeiro a organizar os argumentos céticos de forma ―sistemática‖, ao enumerar os dez tropos, mesmo que talvez eles já fossem conhecidos dos céticos anteriores. Temos duas fontes principais acerca destes argumentos: uma em A vida de Pirro, das Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, de Diógenes Laércio; e a outra é em Sexto Empírico, em suas Hipotiposes Pirrônicas. Apesar de Sexto expor uma análise mais exaustiva acerca de cada tropo, as duas obras são representadas quase nos mesmos termos, sem que existam contradições entre uma e outra. Apenas uma coisa difere da exposição de um para outro: ordem de alguns dos tropos. Mas isso será destacado no momento adequado. Sexto nos diz que os tropos são formulados para mostrar ser possível a refutação de um argumento por outro contrário (isosthéneia), alcançando a suspensão do juízo (epoché), e, consequentemente, a tranquilidade (ataraxia). Passemos então para a compreensão deles, seguindo a ordem de Sexto Empírico. O primeiro tropo diz respeito às diferenças entre os animais: devido às diferenças quanto às origens e quanto às estruturas dos órgãos dos sentidos entre os diversos animais, é forçoso admitir que as percepções dos objetos não sejam as mesmas de um para outro. Os alimentos que fortalecem alguns são nocivos a outros, a visão de alguns é mais aguçada enquanto outros possuem um olfato melhor desenvolvido. Desta forma, o mesmo objeto causa impressões diferentes de um animal para outro, e os sentidos do homem não podem ser considerados como critério para um juízo correto, visto que alguns animais enxergam, ou ouvem melhor. O segundo é em relação às diferenças entre os homens: afunilando a questão, mesmo que concedêssemos aos homens uma superioridade sobre os animais, mesmo assim 80 81 BROCHARD, Idem, p. 249. LAÊRTIOS, 2008, p. 272. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 293 não poderíamos chegar a uma conclusão satisfatória, visto que um objeto causaria diferentes impressões mesmo aos seres humanos. E isso não só em relação ao corpo (sentidos) por alguns, como diz Diógenes Laércio, sentirem frio ao sol e se esquentarem na sombra, mas também na alma, quanto as diferentes disposições, onde ―um busca a medicina, outro, a agricultura e um terceiro, o comércio‖. O terceiro é sobre a diversidade dos sentidos: ora, mesmo que seja admitido a algum homem julgar sobre um objeto, não há como saber quais qualidades ele tenha realmente, pois o objeto se lhe apresenta com diversas qualidades aos seus diferentes sentidos. O mel, por exemplo, ―produz a impressão de ser pálido para os olhos, doce para o paladar e aromático para o olfato‖. E da mesma forma para um único sentido, por apresentar diferentes figuras quando vista por perspectivas ou em condições diferentes. Segue-se daí que é impossível dizer com acerto o que é um objeto, pois ele pode possuir uma só qualidade, em oposição ao modo em que aparece, ou possuir mais qualidade do que as captadas pelos nossos sentidos. O quarto tropo é dito acerca das diferentes circunstâncias em que podem se encontrar os seres humanos: vista a impossibilidade de algum homem encontrar-se fora de qualquer condição que seja ele é afetado de formas diferentes por um objeto quando em uma e em outra dessas condições. O alimento aparece de uma forma para o indivíduo saudável, e de forma diferente para o homem doente; as coisas aparecem, também, de forma diferente para quem está sóbrio e para quem está embriagado. Assim como os tropos anteriores, concluímos que se deve suspender o juízo. Este é um dos que diferem na ordem entre os dois autores: enquanto é apresentado em quinto por Sexto Empírico, no texto de Diógenes Laércio ele nos aparece como o sétimo dos tropos. Ele é referido às situações, distâncias e lugares: um objeto pode ser grande quando visto de perto, mas pequeno quando visto de certa distância; uma torre quadrada pode ser considerada redonda caso vista de longe; um remo parece quebrado quando dentro da água, mas reto fora. Da mesma forma que alguém não pode perceber algo sem estar disposto em certas condições e circunstâncias, também não se pode isolar o objeto das condições nas quais está inserido. O sexto tropo diz respeito às misturas: não percebemos nada sem que o que é percebido esteja separado do ambiente que o cerca. A luz, o ar, o calor, a umidade, o movimento sempre vão interferir na nossa percepção: os objetos não tem a mesma aparência quando expostos à luz do sol ou de uma lâmpada; uma pedra é leve e pode ser facilmente levantada dentro da água, mas fora dela não. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 294 O sétimo também não se encontra na mesma posição nos dois textos: na obra de Diógenes, ele se encontra como o oitavo. Este é desenvolvido para discorrer sobre as quantidades ou composições dos objetos: também as quantidades das coisas nos causam reações diversas. O vinho, por exemplo, nos fortalece caso ingerido moderadamente, mas, se bebido em excesso, nos debilita; o alimento, da mesma forma; um grão de areia, analisado separadamente, parece áspero, mas liso quando em montes. O oitavo tropo é o último da ordem de Diógenes e diz respeito à relação: nada é em si, mas sempre em relação ao outro: ninguém é pai, ou está à direita, ou é menor, melhor, mais quente por natureza, mas sempre em relação a algo ao qual é comparado. Ninguém é pai sem um filho; nada está à direita sem algo à sua esquerda para referência; e assim com tudo o resto. O nono é sobre a frequência ou raridade de acontecimentos: os terremotos causam espanto maior aos que nunca o experimentaram ou que não o experimentam com frequência, mas nem tanto aos que já se acostumaram com ele; o fato do sol aparecer todos os dias é normal, mas se algum dia ele não aparecesse seria estranho. O décimo tem relação com os costumes, leis e opiniões, e é o quinto da ordem de Diógenes: este argumento mostra que em diferentes lugares as crenças morais são diferentes. Entre alguns povos, os corpos dos mortos são queimados, enquanto em outros lugares eles são enterrados ou atirados no pântano; alguns permitem a poligamia, e outros não; as religiões e os governos também diferem de país para país. Logo depois da exposição, Sexto Empírico diz ser possível agrupar esses dez tropos em três grupos maiores, chamados por ele de espécies: os primeiros quatro tropos podem ser subordinados a um único, baseado no sujeito que julga; o sétimo e o décimo podem ser agrupados em outro, que se baseia no objeto julgado; e por último, os demais – quinto, sexto, oitavo e nono – podem ser dispostos na espécie que se baseia em ambos (sujeito que julga e objeto). E esses três podem, ainda, serem agrupados em um gênero, maior, chamado de modo, ou tropo, de relação, que se encontra mais elevado. Nessa hierarquia, então, todos os dez tropos agrupados formam o gênero de relação; logo após, estão as três espécies: a do sujeito que julga, seja ele homem ou animal, do objeto julgado, e o de ambos; e os dez, se tomados isoladamente, são classificados como sub-espécies. Porém, antes de fazer essa classificação, Sexto Empírico deixa bem claro que esta lista pode ser maior, e que a ordem é adotada sem prejuízo82. 82 SEXTO EMPÍRICO, 2000, p. 25 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 295 Mas há um aspecto principal para o qual devemos chamar a atenção: assim como em Pirro, os tropos de Enesidemo devem culminar na suspensão do juízo, a epoché. Sexto destaca muito bem esse ponto no capítulo intitulado Dos Modos gerais que conduzem à suspensão do juízo (Of the general Modes leading to suspension of judgement) dizendo que sua próxima tarefa será mostrar como se alcança esta suspensão83, e então, no capítulo seguinte introduz aos tropos. Segundo Sexto, entre os antigos céticos, como vimos acima, os modos que levam à epoché são dez, mas logo após a descrição dos dez modos, ele84 e também Diógenes Laércio85 inserem outros cinco modos, atribuídos aos céticos mais recentes: o primeiro sobre o desacordo; o segundo sobre o regresso ao infinito; o terceiro sobre a relatividade; o quarto sobre as hipóteses; o quinto sobre a reciprocidade. Pirro se nega a tomar qualquer partido, a afirmar qualquer coisa dogmaticamente, visto a equipolência, ou igualdade dos discursos, para alcançar a tranquilidade, ou seja, da epoché segue a ataraxia. Posteriormente, se mostra como os céticos que procederam do mestre para mostrar com maiores exemplos que, no fim das contas, tudo deve levar à epoché. Referências bibliográficas: BROCHARD, Victor. Os céticos gregos. Tradução de Jaimir Conte. São Paulo: Odysseus Editora, 2009. GAZZINELLI, Gabriela. A vida cética de Pirro. São Paulo – São Paulo: Edições Loyola, 2009. REALE, Giovanni. Estoicismo, ceticismo e ecletismo. São Paulo: Edições Loyola, 2011. SEXTO EMPÍRICO. Outlines of Pyrrhonism. Tradução para o inglês de R. G. Bury. Cambridge, Massachusetts, London, England: Harvard University Press, 2000. LESSA, Renato. Veneno pirrônico – ensaios sobre o ceticismo. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora: 1997. LAÊRTIOS, Diôgenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Tradução Mário da Gama. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008. Idem, p. 23. Idem, p. 95. 85 LAÊRTIOS, 2008, p. 274. 83 84 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 296 O PROBLEMA DO SER NO ÂMBITO DO ACONTECIMENTOAPROPRIATIVO Jean Tonin Universidade Estadual do Centro Oeste (UNICENTRO) [email protected] Orientador: Manuel Moreira da Silva RESUMO: A partir da leitura da conferência Tempo e Ser, o presente trabalho procura esclarecer a concepção heideggeriana do ser no interior do acontecimento-apropriativo86. Busca-se assim, primeiramente, apresentar a tentativa do filósofo de pensar o ser pelo que lhe é próprio; por conseguinte, mediante o que é próprio de ser e de tempo, o mutuo determina-se de ambos no interior do Ereignis. Posteriormente, recorre-se à leitura de O Princípio da Identidade para discutir mais adequadamente o acontecimento-apropriativo nos limites de Tempo e Ser, elucidando a compreensão do comum-pertencer87 de pensar e ser. Palavras-chave: Ereignis, Heidegger, Ser. Heidegger parte da compreensão do ser como presença, pois o ser como presença é um traço que perpassa todo o pensamento ocidental, somos levados a crer que ser se determina pelo tempo. Já que presença é a ―característica do tempo junto com o passado e o futuro‖ (HEIDEGGER, 1996, p. 253), ser como presença pressupõe uma determinação pelo tempo, que por sua vez, sempre permanece. Assim, de algum modo, o tempo deve determinar-se pelo ser. Ser não se confunde com o ente, sua determinação pelo tempo não é como a de um ente em um determinado curso temporal. Tempo não é temporal, o que é temporal passa junto com o tempo, como faz o ente, contudo, tempo não pode ser pensado como um ente qualquer. Do tempo sabemos que ele passa, e assim, em seu passar permanecendo, possui presença. Assim sendo, tempo deve ser de alguma forma determinado pelo ser. Para esclarecer essa relação, torna-se necessário saber o que é próprio de Ser e tempo. Embora os textos-base utilizados sejam os traduzidos em Língua portuguesa por E. Stein, que verte Ereignis – a partir do francês evénement-appropriation – por acontecimento-apropriação, optou-se por utilizar o termo acontecimento-apropriativo. 87 Comum-pertencer traduz Zusammengehören. Expressão que busca acentuar o caráter recíproco de pensar e ser ou, mais propriamente, a comunidade de homem e ser, sendo assim grafada, com destaque no pertencer para mostrar que a comunidade em questão é determinada a partir do pertencer (Cf. HEIDEGGER, 1996, p. 175). 86 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 297 Heidegger compreende que a relação entre ser e tempo só existe por uma justaposição entre ambas, é uma relação que surge a partir das coisas mesmas que por elas são nomeadas. Nessa compreensão, o filósofo pretende refletir acerca do que é próprio de tempo e ser. Ser e tempo não são compreendidos como coisas, como um ente. Isso porque, no dizer de Heidegger: ―Do ente dizemos: ele é. No concernente à questão ‗ser‘ e no que diz respeito a questão ‗tempo‘, permanecemos cautelosos. Não dizemos: ser é, tempo é: mas dá-se ser e dá-se tempo‖ (HEIDEGGER, 1996, p. 254). A partir desse modo de pronunciar as questões, Heidegger procura conduzir o pensamento para tornar evidente o dar se que resultam ser e tempo, ao passo que busca o esclarecimento do que é próprio de cada questão. Pensando sob o ponto de vista do que presenta, pre-sentar se mostra como pre-sentificar. Trata-se, porém, agora de pensar esse pre-sentificar propriamente, na medida em que é facultado pre-sentar. Pre-sentificar mostra-se no que lhe é próprio pelo fato de levar para o desvelamento. Pre-sentificar significa: desvelar, levar ao aberto. No desvelar está em jogo um dar, a saber, aquele que no presenti-ficar dá o pré-sentar, isto é, ser (HEIDEGGER, 1996, p. 254). Essa passagem refere-se à tentativa heideggeriana de pensar no que é próprio do ser, apresentando o modo que ocorre o ―dar‖ que dá ser. Pois o ser como presença se presentifica a nós em sua abertura, para sabermos o que é próprio do ser devemos acompanhar o presentificar, que é de onde fala o ―dar‖ que dá ser. Deve-se entender isso para pensar o ser no que lhe é próprio. Para isso, devemos também, abandonar o modo de pensar da metafísica, que pensa o ser a partir do ente e como seu fundamento. Pois, ser é seu próprio dom que desoculta no presentar. Um dar que somente dá seu dom a si mesmo, entretanto nisso mesmo se retém e se subtrai, a um tal dar chamamos: destinar. De acordo com o sentido de dar a ser assim pensado, é ser que Se dá, o que foi destinado. Destinado, desta maneira, permanece cada ato de suas transformações (HEIDEGGER, 1996, p. 256). Para Heidegger o dar do ser não está no ente, mas em si mesmo, esse dar a si mesmo é chamado por ele de destinar. O ser acontece de forma historialmente determinada nesse destinar. Desse modo, em cada época o ser faz um apelo, que imediatamente se subtrai em si mesmo, nesse sentido, todas as doutrinas metafísicas são respostas a esse apelo, e não meras palavras produzidas ao acaso (HEIDEGGER, 1996, p. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 298 257). Na tradição do destino do ser, ele mesmo recebe sua determinação pelo seu dar-se. O dar é compreendido então como um destinar. Para Heidegger o homem situa-se no interior da abordagem pela presença, pois, o presentar se direciona a ele, que por sua vez recebe como dom o dá-Se do ser. Essa é a relação que faz o homem ser aquilo que ele é. Contudo, não é apenas o presente imediato que nos alcança, o ausentar, do não-mais-presente e do ainda-não-presente, se presenta a nós, não da mesma forma, mas de um modo próprio. A partir desse pensamento, Heidegger afirma que o presente, passado e futuro são em si um alcançar, uma unidade do caráter temporal que assim nos alcança. O filósofo caracteriza a unidade do recíproco alcançar-se como pré-espacial, podendo então, doar espaço de tempo, ou seja, ―dar‖ tempo. No alcançar iluminador de passado presente e futuro, dá o espaço de tempo, e nesse, repousa a chamada dimensão. Nesse sentido, o tempo que se dá pelo alcançar iluminador que é compreendido como tridimensional, passado, presente e futuro. Contudo, essa unificação das três dimensões deve ser determinada de algum modo. Esta unidade das três dimensões repousa muito antes, no proporcionar cada um à outra. Este proporcionar-se mostra-se como o autentico no alcançar que impera no que é próprio do tempo, portanto como uma espécie de quarta dimensão – não apensa uma espécie, mas um dimensão efitivamente real (HEIDEGGER, 1996, p. 261). Heidegger diz que o tempo é quadridimensional, sendo a última dimensão apresentada, na verdade, a primeira, porque ela é o alcançar que determina as demais. Ela ilumina ao passo que também retém, ou seja, ao passo que ela dá o espaço de tempo ela também preserva o que no passado está recusado e no futuro retido. Assim, o dar que dá tempo, o alcançar iluminador do quadridimensional, oculta-se em si mesmo, não há como indicar onde ocorre o dar que dá tempo, pois esse se configura como pré-espacial, é condição para o espaço de um onde. Mostrou-se até aqui, que o dar que dá ser é um destinar da presença e o dar que dá tempo é apresentado como o alcançar iluminador do âmbito quadridimencional (HEIDEGGER, 1996, p.263). O que é destinado sempre repousa no alcançar iluminador do tempo, assim, ambos se colocam mutuamente em uma unidade. O caráter de tal unidade é o que agora procuramos clarear. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 299 O que vincula ambas as questões mutuamente, aquilo que conduz ambas as questões não apenas para o interior daquilo que lhes é próprio, mas que conserva em sua comum-unidade e ali as sustenta, a relação de ambas as questões, o estado de coisas, é o Ereignis (HEIDEGGER, 1996, p. 265). Para Heidegger, aquilo que sustenta e conserva a questão de ser e tempo em sua unidade, e que assim determina o lugar de ambos, é o acontecimento-apropriativo (Ereignis). O filósofo não diz que ser e tempo sejam constituintes do acontecimentoapropriativo, o que ocorre é que ambos acontecem no interior do que lhes é próprio, ou seja, acontece e apropria. O acontecimento-apropriativo acontece e apropriar tempo e ser, se oculta no destino do ser e no alcançar iluminador do tempo (HEIDEGGER, 1996, p. 267). Nesse acontecer e nesse apropriar que, à diferença da tradição, consiste para Heidegger o comum-pertencer de pensar e ser ou de homem e ser, deve-se enfatizar a última palavra; ―pertencer‖, no sentido que ela determina à primeira: ―comum‖, que representa a comunidade. Ou seja, só é possível a comunidade entre Ser e homem por que eles se determinam e se pertencem. Deve-se experimentar essa comunidade a partir do seu mutuo pertencer. Para tanto, será necessário esclarecer o ―recíproco-acontecer‖, de ser e homem, tal como o autor nos indica. O homem é manifestamente um ente. Como tal, faz parte da totalidade do ser, como a pedra, a arvore e a águia. Pertencer significa aqui ainda: inserido no ser. Mas o elemento distintivo do homem consiste no fato de que ele, enquanto ser pensante, aberto para o ser, está posto em face dele, permanece relacionado com o ser e assim lhe corresponde. O homem é propriamente essa relação de correspondência, e é somente isso. (...) O ser se apresenta ao homem, nem acidentalmente nem por exceção. Ser somente é e permanece enquanto aborda o homem pelo apelo. Pois somente o homem, aberto para o ser, propicia-lhe o advento enquanto presentar. Tal presentar necessita do aberto de uma clareira e permanece assim, por esta necessidade, entregue ao ser humano, como propriedade. (HEIDEGGER, 1996, p. 177). Nesse trecho, Heidegger apresenta a relação entre ser e homem. No que foi dito, ser é presença, e como tal, necessita do aberto da clareira, ou seja, sempre está entregue ao ser humano, que constitui sua morada nesse aberto. Isso não quer dizer que ser precise do homem para existir, ele somente torna-se claro ao entregar-se na clareira do homem. O homem também é compreendido, em sua plenitude, por esta relação de correspondência. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 300 Isso indica que no recíproco entregar-se, temos o comum-pertencer de ser e homem, no interior do qual, ambos recebem suas determinações essenciais. Heidegger pretende, a partir do disso, adentrar no interior do comum-pertencer, para isso, será necessário um salto, que como tal, se distancia do pensamento da metafísica ocidental, que pensa somente o ser como fundamento. Para o filósofo ser é abismo (Abgrund), palavra alemã que significa sem fundamento, assim o ser para Heidegger é abissal, ele não pode ter um fundamento que o funde. Só assim podemos compreender que homem e ser, em um recíproco dar-se, alcançam juntos aquilo que lhes é essencial. O filósofo afirma que devemos experimentar o comum-pertencer entre homem e ser, para que se possa abrir os olhos para o que agora é no mundo da técnica (HEIDEGGER, 1996, p. 190) ao passo que também, na medida em que recebermos nossa essência no acontecimento-apropriativo, enquanto comum-pertencer de ser e homem, podemos nele abandonar as determinações que nos vem da tradição. Contudo, o importante é compreender que ser e homem fazem parte de uma identidade, que enquanto tal, se essência no acontecimento-apropriativo, ou seja, identidade é uma propriedade do Ereignis. Assim a tentativa heideggeriana de pensar o ser por um saldo no abismo do sem fundamento, é na verdade, pensar o ser como acontecimento-apropriativo, que nesse caso é entendido como o abismo. O ser foi pensado pela tradição de vários modos: ―ser enquanto ideia, enquanto enérgeia, enquanto actualitas, enquanto vontade, sempre a partir do ente‖ (HEIDEGGER, 1966, p. 266). Poder-se-ia entender agora o ser enquanto Ereignis, isso seria o mesmo que afirmar que Ereignis é subordinado ou derivado do ser, isso se mostra inverídico, pois como foi apresentado, o ser como destino que repousa no alcançar iluminador faz parte do acontecimento-apropriativo. Não que acontecimento-apropriativo seja conceito abarcador, mas tempo e ser acontecem apropriados no Ereignis. Ao dar como destinar pertence a suspensão, isto é, no alcançar do passado e do porvir acontece o jogo da recusa do presente e da retenção do presente. O agora nomeado: suspensão, recusa, retenção, mostra algo como subtrair-se, em resumo: a retração. Mas na medida em que os modos de dar por ele determinados, o destinar e o alcançar, residem no acontecer apropriador, deve a retenção fazer parte do que é específico do Ereignis (HEIDEGGER, 1966, p. 267-268). Heidegger compreende que o dar do ser é um destinar, que acaba se retraindo em si mesmo. No mesmo sentido, o dar do tempo é também um ocultar-se no próprio tempo, ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 301 somente com a recusa do que não é mais presente do passado, com a retenção do ainda não presente do futuro, o presente se pre-sentifica. Tanto em ser como em tempo, há um subtrair-se. Como o destino do ser e o alcançar revelador do tempo residem no Ereignis, Heidegger afirma, que o acontecimento-apropriativo retém sua propriedade em uma subtração sem limites. Desse modo, Heidegger nos diz que o que é mais próprio do acontecimentoapropriativo permanece ocultado por ele mesmo. Ou seja, em seu próprio sentido ele se desapropria. ―Do Ereignis enquanto tal faz parte a Enteignis, o não-acontecer desapropriador. Através deste último o Ereignis não se abandona, mas guarda sua propriedade‖ (HEIDEGGER, 1996, p. 267). Desse modo, Heidegger diz que o acontecimento-apropriativo retém sua propriedade. Tempo e ser determinam-se mutuamente no acontecimento-apropriativo, o homem por situar-se no aberto da clareira esta em um comum-apropriar-se com o ser, e, por conseguinte, constitui sua morada no acontecimento-apropriativo. Assim, Heidegger assinala algo importante: ―de nunca sermos capazes de colocar o Ereignis diante de nós, nem como algo que se opõe a nós, nem como algo que a tudo abarca‖ (HEIDEGGER, 1996, p. 267). Assim, não há como representarmos ou fundamentarmos o acontecimentoapropriativo, fazer isso seria tratá-lo como um ente, mas ele não ―é‖ nem mesmo ―se dá‖, desse modo, sobre ele, não podemos nada enunciar. ―Que resta dizer? Apenas isso: o Ereignis acontece-apropria‖ (HEIDEGGER, 1996, p. 268). Em fim, apresentou-se a tentativa heideggeriana de pensar o ser no que lhe é próprio, sem sua relação com o ente, ou seja, sem a metafísica. A partir do que é próprio de tempo e ser, pelo modo que estes se dão, compreende-se que ambos se determinam mutuamente, o que prepara o caminho para aceder-se ao interior do acontecimentoapropriativo. Este não pode ser questionado, nem conhecido; dele só se pode ter experiência; no dizer de Heidegger (1966, p. 252), ―não se trata de ouvir uma série de frases que enunciam algo; o que importa é acompanhar a marcha de um mostrar‖. Não se trata portanto de buscar um modo de dizer o Ereignis, pois dele só se pode dizer que acontece e apropria. Referências Bibliográficas: ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 302 ___________. Conferencias e escritos filosóficos. Trad. de Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1996. ___________. Identidad y Diferencia. Traducción de Helena Cortés y Arturo Leyte. Anthropos, Barcelona, 1988. STEIN, Ernildo. Nas Proximidades da Antropologia: Ensaios e conferências filosóficas. Ujuí: Unijuí-RS, 2003. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 303 A TEORIA DA EMANCIPAÇÃO EM KARL MARX E JÜRGEN HABERMAS Jonece Beltrame Doutorando UFPB / Bolsista Capes [email protected] RESUMO: Este texto apresenta o projeto de pesquisa de doutorado vinculado ao Programa Interinstitucional de Pós-Graduação em Filosofia UFPB/UFRN/UFPE. Possui como objetivo compreender o desenvolvimento histórico conceitual da teoria da emancipação, investigando as teorias de Karl Marx e de Jürgen Habermas a partir de duas categorias distintas: trabalho e interação. E partindo desses conceitos, como se dá finalmente, a teoria da emancipação. Nossa hipótese consiste em analisar a concepção de emancipação em Marx e Habermas e observar as semelhanças, as diferenças e as aproximações destas teorias. Palavras-chave: Emancipação. Trabalho. Interação. Marx. Habermas. A emancipação é uma noção que se vincula a Filosofia da História e a Filosofia Prática. Em seu desenvolvimento histórico conceitual, a emancipação converteu-se em um conceito de movimento e no século XVIII torna-se o denominador justificável para algumas reivindicações que perseguiam a eliminação da desigualdade política, econômica, jurídica e social. Essa expressão torna-se, no Iluminismo, numa concepção que exige a eliminação do poder pessoal do ser humano sobre o ser humano. A teoria da emancipação em Marx vincula-se à concepção de natureza humana, na qual a ideia de homem é dada pelas categorias de trabalho, de ser social e de ser histórico. A alienação enquanto negação da essência humana, presente nos Manuscritos econômicofilosóficos, perde seu status de centralidade, na obra A ideologia alemã. Nela o homem passa a ser um ser histórico e social, atenuando-se a ideia de alienação. É pelo trabalho que o homem emancipa-se da natureza – primeira natureza humana – estabelecendo uma natureza histórica e social – segunda natureza humana. O problema é que esta segunda natureza humana encontra-se em uma sociedade histórica cuja forma de existência é uma condição de exploração, dominação, opressão e alienação. Uma condição histórica social de não emancipação, pois o trabalho e a sociedade definem a natureza humana, no entanto, esta sociedade histórica provoca a alienação e opressão no trabalho e no social. Este é o ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 304 elemento que dá unidade ao pensamento marxista, a finalidade é atingir o livre desenvolvimento do humano. Em Habermas, a teoria da emancipação vincula-se à concepção de natureza humana – a ideia de homem fundamenta-se na razão e na comunicação, esta última como linguagem e interação. A partir dessa relação – razão e comunicação, interação e linguagem –, a emancipação vincula-se ao interesse de liberação, ao interesse do conhecimento. As noções de interesse e de conhecimento são importantes, pois em Habermas a autorreflexão corresponde a emancipação e o conceito de interesse é o mediador para a emancipação. Habermas atenua a ideia de conflito, não utiliza mais a noção de alienação em contraposição a emancipação, há o conflito e este é caracterizado como a impossibilidade plena na comunicação – a comunicação é restrita e restringida – e o interesse universal da emancipação é constrangido. Na ontologia habermasiana o homem é comunicação, e a linguagem é a centralidade da natureza humana – atenua a ideia de essência humana. A questão torna-se simbólica dado que a ideia de comunicação e a ideia de emancipação corresponde à comunicação livre, embasando, por sua vez, os conceitos de interação e interesse. Um dos elementos da teoria da emancipação humana em Marx é a crítica à desigualdade social, econômica e política, presente na sociedade capitalista e legitimada pela emancipação política, constituição do Estado moderno, caracterizada como ―redução do homem, por um lado, a membro da sociedade civil, indivíduo independente e egoísta e, por outro, a cidadão, a pessoa moral‖88. Todavia, segundo Marx, a emancipação política não constitui a forma plena, livre de contradições. A emancipação humana, afirma Marx em A questão judaica, depende das seguintes condições, a emancipação só será plena quando o homem real e individual tiver em si o cidadão abstrato; quando como homem individual, na sua vida empírica, no trabalho e nas relações individuais, se tiver tornado um ser genérico; e tiver reconhecido e organizado as suas próprias forças (forces propres) como forças sociais, de maneira a nunca mais separar de si esta força social como força política89. A emancipação humana funda-se numa tripla exigência de da conciliação: entre homem e natureza; entre homem e sociedade; entre homem e homem. Constitui-se na superação, supressão e transcendência de toda forma de alienação existente no contexto da 88 89 MARX, 1975, p. 63. MARX, 1975, p. 63. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 305 produção e reprodução da vida, na superação da alienação no contexto da produção social, do trabalho e da práxis90. Na Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel, Marx identifica o proletariado como classe responsável por promover a emancipação. É a primeira vez que Marx utiliza o termo proletariado em seus escritos. O comunismo, afirma Marx nos Manuscritos, é a realização da emancipação humana, sendo ―a posição como negação da negação é, pois, o movimento da emancipação e recuperação humanas, momento efetivo e necessário para o movimento histórico seguinte‖91. Este não significa o fim do desenvolvimento humano, ―é a configuração necessária e o princípio energético do futuro próximo, mas o comunismo não é como tal, o objetivo do desenvolvimento humano, a configuração da sociedade humana‖92. Segundo Marcuse, a emancipação humana proposta por Marx implica a existência de uma ―ordem em que o princípio de organização social não seja a universalidade do trabalho, mas a satisfação universal de todas as potencialidades individuais que constituem o princípio da organização social‖93. Em A ideologia alemã ao tratar do desenvolvimento dos indivíduos, Marx afirma que ―esse desenvolvimento é determinado justamente pela conexão entre os indivíduos, uma conexão que em parte consiste em pressupostos econômicos, em parte na solidariedade necessária ao livre desenvolvimento de todos‖94. No Manifesto do Partido Comunista, ao tratar das relações entre trabalho, produção e emancipação, Marx reitera que ―quando o capital é transformado em propriedade comum, pertencente a todos os membros da sociedade, não é a propriedade pessoal que se transforma em propriedade social. O que se transformou foi o caráter social da propriedade. Este perde seu caráter de classe‖95. Na obra Grundrisse, afirma Marx, quando mais fundo voltamos na história, mais o indivíduo, e por isso também o indivíduo que produz, aparece como dependente como membro de um todo maior: de início, e de maneira totalmente natural na família e na família ampliada em tribo (Stamm); mais tarde, nas diversas formas de comunidades, resultantes do conflito e da fusão das tribos. LÖWY, 2002, p. 97. MARX, 1975, p. 22. 92 MARX, 1975, p. 22. 93 MARCUSE, 1969, p. 267. 94 MARX; ENGELS, 2009, p. 423. 95 MARX; ENGELS, 2010, p. 53. 90 91 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 306 Somente no século XVIII, com a ―sociedade burguesa‖, as diversas formas de conexão social confrontam o indivíduo como simples meio para seus fins privados, como necessidade exterior. Mas a época que produz esse ponto de vista do indivíduo isolado é justamente a época das relações sociais (universais desse ponto de vista) mais desenvolvidas até o presente96. Os indivíduos que produzem não se efetivam enquanto produtores de suas relações sociais, em todas as formas de sociabilidade espontânea, contrariamente, eles são determinados a partir de fora, pelas relações sociais inconscientes. A obra O Capital repousa sobre a concepção básica de uma dialética da história e tem como pressuposto desvendar a forma da alienação. Marx estabelece como intenção crítica descobrir a forma do modo capitalista de produção que domina a sociedade burguesa enquanto lógica da alienação. A preocupação não se encontra em provar as condições de possibilidade da alienação – prova dialeticamente fundada que torna possível a superação. Marx pressupõe isso, quando seguindo a lógica imanente do capital elabora sua contraditoriedade97. A contradição básica do modo capitalista encontra-se no fato de os indivíduos agentes deixarem-se determinar e dominar pela forma do capital. O capital é trabalho objetivado que extrai sua força e mobilidade da manipulação do trabalho real, se comporta como se autofundamentasse a partir de si mesmo, promovendo a negação contínua do trabalho vivo, juntamente com a negação dos indivíduos vivos. Portanto, a intenção de promover uma crítica, na lógica de seu desdobramento é a de possibilitar a efetivação da práxis humana, superando o economicismo que destrói as relações sociais98. A teoria crítica da sociedade em Habermas, situada na tradição filosófico histórica que vai de Kant a Adorno, Horkheimer e Marcuse, passando por Hegel, Marx e Freud, possui uma forma de reflexão sobre história da humanidade, na qual reflete-se acerca da história passada com a finalidade prática, que é a descoberta de determinados temas gerais de desenvolvimento e que pode orientar na tarefa de fazer avançar a história de forma mais consciente e racional. Essa reconstrução teórica do desenvolvimento histórico ocorre a partir de duas dimensões: da dimensão técnica, que reflete a relação do homem com a natureza externa; e da dimensão prática, que reflete a relação do homem com o ser MARX, 2011, p. 14. MARX, 2010. 98 GRAMSCI, 2011. 96 97 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 307 humano. Essa reconstrução histórica pode se dar na análise do desenvolvimento progressivo das instituições sociais99, falamos, portanto, de um interesse técnico ou prático na medida em que, através de recursos da lógica da pesquisa, as conexões vitais da atividade instrumental e das interações mediatizadas pelos símbolos pré-molduram o sentido da validade de enunciados possíveis de tal forma que estes, enquanto representam conhecimento, não possuem outra função senão aquela que lhes convêm em tais contextos vitais: serem aplicáveis tecnicamente ou serem praticamente eficazes100. A distinção entre o trabalho – ação dirigida à consecução de um fim – e a interação – ação comunicativa – é o instrumento teórico com o qual Habermas esboça um esquema interpretativo da evolução da sociedade e da história da humanidade. Seu diagnóstico sobre a sociedade contemporânea revela uma crescente tendência da dimensão técnica invadir e eliminar a dimensão prática – social ou da moralidade101. Em Conhecimento e interesse, Habermas define nos seguintes termos os interesses do conhecimento, chamo de interesses as orientações básicas que aderem a certas condições fundantes da reprodução e da autoconstituição possíveis da espécie humana: trabalho e interação. É por isso que cada uma destas orientações fundamentais não visam à satisfação de necessidades empíricas e imediatas, mas à solução de problemas sistêmicos propriamente ditos102. De acordo com a definição, o conhecimento humano não pode ser compreendido independentemente de uma reflexão sobre o que o processo histórico nos ensina sobre o ser humano: que este se especifica frente ao animal pelo duplo fato de transformar, primeiro, as condições materiais que determinam suas relações com a natureza externa e, segundo, as normas que regulam as relações dos indivíduos entre si. O interesse emancipatório corresponde ao processo histórico da autoconstituição humana. Esse processo é concebido como a liberação progressiva do homem das condições reais opressoras causadas por uma natureza externa não dominada e por uma UREÑA, 1978, p. 95. HABERMAS, 1987, p. 217. 101 WELLMER, 1985, p. 310. 102 HABERMAS, 1987, p. 217. 99 100 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 308 natureza própria deficientemente socializada. O interesse técnico e o interesse prático aparecem, assim, como duas especificações de um mesmo interesse emancipatório. Habermas chega ao interesse do conhecimento emancipatório através de uma ciência determinada, a psicanálise. Na psicanálise, teoria e terapia, autoconhecimento e autoliberação convergem. Neste caso, não ocorre uma separação entre conhecimento e aplicação, o interesse de emancipação, libertador, do conhecimento psicanalítico é inseparável do conhecimento. Na obra Conhecimento e interesse, Habermas tem na psicanálise um modelo de ciência emancipadora na qual a filosofia poderia se inspirar103. Em Teoria do agir comunicativo Habermas responde pela exigência de emancipação formulada pela Teoria Crítica desenvolvendo e aprofundando um novo paradigma encarregando-o de reconstruir normas de vida em sociedade. Trata-se do paradigma da comunicação, da intersubjetividade. A linguagem torna-se princípio da razão e a razão torna-se ato. Trata-se da linguagem enquanto pressuposto que possibilita a sociedade e a justiça – não é simples meio, fonte de erro e de manipulação. A investigação da emancipação a partir de duas categorias diversas – a de interação de trabalho em Marx e a de interação em Habermas – justifica-se pelo fato de que proporciona a compreensão de um esforço contínuo em refletir o desenvolvimento conceitual desta noção; em compreender a forma como Marx e Habermas desenvolvem suas teorias sobre a emancipação; e em reconstituir a compreensão histórico conceitual desta noção a partir destes preceitos. Referências bibliográficas: DUPEYRIX, Alexandre. Compreender Habermas. São Paulo: Loyola. 2012. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Vol. I. 5ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2011. HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e interesse. Rio de Janeiro: Guanabara. 1987. ___________. Connaissance et intérêt. Paris: Gallimard. 1976. KOSELLECK, Reinhart. Historias de conceptos Estudios sobre semántica y pragmática del lenguaje político y social. Madrid: Editorial Trotta. 2012. O modelo psicanalítico deixará de ser adequado para desenvolver uma teoria da emancipação, Habermas, a partir de 1970, estabelece os fundamentos de uma teoria da comunicação, concebida como aliança entre uma teoria da sociedade e uma teoria da linguagem (DUPEYRIX, 2012, p. 47). 103 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 309 LÖWY, Michael. A teoria da revolução no jovem Marx. Petrópolis: Vozes, 2002. MARCUSE, Herbert. Razão e revolução. Hegel e o advento da teoria social. Rio de Janeiro: Editora Saga, 1969. MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. Manifest der Kommunistischen Partei. Stuttgart: Reclams Universal. 2010. _____. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2009. MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos. São Paulo: Abril, 1975. _____. Grundrisse. São Paulo: Boitempo, 2011. _____. O Capital. Crítica da economia política. Livro Primeiro: Vol. I e II. 27ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2010. UREÑA, Enrique M. La teoria crítica de la sociedad de Habermas la crisis de la sociedad industrializada. Madrid: Tecnos. 1978. WELLMER, Albrecht. Comunicazione e emancipazione: riflessioni sulla svolta della Teoria crítica verso l´analisi del linguagio. In: AGAZZI, Emilio. Dialettica della razionalizzazione. Milano: Edizioni Unicopoli. 1985. P. 297-324. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 310 NOVO HOMEM Josete Rockenbach [email protected] RESUMO: O tema ‗o novo homem‘ trata do fluxo eterno de humanos, tendo em vista que a todo o momento novos homens vêm ao mundo e outros desaparecem, indo para lugar nenhum. Arendt (2004) apresenta a natalidade como perspectiva desse novo domínio, em que a pluralidade é aparente na história dos humanos, e estabelece uma perspectiva distinta sobre o homem, suspendendo a lógica argumentativa que trata das essências e do universal, apresentando a perspectiva da aparência e permanência, que diz respeito ao domínio dos assuntos humanos. PALAVRAS-CHAVE: Liberdade, política, humanidade, natalidade. O termo ‗natureza‘ explica-se como um princípio de movimento que se produz por si. Pode-se acrescentar que é um princípio de vida que cuida bem dos seres em que se manifesta. Sobre a natureza humana as concepções e teorias apresentam algo que mistifica ou cientifica a existência do homem. As tentativas de identificar o ponto de partida deixam em aberto a natureza do homem. Desse modo, partimos para um enfoque sobre a condição humana com os argumentos para fundamentar a pluralidade humana e dar início à perspectiva da natalidade humana. A concepção sobre a natureza humana tem aspectos que não se sustentam ao serem questionados. O conceito usualmente apresentado para defini-la vincula-se a uma divindade. Então, se o homem tem capacidade e qualidades semelhantes a uma divindade, estamos falando de uma natureza divina. Essa forma de conceber essa natureza considera mais a causa que o efeito, ou seja, privilegia a divindade em detrimento da humanidade. Ao privilegiarmos a causa e desconsiderarmos o efeito que, neste caso, são os homens e o mundo que os cerca (a realidade), valorizamos a causa sobrenatural, e, partindo disso, a concepção da natureza foge a qualquer fato que consigamos comprovar. Dessa forma, o homem é visto como um único homem, possuidor de capacidades e qualidades que presumem algo de sobrenatural ou divino, o que não é compatível com a pluralidade104 dos homens. 104 Cf. Arendt (2004, p. 188). ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 311 Por sua vez, a concepção científica diz que o homem tem sua origem na matéria inorgânica. Se a origem da vida é a matéria inorgânica, poderíamos supor que os cientistas conseguissem comprovar sua existência, mas tal afirmação carece de provas. Se a origem da vida está vinculada à evolução da vida humana na Terra a partir da vida animal, isso não justifica o novo, que sempre acontece à revelia da certeza estatística e probabilística da ciência. O novo é sempre algo inesperado, incalculável e, por fim, inexplicável em sua causa. Diante disso, resta-nos observar que elas não passam de crenças para conceber a natureza do homem. Para definirem a natureza humana, tais concepções consideram ‗o homem‘ como ser único e permanente, idêntico e igual. É como se os homens fossem repetições intermináveis de um modelo, todos com a mesma natureza, e assim, tudo seria previsível105, tudo estaria determinado. Isso porque há necessidade de colocar uma ordem, estabelecer a origem e as propriedades comuns a todos os homens. A propensão de encontrar um modelo universal, a partir da essência primordial, da ideia, do modelo universal de homem, representa uma verdade infalível. Revela mais a percepção interior do que a exterior, entidade separada do particular, superior à realidade, que jamais se extingue, nunca muda. Ou seja, a Ideia é imutável, eterna e estática, e é apreendida pela razão. Determina a essência do homem e apresenta um modelo universal de homem. Se o homem aparece e desaparece, nasce e morre se suas relações estão em constante mudança, em processo interminável de transformações, podemos concluir que cada homem é diferente de qualquer homem que tenha existido. Diante do argumentado, consideramos que o nascimento expressa o novo que vem ao mundo, elimina a continuação e repetição de um modelo, revela a pluralidade. Cada ser humano difere de todos os que existiram, existem ou virão a existir.106 As atividades do homem demonstram que cada homem é diferente do outro. Por isso o homem necessita da fala para compreender o outro. O sentido de igualdade está relacionado à liberdade que todo homem tem para expressar essa alteridade (capacidade de distinguir-se e exprimir a sua diferença perante o outro) e, apesar disso, poder planejar e prever as necessidades das gerações vindouras. 105 106 Cf. Arendt (2004, p. 16). Cf. Arendt (2004, p. 188). ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 312 Considerando-se a perspectiva da aparência e permanência, o homem aparece no mundo e é pelos sentidos físicos que apreende o mundo. O aparecimento físico original do homem, ao nascer, garante uma identidade física sem qualquer atividade própria. Esse aparecimento físico é um fato original e singular, que expressa as diferenças entre os homens. A existência de um homem está sempre vinculada à existência de outros homens. Ao aparecer, aparece a alguém no mundo. Nascemos para sermos percebidos. Destacamos que essa relação do homem com o homem acontece em um espaço da aparência, um mundo que é permanente e que compõe a história da humanidade. O espaço da aparência existe sempre que os homens se reúnem para conversar e agir sobre as coisas do mundo que os relacionam e interligam. Com isso, o que é permanente é o mundo que sempre existiu e existirá, enquanto os homens aparecem e desaparecem – ―em um mundo que precede a nossa própria chegada e que sobreviverá à nossa partida‖.107 Estabelecemos a natureza fenomênica do mundo como a sua principal característica – a permanência. Consideramos a perspectiva da aparência e da permanência a fim de refletir sobre os assuntos humanos. É sobre o mundo que nos aparece que iniciamos nossas ações, pois o mundo contém muitas coisas para serem vistas, ouvidas, tocadas, cheiradas, enfim, para serem percebidas. Em relação à existência do homem, podemos dizer que ―não é o Homem, mas os homens quem habita o planeta. A pluralidade é a lei da terra‖.108 A dimensão da aparência é o que apresenta o ser vivo. Todos têm receptores das aparências: olhos, ouvidos, olfato, tato, paladar. O que aparece é para ser percebido. Imaginemos o deserto, um lugar em que não há o que ser percebido e não pode ser percebido por nada e por ninguém. Nada existe no singular. É na pluralidade que as coisas aparecem no planeta. Tudo que existe no mundo está destinado a ser percebido por alguém. Estar vivo significa: primeiro, que vivemos em um mundo que precedeu a nossa própria chegada e que sobreviverá a nossa própria partida; segundo, que estamos possuídos por um impulso de automostração, que corresponde à dimensão de aparência. Se aparece, aparece a alguém, ao expectador, porque ―tudo o que pode ver deseja ser visto, tudo que pode ouvir pede para ser ouvido, tudo que pode tocar, pede para ser tocado‖.109 Esse impulso de ―automostração‖110 é distinto do instinto (da preservação da vida) e transcende Cf. Arendt (2000, p. 31). Cf. Arendt (2000, p. 29). 109 Cf. Arendt (2000, p. 30). 110 Cf. Arendt (2000, p. 31). 107 108 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 313 o que é necessário à atração sexual (a permanência da espécie). Esse impulso de se mostrar ao outro, ver e ser visto pelo outro, tocar e ser tocado por outro, é um indicativo de como a aparência interfere no desenvolvimento das capacidades exclusivamente humanas. É claro que há sempre um elemento de ilusão em toda aparência. E a ilusão só é possível no meio das aparências. Nessa relação de aparência e ilusão, o que leva à certeza é a permanência do que aparece. A ilusão parece, mas não é, pois no conjunto de percepções a ilusão é desfeita. Há uma opinião sobre aquilo que é percebido e todos concordam. Apresenta-se a todos os espectadores. O real se mostra, aparece aos sentidos e tem sua permanência no mundo. A autoapresentação111 é o que caracteriza o ser humano. A primazia da aparência, para o homem, é o modo como o mundo aparece aos seus sentidos, o que tem grande relevância para as atividades mentais, das quais se origina a atividade da ação. Há uma escolha ativa sobre o que deseja ser apresentado, que decide o que esconder ou o que mostrar. Isso só é possível devido ao caráter reflexivo das atividades do espírito. O comportamento pode esconder o medo e mostrar a coragem. A autoapresentação é o resultado da decisão de cada homem que lhe impulsiona a aparecer aos outros, com atos e palavras, e mostrar quem é. Compreendemos a pertinência e relevância da perspectiva da aparência e permanência com relação aos assuntos humanos ao entendermos que cada novo homem que vem ao mundo se insere em um mundo que antecedeu a sua chegada e permanecerá após seu desaparecimento, e que a renovação requer a atenção no sentido de resguardar o que é humano. A condição humana corresponde às atividades e capacidades humanas, que dependem das condições existentes onde foi dada a vida ao homem – pois os homens ―são seres condicionados ao mundo onde a vida lhe foi dada‖112. A condição humana vai além, no sentido de acrescentar algo ao recém-chegado – aquilo que resulta das percepções. Esse novo homem chega bem equipado e entra em contato com o mundo que aparece e com a História da humanidade. A vida foi ―dada‖ ao homem na Terra. É a partir do momento em que se ‗dá‘, em que aparece a vida, que o novo homem, no singular, é um novo começo. O novo homem, o recém-chegado incide sobre um mundo humano, e a convivência (caracterizada pelas 111 112 Cf. Arendt (2000, p. 31). Cf. Arendt (2004, p. 18). ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 314 teias de relações humanas) possibilita o seu desenvolvimento e o contato com o mundo humano. O mundo que aparece aos sentidos e às atividades são a condição da existência humana. Uma coisa sem a outra não existiria. O que dá a condição de existência humana no mundo são as atividades do trabalho, da fabricação e da ação. Estas têm a tarefa de ―produzir e preservar o mundo para o constante influxo de recém-chegados que vêm a este mundo na qualidade de estranhos, além de prevê-los e levá-los em conta‖113. O trabalho é uma atividade condicionada às necessidades vitais do processo biológico do corpo. A fabricação/arte é a atividade que produz coisas (cadeiras, livros, carros, casas, telefone, obras de arte) que permanecem no mundo, regidas pela utilidade e beleza. A ação, atividade decorrente do ímpeto de começar, impulso de autoapresentação, ocorre quando somos estimulados pela presença dos outros com os quais desejamos estar, a nos inserir no mundo humano. A revelação, pela ação e pelo discurso, ocorre quando estamos com os outros, no gozo da convivência. Podemos dizer que é no espaço entre os homens e fora dos homens que se estabelece a característica exclusiva dos homens – a ação. A ação e o discurso, quando vêm à tona, representam um segundo nascimento, nesse momento o homem assume e confirma o aparecimento físico original, superando as necessidades impostas pela própria vida e que regem a utilidade das coisas.114 O segundo nascimento revela a pluralidade entre os homens. A coragem presente na disposição de agir e falar, de abandonar o esconderijo para mostrar quem é aos outros homens demonstra a liberdade de começar uma história e inserir-se em um mundo. A história de alguém é o resultado da revelação do agente. Mas, ninguém é autor e produtor da sua própria história. A vida individual pode ser narrada como uma história com princípio e fim, nascimento e morte, mas a sua narrativa existe se consideramos como condição de sua história a História da Humanidade, sem começo e sem fim. Em nome da disposição para agir – a liberdade, a coragem original, o impulso para ―automostração‖, a autoapresentação – torna sua identidade inconfundível, só visível aos outros na convivência. A história individual passa a existir somente quando a vida acaba, quando se encerra o movimento de revelação do homem. Nesse momento, o homem deixa uma história que se torna tangível. Ao se mostrar aos outros, revela quem é, tornando 113Cf. 114 Arendt (2004, p. 17). Cf. Arendt (2004, p. 189). ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 315 ativamente sentida e ouvida a sua presença pelos outros homens. Isso quer dizer que, enquanto viver, a sua história estará inacabada, isso permite um começar de novo. Pela história da humanidade podemos entender que cada recém-chegado incide em uma teia de relações humanas já existentes e inicia um novo processo que vai afetar as histórias de todos com os quais convive. É por meio da História sem começo e sem fim que se estabelece a condição humana da ação. O que é produzido pela ação é o que permanece no mundo, é do mundo. Além das condições em que a vida é dada ao homem na Terra e, até certo ponto, a partir delas, os homens constantemente criam as suas próprias condições que, a despeito de sua variabilidade e sua origem humana, possuem a mesma força condicionante das coisas naturais. (...) Tudo o que espontaneamente adentra o mundo humano, ou para ele é trazido pelo espaço humano, torna-se parte da condição humana. (...) A objetividade do mundo – o seu caráter de coisa ou objeto – e a condição humana complementam-se uma à outra; por ser uma existência condicionada, a existência humana seria impossível sem as coisas, e estas seriam um amontoado de artigos incoerentes, um não mundo, se esses artigos não fossem condicionantes da existência humana. (ARENDT, 2004, p. 17) Assim, a condição humana é a soma de atividades, capacidades humanas, sem as quais deixaria de ser humana. O que ressaltamos, assim, é que, por mais que o homem esteja condicionado às coisas do mundo, ele jamais é condicionado em absoluto. Diante de novas condições, dificuldades, obstáculos, problemas que surgem, esse homem está sempre a inventar muitas soluções. Toda a percepção do mundo é apreendida em forma de palavras ao nomear as coisas. Quando o homem pensa, pensa em palavras, símbolos que têm um significado, um sentido para o indivíduo.115 O pensar e o falar brotam da mesma fonte, da experiência no mundo das aparências. O homem, um animal falante, transforma o objeto que é visível em uma imagem invisível. Pensar em palavras, criar palavras e nomear as coisas é o modo humano de se apropriar do mundo como recém-chegado. O que permanece no mundo, no que se refere aos assuntos humanos, é a narrativa. Ela revela o sentido do que aconteceu e introduz o recém-chegado na História da Humanidade e no mundo que é permanente. O que percebemos são os elementos que constituem os dados para aquilo que aparece – o novo homem. O homem tem o seu caráter de individualidade e, somado a isto, é um ser temporal. É posto no mundo de mudança e movimento, com um começo e um 115 Cf. Arendt (2000, p. 112). ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 316 fim, característica diferente de um ser eterno. Todos os homens nascem e ao nascer são como um novo começo, novos homens. Referências Bibliográficas: ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. de Roberto Raposo. Posfácio de Celso Lafer. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. ___________. A vida do espírito: pensar. Trad. de João C. S. Duarte. Lisboa: Instituto Piaget, 1999. (Volume 1). ___________. A vida do espírito: querer. Trad. de João C. S. Duarte. Lisboa: Instituto Piaget, 2000. (Volume 2). ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 317 REFLEXÕES SOBRE A CONDIÇÃO DO JOVEM INFRATOR A PARTIR DO OLHAR EXISTENCIALISTA DE SARTRE Jussara Teresinha Henn UNIOESTE Campus Toledo [email protected] Dr. Claudinei A. de F. da Silva RESUMO: Esta pesquisa bibliográfica objetiva compreender um pouco mais sobre o fenômeno violência e como esta permeia a existência do ser no mundo, relacionando aspectos sócio-econômicos e enfatizando que o sujeito é um ser em relação, mais especificamente aqui, neste estudo, tal fenômeno será analisado em relação à adolescência, pois muitas vezes o adolescente opta pela violência como a única possibilidade de existir em meio as inúmeras formas de escassez no mundo partindo de uma escolha alienada. Esta compreensão está pautada nos pressupostos filosóficos de Jean Paul Sartre, no que compete aos pressupostos teórico-filosóficos de fragmentos de sua obra Saint Genet – Ator e Mártir, a qual explicita de forma muito clara o conceito de liberdade de escolha. Palavras-chaves: Adolescência. Violência. Existência. Este texto tem como objetivo realizar uma breve análise sobre o tema do jovem116 que comete algum tipo de infração e, portanto, encontra-se segundo a ciência jurídica, em Conflito com a Lei. Pautaremos esta pesquisa bibliográfica, nos pressupostos teóricofilosóficos do Existencialismo Moderno, de Jean Paul Sartre, bem como, teceremos algumas considerações a partir de sua obra intitulada Saint Genet – Ator e Mártir (1950), não cabe, aqui, uma análise da obra, mas sim, um recorte, do fenômeno violência, vivenciado por Genet em uma época específica, bem como, um olhar geral para o mesmo fenômeno, hoje na sociedade em que estamos inseridos. Antes de iniciarmos a análise sobre o tema proposto, destacaremos o que o próprio Sartre, escreveu sobre a intenção de sua obra: Neste texto, os conceitos de jovem e adolescente, não sofrerão nenhuma distinção conceitual, iremos nos referir a eles como sinônimos. 116 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 318 Indicar os limites da interpretação psicanalista e da explicação marxista, afirmar que só a liberdade pode tornar inteligível uma pessoa em sua totalidade, mostrar essa liberdade em luta com o destino – primeiro, esmagada por suas fatalidades, depois, voltando-se para elas, digerindo-as pouco a pouco – provar que o gênio não é um dom, mas a saída que se inventa nos casos desesperados, descobrir a escolha que um escritor faz de si mesmo, da sua vida e do sentido do universo, até nas características formais do seu estilo e da sua composição, até na estrutura das suas imagens e na particularidade dos seus gostos, traçar detalhadamente a história de uma libertação: foi isso que desejei. (2002, p. 546) Sartre teceu uma análise existencialista da vida de Genet, aquele que, durante muitos anos experimentou o abandono pessoal e social como uma forma de existir, “apenas com sua existência, ele já perturba a ordem natural e a ordem social” (Sartre, 2002, p.20). Para Schneider (2008), Sartre mostra em sua obra, uma compreensão existencialista do processo de constituição da personalização de Genet, enquanto alguém que está situado em um contexto sócio-histórico. Quem foi Jean Genet? Ainda bebê, fora abandonado por sua mãe e confiado à Assistência Pública, aos sete anos, fora adotado por um casal de camponeses do interior da França e recebera desta família uma educação pautada em valores religiosos tradicionais e rígidos. Aos dez anos de idade, Genet passa a existir para o Outro, para a sociedade local, para os demais meninos de sua idade, com uma nova identidade, a de ladrão. O menino brincava na cozinha; de repente, notou a sua solidão e foi tomado de angústia, como sempre. Então, ele se ―ausentou‖. Uma vez mais, mergulhou numa espécie de êxtase. Agora, não há mais ninguém ali, uma consciência abandonada reflete os utensílios. Eis que uma gaveta se abre, a mãozinha avança (…) (SARTRE, 2002, p. 29) De repente, uma voz o define por meio de uma frase: (…) Você é um ladrão. (SARTRE, 2002, p. 29) De acordo com Schneider (1977), para Sartre, Genet escolhe-se ladrão. Para compreendermos tal afirmativa, precisamos entender a concepção sartriana de homem e aqui fundamentar-se-á novamente nos escritos de Schneider (1977) que diz, Sartre apoia-se na visão antropológica de que o homem só pode ser compreendido a partir de sua história individual, levando-se em consideração as questões sociais e culturais de sua época. Desta forma, podemos dizer que o homem se faz e é feito nesta relação com o mundo, numa ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 319 dialética consigo e a sociedade, a fim de transformá-las, é a lógica da ação, sempre recomeçada. Cabe aqui, refletirmos sobre o que é que Sartre quis dizer quando, referiu-se a escolha de Genet, em tornar-se um ladrão. Ainda conforme Schneider, (1977), quando o homem escolhe, este ato não é gratuito e nem determinante de seu desejo, mas, uma escolha que se apresenta a partir de possibilidades e frente as quais o homem não pode deixar de escolher, pois não escolher já é uma escolha. A escolha de Genet, foi pautada na sua própria situação quando comparada com a de outras pessoas que viviam naquela comunidade, pois no contexto sócio-econômico em que estavam inseridos, eram definidos a partir de suas posses, ou seja, prevalecia a premissa de que para ser, tinha que ter. O que estava impresso nos valores daquela sociedade onde as pessoas eram definidas em função das terras herdadas, era a forma de existir, as terras herdadas eram carregadas de um modo de ser. Para a Psicologia Existencialista, entende-se por existir, sair de si, transcender, mostrar-se, lançar-se para fora, ultrapassar a situação imediata, fazer-se. De forma paradoxal, Genet só existiria para aquela sociedade capitalista se fosse igual aos demais, proprietário de terras, do contrário, seria apenas um menino pobre, adotivo e desprovido de existência. Diante a possibilidade de ser e de futuro, Genet tenta integrar-se na sociedade, cometendo pequenos furtos. Experimenta-se então um proprietário, passa a ser aquele que possui algo, portanto, poderia ser definido como pertencente aquela comunidade, ocorre que, ao ser flagrado, sua identidade toma outra forma, a de ladrão. ―Não há dúvida, é um roubo. E o roubo é um delito, um crime. O que ele queria era roubar; o que ele fazia, era roubo; e o que ele era: um ladrão‖ (SARTRE, 2002, p. 29). A partir do exposto, podemos dizer que, Genet escolheu-se ladrão, pois vislumbrava ―como única possibilidade de seu ser o de existir na marginalidade‖ (Schneider, 1977, p. 13), mas será que ele, um menino de apenas dez anos tinha consciência reflexiva para compreender qual era sua intenção quando cometia pequenos furtos? Uma voz tímida ainda protesta nele, não reconhece a sua intenção. Mas logo a voz se cala. O ato é tão luminoso, tão nitidamente definido, que é impossível enganar-se sobre a sua natureza. Tenta voltar atrás, compreender; mas é tarde demais, ele não consegue. Esse presente de uma clareza meridiana confere ao passado a sua significação. Genet se lembra agora de que, cinicamente, decidiu roubar. O que aconteceu? Afinal, quase nada: uma ação impensada, concebida e executada na intimidade secreta e silenciosa, onde ele muitas vezes se refugia, acaba de passar para a objetividade. Genet fica sabendo o que ele é, objetivamente. É essa passagem que vai determinar a sua vida inteira. (SARTRE, 2002, p. 29-30). ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 320 Não foi apenas na época de Genet que a situação sócioeconômica, política e cultural levava o sujeito às escolhas equivocadas. A questão é que, ainda hoje, na contemporaneidade vive-se um grande paradoxo, pois por um lado temos a globalização que por meio do avanço tecnológico, atinge de forma imensurável as mais variadas possibilidades de ser, em contrapartida estas possibilidades causam-nos também sofrimento e angústia. (CASTRO e GUARESCHI, 2007), da mesma forma que na época em que Genet era criança, o poder ainda está fortemente associado ao dinheiro que pode comprar produtos de marcas. Para Castro e Guareschi (2007), este aumento do consumismo que vivemos hoje, iniciou na década de 80, por meio do crescimento desenfreado da riqueza e da influência cultural das corporações multinacionais originarias da ideia de que o sucesso estaria em produzir marcas e não produtos. Na sociedade campesina francesa em que Genet vivia, o que definia a forma de ser de cada um dos camponeses, era o número de terras que cada um possuía, atualmente o cenário não está diferente, em ambas as sociedades, a de Genet e a de nossa época, consumir aparece como uma das formas de existência, pois os produtos vêm carregados de um modo de ser (CASTRO e GUARESCHI, 2007). Da mesma forma que a sociedade atribuía a Genet o título de bastardo e filho adotivo, portanto, um não proprietário de terras, deixando-o fora do circuito daqueles que tinham posses, a globalização deixa de fora muitas pessoas que não podem comprar, não podem ter e, assim vive-se a exclusão. Conforme Castro e Guareschi, 2007, o conceito de exclusão aqui mencionado refere-se a um processo complexo, com dimensões materiais, políticas, relacionais e subjetivas, trata-se de um processo sutil e paradoxal, já que somente existe em relação à inclusão, como parte que a constitui. Exclusão enquanto a impossibilidade de partilhar, tendo como consequência a vivência de privação, não é um processo individual, embora atinja pessoas, mas de uma lógica que está presente nas várias formas de relações econômicas, sociais, culturais e políticas da sociedade brasileira. Cabe-nos aqui, a reflexão sobre o que é liberdade de escolha para a filosofia existencialista, para depois articular tal conceito com as escolhas dos adolescentes que cometem algum tipo de infração em nossa sociedade. Estes jovens são livres para escolher, aqui a expressão liberdade esta pautada em limitações, uma liberdade situada, que, segundo Pimenta (1981) não está presente só quando há várias alternativas, mas também quando há apenas uma; aceitar ou negar. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 321 Aceitar ou negar a condição de exclusão, aceitar ou negar que se tem vontade de ter, mas não poder-se ter. O homem opta pelo projeto que vai realizar, pois a liberdade se afirma no realizar, no fazer, ou seja, a liberdade é responsabilidade, que é a capacidade de decidir, de querer, de afirmar ou negar, de aceitar ou rejeitar, é pessoal e intransferível. A liberdade não é uma qualidade que se acrescente às qualidades que já possuía como homem; segundo Angerami (1993) a liberdade é o que precisamente me estrutura como homem, porque é uma designação específica da própria qualidade de ser consciente, de poder negar, de transcender. De acordo com Pimenta (1981) o homem está em constante processo de escolha, na medida em que seu futuro torna-se presente e o seu presente torna-se passado, sendo que ambos sempre contam em função do presente, sendo assim o tempo é a existência, compreendendo que a decisão deste sujeito é considerada como temporalidade um constante se ver como presente, significando o seu passado em relação ao seu futuro, permitindo sempre novas possibilidades de vir-a-ser a partir do que é. Diante do exposto, deve-se pensar que quando o jovem comete algum tipo de infração, este não é apenas vítima de uma sociedade corrupta e capitalista, mas é também um indivíduo livre que pode, por meio de uma consciência mais reflexiva, escolher de forma autônoma e ainda, poder responsabilizar-se por estas escolhas, afinal, ao intervir diretamente sobre a situação sócio-histórica e econômica em que ele, o jovem, se encontra, estará de fato agindo enquanto um ser livre, que age em prol de transformação. Diante do exposto, pode-se pensar que da mesma forma que Genet, muitos são os jovens responsabilizados apenas individualmente por sintomas sociais e pelo mal-estar em que vivemos na contemporaneidade. Interessa, portanto compreender, que ao mesmo tempo em que são considerados pela sociedade e que se consideram vítimas da escassez econômica, cultural e educacional é fato que trazem em seus atos, não apenas uma forma de abandono de ordem social, mas também de ordem emocional, quando não conseguem assumir para si, tampouco para o mundo, que são livres para escolher dentre as opções que se apresentam, não necessariamente a pior, mas muitos destes jovens, escolhem a pior e por meio de suas justificativas, acreditam que não têm outra, senão aquela escolha. Assim, ele escolhe o pior; não tinha outra escolha. Sua vida está traçada: será a viagem no país do desespero. Mais tarde, escreverá: ―Decidi ser o que crime fez de mim‖. Já que não pode escapar à fatalidade, ele será a ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 322 sua própria fatalidade; já que lhe tornam a vida inviável, viverá essa impossibilidade de viver como se a tivesse criado propositalmente para si mesmo, provocação particular só a ele reservada. (SARTRE, 2002, p. 61). De acordo com Charbonneau (1980) este adolescente que está em constante transformação precisa assumir uma postura mediante suas escolhas, necessita tornar-se consciente do mundo, dos outros e de si próprio. Com base nos pressupostos acima mencionados e em conformidade com Sartre (1995) a forma mais desumana possível, desde a falta de alimentos até as mais variadas formas de violência poderá gerar no adolescente uma reação de afrontar-se com o outro numa ação irreflexiva culminada pelo meio em que está inserido. No entanto, pode-se assim intuir-se que, cada vez mais, escolhemos o que faremos com nossa forma de estar no mundo. Entretanto, a pergunta é, de que maneira as escolhas do homem contemporâneo, tem contribuído para que cada vez mais tenhamos crianças e jovens agindo de forma contraria as leis vigentes, ou seja, infringindo leis? Talvez não tenhamos a resposta para a questão acima, pois escrever sobre este tema, é antes de qualquer coisa, estarmos abertos para novas formas de pensar, em especial, pensar que não há um único motivo que possa compreender tal situação. No Brasil, um dos motivos, para a existência da violência, é sem sombra de dúvida a diferença na distribuição de renda e oportunidades, gerando com isso, mendicância, falta de empregos, e tantas outras formas de violência. Este fato não deveria existir, mas vive-se num mundo aonde os recursos de subsistência são precários, aonde a intervenção do homem na matéria para extração dos produtos esbarra com a escassez. (PERDIGÃO,1995). Conforme Nicolau (2007), não se pode afirmar que a miséria resulta em vínculos fragilizados, deve-se considerar que esta insuficiência leva as famílias a gastarem toda a sua energia em busca da sobrevivência, impossibilitando-os aos cuidados com a educação dos filhos, de melhores empregos, atenção nas relações afetivas, cuidados com a saúde, ou seja, essas dificuldades estão presentes numa sociedade excludente, gerando o aumento do índice de criminalidade, tornando-se impossível coexistir fraternalmente. Segundo a Declaração dos Direitos Humanos, no Artigo I, todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos, são todos dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade, porém, esse igual não existe principalmente no que se refere a direitos e de acordo com Zaluar (1999) a cidadania e os ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 323 direitos humanos parecem existir só para determinados grupos dentro da sociedade e a maioria fica excluída, tendo apenas a opção entre trabalhar e/ou ser bandido. Desta forma podemos inferir que o ato de estigmatizar está enraizado desde a formação da sociedade que exclui o diferente, considerando muitas vezes o adolescente em conflito com a lei, não apenas como uma história individualizada, mas como um sintoma social, pois este jovem utiliza do delito para refletir suas dificuldades de enfrentamento com uma sociedade consumista nestes tempos de globalização que exclui o ser pelo ter, o que não significa que isso justifique o ato da violência, mas contribui para uma melhor compreensão deste fenômeno. Isso tudo nos faz pensar que, se não há possibilidades de pertencer e ter as qualidades que o social prioriza, muitos jovens acabam por criar através de ações violentas formas de chegar mais rápido ao poder, as quais estão visíveis na atualidade. A violência é real e se constitui na falta de perspectiva, no estigmatizar, no afastar o outro de direitos que lhe são prioridades como o direito ao trabalho, a moradia, saneamento básico, a educação com qualidade e a saúde com dignidade. Nesse sentido, não podemos pensar o ser do homem como sendo apenas um simples aglomerado de desejos ou modos de se lançar na vida, a exemplo, ser ladrão, estar em conflito com a lei, faz-se necessário, compreender o que há de comum entre os desejos e as escolhas não enquanto tese natural do mundo, uma lei universal, mas acima de tudo, com características relacionais, inseridas em um contexto maior, para Schneider (2008), enquanto nexo de totalização do ser, um ser situado no mundo, em relação com este mundo e um ser-consigo-mesmo, ou seja, agente de seus sentimentos e pensamentos. De acordo com Sartre (2002, p.76) em sua obra Saint Genet, ele relata que Genet foi filho sem mãe, efeito sem causa, que realizou na revolta, no orgulho, na infelicidade, o soberbo projeto de ser causa de si. Por ocasião de um delito particular, um olhar surpreendeu e o constituiu como natureza perversa. Para Sartre (1995, p.24) o homem é condenado a sua liberdade, isto é, vê-se forçado a fazer escolhas diante mesmo do desconhecimento da sua própria existência. Não dá para não fazer escolhas; mesmo a não-escolha já é uma opção escolhida pelo homem, portanto o destino do homem está nas suas próprias mãos. De acordo com este pensamento somos livres para escolher o nosso destino, mesmo que haja o relacionamento com o outro, a interferência do social, a decisão final é do sujeito, o qual deverá assumir as consequências de seus atos. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 324 De acordo com Sartre (1995, p.30) a liberdade implica desfazer um equívoco, segundo o qual a liberdade significaria ter condições de poder fazer o que se quer, ou melhor, significaria uma ausência de impedimentos externos para se alcançar o que se quer, a autonomia do querer, do projetar-se. Cabe aqui ressaltar que a transformação somente ocorrerá, quando o jovem e a sociedade como um todo deixar de pensar-se como vítimas de um contexto sócio-histórico falido e começar por meio de uma consciência mais reflexiva, entender quais são suas intenções diante do ato e poder agir, por meio de diferentes escolhas e estratégias em prol de uma mudança de vida, sendo esta individual e também social. Referências Bibliográficas: ANGERAMI, V.A. Psicoterapia existencial. São Paulo: Pioneira, 1993. CASTRO, A. L. & GUARESCHI, P. A. Adolescentes autores de atos infracionais: processos de exclusão e formas de subjetivação. Psicologia Política 13 (1), 2007, página? CHARBONNEAU, P-E. Adolêscencia e liberdade. São Paulo: E.P.U, 1980. NICOLAU, M J. Revista jurídica. Curitiba: Fonte do Direito, 2007. PIMENTA, S.G. Orientação Vocacional e Decisão – Estudo crítico à situação no Brasil. São Paulo: Loyola, 1981. SARTRE, J- P. Existencialismo e liberdade. São Paulo: Moderna, 1995. ___________. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Trad. Paulo Perdigão. Petrópolis (RJ): Vozes, 2002. ___________. Saint Genet: ator e mártir. Trad. Lucy Magalhães. Petrópolis (RJ): Vozes, 2002. SCHNEIDER, M. Neurose e classes sociais: uma síntese freudiano-marxista. Rio de Janeiro: Zahar, 1977. PERDIGÃO, P. Existência e liberdade: uma introdução à filosofia de Sartre. Porto Alegre: LP&M, 1995. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 325 RAZÃO COMUNICATIVA E OS POTENCIAIS EMANCIPATÓRIOS DO DISCURSO Kátia R. Salomão117 UNIVEL [email protected] RESUMO: O artigo apresenta a postura de Habermas no que tange à crítica àquelas filosofias que depõem contra a razão e a favor de certo tipo de pós-modernidade, que rompem com a modernidade e consequentemente com o esclarecimento. A razão comunicativa na filosofia de Habermas se destaca por repensar a razão, como elemento crucial no projeto da emancipação humana, do esclarecimento kantiano (Aufklärung), ou mesmo, como oponente direto aos processos de ampliação da instrumentalidade e da tecnificação circundantes da ação do homem no mundo. A teoria da ação comunicativa está assentada na construção de uma teoria crítica da sociedade, cuja base normativa repousa nas estruturas do agir comunicativo. Palavras-chave: Razão comunicativa, Filosofia da consciência, Interação. Habermas na década de 80 desenvolveu o conceito de razão comunicativa como alternativa reabilitar a razão, se opondo as filosofias centradas no abalo causado pelas leituras filosóficas que atribuíram descredito na possibilidade de emancipação via racionalidade do sujeito. Com o conceito de razão comunicativa, ele desejou abalar a ‗rigidez cadavérica‘ das leituras e interpretações concedidas à modernidade, desde a crítica hegeliana, que atina a presença de um novo tempo, isto é, o tempo moderno, até os mais recentes discursos embasados nas aporias do poder acalentadas por Nietzsche e seus seguidores. Ao falar de tais filosofias pensa-se no homem contemporâneo inserido no mundo fomentado através do caos da razão instrumental e da ampliação da técnica. Ao longo desse processo, simultaneamente, a sua racionalidade foi reduzida a alienação visceral. O sujeito que mediante a história da civilização ocidental, buscou emancipar-se mediante o A autora é mestre em filosofia pela Unesp/Marília. Professora de filosofia da Univel— União Educacional de Cascavel. Esse artigo é fruto das discussões do grupo de pesquisa Habermas: direitos fundamentais e emancipação social coordenado pela profº Kátia R. Salomão. 117 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 326 uso da reflexão não atingiu definitivamente os potenciais de tornar-se livre ou desenvolver a condição emancipatória da própria autonomia, já que sua razão acabou imersa na dominação que o mesmo praticava sobre a natureza. Nessa condição a moralidade e a eticidade seriam esferas vazias de sentido, pois os sujeitos instrumentalizados no cotidiano, não teriam mais que uma relação heterônoma no mundo da vida. Habermas vai à contramão desse diagnóstico que envolve o homem ocidental, seus valores, princípios e suas relações emancipatórias no mundo vivido. Pensa uma filosofia que confere na racionalidade dialógica a condição para livre pensamento e produção de uma outra razão, distante da noção instrumentalizada que permeia a filosofia da teoria crítica e seus escopos teóricos. Nesse sentido, Habermas segue na construção de um paradigma da razão comunicativa liberado das condições coercitivas presentes na racionalidade instrumental, pois quer estabelecer um resgate do potencial da Aufklärung118, que ainda não está plenamente concluída. Para muitos, apoiados no foco paradoxal, que atinge a vida moderna, da perda de liberdade, do desrespeito pela vida humana e, até mesmo, de seu significado ou, usando a terminologia habermasiana, das crises do capitalismo tardio, essa posição é vista como otimista. Contudo, atentamos que Habermas não descarta os avanços das ciências e tecnologia na modernidade — conquistas inegáveis da racionalidade instrumental — e a história da humanidade ocidental que inexoravelmente mostra o ontem e o hoje de forma clara. Para nosso autor, o hoje é irremediavelmente melhor que o ontem, seja por meio da observação da sociedade grega em que a maioria dos homens não tinha sua cidadania reconhecida, seja na idade média no qual o luxo era resguardado a alguns nobres enquanto o povo tinha o seu imaginário contaminado e garantido pelos laços de vassalagem que mantinha vivo tal ideário. Ou ainda, deve-se considerar, segundo ele, que, apesar de não sermos livres em plenitude racional e reflexiva, também não estamos cegos pela tradição. A modernidade, acima de quaisquer hipóteses, oferece ao homem o direito à vida, à liberdade e à igualdade perante a lei: basta esses homens saberem lutar por tais direitos inalienáveis, sendo que deles consiste no próprio desempenho nas esferas públicas. Em função disso, Habermas confere à sua postura filosófica nova alternativa que, apesar de lidar com o mundo das incertezas, resgata a confiança na cultura ocidental. Mediante tal Apesar de comumente tomadas como idênticas, o Iluminismo refere-se ao movimento francês e Aufklärung, ao esclarecimento alemão, que tem a ver, por sua vez, com o idealismo alemão, o que traz certa especificidade e diferenciação em relação ao francês, portanto, mesmo Habermas não fazendo as devidas distinções, não é correto conceber como iguais. Cf. McCARTHY, 1992, p.86. 118 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 327 perspectiva, se nosso autor estiver correto, precisar-se-ia acreditar na prioridade da razão humana em vista do ontem, do hoje e do amanhã. Por isso, o grande problema que envolve essas filosofias, na visão de Habermas é o desenvolvimento delas, que está arraigado ao paradigma do sujeito e objeto, das filosofias da consciência, relativo ao logocentrismo ocidental119. Exemplos disso são: a dialética do esclarecimento, o diagnóstico nietzscheano do niilismo, e até mesmo, na interação do homem com seu trabalho em Marx, que sofrem da mesma patologia oriunda da relação mediada pelo sujeito e objeto. Diferentemente, ocorre no campo da interação sujeito e sujeito, na qual o reconhecimento da identidade, do eu, depende do reconhecimento do outro; exemplificando, minha identidade depende do reconhecimento do outro. Existe, dessa forma, uma interdependência condicionada na interação entre os falantes, donde surge um novo modelo que opera contra o caráter meramente cognitivo instrumental da racionalidade — o paradigma da linguagem. O potencial humano de incluir a razão como base para a solução dos problemas oriundos do âmbito social e político, para Habermas, estaria ameaçada por uma simplificação da racionalidade, pela qual se foca exclusivamente o aspecto estratégico-instrumental. A unilateralidade dessa razão se revela na história social humana: voltada para o domínio por meio da técnica e da ciência a serviço do mercado, demonstrava sua inadequação ao humano: refere-se mais ou tão somente à eficiência dos meios para atingir os fins (de mercado), que tem subordinado a própria configuração da vida social e cultural (WELLMER, 1991). A teoria da ação comunicativa está assentada na construção de uma teoria crítica da sociedade, cuja base normativa repousa nas estruturas do agir comunicativo, isto é, na comunicação linguística via a pragmática da linguagem. O escopo é embasar um novo conceito de racionalidade que, sem colocar em riscos os propósitos da razão, torna-se capaz de interagir com o pensamento crítico e de oferecer acessos para a filosofia contemporânea pensar um novo modelo de subjetividade para a constituição do estado Na filosofia da consciência, a relação sujeito versus objeto se reproduz de maneira objetivante, de controle teórico e prático do primeiro sobre o segundo. Nesse modelo é a razão subjetiva quem regulamenta as relações fundamentais (representação e ação) que o sujeito estabelece com os objetos. Essas suas funções estão intimamente imbricadas. Pois, por um lado a possibilidade de conhecimento de estado de coisas está diretamente direcionada com a capacidade do sujeito de intervir no mundo. Por outro lado, o sucesso da ação está relacionado com seu nexo causal. Em função dessa interconexão entre o conhecimento e a ação, Habermas define essa razão como subjetiva e instrumental: subjetiva porque privilegia a autoconsciência epistêmica do sujeito cognoscente, em detrimento do objeto cognoscível; instrumental, porque sobre o objeto conhecido o que importa é o controle teórico ou prático. Cf. Aragão, 1997. 119 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 328 humano consciente e integrado a uma nova fase da modernidade, cujo intento é projetar o esclarecimento. Esclarecimento esse que repousa suas bases na Aufklärung kantiana, mas almeja uma ambição menor à capacidade racional humana e ainda foge do paradigma do sujeito e objeto. Posto que a teorização habermasiana não alimenta a preocupação com a fundamentação última da razão, esteja ela voltada para os moldes subjetivos da filosofia da consciência, como estabelece Hegel, ou no modelo da relação epistemológica do sujeito e do objeto originário do purismo da razão kantiana. A respeito deste último, conforme Terra (1998, p. 26): Habermas, com o paradigma da comunicação, radicaliza a perspectiva kantiana, renunciando a uma racionalidade substancial e confiando numa racionalidade procedural. Com a diferença (...) de que, no lugar de uma teoria das faculdades da filosofia da consciência, Habermas propõe uma teoria da argumentação, com a diferenciação em discurso teórico, discurso prático ético-jurídico e crítica estética. De qualquer forma, tratase ainda de uma radicalização da desubstancialização da metafísica levada a cabo por Kant, que vai de par com a primazia progressiva do caráter procedural da racionalidade. Habermas (2000) com o intuito de recuperar o caminho da unidade da razão, como condição para a emancipação do gênero humano, segue buscando amparo nas ciências humanas e sociais, e oferece ênfase a uma perspectiva interdisciplinar, na qual a sociologia, a hermenêutica, as ciências jurídicas, entre outras, surgem como esteio para as análises e explicações, que se referem aos problemas das manifestações anômicas da modernização capitalista oriunda da sociedade burguesa.120 Interessa então aos filósofos, com base em diversificados saberes do âmbito das ciências sociais (Geistwissenschaften), apontar um novo rumo metodológico de análise das manifestações e dos processos racionais que permita demonstrar a contínua interação linguística como formadora da racionalidade não redutível aos fins estratégicos. Diante desse aspecto, é contundente o esforço de instaurar um conceito de razão comunicativa embasado historicamente sem recorrer ao historicismo, e sim, buscar suas bases no método reconstrutivo. As bases do conceito de razão, amparado historicamente, são estabelecidas a fim de aclara no olhar minucioso habermasiano a percepção de que a razão comunicativa não pode resolver as problemáticas que envolvem a modernidade se 120A Sociologia surge como ciência da sociedade burguesa. A ela compete a tarefa de explicar o decurso e as formas de manifestações anômicas da modernização capitalista nas sociedades pré-burguesas (TAC, 1992, v.1, p. 21). ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 329 seus fundamentos estiverem apoiados apenas na subjetividade. Em A Crise de Legitimação do Capitalismo Tardio, Habermas promove uma abordagem sobre a temática relativa à leitura marxista dos problemas inerentes à modernidade e se atém principalmente em relação aos questionamentos da práxis social, que tem inerente o elemento do trabalho e da interação. É assim que para ele nem mesmo Marx, com o paradigma do trabalho, abandonou a relação proposta por Kant da filosofia do sujeito. Pois sua filosofia continua mesmo sendo observada, suas diferenças e críticas, arraigadas às relações que envolvem o sujeito aos objetos. De certo modo, o paradigma do trabalho e da interação em Marx tem o respaldo de ter abandonado o aspecto transcendental em função do mundo material empírico (DFM, 2000). Habermas considera lucrativa a observação marxista, da interação do homem com o trabalho, situado no mundo objetivo. Porém, em sua visão a interação ultrapassa o mundo objetivo, isto é, a interação não é restrita ao mundo do trabalho: ela atinge o mundo individual e social (mundo subjetivo e social), onde pode ser observada a condição do homem que interage consigo mesmo (sujeito), com os outros homens (sujeitos) e também com seu trabalho. Em Horkheimer e Adorno, até mesmo a relação dos homens com os outros homens era correlata ao sujeito que transformava tudo no mundo em objeto para atingir seus fins próprios numa sociedade dominada pelas leis de mercado e na qual a relação dos homens uns com outros havia se coisificado de tal forma, que encobria a consciência e a identidade (ROUANET, 1986). Entretanto, Habermas (2000), não descarta essa condição de possibilidade e oferece no momento da interação dos homens, que aumentem a expectativa da plausibilidade por uma relação que despreze a instrumentalidade e procure a ação orientada para o entendimento, na qual deve ocorrer o consentimento racional e consensual, isto é, deve ocorrer uma ação comunicativa. Em vista disso, esse entendimento orienta a humanidade justamente para um novo tipo de esclarecimento que ocorre paralelamente a formação da esfera pública global. ―Ora, essa atitude dos participantes em uma interação mediada pela linguagem possibilita uma relação do sujeito consigo mesmo distinta daquela mera atitude objetivante adotada por um observador em face das entidades no mundo‖ (DFM, 2000, p. 414-415). A modernidade está impregnada pelas crises endêmicas, isto é, crises econômicas se transformaram diretamente em uma crise social, que afeta o sistema e o mundo da vida e que coloca em risco a interação entre os agentes comunicativos em que as ameaças de colonização sistêmica que se manifestam em formas de crise de acumulação ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 330 periodicamente recorrentes, também apresentam ameaças diretas para a interação social. Habermas compreende na velha ideologia burguesa a inutilidade frente a esse panorama social modificado do capitalismo-tardio, no qual como já prenunciava Marcuse, a ideologia vigente é a tecnocrática e tem tanto um potencial opressor quando um libertador. Assim, são abandonados os pressupostos do marxismo, que fazem uso direto da crítica à base econômica do capitalismo. Portanto, o que inviabiliza a emancipação não são mais as forças negativas advindas da relação de produção do sistema econômico, porém essas forças se inebriaram num tipo de repolitização e se converteram em parte direta do próprio sistema, que se transforma no motivo eleito por Habermas, para explicar a crise da racionalidade. Diante desses pressupostos, a TAC será desenvolvida, ao lado das noções de mundo da vida e de sistema. Aquele, no qual ocorrem as relações sociais e as representações simbólicas é constituído por três componentes estruturais: a cultura, a sociedade e a personalidade. Este, o sistema, compreende um conjunto de instituições específicas, sejam elas econômicas, políticas ou mercadológicas, cujas racionalidades vigentes em cada esfera apresentam suas especificidades, posto que norteadas de acordo com os princípios inerentes a cada esfera seja do sistema ou o mundo da vida. O compromisso assumido é o de pensar sobre um conceito de razão distanciandose tanto das aporias do poder quanto das próprias críticas pronunciadas a ela—que sutilmente, ao que indica, tiveram suas bases assentadas na teoria marxista — ou seja, Habermas quer ir além da teoria crítica, além do niilismo e para além da dialética negativa. Sob o conceito de razão comunicativa, ele propõe, por um lado, uma alternativa as aporias do poder e, por outro, lança luzes sobre as contradições impingidas à sociedade ocidental pela racionalidade instrumental. Com isso, Habermas quer resgatar a possibilidade da emancipação pelo uso da razão, até mesmo pelo ―uso da razão pública‖, como está evidenciado em sua obra Mudança Estrutural da Esfera Pública e por meio da revisão do projeto do esclarecimento. Segundo Habermas, esse conceito procedural de racionalidade é mais amplo e rico que a racionalidade instrumental, que, assentada na filosofia da consciência, sobrelevava seu aspecto cognitivo estratégico. O conceito de racionalidade comunicativa é a explicitação do potencial da razão de amparar e fundamentar na condição da validade do discurso, sua anuência tanto no sistema quanto no mundo da vida, interpretados sempre a partir de uma compreensão descentrada: Essa racionalidade comunicativa lembra as mais antigas representações do logos, na medida em que comporta as conotações da capacidade que tem um discurso de unificar sem coerção e instituir um consenso no qual ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 331 os participantes superam suas concepções inicialmente subjetivas e parciais em favor de um acordo racionalmente motivado (DFM, 2000, p. 437). Ao analisar as tendências do pensamento contemporâneo de abrir mão do elemento da razão, a preocupação de Habermas é a de garantir um novo paradigma que respeite o conteúdo normativo e também o estético-expressivo, a fim de preencher a lacuna deixada pela razão subjetiva objetivadora, quando revela e denuncia a opressão do universal (razão subjetiva), sobre o particular (razão intersubjetiva). Na medida em que possibilita aflorar o potencial esquecido do outro da razão, ao mesmo tempo em que considera as condições pluralistas latentes na modernidade, é que ele passa a pensar na relação do agente que se revela e interage com os outros atores sociais. O outro da razão pode ser explicado na teoria habermasiana, em consideração à interação mediada pela linguagem que possibilita uma relação do falante consigo mesmo, distinta daquela atitude objetivante adotada por um observador face às entidades no mundo. O outro da razão, já não é mais o todo cindido. O outro da razão é a natureza, o corpo humano, a fantasia, o desejo, os sentimentos; ou melhor: é tudo isso na medida em que a razão não pode se lhe apropriar. Agora são imediatamente as forças vitais de uma natureza subjetiva perdida e oprimida; são os fenômenos do sonho, da fantasia, da loucura, da excitação orgástica e do êxtase, redescobertas no romantismo; são as experiências estéticas, centradas no corpo próprias de uma subjetividade descentrada que desempenham a função de lugartenente do outro da razão (DFM, 2000, p. 427). A sociedade é apresentada como uma práxis, na qual a razão está incorporada. Essa práxis é realizada historicamente e é dela que emana a racionalidade comunicativa. Habermas, nesse sentido, assimilou o conceito de práxis social de Marx, no qual promove uma releitura do conceito de trabalho em que o relaciona diretamente com o conceito de interação. Para Habermas, foi Hegel quem inicialmente desenvolveu uma conexão dialética entre trabalho e interação121, mas que num exame mais atento reconhece que a filosofia de A relação entre trabalho e interação pode ser observada na relação do reconhecimento unilateral do senhor pelo escravo, mas que na Fenomelogia do Espírito acabou ocupando uma posição inferior e somente recebe atenção na Enciclopédia, no qual a ―linguagem, o trabalho e a ação baseada na reciprocidade não só eram etapas do processo de formação do espírito, mas princípios de sua própria formação‖. Essa relação ―(...) constroem-se agora só como relações reais subordinadas: a linguagem surge mencionada na filosofia do espírito subjetivo, na transição da imaginação para a memória numa nota bastante ampla (§459), ao passo que o trabalho desaparece enquanto ação instrumental em geral e, em vez disso, caracteriza como trabalho social, sob o titulo de sistema das necessidades, uma importante na evolução do espírito objetivo‖. Apud. Habermas, J. Trabalho e Interacção. In:Técnica e Ciência como Ideologia. Lisboa: Ed. 70, 1987a, p. 35, 42-43. 121 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 332 Hegel não esclareceu a relação entre trabalho e interação satisfatoriamente. Habermas, por meio do posicionamento dos conceitos de trabalho e interação na práxis social, está novamente se opondo a situação da razão instrumental totalizadora presente na primeira teoria crítica, em que a natureza interna é instrumentalizada simultaneamente com a instrumentalização da natureza exterior. Amparando a razão comunicativa na leitura de uma práxis que incorpora a razão por ela se manifestar no tempo histórico, mesmo a ação sendo instrumental, objetiva, voltada para o mundo do trabalho, é possível, mediante essa compreensão dessa práxis social na qual a razão está situada, a interação entre a natureza subjetiva (interna) de casa indivíduo, na busca pela supressão de suas necessidades de sobrevivência, com uma natureza objetiva (externa) do trabalho. ―Essa práxis social é o lugar em que a razão historicamente situada, corporalmente encarnada com a natureza exterior faz a mediação concreta com o seu outro‖ (DFM, 2000, p.424). O modelo da relação sujeito e objeto só permite pensar o aspecto cognitivo instrumental, e o processo comunicativo possui em si mesmo outros aspectos que devem ser considerados. No intuito de estabelecer respaldo a esses conteúdos, seja de ordem normativa ou estético-expressiva, Habermas (TAC, 1992), toma de J. L. Austin a ideia de que todo emprego do agir comunicativo, ocorre por meio de um ato ilocucionário. Austin demonstrou que ao proferirmos alguma coisa, simultaneamente fazemos alguma coisa. E, Habermas, procura provar que, como locutores, ao pronunciarmos sentenças variadas, apresentamos um núcleo universal a elas, a saber, as situamos como sequências de símbolos linguísticos que constituem, num sistema de pretensões de validades (verdade, inteligibilidade, retidão/correção, veracidade/autenticidade), nosso fazer/agir comunicativo. Consequentemente, cada indivíduo busca pretensões de validade (Geltungsansprüche) com relação a proposições dispersas na tríplice dimensão do mundo objetivo, social e subjetivo: o elemento proposicional para expor o estado das coisas diante do mundo objetivo; o elemento ilocucionário para contrair relações interpessoais no mundo social, normativo; finalmente, os componentes linguísticos que expressam as intenções dos falantes no mundo das vivências e emoções: (…) a utilização comunicativa de saber proposicional em atos da fala, estamos tomando uma decisão inicial em favor de um conceito de racionalidade mais amplo está ligado à velha ideia de logos. Este conceito de racionalidade comunicativa possui conotações que, em última instância, remontam à experiência central da capacidade de se reunir sem coações e gerar consenso. Este tem uma fala argumentativa em que diversos participantes superam a subjetividade inicial de seus respectivos pontos ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 333 de vista, graças a uma comunidade de convicções racionalmente motivada. Os participantes se asseguram, ao mesmo tempo, da unidade do mundo objetivo e da intersubjetividade do contexto em que desenvolvem suas vidas 122. Os participantes do discurso têm a condição de ora questionar a validade, ora aceitá-la parcimoniosamente. Assim, se aceitarem inquestionavelmente, o entendimento consensual é um resultado imediato, porém falho. Mas, se recusarem surge dissensos que levantam a pretensões de validade arbitrárias e imbuídas de interesses, nas quais estão envolvidos os participantes dos discursos que procuram condicionar sua argumentação. Logo, quaisquer tentativas de manipulação do consenso no discurso, o resultado, então, não é um entendimento comunicativo racional. Desse modo, é necessário mencionar que Habermas identifica duas dimensões da racionalidade que também são devedoras da noção de sociedade complexa weberiana, que estão análogas ao mundo da vida e aos sistemas sociais, como da ideia de práxis social. A primeira dimensão da racionalidade é a do trabalho ou ação racional teleológica constituída pelas ações instrumentais ou pelas escolhas racionais, ou ainda, uma combinação entre ambas. Elas podem ser observadas nas ações técnicas do homem no mundo objetivo que ao buscarem sua subsistência, em que o ator de uma ação elege os meios mais congruentes, e os aplicam de uma maneira adequada para atingir o fim almejado no início da ação. A segunda dimensão é a da ação comunicativa que é uma interação simbolicamente mediada entre os concernidos. O objetivo dela é o entendimento recíproco que funciona, segundo Habermas, como um mecanismo coordenador da ação, por meio do qual os participantes da interação reconhecem a intersubjetividade compartilhada e apostam suas pretensões de validade, ou até mesmo reavaliam suas pretensões a fim de obterem sucesso (HABERMAS, 1997, p. 493). Entretanto, a ação racional teleológica se desdobra em ação estratégica e ação instrumental: converte-se em racionalidade estratégica a ação do ator que calcula um meio para atingir um fim em vista de atingir o objetivo da maximização utilitarista. Esse participante da ação interage com outros atores dando margem a uma interação regida por (...) la utilización comunicativa de saber proposicional en actos de habla, estamos tomando una predecisión en favor de un concepto de racionalidad más amplio que enlaza con la vieja idea de logos. Este concepto de racionalidad comunicativa posee connotaciones que en última instancia se remontan a la experiencia central de la capacidad de aunar sin coacciones y de generar consenso que tiene un habla argumentativa en que diversos participantes superan la subjetividad inicial de sus respectivos puntos de vista y merced a una comunidad de convicciones racionalmente motivada se aseguran a la vez de la unidad del mundo objetivo y de la intersubjetividad del contexto en que desarrollan sus vidas (TAC, 1992, v.1, p. 27). 122 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 334 meios, que são mediadas linguisticamente e em que a comunicação se torna um meio como outro qualquer de manipulação para se alcançar o comportamento desejado, isto é, o êxito da ação. Portanto, o resultado da ação também depende de outros atores, na qual cada um luta pelo êxito de sua pretensão de validade, e esses participantes da argumentação, só se comportam cooperativamente se identificarem suas pretensões, logicamente umas com as outras. Diante disso, os participantes devem estar preparados cognitivamente, porque não somente irão lidar com o mundo dos objetos físicos, como também com outros agentes no mundo da vida. Já a racionalidade instrumental se identifica pelas ações, que têm em vista a troca de poder entre os participantes que orientam seu êxito particular, e leva em conta a dinâmica racional do mercado e as relações de dominação ou de poder político voltadas ao controle, nas quais se estabelecem como médium o dinheiro ou o próprio poder. Diante da noção de ação estratégica e instrumental, e das suas diferenciações, é possível perceber uma interlocução entre trabalho e interação ou mesmo, uma associação direta das formas de racionalidade que derivam dessas dimensões. Ao passo que na racionalidade teleológica diferenciada em aspectos estratégicos, é promovida a invasão das outras esferas da sociedade, em que deveria preponderar a interação ou ação comunicativa, mas que conduz para um tipo de colonização do mundo da vida que compromete o entendimento recíproco. Um falante faz valer uma pretensão de validade susceptível de crítica estabelecendo com sua manifestação uma relação pelo menos com um «mundo» e fazendo uso da circunstância de que essa relação entre ator e mundo é em princípio acessível a um reconhecimento objetivo para convidar a seu oponente a uma tomada de postura racionalmente motivada. O conceito de ação comunicativa pressupõe a linguagem como um médio dentro do qual tem lugar um tipo de processo de entendimento em cujo transcurso os participantes, ao relacionar se com um mundo, se apresentam uns frente aos outros com pretensões de validade que podem ser reconhecidas ou postas em questão123. Parte-se de um saber proposicional mediado linguisticamente, que sofreu algum tipo de influências subjetivas dos participantes do discurso, que tomaram suas decisões no Un hablante hace valer una pretensión de validez susceptible de crítica entablando con su manifestación una relación por lo menos con un «mundo» y haciendo uso de la circunstancia de que esa relación entre actor y mundo es en principio accesible a un enjuiciamiento objetivo para invitar a su oponente a una toma de postura racionalmente motivada. El concepto de acción comunicativa presupone el lenguaje como un médio dentro del cual tiene lugar un tipo de procesos de entendimiento en cuyo transcurso los participantes, al relacionarse con um mundo, se presentan unos frente a otros con pretensiones de validez que pueden ser reconocidas o puestas en cuestión (TAC, 1992, v.1, p. 136). Ver também p.126-127. 123 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 335 âmbito de favorecer o êxito de uma ação estratégica, com o enfoque de manipular as informações consoante com a adaptação delas ao mundo objetivo ou sistêmico. Em contrapartida, pode-se iniciar um novo processo, que tem o médium da linguagem como regulador, no qual as posições dos interlocutores serão ajustadas reciprocamente por meio da argumentação discursiva em busca do entendimento, até que se forme uma posição racionalmente aceitável, por meio da qual são atingidas as pretensões de validez discursivas, cujo propósito é se oporem à noção de interação estratégica. Contudo, pode-se considerar o momento da racionalidade comunicativa aquele personificado na capacidade consensual dos participantes da comunidade de comunicação, que é tão justa quanto injusta, já que não há plena integração social entre o mundo objetivo das coisas, o mundo social das normas e o mundo subjetivo das vivências e emoções. Na medida em que investimos na especulação tangível aos atos de fala inerentes à racionalidade comunicativa, tomamos também, simultaneamente, a decisão em favor de um conceito que tem potencialidade de se adequar ao novo éthos da modernidade. Nesse novo éthos serão racionais não as proposições que correspondem à verdade objetiva, contudo as que tiverem em seu conteúdo de validade prescritos os requisitos racionais da argumentação e contra-argumentação, da prova e da contraprova, visando um entendimento mútuo entre os participantes (ROUANET, 1989). Nesse novo éthos, a modernidade é avaliada por meio da perspectiva da crescente racionalização, e diferente do que ocorre na leitura dos filósofos herdeiros das aporias do poder, a leitura que Habermas promulga para a filosofia weberiana, é crítica e distinta. Na racionalidade comunicativa, o desencantamento das imagens míticas do mundo, não carrega em seu cerne apenas a característica da racionalidade instrumental difundida na tecnocratização. Ademais, diante da crescente racionalização, Habermas nega que ocorra a ausência de sentido para a modernidade. Nesse sentido, ele percebe que, somado ao aumento gradual da racionalização, é que no mundo aflora uma capacidade reflexiva concedente de uma abertura, na qual os homens podem vir a atingir níveis de autonomia. O pensamento habermasiano, quando propõe uma releitura da Aufklärung, destina incondicionalmente ao homem a condição de ser heterônomo no mundo, mas com capacidade de atingir níveis de autonomia de acordo com desenvolvimento do juízo moral. Diferentemente de Kant, não haveria a situação de uma autonomia plena, a não ser sob a circunstância da hegemonia da moral pós-convencional. Nossa consideração pode resumir-se, dizendo que a racionalidade pode ser entendida como uma disposição dos sujeitos capazes de linguagem e ação. Se manifesta em formas de comportamento para elas, que existem ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 336 em cada caso boas razões. Isto significa que as emissões e manifestações racionais são acessíveis a um reconhecimento objetivo. O qual é valido para todas as manifestações simbólicas que, ao menos implicitamente, está vinculada a pretensões de validade (pretensões que guardam uma relação interna com uma pretensão de validade suscetível a crítica). Todo o exame explícito de pretensões de validade controversas requer uma forma, mas exigente de comunicação, que satisfaça os pressupostos próprios da argumentação124. Resumidamente, para Habermas não é a modernidade que estaria esgotada de seu sentido original. Entretanto, seria o argumento paradigmático usado como condição para sua interpretação e entendimento, que equivocadamente lhe tolhe uma visualidade completa das suas possibilidades, o que serviu para anular uma outra leitura a exemplo daquela frankfurtiana fortemente influenciada por Nietzsche da instrumentalidade que conduz a ausência total de sentido, isto é, a leitura concernente ao niilismo petrificado no mundo da vida. Conforme Habermas paradigma da filosofia da consciência está esgotado. O que pode dissolver os sintomas do esgotamento ofertados à modernidade é um novo paradigma, o do entendimento recíproco que leva em conta o agir comunicativo enquanto característica fundamentalmente moderna, ou seja, a racionalidade comunicativa é algo pertencente aos novos tempos. Kosselleck (2004) formula a questão, a saber, quando o nostrum aevum, o nosso tempo passa a ser denominado novo aetas, os novos tempos. Para Habermas, somente as aberturas e especificidades desses novos tempos permitem vislumbrar algo como a racionalidade comunicativa, que preserva em seu cerne aquilo que conduz para além da razão estratégico-instrumental. No paradigma do entendimento recíproco à atitude dos participantes da interação, conduzem as ações sobre um discurso linguisticamente articulado, no qual passam a vislumbrar o consenso e a faticidade do mesmo. As pretensões de validade surgem nos processos de argumentação e se desenvolvem por meio dessas suposições, para evitar a inoperância do entendimento mútuo entre os envolvidos. A teoria de Habermas trilha a reconstrução de uma racionalidade livre de qualquer dogmatismo e procura instaurar a autonomia dos agentes racionais que competem entre si para estabelecer um consenso intersubjetivamente Nuestras consideraciones pueden resumirse diciendo que la racionalidad puede entenderse como una disposición de los sujetos capaces de lenguaje y de acción. Se manifiesta en formas de comportamiento para las que existen en cada caso buenas razones. Esto significa que las emisiones o manifestaciones racionales son accesibles a un enjuiciamiento objetivo. Lo cual es válido para todas las manifestaciones simbólicas que, a lo menos implícitamente, vayan vinculadas a pretensiones de validez (o a pretensiones que guarden una relación interna con una pretensión de validez susceptible de crítica). Todo examen explícito de pretensiones de validez controvertidas requiere una forma más exigente de comunicación, que satisfaga los presupuestos propios de la argumentación (TAC, 1992, v.1, p. 41-42). 124 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 337 compartilhado e livre de coerção. Esse ideal de razão busca resgatar o potencial emancipatório iluminista ainda não esclarecido. É uma perspectiva que quer garantir as conquistas da tradição do pensamento ocidental. Dessa maneira, o paradigma da razão comunicativa não pode ser entendido como uma simples troca de conceito. A razão comunicativa propõe restabelecer o potencial emancipatório da razão, que ficou prisioneiro na sua dimensão subjetiva que legisla, ordena e controla a natureza e as relações humanas através da tecnocratização e da racionalidade científica reinante. Para tanto, Habermas não se coloca contra os avanços conquistados pela racionalidade instrumental. Ele mesmo afirma que são inegáveis as conquistas no campo da ciência e da tecnologia. Portanto, ao propor o conceito de razão comunicativa como alternativa à crise da racionalidade moderna, ele aponta uma saída para as aporias da filosofia do sujeito, e oferece a alternativa de depositar confiança na cultura ocidental, que não obstante suas crises procuravam-se compreender sob o signo da razão. Assim, a pertinência e a força desse paradigma de racionalidade intersubjetiva residem na própria decisão em favor da razão, equivale à antecipação de uma sociedade emancipada, ou seja, à antecipação da maioridade realizada dos homens. Sumariamente, o conhecimento instrumental conduzido por meio da técnica e pela ciência, teria o objetivo de libertar o homem do medo da natureza adversa a ele, por meio do trabalho e da produção, o que resultou no domínio dela por ele. O antídoto a essa dominação do homem na natureza, seria a ação comunicativa. A razão comunicativa tem a força libertadora como marca principal e por isso rompe com qualquer tipo de repressão social externa ou intrapsíquica, que se choca diretamente com a premissa de Horkheimer e Adorno de que a dominação atingiu irredutivelmente a consciência dos homens. A razão comunicativa é o antídoto da modernidade e é por ela que se pode resgatar a unidade perdida da razão, e ainda apreender o esclarecimento (Aufklärung) como projeto inacabado. Referências Bibliográficas: ARAGÃO, L. M. C. Razão Comunicativa e Teoria Social Crítica em Jügen Habermas. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1997. HABERMAS, Jürgen. Mudança Estrutural da Esfera Pública: Investigações quanto a uma categoria de uma sociedade burguesa. Trad. Flávio R. Kothe. Rio de Janeiro: tempo brasileiro, 2003. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 338 ___________. Aclaraciones a la ética del discurso. Madrid: Trotta, 2000. ___________. Perfiles Filosófico-políticos. (Trad. Manuel Jimènez Redondo). 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A partir de um comparativo, busca-se compreender as construções históricas das fronteiras externas entre os países em questão, uma vez que a apropriação dos territórios e a construção dos espaços sociais não se limitaram ao marco geográfico, mas mobilizaram, entre conflitos, disputas, tensões, ameaças entre sujeitos sociais e a ação de agentes políticos e econômicos, ações em busca do fortalecimento de relações de poder em vista em vista da construção da soberania nacional. Além de analisar os conflitos nas fronteiras externas, a discussão das disputas territoriais nas fronteiras internas de ambos os países merecerá atenção especial, tendo como referência o estudo dos conflitos que ocorreram na região Sul do Brasil, nos Estados do Paraná e Santa Catarina, e na Região da Patagônia nas Pronvincias de La Pampa e Rio Negro. Palavras-chave: Relações de Poder. Argentina. Brasil. O estudo das disputas e ocupação das fronteiras é de extrema importância para a compreensão histórica da questão agrária na fronteira, tendo a sua origem no próprio processo de ocupação das terras devolutas. Ao longo dos anos a estrutura agrária da fronteira, é decorrente da exploração e expropriação de famílias que viviam na zona rural e possuíam unicamente ou pouca coisa além da sua posse e da força de trabalho. Dessa maneira, a constituição da fronteira passou a desempenhar um papel central na formação do Estado e da economia, através das disputas litigiosas em tais regiões a serem ―ocupadas‖. Apesar da existência de várias pesquisas sobre o tema fronteiras, isso não significa que haja um esgotamento das investigações das fontes sobre a forma de ocupação e de exploração econômica da área geográfica de abrangência desta pesquisa e os conflitos históricos resultantes desse processo. Persistem, ainda, várias lacunas e inúmeros pontos ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 340 ainda pouco explorados pelos historiadores que se dedicam ao estudo das fronteiras entre Argentina e Brasil. A construção das fronteiras externas125 entre países e as fronteiras internas126 entre Estados e municípios são processos complexos associados a conflitos de natureza diversa, tanto na sua expressão político-diplomática, quanto em relação à disputa dos territórios. A fronteira envolve conflitos possessórios, políticos, econômicos, sociais e culturais. A formação das fronteiras externas comporta, em geral, a intervenção estatal, ou militar, na apropriação e legitimação dos territórios. A atuação desses aparelhos foi historicamente decisiva para desequilibrar a disputa pela posse das regiões de fronteiras, especialmente nas regiões transnacionais situadas na curta linha de fronteira externas entre a região do Sul do Brasil e a Região do Norte Grande Argentino da Argentina. Na era pós-colonial e de construção dos Estados-Nação na América Latina, a construção/delimitação da fronteira territorial segue este padrão geral. Ligia Osório Silva (2003), entende que nos Estados Unidos a fronteira teria promovido o desenvolvimento da democracia social e política, uma vez que a existência de ―terras livres‖ a oeste e uma legislação que disponibilizava o acesso a elas aos imigrantes evitara o conflito social, característico das sociedades europeias do século XIX. A existência de ‗terras livres‘ foi determinante na edificação da democracia americana, porque enquadradas por uma legislação agrária que as tornava acessíveis a contingentes significados de população, gerou oportunidades de ascensão social numa escala incomparável com as existentes nas sociedades europeias127 Na Argentina e no Brasil, cuja fronteira terreste foi delimitada entre 1857 a 1895, a construção de fronteiras externas e internas não foram exceção a democracia, aos conflitos Neste estudo o conceito de fronteiras externas, tem como referência empírica os territórios argentino e brasileiro, que não se limitaram ao marco geográfico, mas mobilizaram, entre ameaças conflitos e tensões, sujeitos sociais e agentes políticos e econômicos em busca de novas oportunidades, quer para fortalecer as relações de poder, quer para a construção de territórios que facultassem espaços de vivências para a recriação de identidades. Cf. SCHALLENBERGER, Erneldo. Fronteiras em movimento e Território em construção: O caso do Paraná. In. COLOGNESE, Silvio Antonio. (Org.) Fronteiras e Identidades Regionais. Cascavel: Coluna do Saber, 2008. 126 Procuramos mostrar como noção de fronteira interna a demarcação territorial de municípios, de estados e mesmo de fazendas e/ou entre fazendeiros e sítios. Muitos pesquisadores não deram muita atenção ao tema, que na ótica de Motta e Machado (2008), talvez seja resultado de um processo de naturalização dos marcos territorial, ou ainda, como fruto de uma política de produção de amnésia social. Sendo, dessa maneira, encobridora dos conflitos de terra que gestaram ou consolidaram (como natural), um determinado lugar, território, ou espaço, em uma área de um recorte espacial maior: ―o país”. 127 Cf. SILVA, Ligia Osório. Fronteira e Identidade Nacional. Anais do V Congresso Brasileiro de História Econômica e 6ª Conferência Internacional de História de Empresas. Caxambu, MG: ABPHE, 2003. 125 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 341 diplomáticos em relação a posse. É este processo social que constitui o objeto central desta tese. Procuramos aqui analisar em uma ―região transnacional‖ os conflitos agrários entre Argentina e Brasil. Nessa curta linha de fronteira que separa o Sul do Brasil do Norte Grande Argentino da Argentina. Procuramos desenvolver um estudo comparativos dos conflitos que aconteceram nas fronteiras externas internas de ambos os países, na região Sul do Brasil, nos Estados do Paraná e Santa Catarina e na Região da Patagônia nas Pronvincias de La Pampa e Rio Negro. Partindo da análise de Ligia Osório da Silva, que a experiência da fronteira como responsável pela formação destas sociedades não penetrou com a mesma força as análises dos historiadores e cientistas sociais latino-americanos. Ao contrário de algumas teses algumas apresentadas pela historiografia argentina e brasileira, consideram a experiência das fronteiras como responsável para formação da identidade nacional e das suas instituições. Sabemos que a experiência histórica da construção desta fronteira nacional foi marcada por prolongadas negociações diplomáticas, por tensões e conflitos militares.128 Dispomos de muita informação e análises sobre este processo quando visto de cima; pouco dele conhecemos quando queremos apreender a sua incidência no dia da dia das populações residentes nos territórios de fronteira, aferir a sua interação com os poderes e as instituições neles projetados ou constituidos, bem como as relações que se constroem entre as populações estabelecidas e as adventícias. A construção das fronteiras externas e internas entre a Argentina e o Brasil é contemporânea e envolveu embates entre o homem branco, índios, militares, colonos, posseiros e grileiros. Demonstra o imenso terreno que pode ser percorrido por historiadores quando se tem como referência a problemática de estudo a fronteira. Para José de Souza Martins (1997, p.13), ―ela é fronteira de muitas e diferentes coisas, como fronteira da civilização (demarcada pela barbárie que nela se oculta), fronteira espacial, Vários autores apresentaram esta temática, a exemplo de Reidy e Murray, Conferencias de 1915, (1916); Santiago Arcos, La Plata (1865). Antônio Augusto Cançado Trindade, Repertório da prática brasileira do Direito Internacional Público (Período 1889-1898); Coronel J. S. Torres Homem, Annaes das Guerras do Brazil com os Estados do Prata e Paraguay (1911); Synésio Sampaio Goes, Navegantes, Bandeirantes e Diplomatas: Aspectos da descoberta do continente da penetração do território brasileiro extra-Tordesilhas e do estabelecimento das fronteiras da Amazônia (1991); Nelson Wernack Sodré, O que se deve ler para conhecer o Brasil (1988); Domingos Nascimentos, Pela Fronteira (1903); Domingo Faustino Sarmiento, Campaña del ejército grande (1852), Conflicto y armonía de las razas en América (1883), Facundo o civilización y barbárie (1952); Esteban Echeverria, El Matadero (2010); José Hernández, La Vuelta de Martín Fierro (2010); Horácio Quiroga, Cuentos (2004). 128 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 342 fronteira de culturas e visões de mundo, fronteiras de etnias, fronteira da História e da historicidade do homem. E, sobretudo, fronteira do humano‖. Percebe-se que o estudo da fronteira possibilita novas abordagens para o historiador. E é possível analisar a fronteira para além da delimitação territorial, além do conceito de fronteira nacional, chegando à compreensão das fronteiras externas e internas de ambos os países. A perspectiva desse estudo é compreender os conflitos em torno de espaços já ocupados, já que alguma tese apontam esses espaços como ―vazios‖ na região de fronteira da Argentina e Brasil. Os países buscavam manipular o simbolismo da fronteira, intervindo principalmente por razões geopolíticas, econômicas e demográficas, ou seja, sendo conveniente descolar frentes de migrações para as regiões de fronteira tanto para garantir a posse quanto a sua soberania. É este processo social que constitui o objeto central desta tese. Procuramos aqui analisá-lo numa ―região transnacional‖ que se situa na curta linha de fronteira externas entre a região do Sul do Brasil e a Região do Norte Grande Argentino e os conflitos nas fronteiras internas nos Estados do Paraná e Santa Catarina (BR) e na Região da Patagônia nas Pronvincias de La Pampa e Rio Negro (ARG). Entende-se que nessa região transnacional as fronteiras externas e internas entre Argentina e Brasil têm semelhanças nas construções de seus espaços, e que a diferença entre esses locais se apresenta na criação de cenários contraditórios, nos quais intelectuais, políticos, militares, comerciantes, indígenas, colonos e posseiros de diferentes nacionalidades viviam, se relacionavam, intervinham no meio ambiente e, assim, teciam formas de sobrevivência num ambiente transfronteiriço. A historiografia oficial da Argentina compreende a fronteira como ―espaço vazio‖, como ―o espaço improdutivo‖, mesmo que ocupado pelos índios, ou seja, aqueles territórios não efetivamente era integrados ao território nacional e ao projeto de desenvolvimento nacional. Na historiografia brasileira a ocupação dos espaços vazios teve a perspectiva de ocupação dos espaços vazios na fronteira oeste como processo de domínio territorial em relação às países vizinhos. Porém, a característica principal de sua ocupação aconteceu pelo processo de valorização das terras. A partir do estudo das disputas entre Argentina e Brasil pela definição de limites entre os países, parte-se do pressuposto que antes da definição territorial, a fronteira representava um campo de tensão entre dois estados nacionais emergentes com seus territórios em construção. Partimos da hipótese que os conflitos pela posse das terras contribuíram para a ocupação e delimitação dos espaços transnacional para fins de ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 343 interesses econômicos e políticos, contribuindo, assim, para a definição das fronteiras externas. A apropriação das terras da região transnacional surgem em meados do século XIX, a partir da criação de leis agrárias que separaram juridicamente as terras públicas das privadas, estabelecendo a compra como maio fundamental de aquisição de domínio. Neste estudo demonstraremos que na Argentina e no Brasil o padrão de ocupação das áreas fronteiriças se afastou do modelo de ocupação das fronteiras estadunidense defendido por Frederick Jackson Turner. Lá, como referido anteriormente, teria promovido o desenvolvimento da democracia social e política, uma vez que a existência de áreas livres a oeste do país disponibilizava o acesso aos imigrantes e evitara o conflito social, característico das sociedades europeias do século XIX. A especulação, a concentração e a apropriação das terras devolutas geraram, os confrontos e conflitos contra os índios, colonos, posseiros e grileiros. Desta forma, entender as relações de poder que nortearam as disputas, os conflitos e o exercício da hegemonia de grupos locais e regionais. Entende-se que na fronteira interna a violência é compreendida como processo econômico, social, político e cultural de ocupação da terra. A discussão acerca da formação do mercado de terras, configurado nas chamadas fronteiras agrícolas da Argentina e do Brasil, assume desta forma importância relevante para o entendimento da reprodução e/ou manutenção da propriedade, bem como para a compreensão da luta pela terra empreendida pelos segmentos sociais envolvidos neste processo. Referências Bibliográficas: AUBERTIN, Catherine; LÉNA, Philippe. Apresentação. In. AUBERTIN, Catherine (Org.). Fronteiras. Brasília: Editora Universidade de Brasília; Paris: ORSTOM, 1988. DJENDEREDJIAN, Julio. Expansión Agrícola y Colonización em Entre Ríos, 1850-1890. Dessarrollo Económico, vol. 47, nº188 (enero-marzo 2008). ECHEVERRÍA, Esteban. El Matadero. disponível em: www.elaleph.com acessado em 14 de abril de 2010. FOWERAKER, Joe. A luta pela terra: a economia política da fronteira pioneira no Brasil de 1930 aos dias atuais. Rio de Janeiro: Zahar Editores S.A. 1981. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 344 HERNÁNDEZ, José. 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Segundo os referidos autores, o objetivo primeiro da filosofia é a criação de conceitos; sendo que, o filósofo é aquele que se envereda pelo mundo, aquele que experimenta o mundo e seus contágios. Assim sendo, neste trabalho – assim como Deleuze e Guatarri – nos enveredamos por diversos territórios buscando entender alguns conceitos por eles propostos, tais como o conceito de Ritornelo – importante para estabelecer a relação entre território e desterritorialização. Para tal intento, trataremos do que D&G designam como Geografia do conceito, e por conseguinte, do que eles denominam como Linhas de fuga. Sempre procurando evidenciar o caráter criativo da atividade filosófica. Palavras-chave: Geografia-do-conceito. Ritornelo. Desterritorialização. Linhas-de-fuga. Geografia do conceito Segundo Gilles Deleuze e Félix Guatarri (1992), o objetivo primário da filosofia é a criação de conceitos, quiçá, este seja o único e maior propósito para a atividade filosófica. Nesse sentido, o filósofo é aquele que experimenta o mundo, aquele que abandona o antigo e conhecido pressuposto que infere a contemplação do mundo como atividade última do filósofo. Como explanado, é da criação de conceitos que a filosofia se estabelece, uma vez que, seu propósito é criá-los. Assim, o filósofo é aquele que cria um novo mundo, que cria ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 347 novas possibilidades, novos caminhos. Uma atividade em que o filósofo se expõe a contágios e contaminações. Criar conceitos. Talvez a filosofia tenha este único e grande propósito, fazendo do filósofo o experimentador do mundo ao invés do contemplador deste mesmo mundo. O filósofo como aquele que não mais reflete passivamente, mas aquele que se envereda pelo mundo, que se expõe aos contágios e contaminações, fazendo desta experiência o substrato para aquilo que possui de mais intenso enquanto atividade: a criação de conceitos. Isto é o que nos propõem os filósofos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari, levando-nos a pensar numa outra relação ética (BEDIN, 2010, p. 1). Para Bedin (2010), o mundo real é a morada do homem, mas ela só serve para ser abandonada. E a filosofia é o que propícia essa fuga; uma vez que, tal morada é móvel, pois, a criação de conceitos deve ser contínua e ininterrupta. Isso significa que o filósofo deve transpassar a reflexão passiva, pôr-se em movimento e adentrar no mundo. Os conceitos são migratórios, mas podem habitar solos, nos quais possam produzir alguma interferência com outros conceitos; já que, os conceitos não possuem estruturas únicas, ―fechadas‖; pelo contrário, eles possuem componentes que estabelecem relação entre si – e é exatamente nesse ponto que o filósofo age: nos territórios habitados pelos conceitos. Um conceito não pode ser entendido como uma estrutura monocelular. Uma vez que, não existe conceito simples. Todo conceito é composto. Do mesmo modo que nenhum conceito existe de maneira isolada, ou seja, todo conceito possui uma ligação com outros conceitos, com a tradição filosófica. Não há conceito simples. Todo conceito tem componentes, e se define por eles. Tem, portanto, uma cifra. E uma multiplicidade, embora nem toda multiplicidade seja conceitual. Não há conceito de um só componente: mesmo o primeiro conceito, aquele pelo qual uma filosofia ―começa‖, possui vários componentes, já que não é evidente que a filosofia deva ter um começo e que, se ela determina um, deve acrescentar-lhe um ponto de vista ou uma razão (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 25). O conceito é uma incisão minuciosa nas cordas vocais da filosofia; uma operação que ressoa nos mais diversos territórios e que provoca o surgimento de uma variedade incontável de linhas de fuga. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 348 De certa forma, a proposta de Deleuze e Guatarri (o adentramento do filósofo no mundo e sua exposição aos contágios) é audaciosa e suscita a necessidade de se pensar uma nova relação ética. Uma vez que, ―a ética passa ser a própria experimentação criativa, o uso, a prática, a pragmática propriamente dita‖ (BEDIN, 2010, p. 1). Isso porque, não existe mais uma morada segura para o filósofo como fora outrora o Ethos; e, como dito, se existe, é somente para ser abandonada (DELEUZE, GUATARRI, 1992). De modo geral, o que eles nos propõem é uma ética do abandono, uma ética que suscite e propicie a criação de linhas fuga. Essa ética do abandono pode ser entendida também como uma geografia do conceito: A filosofia passa a assumir um aspecto geológico, em camadas de estratificação que se justapõem e se afetam mutuamente. Trata-se de movimentos de estratificação e desestratificação operados a partir de um crivo no caos, de um plano de imanência que opera por intensidades difíceis de serem apreendidas (BEDIN, 2010, p. 2). O Ritornelo Deleuze e Guatarri criam uma grande variedade de conceitos, sendo o Ritornelo um dos conceitos mais potentes dessa criação; um conceito que se encontra totalmente ligado a essa questão de território e ao problema da desterritorialização. Criamos ao menos um conceito muito importante: o de ritornelo. Para mim, o ritornelo é esse ponto comum. Em outros termos, para mim, o ritornelo está totalmente ligado ao problema do território, da saída ou entrada no território, ou seja, ao problema da desterritorialização. Volto para o meu território, que eu conheço, ou então me desterritorializo, ou seja, parto, saio do meu território? (DELEUZE, p. 65, 1997). Segundo D&G129, o ritornelo é uma espécie de refrão, o ponto maior da música; o ponto central ao qual volta-se em coro. No entanto, é preciso frisar que o conceito de ritornelo não é universal, logo, não pode ser definido como isso ou aquilo. Assim como Nietzsche fez com sua Teoria das Forças, Deleuze e Guattari fazem o mesmo se tratando do Ritornelo, ele é remetido sempre as circunstâncias em que é 129 Abreviação para Gilles Deleuze e Félix Guatarri. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 349 operado, uma vez que, é um ponto comum, e por tal motivo está totalmente ligado a saída ou entrada de um território. Desse modo, esse é o primeiro aspecto do ritornelo: a busca de direção, de um ponto; para que então se possa traçar um território ao redor desse ponto, algo inseguro, quase que incerto. Para que assim, após esta busca por direção passe-se a procurar por um espaço dimensional que possa ser habitado ao redor desse ponto. O ritornelo é um ciclo assim como a vida, sempre em relação territorial. É um território que circunda um determinado ponto. Tem a ver com conceitos de terra, território, caos, cosmos, (...) com o eterno retorno (...) Tem a ver com o canto dos pássaros para demarcar limites territoriais, com a criança cantarolando no escuro para se acalmar e com a música que escutamos para nos dar força nas tarefas diárias (BEDIN, 2010, p. 3). O Ritornelo pode ser comparado com uma ―lógica da existência‖, ou seja, o existir passa a ser em ciclos, o que pode implicar em um aspecto ou outro, ou os dois, etc.; ―o ritornelo se define pela estrita coexistência ou contemporaneidade de três dinamismos implicados uns nos outros. Ele forma um sistema completo do desejo, uma lógica da existência‖ (ZOURABICHVILI, 2004, p. 50), mesmo que seja uma lógica extrema e sem racionalidade alguma. Nesse sentido, Zourabichvili afirma que o Ritornelo se mostra em duas tríades ligeiramente distintas entre si: Primeira tríade: 1. Procurar alcançar o território, para conjurar o caos; 2. Traçar e habitar o território que filtre o caos; 3. Lançar-se fora do território ou se desterritorializar rumo a um cosmo que se distingue do caos. Segunda tríade: 1. Procurar um território; 2. Partir ou se desterritorializar; 3. Retornar ou se reterritorializar (Idem, p. 50). O filósofo deve abandonar o caos com o objetivo de se estabelecer em um território, o que é entendido comumente como um agenciamento territorial. Essa busca por um ponto é entendida como um componente direcional; ―é da ordem da criança no escuro que busca a única direção do ponto estável, cantarolando sua cantiga reconhecível, seu pequeno tralalá‖ (BEDIN, 2010, p. 4). O ritornelo é a busca pelo agenciamento, pelo estabelecimento. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 350 O ritornelo vai em direção ao agenciamento territorial, ali se instala ou dali sai. Num sentido genérico, chama-se ritornelo todo conjunto de matérias de expressão que traça um território, e que se desenvolve em motivos territoriais, em paisagens territoriais (há ritornelos motrizes, gestuais, ópticos etc.). O ritornelo como traçado que retorna sobre si, se repete. Assim, todo começo já é um retorno, mas implica sempre uma distância, uma diferença: a reterritorialização, correlato da desterritorialização, nunca é um retorno ao mesmo (é repetição e diferença) (MELLO, 2012, p. 2). O agenciamento surge com o objetivo de traçar um território em volta do ponto, isto é, é a fundação de uma base no caos que garanta segurança para que um território possa ser construído. A partir desse momento busca-se por uma construção de um lugar que possa ser habitado. Trata-se de um espaço íntimo, onde as forças do caos são mantidas numa exterioridade, criando condições para que a tarefa possa ser cumprida, para que uma obra seja realizada. Este é o segundo aspecto do ritornelo, seu componente dimensional. Aqui os ritornelos estão mais a serviço de criar e consolidar o território, já que se tem a segurança mínima para que alguns ―motivos territoriais‖ possam ser empregados (BEDIN, 2010, p. 4). Por fim, parte-se do agenciamento territorial para a busca de outros agenciamentos. É nesse ponto que surgem as linhas de fuga que fazem desse território algo provisório. Sendo que, isso dá-se pelo fato de que o ritornelo aponta sempre para a possibilidade de fuga, de desterritorialização, mesmo se houver perigos, mesmo se as linhas de fuga se tornarem linhas de morte. Em suma, é sempre necessária a atividade de desterritorializar-se. Pois, o território carrega em si-mesmo uma bipolaridade: A bipolaridade da relação terra-território, às duas direções transcendente e imanente - nas quais a terra exerce sua função desterritorializante. Pois a terra serve ao mesmo tempo como esse lar íntimo para o qual se inclina naturalmente o território, mas que, apreendido como tal, tende a repelir este último ao infinito (ZOURABICHVILI, 2004, p. 50). É das pontas territoriais que se evade; pois, as linhas de fuga são os processos criativos que saem do padrão imposto, que criam, que inventam e reinventam novas possibilidades de vida. Transformando assim, a vida em uma obra de arte. A operação das linhas é que estabelece o território como algo provisório, transitório, ou, como D&G denominam: componentes de passagem. Desse modo, o ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 351 ritornelo é composto essencialmente por três aspectos, quais sejam: o componente direcional, o componente dimensional e o componente de passagem ou de fuga. Considerações finais O ritornelo deve ser entendido sobre dois principais aspectos que estão intimamente ligados ao seu nome: ―em primeiro lugar, como traçado que retorna sobre si, se retoma, se repete; depois, como circularidade dos três dinamismos (procurar um território para si = procurar alcançá-lo)‖ (ZOURABICHVILI, 2004, p. 51). Desse modo, começar é retornar, todavia, trata-se de uma reterritorialização, pois não trata-se de um retorno ao mesmo ponto, ao mesmo território. Não há chegada, nunca há senão um retorno, mas regressar é pensado numa relação avesso-direito, recto-verso com partir, e é ao mesmo tempo que se parte e se regressa. Por conseguinte, há duas maneiras distintas de partir e regressar, e de infinitizar esse par: a errância do exílio e o apelo do sem-fundo, ou então o deslocamento nômade e o apelo do fora (a terra natal sendo apenas um fora ambíguo) (Idem, p. 51). Não obstante, o conceito de ritornelo comporta em si dois sentidos do retorno que ―compõem o ―pequeno‖ e o ―grande‖ ritornelos: territorial ou fechado sobre si mesmo, cósmico ou levado sobre uma linha de fuga semiótica‖ (Idem, p. 51). Segundo Deleuze e Guatarri, são esses dois aspectos do ritornelo que tornam pensáveis a música e a arte de forma geral. O Ritornelo é a passagem por ―uma terra ora natal-imutável (é então a priori, inato ou, ainda, objeto de reminiscência), ora nova-por vir (é construído sobre um plano de imanência: quando o filósofo traça seu território sobre a própria desterritorialização)‖ (Idem, p. 51). Referências Bibliográficas: BEDIN, Luciano. O Ritornelo em Deleuze-Guatarri e as três éticas possíveis. Rio Grande do Sul: UFRGS, 2010. DELEUZE, Gilles, FÉLIX, Guatarri. O que é a Filosofia. Trad. Bento Prado Jr, e Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: Editora 34, 1992). ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 352 ___________. 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Tanto para o psicanalista quanto para o filósofo esses conceitos se apresentam enquanto eixos fundamentais para a compreensão das relações construídas pelos indivíduos com os objetos da cultura e com os outros indivíduos. Palavras-chave: Winnicott. Merleau-Ponty. Alteridade. Criança. Tanto na obra de Merleau-Ponty quanto em Winnicott é possível identificar o tema da alteridade como foco de importantes discussões. Enquanto o filósofo busca compreender essa questão através de uma relação de interdependência entre o homem e o mundo, o psicanalista parece explorar as bases dessa relação, que teriam início nas fases primitivas do desenvolvimento, quando o bebê encontra-se em estado de dependência absoluta dos cuidados ambientais. Engajado em formular uma teoria do aparelho psíquico primitivo e inspirado em psicanalistas que contribuíram para o desenvolvimento de uma Psicologia Infantil, Winnicott enfatiza o papel da figura materna como base determinante das formas de relacionamento, com o outro e com o mundo, constituídas por um indivíduo no decorrer de sua vida. Nessa perspectiva, Winnicott aborda a manifestação da relação afetiva entre o cuidador e o bebê. Ao tratar dessa relação, o psicanalista inglês busca compreender como se opera o desenvolvimento do ego na criança e a diferenciação ali emergente entre o eu e o não-eu. Por outro lado, Winnicott explora, no seio dessa diferenciação, que entre a realidade externa e interna sempre haverá uma tensão jamais inteiramente solucionada. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 354 Winnicott faz referência à inicial inabilidade de um bebê em reconhecer e aceitar a realidade de forma a perceber a existência de um mundo interno e um mundo externo a ele. Ora, é por meio dessas premissas que se contextualiza aquilo que se pode caracterizar como fenômenos/objetos transicionais e espaço transicional de modo que estão intimamente relacionados à experiência ilusória. A despeito de seu interesse pelo tema da transicionalidade, Winnicott sempre afirma que estará ―interessado na primeira possessão e na área intermediária entre o subjetivo e aquilo que é objetivamente percebido‖ (Winnicott, 1975, p.15). O que o psicanalista inglês conceitua ―primeira possessão ‗não-eu‘‖ inclui uma ampla variação de eventos que podem iniciar com a condução do punho à boca pelo bebê recém-nascido até atividades mais complexas como o manuseio e a ligação a um brinquedo ou objeto qualquer, simbolizando uma zona intermediária entre o eu e o não-eu. Desta maneira, esses eventos e objetos aos quais os bebês se apegam poderão ser denominados ―fenômenos transicionais‖ ou ―objetos transicionais‖. Winnicott mostra ainda que é a partir do objeto e dos fenômenos transicionais que o bebê inicia o processo de percepção e a tomada de consciência da separação entre o si mesmo e o ambiente externo. Ora, o objeto transicional tem por finalidade principal a de acalmar o bebê na ausência da mãe real, tendo em vista que é por meio dele – um objeto externo – que a criança poderá vivenciar a experiência interna de sua relação com a figura materna. É a partir desse ponto de vista segundo a teoria winnicotiana, que o bebê não é percebido nem como interior, nem como exterior a si mesmo, mas enquanto fronteira ou espaço de transição entre o mundo subjetivo e objetivo. Winnicott descreve, ainda, que ―ele (o objeto) é oriundo do exterior, segundo nosso ponto de vista, mas não o é, segundo o ponto de vista do bebê. Tampouco provém de dentro; menos, ainda, trata-se de uma alucinação‖ (WINNICOTT, 1975, p. 18). É por intermédio desse espaço fronteiriço entre o interno e o externo que à criança são fornecidas as condições para a experiência do jogo, o que, posteriormente, lhe permitirá a partilha de experiência com outros indivíduos, bem como a experiência cultural e artística. Como observa Winnicott: Seu destino é permitir que seja (o objeto) gradativamente descatexizado130 , de maneira que, com o curso dos anos, se torne não tanto esquecido, mas relegado ao limbo. (...) Não é esquecido e não é 130 Desprovido de energia psíquica. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 355 pranteado. Perde o significado, e isso se deve ao fato de que os fenômenos transicionais se tornaram difusos, se espalharam por todo o território intermediário entre a ‗realidade psíquica interna‘ e ‗o mundo externo‘, tal como percebido por duas pessoas em comum, isto é, por todo o campo cultural. Nesse ponto, meu tema se amplia para o do brincar, da criatividade e apreciação artísticas, do sentimento religioso, do sonhar, e também do fetichismo, do mentir e do furtar, a origem e a perda do sentimento afetuoso, o vício em drogas, o talismã dos rituais obsessivos, etc. (WINNICOTT, 1975, p. 18-19). Ora, a função materna quando ―suficientemente boa‖ parece atuar como fundo afetivo sobre o qual emerge um indivíduo capaz de perceber e relacionar-se intimamente com o mundo e com o outro, de maneira a modificar e ser modificado por essa relação. Nesse contexto, o cuidador exerce o papel de ―ego auxiliar‖ ao ego do bebê auxiliando-o, principalmente, a produzir significados tanto para os objetos de seu mundo externo quanto para suas próprias sensações e percepções internas. Aos olhos de Winnicott, as sensações produzidas ao bebê através do contato com o corpo materno, além de uma percepção puramente corporal, produzem um importante equivalente psíquico. Com isso, o bebê que é manipulado e segurado de uma maneira adequada tem a percepção de que, não somente seu corpo, mas também sua estrutura psíquica encontra-se integrada e protegida. Herdeiro da tradição fenomenológica e apoiando-se nos trabalhos da Psicologia da Forma e da própria Psicanálise, Merleau-Ponty, por sua vez, dedica-se à compreensão da percepção, introduzindo o conceito de corporeidade. O filósofo mostra, em primeiro lugar, que há uma distinção entre o ―corpo objetivo‖, que tem o modo de ser de uma ―coisa‖ e o ―corpo fenomenal‖ ou ―corpo próprio‖ que coloca o sujeito em relação de intimidade com o mundo, onde interioridade e exterioridade relacionam-se mutuamente, de modo que ―ser corpo (...) é estar atado a um certo mundo, e nosso corpo não está primeiramente no espaço: ele é no espaço‖ (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 205). Como nota Dupond, ―o sujeito aparece para si próprio fazendo aparecer o mundo‖ (DUPOND, 2010, p. 12). Essa ideia é ilustrada por Merleau-Ponty quando se refere à percepção infantil do corpo do outro possibilitando-lhe, consequentemente, a percepção do próprio corpo. Merleau-Ponty observa o comportamento do bebê no momento em que (...) abre a boca se por brincadeira ponho um de seus dedos entre meus dentes e faço menção de mordê-lo. E, todavia, ele quase não olhou seu rosto em um espelho, seus dentes não se parecem com os meus. Isso ocorre porque sua própria boca e seus dentes, tais como ele os sente do interior, são para ele imediatamente aparelhos para morder, e porque minha mandíbula, tal como ele a vê do exterior, é para ele imediatamente capaz das mesmas intenções. A ―mordida‖ tem para ele imediatamente ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 356 uma significação intersubjetiva. Ele percebe suas intenções em seu corpo, com o seu corpo percebe o meu, e através disso percebe em seu corpo as minhas intenções. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 471-472) Na interpretação de Silva, Merleau-Ponty ―eleva então a dignidade perdida da experiência infantil, explicitando sua dimensão intersubjetivamente carnal manifesta, muito propriamente, na gestualidade corporal‖ (Silva, 2009, p.216). Merleau-Ponty visa explorar também certo regime de ―promiscuidade‖, onde o interno e o externo ao sujeito atuam como zonas intercambiáveis que constituem a fonte de toda criação cultural, artística ou linguística. O conceito por meio do qual o filósofo compreenderá essa concepção de imbricação e interdependência é a noção de ―carne‖. Para Merleau-Ponty: A carne de que falamos não é a matéria. Consiste no enovelamento do visível sobre o corpo vidente, do tangível sobre o corpo tangente, atestado, sobretudo quando o corpo se vê, se toca vendo e tocando as coisas, de forma que, simultaneamente, como tangível, desce entre elas, como tangente, domina-as todas, extraindo de si próprio essa relação, e mesmo essa dupla relação, por deiscência ou fissão de sua massa. (MERLEAU-PONTY, 2012, p.141) Merleau-Ponty utiliza-se do exemplo do toque das mãos, para demonstrar a reversibilidade que se faz presente no tema da ―carne‖, referindo-se a: (...) um verdadeiro tocar o tocar, quando minha mão direita toca minha mão esquerda apalpando as coisas, pelo qual o ‗sujeito que toca‘ passa ao nível do tocado, descendo às coisas, de sorte que o tocar se faz no meio do mundo e como nelas (MERLEAU-PONTY, 2012, p.130). Ou seja, quando a mão direita toca a mão esquerda há aí, certa reversibilidade no ato de tocar, de modo que não se é possível dizer qual das mãos é a que toca e qual é a tocada. É essa mesma relação que permeia o contato do homem com o mundo e com os seus semelhantes. A noção de ―carne‖ surge para descrever a interioridade sensível ―o quiasma, entrelaço ou entrecruzamento reversível do mundo‖ (Chauí, 2002, p. 57) buscando traduzir o sentido de conaturalidade do homem com o mundo. É o que Marilena Chauí descreve: Verticalidade ainda diz que nós e o mundo estamos de pé e abraçados. É laço que nos enlaça, enlaçando nossa motricidade à mobilidade das coisas e à nossa visibilidade, enlaçando nossa visibilidade às nossas palavras e estas às ideias, num trânsito e numa transição intermináveis, numa invasão de domínio que é troca interminável e que só é possível ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 357 porque somos todos, nós, as coisas, os outros, a palavra e o pensamento, dimensões de um mesmo Ser que não aguarda sínteses para reunir-se a si e diferenciar-se. Participamos de uma comunidade originária de onde nascemos por segregação, e tudo assim nasce, por diferenciação. Essa promiscuidade das origens, elemento e matriz, é a Carne do mundo vertical. (CHAUÍ, 2002, p. 115). Pode-se então supor que esta relação ―carnal‖ aqui ilustrada por Merleau-Ponty exemplifica a relação que Winnicott descreve entre a ―mãe suficientemente boa‖ e seu bebê. Sob esse contexto, é que se pode também aproximar o caráter daquilo que MerleauPonty denomina de verticalidade, isto é, a ideia de que sujeito e mundo encontram-se como que entrelaçados, numa espécie de relação onde não há sobreposições entre um e outro. Do mesmo modo, a alteridade se desenvolve através desse tecido vertical onde as subjetividades ao mesmo tempo em que participam de um mesmo terreno comum, podem se diferenciar. Neste sentido, podemos supor que essa ideia encontra certa ressonância com a obra de Winnicott, especialmente quando este se refere à relação mãe-bebê, e à capacidade materna de compreender as necessidades de seu filho que são expressas primeiramente através do choro, do olhar e das manifestações corporais. Quando, por exemplo, a mãe apresenta o peito ao bebê que chora de fome, está auxiliando-o a produzir um significado acerca desta sensação. Embora estejamos diante de uma relação que se estabelece entre um sujeito capaz de separar o eu dos objetos externos e um bebê que ainda não atingiu tal nível de maturidade, podemos conjecturar que a identificação materna dessa comunicação primitiva do bebê só é possível porque se encontram os dois, enlaçados e fundidos ao tecido de um mundo que é comum a ambos. Para Winnicott: O leite da mãe não flui como uma excreção; é uma resposta a um estímulo, e este estímulo é a visão, o cheiro e o tato de seu bebê, e o choro do bebê, que expressa necessidade. É tudo uma coisa só: o cuidado que a mãe toma com o bebê, e a alimentação periódica que se desenvolve como se fosse um meio de comunicação entre ambos – uma canção sem palavras. (WINNICOTT, 2006, p.69) Winnicott mostra também que através do contato corporal com a mãe, produz-se no bebê uma memória sensorial que está relacionada com a interpretação afetiva que o mesmo produz sobre a maneira como seu corpo é segurado e manuseado. O olhar do outro sobre o bebê também apresenta aqui, importância fundamental. Ora, se em sua ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 358 forma mais primitiva de existência, o bebê percebe a si mesmo como um ser fundido ao mundo, então, é possível supor que o bebê não atribui relações entre aquilo que é sentido e o órgão receptor, dado que ele é também, enquanto sente, o próprio sentido. Portanto, para um bebê, será possível escutar, tatear, olhar com o corpo todo, pois que, como ser ainda não diferenciado, ele é também aquilo que escuta, ele é aquilo que vê e aquilo que toca. Na perspectiva do bebê, ele é a própria linguagem encarnada. Há aí um elo, uma promiscuidade e possibilidade infinita de sentidos entre ele e o mundo, intermediado pela figura materna. O que faz com que este fenômeno se revele é a abertura desse novo campo ou horizonte entre o real e o imaginário que o psicanalista denomina espaço transicional e o filósofo concebe como um campo fenomenal. Muito embora o sujeito posteriormente venha a fazer essa diferenciação entre o eu e o não-eu, a questão da transicionalidade permanecerá como algo nunca inteiramente solucionado pelo indivíduo. Para Merleau-Ponty, é essa ―carnalidade‖ que se faz presente na experiência do sujeito com o mundo, numa verticalidade onde ambos se ―abraçam‖ e se criam um ao outro sem sobreposições. Como mostra Dupond, em sentido merleau-pontyano, a carne visa ―não a diferença entre o corpo-sujeito e o corpo-objeto, mas antes, inversamente, a matéria comum do corpo vidente e do mundo visível, pensados como inseparáveis, nascendo um do outro, um para o outro, de uma ‗deiscência‘ que é a abertura do mundo‖ (DUPOND, 2010, p. 9). Ora, é essa zona de entrelaçamento entre objeto e sujeito que o fenomenólogo passa a descrever como campo fenomenal. Ou seja, aquilo que retrata o espaço que sedia a vivência compartilhada entre os indivíduos e de onde brota toda produção artística e cultural humanas. Trata-se, pois, de uma relação íntima do sujeito com o mundo ou, ainda, da possibilidade de fundir-se a ele e de diferenciar-se que torna também possível ao homem a produção de sentidos. Neste contexto, o que se manifesta é a possibilidade infinita de interpretações resultantes do enlace entre uma subjetividade e a objetividade do mundo perceptível. É o que permite, por exemplo, que o conteúdo de uma obra literária extrapole seu caráter mais concreto e meramente informativo para conduzir o seu leitor a um estágio mais ―carnal‖ oferecendo-lhe uma possibilidade para o devaneio. Merleau-Ponty destaca o aparecimento de uma ―linguagem viva‖ onde o sentido se manifesta para o indivíduo na medida em que este se engaja na linguagem. Um importante atributo da linguagem é a sua atuação enquanto elo entre um indivíduo e seus semelhantes, ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 359 como demonstra Silva ―há, aí, uma vida expressiva na linguagem, ou seja, um ‗valor existencial‘ intersubjetivamente encarnado‖ (SILVA, 2009, p.99). Tanto no caso da linguagem quanto no da obra de arte em geral, Merleau-Ponty restitui um sentido próprio da intersubjetividade. As relações entre eu e outrem são perpassadas pela ideia de que não há mais limite, ou seja, há um sentido de unidade carnal que os entrelaça. Esse entrelaçamento só se torna possível porque ocorre num mesmo campo de experiência, um campo fenomenal que não se confunde com um espaço objetivo. Como atesta o filósofo: Diz-se que há um muro entro nós e os outros , mas é um muro que fazemos juntos: cada qual coloca sua pedra no vão deixado pelo outro. (...) Assim como o espaço não é feito de pontos em si simultâneos, assim como nossa duração não pode romper as suas aderências a um espaço de durações, o mundo comunicativo não é um feixe de consciências paralelas. Os traços se confundem e passam um pelo outro, formando uma única esteira de ‗duração pública‘. (MERLEAU-PONTY, 1991, p.19) Logo, pode-se verificar que tanto em Winnicott como em Merleau-Ponty o tema da alteridade se desenvolve através de uma concepção de intersubjetividade. Concepção esta, que se diferencia das filosofias empiristas ou puramente reflexivas em que o sujeito seria apenas uma ―série de experiências psicológicas‖, ou então, ―uma substância eterna e única‖ (AYOUCH, 2012, p. 254). Intersubjetividade é, portanto, compreendida aqui como uma relação ―na qual os termos de sujeito, consciência, ou indivíduo não são primeiros, mas resultam de uma relação precedendo e determinando a subjetividade – sem que ela se reduza, todavia, à intersubjetividade‖ (AYOUCH, 2012, p.256). Na visão de Ayouch há uma primazia da relação com o outro que perpassa toda a teoria winnicottiana onde ―o afeto aparece como a apresentação alucinatória de uma promessa e ameaça de encontro com o outro, onde se repete a primeira intersubjetividade fundadora da psique do infante‖ (AYOUCH, 2012, p.261). Desta maneira, a assim chamada figurabilidade do afeto ―depende do entrelaçamento dos afetos da criança e do entorno, num modo muito parecido à dialética da intersubjetividade teorizada por Maurice Merleau-Ponty‖ (AYOUCH, 2012, p.262). Referências Bibliográficas: ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 360 AYOUCH, T. ―Genealogia da intersubjetividade e figurabilidade do afeto: Winnicott e MerleauPonty‖. In: Psicologia USP, São Paulo, 2012, 23(2), 253-274. CHAUI, M. Experiência do pensamento: ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty. São Paulo: Martins Fontes, 2002. DUPOND, P. Vocabulário de Merleau-Ponty. Trad. C. Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2010. MERLEAU-PONTY, M. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2012. _____. Signos. Trad. M. E. G. G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1991. SILVA, C. A. F. A carnalidade da reflexão: ipseidade e alteridade em Merleau-Ponty. São Leopoldo (RS):: Nova Harmonia, 2009. WINNICOTT, Donald W. O brincar e a realidade. Trad. J. O. A. Abreu et al. Rio de Janeiro: Imago, 1975. _____. Os bebês e suas mães. Trad. J. L. Camargo. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 361 EDUCAÇÃO E POLÍTICA EM THEODOR ADORNO Luana A. de Oliveira [email protected] RESUMO: Com base na Teoria Crítica de Theodor W. Adorno, pretende-se analisar e explicitar o projeto político que embasa o atual sistema escolar e o projeto político que necessita ser defendido, ou seja do necessário comprometimento da educação com o processo de emancipação do sujeito. Em meio a isto serão abordados os conceitos de emancipação, não-idêntico, semi-formação e resistência, para assim articular a relação conceitual entre a educação e seu caráter político. Por fim, será exposto o caráter ambíguo da educação, sendo que, ao mesmo tempo em que o processo de formação emancipatória é adaptação, também se apresenta como resistência. No entanto, em tempos de conformação com a lógica do sistema capitalista, torna-se cada vez mais importante que a educação fomente mais o potencial de contestação e, por conseguinte, de emancipação do sujeito, do que somente reforçar sua adaptação. Palavras-chave: Educação, Política, Emancipação, Resistência. Através da teoria crítica de Adorno podemos refletir sobre os pressupostos educativos inseridos na sociedade em que vivemos. Conforme a obra intitulada Educação e Emancipação de Theodor W. Adorno, a educação não está relacionada à modelagem de pessoas, tão pouco à simples transmissão de conhecimentos. Educação em Adorno está vinculada com o esclarecimento, com a formação de uma consciência verdadeira, ou seja, com a busca pela autonomia do sujeito de modo a trabalhar em direção à sua emancipação. Porém, a escola enquanto instituição social pertencente à sociedade capitalista, propaga o modelo social da classe dominante e colabora na formação da personalidade do sujeito educando, a qual já é estruturada conforme os ditames da lógica burguesa. Já o projeto político da escola propulsora da emancipação, tem como propósito tornar explícitas as contradições do sistema vigente, e fomentar a resistência contra o mesmo. Desta maneira, ao evidenciar que a escola transmite ideologia política, fica mais clara a relação que tem o seu caráter político com a educação comprometida com o desenvolvimento de uma consciência emancipada. Na concepção adorniana, o objetivo pedagógico também deve ser de uma educação que se volte para a reflexão a cerca dos mecanismos que ameaçam e por vezes impedem a ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 362 emancipação dos indivíduos. Tendo a escola como função política problematizar e não aceitar como válidos os valores egoístas, competitivos e consumistas, próprios da sociedade capitalista. Emancipação para Adorno é conscientização, sendo que o sentido de conscientização refere-se à capacidade de fazer experiências, portanto ―(...) a educação para a experiência é idêntica à educação para a emancipação.‖ (ADORNO, 1995, p. 151.). A experiência formativa tem como pressuposto a recusa em aceitar somente o mero repasse de conhecimentos no processo formativo, trata-se do processo formativo levar em conta também a transformação do sujeito no contato com o objeto. A repressão do nãoidêntico também se opõe à experiência formativa em defesa de uma sociedade homogênea, pois ele revela-se como possibilidade de mudança, ou seja, o não-idêntico é a permissão da tematização do diferente, é o novo que possibilita percepções diferentes. Sobre o não-idêntico, Adorno afirma que a filosofia idealista de Hegel equivocou-se ao ser fundada no princípio da identidade em que o conhecimento no âmbito da razão expressa a correspondência entre ser e pensar, trazendo o pressuposto de que os conceitos representam o real enquanto tal. Para Adorno os conceitos não traduzem a coisa em si em sua plenitude, já que o conteúdo da coisa em si traz também o não idêntico a si mesmo. Assim, considerando que os conceitos não relatam a totalidade da realidade, pois não abarcam o não idêntico, pode-se dizer que há uma tensão entre pensamento e objeto, a qual impossibilita a exatidão da equiparação entre os mesmo. Portanto, o pensamento não representa fielmente o objeto, pois não dá conta de teorizar o que não pode ser conceitualizado. Ao contrário de Hegel que atribuía primazia ao sujeito cognoscente e que pressuponha alcançar a verdade através de uma elaboração linear de argumentos, a primazia do objeto é o motor da dialética negativa de Adorno. Esta reconhece a impossibilidade de se chegar à verdade absoluta, mas isso também não significa que a verdade se encontre no objeto. A dialética negativa não tem como pretensão o endeusamento de uma verdade, e por isso acaba por impedir ações autoritárias. Para Adorno, um conceito isolado não representa fielmente o objeto, no entanto, se aliado a outros conceitos, de modo a formar uma constelação, torna-se então mais próximo da verdade. Porém, como já é suposto, de forma alguma essa constelação conceitual pretende absolutizar uma verdade, pois ela não carrega consigo a estaticidade, a fixidez e a imutabilidade, e sim a constante transformação na qual os conceitos estão interligados, isto é, relacionados entre si em um movimento dinâmico, num processo em devir. Assim, cada ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 363 conceito é um fragmento que irá compor uma verdade e que juntos iluminam a compreensão da realidade. A primazia do objeto instiga o sujeito a refletir sobre aquilo que não é apreendido conceitualmente, mesmo sabendo que não se pode absolutizar uma verdade, existe a possibilidade do pensamento se aproximar mais da verdade do objeto, desta forma, ocorre uma reflexão contínua sobre o próprio pensar. Isto é, uma auto-reflexão da razão. Esta não acomodação do pensamento leva à persistência do pensamento crítico, possibilitando assim, a autonomia do sujeito. É importante destacar que para Adorno, embora haja a primazia do objeto, o sujeito não é colocado de lado, sua importância ainda é reconhecida. Acontece que nesta relação o sujeito tem consciência de sua limitação, sabendo que não é capaz de dominar por completo o objeto, sabendo de que não conseguirá ter acesso direto a ele, e por isso a auto-reflexão sobre o não idêntico não se torna estática, está sim em constante movimento. No entanto, a exclusão do não idêntico em privilégio do sempre igual gera um obstáculo na experiência formativa do sujeito, este obstáculo é o fenômeno da semiformação. A semiformação é uma deformação, uma falsa consciência. Porém, ela não se limita ao aspecto intelectual, a semiformação se amplia para o empobrecimento geral do ser humano, em todas as suas formas de ser, sendo a escola uma das agências que reforça a semiformação. Outro exemplo de disseminação da semiformação é a indústria cultural, termo criado por Adorno e Max Horkheimer que se trata da reificação da cultura, isto é, da cultura que o modo de produção capitalista transforma em cultura de massa. Esta é produzida em moldes padronizados e ofertada como sendo um objeto de mercadoria e, desta forma a máquina capitalista acaba por aniquilar com o seu caráter crítico. A verdadeira arte, aquela que não é criada conforme padrões próprios da indústria cultural, acaba sendo fraudada ao ser vendida como um produto já adaptado para o consumo das massas. Este produto é desprovido de valor crítico, e por isso impede a real experiência estética. Conforme Adorno, a indústria cultural age com o objetivo de servir interesses político-econômicos, embutindo de maneira apelativa (supostas) necessidades de consumo, é pressuposto que ela tende a enfraquecer as possibilidades de uma postura crítica, sem a qual não há a contestação do status quo. Por isso a importância de uma formação educacional comprometida com um projeto político que priorize a auto-reflexão crítica, já ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 364 que ela é elemento fundamental no processo de superação indústria cultural, sendo este um dos obstáculos que impede a emancipação do sujeito. Por ela (a auto-reflexão crítica) os dominados podem ser esclarecidos a respeito de sua situação enquanto classe, no contexto de exploração e subordinação capitalista. (..) Serviria para orientá-los à consequente ação transformadora que a própria ação transformadora exige. Ela se torna educativa em dois sentidos; no esclarecimento dos mecanismos de alienação e de manipulação ideológica presentes no sistema (...). (PUCCI, 1995.p. 48) Na filosofia de Adorno a educação envolvida com a emancipação do sujeito possui um duplo caráter: ao mesmo tempo em que é adaptação é também resistência. Em certo sentido, emancipação é o mesmo que conscientização, racionalidade. A racionalidade, porém, sempre envolve um momento de adaptação. A educação seria impotente e ideológica se ignorasse esta finalidade de adaptação, e não preparasse os homens a operarem na realidade. Mas ela seria igualmente questionável se se reduzisse a isto, produzindo nada mais do que ―well adjusted people‖. Nesta medida, no conceito de educar para tornar racional e para tornar consciente existe de antemão uma cisão, uma ambiguidade. (ADORNO, 1995. p. 143) Isto é, adaptação porque ela nos dá preparo para vivermos em sociedade, nos repassando conhecimentos e toda bagagem cultural por meio do processo de ensinoaprendizagem. Mas a educação não pode ficar somente na adaptação, senão haveria a padronização de comportamentos e uma progressiva perda da individualidade, de tal forma que ninguém conseguiria viver a seu próprio modo, assim como haveria a tendência a nos conformarmos e em absorvermos o já estabelecido, resultando num comportamento passivo e omisso diante da barbárie. Por isso a educação que se volta para o objetivo da emancipação necessita ser ambas: adaptação e resistência. Mas destaco aqui importância de a ação pedagógica se voltar mais à resistência, de modo a priorizar espaços favoráveis à reflexão crítica, tendo a escola uma postura crítica diante do ensino tradicional, o qual muitas vezes trabalha em direção à formar pessoas de consciência ingênua para que assim se resignem frente às situações decisivas: Ocorre que, atualmente, que o exercício da reflexão crítica encontra-se cada vez mais impossibilitado de ser concretizado, uma vez que as maiores recompensas são entregues para aqueles que melhor se ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 365 ―adaptam‖ - leia-se integram-se – ao sistema, nas suas mais variadas instâncias, inclusive na própria escola. (ZUIN, 1995, p.167-168)131 No caso de a educação ser somente adaptação não se pode considerá-la emancipatória, pois neste caso ela carrega consigo a tendência ao totalitarismo e à barbárie em geral. A educação nessa condição age de modo a converter os indivíduos em sujeitos passivos e inofensivos, sendo esses próprios atributos que dão oportunidade para que a barbárie se instaure, pois assim contempla-se o horror sem nada fazer. Para o autor, o passado mal elaborado carregara como herança a barbárie, esta que ainda permanece presente na conduta humana. Elaborar o passado trata-se de dar sentido à história, reelaborando sua relação com o presente. Esta elaboração também pode ser entendida como esclarecimento do passado, num processo de reconhecimento e identificação das causas, que levaram, como por exemplo, à violência que ocorreu em Auschwitz, para que a partir desta reflexão eliminem-se essas causas, e para que assim as barbáries já cometidas não mais se repitam. É igualmente importante obter conhecimento referente aos mecanismos que tornam os homens reféns da barbárie, sendo necessário entender como que a conduta agressiva se constitui , e apurar os motivos que levam aos atos de extrema violência, não no sentido de justificar tais atos, mas para evitar a formação dessa conduta. Uma educação voltada somente para a adaptação possui elementos de barbárie que se expressam em momentos de repressão e opressão, ou seja, uma educação que só se efetiva pelo autoritarismo do professor que causa medo no aluno. Deste modo, a escola carrega potencial para ser um agente propagador da razão que desumaniza, isto é, a barbárie, de forma a contribuir com as injustiças sociais, reproduzindo normas e valores da ideologia dominante. Mas por outro lado, a escola também possui condições para defender um projeto político pedagógico que vise a emancipação, que forneça aparatos para a tomada de consciência e para que esta possa se vincular com a prática, a qual irá permitir a manifestação da resistência. Considerando que a escola está inserida numa sociedade capitalista, o seu verdadeiro projeto político é revelado na execução de seu currículo, o qual, por meio de práticas educacionais, ensina os valores da classe dominante e os defende como legítimos. Por isso a escola não pode ser considerada uma instituição neutra, pois ela serve aos interesses da classe dominante, como por exemplo, formar sujeitos com habilidades e ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 366 competências necessárias para atuar no mercado de trabalho, sendo esta uma maneira de manter as relações de produção dentro do molde capitalista. No entanto, a função social do sistema escolar deve ser, segundo Adorno, de enfatizar a necessidade da luta contra a adaptação do discurso vigente, de modo a promover constantemente um confronto com a manutenção deste discurso. Desta forma, a educação precisa se opor a uma existência determinada pela lógica do capitalismo, contribuindo na construção de subjetividades com a razão e a sensibilidade emancipadas, de modo a não serem compatíveis com este sistema. Opor-se a isto tudo que o mundo de hoje nos oferece e que, no presente momento, não admite vislumbrar qualquer outra possibilidade de resistência mais ampla, é competência da escola. É por essa razão que (...) é tão essencialmente importante que ela cumpra sua missão. (ADORNO, 1995. p.79.) Por isso a importância do educador estar constantemente revendo as suas próprias práticas educacionais, para que estas estejam de acordo com o processo formativo emancipatório. Se faz importante também a busca por recuperar o lugar do sujeito, ou seja, sua identidade, considerando o que ele realmente é: a finalidade e não o meio. Esta concepção de sujeito diferencia-se do capitalismo administrado que homogeneíza e ao mesmo tempo anula o sujeito em consequência de uma visão utilitária que o trata como um objeto que deve satisfazer as necessidades econômicas, políticas, sociais ou educacionais. No capitalismo administrado, o sujeito é anulado e se torna coisificado, em contrapartida o interesse econômico é o fim último. Nele a razão esclarecida é transformada em razão instrumental, sendo esta racionalidade reduzida à capacidade, isto é, a um condicionamento social de se adaptar ao que já é estabelecido como natural. A racionalidade instrumental não percebe que o desenvolvimento científico, embora tenha potencial para auxiliar no projeto de uma sociedade emancipada, não leva necessariamente à emancipação do sujeito. Mesmo havendo grande desenvolvimento das tecnologias é preciso submeter à dúvida a afirmação de que vivemos em uma sociedade esclarecida, ao contrário a racionalidade instrumental continuará contribuindo com o poder ideológico da indústria cultural e com as contradições sociais que geram a semiformação. Desta forma, cabe ao sistema educacional a denúncia desta falsa consciência que é propagada diariamente e que promove conformismo e submissão frente a lógica do sistema capitalista , conforme explicita Adorno:‖(...) as pessoas aceitam com menor ou maior resistência aquilo que a ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 367 existência dominante apresenta a sua vista e ainda por cima lhes inculca à força como se aquilo que existe precisasse existir dessa forma.‖ (ADORNO, 1995. p. 178) A função política da educação trata-se então, de superar a carência da razão emancipatória, e de se deixar ser instrumento de luta e de resistência contra a adaptação à condição social imposta pelo capitalismo. Por fim, a educação voltada para a emancipação se ampara em uma postura crítica diante de tudo que condiciona o ser à alienação, isto decorre como exigência de seu caráter político, assim como a necessidade de ser formadora de consciência verdadeira. Referências Bibliográficas ADORNO, Theodor W. Educação e Emancipação. Tradução: Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.190p. ZUIN, Antônio Álvaro S. Seduções e Simulacros. Considerações sobre a indústria cultural e os paradigmas da resistência a da reprodução em educação. In: PUCCI, Bruno (org.). PUCCI, Bruno (org.). Teoria Crítica e Educação: A questão da formação cultural na escola de Frankfurt. Petrópolis:Vozes, 1995. 197p. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 368 PENSAR INTUITIVAMENTE PARA O ULTRAPASSAMENTO DA RAZÃO CLÁSSICA Luana Borges Giacomini UNIOESTE/PIBIC – Fundação Araucária [email protected] Dra. Ester Maria Dreher Heuser (Orientadora) A ideia de razão clássica parece ser a motivação mais vital do bergsonismo, uma vez que sem um rompimento dessa razão o filósofo não poderá atingir seus objetivos. Deleuze adverte que são três o número de teses sobre o movimento da filosofia bergsoniana. A primeira tese consiste em separar o movimento do espaço percorrido, afirmando que tal espaço é divisível, já o movimento se divide apenas mudando de natureza. Na segunda tese o problema dos mistos mal analisados exigirá do filósofo o cuidado com as ilusões que o impedem de ver, com distinção, a verdadeira natureza existente entre as coisas. Por fim, a terceira tese, nos dá o sentido primordial da intuição: pensar intuitivamente é pensar como duração. Pode-se dizer que nestes três momentos o espírito pode conhecer, por intermédio da intuição, a duração de cada ser, ou seja, o modo como cada indivíduo atravessa o tempo. Palavras-chave: 1.Intuição 2.Razão Clássica 3.Bergsonismo A filosofia de Deleuze é marcada pela crítica ao pensamento representativo que orienta a Filosofia. O problema que atravessa sua criação filosófica pode ser expressa por meio da simples questão ―O que significa pensar?‖. Deleuze encontrou na História da Filosofia aliados capazes de lhe fornecerem elementos que potencializassem a produção de respostas interessantes capazes de erigirem aquilo que ele nomeou de uma ―nova imagem do pensamento‖ (DELEUZE, 1976). Segundo ele, todo pensamento é orientado por uma ―imagem do pensamento‖ e, ao longo da História da Filosofia a imagem que mais persistiu foi aquela orientada pela representação, a qual ele denomina ―imagem dogmática‖. Segundo o filósofo, esta imagem impede o pensamento de pensar as singularidades, os devires e a diferença. Henri Bergson foi um dos filósofos ―aliados‖ de Deleuze para a criação de uma nova imagem do pensamento. Em sua obra, Deleuze encontrou no ―método da intuição‖ elementos para sua criação, o qual será o objeto de nossa comunicação. Para a filosofia bergsoniana é altamente necessário o ultrapassamento da razão clássica que está orientada pelo pensamento da representação. Ou seja, segundo Bergson, ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 369 trata-se de ultrapassar o próprio conhecimento representativo, aquele que nos impede de apreender a essência das coisas em si mesmas, aquilo que existe de singular nos seres. Todavia, Bergson difere de Platão no que se refere à natureza da coisa a ser conhecida. Em Platão, a natureza é a Ideia, a qual é imutável, supra-sensível e eterna; a fim de alcançá-la é necessário que a razão ultrapasse os dados da experiência. Em Bergson a natureza do objeto a ser conhecido deve ser buscada no mundo (imanente) e não para além dele. Ao contrário do platonismo, a natureza do objeto em Bergson não é caracterizada pela imutabilidade, ela é puro movimento. A razão clássica, herdeira do platonismo, nos permite apenas conhecer aquilo que há de geral nas coisas, pois, produz recortes, paradas e congelamentos num real que é puro fluxo, pura indeterminação. Bergson concebe que todo ser vivo possui sua própria duração, a qual é singular, ou seja, uma essência que é apenas sua, o modo como cada ser atravessa o tempo e que é a própria duração em si. O filósofo, ao criar maneiras para ultrapassar o modo de conhecer produzido pela razão clássica e chegar a conhecer o objeto absoluto, suas singularidades, considera necessária a invenção de uma nova linguagem capaz de dar conta da intuição, pois os conceitos e toda a gama de símbolos utilizados por nós, na representação, não dão conta do sentido mais íntimo, do que há de mais singular e que não pode ser expressado pela linguagem. Há a necessidade da invenção de novos conceitos ―para fazer passar o que há de fluído e cambiante nos seres‖ (SCHÖPKE, p.102). No conhecimento por análise, além de multiplicar infinitamente as visadas de um mesmo objeto, ele também pressupõe a ideia de um objeto congelado em algum lugar do espaço. Deste modo, os símbolos e pontos de vista restringem o observador apenas ao caráter de exterioridade do objeto, impedindo o mesmo de traduzir aquilo que por essência é incomensurável nesse mesmo objeto, ou seja, o seu espírito e sua duração. Para Bergson, tal como a razão clássica procede é impossível apreender os devires. O filósofo, por sua vez, pretende apreender o devir em seu próprio movimento, coincidindo com ele em sua própria duração, sendo a duração de um ser seu próprio movimento no mundo. É preciso, por um esforço do pensamento, inserir-se no interior do objeto que se pretende conhecer, de modo que já não haja duas ―durações‖ distintas (a do sujeito e a do objeto), mas uma única direção, um único movimento conjunto. Somente assim, para Bergson, teremos um conhecimento pleno da essência de um objeto (SCHÖPKE, p.104) Diversamente do que muitos podem compreender, Bergson não é um místico ao propor o conhecimento por meio da intuição; na medida em que propõe um novo ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 370 funcionamento da razão deve ser considerado um neo-racionalista. Para ele, somente a intuição pode dar conta de um real que é pura zona de indeterminação. Nos estudos que Deleuze (1999) fez da filosofia de Bergson, evidenciou que a intuição tanto é um método rigoroso quanto um ato simples. Segundo ele, a intuição não se atualizará se antes não percorrer uma multiplicidade qualitativa e virtual. Deve-se ressaltar que a ideia de simplicidade em Bergson, não exclui a ideia de multiplicidade. Bergson produz três teses sobre o movimento. Primeira regra: ―Aplicar a prova do verdadeiro e do falso aos próprios problemas, denunciar os falso problemas, reconciliar verdade e criação no nível dos problemas‖ (DELEUZE, 1999, p.8). Somos acostumados a buscar soluções para problemas já dados, contudo, a verdadeira liberdade consiste no poder de constituição dos próprios problemas. Cometemos um erro ao acreditar que o verdadeiro e o falso dizem respeito apenas às soluções, ou seja, que eles começam apenas com as mesmas. Contudo, este é um preconceito social, afirma Deleuze, ―pois a sociedade, e a linguagem que dela transmite as palavras de ordem, ―dão‖-nos problemas totalmente feitos, como que saídos de ―cartões administrativos da cidade‖, e nos obrigam a ―resolvêlos, deixando-nos uma delgada margem de liberdade‖ (Idem, 1999, p.9). Preconceito, que é infantil e escolar, pois o professor dá aos alunos os problemas, cabendo a eles solucionálos, mantemo-nos deste modo, numa espécie de escravidão. O filósofo ressalta que, colocar um problema não é simplesmente descobrir, acima de tudo é inventar. Isto porque enquanto a descoberta incide sobre o existente, tanto atualmente como virtualmente, em algum momento ela acontecerá, independente do momento. Já a invenção ―dá o ser ao que não era‖ e podendo nunca ter vindo a ser. Todavia, na Matemática, e mais ainda, na metafísica, o esforço inventivo está ligado em dar origem ao problema, em criar os termos aos quais o mesmo se colocará. Bergson acredita que um problema bem colocado, já esteja resolvido por ele mesmo. Os verdadeiros problemas, não são colocados se já não se encontrarem solucionados. Ou seja, a solução já existe imediatamente, embora possa permanecer oculta, faltando apenas, descobri-la. Regra complementar: ―os falsos problemas são de dois tipos: ―problemas inexistentes‖, que assim se definem porque seus próprios termos implicam uma confusão entre o ―mais‖ e o ―menos‖; ―problemas mal colocados‖, que assim se definem porque seus próprios termos representam mistos mal analisados (Idem, 1999, p. 10). ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 371 Um problema inexistente é aquele que não diferencia o ―mais‖ e o ―menos‖. Um exemplo muito corrente é acreditar que existe mais na ideia de não ser do que a na de ser, sendo que, numa reflexão profunda pode-se provar o contrário. Sobre os problemas mal colocados, Bergson cita aqueles que tendem a agrupar coisas que são de naturezas distintas. Ele se refere aos mistos mal analisados, ou seja, misturas impuras que apenas confundem o filósofo. Um exemplo de misto mal analisado é o espaço-tempo, ambos são de naturezas diferentes. O espaço podemos ligar ao universo material, já o tempo é da ordem do espírito. Segunda regra: ―Lutar contra a ilusão, reencontrar as verdadeiras diferenças de natureza ou as articulações do real‖ (Idem, 1999, p. 14). Pode-se falar que a segunda regra é uma extensão da primeira. Bergson não ignora o fato de que as coisas se misturam; a própria experiência apenas nos oferece mistos. Contudo, o mal não consiste nisso. Deleuze afirma que medimos as misturas com uma unidade que é por si mesma, impura e já misturada, perdendo, deste modo, a razão dos mistos. A obsessão pelo puro retorna em Bergson, na restauração das diferenças de natureza. Pode ser dito puro, apenas aquilo que difere por natureza, contudo, apenas as tendências diferem por natureza. ―Trata-se, portanto, de dividir o misto de acordo com tendências qualitativas e qualificadas, isto é, de acordo com a maneira pela qual o misto combina a duração e a extensão definidas como movimentos, direções de movimentos (como a duração-contração e a matéria distensão)‖ (Idem, 1999, p.15) O filósofo deve travar uma batalha contra as ilusões que o impedem de ver a verdadeira diferença de natureza que existe entre as coisas, tal ilusão que dá origem aos mistos. A Intuição, sendo o método da divisão dos mistos, possui semelhança com uma análise transcendental: é necessário dividir o misto, que representa o fato em tendências ou puras presenças, que apenas existem de direito. Todavia, ocorre um ultrapassamento da experiência em direção às condições da experiência do real. Bergson censurará a metafísica, principalmente por ter percebido apenas diferenças de grau entre um tempo espacializado e uma eternidade supostamente primeira. Como por exemplo em Platão: o tempo é excluído do mundo das essências, por justamente estar associado ao movimento, deste modo é a causa imediata da degradação das coisas. Contudo, como Bergson procede na divisão da representação em elementos que a condicionam em puras presenças ou em tendências que diferem por natureza? Num primeiro momento, ―ele se pergunta se entre isto e aquilo pode (ou não pode) haver diferença de natureza‖ (Idem, 1999, p.16). A primeira resposta encontrada por ele foi: ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 372 ―sendo o cérebro uma ―imagem‖ entre outras imagens, ou sendo o que assegura certos movimentos entre outros movimentos, não pode haver diferença de natureza entre a faculdade do cérebro dita perceptiva e as funções reflexas da medula‖ (Idem, 1999, p.16). Bergson conclui, que o cérebro apenas complica a relação entre um movimento recolhido e um movimento executado. Contudo, o cérebro coloca um intervalo entre os dois, podendo ser pelo fato de dividir ao infinito o movimento recebido, devido o mesmo prolongar numa pluralidade de reações possíveis. Devido ao efeito do intervalo que o cérebro estabelece entre o movimento recolhido e o movimento recebido chamado ―intervalo cerebral‖ um ser pode captar de um objeto material apenas aquilo que lhe interessa. Deleuze ressalta que não deve existir diferença de natureza entre a faculdade do cérebro e a função da medula, mas somente diferença de grau. É necessário se questionar sobre o que preenche um intervalo cerebral. A resposta de Bergson será tríplice: Primeiramente, é a afetividade, que supõe, precisamente, que o corpo seja coisa distinta de um ponto matemático e dê a ela um volume no espaço. Em seguida, são as lembranças da memória que ligam os instantes uns aos outros e intercalam o passado no presente. Finalmente, é ainda a memória, sob uma outra forma, sob forma de contração da matéria, que faz surgir a qualidade (Idem, 1999, p. 17). Pode-se concluir que aquilo que faz com que o corpo seja distinto de uma instantaneidade e que lhe dá uma duração no tempo é a memória. Regra complementar da segunda regra: ―o real não é somente o que se divide segundo articulações naturais ou diferenças de natureza, mas é também o que se reúne segundo vias que convergem para um mesmo ponto ideal ou virtual‖ (Idem, 1999, P.20). Um problema bem colocado tende-se por si só, resolver-se. Deleuze afirma que conforme o primeiro capítulo de ―Matéria e Memória‖, coloca-se bem o problema da memória. Como por exemplo: Quando dividimos o misto lembrança-percepção, o mesmo é dividido em duas direções diferentes e dilatadas, as quais correspondem numa verdadeira diferença de natureza entre a alma e o corpo, o espírito e a matéria. Contudo, obtemos a solução de tal problema quando ―apreendemos o ponto original no qual as duas direções divergentes convergem novamente, o ponto preciso no qual a lembrança se insere na percepção, o ponto virtual que é como que a reflexão e a razão do ponto de partida‖ (Idem, 1999, P.21). Todavia este problema, da alma e do corpo, da matéria e do espírito, é resolvido por um extremo estreitamento, através do qual, Bergson mostra que a linha da objetividade e a da ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 373 subjetividade, da observação externa e da interna, precisam convergir ao término de seus diferentes processos, até o caso da afasia. Não obstante, Deleuze afirma que esse método de intersecção forma um verdadeiro probabilismo, ou seja, cada uma dessas linhas define uma probabilidade. As linhas, contudo, são qualitativamente distintas, e nessa divergência, na desarticulação do real que realizam segundo as diferenças de natureza, as quais constituem um empirismo superior, capaz de colocar problemas e ultrapassar a experiência, rumo as suas condições concretas. Todavia, as linhas, procedendo numa intersecção do real, definem deste modo, um probabilismo superior, capaz de solucionar problemas e ―relacionar a condição ao condicionado, de tal modo que já não subsista distância alguma entre eles‖ (Idem, 1999,. p. 21). Terceira regra: ―Colocar os problemas e resolvê-los mais em função do tempo do que do espaço‖ (Idem, 1999, p.22). Contudo, Bergson afirma existir um tempo em si, puro, o qual abarca todos os tempos ou durações singulares. Todo ser vivo possui uma duração particular, por outro lado o filósofo defende a tese de que o tempo é uno, universal e impessoal. ―(...) não existe senão um único tempo (monismo), embora ele tenha uma finalidade de fluxos atuais (pluralismo generalizado), que participam, necessariamente do mesmo todo virtual (pluralismo restrito)‖ (SCHÖPKE, p.112). Ou seja, o tempo é uno, mas abarca infinitas durações particulares. Deve-se ressaltar que a duração de um ser não se altera, apesar dos múltiplos estados que experimenta. Cada duração é singular, insubstituível, isto, porque a distinção da multiplicidade interna é de natureza, diferentemente da externa, que é gradativa. A duração é o ―elan vital‖, pois é a ela que possibilita o passado de um ser vivo se prolongar em seu presente, sendo o presente, apenas o momento mais contraído de tal memória. É um devir que dura, uma mudança, a própria essência do ser. A intuição é o método da filsofofia bergsoniana, é a visão direta do espírito pelo espírito. Pensar intuitivamente é entrar em contato imediato com a essência de uma coisa, percebê-la no seu próprio movimento, ou seja, na sua própria duração, que é o modo como ela atravessa o tempo. Se a intuição, contudo, parece ser complexa, Bergson afirma que isso se deve ao fato de que o nosso conhecimento necessita de uma formulação em sua essência mais profunda. Ou seja, faz-se necessário preparar o espírito para o ato simples de apreensão da duração. Todavia o ato preparatório é um exercício que violenta o ritmo costumeiro de nosso pensamento. Devido a isso, a intuição é tanto um ato simples quanto um ato complexo. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 374 Referências Bibliográficas: DELEUZE, Gilles. Bergsonismo; Tradução de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Ed. 34, 1999. ___________. A Imagem-movimento; Tradução de Stella Senra. Paris: Les Éditions de Minuit, 1983. ___________. Nietzsche e a Filosofia;Tradução de Ruth Joffily Dias e Edmundo Fernandes Dias. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976. SCHÖPKE, Regina. Por uma filosofia da diferença: Gilles Deleuze, o pensador nômade. São Paulo: Edusp, 2004. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 375 DELEUZE, O TEATRO E A PRODUÇÃO DE UMA POLÍTICA MENOR Lucas Henrique Nunes Batista Filosofia Unioeste/ Fundação Araucária [email protected] DrªEster Maria Dreher Heuser(orientadora) RESUMO: A presente comunicação expõe resultados de uma pesquisa realizada com o financiamento do CNPq, 2012/2013, a qual teve por objetivo principal abordar a criação do conceito de minoração do filósofo Gilles Deleuze. Para alcançar tal objetivo se fez necessário recorrer às considerações que o filósofo efetivou acerca dos procedimentos empregados pelo dramaturgo Carmelo Bene em seu teatro experimentação. Este criou suas peças a partir de obras consagradas, tanto da literatura quanto do teatro, adotando o procedimento de subtração: retirou alguns elementos de poder da obra original, para que outros, que só estavam nela como algo virtual, pudessem aparecer e ter um espaço de relevância na nova obra. A fim de compreender o referido procedimento, bem como o que Deleuze faz com ele em sua filosofia, se fez necessário, para a realização da pesquisa, recorrer à uma das obras consagradas pela tradição a qual Bene usa, a escolha foi a peça teatral Ricardo III de Shakespeare, dando atenção especial às perspectivas de poder, ao sistema político e às ambições humanas nela presentes. Palavras-chave: Minoração. Teatro. Deleuze. Gilles Deleuze, filósofo contemporâneo, criou sua filosofia a partir de conceitos de outros filósofos, mas também partiu de noções não filosóficas, ou seja, recorreu à criação de outras formas de pensar, como a literatura, o cinema, o teatro, pois, para ele, a filosofia, ainda que tenha suas especificidades, está no mesmo nível destes outros domínios, uma vez que são manifestações criativas do pensamento. Aqueles que criam procedimentos que escapam dos padrões canonizados para expressarem seus pensamentos importam à Deleuze, isto porque, para o filósofo, a forma de expressão é capaz de alterar a forma de conteúdo, tanto na filosofia quanto em outras manifestações do pensamento; por essa razão, Deleuze se interessou, também, pelos procedimentos inventados por Carmelo Bene. Carmelo Bene criou suas peças a partir de obras já existentes. Por meio do procedimento que Deleuze chama de ―minoração‖, o dramaturgo amputa elementos de poder enfocados majoritariamente na peça originária, para dar visibilidade a personagens secundários; deste ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 376 modo atualiza, em sua criação, aquilo que na obra original é apenas virtual. Para Deleuze, o mais interessante nos procedimentos de Bene é a fabricação das personagens. Trata-se em primeiro lugar, da constituição de um personagem no próprio palco. Até os objetos, os acessórios, aguardam seu destino, isto é, a necessidade que o capricho do personagem vai lhes atribuir. A peça se confunde primeiro com a fabricação do personagem, sua preocupação, seu nascimento, seus balbucios, suas variações, seu crescimento. Este teatro crítico é um constituinte, a Crítica é uma constituição. O homem de teatro não é mais autor ou encenador. É um operador. Por operação deve-se entender o movimento da subtração, da amputação, mas já recoberto por outro movimento, que faz nascer e proliferar algo de inesperado (DELEUZE, 2010, p.28-29). Shakespeare é o alvo preferido do teatro crítico de Bene, de suas peças faz o que Deleuze chama de uma ―crítica amorosa‖. A fim de darmos evidência ao procedimento de minoração operado por Bene e a transformação do homem de teatro, apresentaremos alguns traços característicos de uma das criações de Shakespeare, um dos mais importantes dramaturgos e escritores de todos os tempos, trata-se da obra Ricardo III, que se passa na Inglaterra no século XV. A peça Ricardo III se passa na transição do poder, quando o Duque de Gloucester ambiciona atingir o reinado. Na peça, o Duque é um homem ganancioso, frio, calculista e sem nenhum escrúpulo; é apresentado como a personificação do mal, uma pessoa extremamente ruim, e deformada. A deformidade de seu rosto e corpo eram horríveis, e estavam dentro e fora dele, como se ele fosse ruim por dentro e ruim por fora. Podemos perceber isso no começo da peça, quando ele diz em meio ao seu monólogo: Pois eu, neste ocioso e mole tempo de paz, não tenho outro deleite para passar o tempo afora a espiar a minha sombra ao sol e cantar a minha própria deformidade. E assim, já que não posso ser amante que goze estes dias de práticas suaves, estou decidido a ser ruim vilão e odiar os prazeres vazios destes dias. Armei conjuras, tramas perigosas, por entre sonhos, acusações e ébrias profecias, para lançar o meu irmão Clarence e o Rei um contra o outro, num ódio mortífero, e se o Rei Eduardo for tão verdadeiro e justo quanto eu sou sutil, falso e traiçoeiro, será Clarence hoje mesmo encarcerado devido a uma profecia que diz será um ―gê‖ o assassino dos herdeiros de Eduardo. Mergulhai, pensamentos, fundo, fundo na minha alma (SHAKESPEARE, 2001, p.6. ). Ricardo III era um ser tão abominável que até sua mãe Duquesa de York o desprezava e repugnava suas ações chegando a amaldiçoá-lo e o denomina como ―uma serpente com a qual o mundo foi presenteado‖ (SHAKESPEARE, 2001, p.60). Ricardo III ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 377 se mostra na peça como um homem muito frustrado, lamentando por sua vida e por sua deformidade e justificando seus atos por causa dessas frustrações. Ele age de forma traiçoeira e perigosa, não mede escrúpulos para conseguir o que quer, chegando a matar todos que estavam em seu caminho para o trono, começa por matar Henrique IV e seu filho, e depois ordena que matem seu irmão Duque de Clarence. Em seguida, ele ordena a morte de seus próprios sobrinhos, o príncipe de Gales e o Duque de York que eram herdeiros do trono e que estavam em sua frente na sucessão, por fim, arquiteta seu golpe de Estado, matando, torturando todos aqueles que se voltassem contra ele. Quando a população descobre que o Rei Eduardo está morto, ficam todos ansiosos para saberem quem será o próximo a herdar o trono, Shakespeare mostra a posição do povo sem alterações, como apenas telespectadores, impotentes, sem voz, sem poder, apenas como alguém que cumpre o que lhe vem, sem se questionar. não disseram palavra alguma, mas como estátuas mudas ou pedras que respiram olharam-se uns aos outros e pálidos de morte se tornaram. Pelo que eu, nisto vendo, lhes fiz grande reprimenda. E perguntei ao Alcaide o sentido de tão obstinado silêncio. Sua resposta foi que o povo não era acostumado a que, afora o arauto, alguém para ele falasse (SHAKESPEARE, 2001, p.54). Ricardo III usa de mentiras e dissimulações em conjunto com o medo que ele causa na população com a intenção de fazer com que o povo lhe siga. Shakespeare não só retrata o momento histórico de Ricardo, mas compreende que na luta pelo poder o que muda é apenas o nome do rei, mas o ―grande mecanismo‖ para se chegar ao trono real é o mesmo. Por fim, na peça, Ricardo III é abandonado por quem estava ao seu lado e os fantasmas daqueles que ele matou voltam para perturbá-lo. Ele é engolido por sua própria trama, quando outros também ambicionam sucedê-lo e são capazes de tudo, tal como ele fora, para conseguir isso. Ricardo III termina em um campo de batalha lutando desesperadamente por sua vida, ao ponto de trocar seu reino por um cavalo, daí o célebre clamor: ―Um cavalo! Um cavalo! Meu reino por um cavalo!‖ (SHAKESPEARE, 2001, .87). Depois de terem sido evidenciados traços da personagem, pode-se mostrar como Deleuze evidencia, em Um manifesto de menos (2010), a reconstrução feita por Carmelo Bene (CB) dessa personagem shakespiriana, bem como, mostrar a atualização do que era virtual na obra de Shakespeare. Deleuze afirma que isto é feito pelo dramaturgo por meio do procedimento de subtração ou pelo processo de minoração, quer dizer, ele amputa partes que na obra original estavam no centro da peça dando lugar a outras secundárias e, a partir ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 378 disso, cria uma nova peça. A operação de Bene funciona para Deleuze pensar uma perspectiva política menor, ou seja, o teatro do italiano é matéria-prima para criação conceitual do filósofo. Deleuze dá a ver que no Ricardo III de CB o que é amputado é todo sistema real e principesco restando apenas Ricardo III e as mulheres, fazendo aparecer na peça o que só existia virtualmente na tragédia: a relação da mulher com o poder. Na peça de Shakespeare as mulheres não travam relações com o poder, têm apenas aquele papel formal das mulheres da realeza, sem influência nas decisões tomadas pelos homens. Por exemplo, toda a primeira parte da peça de CB é um debate entre Ricardo III e as mulheres, o qual diz respeito à imbecilidade do homem ao desconsiderar aqueles que diferem dele, de seus padrões, de seus modos de pensar e agir; nesta parte, Bene ainda faz uma observação acerca da obscenidade do feminino na história. CB faz aparecer em cena as mulheres em guerra entrando e saindo, preocupadas com seus filhos que gemem e choram, também mostra a mulher como objeto de desejo de Ricardo III: em uma das cenas elas se despem na frente dele deixando claro o desejo deste pelo corpo feminino. Algo que, não foi visto na peça de Shakespeare, pela formalidade com a qual fazia suas peças. Na peça, Ricardo III deverá se tornar disforme para poder divertir as crianças e reter suas mães. Tal procedimento deixa claro o modo como CB faz suas peças, diferente de Shakespeare não mostra Ricardo III como um ser monstruoso e maligno, na sua versão Ricardo III tem a capacidade até de cuidar dos filhos das mulheres, como se fosse uma babá, ele incorpora um suposto papel feminino, algo que naquela época jamais se podia esperar de um homem, enquanto coloca as mulheres em relação com o poder e com a guerra. Outros elementos típicos das peças de CB são os gestos vocais dominados pelo distúrbio na formulação e compreensão da linguagem e sonoridades que atravessam a cena: murmúrio, sopro e grito. CB minoriza Ricardo III de Shakespeare trabalhando em seus personagens problemas contemporâneos próprios das minorias políticas. O Ricardo III beniano seria uma das únicas tragédias em que as mulheres entram em relações de guerra e falam sobre o poder, para que isso aconteça, Bene exclui todos os influentes personagens masculinos retirando sua importância, à exceção do próprio Ricardo III. Este, por sua vez, ambiciona menos o poder do que quer introduzir ou reinventar uma máquina de guerra, destinada a destruir o equilíbrio aparente ou a paz do Estado. Operando a subtração dos personagens do poder de Estado, que no caso seriam os reis, príncipes e Duques, Carmelo Bene vai dar livre curso à constituição do homem de guerra na cena, ―com suas próteses, suas ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 379 deformidades, suas excrescências, suas malformações, suas variações‖ (DELEUZE, 2010, p.30). Nas peças de Carmelo Bene são eliminadas as constantes ou invariantes; tudo o que é modelo, que normaliza, padroniza e exerce Poder é subtraído. Não se trata, no entanto, de querer mudar o mundo, nem de fazer a revolução, diz Deleuze que Carmelo Bene não acredita nisso, mas, ainda assim, Deleuze percebe importância política neste tipo de teatro. Tal importância se diferencia, no entanto, do teatro popular que representa conflitos entre opostos como classes, raças, gêneros. Para Deleuze, este tipo de teatro permanece na lógica da representação a cada vez que toma os conflitos como objeto, isto porque eles já estão normalizados, codificados, institucionalizados (Cf. HEUSER, 2012). Carmelo Bene pretende substituir a representação dos conflitos pela variação, considerada como elemento sub-representativo. A personagem forma uma unidade com o conjunto do agenciamento cênico, a saber, cores, luzes, gestos, palavras. O diferencial de Carmelo Bene está no seu ato de desencadear um processo no qual ele é mais o controlador, o mecânico ou o operador do que ator. No palco, sua criação é fortemente marcada pela experimentação do elemento sonoro: com sobreposições de vozes, mudanças de tonalidades, adjunção de diálogos, aproximações e afastamentos de microfones, com misturas arbitrárias de músicas clássicas e canções populares, amplificação da voz e playback. Sobreposições e variações que demonstram a recusa de se fazer entender, de fazer do palco um lugar de interpretação e representação da vida (Ibidem). Carmelo Bene opera a peça de Shakespeare de modo que fatores como o poder do homem na sociedade, o aparelho de Estado não se tornem tão influentes, dando vida para a relação da mulher e das crianças com o poder, por exemplo, coloca Ricardo III como um homem menos inescrupuloso e maldoso, e mostra a obscenidade do feminino e o desejo do homem pela mulher. Também subtrai o modo formal de se fazer uma peça, elevando ao extremo cada gesto, cada deformidade. Na peça se podem ouvir gritos em meio à música, esses elementos são colocados de modo que se produza uma nova forma de pensar o teatro e mostra uma nova perspectiva, digamos que mostrando o que poderia acontecer na peça original, ele faz acontecer em sua peça. Segundo Heuser, Deleuze nos faz ver Bene operar em cena a partir de uma peça originária clássica, abrindo mão, entretanto, de sua ―classicidade‖, isto é, subtraindo o Poder de Estado manifesto no sistema real e principesco da obra original. Esta operação deixa de lado toda reverência a autores e a textos e dá vida nova a eles. Intensifica suas ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 380 forças, amputa ou neutraliza os elementos que fazem ou representam um sistema de Poder, dando chance para que elementos como as mulheres possam aparecer. A partir da análise deleuziana dos procedimentos de Carmelo Bene podemos afirmar que há como que duas operações opostas no teatro de Bene. Por um lado, eleva-se o ―maior‖: de um pensamento ―maior‖ se faz uma doutrina, de um modo de viver dominante se faz uma cultura, de um acontecimento se faz História. Contudo Deleuze diz que a maioria não designa quantidade, mas, antes de tudo, o padrão em relação ao quais aqueles que não se enquadram no padrão, ainda que sejam em maior quantidade numérica, serão consideradas menores, tais como, as mulheres, as crianças, os negros, os gays, os indígenas, etc. Ou seja, são minoritários em relação ao padrão constituído pelo Homembranco-cristão-macho-adulto-morador das cidades-americano ou europeu contemporâneo. Mas, nesse ponto, na perspectiva deleuziana, tudo se inverte e a segunda operação ganha força, pois, se a maioria remete a um modelo de poder- histórico estrutural ou os dois ao mesmo tempo, é preciso também dizer que todo mundo é minoritário, potencialmente minoritário, na medida em que se desvia desse modelo em algum momento. Com tal inversão, contudo, concluímos que essa função antirrepresentativa que recusa aquele modelo padrão, tal como CB recusou o modelo padrão do teatro, abre-se a possibilidade de traçar ou constituir de algum modo uma ―figura de consciência minoritária‖, como potencialidade de cada pessoa. Daí decorre os dois sentidos de minoria produzidos pelo conceito deleuziano, a saber: minoria designa primeiro um estado de fato, isto é, a situação de um grupo que, seja qual for o seu número, está excluído do padrão que é sempre maior, ou, se está incluído é como uma fração subordinada em relação ao padrão de medida que estabelece a lei e fixa o que se estabelece como maioria – pode-se dizer, neste sentido, que as mulheres, as crianças, o Sul, o terceiro mundo, etc., são minorias, por mais numerosos que sejam, na medida em que não se enquadram no referido padrão; em outro sentido, minoria não designa mais um estado de fato, mas um devir pelo qual a pessoa se engaja. Eis a noção cara a Deleuze de devir que é sempre minoritário, pois, devir implica sempre escapar do padrão: devir minoritário, para Deleuze, é um objetivo que diz respeito a todo mundo, visto que todo mundo entra nele na medida em que cada um constrói sua variação, a fim de, em algum momento ou dimensão da vida, escapar dos padrões de medida que visam o controle e a dominação constituídos pelo sistema de poder. Desse modo afirmamos que a minoria é mais numerosa do que a maioria em si, bem como que minoria designa, no segundo caso, a potência de um devir, enquanto maioria designa o poder ou a impotência de um estado, de uma situação. Por fim, concluímos que, na filosofia de ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 381 Deleuze, a força criadora de possibilidades inauditas das artes – neste caso específico, do teatro de CB – tem lugar privilegiado, na medida em que exerce uma função política de produção de saídas coletivas por e para uma minoria – desde que a minoria não represente nada de regionalista, mas também nada de aristocrático, de estético nem de místico. Referências Bibliográficas: BENE, Carmelo. Ricardo III. Buenos Aires: Artes del Sur, 2003._____. Ricardo III. ___________. Ricardo III. In.: http://www.youtube.com/watch?v=UtlKg_zugQM (último acesso em 22 de maio de 2013). DELEUZE, Gilles. Um manifesto de menos. In.: ___________. Sobre o teatro; tradução de Fátima Saad, Ovídio SHAKESPEARE, Willian. Ricardo III; tradução de Carlos A. Nunes. EbooksBrasil.com, 2001. NUNES, Silvia Balestreri. Boal e Bene: contaminações para um teatro menor. São Paulo: Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica, PUC/SP, 2004 (Tese de doutorado). Disponível em:www.pucsp.br/.../Textos/TESESilviaBalestreriNunes.pdf, acessada e arquivada em 22 de abril de 2012. HEUSER, Ester Maria Dreher. Procedimentos de minoração: do teatro de Carmelo Bene à filosofia de Deleuze. Porto Alegre: Sulina, 2012. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 382 A NOÇÃO DE LINGUAGEM E SEUS DESDOBRAMENTOS PARA PENSAR O SE-MOVIMENTAR NA EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR Luciano de Almeida Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Farroupilha – Santo Augusto/RS [email protected] Paulo Evaldo Fensterseifer Universidade Regional do Noroeste do Rio Grande do Sul – Unijuí – Ijuí/RS [email protected] RESUMO: O objetivo deste texto é encontrar argumentos que nos auxiliem a pensar a Educação Física para além de seu caráter instrumental (fazer pelo fazer; ―exercitar para‖), tomando cuidado para não transformá-la em um discurso sobre a cultura corporal de movimento (BETTI, 1994; BRACHT, 2003). Para isso, recorremos à hermenêutica filosófica de Gadamer para tentar compreender como a noção de linguagem pode nos dar indicativos para redimensionar o hiato existente entre o fazer (prático), o saber com esse fazer (teórico) e as dimensões estéticas (subjetivas) e éticas (intersubjetivas) na Educação Física (escolar). Palavras-chave: Linguagem. Se-Movimentar. Educação Física Escolar. Experiência. Ao longo de sua constituição enquanto campo de tematização a Educação Física alcançou ―seus‖ objetivos através da vivência de movimentos no plano de atividades, de um ―exercitar-se para‖ (FENSTERSEIFER; GONZALEZ, 2007; 2009; 2010). A crítica a esses moldes enfatizou a necessidade de uma elaboração conceitual acerca das vivências de movimento, o que nos coloca em risco de cometermos alguns equívocos e transformar a Educação Física em um discurso sobre a cultura corporal de movimento (BETTI, 1994), e mais, como reafirma Bracht (2003), não podemos transformá-la num discurso sobre o movimento. Aqui parece estar um dos paradoxos da Educação Física escolar, a saber, é uma disciplina que trata da tematização da cultura corporal de movimento que necessita manter uma tensão permanente entre: o fazer (práticas corporais), o saber com esse fazer, de ordem conceitual (ideia geral e abstrata); e, ainda, com um saber não conceitual que considere as dimensões estéticas (sensível e subjetivas) e éticas (social e intersubjetivas), e que são difíceis de serem conceituadas (no plano instrumental); fato que nos leva a repensar ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 383 a relação dicotômica teoria-prática, presente em todas as áreas do conhecimento, em especial na Educação Física, pelo seu estreito vínculo com as práticas corporais. Com base em Gadamer (2008), que não trata explicitamente da Educação Física, entendemos que esta não se reduz a um conhecimento conceitual, mas lida com elementos da cultura (corporal de movimento), que se caracterizam em sua maioria, pelas vivências de movimento/práticas corporais. Fensterseifer e González (2007) nos ajudam a pensar nessa incontornável relação teoria-prática, que quando tratada de maneira dicotômica, tais como paralelas, não se encontram em lugar nenhum do tempo e do espaço, e ainda, cada uma dessas dimensões necessitam ser tratadas em sua complexidade, como todas as produções humanas, sendo que hierarquiza-las também não é desejável. Nosso interesse é produzir argumentos para sensibilizar os envolvidos com a Educação Física escolar (professores, alunos, pais, enfim, a comunidade escolar) ―para as distintas formas de produção da cultura humana‖ (FENSTERSEIFER, 2012, p. 324), que não se reduzem a um conhecimento conceitual (ideia geral e abstrata) do saber, mas precisam incorporar outras dimensões (ética, estética, política). Essa constatação nos aproxima da tematização da linguagem (perspectiva fenomenológica-hermenêutica), o que nos leva a reconhecer os limites que o cientificismo nos legou com sua pretensão de verdade incontestável e única possibilidade de construção do conhecimento. Vislumbramos nessa tematização algumas possibilidades de lidar com o mal estar gerado pelas incertezas inerentes ao inacabamento da condição humana. A linguagem, segundo Oliveira (2006), se tornou a questão central do debate filosófico na atualidade. Desde a chamada ―reviravolta linguística‖ ou ―giro linguístico‖ (linguistic turn) que ocorreu no século XX, houve, no entender desta autor, uma ruptura (de paradigma) que caracterizou a filosofia desde o seu nascimento, na antiguidade clássica, que atribuiu à linguagem uma função secundária, como instrumento para comunicar o pensamento, uma vez que a cognição (raciocínio) era superior à linguagem. Neste período, afirma Lawn ―o pensamento ofuscou a linguagem‖ (2007, p. 104). A partir dessa ruptura a linguagem passa a constituir a tese fundamental da filosofia, tendo em vista que ―é impossível filosofar sobre algo sem filosofar sobre a linguagem, uma vez que esta é momento necessário constitutivo de todo e qualquer saber humano‖ (OLIVEIRA, 2006, p. 13), condição de nossa compreensão e de nosso ser no mundo, nas palavras de Gadamer (2009), a linguagem considerada no âmbito que só ela consegue preencher, é o centro do ser humano, pois compreende: ―o âmbito da convivência humana, o âmbito do ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 384 entendimento, do nosso consenso crescente, tão indispensável à vida humana como o ar que respiramos‖ (p. 182). Nesse sentido, não podemos pensar e falar fora da linguagem, ela é condição de nossa compreensão do mundo, uma vez que já ―estamos tão habituados e inseridos na linguagem como estamos no mundo‖ (GADAMER, 2009, p. 177), e não podemos torná-la um objeto de investigação no sentido da ciência clássica (LAWN, 2007), pois, entendemos que ―não existe nenhum lugar fora da experiência de mundo que se dá na linguagem, a partir donde fosse possível converter-se a si mesmo em objeto‖ (GADAMER, 2008, p. 584), ou seja, não é possível sairmos do mundo e o analisarmos de fora (da linguagem e do mundo), com imparcialidade como a um objeto (científico). Sem linguagem, lembra Lawn (2007), não haveria mundo, pois esta trata da ―negociação e do ato de fazer sentido de um mundo de nossa própria construção‖ (p. 112). Portanto, considerar a linguagem como mero instrumento é desconsiderar sua dimensão de historicidade, tendo em vista que o mundo é mais velho que nós mesmos, nos antecede e só se torna mundo (humano) ―quando vem à linguagem, como a própria linguagem só tem sua verdadeira existência no fato de que nela se representa o mundo‖ (GADAMER, 2008, p. 572). É no plano da linguagem que o mundo se torna compreensível para nós, em nosso ―estar-no-mundo‖, pois como lembra Gadamer (2009), é de Aristóteles a expressão clássica de que o homem é um ser vivo que possui logos. A expressão logos foi traduzida (na tradição do Ocidente) como razão ou pensar, mas também significa: linguagem. Parece-nos que na tradição do pensamento moderno, convencionou-se traduzir logos por razão, e esta fundamentada em si mesma, começou a ordenar o mundo para conhecê-lo e dominá-lo (FENSTERSEIFER, 2001). Nesse contexto, surge o homem moderno, ―livre‖ das amarras da tradição e dos desígnios de Deus, que na condição de sujeito epistêmico e do uso dos instrumentos adequados (método), passa a dominar a natureza, para representá-la, explicá-la e dominá-la. O pensamento moderno, segundo Fensterseifer (2001), a partir de seus fundadores, Bacon e Descartes, ―pretende estabelecer uma dicotomia entre epistemologia e história ao conceber o conhecimento como destituído de historicidade‖ (p. 68). Essa ruptura acaba gerando uma cisão na relação entre homem e natureza, materializadas na dicotomia sujeito-objeto, em que o homem (sujeito epistêmico) transforma o objeto de seu conhecimento (mundo exterior) em aspectos quantificáveis e mensuráveis, como pura abstração. Tem-se a pretensão de pensar em um ―sujeito livre dos ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 385 sentidos e das paixões, objeto destituído de cultura e história, consideradas fontes de engano e ilusões‖ (idem, p. 70). É na esteira dessa tradição moderna (dualista – sujeito/objeto, corpo/alma, organismo/mente, qualidade/quantidade...), que o ―homem experimenta o real como objeto, isto é, como o manipulável, o dominável por ele, como aquilo que se pode pôr a disposição do homem‖ (OLIVEIRA, 2006, p. 203). A linguagem, neste contexto, passa a ser vista apenas como um instrumento de informação, ―como processo por meio do qual o homem toma conhecimento dos entes, a fim de poder exercer sobre eles o domínio‖ (idem). Esse reducionismo acabou trazendo uma série de desdobramentos que temos dificuldade em pensar a existência humana, o conhecimento, nossa compreensão do mundo, sem estarmos presos as certezas ―incontestáveis‖ que herdamos da modernidade132 (relação de domínio sujeito – objeto). Faz-se necessário pensar a linguagem para além de seu caráter instrumental, pois ela desde sempre, ―nos marca, nos determina, e nela se dá a revelação dos entes a nós, o que só é possível porque, em sua dimensão última, a linguagem é o evento de desvelamento do sentido do ser‖ (OLIVEIRA, 2006, p. 206). Assim acreditamos ser necessário distinguir a ―objetividade‖ (Objektivität) da ciência para não confundi-la com a objetividade (Sachlichkeit) da linguagem, uma vez que na primeira, procura-se eliminar os elementos subjetivos do conhecer para distanciar o sujeito do objeto (na experimentação) com vistas a dominá-lo e torná-lo disponível para os fins arbitrários da ciência (uma tentativa de ―coisificação‖ do mundo). Na segunda, não acontece nada parecido, tendo em vista que na experiência natural do mundo, que já está impregnada de linguagem, não é possível um distanciamento do mundo para manipulá-lo e dizer o ser em si dos entes (objetificação), isso porque falar ―de modo algum significa tornar as coisas disponíveis e calculáveis‖ (GADAMER, 2008, p. 585), uma vez que não podemos dizer o que o ser do ente é, apenas expressar situações do ser (que continua sendo), pois este é ―revelado e oculto pela linguagem‖ (LAWN, 2007, p. 113). Portanto, a linguagem não deveria ser vista apenas como um instrumento que após dominarmos seu uso (como um terceiro), ―nos desfazemos dele assim que prestou seu serviço‖ (GADAMER, 2009, p. 176), pois esta e o mundo carecem ―totalmente do caráter de objeto‖ (GADAMER, 2008, p. 584) e não estão disponíveis a um sujeito epistêmico que Para Fensterseifer (2001), a ciência moderna nos deixou órfãos em relação às certezas medievais, o que ―foi sem dúvida uma grande conquista. O erro em relação a ela é acreditar que a realidade se esgota nela, quando de fato ela é apenas uma forma de tentar apreender esta realidade‖ (p. 83). 132 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 386 deseja manipulá-los e controlá-los. É preciso entender a linguagem sob uma perspectiva mais alargada, como condição de mediação de compreensão de nosso ser no mundo, pois é nesse ―meio em que se realizam o acordo dos interlocutores e o entendimento sobre a coisa em questão‖ (GADAMER, 2008, p. 497), uma vez que quem compreende faz parte e já está na linguagem (RUEDELL, 2005). Com essas notas iniciais sobre a noção de linguagem, buscamos em Gadamer 133, que não trata explicitamente de temas relacionados ao corpo, ao movimento humano ou as práticas corporais, algumas pistas (nas entrelinhas de suas obras) para pensar como a noção de linguagem pode nos dar indicativos para redimensionar o hiato existente entre o fazer (prático), o saber com esse fazer (teórico) e as dimensões estéticas (subjetivas) e éticas (intersubjetivas) na Educação Física (escolar). Quando tematizamos as manifestações da cultura corporal de movimento é possível construir um saber com esse fazer, para além de um plano conceitual (ideia geral e abstrata das práticas corporais), que considere as dimensões estéticas (subjetivas) e éticas (intersubjetivas) na Educação Física escolar, mesmo sabendo que, quando traduzimos esse saber sempre fica algo de não dito (condição de nosso inacabamento humano)134? O caminho para enfrentar essa questão (e outras) nos leva a pensar o movimento humano (ou se-movimentar) como linguagem, o que nos abre o campo da experiência. Experiência que é aqui entendida em seu caráter de abertura, fluidez, que foge ao controle e a previsão da ciência, como um dado, que pode ser repetido independentemente do sujeito (histórico) que dela faz parte. Desta forma, entendemos que o movimento humano/práticas corporais é uma linguagem, que, ―permanecendo imbricada na materialidade dos processos corporais, os transcende para apresentar ideias que emanam da relação do homem com o mundo e expressam essa relação‖ (FENSTERSEIFER; PICH, 2012, p. 31). Ao apresentar ideias, dizemos o ser dessa relação para que possa tornar-se compreensível e acessível também a outros; porém, ao dizer o ser, transmitimos apenas o ser de uma situação e não imaginamos uma linguagem que se lhe adapte mas antes encontramos a linguagem adequada à situação. Assim, o que encontra expressão na linguagem não é a nossa ―reflexividade‖ mas a própria Chamamos a atenção para o fato de que Gadamer é o autor referência para pensarmos essas questões, porém não fecharemos as portas para outros autores que tomarão parte nesse diálogo. 134 Fensterseifer (2012) nos dá um alento ao afirmar que ―não há linguagem sem ‗restos‘, sempre ‗sobra algo‘, mas esse algo inominável ou permanece como tal, sem aceder ao mundo humano, ou para ser comunicado em uma prática pedagógica, por exemplo, precisa aceder a linguagem, e por isso paga um preço‖ (p. 323-324). 133 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 387 situação: as palavras não funcionam essencialmente para se referirem a esta subjectividade; pelo contrário, referem-se à situação. O fundamento da objectividade não está na subjectividade daquele que fala mas sim na realidade que se exprime na e pela linguagem. É nesta objectividade que a experiência hermenêutica deverá encontrar seu fundamento (PALMER, 1989, p. 244-245). Podemos perceber que o ser de uma situação, ao se exprimir na e pela linguagem, continua sendo, para além da subjetividade daquele que compreende. Fazendo uma relação dessa afirmação, a título de exemplo, com o conceito de jogo em Gadamer (2008), é possível dizer que o jogo ganha sentido de quem joga e continua sendo jogado, quem entra no jogo é jogado por ele, não sendo objetificado pela subjetividade do jogador. O fundamento da objetividade para a ciência moderna, ao contrário, tem a pretensão de controlar o ser da situação por um sujeito autônomo que domina um objeto, como se fosse possível fazê-lo fora da linguagem, da história, do mundo. De acordo com Palmer (1989, p. 230), ―não há nenhuma perspectiva humana a partir da qual possamos dizer o que o ser ‗realmente é‘‖, pois, ao compreendermos algo, já estamos interpretando a partir do ―nosso‖ próprio horizonte e não há como pensar o ser em si no sentido ―original‖. Nesse sentido, é preciso lembrar Gadamer (2008), quando este afirma que ―às vezes a linguagem parece pouco capaz de expressar o que sentimos‖ (p. 519), referindo-se à dificuldade de resumir em palavras o que nos dizem as obras de arte. Parece-me que poderíamos atribuir uma dificuldade semelhante para o movimento humano/práticas corporais, posto que, ao dizê-lo, não conseguiríamos traduzi-lo em palavras, mas apenas expressar uma situação do que sentimos135. Essa situação seria interpretada, por um outro, de maneira sempre parcial, e não conseguiria reconstituir o ―original‖, pois já seria uma interpretação, colocando em jogo os próprios conceitos prévios do intérprete, trazendo à fala apenas uma situação do se-movimentar (GADAMER, 2008). Ao relacionarmos as obras de arte e o movimento humano/práticas corporais com a experiência, percebemos os limites de dizê-las (como evento inaugural), o que nos leva a pensar em como a tradução poderia amenizar o nosso esforço em ―dizer‖ o movimento humano/práticas corporais (gestos, expressões, sentimentos, fala, escrita) para um entendimento no plano intersubjetivo. Apesar de Gadamer (2008), tratar da tradução, tomando como referência as línguas estrangeiras, acreditamos ser possível estabelecer uma Guardadas as devidas proporções, essa relação (ou analogia) parece válida, tendo em vista que as obras de arte são representadas em telas, figuras, esculturas... e se perpetuam, em alguns casos, através dos tempos, já o movimento humano ocorre no plano da ação, na imediatez de uma situação. 135 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 388 relação com a tradução do movimento humano (se-movimentar) e produzir um entendimento sobre essa relação. O objetivo da tradução (grosso modo) de outras línguas é tornar acessível um ―texto‖, por exemplo, em uma mesma língua, para que os interlocutores possam produzir um entendimento sobre o que se deseja compreender. Na tradução, o tradutor ―precisa transpor o sentido a ser compreendido para o contexto em que vive o outro interlocutor‖ (GADAMER, 2008, p. 498), ao fazer isso, já está interpretando dentro do seu próprio horizonte e percebe a impossibilidade da tradução no sentido original da obra, mas deparase com uma nova obra, que deve guardar uma fidelidade com a original, ―sem suspender a diferença fundamental entre as línguas. Por mais fiéis que queiramos ser, em nossa tradução, vamos nos deparar com decisões delicadas‖ (idem, p. 500), com escolhas que precisam proporcionar um entendimento comum entre os intérpretes para a mesma língua, algo possível no medium da linguagem (GADAMER, 2008). Para Palmer (1989), a tradução de um texto é sempre interpretação, pois revela o confronto de dois mundos, o do interprete e o do texto. Nessa relação acontece a fusão de horizontes (do intérprete e da obra) que se dá, a cada vez, como interpretação (tradução) (GADAMER, 2008). Se na tradução de uma língua para a outra, já fazemos uma interpretação e não conseguimos reconstruir o original, no se-movimentar acontece algo semelhante, pois mesmo na repetição das práticas corporais sistematizadas (como no esporte, por exemplo), não conseguimos reconstruir o original, mesmo na reprodução dos mesmos movimentos há sempre um grau de instabilidade, é sempre um fazer de novo, é sempre uma nova experiência, que possui um caráter de abertura o que contraria a pretensão de universalização do movimento humano por parte da ciência (eliminando o caráter de historicidade do se-movimentar). Essa limitação também ocorre quando tentamos compreender o nosso próprio movimento, visto que não conseguimos ―traduzir‖ uma dimensão de nossa percepção, já há uma perda no pensar e no falar (no dizê-lo). Essa é uma condição de nossa existência no mundo, que se dá como um acontecimento (na experiência). Na interpretação de um outro se-movimentar captamos o ser da situação sem alcançar o seu ―plano original‖, mas só compreendemos o que é visível para nós, a percepção do sujeito que se movimenta fica no plano da invisibilidade (indizível). Essa é uma condição da própria linguagem que é enigmática uma vez que ―exprime perfeitamente sob a condição de não exprimir completamente, toda a sua força estando nessa maneira paradoxal de acercar-se das significações, aludi-las sem jamais possuí-las‖ (CHAUÍ, 2002, p. 17). ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 389 Nossa compreensão do mundo (e desse se-movimentar) se da nessa impossibilidade de alcançarmos plenamente a linguagem (dominá-la), pois esta sempre nos ultrapassa e é condição indispensável para a convivência humana ―sem assassinatos e homicídios, na forma de uma vida social, de uma constituição política‖ (GADAMER, 2009, p. 174), para que os homens possam se comunicar e pensar nas ―condições de possibilidade de sentenças intersubjetivamente válidas a respeito do mundo‖ (OLIVEIRA, 2006, p. 13) e produzir um entendimento comum. Esse entendimento comum só é possível porque temos, somos e pertencemos a um mundo (humano) que se torna compreensível para nós na e pela linguagem, a partir da experiência com o que se quer compreender. Assim, experiência e linguagem não podem ser vistas como dois polos opostos, mas como condição (complementar) de nossa compreensão do mundo. Faz-se necessário manter uma tensão desta relação paradoxal que nos parece intransponível, uma vez que a experiência encontra-se no ponto nodal da interseção entre a linguagem pública e a subjetividade privada, entre os traços que são expressos no plano comum e o caráter indizível da interioridade individual (JAY, 2009), o que se acentua ainda mais quando tratamos de nossa relação com as práticas corporais (ou a cultura corporal de movimento). Referências Bibliográficas: BETTI, Mauro. O que a semiótica inspira ao ensino da educação física. Discorpo, São Paulo, n.3, p.25-45, 1994. BRACHT, Valter. Educação física & ciência: cenas de um casamento (in)feliz. 2. ed. Ijuí: Ed. Unijuí, 2003. CHAUÍ, Marilena. Experiência do pensamento: ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty. São Paulo: Martins Fontes, 2002. (Coleção Tópicos). FENSTERSEIFER, Paulo Evaldo. A educação física na crise da modernidade. Ijuí: Ed. Unijuí, 2001. ___________. O que significa aprender no âmbito da cultural corporal de movimento? Atos de Pesquisa em Educação, Blumenau, v. 7, n. 2, p. 320-328, mai./ago. 2012. FENSTERSEIFER, Paulo Evaldo. GONZÁLEZ, Fernando Jaime. Educação física escolar: a difícil e incontornável relação teoria e prática. Motrivivência, Florianópolis, ano XIX, n. 28, p. 27-37, jul./2007. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 390 ___________. Entre o ―não mais‖ e o ―ainda não‖: pensando saídas do não-lugar da ef escolar I. Cadernos de Formação RBCE, p. 9-24, set. 2009. ___________. Entre o ―não mais‖ e o ―ainda não‖: pensando saídas do não lugar da ef escolar II. Cadernos de Formação RBCE, p. 10-21, mar. 2010. FENSTERSEIFER, Paulo Evaldo; PICH, Santiago. Ontologia pós-metafísica e o movimento humano como linguagem. Impulso, Piracicaba, 22 (53), p. 25-36, jan./abr. 2012). GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução de Flávio Paulo Meurer; revisão da tradução de Enio Paulo Giachini. 10. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. ___________.Verdade e método II: complementos e índices. Tradução de Enio Paulo Giachini; revisão da tradução de Márcia Sá Cavalcante-Schuback. 4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. JAY, Martin. Cantos de experiencia: variaciones modernas sobre un tema universal. Buenos Aires: Paidós, 2009. LAWN, Chris. Compreender Gadamer. Tradução de Hélio Magri Filho. Petrópolis: Vozes, 2007. (Série Compreender). OLIVEIRA, Manfredo A. de. Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2006. PALMER, Richard. Hermenêutica. Tradução Maria Luísa Ribeiro Ferreira. Lisboa: Edições 70, 1989. RUEDELL, Aloísio. Linguagem. In: GONZÁLEZ, F. J.; FENSTERSEIFER, P. E. (Orgs.). Dicionário crítico de educação física. Ijuí: Ed. Unijuí, 2005, p. 264-266. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 391 CONSIDERAÇÕES SOBRE O PACTO DOS RICOS E OS FUNDAMENTOS DA DESIGUALDADE CIVIL EM ROUSSEAU: A RECUSA DOS PRESSUPOSTOS LIBERAIS DE LIVRE CONCORRÊNCIA E COMPETIÇÃO SADIA Luís Fernando Jacques UNIOESTE [email protected] Dr. José Luiz Ames RESUMO: Através da análise política proposto por Rousseau em seu segundo Discurso acerca dos fundamentos das desigualdades e sobre o pacto dos ricos, podemos realizar um diagnóstico sobre o processo de transição dos acontecimentos sócio-políticos do século XX ao XXI. A humanidade se encontrava entre dois paradigmas. O paradigma da competição (da livre concorrência, da competição ou do mercado), que buscou ratificar as desigualdades civis e econômicas em códigos jurídicos, através das circunstâncias históricas (pacto dos ricos). E o paradigma da solidariedade, que busca oferecer soluções alternativas para a preservação da própria humanidade, da natureza e dos pressupostos da sociabilidade entre os povos. Sobre este tema me proponho a discutir o complexo debate político com o apoio do pensamento rousseauniano. Palavras-chave: Pacto dos ricos, desigualdade, livre concorrência. Através da análise do processo de transição dos acontecimentos sócio-políticos do século XX ao XXI, com o avanço preeminente do capitalismo e das ideias neoliberais, a humanidade tem se deparado constantemente com um dilema político o qual possui diretas implicações sócio-econômicas, que se resumem na escolha entre o paradigma da competição (da livre concorrência ou do mercado) e o paradigma da solidariedade. É com o auxílio do pensamento de Jean Jacques Rousseau, mais especificamente na segunda parte de sua obra Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, que tentarei apontar possibilidades de pensar e refletir sobre o tema, buscando critérios para melhor considerar a complexidade do debate acerca destes paradigmas contemporâneos. Rousseau na segunda parte deste discurso fundamenta sua estrutura conceitual através de hipóteses sobre quais foram os fundamentos ou a origem, do surgimento da desigualdade entre os homens. O filósofo argumenta que foi através do desenvolvimento ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 392 do hábito de considerar objetos e fazer comparações, que os indivíduos gradativamente adquiriram insensivelmente à ideia de mérito e de beleza, que produziram sentimentos de preferência. Isto se apresentava nas comunidades primitivas e continua a se expressar nas mais diversas manifestações culturais dos povos: a competição na dança e no canto, o mais belo, o mais forte, o mais hábil ou o mais frequente passou a ser o mais considerado, e foi esse o primeiro passo para a desigualdade – a ideia de estima e apreço a consideração. Neste ponto inicial percebemos uma característica primordialmente artificial da ideia de competição, que foi estabelecida e se desenvolveu com o surgimento da comunidade política, que não pode ser fundamentada na natureza. A moralidade assim começou a introduzir-se nas relações humanas, e sendo esta antes das leis a única mediação entre a relação social dos membros da comunidade, a bondade desinteressada conveniente antes ao estado de natureza, já não convinha mais à sociedade nascente. Através do desdobramento histórico da perfectibilidade, que, segundo Rousseau, é a capacidade que o gênero humano possui de aperfeiçoamento ou de degeneração, conforme o uso que faz do desenvolvimento de suas faculdades, no qual se estabeleceu em certo período de tempo. A relação de dependência entre os membros da comunidade, na qual gerou uma das primeiras noções da desigualdade, através da introdução da propriedade privada, na qual o trabalho tornou-se uma relação servil atrelada à escravidão. A invenção de outras artes, necessariamente forçou o gênero humano a aplicar-se ao desenvolvimento da agricultura. A noção de posse em relação ao solo neste contexto se deu a partir do uso da terra através do trabalho. A concepção idealizada de partilha do solo que poderia ter surgido, seria a noção de distribuição equitativa do território entre os indivíduos, de acordo com suas necessidades de subsistência e capacidades laborais. Porém, a ratificação das desigualdades civis e econômicas em códigos jurídicos, e a legitimação na sociedade primitiva da lei do mais forte, fizeram com que se pensasse contemporaneamente, principalmente através dos pressupostos liberais da livre concorrência, que a ideia de competição poderia ser fundamentada fazendo o apelo à natureza. O desenvolvimento das desigualdades segundo Rousseau, começou a surgir da diferença das faculdades desenvolvidas, o amor-próprio interessado, o emprego dos talentos, a desigualdade das fortunas e o abuso das riquezas, formam a constelação de variáveis fundamentais para pensar a desigualdade civil. A desigualdade natural se desdobrou insensivelmente com a desigualdade de combinação, e as diferenças entre os indivíduos, desenvolvidas pelas circunstâncias, ou seja, fatos e acontecimentos históricos ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 393 começaram a ficar gradativamente mais sensíveis e sutis com o avanço e o desenvolvimento da sociedade civil, influenciando cada vez mais sobre a vida e a liberdade dos particulares. Enfim, a ambição devoradora, a gana de aumentar sua fortuna relativa, menos por verdadeira necessidade do que para ficar acima dos outros, inspiram a todos os homens uma nefanda inclinação para si prejudicar mutuamente, uma inveja secreta tanto mais perigosa quanto, para aplicar seu golpe com maior segurança, frequentemente assume a máscara da benevolência; em suma, concorrência e rivalidade de um lado, oposição de interesses do outro e sempre o desejo oculto de tirar proveito à custa de outrem; todos esses males constituem o primeiro efeito da propriedade e o cortejo inseparável da desigualdade nascente. (ROUSSEAU, 1999, p. 218) Se Rousseau não propôs a eliminação das desigualdades econômicas e sociais, mas ficou apenas com a ideia da redução das riquezas e das fortunas, ao menos expôs de maneira clara a natureza e as características artificialmente explícitas de concorrência e rivalidade pelo ganho e pelo acúmulo de bens e de posses 136. E é por versar sobre este aspecto da filosofia política que se torna explícito o potencial crítico de Rousseau em pleno século XVIII. Sobre a origem das sociedades políticas, o filósofo aponta três principais linhas de raciocínio: primeiramente, Rousseau afirma que as sociedades políticas se fundamentaram através da legitimação da violência, não havendo nem corpo político, nem lei senão a lei do mais forte. Segundo, que as palavras forte e fraco não ajudam a compreender os fundamentos da desigualdade, mas o uso das palavras pobre e rico expressam o que os indivíduos não tinham antes das leis. Por último e fundamental, que os pobres têm somente a liberdade e a vida, e que loucura seria destituir-se voluntariamente da liberdade para receber nada em troca. Portanto, é razoável acreditar que foram os ricos que pactuaram na origem das relações de desigualdade, por que esta situação é mais útil aos ricos do que àqueles a quem prejudica. Na concepção histórico-genealógica de Rousseau em relação aos fundamentos das desigualdades, a sociedade nascente surgiu de um terrível estado de guerra. Nesta condição, Existem algumas correntes interpretativas da filosofia política que contestam a capacidade crítica de Rousseau ao propor apenas a redução das fortunas. O pressuposto aqui a ser destacado consiste fazer a devida ressalva ao autor, pois se faz necessário contextualizar historicamente o cenário político de sua época, pois Rousseau observava a sociedade civil da transição do feudalismo para o surgimento da burguesia do século XVIII. 136 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 394 os ricos logo perceberam as desvantagens de manter um conflito perpétuo cujas despesas pagavam sozinhas, e da qual o risco de vida e de perda dos bens era o mesmo. Foi então que os ricos decidiram se unir com seus semelhantes para combater os possíveis inimigos comuns: o conjunto de circunstâncias históricas da sociedade civil que Rousseau nomeou metaforicamente de pacto dos ricos. Através da alegoria literária e da ironia o filósofo descreve sua possível instituição: Unamo-nos, disse-lhes, para resguardar os fracos da opressão, conter os ambiciosos e assegurar a cada qual a posse do que lhe pertence. Instituamos regulamentos de justiça e paz aos quais todos sejam obrigados a adequar-se, que não abram exceção a ninguém e reparem de certo modo os caprichos da fortuna, submetendo igualmente o poderoso e o fraco a deveres mútuos. Em suma, em vez de voltarmos nossas forças contra nós mesmos, reunamo-las em um poder supremo que nos governe segundo leis sábias, que proteja e defenda todos os membros da associação, rechace os inimigos comuns e nos mantenha numa concórdia eterna. (ROUSSEAU, 1999, p. 221). Foi a partir da intuição do pacto dos ricos, na qual Rousseau pensou através da verossimilhança dos acontecimentos históricos, que ocorreu a destruição definitiva da liberdade natural fixando a lei da propriedade privada e da desigualdade, tornando este pacto em direito civil e a regra comum entre os cidadãos, nas palavras do genebrino ―de uma hábil usurpação fizeram um direito irrevogável‖ (ROUSSEAU, 1999, p. 222). É uma suposição ingênua e contraditória dizer que os governos foram escolhidos antes da confederação e que os ministros existiram antes das próprias leis. Não é nem razoável acreditar que um povo tenha alienado seus bens e sua liberdade a um senhor de forma absoluta, sem condições e nem compensações. Não é nem razoável imaginar que um povo possa trocar sua liberdade por uma condição de escravidão travestida de uma ilusória segurança. Difícil demonstrar a validade de um contrato que só obriga uma das partes, na qual se coloca tudo de um lado e reverte tudo em prejuízo ao outro lado que assumiu seu compromisso. Uma das máximas fundamentais do direito político consiste no fato dos povos aceitaram ter governantes, para que estes lhes defendessem a liberdade e não para que os escravizassem. Os políticos discursam sobre o apreço à liberdade e a justiça, da mesma ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 395 forma que os sofismas falavam sobre o estado de natureza: pelas coisas que vêem, julgam coisas muito diferentes137. Os governos se originaram pelo poder arbitrário, que não passa de corrupção, através de seu termo mais extremo, que acaba por reduzi-los unicamente a lei do mais forte. A lei do mais forte é um poder ilegítimo que não pode servir de fundamento para os direitos da sociedade civil, muito menos para a desigualdade de instituição. O povo reunido através do pacto de associação civil, tendo as suas vontades convergidas em uma só, todos esses artigos elaborados por esta vontade tornam-se leis fundamentais que obrigam o Estado, que não podem permitir privilégios e excepcionalidades, que regulamenta inclusive a escolha dos magistrados encarregados de zelar pelo bem comum. O direito de abdicar também pode ser fundamentado, pois nenhum contrato na sociedade civil é irrevogável. Pode se concluir que o progresso do processo das desigualdades se deu através do estabelecimento da lei e do direito de propriedade privada. Foi assim que o estado do rico e do pobre foi autorizado pela época. A instituição da magistratura e a mudança do poder legítimo para o poder arbitrário autorizaram o estado de dominação e escravidão, tornando-se o extremo grau da desigualdade. As distinções políticas levam necessariamente às distinções civis. A desigualdade estende-se sem dificuldade entre mentes ambiciosas e covardes, sempre prontas a correrem os riscos da fortuna. A comparação entre os indivíduos sem levar em consideração as diferentes práticas que possuem entre si, levam a desigualdade de crédito e de autoridade entre os particulares. As principais espécies de desigualdades e distinções pelas quais os indivíduos medem-se na sociedade civil: riqueza, posição social, poder e mérito pessoal. O desejo universal de reputação, honrarias e de preferências que pode ser desenvolvido no gênero humano através do amor-próprio, no qual exercita e compara os talentos e as forças, tornando os homens concorrentes e rivais. As consequências da corrupção e das desigualdades extinguem aos poucos os direitos dos cidadãos e a liberdade, transforma o protesto dos fracos em murmúrios sediciosos, reduzindo desta forma a atuação política dos três poderes, em um cartel de mercenários que se dizem zelar pelo povo e a honrar e defender a causa comum, enquanto que na verdade estão ali para defender interesses privados, que buscam legitimação através Assim também como alguns pesquisadores liberais que tentam apelar a natureza para fundamentar a competição na sociedade civil, é o mesmo que negar sociabilidade e relegar a razão a condição de selvageria e barbárie. 137 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 396 do jogo democrático e do voto. As leis se tornam regras funestas e extravagantes em relação à honra, na qual os defensores da pátria que deveriam proteger os cidadãos erguem suas armas contra a própria população. A livre concorrência do mercado e a especulação financeira, lança sobre a sociedade civil, um ar de concórdia aparente e assemelha-se a um germe de divisão real, esforço este que inspira às diferentes ordens uma desconfiança e um ódio mútuo mediante a oposição de seus direitos e de seus interesses, para fortalecer o poder dessa convenção social. O último termo da desigualdade, que aqui comparamos com o paradigma da livre concorrência e o da solidariedade, em que todos os particulares voltam a ser iguais perante a constituição porque nada são de fato, e que, já não tendo os cidadãos outra lei além dos interesses particulares, esvaziam-se as noções do bem e os princípios da justiça. Ou seja, a sociedade civil fundada através da desigualdade civil, torna-se uma comissão de indivíduos artificiais e de paixões factícias que são obras de todas essas novas relações 138 e não têm nenhum fundamento real na natureza. O genebrino neste Discurso expõe simploriamente alguns princípios da noção cosmopolita acerca da relação entre as nações, e também sobre a emergente necessidade de solidariedade para aperfeiçoar as relações de sociabilidade entre os povos: (...) a comiseração natural, que perdendo de sociedade em sociedade quase toda a força que tinha de homem, só reside ainda em algumas grandes almas cosmopolitas que transpõe as barreiras imaginárias que separam os povos, que a exemplo do ser soberano que as criou envolvem todo gênero humano em sua benevolência. (ROUSSEAU, 1999, p.222-223). Deste atual contexto, da extrema desigualdade de condições econômicas e políticas da contemporaneidade, que se esquecem os defensores das ideias liberais, quando tentam fundamentar a livre concorrência na sociedade civil: alegam que se todos são iguais perante as leis e o Estado, logo todos podem competir de maneira ―sadia‖ por seu espaço de atuação na comunidade política. No entanto, não pode existir competição ―sadia‖, pois a competição se baseia na anulação do outro, onde os que possuem melhores condições (ricos) são mais privilegiados do que aqueles que nada possuem se não apenas a liberdade e a vida (pobres). Relação de livre concorrência e competição sadia, segundo os ideais do liberalismo e do empreendedorismo, na qual os indivíduos são iguais formalmente perante as leis, logo podem competir na sociedade civil. 138 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 397 Buscar fundamentar na sociedade civil, o direito, a competição e a livre concorrência, recorrendo aos animais e ao estado de natureza, é o mesmo que negar a humanidade e todos os esforços de progresso e de sociabilidade, pois o ser humano diferente dos animais possuem consciência, razão e discernimento, logo tem a possibilidade de optar por escolher possibilidades solidárias, na qual preserva a humanidade, a natureza e os pressupostos da sociabilidade entre os povos. Referências Bibliográficas: ROUSSEAU, Jean Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos entre a desigualdade entre os homens: precedido de discurso sobre as ciências e as artes. Trad. de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 2º Edição. São Paulo: Martins Fontes. 1999. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 398 O PROJETO COPERNICANO DE GALILEU GALILEI Luiz Antonio Brandt Instituto Federal Farroupilha, Câmpus Santa Rosa [email protected] RESUMO: A defesa da teoria copernicana de uma Terra móvel está presente em grande parte da obra do físico e astrônomo italiano Galileu Galilei e nesse sentido este tema não passou despercebido aos estudiosos da obra deste importante cientista. No trabalho em questão abordaremos brevemente alguns destes autores e suas respectivas considerações, mas, sobretudo, buscaremos apontar alguns obstáculos enfrentados por Galileu no seu projeto de defesa da tese copernicana. Entre estes obstáculos, podemos destacar a importância da cosmologia e da física aristotélica como base conceitual que sustenta a teoria geocêntrica. É em razão da importância e necessidade de desmontar tal base conceitual que Galileu não poupou esforços em duas de suas principais obras (Sidereus Nuncius e Diálogo) na tarefa de criticar e substituir a filosofia da natureza aristotélica pelo seu projeto copernicano. Palavras-chave: Filosofia da Natureza. Cosmologia. Teoria heliocêntrica. Um dos traços mais marcantes da vida do físico e astrônomo Galileu Galilei (15641642) foi o esforço e a sagacidade com que lutou para mostrar a veracidade da posição copernicana. Algumas de suas principais obras exprimem este esforço. Publicamente, foi somente no ano 1610, com a edição do Sidereus Nuncius, que Galileu se pronunciou favorável à teoria heliocêntrica de Copérnico (1473-1543). É nesta pequena obra que o físico e astrônomo pisano anuncia ao mundo as novas descobertas astronômicas realizadas através do telescópio que havia construído no ano anterior. Para Galileu, as descobertas dos satélites de Júpiter, o aspecto montanhoso da Lua e as incontáveis estrelas fixas observadas, eram fortíssimos argumentos contra a cosmologia do filósofo grego Aristóteles (384-322 a.C.). Entretanto, é em sua obra Diálogo sobre dois máximos sistemas do mundo, publicada no ano de 1632, que melhor se exprime o espírito combativo e a luta de Galileu em defesa do copernicanismo. O rompimento com a cosmologia aristotélica era para Galileu uma necessidade, como também o era para os demais copernicanos, pois se a Terra deixasse de ocupar o ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 399 centro do universo, e passasse a ser apenas mais um planeta como os outros girando ao redor do Sol, considerá-la essencialmente diferente deles já não faria o menor sentido, isto é, não haveria mais razão nenhuma em separar o universo em duas regiões substancialmente distintas. Deve-se ressaltar, além disso, que, ao deslocar o centro das revoluções planetárias, os copernicanos ―deslocam‖ também o ponto de referência do cosmos aristotélico, ou seja, a coincidência entre o centro da Terra e o centro do universo. Neste sentido, o que, à primeira vista, parece simples é demasiado dificultoso para os copernicanos. Primeiramente porque a teoria heliocêntrica vai à contramão de toda uma tradição milenar que estava baseada nas doutrinas aristotélicas e, em segundo lugar, porque a suposição de uma Terra móvel contrariava a própria experiência diária do ―movimento‖ do Sol sobre a abóbada celeste. O desafio dos copernicanos não se encerra no âmbito estritamente astronômico, ou seja, não era apenas uma substituição entre dois sistemas astronômicos rivais, mas, além disso, significava reformular toda a filosofia natural pela qual o sistema ptolomaico estava edificado. Por essa via, o copernicanismo trazia consigo uma gama de problemas no que diz respeito à filosofia natural que impedia uma maior aceitação por parte dos setores ligados à astronomia: Aceitar o copernicanismo significava, como já diversas vezes ressaltei, recusar uma grande parte da filosofia natural aristotélica. Mas em nome de que filosofia natural se podia afirmar a necessidade de o Sol, e não a Terra, ser o centro do sistema do mundo. Era também essa consciência do problema físico existente na base das novas concepções astronômicas que fazia os jesuítas hesitarem. (FANTOLI, 2008, p. 131). Para entendermos melhor o pano de fundo que envolvia as discussões presentes na obra galileana, é necessário compreender algumas implicações do Revolutionibus de Copérnico sobre o trabalho de Galileu. A teoria física que ampara o geocentrismo é a física aristotélica. E a física peripatética, como a cosmologia do filósofo grego também são dependentes da centralidade e da imobilidade da Terra no centro do universo. Isto significa que, ao afirmar a descentralização e a mobilidade da Terra, Copérnico está longe de provocar uma simples transformação astronômica, na verdade, acaba deslocando o ponto de apoio da física e da cosmologia peripatéticas. Entretanto, parece evidente que a grande lacuna deixada pela obra copernicana seria a falta de uma proposta de uma nova física que fosse compatível com a nova estrutura cosmológica do universo sugerida pelo astrônomo polonês, e era necessário que tal proposta substituísse a ausência da física e da cosmologia aristotélicas. O ―preenchimento‖ desta lacuna, isto é, a substituição da física peripatética ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 400 por uma nova física ―copernicana‖, é um dos empreendimentos que encontramos na obra de Galileu. Apesar das sensíveis diferenças entre as concepções de mundo de Galileu e Aristóteles, não podemos nos esquecer de alguns pontos não tão opostos entre os dois autores. Seria difícil conceber, a partir da filosofia aristotélica, um universo em que os seres que o compõem não possuíssem finalidades pré-determinadas, pois resultaria em uma concepção caótica de mundo, o que se apresenta claramente oposto à noção hierarquizada e perfeitamente ordenada de cosmos defendida pelo filósofo grego. A seu modo, Galileu também concebe que o universo deva ser perfeitamente ordenado, mas não leva esta exigência a ponto de estabelecer, como Aristóteles, uma hierarquia de substâncias. Ao contrário, o cosmos galileano é homogêneo, e essa tese será contraposta ao postulado aristotélico pelas seguintes razões: a) para uma física com pretensões de interpretar a natureza às luzes da matemática e da geometria, a física qualitativa seria um obstáculo, pois acaba caracterizando, de certo modo, o movimento como intrínseco e incomensurável; b) as teses peripatéticas que afirmam a existência de uma hierarquia e de uma dicotomia cosmológica limitam a aplicação dos postulados da nova física concomitantemente a fenômenos celestes e terrestres; e c) em consequência de uma homogeneização do universo, a aceitação de que a Terra possui movimentos de translação análogos aos outros planetas seria muito mais plausível e aceitável, visto que a tese aristotélica de que os elementos estão hierarquicamente arranjados não determinaria mais a exclusividade do movimento circular à região celeste. Em outras palavras, como cada elemento possui uma única tendência de movimento natural, a concepção copernicana de que a Terra tem dois movimentos circulares (translação e rotação) fere tanto a concepção aristotélica de que a Terra, entendida como elemento, possui exclusivamente tendência a movimentar-se pela linha retilínea, como fere também a noção de que cada elemento deve ter apenas uma tendência de movimento. Ainda que não exista um consenso no que diz respeito às consequências das teorias e descobertas que ocorreram no campo do saber nos séculos XVI e XVII, não podemos subestimar o alcance e o impacto, por exemplo, das observações telescópicas e/ou das obras de Galileu Galilei sobre a história do pensamento científico e filosófico posteriores. Partilhamos do posicionamento139 de Alexandre Koyré (1892-1964), segundo o qual as ―A dissolução do cosmo, repito-o, eis o que me parece ser a revolução mais profunda realizada ou sofrida pelo espírito humano depois da invenção do cosmo pelos Gregos. É uma revolução tão profunda, de 139 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 401 teorias e obras desenvolvidas neste período, em especial as de Galileu, marcaram indelevelmente essa época, e de que a revolução copernicana está longe de ser uma transformação simples e natural da teoria geocêntrica à heliocêntrica. A ideia básica que temos acerca da revolução copernicana é que ela é uma mudança entre uma concepção de universo em que a Terra está imóvel no centro do mundo, por outra em que a Terra passa a ser mais um planeta em movimento ao redor do Sol, agora considerado centro do universo. Mas, por detrás da aparentemente simples afirmação, esconde-se um complexo jogo conceitual entre duas tradições, o qual não se limita tão somente a uma disputa astronômica e cosmológica. O que está em jogo implica consequências muito maiores, como deixa bem claro Koyré: O que os fundadores da ciência moderna, e entre eles Galileu, deviam então fazer não era criticar e combater certas teorias erradas, para as substituir por melhores. Deviam fazer algo completamente diferente: destruir um mundo e substituí-lo por outro, reformar a própria estrutura da nossa inteligência, formular de novo e rever os seus conceitos, conceber o Ser de uma nova maneira, elaborar um novo conceito de conhecimento, um novo conceito de ciência – e mesmo substituir um ponto de vista bastante natural, o do senso comum, por um outro que o não é de modo algum (KOYRÉ, (198-?), p. 19). As distinções que Aristóteles realiza entre os movimentos naturais e violentos, e entre os retilíneos e os circulares são, sem nenhuma sombra de dúvidas, as bases principais que sustentam a dicotomia céu-Terra e que serão alvos primários das críticas do físico pisano. Galileu está convencido da importância de romper com estas distinções e durante a Primeira Jornada concentra todas as suas forças neste objetivo, quer seja por meio de argumentos demonstrativos, quer seja utilizando-se de evidências empíricas, ou até mesmo de técnicas persuasivas. Willian Shea (1983, p. 142, grifos do autor) resume de maneira clara a estratégia central de Galileu na primeira parte do Diálogo: ―Para mudar este cosmos duplicado pelo uni-verso copernicano, Galileu devia demonstrar que a análise de Aristóteles era logicamente inconsistente e vazia de fundamentos empíricos reais‖; e completa logo em seguida: ―(...) e fez atacando a distinção, aparentemente natural, entre o movimento retilíneo e o circular sobre a que Aristóteles apoiava sua hipótese‖. (SHEA, 1983, p. 142). Poderíamos afirmar, sem exageros, que, de modo geral, no transcorrer da Primeira Jornada consequências tão longínquas, que, durante séculos, os homens – com raras exceções, entre as quais Pascal – não se aperceberam do seu alcance e sentido; e ainda agora é frequentemente subestimada e mal compreendida‖. (KOYRÉ, (198-?), p. 19). ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 402 Galileu questiona a própria ideia de natureza (physis) concebida pelo filósofo grego. Esta hipótese é possível em razão de no mundo aristotélico o movimento envolver a natureza constitutiva do objeto e, por exemplo, por menor que seja o deslocamento (queda de uma pedra), este terá uma finalidade pré-determinada – o seu lugar natural (no caso da pedra, o centro do mundo). Assim, questionar as distinções entre os movimentos naturais e violentos, bem como a própria noção aristotélica de movimento em sentido amplo140 é, por assim dizer, colocar em xeque a própria ideia de physis do filósofo grego. Poderíamos dividir a crítica galileana à dicotomia céu-Terra presente na Primeira Jornada em três momentos ou fases diferentes: 1) crítica à classificação aristotélica dos movimentos; 2) crítica ao princípio de que as gerações e corrupções, como também qualquer alteração, pressupõem a ação de contrários em um mesmo substrato; e, por fim, 3) apresentação de algumas observações telescópicas e de críticas ao argumento empírico apresentado na obra De Caelo (cf. De Caelo, I, 3, 270b 12-16). Além da crítica à classificação peripatética do movimento local em retilíneos e circulares, outra noção aristotélica será alvo na Primeira Jornada. As regiões celeste e terrestre, além de possuírem movimentos diferentes, possuem substâncias diferentes; a essas diferenças podemos acrescentar mais uma: a região celeste é perfeita e incorruptível, enquanto a terrestre é imperfeita e corruptível. Aristóteles alcança tais distinções a partir das diferenças entre os movimentos retilíneos e circulares e, sobretudo, através do princípio de que somente ocorrem gerações e corrupções onde existe a atuação de contrários em um mesmo substrato. Tal princípio, se assim podemos chamá-lo, está subordinado às diferenças entre os movimentos retilíneos e circulares, pois as gerações e corrupções que acontecem na região sublunar são ocasionadas pelos movimentos retilíneos, ascendentes e descendentes, que são contrários; e na região supralunar, onde se encontra exclusivamente o movimento circular, não haveria qualquer tipo de geração ou corrupção, pela ausência, por assim dizer, de qualquer tipo de movimento contrário ao circular. Sem tal classificação dos movimentos, o princípio de que as gerações e corrupções ocorrem restritamente entre movimentos contrários perde sua força como critério que distingue o mundo em duas regiões opostas. Galileu está consciente de que o cosmos heterogêneo está apoiado sobre a distinção aristotélica dos movimentos locais em retilíneos e circulares e da correspondência O movimento em Aristóteles não é unicamente o deslocamento ou movimento local. Mas, além disso, o movimento tem papel fundamental na natureza, como princípio operativo do vir-a-ser. Assim, movimento para o filósofo grego pode significar também: alterações qualitativas, aumentos e diminuições, gerações e corrupções, além, é claro, do próprio deslocamento. 140 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 403 destes com a natureza específica das substâncias141 que compõem o universo. Por essa razão, o físico pisano declara, por meio do personagem Salviati, que ―Se de algum modo, no que foi estabelecido até aqui (conforme a classificação dos movimentos), descobrir-se uma deficiência, poder-se-á razoavelmente duvidar de todo o restante, que sobre isso for construído‖. (GALILEU, 2001, p. 98). Apresentamos brevemente neste texto alguns problemas enfrentados por Galileu no seu projeto de defesa do copernicanismo. Entre os quais destacamos a importância basilar que a filosofia da natureza de Aristóteles tinha na sustentação da posição geocêntrica e a necessidade de Galileu e dos copernicanos em desmontar e substituir tal filosofia por uma nova física capaz de fundamentar o sistema heliocêntrico. Referências Bibliográficas: ARISTÓTELES. Acerca del cielo. Traducción de Miguel Candel. Madrid: Editorial Gredos, 2008. FANTOLI, A. Galileu – pelo copernicanismo e pela Igreja. Tradução de Sergio Braschi. São Paulo: Loyola, 2008. GALILEU, G. Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo ptolomaico e copernicano. Tradução, introdução e notas de Pablo Rubén Mariconda. São Paulo: Discurso Editorial, 2001. KOYRÉ, A. Galileu e Platão e Do Mundo do „mais ou menos‟ ao Universo da Precisão. Tradução de Maria T. B. Curado. Lisboa: Editora Gradiva, (198-?). SHEA, Willian R. La revolución intelectual de Galileo. Barcelona: Editorial Ariel, 1983. O termo substância, nesta passagem, faz referência aos elementos (terra, água, ar e fogo) e, juntamente com estes, à quintessência (éter ou substância celeste). 141 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 404 A QUESTÃO DA ALFABETIZAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: UMA REFLEXÃO DIALÓGICA A PARTIR DE FREIRE E DUSSEL. Luiz Carlos Frederick142 RESUMO: Este artigo é um recorte da dissertação de mestrado que levou o título: ―Análise do programa de formação continuada do MOVA/AVIB: a voz de educadores populares‖. Tem por objetivo compreender como o educador Paulo Freire e o filósofo Enrique Dussel concebe a alfabetização de jovens e adultos; e como referência de alfabetização libertadora e dialógica apresenta-se a experiência do Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos (MOVA) que teve início na cidade de São Paulo em 1989 pelo próprio Paulo Freire e equipe em conjunto com os movimentos sociais; e hoje está organizado em vários estados do Brasil, sendo um espaço de educação popular que contribui na leitura do mundo e na busca de transformação social. Palavras-chave: alfabetização, Freire, Dussel, MOVA, educação libertadora. DISCUSSÃO Apresento duas concepções acerca da alfabetização que se complementam: a visão do professor Paulo Freire e do filósofo Enrique Dussel. Antes, convém elucidar que estes educadores têm a compreensão que alfabetizar não é um processo neutro e apolítico, ao contrário, a ação de alfabetizar apresenta implicações políticas que contribuem para um caminho de transformação social, política, econômica e cultural. No Congresso Brasileiro de Alfabetização, de 14 a 16 de setembro de 1990, Ano Internacional da Alfabetização, educadores reunidos em São Paulo apresentaram várias proposições a respeito da situação da alfabetização no Brasil e das políticas públicas que deveriam ser implementadas, quando se afirma que ―as políticas de alfabetização precisam Luiz Carlos Frederick fez Mestrado em Educação na Universidade Cidade de São Paulo em 2011, apresentando a dissertação: ‖Análise do programa de formação continuada do Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos (MOVA) da Associação dos Voluntários Integrados no Brasil (AVIB): a voz de educadores populares‖, orientado pela professora Doutora Ângela Maria Martins. 142 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 405 envolver ações permanentes e sistemáticas relacionadas a programas de educação básica, de maneira a garantir sua qualidade‖ (GADOTTI, ROMÃO, 2001, p.109). O documento acima citado entende que o conceito de analfabetismo carrega consigo preconceitos e incorreções, pois, usualmente, o analfabeto tem sido colocado como uma pessoa desqualificada para o exercício da cidadania, um mal a ser extirpado, sem que haja a compreensão que ele é um sujeito de direitos. Para tanto, o analfabeto deve ser reconhecido como, Cidadão participante da sociedade, produtor de cultura e que, por sua condição de classe, sexo, raça e portador de deficiência, tem sido privados do direito à aquisição dos códigos da leitura e da escrita e de conhecimentos que ampliam suas possibilidades de participação e transformação social. Deve-se superar o conceito restrito de que alfabetizado é o ‗indivíduo capaz de ler e escrever um bilhete simples‘. Estar alfabetizado é integrar à vida de qualquer cidadão a condição de leitor, escritor e comunicador, bem como garantir o acesso a outros conhecimentos que ampliem sua inserção crítica e participativa na sociedade (GADOTTI; ROMÃO, 2001, p.109). Nesta compreensão, a alfabetização é concebida como um processo educacional que vai além da leitura e da escrita, da superação e da ausência de formação e de aquisição de conhecimento. É uma questão de política pública, que exige dos governos um projeto estruturado para responder às expectativas de uma educação de adultos que permita alcançar o exercício da cidadania, garantindo assim, o cumprimento previsto na última Constituição Federal de 1988, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, 1996), e no Plano Nacional de Educação (PNE, 2001) que assegura a educação pública e gratuita como um direito de todos. Para Paulo Freire143 (1991), o analfabeto é aquele que vive nas periferias, nas ocupações, favelas ou cortiços das grandes cidades. Vive geralmente de subemprego, dedicando-se a profissões que não exigem habilitação específica e tem consciência que precisa saber ler e escrever. Porém, isto não basta, pois por si só não altera as condições de moradia e de vida, estas condições só se alteram pelas lutas coletivas dos trabalhadores por mudanças estruturais da sociedade. Paulo Freire, pernambucano, nasceu em Recife, em 19 de setembro de 1921 e falecido em 02 de maio de 1997, conhecido mundialmente como educador, pensador, filósofo e militante da educação; e uma referência importante na educação de jovens e adultos. O MOVA/SP foi criado em 1989 quando ele exerceu a função de Secretário Municipal de Educação na cidade de São Paulo, no Governo Luiza Erundina. Freire é autor de mais de 25 livros; foi professor nas Universidades de Harvard e Genebra, na Universidade Estadual de Campinas e na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 143 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 406 Segundo Freire (1991, p. 118), a questão principal, na alfabetização, Não é de natureza técnica. As questões principais na alfabetização são de natureza político-ideológico e científica a que se juntam aspectos técnicos necessários. O ponto de partida é a decisão, a vontade política de fazer, a arregimentação dos recursos e a formação rigorosa dos educadores e das educadoras. Freire (1987) constata que o analfabetismo aparece numa visão ingênua ou astuta como a manifestação da incapacidade do povo de sua pouca inteligência. A partir desta visão, a alfabetização, ―se rende ao ato mecânico de depositar palavras, sílabas e letras nos alfabetizandos. Este depósito é insuficiente para que os alfabetizandos comecem a afirmarse, uma vez que, em tal visão, se empresta à palavra um sentido mágico‖ (p. 15). O autor observa que, geralmente os textos das cartilhas de alfabetização nada têm a ver com a experiência dos alfabetizandos, pois estes adultos são tratados de maneira paternalista, às vezes infantil, como passivos, receptores das letras. Os alfabetizandos deverão lidar com outro aprendizado: o de escrever a sua vida, ler a sua realidade, daí a importância de tomar a história nas mãos para fazer e reescrever os acontecimentos importantes que marcaram a sua existência. E acrescenta que (...) a primeira experiência prática que a concepção crítica da alfabetização se impõe é que as palavras geradoras com as quais os alfabetizandos começam sua alfabetização como sujeitos do processo sejam buscadas em seu universo vocabular mínimo, que envolve sua temática significativa (FREIRE, 1987, p. 21). A partir desta perspectiva, o analfabeto é colocado como aquele a quem foi negado o direito de ler, ninguém é analfabeto por escolha, mas como consequência das condições objetivas em que se encontra. O processo de alfabetização, assim, deve ser visto como uma ação cultural para a libertação, em que o educando assume um papel de sujeito em relação ao educador. Entretanto, para que haja esse processo de alfabetização e para que seja um ato de conhecimento, é necessário estabelecer uma relação de diálogo autêntico em que os alfabetizandos ―assumam desde o começo mesmo da ação, o papel de sujeitos criadores, aprender a ler e escrever já não são, pois memorizar sílabas, palavras ou frases, mas refletir criticamente sobre o próprio processo de ler, e escrever e sobre o profundo significado da linguagem‖ (FREIRE, 1987, p. 59). ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 407 Assim, aprender a ler e escrever envolve ação e reflexão. O significado de dizer a palavra é carregado de profundidade, é o direito de expressar-se e expressar o mundo, de criar e recriar. Pois o ato de conhecer, Envolve um movimento dialético que vai da ação a reflexão sobre ela e desta a uma nova ação. Para o educando conhecer o que antes não conhecia, de se engajar num autêntico processo de abstração por meio do qual reflete sobre formas de orientação no mundo, em que se sobrepõem momentos de sua cotidianidade (FREIRE, 1987, p. 60). O autor sublinha que o processo de alfabetização deve relacionar o ato de transformar o mundo ao ato de pronunciá-lo. Ao referir-se ao diálogo educador-educando, este não tem nada a ver, ―de um lado com o monólogo do educador ‗bancário‘, de outro, com o silêncio espontaneísta de certo tipo de educador liberal, o diálogo engaja ativamente a ambos os sujeitos do ato de conhecer, educador-educando e educando-educador‖ (FREIRE, 1987, p. 61). De forma sucinta, apresento uma experiência importante que desabrochou a partir desta concepção freiriana, que é a formação do Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos (MOVA) que se iniciou em São Paulo e hoje está organizado em vários estados brasileiros. O MOVA foi idealizado por Paulo Freire e sua equipe em conjunto com representantes dos movimentos sociais de educação popular explicita o desejo de organização e superação do analfabetismo, resgatando o direito à pronúncia da palavra em vista de contribuir nas transformações da sociedade. O MOVA foi pensado e implementado na cidade de São Paulo, primeiramente em 1.989, em regime de parceria entre os movimentos populares e a Prefeitura Municipal de São Paulo, na gestão da Prefeita Luiza Erundina (1.989-1.992). Segundo Ribeiro (2009), com a Constituição de 1.988, chamada de cidadã, e o fim da Fundação Educar, o Ministério da Educação desobriga-se a atender o direito de ensino fundamental aos adultos, repassando tal responsabilidade aos municípios e aos estados. Nesse contexto, surgem diversas experiências voltadas para a alfabetização e sob orientação dos próprios municípios em parceria com universidades, ONGS e movimentos populares. Um destaque dessa realidade é a experiência do MOVA/SP. De acordo com Macena (2009), as práticas de movimentos sociais de educação de jovens e adultos na zona leste existiam desde 1987, quando as pessoas que participavam destes projetos não queriam apenas ler e escrever, mas procuravam se envolver efetivamente nas questões sociais em defesa de direitos e do exercício da cidadania. O autor ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 408 aponta que havia diversas experiências na cidade de São Paulo e analisa dentre outras, a que foi implementada por Francisco de Assis Ferreira, presidente fundador do Centro de Educação da Zona Leste, o que resultou na criação do MOVA. O próprio Freire (2001) testemunha o surgimento do MOVA, quando afirma que este se origina a partir de grupos populares que desenvolviam trabalhos de alfabetização e junto com outros setores, como as Universidades e as Igrejas, criou 2000 núcleos para atender 60.000 pessoas. Os objetivos eram: reforçar e ampliar o trabalho dos grupos populares que já trabalhavam com a questão, possibilitar aos educandos uma leitura crítica da realidade, desenvolver a consciência política e reforçar o incentivo à participação popular e a luta pelos direitos sociais do cidadão. Para Carlos Alberto Torres, o surgimento do MOVA/SP é uma experiência muito interessante, pois possibilitou a parceria entre movimentos sociais que lutaram pela defesa da mulher, da moradia, da alfabetização de jovens e adultos em conjunção com a Secretaria de Educação e ―que coisa interessante se passa com a presença simbólica e prática de Paulo Freire à frente de uma equipe na Secretaria da Educação‖. (GADOTTI, 2001, p. 26). Observa-se que a criação deste projeto de educação não tinha como objetivo simplesmente o resgate de suprir as dificuldades da não alfabetização, do ensinar a leitura e a escrita, mas eram outras questões de cunho social e políticos que estavam colocadas naquela conjuntura. A educadora Janis Kunrath evidencia que a denominação de movimento de alfabetização, ―traz em si a noção de mobilização, engajamento dos grupos organizados da sociedade civil, do constante movimento de participação dos grupos que desenvolvem alfabetização de jovens e adultos‖. (KUNRATH. 2006 p. 4). Esta parceria é enaltecida por outro educador ao referir-se a questão do MOVA, Gadotti (2001) afirma: Que o MOVA é um dos raros exemplos de parceria entre a sociedade civil e o poder público, acrescenta que essa relação nem sempre é harmoniosa, pois as tensões e conflitos fazem parte do processo e tornase uma condição necessária para um trabalho que é fruto de uma construção. Ele acrescenta que o MOVA não impôs uma única orientação metodológica, o método Paulo Freire, procurou garantir o pluralismo, com uma condição, não aceitando métodos pedagógicos anticientíficos e filosóficos autoritários ou racistas. A concepção que prevaleceu no desenvolver das experiências do mova foi à concepção libertadora de educação (p. 93). Assim, a erradicação do analfabetismo não se realiza simplesmente com campanhas de alfabetização, estas podem até ajudar, porém, o que poderá fazer a diferença é a ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 409 construção de políticas públicas que resgatem a pessoa em situação de analfabetismo, possibilitando que esta assuma um papel de protagonismo e autonomia na busca de superação deste problema que tem se agravado com o passar dos anos. Neste mesmo entendimento, Dussel (1977a)144 destaca que o latino-americano deve ser identificado como indígena como negro escravizado, como mulher violentada, como criança empobrecida, como um ―ser negado‖ ao longo da história de colonização e dominação coordenada pela Coroa Espanhola e Portuguesa. Neste viés o sujeito pode ser compreendido como aquele que é excluído da alfabetização, em que se nega o direito à educação, à escola, a alfabetizar-se numa concepção dialógica, onde o alfabetizando é também sujeito do processo de formação e alfabetização. Segundo Dussel, o ser negado é propriamente o ponto de partida da filosofia da libertação, que busca refletir sobre o oprimido e o marginalizado pelo sistema opressor do centro. Dussel (1977a, p. 62) enfatiza o significado da relação face-a-face entre o pai e o filho, professor e aluno, em que há necessidade de escutar o outro como exigência para que ocorra a verdadeira educação que leva à libertação, quando afirma que, Saber ouvir o discípulo é poder ser mestre, é saber inclinar-se diante do novo; é ter o próprio tema do discurso pedagógico. O autêntico mestre primeiro ouvirá a palavra objetante, provocante, interpelante daquele que quer ser outro. Somente o que escuta com paciência, no amor de justiça é a esperança do outro como libertador, na fé de sua palavra, somente ele poderá ser mestre. Contradizendo a educação dominadora, o autor afirma que a educação libertadora se funda e vai se delineando na medida em que se ouve a palavra do outro, Ouvir a voz do outro como Outro significa uma abertura ética, um expor-se pelo outro que ultrapassa a mera abertura da totalidade ao outro, esta abertura é, silêncio, mas não silêncio interior à fala, e sim silêncio da própria fala, silêncio do mundo, aniquilamento e disponibilidade ao outro como outro. (DUSSEL, 1977a, p.63). Trata-se de Enrique Dussel, nascido em Mendonza na Argentina em 1934. Tem uma longa história de luta pela libertação latino-americana, tendo sido inclusive vítima de um atentado à bomba do governo militar argentino, em 1975 exilou-se no México. É considerado um dos principais nomes da nova filosofia latino americana, chamada da libertação, que tem as suas origens na década de 80, praticamente no mesmo período em que emergiu a Teologia da Libertação. Este pensador tem trabalhado e cunhado categorias próprias, no sentido de resgatar a autonomia e o protagonismo da filosofia ameríndia. 144 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 410 Registre-se que Paulo Freire (1983, p. 39) pensa na mesma direção, ao afirmar que o aluno, o discípulo, aquele que se coloca numa atitude de alfabetização, deverá praticar atitudes de resgate do outro, numa postura de seu reconhecimento. Ele destaca que todos têm direito à pronúncia da palavra e esta pode levar à liberdade e à consciência, quando afirma: Desta maneira, o educador já não é o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando que, ao ser educado, também educa. Ambos, assim, se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos, e em que os ‗argumentos de autoridade‘ já não valem. Em que para ser-se funcionalmente, autoridade, se necessita de estar sendo com as liberdades e não contra elas. Já agora ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: Os homens se educam em comunhão, midiatizadas pelo mundo. Corroborando com esta proximidade entre Dussel e Freire, Pazello (2007, p. 18) afirma que o ouvir o outro, categoria cunhada por Dussel nada mais é do que a dialogicidade de Freire, que apresenta a educação como prática de dominação como a imperante no mundo hodierno. Para este autor, Dussel vai nos apresentar o filicídio cometido pelo Pai-Estado que, ao mesmo tempo, reprime machistamente a mãe-cultura popular. Em sendo a mãe libertada, sê-lo-á o filho também e, por conseguinte, o pai, ou seja, a cultura popular e estada ligados para receberem anadia-leticamente o novo, o criador, a criança (podemos acrescentar, o jovem e adulto em que é negada a alfabetização). Outra categoria cunhada por Dussel é a pedagógica que também dialoga com Paulo Freire, pois esta pedagógica é vista ―como parte da filosofia que pensa a relação facea-face do pai-filho, mestre-discípulo, médico, psicólogo-doente, filósofo-não filósofo, político-cidadão‖. (DUSSEL, 1977b, p. 153). É importante também discutir mesmo que brevemente a ética da libertação em Dussel, que tem como ponto de partida a participação comunitária na busca de novos consensos que se dão na relação dialógica entre o educador e educando. Para Pazello (2007) a ética da libertação em Dussel, ―pauta-se pela validade anti-hegemônica da comunidade das vítimas‖ (p. 9). O conceito de ―ser negado‖ de Dussel pode ser utilizado na análise das pessoas que estão em processo de alfabetização. Aplicado numa perspectiva dialógica, este conceito sugere que o alfabetizando deve ser ouvido, pois tem o direito à pronúncia da palavra, na mesma direção apontada por Paulo Freire. Desta maneira, a alfabetização se faz no diálogo ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 411 entre o alfabetizador e o alfabetizado e seus colegas de estudo, mediados pela realidade em que vivem; e o MOVA pode ser um destes espaços em que se desenvolve esta prática libertadora, possibilitando o resgate da pronúncia da palavra e da leitura do mundo em vista da transformação social. Referências Bibliográficas: DUSSEL, Enrique. Filosofia da libertação. São Paulo: Loyola, 1977a ___________. Para uma ética da libertação latino-americana acesso ao ponto de partida da ética. São Paulo/Piracicaba, co-edição Loyola e UNIMEP, 1977b FREIRE, Paulo. Política e educação. São Paulo: Cortez, 2001. ____________. edagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1983. ____________. A educação na cidade. São Paulo: Cortez, 1991. ____________. Ação cultural para a liberdade. São Paulo: Paz e Terra, 1987. GADOTTI, Moacir; ROMÃO, José. Educação de jovens e adultos, teoria, prática e proposta. São Paulo: Cortez, 2001. KUNRATH, Janis Leonícia. A formação de educação do MOVA/SP no contexto de educação popular. Dissertação de mestrado, PUC SP, 2006. MACENA, Chico. De olho na educação, 20 anos de história e frutos do MOVA/SP. Câmara Municipal de São Paulo, outubro 2009. PAZELLO, Ricardo Prestes. Pedagógica: diálogo da libertação latino-americana a partir de Enrique Dussel e Paulo Freire. Curitiba, Faculdade de Direito, UFPR, 2007. RIBEIRO, Clayton Diógenes. Estado do conhecimento da educação de jovens e adultos no Brasil: um balanço de teses e dissertações (1999-2006). Dissertação de mestrado, UNISANTOS, 2009. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 412 CONSIDERAÇÕES SOBRE O PENSAMENTO POLÍTICO DE HANNAH ARENDT Marcelo Barbosa [email protected] RESUMO: Neste texto se encontra as compreensões de Hannah Arendt no que diz respeito à liberdade política, à ação e ao discurso. Acerca do sentido da liberdade política estão ligadas às experiências e às noções de política criadas na antiga Grécia e desenvolvidas desde o período medieval romano cristão até as revoluções Americana e Francesa. A autora busca salientar o sentido da ação política, a qual é protagonizado por atores livres que, desde o nascimento, possuem a capacidade ativa e intersubjetiva de iniciarem uma nova cadeia de acontecimentos no âmbito da esfera pública. E a novidade da Revolução Americana, com a experiência dos primeiros colonos no estabelecimento de uma constituição, e uma forma de governo cujo poder se assenta na participação efetiva do cidadão nos assuntos da República. Palavra-chave: Liberdade. Política. Ação. Com o aparecimento dos governos totalitários desperta em Hannah Arendt o interesse pela questão da política. A discussão sobre o assunto se move em torno de suas ―experiências de pensamento‖ sobre a política antiga, moderna e da época em que viveu. Para Arendt, liberdade e política, em termos originários, significam a mesma coisa, ou seja, uma determinada forma de organização social, baseada na participação ativa dos cidadãos, desenvolvida na cidade grega nos últimos séculos antes da era cristã. Esse tipo de compreensão da política, contudo, após o declínio da polis grega e a ascensão do Império Romano e Cristão, foi ofuscada ou configurada por outros conteúdos e significados. Principalmente no início dos tempos modernos o significado de liberdade política é caracterizado por outros conceitos, tendo como lugar central a vida social e a obrigação do governo de proteger a vida privada do indivíduo. Para tanto, foram utilizadas as seguintes obras de Hannah Arendt: O que é política?, A condição humana e Da revolução. Arendt salienta que é a partir do nascimento – natalidade – que o homem é capaz de iniciar uma cadeia de novos acontecimentos. A natalidade é a forma pela qual o humano se insere no mundo como algo novo. É a partir desse momento, do inserir-se no mundo, ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 413 que esse ser, que fala e age, tem a possibilidade de dar início a uma cadeia de novos acontecimentos que estruturam toda a teia de ralações humanas, assim o discurso e a ação dão uma postura humana aos acontecimentos e ao mundo. Se a ação, como inicio, corresponde ao fato do nascimento, se é a efetivação da condição humana da natalidade, o discurso corresponde ao fato da distinção e é a efetivação da condição humana da pluralidade, isto é, do viver como um ser distinto e único entre iguais. (ARENDT, 1983, p. 223). A pluralidade é a condição humana fundamental para Arendt, pois os homens agem politicamente numa relação intersubjetiva. O sentido original de liberdade política tem a ver com a existência de uma esfera pública e com a possibilidade de se unirem para realizar empreendimentos. É no discurso e na ação, que são coesas, que o homem se distingue dos outros animais e entre seus pares, ―são os modos pelos quais os seres humanos aparecem uns para os outros.‖ (ARENDT, 1983, p. 220). Desse modo, os homens expressam ideias e opiniões, formando uma ―teia de relacionamentos‖ que de forma ilimitada e imprevisível iniciam novos acontecimentos a cada momento em que o homem age no mundo. O domínio político é o resultado direto da ação em conjunto, do compartilhamento de palavras e atos, ―A ação, portanto, não apenas mantém a mais íntima relação com a parte pública do mundo comum a todos nós, mas é a única atividade que a constitui‖ (ARENDT, 1983, p. 247). A polis, é uma organização humana que surge do resultado do agir e do falar em conjunto, surgindo entre as pessoas que vivem juntas, ela é um espaço de aparência entre os homens. Este espaço de aparência emerge quando discursamos e agimos: ―Onde quer que as pessoas se reúnam, esse espaço existe potencialmente, mas só potencialmente, não necessariamente nem para sempre‖ (ARENDT, 1983, p. 249). É nesta potencialidade da ação que se manifesta o poder no domínio público. O único fator material indispensável para a geração de poder é a convivência entre os homens na pluralidade que é a sua condição humana. O poder preserva o domínio público e o espaço de aparência e, como tal, é também a força vital do artifício humano, que perderia sua suprema raison d‘être se deixasse de ser o palco da ação e do discurso, da teia dos assuntos e relações humanos e das estórias por eles engendradas (ARENDT, 1983, p. 254). Sem ação não há nada de novo, e sem o discurso não há como materializar e memorar as coisas novas. E, sem o poder o espaço da aparência produzido pela ação e pelo ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 414 discurso em público se desvanecerá tão rapidamente como o ato vivo e a palavra viva. Assim a ação esta sempre condicionada à pluralidade, enquanto parte nas relações humanas ela se torna imprevisível, ou seja, a ação se torna incerta por não possuir um fim determinado. A busca pela substituição da ação pela fabricação, desde Platão, é de encontrar nela uma forma de buscar meios práticos de fugir da política, é a noção de que alguns possuem o direito de comandar e os demais forçados a obedecer, buscando encontrar um substituto da ação. A fabricação se caracteriza pelo uso da violência e é limitada, pois parte de um começo e um fim já definido. Em que aquele que toma a iniciativa não se permite qualquer envolvimento com a ação. Platão via no conceito de governo o principal instrumento para ordenar e julgar os assuntos humanos sob todos os aspectos. Na Republica as ideias se convertem em ações; o rei-filosofo aplica as ideias como o artesão aplica suas regras e padrões. Dessa forma a violência se torna presente assim como na fabricação, onde todos os meio se tornam admissíveis e justificados para alcançar alguma coisa que se definiu como um fim. Segundo Arendt, tanto para Platão como para Aristóteles as questões políticas são tratadas à maneira da fabricação. Arendt utiliza o exemplo do teatro, este, mostra a arte reveladora da ação e do discurso e a manifestação implícita do agente e do orador, indicando assim que a representação teatral é uma imitação da ação, ela nunca acontece com um sujeito isolado. O ator desse modo nunca é um simples ―agente‖, ele é sempre também paciente, pois toda estória iniciada por ele causa consequências ilimitadas formando uma reação em cadeia e causando novos processos. Uma nova ação sempre afeta outros. ―Assim, a ação e a reação entre os homens jamais se passam em um círculo fechado, e jamais podem ser restringidas de modo confiável a dois parceiros‖ (ARENDT, 1983, p.238). A ação política é ilimitada, pois se inter-relaciona entre os homens, uma fronteira sem limites de possibilidades de novos acontecimentos. ―A ilimitabilidade da ação é apenas o outro lado de sua tremenda capacidade de estabelecer relações, isto é, de sua produtividade específica‖ (ARENDT, 1983, p. 239), Ela é a virtude política por excelência. Arendt observa que, para que o cidadão grego pudesse viver de forma livre na polis ele deveria estar isento da coação do outro e da atividade do trabalho como condição de suprir suas necessidades vitais. O sentido grego de liberdade, por um lado, ocorria de forma negativa, isto é, onde o indivíduo não era dominado e nem tinha a intenção de dominar o outro. Em outro sentido, ela era positiva, pois a liberdade era efetivada na esfera pública da ágora que só pode ser produzida pelo concurso plural dos cidadãos livres e iguais que pudessem se relacionar através do diálogo e do convencimento recíproco. Os ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 415 acontecimentos humanos estão sempre relacionando por um ―Inter-esse”, ou seja, aquilo que está entre as pessoas e as relaciona que afinal é o mundo comum, vinculados por um interesse comum, se estabelecem o que Arendt chama de espaço-entre, que é o resultado de uma objetividade mundana. Essa objetividade mundana acolhe toda intersubjetividade humana e todos os interesses que formam a teia de relações humanas. É essa teia de relações humanas, no espaço-entre que torna a ação imprevisível e intangível. ―É em virtude dessa teia preexistente de relações humanas, com suas inúmeras vontades e intenções conflitantes, que a ação quase nunca atinge seu objetivo‖ (ARENDT, 1983. p. 230). Arendt retoma a ideia da liberdade política na polis grega que não separava o falar do agir, o próprio falar já é uma forma de ação, ―o autor de grandes feitos também deve ser sempre, ao mesmo tempo, um orador de grandes palavras‖ (ARENDT, 2011, p. 56). A ideia de que, quando se fala entre iguais as palavras podem ser retrucadas, e no sentido de réplica a ação da fala se desenvolve no convencimento do outro. Destacando outra liberdade fundamental que é a liberdade de externar opiniões. A liberdade de externar opinião, determinante na organização da polis, distingue-se da liberdade característica do agir, do fazer um novo começo, porque numa medida muitíssimo maior não pode prescindir da presença de outros e do ser confrontado de suas opiniões (ARENDT, 2011, p. 58). A liberdade de iniciar algo novo a partir da opinião na presença do outro já esta pressuposta na política ―Nesse sentido, política e liberdade são idênticas e sempre onde não existe essa espécie de liberdade, tampouco existe o espaço político no verdadeiro sentido‖ (ARENDT, 2011, p. 60). Para os gregos o corpo político tinha como fundamental característica o falar com o outro na polis. Platão ao definir sua ideia de liberdade se contrapôs a forma grega de liberdade política. Platão torna a política um meio para um objetivo mais elevado, o que antes fazia parte da discussão do cidadão, agora esta voltada para uma minoria que utilizava a academia como um meio para falar livremente a respeito da discussão filosófica da liberdade política. Platão, estabelece como critério a filosofia acadêmica, deixando assim a política restrita ao pensamento do filósofo, surgindo dessa maneira um novo espaço para discutir a liberdade. Nesse sentido o filósofo necessitava se libertar da política no sentido grego, para poder ser livre no espaço político da academia, ―Assim como a libertação do trabalho e das preocupações com a vida eram pressupostos necessários para a liberdade da coisa política, a libertação da política tornou-se pressuposto necessário para a liberdade da ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 416 coisa acadêmica‖ (ARENDT, 2011, p. 63). No período cristão o deslocamento do sentido da liberdade ocorreu pelo fato de que o pensamento teológico responde a pergunta sobre o que é política pela resposta dada para a questão, o que é homem? O zoon politikon aristotélico é interpretado de forma errônea pelos cristãos. Enquanto que para Aristóteles, ―a palavra politikon era de fato um adjetivo da organização da polis‖ (ARENDT, 2011, p. 46), e não qualquer forma de organização de convívio humano, o pensamento teológico naturaliza a política. O cristianismo se apodera da coisa pública tornando-a um meio para realizar objetivos supostos como mais nobres que a política mesma. Na época da cristandade o pensamento greco-romano através da interpretação de Agostinho contribui para que a Igreja assuma papeis políticos apesar de suas origens anti-políticas O fato é que esta concepção de política como ―um meio para outro objetivo supostamente mais nobre que ela mesma‖ foi decisiva para o pensamento ocidental, pois com isso a política se desvinculou da participação e da opinião dos cidadãos. Se na era da política cristã cabia ao Estado Cristão obedecer aos fins religiosos que para eles eram superiores, nos Estados Modernos a esfera da religião passa a integrar o plano dos assuntos particulares. O Estado assume a tarefa de ―proteger a livre produtividade da sociedade e a segurança do indivíduo em seu âmbito privado‖ (ARENDT, 2011, p. 73). Dessa forma, liberdade e política continuam separadas. Não há mais, nesse caso, uma relação direta entre ação e liberdade no sentido da polis. Predomina a concepção de que o Estado é uma função da sociedade, um meio necessário, para a liberdade social da iniciativa privada no sentido moderno. A liberdade do cidadão nos governos controlados e limitados ―continua sendo prerrogativa do governo e dos políticos profissionais que se oferecem ao povo como seus representantes no sistema de partidos, para representar seus interesses dentro do estado e, se for o caso, contra o estado‖ (ARENDT, 2011, p75). Os casos mais extremos de experiências políticas que separaram política e liberdade são exemplificados pelos regimes assentados em ideologias totalitárias ou em noções políticas e históricas segundo as quais a liberdade deve ser sacrificada em prol de processos e progressos históricos da humanidade. Será, sobretudo na revolução americana no final do século XVIII, que Arendt irá vislumbrar uma manifestação autêntica da liberdade política. Convencidos de que a libertação de um governo opressor por si só não assegurava a liberdade, procuraram estabelecer garantias constitucionais para tal. Entendiam que, ―liberdade política ou significava ‗participar do governo‘ ou não significava nada.‖ (ARENDT, 1971 p. 175). ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 417 Arendt ressalta ainda, que a liberdade pública busca a instauração de um corpo político novo, exigindo para isso uma constituição que assegure tanto os direitos civis e a liberdade pública, A respeito do ato constitucional, Arendt escreve que é: ―bastante óbvia a diferença entre uma constituição elaborada burocraticamente por um governo e uma Constituição por meio da qual um povo (se envolve) para constituir um governo‖ (ARENDT, 2011, p. 194). A preocupação nas discussões dos fundadores estava voltada para que o poder da constituição assegurasse a liberdade dos estados constituintes que: Poder e liberdade caminhavam juntos; que, conceitualmente falando, a liberdade política consistia não no eu - quero e sim no eu - posso, e que, portanto, a esfera política devia ser entendida e constituída de maneira que combinasse o poder e a liberdade. (ARENDT, 2011, p. 199). Demonstrando que: ―não é o homem, e sim os homens que habitam a terra e formam um mundo entre eles. É a mundanidade humana que salvará os homens das armadilhas da natureza.‖ (ARENDT, 2011, p. 227). Os meios para que o homem possa manter o poder somente ocorre através da união e do pacto que ―são os meios de manter a existência do poder (...) A faculdade humana de fazer e manter promessas guarda um elemento da capacidade humana de construir o mundo.‖ (ARENDT, 2011, p. 228). E o único modo para que se possa constituir algo novo através de consenso é a ação da pluralidade dos homens através do poder. Observa-se, no entanto, que liberdade e política estão estritamente ligadas, e não decorrem de uma natureza humana e também não estão presentes em todas as formas de governo. A liberdade política se da no âmbito da pluralidade dos homens, no espaço-entre, onde esses possam de forma livre, iniciar uma cadeia de novos acontecimentos. No entanto o agir intersubjetivo e de forma espontânea é de fundamental importância para que as opiniões sejam expressas de forma pública e de que o cidadão tenha livre participação na organização do corpo político estabelecendo assim uma forma política de governo onde a liberdade de participação pública esteja estabelecida de forma segura. E por isso a política não pode ser pensada como um mero instrumento seja administrativo ou utilitário, ela possui um fim em si. Referências Bibliográficas: ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 418 ARENDT, Hannah. A condição humana, Tradução Roberto Raposo, Rio de Janeiro: Forense-universitária, 1983. _____. Da Revolução .Tradução de I. Morais. Lisboa: Moraes Editora, 1971. _____.O que é política? Tradução de Reinaldo Guarany. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011. _____Sobre a Revolução. Tradução . Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 419 A METAFÍSICA DE SCHOPENHAUER Márcia Elaini Luft Unioeste- Toledo [email protected] RESUMO: A principal obra de Arthur Schopenhauer O mundo como vontade e como representação, inicia-se com uma afirmação direta sobre o mundo: ―O mundo é minha representação‖. O mundo ao redor do indivíduo existe para ele como um fenômeno ordenado pelas categorias de tempo, espaço e causalidade. Além do mundo como representação, há a essência íntima das representações, que não pode ser acessada por meio do intelecto. A essência do mundo, a coisa-em-si é a vontade, independente da consciência do indivíduo que, através do corpo, reconhece a si como portador desta vontade. O conhecimento da vontade é possível por duas vias: pela contemplação estética através da arte pelo gênio e a compaixão extremada através da virtude moral pelos santos. Palavras-chave: mundo. representação. vontade. Schopenhauer, a partir do título da sua principal obra O mundo como vontade e como representação, já traz subjacente a noção de que há um mundo que possui dois âmbitos: o da vontade e o da representação, sendo estes dois pontos de vista de uma totalidade do mundo. Para tratar da representação, inicialmente é preciso expor o envolvimento destas duas noções: sujeito e objeto; ambos estão constantemente interligados, pois não há objeto sem sujeito e nem sujeito sem objeto. O sujeito se refere àquele que conhece sem ser conhecido. Quanto ao objeto, a este cabe a pluralidade e pode ser conhecido. Tais noções de sujeito e objeto são inseparáveis, ―(...) onde começa o objeto, termina o sujeito‖ (MVR, 2005, p.46)145. A forma de conhecimento entre os dois é o que se chama representação empírica. ―A representação do mundo é (...) algo colocado diante de nós‖.146 Ou seja, é o mundo conforme ele se apresenta ao intelecto do sujeito, o que ―aparece‖ a cada um. A representação possui o caráter de ser ilusória, pois nela mesma não há a revelação da essência íntima das coisas. O primeiro dado que conduz à representação é o sentido, em 145 146 MVR- Sigla para designar a obra: ―O mundo como vontade e como representação‖. BARBOZA, 1997, p.30. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 420 termos empíricos, pois o que está exposto diante do indivíduo passa a ser primeiramente percebido por eles e, também pelas três formas puras do conhecimento. Essas formas são o tempo, o espaço e a causalidade: o princípio de razão, através do qual se pode conhecer as coisas empiricamente. Um objeto específico sempre está situado num dado tempo, num dado espaço e envolvido numa rede causal. O mundo constituído pelo princípio de razão está em devir constante, causando uma ilusão da realidade, trata-se de estar envolto no ―véu de Maia‖ 147. Este véu de Maia é como o princípio de razão, é comparado a um manto, uma ilusão que vigora para impedir a visão real das coisas. Assim, o mundo é minha representação ordenada pelas formas puras de tempo, espaço e causalidade, e essa representação é ilusória por esses dois motivos: por não dizer a sua essência e por estar em constante fluxo. Como foi visto, o objeto existe para o sujeito como sua representação. A relação mútua e subjetiva do tempo e espaço é a sensibilidade pura e essa já pressupõe a matéria. A matéria ou causalidade é configurada pelo entendimento, a função deste é conhecer a rede de relações causais. O que está sempre presente no entendimento é a intuição do mundo efetivo, ou seja, conhecer a causa, o que provocou no tempo e no espaço determinado efeito. Em consequência, a intuição é intelectual, pois fornece a partir da causalidade os primeiros dados para o entendimento. Não seria possível alcançar tal intuição se algum tipo de efeito não fosse conhecido. Portanto, sem a faculdade do entendimento não haveria intuição empírica: ―(...), ou seja, puro conhecimento pelo entendimento da causa a partir do efeito‖ (MVR, 2005, p.55). A intuição depende da lei da causalidade porque o mundo é uma ―conclusão do entendimento‖ a partir dos dados fornecidos pela sensibilidade. O entendimento, usando o princípio de razão, faz a relação entre as coisas a partir dos sentidos, e essa relação é essencial para o acesso ao conhecimento empírico, sendo o corpo o ponto de partida para o entendimento do mundo. O corpo é um conjunto de sensações fornecido pela causalidade na qual surge a intuição do mundo e é uma representação. O entendimento precisa, necessariamente, do corpo para inferir representações do mundo, portanto é uma função cerebral. O entendimento é a faculdade do intelecto que produz as representações Maia é um deus que possui um caráter altamente enganador, à disposição dos demônios hindus e nos impede de ver a realidade autêntica das coisas. Schopenhauer usa algumas comparações que são encontradas nas passagens dos Vedas e dos Puranas para definir o véu de Maia, por exemplo, assemelha o véu a um pedaço de corda no chão que ele toma como uma serpente; a corda pode nos enganar, ou seja, pode ser uma serpente ao invés de uma simples corda. 147 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 421 intuitivas, ou empíricas, ou simplesmente intuições a partir dos dados empíricos formados pelo princípio de razão. As representações abstratas (MVR, 2005, p.58) constituem uma classe de representações que são os conceitos que os homens tem a capacidade de formular através da faculdade da razão a partir das representações ou intuições empíricas. A reflexão é cópia do mundo, uma forma simplificada do mundo intuitivo (aquilo que nos aparece, o fenômeno) e é por isso que os conceitos podem ser denominados de representação da representação. A razão é a faculdade do intelecto que produz as representações abstratas ou conceitos. Eles são produzidos a partir das representações empíricas ou intuições por um processo de indução. As representações empíricas, particulares, pontuais e imediatas, são reduzidas ao que possuem de comum. Por exemplo, as inúmeras intuições de árvores são universalizadas no conceito de árvore, abstrato, universal e mediato. Para Schopenhauer, a função principal da razão é a formação de conceitos, ―(...) a razão possui apenas uma função, a formação de conceitos‖ (MVR, 2005, p.85). O entendimento faz a intuição dos fenômenos e a razão os absorve por conceitos que são expostos pelas palavras, ou seja, pela linguagem. Assim, as palavras indicam a classe de representações abstratas em que a razão está submersa, a linguagem está indissociada da razão, sendo explícita por uma única e simples via: os conceitos. É através destes que se podem comunicar os objetos do mundo pela linguagem. Os cientistas, por estarem sob o princípio de razão, só lidam com os fenômenos. Portanto, a razão depende do entendimento e de suas representações empíricas para formular e fornecer os conceitos. E é a razão a responsável pela ciência, pela qual conhece o mundo como representação. Pela ciência ainda não é possível conhecer o mundo como ele realmente é, ela só permite conhecer a relação entre as coisas. São por meio dessas ilusões que o homem acredita enxergar a verdade das coisas, porém as aparências estão distantes da realidade. Portanto, Schopenhauer pretende encontrar o conhecimento do próprio mundo a partir do íntimo, de uma essência, para que seja possível abandonar as sombras das cavernas de Platão, ou seja, abandonar o mundo das ilusões e das aparências. A partir disso, Schopenhauer desiste da via objetiva dos cientistas e concebe a via subjetiva para chegar à essência do mundo através da experiência do corpo. Parte da noção de Objektität: (objetidade) da vontade: a ação do corpo é o ato da vontade objetivado. Na perspectiva objetiva, o corpo é visto como mais um entre vários outros objetos submetidos à causa e efeito. Já na perspectiva subjetiva, o corpo é a fonte da vontade, o núcleo que se manifesta ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 422 nas ações, enquanto indivíduos somos um querer essencial. E é esse querer que o impulsiona no seu agir e nos movimentos. O corpo é fenômeno da vontade, sendo este o que há de mais real para o próprio indivíduo. Mesmo o corpo tendo essa referência que é a vontade, ele continua sendo uma representação, portanto o mundo é minha representação, e também é minha vontade. Todos os objetos são objetivação da vontade, mas no meu corpo eu expresso a vontade. Os fenômenos estão no âmbito da representação e a vontade é a coisa-em-si. ―Coisa-em-si, entretanto, é apenas a vontade (...). Ela é o mais íntimo, o núcleo de cada particular, bem como do todo. Aparece em cada força da natureza que faz efeito cegamente, na ação ponderada do ser humano (...)‖ (MVR, 2005, p.168-169). A vontade encontra-se em toda parte, agindo sem ser percebida. Vontade, em Schopenhauer, é vontade de vida. É a vontade de vida que impulsiona os seres e objetos, se manifesta no mundo. O mundo é vontade. Esse conhecimento metafísico só é possível pela Filosofia, uma vez que a Ciência não decifra a coisa-em-si, pois não vai além dos fenômenos do mundo, através da ciência não é possível ―(...) penetrar a essência íntima das coisas‖ (MVR, 2005, p.182), ou seja, a vontade, pois a ciência nunca ultrapassa a representação, apenas faz a ligação entre as representações. Segundo o filósofo (MVR, 2005, p. 189), a coisa-em-si é totalmente diferente da representação. A vontade é a coisa-em-si separada de seu fenômeno, permanecendo exterior ao tempo e espaço e, dessa maneira, a vontade é una enquanto algo alheio à pluralidade. O conjunto do espaço e tempo é a objetivação da vontade: ―A vontade se manifesta no todo e completamente tanto em um carvalho quanto em milhões‖ (MVR, 2005, p.190). Portanto, há uma vontade no todo que se manifesta nos objetos e seres particulares. Diante disso, Schopenhauer define a Ideia para situar a essência una e indivisível que há no mundo: ―Os diversos gatos da realidade só existem enquanto reflexo distorcido de uma ideia de gato inalterável. Todos os gatos do mundo não passam da pluralização de uma única e mesma ideia de gato‖.148 Portanto, há uma ideia de gato, e esta não muda, não aparece no tempo e espaço. Mesmo que a espécie se extingua, a ideia de gato é eterna. Do mesmo modo com os outros seres e demais objetos, seja um cavalo ou uma cadeira, há a ideia eterna de tudo. Também a ideia de humanidade é eterna e inalterável, mesmo que os indivíduos que a constituam sejam passageiros. Em outras palavras, as ideias são representações da vontade, porém independentes do princípio de 148 BARBOZA, 1997, p.53. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 423 razão. No mundo como representação, sempre há sujeito e objeto, na qual se separam os indivíduos que conhecem daqueles que são conhecidos. Em relação à ideia, há apenas o sujeito puro. Em outras palavras, o objeto como ideia está livre das formas do princípio de razão, e o sujeito como puro sujeito do conhecer está livre de servir à vontade, visto que esta é condição de toda existência objetiva. Neste caso, a representação é dita como representação ou intuição estética. A arte, através das obras do gênio, nos diz Schopenhauer (MVR, 2005, p. 253), é que considera o essencial do mundo, sem estar submetido às mudanças e mostra o conteúdo dos fenômenos. São as ideias que podem ser repetidas por pura contemplação através da arte. A origem da arte é conhecer as ideias e seu fim, enquanto meta, é comunicar esse conhecimento através da arte plástica, poesia ou música. Portanto, a arte pode ser definida ―(...) como o modo de consideração das coisas independente do princípio de razão (...)‖ (MVR, 2005, p. 254). O oposto disso é a ciência, que está presa ao princípio de razão. Já na arte, as ideias são conhecidas por pura contemplação e é ao gênio atribuído essa capacidade de contemplar. ―Ora, visto que só o gênio é capaz de um esquecimento completo da própria pessoa e de suas relações, segue-se que a genialidade nada é senão a objetividade mais perfeita (...)‖. (MVR, 2005, p. 254).149 Ou seja, o gênio precisa agir intuitivamente e ignorar o que existe a serviço da vontade. O gênio precisa ausentar-se de ―si mesmo e do mundo‖, de seus interesses e daquilo que conhece para reproduzir a ideia, vivenciando um estado diferente do cotidiano, ou seja, um estado estético de contemplação da ideia na qual a vontade do gênio é negada. Dessa maneira, o homem comum e o gênio passam a ter distinções marcantes: ―Para o homem comum, a faculdade de conhecimento é a lanterna com a qual ilumina o seu caminho, para o homem genial é o sol com o qual revela o mundo‖ (MVR, 2005, p. 257). O homem comum está voltado somente ao seu caminho na vida, enquanto que o gênio considera a ―vida mesma‖, ou seja, apreende as ideias das coisas que estão no mundo; dessa maneira, o gênio tem pouco ou nenhum cuidado pelo seu próprio caminho na vida. O gênio possui a capacidade da intuição e contemplação, enquanto que o homem comum é o oposto. São maneiras diferentes e marcantes de ver a vida. Ou seja, é através da exposição do artista que o homem pode conhecer a ideia propriamente dita. Seus olhos e dom devem ser tomados como empréstimo para que se possa contemplar toda manifestação artística da 149 Também ao santo é atribuída essa capacidade, e quanto a este será explicado adiante. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 424 ideia que o artista pretende expor em sua obra. O homem, ao olhar com os olhos do artista, terá a possibilidade de alcançar a contemplação estética. A contemplação estética produz, por um curto espaço de tempo, a cessação do sofrimento. Esse fim do sofrimento, possível pela satisfação, é passageiro devido ao aparecimento de vários outros desejos que também anseiam por satisfação. O querer é sofrimento na medida em que pressupõe uma carência, então um novo desejo quer ser satisfeito e este sendo satisfeito, há ainda vários outros e assim sucessivamente, não há fim. Essa é a roda de Íxion em que o sujeito do querer está ―preso‖ e que não cessa de girar. Através da contemplação estética, do conhecimento da ideia, em que o gênio intui o mundo na sua essência e empresta os olhos para fazermos da mesma maneira, ou seja, para termos acesso ao belo, nos libertamos por instantes do estado existencial doloroso. Portanto, ―A obra de arte é simplesmente um meio de facilitação do conhecimento da ideia (...)‖ (MVR, 2005, p.265) e aqui reside o conhecimento por excelência, sendo a arte superior à ciência. A ciência é um conhecimento teórico que o entendimento produz submetido ao princípio de razão e está voltado a conhecer o mundo como representação. A arte, por sua vez, contempla as ideias e por meio dela é possível aproximar-se do conhecimento da vontade. O consolo proporcionado pela arte seja através da arquitetura, jardinagem, pintura, poesia ou música, é o que faz o homem esquecer-se da penúria da vida. O gênio consegue se destituir do mundo como vontade mais facilmente do que os demais homens, a estes cabe o esforço de ver através dos olhos do artista, para obter o conhecimento da ideia, presente no mundo como vontade. É também atribuído aos santos, através de sua compaixão extremada, o conhecimento da vontade. O santo rompe uma visão baseado no princípio de individuação (tempo, espaço e causalidade) e este rompimento ocorre devido a algumas características. ―(...) a perfeita bondade de disposição, o amor desinteressado e o mais generoso autosacrifício pelos outros‖ (MVR, 2005, p.480-481). Tal homem, considerado santo, não está sob o véu de Maia e é benevolente, há uma compaixão no mais elevado grau ao próximo, absorve para si as dores alheias, compaixão significa paixão-com. É o colocar-se no lugar do outro. Um exemplo dessa compaixão extremada foi o amor de Jesus Cristo pela humanidade, ou de São Francisco de Assis pelos animais. O ser dotado de compaixão se ausenta do sentimento de egoísmo, pois há uma identificação com o outro na qual não há diferença entre si e o outro, entre o eu e o não-eu, acabando por anular o eu individual e a suprimir a individualidade. Os santos se desinteressam pelo seu bem-estar, se colocam no lugar da humanidade e não ficam somente contemplando o sofrimento alheio, agem para ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 425 ajudar, nem que para isso seja necessário o sacrifício. Com isso, rompe-se o princípio de individuação, ou seja, o princípio de razão. A compaixão permite ―penetrar‖ no mundo, assim como no caso da ideia exposta pela arte. O sentimento de ambos, da compaixão e da contemplação estética (a arte), possibilitam a separação do eu e não-eu, há a negação da vontade. ―O homem, então, atinge o estado de voluntária renúncia, resignação, verdadeira serenidade e completa destituição de vontade‖ (MVR, 2005, p.482). A arte fundamenta a estética, ciência da beleza e a compaixão fundamenta a moral. Num primeiro momento, o sujeito está no plano da efetividade regido pelo princípio de razão, e, quando a arte ou compaixão irrompe, visa o desempenho da espontaneidade da essência do mundo. Para concluir, a respeito da metafísica de Schopenhauer, pode-se afirmar, em linhas gerais, que ―(...) este mundo no qual vivemos e existimos, é segundo a sua natureza, absolutamente vontade e absolutamente representação (...)‖ (MVR, 2005, p.228). A representação é expressa pelo princípio de razão a partir do sujeito. A representação é espelho da vontade, pelo qual ela conhece a si mesma. Para tal conhecimento, é preciso voltar-se à contemplação da arte em que o gênio irá expor a ideia; e a virtude moral dotada do sentimento de compaixão, esta possível pelos santos, para expor o conhecimento da vontade, da essência, aqui reside a coisa-em-si do mundo. Tais contemplações, estética e moral possibilitarão a satisfação e fim do sofrimento e ambas se encontram na unidade metafísica da vontade. Referências Bibliográficas: SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação, Tradução de Jair Barboza- São Paulo: Editora UNESP, 2005. BARBOZA, Jair, Schopenhauer- a decifração do enigma do mundo. São Paulo: Moderna, 1997(Coleção logos). ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 426 ENTRE JOGOS: A FILOSOFIA DE NIETZSCHE E A LITERATURA DE JULIO CORTÁZAR Mariély Cássia da Silva UNIOESTE [email protected] RESUMO: Em face de um trabalho híbrido, estes traços pretendem tecer os fios entre temas transversais, compor uma amalgama entre o pensamento filosófico de Friedrich Nietzsche e a literatura de Julio Cortázar. O objetivo é mostrar que a estrutura e a narrativa da obra literária O Jogo da Amarelinha, no original Rayuela, são fontes de sensações capazes de promoverem a criação de conceitos. No caso específico desta pesquisa, se dará ênfase para o conceito de jogo. Tal conceito foi cunhado também, de um modo especial, na filosofia de Nietzsche, este será o outro ―novelo‖ a ser utilizado para a composição desta tessitura. As linhas que se seguem intentarão experimentar a conexão entre a literatura e a filosofia por meio da complexa noção de jogo. Palavras-chave: Filosofia. Jogo. Literatura. ―À sua maneira, este livro é muitos livros‖, é com essa frase que somos convidados a adentrar a obra literária de Julio Cortázar, O Jogo da Amarelinha, de 1963. A orientação do autor que se segue a frase é advertir o leitor sobre duas formas de leitura da obra, a primeira maneira de lermos o livro é linear: ler os capítulos na ordem da exposição, do primeiro até o capítulo 56. A segunda maneira, que é indicada, é iniciar a leitura do livro pelo capítulo 73 e, ao final é apontado o próximo capítulo a ser lido. A frase que inicia o ―O Tabuleiro de Direção‖ é o roteiro de leitura do livro, aqui são estabelecidas as regras desse jogo e as suas inerentes possibilidades de interpretação. O livro, que contém outros livros é dividido em três agrupamentos intitulados: ―Do lado de lá‖, ―Do lado de cá‖, esses se constituem até o capítulo 56 e o terceiro agrupamento, ―De outros lados‖ são os chamados ―capítulos prescindíveis‖, os quais só farão sentido na segunda maneira de leitura, a que o autor indica no tabuleiro de direção. O Jogo da Amarelinha implica em infinitas possibilidades de interpretação, o arcabouço organizacional do texto constitui um jogo no sentido real, denotativo da expressão. A obra do escritor argentino rompe com os modelos da narrativa padronizada, ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 427 subverte a ordem forjando a sua própria linguagem, assimilando a arte escrita à própria dinâmica do jogo. Nesse sentido, o título do livro referente à brincadeira infantil, o jogo da amarelinha, condiz com a proposta literária do escritor: no livro que se faz jogo, o jogo que se torna um livro, contém seus participantes, suas regras, seu tabuleiro e, inevitavelmente, como qualquer jogo, está à mercê do imprevisto, ao capricho de todas as possibilidades. A própria estrutura do livro é um jogo literário e vital, nele vê-se a vida mesma em exercício, de sua superfície emergem ressonâncias esquecidas, fragmentações de monstruosas sutilezas, arrebatamentos, contradições. Em suma, magistralmente Cortázar produz muito mais que um livro, muito mais do que um jogo. Segundo o escritor Mario Vargas Llosa: nenhum outro escritor deu ao jogo a dignidade literária que deu Cortázar, nem fez do jogo um instrumento de criação e exploração artística tão proveitoso. A obra de Cortázar abriu portas inéditas (apud FIGUEIREDO, 2013) A estrutura da obra cortazariana permite que o personagem principal seja o leitor. As ―casas‖ do jogo da amarelinha são os capítulos que lemos, casa um, capítulo um... ao lermos o segundo modo indicado pelo autor, recomeçamos o jogo de uma casa aleatória, podemos dar saltos em ziguezague, neste movimento vamos e voltamos de um capítulo/casa qualquer a outra casa/capítulo qualquer. Efetuamos o ciclo de leitura conforme a escolha do leitor, dos leitores; como no jogo infantil, efetuamos o ciclo de ir até o céu, voltar à terra, mas, com Cortázar, estamos no jogo literário da Amarelinha. Cortázar abre novas possibilidades para o discurso literário e dá, em sua obra, um novo papel ao leitor: O campo de possibilidades fica, portanto, condicionado por uma diretriz traçada a priori pelo autor, enquanto que na obra tipicamente aberta, como o romance Rayuela, do escritor argentino JULIO CORTÁZAR, o leitor pode ordenar de maneira diversa os fragmentos da narrativa, de modo a obter estrutura distinta (RAMOS, 1969, p. 46) Julio Cortázar, com seu Jogo da Amarelinha, torna-se um literato ímpar na medida em que elege o leitor como o seu protagonista, o qual se transforma em jogador. O Jogo da Amarelinha possibilita a produção de uma leitura que é jogo, jogo jogado por um leitor ativo, que, nesse diálogo, é transformado em jogador; a obra permite ao leitor perceber-se no jogo; na troca mútua e contínua de cada lance da pedrinha, a obra literária aflora em si mesma, tornando-se a realização do jogo, a realização da leitura. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 428 Estabelecido o tabuleiro de direção, obtemos duas leituras da obra literária. A leitura será condicionada pela escolha dos capítulos, literariamente, o capítulo escolhido é a casa aonde o lance da pedrinha irá cair. Os agrupamentos dos capítulos ―Do lado de lá‖ e ―Do lado de cá‖, onde a sequência se estende até o capítulo 56 e constituem a primeira maneira de leitura do livro. Em ―Do lado de lá‖, a estória se desdobra em Paris, e, primordialmente retrata os caminhos e descaminhos da personagem Horacio Oliveira, sua relação de amor e repulsa com Maga, os encontros nas ruas, as conversas no cubículo onde o Clube da Serpente 150 se encontra, retratos dos devaneios, bebedeiras, filosofias e jogos. A estória se passa juntamente com as personagens do clube, na obra há vários narradores, mas principalmente é Horacio ou Maga que descrevem e, junto com o leitor, especialmente, percorrem as riquezas psicológicas das personagens, de seus esquecimentos, belezas, vicissitudes, os caminhos da sua una e conjunta trama de (des) construção da vida humana, demasiada humana. Entre a relação de Horacio e Maga, o filho de Maga (Rocamadour), torna-se ora o ponto de equilíbrio, ora de desequilibro desta relação; é ele quem suscita indagações e conflitos dos mais atenuantes da narrativa. No segundo agrupamento, ―Do lado de cá‖, a partir do capítulo 37 até o 57, o local da estória é a Argentina, a narrativa aqui gira em torno da tríade Horacio Oliveira, Traveler e Talita. Horacio retorna ao país de origem, com suas contradições, sua riqueza, sua vida e, juntamente, retorna a amizade com Traveler. Mas, os retornos sempre trazem algo enigmático consigo, trazem na bagagem o estrangeiro, e aquele que ficou tornando-se estrangeiro frente ao outro também, Horacio é estrangeiro para Traveler, e este a Horacio. Com o retorno de Horacio, Traveler, com seus moinhos de vento, imagina os horizontes e viagens que nunca fizera. À mercê da vida que julga precariamente, isolado em seu ambiente, Traveler tem como horizonte apenas as viagens que não realizou, as quais se tornam quase a obsessão de sua vida e a razão de suas mazelas. A chegada do estrangeiro/amigo Horácio abala e modifica a relação do casal, indicando sutilmente uma suposta relação amorosa entre Horácio e Talita, mas que se revela uma relação muito mais pungente, em certo sentido, de radical aprofundamento existencial. Horácio projeta em Talita a imagem e a encarnação de Maga. Traveler e Talita anteriormente cuidavam de um circo, mas recebem uma proposta de trabalhar em um hospital psiquiátrico e inserem 150O Clube da Serpente é composto pelas seguintes personagens: Horacio Oliveira, Maga (Lucia), Rocamadour (filho de Maga), Mmé, Perico, Romero, Ronald, Etienne, Gregorovius, Gaby, Guy, Monod, Bessie, Osiep, Wong e Léonie. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 429 Horacio no trabalho. Nesse ambiente, as paisagens entre real e imaginário, devaneios e realidade já não mais se diferem, são um só, a relação entre as personagens ocorre desvelando uma a outra, em associação recíproca. O segundo modo de leitura indicado no Tabuleiro de Direção, inicia-se no capítulo 73 e alterna dentro de todos os capítulos/ casas do livro/Jogo da Amarelinha. Outra vez iniciamos o jogo/livro, mas a obra insere aqui uma nova personagem, Morelli. Dentre as múltiplas interpretações, uma plausível é que advindo da profissão de escritor, Morelli passa a criar na própria obra a história de Horacio Oliveira. Morelli, ao passar a descrever a história sob a sua ótica, torna-se outra personagem na narrativa, envolvendo-se com as vivências, com as angústias de Horacio, Maga, Talita e Traveler. Morelli, com o decorrer dos capítulos/ casas passa a imprimir ou confundir as suas vivências com as dos personagens do texto; a oscilação entre a voz de Morelli, e das outras personagens já não se difere mais, a história passa a ser una entre eles, podemos dizer que Morelli passa a fazer parte do Clube da Serpente, e mora na Argentina. Como intuito, tentaremos elucidar os frutos da relação transacional151 entre a literatura de Cortázar e a filosofia de Nietzsche, qual ou quais aspectos a obra literária ―O Jogo da Amarelinha”, serve-se da verve filosófica, mais especificamente iremos propor uma chave de leitura da obra de Cortázar, sob a ótica da filosofia de Friedrich Nietzsche. Para isso, serão alternados trechos da obra literária - filosófica de Cortázar e da obra filosófica literária de Nietzsche. Como foi exposto, ―O Jogo da Amarelinha”, além de possibilitar o exercício de jogar na própria estrutura da obra literária, o jogo ocorre entre as personagens da história, desse modo, tentamos diagnosticar algumas formas de jogos empíricos dentro da narrativa, ou seja, identificar os jogos na obra, para depois subsidiá-las pelo discurso filosófico. Dentro do jogo que contém inúmeros jogos, indicamos: o jogo da patafísica (p. 15), que são as descrições infindáveis das pequenas coisas do cotidiano; os jogos de dominação e dominado entre Horácio e Maga, (p. 52,53 e tantas outras páginas do livro); as regras de um jogo pactuado socialmente (p. 63); jogos de palavras (p. 279) e o abandonar o jogo (p. 338). Ao final da primeira parte da obra ―Do lado de Lá‖, Horácio descreve o jogo da amarelinha, os jogos ocorrem por toda a obra, mas é ao final da segunda parte que o jogo é Nunes, no ensaio ―Filosofia e Poesia: uma transa‖, elenca três formas de relação entre a filosofia e a literatura: disciplinar, supradisciplinar e transacional. Disciplinar é entendida como a filosofia superior a literatura, supradisciplinar como a literatura superior à filosofia, e por fim, transacional é a compressão de que ambas as instâncias, podem interagir, sem a perda das suas especificidades, mas em plena comunhão de ideias. 151 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 430 explicitamente narrado, propriamente é do jogo da amarelinha que emerge a metáfora da vida: O jogo da amarelinha se joga com uma pequena pedra que é preciso empurrar com a ponta do sapato. Ingredientes: uma calçada, uma pedrinha, um sapato e um belo desenho feito com giz, preferivelmente colorido. No alto, fica o Céu, embaixo a Terra, é muito difícil chegar com a pedrinha ao Céu, quase sempre se calcula mal e a pedra sai do desenho. Pouco a pouco, porém, vai-se adquirindo a habilidade necessária para salvar as diferentes casinhas (caracol, retângulo, fantasia, esta pouco usada) e um dia se aprende a sair da Terra e levar a pedrinha até o Céu, até entrar no Céu (...); o pior aprendeu a levar a pedra até o Céu, a infância acaba de repente e se chega aos romances, à angústia do divino foguete, à especulação de outro Céu ao qual também é necessário aprender a chegar. E, por se ter saído da infância (...), esquece-se de que, para alcançar o Céu, é preciso ter, como ingredientes, uma pedrinha e a ponta de um sapato. (CORTÁZAR, 2013, p. 252). Metáforas e mais metáforas compõe a obra de Cortázar. Deixemos cair as metáforas, em que sentido, qual a finalidade de todos os jogos? O que buscamos com o jogo nosso de cada dia? Um novo jogar da pedrinha, uma nova casa a se pular, um novo capítulo para ler, uma nova realidade que se apresenta. Que céu, buscamos a cada nova pedrinha lançada, a cada novo desvelar da realidade, que cada vez mais adentramos cada um em busca do seu céu, em seu jogo da amarelinha? Uma das similitudes encontradas no trecho acima, com a obra nietzschiana, além de ambas as obras, cada qual com sua especificidade, expressarem as belezas nos versos, é o caráter lúdico da existência que é evidenciado, fazendo sorrir a toda elucidação de vida, toda a brincadeira da filosofia e da literatura, Friedrich Nietzsche (1844 – 1900), desde os seus textos primevos até as últimas obras, perpassa o conceito de jogo. Nos primeiros escritos do pensador, se vislumbra a noção de jogo, em A filosofia na Época Trágica dos Gregos (1873), obra essa escrita no período em que o pensador está absorto sob a idealidade do ressurgimento dos ideais da cultura grega no meio alemão. No livro citado, sobre os ombros de Heráclito, o filósofo afirma; Neste mundo, só o jogo do artista e da criança tem um vir à existência e um perecer, um construir e um destruir sem qualquer imputação moral em inocência eternamente igual. E, assim como brincam o artista e a criança, assim brinca também o fogo eternamente activo, constrói e destrói com inocência – e esse fogo joga-o Eão consigo mesmo. Transformando-se em água e em terra, junta, como uma criança, montinhos de areia à beira-mar, constrói e derruba: de vez em quando, recomeça o jogo. (NIETZSCHE, 1987, p. 50). ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 431 Em nossa interpretação, o Jogo da Amarelinha é a efetivação do jogo universal prenunciado acima, somente o jogo instaura sentido ao devir. Jogar a pedrinha para começar e infinitamente recomeçar o jogo, igualmente como a criança que constrói castelos de areia na beira do mar. Estando frente a frente com nossa condição humana, estamos todos na beira do mar, estamos a olhar o jogo da amarelinha traçada no chão. A pergunta que definirá nossa ação é: o que faremos com a areia? O que faremos com a pedrinha? Jogar. Temos jogos por todos os lados, das mais variadas facetas e trejeitos, mas, que são jogos, o jogo supremo de construção e destruição de sentido, jogar é realizar o sentido do jogo, que é a sua própria razão de ser, o ato de jogar, ação de jogo. Por isso, é com cuidado que interpretamos o jogo não em sentido empírico, em ganhadores e perdedores, mas sim no jogo descrito como princípio fundamental que norteia e se fundamenta como estrutura na qual germina toda a possibilidade. Aqui, destitui-se do jogo o sentido de finalidade, não buscamos o céu do jogo da amarelinha, não buscamos a finalidade de nossas ações, estamos radicalmente no jogo, inseridos fundamentalmente na ação do jogar, a cada lance da pedrinha recomeçamos, a cada vez que o mar leva nosso castelo de areia, inevitavelmente sempre estamos começando o jogo da amarelinha. A pergunta que acompanha todo o livro de Cortázar, e que o inicia é ―Encontraria a Maga?‖, pergunta norteadora, enigmática. Nos trechos que se seguem podem-se entrever alguns indícios do que a pergunta significa, bem como seus possíveis pressupostos filosóficos. No início da narrativa, Horácio se descreve: Nesse tempo, já me dera conta que procurar era minha sina, emblema de todos aqueles que saem à noite sem qualquer finalidade exata, razão de todos os destruidores de bússolas (CORTÁZAR, 2003, p.16). Podemos entender que a busca de Horácio é a busca filosófica, a busca da unidade, da essência. Para Horácio essa busca se personificará em Maga, depois em Talita, mas o que importa mesmo a ele é a própria busca, pois é ela que o livrará do fardo da existência, o que supostamente o livrará de sua irrecusável condição de finitude. Os surtos de Horácio tornam-se cada vez mais agudos no hospital psiquiátrico onde trabalha. Traveler e Talita invadem o quarto para salvá-lo, ali será o palco para elucubrações, recordações e, mais precisamente, confissões acerca da vida. A conversa ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 432 continua, em meio ao jogo de Horácio tentando apresentar razões para se jogar pela janela e Traveler argumentando para que o amigo não faça isso, Horácio diz: (Horacio) - A questão reside toda nisso, ter uma ideia sobre qualquer coisa, custe o que custar. Você não é capaz de intuir por um segundo que as coisas podem não ser assim? (Traveler) - Supunha que sim. Mas a verdade é que você está aí debruçado na janela. (Horacio) - Se você realmente suspeitasse de que isto pode não ser assim, se realmente conseguisse chegar ao cerne da coisa... Ninguém está lhe pedindo que negue o que está vendo; mas se você, pelo menos, fosse capaz de empurrar um pouquinho, compreende, com a ponta do dedo... (CORTÁZAR, 2013, p. 396-397) ―Empurrar um pouquinho‖, essa é a súplica de Horácio, chegar aos confins da realidade, forjando-a, jogando o jogo ―compreende, com a ponta do dedo”, com a pedrinha ele pretende alcançar a realidade, mas, cada vez mais em círculos vertiginosos a realidade se revela no jogo. ―Jogar o jogo plenamente‖, diz Horácio, os que estão lá fora, ―estão fazendo o exercício sem saber‖ (p. 397). Heráclito, segundo Nietzsche, intuiu ―a percepção estética fundamental do jogo do mundo” (NIETZSCHE, 1987, p. 52), assim como Horácio percebeu que os que estão lá fora, estão realizando o jogo de Zeus: estamos, ao fim e ao cabo, fadados ao jogo. Para Nietzsche, Heráclito preconiza o grande princípio do universo, o seu eterno fluxo, a sua incessante perpetuação, o seu eterno ciclo, o fluxo que se auto-alimenta continuamente, sem cessar, o jogo consigo mesmo, que assim permite todos os jogos. Como homem entre homens, Heráclito tem algo de inacreditável; e se é verdade que foi visto a observar os jogos de crianças barulhentas, ao menos nessa altura reparou naquilo que jamais alguém considerava numa ocasião dessas: o jogo da grande criança universal, o jogo de Zeus (NIETZSCHE, 1987, p. 54). Podemos entender, que Horácio realiza o jogo, que vive a metáfora do jogo da amarelinha, perpassando o céu, pulando sobre a terra, no seu eterno fluxo, ele completa o ciclo, rendeu-se, encontrou o kibbutz. Ao final diz: Era assim, a harmonia durava incrivelmente, não havia palavras para responder à bondade daqueles dois ali embaixo, olhando para ele e lhe falando, de dentro do jogo da amarelinha, porque, sem perceber, Talita estava parada na casa três e Traveler tinha um pé na seis, de maneira que a única coisa que ele podia fazer era mover um pouco a mão direita, numa saudação tímida, e ficar olhando a Maga, pra Manú, dizendo a si ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 433 mesmo que, no fim das contas, algum encontro havia, embora não pudesse durar mais do que aquele instante terrivelmente doce no qual a melhor coisa a fazer, sem sombra de dúvida, teria sido inclinar-se um pouco fora e deixar-se cair, paf, acabou-se. (CORTÁZAR, 2013, p. 402). Iniciamos o livro com a frase lapidar, ―à sua maneira, este livro é muitos livros‖ e parafraseando Cortázar, ―à sua maneira, este jogo é muitos jogos” jogos que revelam o que está intrinsecamente ligado à vida, o que ela é, a vida descrita por Horacio com todos os seus jogos, a vida descrita por Nietzsche com todos os seus jogos, o seu fluxo, o fogo que perpetua toda a transformação, vida em constante metamorfosear-se, tornando-se leitor/jogador da obra/jogo, da obra máxima que os gera, a vida. Referências Bibliográficas: CORTÁZAR, Julio. O Jogo da Amarelinha. 20ª Edição. Tradução de Fernando de Castro Ferro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. FIGUEIREDO, Janaina. O Jogo da Amarelinha é tema de exposição em Buenos Aires. Em: http://oglobo.globo.com/cultura/o-jogo-da-amarelinha-tema-de-exposicao-em-buenosaires-8948111#ixzz2a5TPsXTP . Acesso em 25 de julho de 2013. NIETZSCHE, Friedrich. A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos. Tradução de Maria Inês Vieira de Andrade. Lisboa, Portugal: Edições 70, 1987. NUNES, Benedito. Poesia e Filosofia: uma transa. In: ROHDEN, Luiz, PIRES, Cecília. Filosofia e Literatura – Uma relação Transacional. Coleção Filosofia, 29. Editora Unijuí; Ijuí, 2009. p.17-36. RAMOS, Maria Luisa. Fenomenologia da obra Literária, Editora Forense, Rio de Janeiro, 1969 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 434 APONTAMENTOS SOBRE A FISIOPSICOLOGIA NO ÚLTIMO PERÍODO DE NIETZSCHE Marioni Fischer de Mello UNIOESTE/CAPES [email protected] Dr. Wilson Antonio Frezzatti Jr. RESUMO: Ao longo do último período de sua obra, Nietzsche utiliza-se dos termos psicologia e fisiologia em vários sentidos. O estudo pretende analisar algumas destas ocorrências, buscando traçar um perfil do modo como o filósofo passa a elaborar aquele que, para fins desta pesquisa se considera seu novo conceito de psicologia: uma fisiopsicologia enquanto ―morfologia e teoria do desenvolvimento da vontade de potência‖ (Morphologie und Entwicklungslehre dês Wilens zur Macht). O enfoque da pesquisa está centrado em Além de bem e mal - Jenseits von Gut und Böse,1885/86), contudo, outras obras do terceiro período de Nietzsche, além dos Fragmentos Póstumos, foram eventualmente consultadas. Palavras-chave: Fisiopsicologia. Fisiologia. Psicologia. Metafísica. Para reforçar a necessidade de uma nova psicologia, desvinculada dos preconceitos metafísicos e religiosos na investigação do homem e do mundo, Nietzsche assinala que na Antiguidade a psicologia originou-se como parte da antiga retórica, estando, portanto, vinculada à práxis. (cf. FP 4 (22) Verão 1880)152. A psicologia na Grécia Antiga surgiu desvinculada do caráter metafísico em que foi compreendida posteriormente. Não tinha o caráter abstrato da lógica, no qual a realidade (Realität) se dissipa. ―O estudo da psicologia fazia parte da antiga retórica. Que atrasados estamos! (...) A nova psicologia resulta imprescindível ao reformador‖ (FP 19 (101) Outubro-Dezembro 1876). Com a proposta de uma nova psicologia, Nietzsche busca retomar aquele aspecto prático que caracterizava a psicologia na antiguidade, vinculando-a novamente à vida e afastando-a das abstrações metafísicas. Ela deverá ser útil no sentido da investigação dos Será adotado neste estudo o padrão de abreviaturas das obras de Nietzsche tal como convencionado pelos Cadernos Nietzsche a partir da edição crítica das obras completas organizadas por Colli e Montinari (KSA). As siglas em português sucederão as siglas em alemão visando facilitar a leitura. Para os fragmentos póstumos, os algarismos arábicos indicam o número do caderno e o fragmento póstumo, seguido do período de elaboração, de acordo com a edição Kritische Studienausgabe (KSA). 152 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 435 fenômenos até então considerados psíquicos, das manifestações até então consideradas fisiológicas, às quais se poderia crer por eles desencadeados, não no estudo abstrato da alma. Nietzsche se utiliza do termo psicologia num sentido negativo para se referir a pressupostos falsos, em sua concepção, ligados à interpretação metafísica e às religiões pessimistas. Trata-se de contextos nos quais se percebe a alma como noção principal dessa psicologia. Em O Anticristo § 15 declara: ―nem a moral nem a religião, no cristianismo, têm algum ponto de contato com a realidade. Nada são senão causas imaginárias (...) esse mundo de pura ficção (...) falseia, desvaloriza e nega a realidade‖. Afastar-se da tradicional visada voltada ao interior do homem, conforme demandara a psicologia tradicional, se faz necessário. O campo investigativo no qual Nietzsche insere sua nova psicologia começa a delinear-se doravante sob a perspectiva de uma interpretação que busca um viés científico, desprovido de uma fundamentação moral e suas implicações, como é possível claramente constatar também no parágrafo 2 do Prólogo de A Gaia ciência, quando revela: Para um psicólogo, poucas questões são tão atraentes como a da relação entre filosofia e saúde, e, no caso de ele próprio ficar doente, levará toda a sua curiosidade científica para a doença (...) assim nós, filósofos, ficando doentes, nos sujeitamos à doença de corpo e alma por algum tempo – como que fechamos os olhos para nós mesmos. Nietzsche indica mediante quais circunstâncias pode experimentar este sair de si que o levou formular uma diferente interpretação acerca das manifestações, ou seja, dos sintomas que acometem o organismo humano, prescindindo das antigas concepções que antes perpassavam o estudo da natureza humana como sendo estados doentios do espírito, para os quais propõe uma interpretação diferenciada. Denomina tais estados de ―fraqueza, recuo, rendição, endurecimento, ensombrecimento‖, ou seja, vinculando-os a uma decadência fisiológica experimentada pela desierarquização dos centros de forças que em sua concepção constituem o homem. Identifica dois tipos básicos de comportamentos enquanto sintomas que caracterizam o filosofar de diferentes tipos humanos em suas respectivas formas de interpretar o sofrimento: Num homem são as deficiências que filosofam, no outro as riquezas e forças. O primeiro necessita da sua filosofia, seja como apoio, tranquilização, medicamento, redenção, elevação, alheamento de si; no segundo ela é apenas um formoso luxo, no melhor dos casos a volúpia ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 436 de uma triunfante gratidão, que afinal tem de se inscrever, com maiúsculas cósmicas, no firmamento dos conceitos. (FW/GC Prólogo § 2). O filósofo esclarece como dirige sua análise ante a nova psicologia que propõe, distinguindo-a daquela da qual se utilizavam os psicólogos anteriormente. Ao investigar como os filósofos procedem mediante as questões mais relevantes da vida, sua observação está pautada em verificar se suas posturas em relação a ela são de afirmação ou negação. São as valorações humanas em relação à existência que, expressas fisiologicamente, indicam a saúde ou a doença, o fortalecimento ou a degeneração de um organismo. É com esse embasamento que dirá no parágrafo 2 do Prólogo de A Gaia ciência: ―frequentemente me perguntei se até hoje a filosofia, de modo geral, não teria sido apenas uma interpretação do corpo e uma má-compreensão do corpo‖. Sob uma análise superficial poder-se-ia afirmar que Nietzsche claramente transladara as questões até então tidas como espirituais para o nível corporal. Sua nova concepção psicológica, no entanto, transcende esse pensamento reducionista, indo além do conceito de corpo como tradicionalmente é compreendido. A vontade de potência é um processo relacional de dominação, os impulsos ou forças não são nem corporais, nem anímicos, efetivando-se como tendência de crescimento de potência. Embora reconhecendo que cientificamente tais afirmações estão desprovidas de legitimidade, Nietzsche propõe que sejam tomadas como uma interpretação possível, tanto quanto aquela que, até então, foi legitimada pela tradição (cf. FW/GC Prólogo § 2). No fragmento póstumo 14(121) da Primavera de 1888, intitulado ―A vontade de potência considerada psicologicamente: Concepção unitária da psicologia‖, Nietzsche afirma que sua tese é: ―que a vontade da psicologia que há havido até agora é uma generalização injustificada, que essa vontade não existe em absoluto, que em lugar de captar a configuração de uma única vontade que se há determinado em muitas formas, se há suprimido o caráter da vontade ao subtrair-lhe o conteúdo, o ponto até o qual se dirige‖. Como vontade única, entende-se o afeto básico de tendência a crescimento de potência, o ―ponto ao qual se dirige‖ a vontade. Caso se descuide desta observação, corre-se o risco de compreender erroneamente as palavras do filósofo, quando alerta para o equívoco advindo do fato de termos inventado uma falsa compreensão unitária que na verdade não existe (cf. FP 11 (111) Novembro de 1887-Março de 1888). Com isso, é possível compreender que a psicologia enquanto ―morfologia e teoria do desenvolvimento da vontade de potência‖ possa ir além da linguagem que ―continua a falar em ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 437 oposições onde há somente degraus e uma sutil gama de gradações‖ (JGB/BM §24). Ou seja, a psicologia nietzschiana supera o modo metafísico de pensar, que envolve qualidades absolutas opostas, por meio dos graus de hierarquização e da intensidade de potência dos impulsos, de caráter quantitativo. Após esse esclarecimento é possível compreender de maneira mais assertiva as palavras de Nietzsche quando afirma: em lugar da ―felicidade‖ individual a que deve espirar todo vivente, colocamos a potência: ―o ser vivo aspira à potência, a um mais (plus) na potência‖ (...) Que toda força motora é vontade de potência, não há que acrescentar nenhuma força física, dinâmica, psíquica... (FP 14 (121) Primavera de 1888). É nesse sentido que Nietzsche irá propor uma concepção ―unitária‖ de psicologia, ou seja, porque parte daquela qualidade originária à qual denomina vontade de potência, da qual sua nova psicologia estudará o desenvolvimento; uma vez que entende que ―os últimos e mais pequenos ―indivíduos‖ não são compreensíveis no sentido de um ―indivíduo metafísico‖ nem de um átomo, que sua esfera de valor se translada constantemente‖ (FP 14 (121) Primavera de 1888). É, portanto, a vontade de potência, enquanto primeira unidade qualitativa que, não constituindo uma unidade material, tampouco espiritual, possibilita a Nietzsche propor uma compreensão unitária de psicologia. Unitária no sentido de que se desenvolve unicamente a partir dessa primeira unidade qualitativa, dessa forma primitiva do afeto (Affekt), cujo desenvolvimento, no sentido das transformações, das mudanças que acarreta pode ser investigado a partir do quantum de potência que, em variações sucessivas, atuam no organismo configurando seu tipo hierárquico. Nietzsche desvincula a psicologia dos pressupostos metafísicos e religiosos sem, contudo, enveredar pelos caminhos da ciência. Apesar de sua filosofia sofrer influência considerável da psicologia científica francesa153, o filósofo acredita que as ciências ainda estejam, de algum modo, ligadas aos pressupostos metafísicos (cf. FW/GC § 344). Propõe, A proposta de uma nova psicologia desatrelada da metafísica e baseada nas ciências naturais era defendida pela psicologia experimental francesa, da qual Nietzsche era assíduo leitor. Teve como um dos principais centros irradiadores o filósofo e psicólogo francês Theodule Ribot. Fundador da psicologia científica francesa e responsável pela sua autonomia (cf. Nicolas, 2002, p. 103-118; Dugas, 1924, p. 16-32). Assim como Nietzsche, Ribot defendia que a psicologia baseada na fisiologia teria papel relevante na superação da psicologia tradicional de caráter metafísico. Diferentemente de Nietzsche, no entanto, para quem a fisiologia está ligada à dinâmica da luta dos impulsos (Triebe) por mais potência (vontade de potência), para o psicólogo e filósofo francês o termo fisiologia trata dos processos físico-químicos dos organismos. Para maiores referências quanto à relação de Nietzsche com a psicologia científica francesa cf. ―Nietzsche e Théodule Ribot: Psicologia e Superação da Metafísica‖ (FREZZATTI, 2010), bem como ―A Recepção de Nietzsche na França: da Revvue philosophique de la France et de l‟Étranger ao período entreguerras‖ (FREZZATTI, 2012). 153 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 438 então, compreendê-la como ―morfologia e teoria do desenvolvimento da vontade de potência‖, isto é, como a dinâmica da relação entre os impulsos (Triebe), que não sendo corpo nem alma, permitem que sua nova psicologia, apresentada no parágrafo 23 de Além de bem e mal como uma ―autêntica fisiopsicologia‖, se desvencilhe das dualidades metafísicas. Importante, neste ponto da investigação da noção de fisiopsicologia de Nietzsche, recorrer à Müller-Lauter (cf. 1999, p. 11), quando menciona três determinações gerais sobrepondo-se acerca do conceito de fisiologia em Nietzsche. Na primeira o filósofo seguiria o uso do termo ―fisiologia‖ em consonância com as ciências de sua época. Na segunda, o termo estaria voltado para a definição daquilo que determina de modo somático o ser humano, remetendo às funções orgânicas ou ao afetivo no sentido do imediato corpóreo. É, contudo, na terceira determinação que se identifica a característica fundamental da qual Nietzsche revestiu o termo, reinterpretando o viés pelo qual fora compreendido até então e determinando uma nova compreensão de seus significados usuais. É quando seu emprego já está condicionado a essa reformulação e sendo utilizado em sua obra enquanto conceito propriamente nietzschiano, mediante o qual ele compreende ―os processos fisiológicos como a luta de quanta de potência que ―interpretam‖― (MÜLLER-LAUTER, 1999, p. 12). Importante, todavia, ressaltar que, mesmo ao operar com os conceitos de psicologia e fisiologia no sentido da primeira e segunda determinações apresentadas por MüllerLauter, Nietzsche permanece tendo em mente, em primeiro plano, suas relações com o sentido próprio que criou e desenvolveu para o termo. É mediante o seu novo conceito de psicologia/fisiologia, ou, como enuncia no parágrafo 23 de Além e bem e mal, de fisiopsicologia que ele opera. As tradicionais formas de utilização dos termos aparecerão apenas como suporte à compreensão dos leitores ou em referencias críticas bem específicas donde se percebe sua censura no sentido de não darem conta das questões fundamentais, tratando superficialmente de processos muito mais complexos. É a análise fisiopsicológica que está sempre em primeiro plano para Nietzsche, suas formas tradicionais de emprego e os próprios termos que apontam a dualidade entre o físico e o psicológico foram resultado de más compreensões dos processos originários nos quais Nietzsche reconhece a atuação determinante da vontade de potência. Mais uma vez: a tradição vê dualidades metafísicas onde há um campo quantitativo contínuo (cf. JGB/BM §24). Sendo assim, pode-se considerar que há um sentido crucial no qual convergem os termos psicologia e fisiologia para Nietzsche, sendo exatamente o sentido pelo qual se refere à sua fisiopsicologia – conforme descrita no parágrafo 23 de Além de bem e mal. Isto ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 439 porque que é por ela que o filósofo intenta dar conta dos sucessivos processos de alteração das configurações da vontade de potência e suas concomitantes manifestações que, todavia, são expressas nos âmbitos tradicionais da psicologia e fisiologia. Se Nietzsche não separa o fisiológico do psicológico em sua teoria dos impulsos (Triebe) – uma vez que remete a expressões instintuais, ou seja, a manifestações resultantes da dinâmica da relação entre os impulsos (Triebe) aquilo que antes constituía um domínio bem definido de territórios diferenciados –, pode-se compreender que psicologia e fisiologia coincidam para Nietzsche no sentido de serem manifestações advindas de uma mesma origem. A nova psicologia, ou fisiopsicologia, enquanto teoria do condicionamento mútuo dos impulsos (Triebe) (cf. JGB/BM § 23), deverá ser o campo de estudo do novo psicólogo, que investigará a manifestação das configurações desses impulsos (Triebe) que condicionam a vida e sua influência na economia global da vida. É assim que o filósofo almeja garantir outra vez à psicologia o título de ―rainha das ciências‖ (cf. JGB/BM § 23). Referências Bibliográficas: FREZZATTI Jr., W. A. A recepção de Nietzsche na França: da Revue philosophique de La France et de l‟Étranger ao período entreguerras. São Paulo, 2012. Cadernos Nietzsche, n. 30, p. 59-99. ___________. Nietzsche e Théodule Ribot: Psicologia e Superação da Metafísica. Natureza humana (online). vol.12, n.2, p. 1-28, 2010. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo. Consultado em 30/09/2013. MÜLLER-LAUTER, W. Décadence artística enquanto décadence fisiológica: a propósito da crítica tardia de Friedrich Nietzsche a Richard Wagner. In: Cadernos Nietzsche. São Paulo, n. 6, p. 11-30, 1999. NIETZSCHE, F. W. A Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. ___________. Além do Bem e do Mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. ______. Fragmentos Póstumos. Diego Sánchez Meca (org.). 2a ed. Madri: Tecnos, 2008, v. IIV. ______. Humano, demasiado humano - vol. 1. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. ______. O Anticristo: maldição ao cristianismo: ditirambos de Dionísio. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 440 DA INFLUÊNCIA ILUMINISMO AO DESENVOLVIMENTO DA CONSCIÊNCIA MORAL NA NOVA PEDAGOGIA DE JEAN-JACQUES ROUSSEAU Marisa Ignes Orsolin Morgan154 UPF/CAPES Orientador: Prof. Dr. Ângelo Vitório Cenci [email protected] Zaira Canci155 UPF/FAPERGS [email protected] Orientador: Prof. Dr. Claudio Almir Dalbosco RESUMO: A proposta deste artigo é apresentar a relação entre a educação natural no Emílio e a educação para a liberdade e autonomia. Iniciaremos com uma breve contextualização da influência iluminista no projeto educacional de Rousseau tendo a natureza como referência normativa da educação buscando salientar aspectos da fundamentação do projeto educativo de Rousseau que propõe uma nova maneira de pensar e perceber a criança e sua infância. Enfatizamos o papel da educação natural no desenvolvimento da consciência moral com o aprofundamento da concepção rousseauniana de educação negativa mediante a moralidade apresentando o desenvolvimento cognitivo e moral nas diferentes fases. Palavras-chave: Conceito 1. Infância. Conceito 2. Liberdade. Conceito 3.Razão 1. A Influência iluminista no projeto educacional de Jean-Jacques Rousseau Para tratar do sistema educacional de Rousseau é indispensável citar o contexto histórico no qual o filósofo estava inserido e observar as influências do período para o desenvolvimento das ideias que deram origem a uma das mais importantes obras sobre a pedagogia. É importante delimitar a influência dos ideais iluministas na constituição do Mestranda em Educação do programa de pós-graduação da Universidade de Passo Fundo. Graduação em Serviço Social pela mesma. 155 Mestranda em Educação do programa de pós-graduação da Universidade de Passo Fundo. Graduação em Filosofia/LP pela mesma. 154 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 441 Émile, descrevendo o peso e a importância da tradição antiga na base do projeto educacional do filósofo. Rousseau estabelece um novo conceito de razão dentro de um período que exaltava a superioridade da racionalidade. Já de início o filósofo se mostra um crítico, indo além das peculiaridades da época e até mesmo mostrando-se a frente de seu tempo. Isso significa dizer que além de enxergar a definição errada de razão o filósofo entendia os males possíveis de se acreditar na inefabilidade atribuída à racionalidade humana. Exatamente como crítico da razão ele observa a importância de buscar uma compreensão de infância que priorize o desenvolvimento pleno da criança, entendendo-a como um ser em desenvolvimento que carece de compreensão e atenção particulares. Este movimento define exatamente como se encontrava o espírito humano neste período de mudanças. O iluminismo não aconteceu de maneira imediata no século XVIII, ele é resultado de transformações e reformas de pensamento que datam deste o século XV e, principalmente com a revolução cartesiana do século XVIII. O iluminismo é compreendido como o século da luzes. Nome atribuído a valorização racional em contrapartida ao abandono da fé e da religiosidade que ligava o homem europeu a igreja. Neste período o homem se liberta do conhecimento dizimado pela fé em Deus para atribuir todo e qualquer conhecimento a razão. A partir de então o sujeito passa a dirigir suas vontades e suas ações tendo como guia unicamente a sua racionalidade. Jean-Jacques Rousseau posicionou-se frente à concepção ingênua que igualava a felicidade humana ao progresso da ciência de maneira diferente. De acordo com Dalbosco ―(...) segundo ele, o progresso das ciências e das artes não significam o melhoramento moral, mas sim a depravação humana‖ (2011a, p. 118), principalmente se em conjunto caminhasse a educação tradicional do qual o filósofo era crítico. Rousseau criticava a educação da época principalmente porque esta não respeitava o processo de desenvolvimento da própria criança considerando-a um adulto em miniatura sem necessidades e aspirações próprias da sua condição de infante. Além disso, para contrariar o potencial emancipatório concedido exclusivamente a razão o filósofo desenvolveu o mito do bom selvagem. Ou seja, Rousseau propõe a volta do homem ao que lhe é natural, opondo-se a vida artificial da sociedade moderna. Ele faz uma defesa a vida verdadeira, baseada na simplicidade e no que é essencial ao homem. O bom selvagem é o conceito que o filósofo criou para contrariar a vida artificial das cidades e, principalmente da vida parisiense. O argumento que lhe serviu de base é que quanto mais ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 442 o homem se socializaria mais ele se depravaria moralmente. Seu pessimismo diante do progresso estaria no fato de que ―(...) o progresso econômico-social seria a principal causa da corrupção dos costumes‖ (DALBOSCO, 2011a, p. 120). Quando o filósofo propõe uma volta à natureza, não significa dizer que ele pretende que o homem abandone a sociedade e volte à natureza esquecendo todas as suas conquistas de até então. Até mesmo porque isso seria impossível. O que ele propõe é o abandono do artificialismo da sociedade do consumo e das aparências para que integralmente o homem consiga desenvolver as suas potencialidades físicas e mentais. O retorno do homem ao que lhe é natural é a proposta de Rousseau para que o homem volte a sua interioridade. 2 A natureza como referência normativa da educação A natureza assume papel de destaque na teoria educacional de Rousseau desempenhando sentido normativo quanto á inserção do homem na ordem do mundo. A normatividade assumida pela natureza acompanha o crescimento do homem frente a sua condição finita dentro da ordem das coisas. Prepara-o para aceitar a precariedade que a sua condição de ser humano lhe faz inerente, por isso possui caráter normativo-pedagógico. A natureza é o primeiro mestre do homem. Logo ao nascer nos deparamos com sua força condutora capaz de orientar os homens diante de sua existência causal em um mundo onde sua condição finita lhe mostra o quanto precária é sua condição. ―Sua força normativa consiste no fato de que, ao ser origem da própria razão, pode inspirar o ser humano a seguir em frente, (...) a superar o fato mais dramático de sua existência (...)‖ (DALBOSCO, 2011b, p. 70), sua finitude consciente. A natureza, desde a tenra infância, coloca o sujeito diante de sua força. Há aspectos regulares e leis físicas que servem de exemplos e lições para que, desde o início da sua existência, o homem entenda que nem tudo está ao alcance de suas forças, que nem todos os seus desejos podem ser realizados. Neste momento a natureza expõe a existência de uma ordem e, consequentemente, de uma série de fenômenos que acontecem sem a participação do homem. A criança desde muito cedo aprende a respeitas regras e leis, primeiramente da natureza, respectivamente as leis sociais. Diante disso ele se percebe como um ser pequeno diante de algo que lhe é muito maior. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 443 A dor é necessária para o aprendizado, pois é natural ao homem. ―Sofrer é a primeira coisa que ele deverá aprender, e a que ele terá maior necessidade de saber‖ (ROUSSEAU, 2004, p. 70). O filósofo atesta para importância de educar o homem para as intempéries da natureza. Isso significa dizer que a criança não deve ser poupada do sofrimento, das angústias e das dores físicas. Ao vivenciar experiências, como pequenas quedas, por exemplo, a criança estará aprendendo a usar corretamente sua força. Neste ponto conseguirá medir seus passos para não mais cair. Deste modo estará se preparando para a autonomia, pois não irá carecer do auxílio de mais ninguém a não ser de suas forças para pular um obstáculo, ou apanhar uma fruta no pé, por exemplo. ―Junto com a força, desenvolve-se o conhecimento, que as põe em condição de dirigi-la‖ (ROUSSEAU, 2004, p.71). Quando o infante conseguir conciliar seus desejos com suas forças será realmente livre. Não é preciso ensinar-lhes o que é a liberdade, eles aprenderão vivendo e experimentando e assim realmente a entenderão. Inicialmente a natureza deu ao homem apenas os desejos necessários à sua sobrevivência e, consequentemente, as faculdades para tal. As demais pulsões ficaram no fundo de sua alma para serem desenvolvidas de acordo com a necessidade. Quanto mais permanecer perto da natureza, longe da falsidade mais feliz o homem será. ―Nunca ele é menos miserável do que quando parece carente de tudo, pois a miséria não consiste na privação das coisas, mas na necessidade que sentimos dela‖ (Rousseau, 2004, p.75). Com esta frase o filósofo ressalta sua crítica a respeito da sociedade moderna. Segundo ele, os homens se depravam ao se tornarem sociais em excesso, ou seja, desenvolvendo necessidades que antes lhe eram estranhas e que se tornam senhoras das suas vontades e de sua razão. Nisso tudo consiste a liberdade. O homem verdadeiramente livre só quer o que pode realizar com as suas próprias forças. A sociedade enfraqueceu este homem. Entendese por homem forte aquele que age de acordo com a força que possui. Na sociedade civil os adultos trazem até as crianças suas primeiras necessidades falsas, estimulando seus desejos por coisas que a criança sozinha, como veio ao mundo, jamais precisaria. A felicidade é condição natural do homem e o acompanha desde o seu nascimento. O homem livre é aquele que basta a si próprio, é o caso daquele que vive sob o estado de natureza. A criança tem sua liberdade limitada pela sua condição ao nascer, de ser fraca, essa condição lhe é muito importante. Os adultos não são livres quando suas necessidades ultrapassam as suas forças e para satisfazê-las precisam aliar-se aos outros, tornando-se duplamente dependentes, dos seus desejos e dos outros. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 444 Há dois tipos de dependência; a das coisas, que é da natureza, e a dos homens, que é da sociedade. A dependência das coisas por não conter moralidade não gera vícios, a dos homens é o seu contrário. O caminho para remediar este mal é substituir o homem pela lei, ou seja, tornar as vontades particulares em vontades gerais, deste modo as leis das nações seriam como as leis da natureza, invioláveis. A natureza quer que as crianças sejam crianças antes de serem homens, por isso nascem sensíveis e não racionais. ―Se quisermos perverter essa ordem, produziremos frutos temporões (...)‖ (ROUSSEAU, 2004, p. 91). A criança deve receber lições de suas experiências. Primeiramente sua educação deve ser negativa, ou seja, não convêm a ela aprender sobre virtude, verdade ou moralidade, mas sua educação deve preveni - lá ―(...) contra o vício e o espírito contra o erro‖ (ROUSSEAU, 2004, p. 97). É exercitando seu corpo, seus sentidos, sua força que se estará educando e não estimulando seus julgamentos que aprenderá o que é liberdade, moralidade. Ela precisa vivenciar livremente esses conceitos no decorrer do seu desenvolvimento pois apenas assim os aprenderá verdadeiramente. A natureza dispõe de meios naturais para promover o desenvolvimento saudável do infante. Rousseau é crítico da pedagogia tradicional, pois não entende a necessidade de educar segundo os preceitos racionais. Para o filósofo a criança é antes um ser sensível que precisa, primeiramente, desenvolver suas forças e emoções. A natureza é o ambiente favorável para tal, a melhor maneira de educar é considerando o infante no infante, com todas as suas particularidades para depois prepará-lo para viver em sociedade e, consequentemente para o mundo. 2.1 O desenvolvimento da consciência moral A concepção educativa descrita no ―Émile”, por Rousseau, demonstra que a ―(...) educação moral também está baseada na idade e no desenvolvimento das faculdades do educando‖ (CENCI, 2011, p.153). A educação moral na infância tem como base o contexto da educação negativa, pois busca prevenir os vícios, sem moldar as virtudes. Preparando o desenvolvimento das faculdades humanas, ao seu devido tempo, buscando a preparação para a superação de obstáculos que se apresentam no processo de amadurecimento individual do educando. Sendo assim: ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 445 A educação primeira deve, portanto ser puramente negativa. Ela consiste, não em ensinar a virtude ou a verdade, mas em preservar o coração do vício e o espírito do erro. Se pudésseis conduzir vosso aluno são e robusto, até a idade de doze anos, sem que ele soubesse distinguir sua mão direita de sua mão esquerda, logo às vossas primeiras lições os olhos de seu entendimento se abririam para a razão. Sem preconceitos, sem hábitos, nada teria ele em si que pudesse contrariar o resultado de vossos cuidados. Logo, ele se tornaria em vossas mãos, o mais sensato dos homens; e começando por nada fazer terei feito um prodígio de educação (ROUSSEAU, p.80, 1995). A educação natural propõe a preparação do educando para o convívio em uma sociedade democrática, que não deve retirar do homem sua liberdade nem corrompê-lo. Uma sociedade justa que se propõe a vontade geral dos homens. Sendo que a formação da vontade geral ocorre através da educação. Portanto, a criança deve aprender a não ser individualista, deve aprender a passar da vontade individual para a vontade coletiva. A educação é o desenvolvimento das potencialidades naturais, assim é natural do humano socializar-se e é a natureza que normatiza todas as potencialidades. Para Rousseau, a entrada do educando na ordem moral e social ocorre simultaneamente na adolescência com o aperfeiçoamento do espírito e do julgamento pelo desenvolvimento da razão: O educando ultrapassa a fase em que se conhecia pelo seu físico e era estudado em suas relações com as coisas para se perceber pelo seu ser moral, devendo ser estudado em suas relações com os outros. Sua sensibilidade desenvolve-se de modo que ultrapasse os limites de si próprio e estende-se aos seus semelhantes (CENCI, 2011, P. 147). O novo nascimento, na fase da adolescência, proporcionará ao educando, no relacionamento com os outros humanos, sentir sua moral, ou seja, perceber que as relações não se constituem apenas pela utilidade. Nesta fase as relações humanas começam a despontar como relações sociais. Ampliam-se os sentimentos e intensificam-se as paixões. Deverá o educador empenhar-se em afastar o educando dos sentimentos de inveja e vaidade, propiciando situação em que elas sejam experenciadas para que sintam seus efeitos negativos aprendendo a superá-los. Experenciar o mundo e a si próprio no mundo é a forma do educando conhecer o mundo, experimentando-o aos poucos tanto de forma sensorial como espiritual. Essa experiência demanda o envolvimento do educando, com vistas a evitar o risco ao moralismo. Esta experimentação impede a imposição de verdes morais abstratas, isso ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 446 considerado que o conhecimento e formação moral têm como fonte a própria experiência e a experiência do educador. A passagem da liberdade natural para a moral exige do educando a capacidade de autocontrole do sujeito, o domínio das emoções e paixões. Segundo Rousseau, a educação moral deve ser amparada ao ensino de regras e ao desenvolvimento do caráter. Deste modo se manifestará no comportamento expressivo de virtudes tradicionalmente conhecidas e respeitadas, tais como a honestidade, a coragem, o controle de si mesmo, a solidariedade e o respeito ao próximo. A maior parte dos programas tem como objetivo realçar essas virtudes, de modo que se tornassem princípios internos que orientem o comportamento e as decisões a serem tomadas. Os meios para a realização de tal objetivo são fundamentalmente, como os de confrontação entre o comportamento do adolescente e o exemplo dos adultos ou jovens maiores que possuem virtudes específicas, ilustrando estas virtudes, recompensando a prática e punindo a omissão das mesmas. A educação proposta por Rousseau é a da liberdade ou da natureza. Por ela, o homem adquire a possibilidade de penetrar na sua interioridade, alcançar a liberdade e dar significado à sua existência, considerar a si e ao outro; perceber o outro como extensão de si próprio. O principal objetivo da educação é formar o homem livre, capaz de se defender contra todas as influências negativas advindas da sociedade. No processo de formação cognitiva a criança tem de ser levada a desenvolver um modo de decidir e agir de acordo com seus desejos, vontades e limites impostos pela natureza. Ela deverá por si só reconhecer suas limitações. Ser livre é algo natural ao homem, mas para o convívio social o respeito e o limite são necessários. A criança não pode ter tudo o quer e isso gera sentimentos de frustração e raiva. Cabe ao processo de formação cognitiva equilibrar os sentimentos existentes na consciência moral. Tomar a voz da natureza como norma das paixões, sentimentos, dos afetos e das ações. Este deve ser o caminho para que mais tarde haja o desenvolvimento da voz da consciência. Neste contexto geral a tarefa mais elementar da educação natural em Rousseau consiste na tensão entre os envolvidos no processo pedagógico, sabendo que ―A formação humana, quer seja na direção cooperativa/solidária ou individualista/ egoísta, não é uma determinação somente externa e estranha aos envolvidos, mas depende também das suas decisões e opções‖ (DALBOSCO, 2011b, p.138). O objetivo principal da educação moral é ―(...) assegurar a passagem da dependência para a independência‖ (DALBOSCO, 201b, p.34). Rousseau estabelece tarefas específicas da passagem da educação natural para a educação moral ensinando ao ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 447 jovem que o homem é ―naturalmente bom‖ e deve julgá-lo por si mesmo, também cabe ao jovem compreender e analisar criticamente a sociedade. Desta forma a maioridade é apresentada como condição da dignidade humana. Segundo Dalbosco, (p.36, 2011b) ―Tal concepção remete-nos para a conclusão de que a meta da educação moral é formar um homem capaz de julgar e agir coerente e autonomamente (...)‖. A base da educação natural é a liberdade humana ligada à razão, a consciência e a vontade de si. A natureza humana é à base do direito e da liberdade. A natureza deve ser o guia da moral. A voz da consciência nos ajuda a decidir por conta própria, ou seja, nos ajuda a desenvolver a autonomia. Voltar à natureza é ouvir a voz da consciência e controlar o amor próprio desenvolvendo o amor de si. Somente assim atingimos uma subjetividade autêntica. Assim sendo, o papel da educação não se limita simplesmente ao aprimoramento humano, mas faz com que o educando se compreenda enquanto ser social e reconheça seus direitos e deveres, pois a moral constitui-se do resultado da sua relação com a sociedade, tendo papel fundamental na educação social. Portanto, é função da pedagogia natural desenvolver uma formação racional, autônoma e sensível. 4. Considerações Finais Rousseau opõe-se à educação como transmissão de valores, de conhecimentos e informações. Opõe-se à educação que procura moldar a natureza da criança com padrões pré-estabelecidos, isto é, com maneiras de pensar, agir e sentir pré-determinados. Para ele a educação é um processo natural da vida humana e não se constitui em uma preparação para um futuro distante da infância. A educação se faz a todo o momento, em todo lugar. Conferindo liberdade às forças naturais, o educador transforma o processo de desenvolvimento na possibilidade de uma vida racional, produtiva e criativa. Com ele instaura-se uma nova maneira de pensar o homem, reconhecendo-lhe a capacidade de dirigir o seu próprio eu, firmar sua liberdade, sua identidade. A visão pedagógica do Emílio ou da Educação, reside na compreensão do fenômeno educacional como formação do sujeito e do processo de subjetivação, que se constrói no tempo e na história, indo da infância à idade adulta. Sendo cada uma das etapas: a criança, o adolescente e o homem adulto, devem ser vistas em suas inter-relações e em suas especificidades. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 448 Referências Bibliográficas: DALBOSCO, Cláudio. A. Educação Natural em Rousseau: das necessidades da criança e dos cuidados do adulto. São Paulo: Cortez, 2011a. CENCI, Ângelo.V. A Formação moral e o papel do educador no livro IV do Emílio. In: DALBOSCO, C. A. (ORG.). Filosofia e Educação no Emílio de Rousseau: o papel do educador como governante. São Paulo: Alínea, 2011b. p. 147-167. KANT, Immanuel. Textos seletos. Rio de Janeiro: Vozes, 1985. ROUSSEAU, Emílio ou da Educação. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. ROUSSEAU, Emílio ou da Educação. São Paulo: Martins Fontes, 2004. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 449 REFLEXÕES SOBRE AS MANIFESTAÇÕES DE JUNHO DE 2013 E A TEORIA DO RECONHECIMENTO DE AXEL HONNETH Maurício Rebelo Martins UNICAMP/Bolsista FAPESP [email protected] RESUMO: A presente comunicação tem o objetivo de analisar as manifestações de junho de 2013 com a ajuda da Teoria do reconhecimento de Axel Honneth. Não é nosso objetivo fazer uma análise detalhada desses eventos, pois julgamos que ainda é cedo para essa tarefa e porque exigiria mais tempo para fazer um resgate histórico do desenvolvimento do sistema político no Brasil. Nesse sentido, primeiro iremos expor em breves linhas a Teoria do Reconhecimento de Axel Honneth. Depois, com o auxílio dessa teoria e da análise dos eventos feita por Marcos Nobre, faremos uma análise das manifestações para tentar entender o verdadeiro potencial que pode ser extraído desses acontecimentos. Palavras-chave: Reconhecimento. Manifestações. Sistema. Política. A Teoria do Reconhecimento de Honneth é a tentativa de formular uma teoria crítica da sociedade preocupada em interpretar a sociedade a partir de uma única categoria, isto é, do reconhecimento. Entendemos que as suas teses podem nos ajudar a refletir sobre os acontecimentos de junho deste ano no Brasil. Não é nosso objetivo fazer uma análise profunda desses acontecimentos, pois talvez seja cedo para tirar qualquer conclusão sobre o que aconteceu e principalmente sobre as consequências dessas manifestações. O que tentaremos nessa comunicação é suscitar o debate sobre essas manifestações e, a partir da teoria do reconhecimento de Axel Honneth, tentar entender o que levou tantas pessoas as ruas. Para os fins dessa comunicação, primeiro apresentaremos de forma sucinta as principais teses de Honneth sobre o reconhecimento e, em seguida, iremos expor nossas reflexões sobre essas manifestações a luz da teoria do reconhecimento de Honneth e da análise do filósofo e sociólogo brasileiro Marcos Nobre. 1 A Teoria do Reconhecimento de Axel Honneth ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 450 Axel Honneth, filósofo e sociólogo alemão, diretor desde 2001 do Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt, é hoje considerado um dos mais importantes representantes da Teoria Crítica. Honneth, assim como fez Jürgen Habermas, apresenta a sua própria posição teórica em confronto com seus antecessores. Nesse sentido, primeiro ele busca mostrar os limites da ‗teoria da ação comunicativa‘ de Habermas para depois formular a sua própria posição teórica que pode ser resumida como ‗teoria do reconhecimento‘. Sua tese de livre-docência, publicada sob o título de Luta por reconhecimento, ampliou a notoriedade já alcançada com a sua tese de doutorado publicada com o título Crítica do poder. No seu Luta por reconhecimento Honneth procura mostrar, a partir de uma análise de alguns elementos da filosofia do Jovem Hegel, a necessidade de pensar o processo de construção da identidade (pessoal ou coletiva) a partir dos conflitos sociais. Temos visto inúmeras tentativas de lidar com os conflitos sociais. No entanto, quase todas voltadas para a ideia da pacificação ou da acomodação. A novidade apresentada por Honneth é que a base das interações é o conflito e que sua gramática é a luta por reconhecimento. Honneth faz do conflito social o motor responsável pela construção da identidade pessoal ou coletiva. A teoria do reconhecimento de Honneth é a tentativa de construir uma teoria social de caráter normativo. Ele parte da proposição de que o conflito é intrínseco tanto à formação da intersubjetividade como dos próprios sujeitos. Tal conflito não é conduzido apenas pela lógica da autoconservação dos indivíduos. Trata-se, sobretudo, de uma luta moral, visto que a organização da sociedade é pautada por obrigações intersubjetivas. Honneth fala de três formas de reconhecimento. A primeira forma ele chama de amor ou dedicação emotiva, pois entende que nas relações primárias se expressam fortes ligações emotivas pelas quais o indivíduo pode adquirir autoconfiança. A segunda forma é a do direito ou respeito cognitivo, onde as relações jurídicas regulam-se pelos princípios morais universalistas construídos na modernidade. O sistema jurídico deve expressar interesses universalizáveis de todos os membros da sociedade, não admitindo privilégios e gradações e permitindo os indivíduos a aquisição do autorespeito. E a terceira e última forma de reconhecimento é a da solidariedade ou estima social, onde o indivíduo diante da comunidade de valores pode adquirir uma estima social que lhe permita referir-se positivamente a suas propriedades e capacidades concretas. Sobre isso fala Honneth: ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 451 De acordo com isso, são as três formas de reconhecimento do amor, do direito e da estima que criam primeiramente, tomadas em conjunto, as condições sociais sob as quais os sujeitos humanos podem chegar a uma atitude positiva para com eles mesmos; pois só graças à aquisição cumulativa de autoconfiança, autorespeito e autoestima, como garante sucessivamente a experiência das três formas de reconhecimento, uma pessoa é capaz de se conceber de modo irrestrito como um ser autônomo e individuado e de se identificar com seus objetivos e seus desejos (HONNETH, 2003, p. 266). Às três formas do reconhecimento, Honneth associa, respectivamente, três formas de desrespeito. No caso do amor, o desrespeito aparece nos casos de maus tratos e violação física. Nesse caso, o que está em jogo é a integridade física do indivíduo. No caso do direito, o desrespeito se manifesta por meio da privação de direitos e exclusão. É a integridade social que se desrespeita. E, por fim, no caso da solidariedade, o desrespeito surge nos casos de degradação e ofensa. A ―honra‖ e a dignidade do indivíduo são desrespeitadas. Honneth entende que todas essas formas de desrespeito e degradação impedem a realização do indivíduo em sua integridade, totalidade. Contudo se, por um lado, o rebaixamento e a humilhação ameaçam identidades, por outro, eles estão na própria base da constituição de lutas por reconhecimento. O desrespeito pode tornar-se impulso motivacional para lutas sociais, à medida que torna evidente que outros atores sociais impedem a realização daquilo que se entende por bem viver. Dessa forma, a luta por reconhecimento é fundamental para o desenvolvimento moral da sociedade e dos indivíduos. 2 As manifestações de junho de 2013 e a Teoria do Reconhecimento de Axel Honneth Talvez não seja possível ainda entender as manifestações que ocorreram em junho deste ano no Brasil. Mas certamente é nosso dever ao menos se perguntar o que levou tantas pessoas em tantos lugares diferentes saírem às ruas para lutar pelos seus interesses. Afinal, quando muitos imaginavam e escreviam que o povo brasileiro se encontrava adormecido e acomodado, presenciamos, pelo menos em números, uma das maiores manifestações que esse país já viu. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 452 O que levou essas pessoas as ruas? Talvez esta seja a única pergunta que possamos tentar responder nesse momento. Está muito claro que as manifestações de junho de 2013 vão além da revogação do aumento das tarifas de transporte e da insatisfação com a má aplicação dos recursos em mega eventos como a copa do mundo. É uma revolta também contra a falta de canais de expressão onde a população possa manifestar suas necessidades. A sociedade não estava encontrando caminhos para expressar o seu protesto, a sua insatisfação. É uma revolta pelo direito de se manifestar, pela abertura de canais entre a sociedade e o sistema político. Também é necessário dizer que a violenta repressão policial às primeiras manifestações serviu para motivar ainda mais as pessoas a irem às ruas. Quando aconteceu a repressão policial, os manifestantes indignados gritavam que além de não conseguir mais influenciar esse sistema político que se fecha nele mesmo, funciona segundo suas próprias regras e não presta conta à sociedade, o sistema também envia a polícia para desmobilizálos. As ruas ganharam mais manifestantes porque o sistema, além de ferir os indivíduos em sua dignidade, também resolveu agredir fisicamente. Não há uma unidade de reivindicações, de foco, a organização é diferente. As pessoas estão expressando insatisfações de muitos tipos, de muitos níveis. Contudo, parece inegável que há um traço comum nessas manifestações: existe uma revolta contra o sistema. Se cada grupo saiu às ruas para lutar pelos seus interesses em particular, todos também carregavam a bandeira de um movimento apartidário. Em inúmeros lugares no país podíamos ouvir o grito ‗sem partido‘. Os manifestantes, independente da sua pauta, sempre deixavam bem claro que se tratava de um movimento que gozava de autonomia em relação ao governo e a partidos políticos. Não foi a toa que as manifestações deixaram os nossos representantes políticos estarrecidos. Não sabiam o que fazer. Em São Paulo foi possível ver o PT e o PSDB darem as mãos para anunciar a revogação do aumento das passagens. De Brasília vimos a presidente ir aos meios de comunicação para anunciar que iria ouvir a voz das ruas. Deputados, vereadores e senadores sumiram dos noticiários, pois não queriam enfrentar as ruas e se reuniam para entender tudo que estava acontecendo. Essa revolta, e aqui seguimos os passos de Honneth para nossa análise, é a manifestação de uma população que se sente desrespeitada e desprezada. Alguns grupos são desrespeitados quando sofrem maus tratos e violação física, como é o caso dos homossexuais. Com outros grupos o desrespeito se manifesta por meio da privação de ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 453 direitos e exclusão. E, outros ainda, o desrespeito surge nos casos de degradação e ofensa, onde a ―honra‖ e a dignidade são desrespeitadas. De acordo com Honneth, o que motiva esses grupos a saírem e lutarem por melhores condições é a necessidade de ser reconhecido e respeitado. O interessante é que para esses grupos o desrespeito maior vem daqueles que deveriam representar seus interesses. Os manifestantes que saíram as ruas com a bandeira ‗sem partido‘ estavam externando seu sentimento de revolta contra o desprezo manifestado por aqueles que foram eleitos para ouvi-los. Na verdade, talvez esses grupos não tenham feito essa leitura ainda, mas a sua luta é, também, contra um sistema político blindado. De acordo co Marcos Nobre, em nome de um acordo de governabilidade, vivemos no Brasil um momento em que não há verdadeiramente uma oposição. Os partidos políticos, através de várias ações, vêm construindo um sistema político que tem por objetivo a permanência no poder. Um exemplo clássico do que falamos é o PMDB. Partido que faz acordo com Deus e o Diabo para permanecer no poder. No entanto, se enganam aqueles que ainda procuram uma polarização entre esquerda e direita. Se for possível falar de oposição, essa só pode ser vista entre aqueles que estão no poder e aqueles que lá gostariam de estar. No Brasil, infelizmente não existe opinião pública. Ela foi substituída pela opinião da mídia. E a mídia, através de leituras superficiais e equivocadas, faz a população crer que existe oposição no Brasil. Essa blindagem do sistema político transformou os partidos e seus representantes em uma grande geleia. Não é possível identificar projetos políticos. Aquele que ontem era seu inimigo amanha pode ser seu aliado. Novas regras são aprovadas apenas para proteger os partidos políticos. Não é a toa que temos o pleito eleitoral mais avançado do planeta. A população só é ouvida nos pleitos eleitorais e, ainda assim, parcialmente, pois com as regras de legenda e coeficiente eleitoral não é possível saber se aquele que você escolheu será eleito. De acordo com Honneth, o que move uma sociedade é a luta por reconhecimento. Quando somos feridos e desrespeitados nos organizamos para lutar pela nossa dignidade. No caso das manifestações de junho de 2013, é muito claro que a população ao não encontrar canais de expressão política recorreu às manifestações, algumas violentas, para ver seu grito por reconhecimento ser atendido. Nesse sentido, é inegável a força e importância que a internet e as redes tiveram para organizar essas manifestações. Num país onde a imprensa é quem forma a opinião, as ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 454 redes são um espaço verdadeiramente democrático. Se for verdade que encontramos muito lixo na internet, também é verdade que as redes proporcionam um espaço aonde a opinião vai sendo construída através do diálogo. Infelizmente, nesse momento, encontramos muitas leituras que tentam neutralizar essas manifestações. Algumas dizendo que é estratégia da oposição, e aqui se leia PSDB, e outras que é estratégia da situação. Alguns, ignorando a força das manifestações, afirmam pejorativamente se tratar do movimento de classe média. Outros ainda chegam a temer que por se tratar de um movimento sem partido seja uma manobra de apoiadores de uma ditadura militar. Enfim, leituras que se pretendem definitivas e quem não conseguem enxergar o verdadeiro potencial dessas manifestações. A crítica mais comum ouvida durante as manifestações é que não existe uma pauta unificada por parte dos manifestantes. Isso é dito com o objetivo de neutralizar e desmobilizar os manifestantes. Contudo, como Honneth nos ajudaria a compreender, numa sociedade plural e complexa, não existe apenas ‗um‘ interesse. Cada indivíduo luta para ser respeitado onde foi desprezado e ferido. Mesmo assim, com já dissemos, o traço comum dessas manifestações é a luta contra esse sistema político blindado. Nesse sentido, e aqui vamos concluído essa comunicação, o grande potencial dessas manifestações é perceber que a população está cansada desse sistema político que privilegia a perpetuação no poder. O grito das ruas é contra um sistema que se fecha cada vez mais e que permite acordos absurdos, trocas de favores, corrupção e coligações que ignoram as verdadeiras necessidades da população. Tal qual está, o sistema político e seus partidos se constituem numa força despolitizadora da sociedade. Este é o momento para aprofundarmos a democracia em nosso país. Talvez seja necessário dar autonomia para os municípios e descentralizar os recursos, pois a centralização dos recursos é um exemplo de um sistema político que se fecha em si mesmo e que torna os estados e municípios dependentes do governo federal. Também não se pode barganhar menos desigualdade social por uma cultura política de baixo teor democrático. O Brasil precisa aprofundar a democracia. Talvez algumas leituras estejam corretas quando afirmam que essas manifestações são perigosas. Afinal, aprofundar a democracia sempre traz riscos. Mas não podemos fechar os olhos e ouvidos para o clamor das ruas. Muitos desses jovens não são capazes de fazer uma leitura de tudo que está acontecendo, mas esse é o momento de aproveitar para formar novas lideranças e ajudar esses jovens a compreender que a democracia é uma forma de vida que penetra fundo no nosso cotidiano. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 455 Enfim, as manifestações de junho de 2013 podem servir para um processo de politização e aprofundamento da democracia no país. Nesse sentido, é necessário que toda a sociedade seja capaz de se engajar nesse processo de destruição dessa blindagem do sistema político. Afinal, como afirma Marcos Nobre, Todas essas frentes de combate, todas as possíveis saídas e alternativas, dependem de mobilizações sociais densas o suficiente para acuar o sistema político e obrigá-lo a mudar, como se viu nas ruas em junho de 2013. Mobilizações como essas podem adquirir formas e caminhos muito diversos. Na história brasileira – mas não só –, mobilizações de largo espectro e alcance vieram acompanhadas de convergências mais amplas, que não passavam apenas pela política. A aglutinação de forças de transformação costuma vir acompanhada de efervescência e ebulição cultural, com destaque para as manifestações artísticas. (NOBRE, 2013, p. 31). Referências Bibliográficas: HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2003. NOBRE, M. Choque de democracia: Razões da revolta. São Paulo: Companhia das letras, 2013. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 456 A “PRESENÇA” NA FILOSOFIA CONCRETA DE GABRIEL MARCEL Nadimir Silveira de Quadros PIBID [email protected] Prof. Dr. Claudinei Aparecido de Freitas da Silva. RESUMO: O conceito de presença na filosofia concreta de Gabriel Marcel aponta para a direção em que o homem possa reencontrar além do idealismo clássico, uma filosofia do ser. A existencialidade do homem se dá na sua participação com o outro, na medida em que ela não é objetivável. Há uma reflexão primeira que deve ser superada pela reflexão segunda, a participação no mistério do ser, visando superar a mentalidade subjetivista e conferindo estatuto a uma ontologia da presença. A intersubjetividade se dá na presença do tu, quando participo da presença do outro no ser-com. Ser é coexistir com o outro. A intersubjetividade é a expressão máxima de abertura para o outro. Palavras-chave: Intersubjetividade. Mistério. Presença. Problema. O propósito do filósofo foi de demonstrar que o idealismo e também o bergsonismo não permitiam o acesso ao ser concreto. Tratava-se de estabelecer que na intuição o ser é dado, mas não dado por ela, donde a imanência do ser ao espírito e a transcendência do pensamento em relação ao saber sempre foram regidos pelos processos de objetivação. O autor aponta para esta ideia quando escreve, que: Deve-se voltar a examinar de perto o que disse da intuição, porque ainda não fica perfeitamente claro para mim. No fundo, trata-se de uma intuição que seria, em certo modo, eficiente e puramente eficiente – da qual em definitiva eu não poderia dispor de modo algum. Porém, cuja presença se manifestaria na inquietude ontológica que se exerce na reflexão. Para aclarar isto, haveria de partir de um exemplo, de uma ilustração: talvez a exigência da pureza ou inclusive da verdade. Esta intuição não está em mim. Há aqui algo para averiguar se não se quer permanecer nas negações. No fundo, o que nos leva a admitir esta intuição é o fato de refletir sobre o paradoxo de que eu mesmo não sei o que creio (paradoxo que atraiu minha atenção desde muito tempo e que está por aprofundar e precisar). Espontaneamente se admite o contrário: quer dizer, que posso fazer uma espécie de inventário de meus objetos de crença ou também uma ―separação‖ entre o que creio e o que não creio, o ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 457 que implica que me é dado ou me é sensível uma diferença entre aquilo ao qual me adiro e aquilo ao qual não adiro. (MARCEL, 1969, p.151). Segundo o autor, a existencialidade é a participação na medida em que esta é nãoobjetivável: (...) tendemos a considerar espontaneamente a existência de uma coisa como o fato e que esteja aí, porém, ao mesmo tempo, de que possa deixar de estar aí ou em alguma parte e, portanto, nesta ordem todas as vicissitudes são possíveis, todos os deslocamentos, todas as destruições. Porém, se concentro minha atenção sobre o simples fato de que eu existo ou inclusive de que tal ser ao qual eu quero existe, troca a perspectiva; existir já não quer dizer simplesmente estar aí ou estar em outra parte, o que provavelmente significa em essência transcender a oposição que existe entre o aqui e qualquer outro lugar. (MARCEL, 2002, p.219). Marcel critica o que ele chama de ―reflexão primeira‖, denunciando as armadilhas e as facilidades centradas no verificável, que se tornou impotente para chegar a intensidade do existencial – corporeidade, relação com outrem. Agora, confrontado ao tema bergsoniano de intuição, tema dificilmente contornável na França da época, Marcel sugere a expressão ―intuição reflexiva‖, entendendo esta expressão como uma forma de instrumento para o pensamento, mas ao mesmo tempo reconhecendo ser uma expressão não muito feliz para explicar o modo como me coloco diante de mim mesmo, do ser. Situado diante do ser, num sentido o percebo, mas em outro não, pois não posso me perceber de modo que possa ver o ser (MARCEL, 1969, p. 121). A intuição reflexiva é uma intuição que, sem ser para si, não se possui ela mesma senão através dos modos de experiência e dos pensamentos que ela ilumina ao transcendê-los. A ―reflexão segunda‖ será a atenção dada a essa antecedência, que não é outra coisa senão minha participação no ―mistério do ser‖, cuja expressão é o título da obra principal de estudo deste trabalho. Marcel propõe a ideia de uma reflexão segunda que dê acesso ao ―metaproblemático‖, isto é, ao mistério em virtude de uma fidelidade criadora que ignora a fragmentação do tempo. A originalidade da filosofia de Marcel consiste na análise da existência, conferindo estatuto a uma ontologia da presença a partir da fidelidade, do amor e da esperança, sem deixar de tematizar o vínculo da existência com o ser. Nesse contexto, o filósofo parte da situação fundamental do homem como ser encarnado, vinculado à realidade concreta, postulando a sua comunhão íntima e pessoal com o Ser, que exige transcendência, do existente concreto chegando ao Tu. A experiência da presença, em Marcel, não é espacial, objetiva, impessoal, mas metaempírica e relacional, que segundo o ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 458 autor em seu ensaio ―Existência e objetividade‖, ―está presente a quem a considere, no misterioso poder de sí que se levanta diante do espectador, (...) o poder de afetar de mil maneiras o ser de quem o contempla e o experimenta‖ (MARCEL, 1927, p.110). O existir é uma presença que me envolve, me afeta em todo o meu ser, como uma participação imediata que chamamos de sujeito, uma participação que não compreende fronteiras. Desse modo, Marcel visa superar a mentalidade objetivista, ou seja, o modo cientificista e substancialista (MARCEL, 1927, p. 322). Marcel, ainda se pergunta, ―(...) se não é mediante a presença, que se pode passar da existencia ao valor‖ (MARCEL, 1927, p. 308), pois quem trata o homem como coisa, seguirá fechado para sempre ao mistério da pessoa, sendo este homem não mais que outra coisa entre as coisas. Há uma relação profunda entre mistério e presença, pois o mistério não é sinônimo do desconhecido, mas é apenas um caso-limite do problemático. O sujeito está imerso no ser e não dispõe sobre ele. Para Marcel, a expressão ―mistério do ser‖ é expressão ontológica em oposição ao ―problema do ser‖. Nessa medida, Marcel chama a atenção para o fato de se torna próprio do mistério ser reconhecido enquanto que, no nível do problema é algo que obstaculiza, que se encontra diante do caminho, estando inteiramente diante de mim. O mistério é algo em que me encontro comprometido, presença definida, um reconhecimento que é de ordem ontológica. (MARCEL, 2003, p. 93-94). Se o objeto está ligado a todo um conjunto de habilidades, que por sua vez lhe dá condições de ensinar-se e transmitir-se, o mesmo não acontece com a presença, pois, ninguém tem condições de expressar a sua presença sem que se mostre misteriosamente diante de outrem, não sendo presença uma forma de transmissão, pois está além da apreensão, podendo apenas invocar-se ou evocar-se, e não sendo, por outro lado, percebida mais que de forma intermitente. (MARCEL, 2002, p. 188). Para o autor, todas as realidades estão ligadas à existência humana, sem que se façam abstrações, pois estou comprometido com elas e todas ocupam um lugar de mistério diante de mim. A intersubjetividade como presença do tu Dentro da filosofia concreta de Gabriel Marcel há uma atenção crítica ao mundo técnico urbano, que provoca relações cada vez mais anônimas e vazias de participação, relações vazias de amizade e cooperação. Tal cenário provoca o homem cada vez mais a uma existência egoísta e solipsista, reduzindo-o a meras relações objetivas e impessoais. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 459 Como já mencionado, a Primeira Guerra Mundial fez com que o homem europeu indagasse se o espírito humano poderia superar o que ele mesmo construiu, ou ainda, se este espírito poderia reconstruir o que ele mesmo destruiu. Como nota ainda Zilles, na guerra, o indivíduo faz a dura experiência de que não é segurança para si mesmo, mas que a verdadeira segurança está no encontro com seres dotados de interioridade (ZILLES, 1995, p.65-66). A segurança de si está no outro. Com a experiência da guerra, Marcel descobre que, para além da objetividade, a pessoa pode tornar-se presença. Tal realidade não se pode constatar de fora. A presença não se deve pensar como objeto. O ato que me envolve com um ser sempre tem o caráter correspondente à atividade do pensamento que deve ser concebido como criador. A presença do tu emerge num contexto existencial quando participo da existência do outro no ser-com, tornando-se uma presença intersubjetiva, não objetivável. Observa Marcel: Quando trato o outro como ele, reduzo-o a uma natureza: um objeto animado que funciona desta e não daquela outra maneira. Ao contrário, tratando o outro como tu, trato-o e recebo-o como liberdade; apreendoo como liberdade, porque também é liberdade e não apenas natureza. Ainda mais: ajudo-o de algum modo a ser libertado, colaboro para a sua liberdade. (MARCEL, 1969, p. 131). O autor trata do dado mais imediato e indubitável de sua metafísica concreta, que se apresenta na intimidade mais radical e primária do que podemos chamar de existência, sendo esse dado a própria encarnação desse homem. Indubitavelmente a encarnação é o dado de mais alto grau da presença, sustentando todas as nossas afirmações. Ser é coexistência com outrem, é projetar-se e conviver, é o ser-com. Agora, o princípio metafísico fundamental não é mais o ―eu penso‖, mas o ―nós somos‖, ou seja, podemos afirmar que eu existo na medida em que me relaciono com os outros. A intersubjetividade torna-se participação amorosa como comenta Carmona (CARMONA, 2002, p.145). O eu somente se pode afirmar eu caso exista um outro, pois para afirmar-se necessita referir-se a um outro, diferente das teorias idealistas, que o eu é uma mera coincidência de si, ou um não existente. Vejamos como Marcel ilustra essa referência acerca do outro: Um desconhecido se dirige ao nosso jovem. Este começa por sentir a seu interlocutor como um puro ele: por que me dirige a palavra? Que quer de mim? Será por causalidade maligna? Deve ter cuidado. Não se quer comprometer com nenhuma resposta. Precisamente porque está na defensiva nosso jovem se encontra no menor grau possível com os demais. Porque em geral pode dizer-se que a relação com é precisamente a ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 460 intersubjetiva por excelência e que não tem e não pode ter relação no mundo dos objetos, que é em seu conjunto um mundo de pura justaposição. Retomemos o exemplo e suponhamos que a conversação toma seu caráter mais íntimo. ―Estou encantado de conhecê-lo‖, disse ao estranho: ―em outro tempo conheci seus pais‖; nesse momento cria-se um laço e, sobretudo se relaxa a tensão. O jovem deixa de centrar a atenção em si mesmo como se algo se distendesse em seu interior. Sentese transportado além desse aqui e agora ao que, se se me perdoa uma comparação trivial, seu eu se encontrava pregado como um curativo a uma ferida. Disse transportado e o curioso é que esse desconhecido o acompanha nessa espécie de viagem mágica. Estão juntos em outro lugar que, contudo, apresenta um caráter de misteriosa intimidade. (MARCEL, 2002, p.163) A intersubjetividade guarda, segundo o autor, um segredo. Esta é uma característica peculiar da intersubjetividade, que põe em relevo seu significado sempre positivo. A intersubjetividade não pode ser pensada como um conhecimento abstrato, senão, mediante um conhecimento concreto, vivenciado, existencial, como no caso do amor. Este amor se encontra num determinado ponto da relação, que somente se poderá descobrir se o eu se permitir lançar-se ao tu. Ao permitir que o outro, ser encarnado concreto, diante do eu, no em mim, se aproxime, dois seres humanos se encontram como tais, como dois tu e não como dois objetos ou dois seres em que a única coisa que fazem é trocar informações, conforme nota Pérez (PÉREZ, 2002, p.178). A intersubjetividade é a expressão máxima do homem para abrir-se aos outros e encontrar-se com todos, sem, no entanto, objetivá-los. Quando isso acontece se descobrem os segredos, logo, o outro deixa de ser um estranho e passa a fazer parte de minha existência. É o que o exemplo descrito por Marcel acerca do jovem tímido ilustra, na medida em que é interpelado por um estranho, que na realidade não é tão estranho assim, mas alguém que participa da sua história. O encaminhamento reflexivo de Gabriel Marcel é um esforço para reencontrar, além do idealismo clássico, uma filosofia do ser, um esforço para reencontrar a ingenuidade e a riqueza da experiência. Trata-se de interrogar a intersubjetividade como experiência radical. Considerações finais A filosofia concreta que propõe Marcel se interessa pelo homem no sentido de lavá-lo na direção do seu desejo de busca para a abertura ao outro. O outro está na condição de mistério e não de problema, por isso não pode ser objetivável. A pessoa é mais que conceitos abstratos, ela é resposta para um eu que se afirma como eu. O tu é a ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 461 confirmação do eu, que pela presença e participação no tu se reconhece no mistério do ser e se reconhece potencialmente ativo para consigo mesmo na relação com o outro. Se a reflexão primeira obscureceu e objetivou o outro, buscando compreendê-lo pela verificação e pela experiência, transformando-o em outro objeto de pesquisa igual a todos que a ciência procura analisar, a reflexão segunda acessa o metaproblemático. Lança o homem no mundo do mistério, provocando-o a participar da existência do outro no ser-com. Há um segredo na relação intersubjetiva onde está subsumida a presença do outro. O eu está compreendido no tu, que o reveste e o potencializa. A encarnação é o dado que torna possível a presença no seu maior grau de existência, pois o homem se vê nela mergulhado e chamado a confrontar-se existencialmente. O segredo da concretude do eu está contido na concretude do tu. O ―eu penso‖ desaparece para que o ―nós somos‖ aconteça. Referências Bibliográficas: CARMONA, F.B. La filosofia de Gabriel Marcel. Madri: Encuentro. 1988. MARCEL, G. Diario metafisico. Tradução de Felix Del Hoyo. Madri: Guadarrama, 1964. ___________ Obras seletas de Gabriel Marcel I: El mistério del ser. Madri: Biblioteca de Autores Cristianos, 2002. ___________ Ser y tener. Trad. Ana Mará Sánchez. Madri: Caparrós, 2003. PÉREZ, Julia. El pensamiento antropológico de Gabriel Marcel: um canto al ser humano. Navarra: EUNSA, 2001. ZILLES, U. Gabriel Marcel e o existencialismo. 2 ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995. (Coleção: Filosofia) ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 462 O PERSONAGEM ZARATUSTRA NA FILOSOFIA DE NIETZSCHE Neomar Sandro Mignoni UNIOESTE/CAPES E-mail: [email protected] Orientador Prof. Dr. Wilson Antônio Frezzatti Jr. RESUMO: Trata-se de uma investigação acerca de Zaratustra enquanto personagem nietzschiano para além da obra de próprio nome. De modo mais específico, investigar-se-á o papel que tal personagem desempenha frente à filosofia madura de Nietzsche. Para isso, explicitar-se-á as diferentes nuances que compõem o personagem, tanto na obra Assim Falava Zaratustra, como nas demais obras publicadas e fragmentos póstumos. Nesse sentido, buscar-se-á mostrar como tal personagem interage com os demais temas da filosofia nietzschiana em relação ao que Nietzsche denomina como ―meio dia‖, sobretudo no tocante ao ―grande meio dia‖. Palavras-chave: Nietzsche, Zaratustra, Grande meio dia, Experimentalismo. É no aforismo §342 de A Gaia Ciência que pela primeira vez nos deparamos com o personagem de Zaratustra. Personagem este que permanecerá nas obras publicadas e em fragmentos póstumos posteriores a esse aforismo. O título do fragmento parece-nos bastante sugestivo - Incipit tragoedia (A tragédia começa) – uma vez que este mesmo texto constituirá, ainda que com leves modificações156, o primeiro parágrafo do prólogo de Assim Falava Zaratustra. A tragédia é iniciada e sem dúvida constitui, no conjunto da obra nietzschiana, a obra capital do filósofo. Seja pela sua forma conceitual e figurativa, seja pela importância dada aos principais temas de sua filosofia: além do homem, a morte de Deus, a vontade de potência e o eterno retorno do mesmo. Se por um lado, a obra inaugura um novo período na filosofia nietzschiana, – o da maturidade – por outro seu personagem é o responsável por toda a proposta reconstrutiva No prólogo de Assim Falava Zaratustra Nietzsche reproduz quase que literalmente o aforismo 342 da Gaia Ciência. A diferença é que na Gaia Ciência, além do título Incipit tragoedia, ele traz o ―lago de Urmi‖ que em Zaratustra será substituído por ―o lago de sua pátria‖, como sendo o local que junto com sua terra é abandonado por Zaratustra, quanto este vai às montanhas. 156 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 463 do filósofo desse período157. Assim, Zaratustra constitui o grande ícone da filosofia madura de Nietzsche. Além disso, não é de mero acaso que no Ecce Homo (2007d, p.95) o filósofo escreva: ―depois de resolvida a parte da minha tarefa que diz Sim (Assim Falava Zaratustra), era a vez de sua metade que diz Não, que faz o Não: a tresvaloração mesma dos valores existentes, a grande guerra – a conjuração do dia da decisão‖. É no entorno de Zaratustra que tal tarefa é levada à cabo. É à sombra de Zaratustra que os principais temas pensados pelo filósofo são desenvolvidos e experimentados. Ainda no prólogo do Ecce Homo, (2007d, p. 19) numa referencia à obra (Assim Falava Zaratustra), Nietzsche a designa como sendo não apenas um ―autêntico livro do ar das alturas‖, mas também o ―mais profundo‖. Nele não fala nenhum ―profeta‖, nenhum fundador de religião, nenhum fanático, de modo ser necessário ―ouvir corretamente o som que sai desta boca (...) para não se fazer deplorável injustiça ao sentido de sua sabedoria‖. Inserido na filosofia nietzschiana como o personagem encarregado de anunciar o além-do-homem e ser o mestre do eterno retorno do mesmo, Zaratustra permanece para além da obra de próprio nome conforma supra-afirmamos. Em algumas ocorrência o filósofo refere-se à obra propriamente dita, entretanto, em várias outras passagens as referências são direcionadas ao personagem. Nessas é possível compreender Zaratustra como sendo o personagem escolhido por Nietzsche para levar a cabo sua filosofia. Não são poucas as passagens que nos deixam entrever que as idas e vindas do personagem, sugerem o modo nietzschiano de construir seu pensar. Além disso, cabe levar em conta ainda o fato de que o personagem costuma apresentar-se em íntima relação com os demais temas da filosofia nietzschiana. No Crepúsculo dos Ídolos, em um texto chamado Como o “mundo verdadeiro” acabou por se tornar uma fábula, Nietzsche (2000, p. 32) refere-se ao ―meio dia‖, ao instante da sombra mais curta enquanto ponto culminante da humanidade e onde Incipit Zaratustra (começa Zaratustra). A mesma associação entre Zaratustra e o ―grande meio dia‖ ocorre em diversas outras passagens, sejam elas na própria obra Assim falava Zaratustra, seja nos fragmentos póstumos e demais obras. Em relação à periodização da obra nietzschiana entendemos que a mesma se dá apenas em ambitos metodológicos e via de regra, seguimos as divisões estabelecidas por Scarlett Marton (1990, p. 19-25). Marton reconhece três períodos na obra do filósofo. Do primeiro fazem parte os escritos de 1870-1876, dentre eles O Nascimento da Tragédia e as Considerações Extemporâneas. No segundo de 1876-1882, reconhece-se dentre outras, Humano Demasiado Humano, Aurora, Gaia Ciência. E por fim, do terceiro período participam Assim Falava Zaratustra, Para Além de Bem e Mal, Crepúsculo dos Ídolos, Ecce Homo, Anticristo. 157 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 464 Assim como Zaratustra, há ocorrências do ―grande meio dia‖ em um considerável número de passagens que vão desde Assim falava Zaratustra ao Crepúsculo dos Ídolos e Ecce Homo. De modo simplório o ―grande meio dia‖ constitui a ―hora em que o homem se encontra na metade do caminho entre o animal e o além-do-homem‖ (Za, I). É o momento que permite ao homem celebrar ―seu caminho até o entardecer como sua mais alta esperança: pois é o caminho até uma nova manhã‖ (cf. NIETZSCHE, 2007a, p. 127). O ―grande meio dia‖ constitui a ―transformação‖ em que muitas ―coisas serão postas em manifesto‖ (p. 271). Em outras palavras, constitui este um evento impar e culminante em que o filósofo parece elucidar a reviravolta a que se propõe toda sua filosofia. Num fragmento póstumo intitulado O grande meio dia de julho-agosto de 1888, 18 (15), Nietzsche se questiona: ―Por que ‗Zaratustra‘?‖ e responde: ―A grande superação da moral‖. O fragmento é minúsculo e vago, porém elucidativo se associado ao texto do mesmo período ―Como o mundo verdadeiro se tornou uma fábula‖, de O Crepúsculo dos Ídolos, em que Zaratustra aparece como o responsável de levar à cabo a tarefa do ―grande meio dia‖ (cf. NIETZSCHE, 2000, p.32). A aparição da figura de Zaratustra na obra nietzschiana não se dá ao acaso. De acordo com Nietzsche (cf. 2007d, p. 110 – 111) ―Zaratustra (histórico) foi o primeiro a ver na luta entre o bem e mal a verdadeira roda motriz na engrenagem das coisas‖. Foi ele quem pela primeira vez transpôs a moral para o metafísico como força, causa, fim em si. Uma vez que assim o mais fatal dos erros foi criado, deve ser Zaratustra também o primeiro a reconhecê-lo. Desse modo, no entender do filósofo, o Zaratustra (nietzschiano) torna-se agora o responsável por levar a cabo a tarefa da ―auto-superação da moral pela veracidade, a auto-superação do moralista em seu contrário‖. Em outras palavras, se o personagem histórico foi o responsável pela criação do mais fatal dos erros, cabe ao personagem nietzschiano desfazer tamanho equívoco. Nesse sentido o caminho trilhado pelo personagem na obra Assim Falava Zaratustra é propositalmente direcionada para a auto-superação da moral e do moralista em seu contrário. Não é por acaso que os principais temas nietzschianos encontram-se profundamente imbricados nessa obra. Enquanto que o Além-do-homem é anunciado pelo personagem, a todo o povo reunido no mercado, a Morte de Deus e a Vontade de Potência são anunciadas a alguns poucos, seus amigos e discípulos. Por fim, de modo não menos intrigante, o Eterno Retorno é anunciado de maneira exclusiva pelo personagem a si mesmo. Tal pensamento o oprime e o sufoca tal forma que Zaratustra evita enfrentá-lo. De certo modo, a fábula de Zaratustra é bastante simples. Aos trinta anos Zaratustra se retira para a solidão na montanha onde vive com seus animais: a águia e a ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 465 serpente. Ali aprende sua sabedoria e um dia farto dela decide levá-la aos homens. Na descida se encontra com um eremita o qual ainda não havia ouvido que Deus morreu. Na cidade encontra o povo reunido a quem anuncia o Além-do-homem. O anúncio torna-se um fracasso. Depois de enterrar com suas próprias mãos, um malabarista que morrera ao se apresentar em praça pública, descobre uma nova verdade: não se deve falar ao povo (cf. NIETZSCHE, 2007a, p. 47). Ao meio dia, após concluir que não deve tornar-se um pastor de rebanho nem andar com cadáveres, retira-se novamente à sua montanha e então começa seu ocaso. É o fim do prólogo. A primeira parte é dedicada aos discursos de Zaratustra. Nela o tema é a morte de Deus. Aqui se encontram o discurso das três transmutações, os ataques contra as virtudes que fazem dormir, contra os trasmundanos, contra os que depreciam o corpo e a alma. No discurso Da árvore da montanha estão descritas as peregrinações e Zaratustra e diálogos com que querem converter-se em seus discípulos. Após os capítulos dedicados à amizade, ao matrimônio e às mulheres, Nietzsche/Zaratustra contrapõe a virtude dadivosa às falsas virtudes. Por fim despede-se de seus discípulos ordenando para que o reneguem, pois só assim poderá retornar a eles e então volta para a montanha. A segunda parte inicia com Zaratustra na montanha esperando que sua semente frutifique e se impacienta com sua superabundância de sabedoria. Numa manhã tem um sonho de que sua doutrina está sendo desfigurada, e que precisa ir ao encontro de seus amigos. O tema base dessa parte é a Vontade de Potência. É em virtude disso que nos primeiros capítulos encontramos o ataque a quem se opõe a essa vontade: os virtuosos, os sábios famosos, as tarântulas; a todos aqueles que sentem aversão à vida e encontram-se dominados pelo espírito de vingança. No capítulo Dos grandes acontecimentos encontramos mais informações acerca das andanças de Zaratustra. No último capítulo, o pensamento do eterno retorno emerge como um monstro, Zaratustra grita de terror diante dele (cf. NIETZSCHE, 2007a, p. 218). O ponto culminante da obra é sem dúvida a terceira parte. Note-se que o plano original a obra encerava-se com essas três partes158. Conforme o final da segunda parte já indica o tema central deste capítulo é o pensamento do eterno retorno. É um saber secreto Em relação à quarta parte da obra, cabe ressaltar que Nietzsche finalizara Assim Falava Zaratustra com a terceira parte. Seu propósito era de que a que hoje constitui a quarta parte desta