Anais Simpósio Filosofia Unioeste 2013

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César Augusto Battisti
Michelle Silvestre Cabral
Libanio Cardoso Neto
Roberto S. Kahlmeyer-Mertens
Wilson Antonio Frezzatti Jr.
(Organizadores)
Anais do XVIII Simpósio de
Filosofia Moderna e Contemporânea
da UNIOESTE
Toledo – PR
2013
ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia
3
Catalogação na Publicação elaborada pela Biblioteca Universitária UNIOESTE/Campus de Toledo.
Bibliotecária: Marilene de Fátima Donadel - CRB – 9/924
S612a
Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea da Universidade
Estadual do Oeste do Paraná (18. : 2013, out. 21-24 :
Toledo - PR)
Anais (do) XVIII Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea da Universidade Estadual
do Oeste do Paraná (UNIOESTE) (recurso eletrônico) / Organização de Cesar Augusto Battisti,
Michelle Silvestre Cabral, Libanio Cardoso Neto, Roberto Kahlmeyer-Mertens e Wilson Antonio
Frezzatti Jr. – Toledo : (s. n.), 2013.
World wide web
http://www.unioeste.br/filosofia/
Evento realizado no período de 21 a 24 de outubro de 2013, na
Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE. Toledo, Pr.
ISSN: 2176-2066
Universidade
1. 1. Filosofia moderna – Congressos 2. Filosofia contemporânea – Congressos I.
Battisti, Cesar Augusto, Org. II Cabral, Michelle Silvestre, Org. III. Cardoso Neto, Libanio,
Org. IV. Kahlmeyer-Mertens, Roberto, Org. V. Frezzatti Jr., Wilson Antonio, Org. VI. T.
CDD 20. ed. 190.63
106.3
ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia
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Comitê Científico:
Epistemologia:
Andre Leclerc (UFPB)
Douglas Antonio Bassani (UNIOESTE)
Marcelo do Amaral Penna-Forte (UNIOESTE)
Remi Schorn (UNIOESTE)
Estética:
Olímpio José Pimenta Neto (UFOP)
Pedro Costa Rego (UFRJ)
Wilson Antonio Frezzatti Jr (UNIOESTE)
Ensino de Filosofia:
Altair Fávero (UPF)
Ana Miriam Wuensch (UnB)
Célia Machado Benvenho (UNIOESTE)
Ester Maria Dreher Heuser (UNIOESTE)
Filosofia da Mente:
Marcos Rodrigues da Silva (UEL)
Luiz Henrique Dutra (UFSC)
Metafísica:
Alberto Marcos Onate (UNIOESTE)
Alexandre Tadeu Guimarâes de Soares (UFU)
Clademir Luís Araldi (UFPel)
Claudinei Aparecido de Freitas da Silva (UNIOESTE)
César Augusto Battisti (UNIOESTE)
Cristiano Perius (UEM)
Eder Soares Santos (UEL)
Eneias Junior Forlin (UNICAMP)
Erico Andrade Marques de Oliveira (UFPE)
Libanio Cardoso (UNIOESTE)
ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia
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Luciano Carlos Utteich (UNIOESTE)
Marisa Carneiro de O. F. Donatelli (UESC)
Roberto Saraiva Kahlmeyer-Mertens (UNIOESTE)
Filosofia Política:
Aylton Barbieri Durão (UFSC)
Carlo Gabriel Pancera (UFMG)
Cláudio Boeira Garcia (UNIJUÍ)
Delamar José Volpato Dutra (UFSC)
Jadir Antunes (UNIOESTE)
José Luiz Ames (UNIOESTE)
Luis Portela (UNIOESTE)
Marciano Adilio Spica (UNICENTRO)
Tarcílio Ciotta (UNIOESTE)
Rosalvo Schütz (UNIOESTE)
Vânia Dutra de Azeredo (PUC-CAMPINAS)
ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia
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APRESENTAÇÃO
O Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea é um evento promovido anualmente
pela Graduação e pelo Mestrado em Filosofia da Unioeste. Ininterruptamente realizado
desde 1996, ele se consolidou como espaço privilegiado de discussão e de debate
filosóficos e de socialização da produção realizada na área, bem como ocasião de integração
e de inserção dos referidos cursos e de seus membros, estudantes e professores, no cenário
filosófico nacional.
O evento se destaca também por conseguir congregar pesquisas dos diferentes
níveis em que ela é feita. Talvez por essa razão, ele tenha conseguido atrair estudantes,
mestrando, doutorandos e jovens professores de diferentes lugares do país, e trazer
palestrantes e minicursistas que muito contribuíram para a determinação do evento por seu
perfil aberto, acolhedor e em conformidade às exigências do fazer filosófico rigoroso.
Esta nossa 18ª. edição, como as anteriores, foi resultante do engajamento de
estudantes e de professores, sempre contando com o apoio da Universidade e dos órgãos
de fomento.
Em conformidade a esse espírito de trabalho conjunto e sempre voltados à busca
da mais fecunda e profunda experiência do saber filosófico, apresentamos parte substantiva
dos resultados do evento em forma de Anais.
César Augusto Battisti
Coordenador do XVIII Simpósio de
Filosofia Moderna e Contemporânea da Unioeste
ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia
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SUMÁRIO
Apresentação ......................................................................................................................................6
Programação Geral ............................................................................................................................8
Programação Comunicações ..........................................................................................................10
Resumos Expandidos* ....................................................................................................................21
Artigos Completos* ......................................................................................................................131
Índice de autores dos resumos expandidos ...............................................................................583
Índice de autores dos artigos completos ....................................................................................585
* A redação e a revisão finais dos textos são de responsabilidade dos próprios autores.
ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia
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Programação Geral
Segunda-feira: 21/10/2013
Manhã:
Miniauditório do Campus
08:30 – 09:15 Abertura
09:30 – 11:30 Conferência: Andrea Díaz Genis (Universidad de la República del
Uruguay): “La biografía y la ausencia de Sujeto en la Filosofía del Nietzsche
póstumo”.
Tarde:
Salas de aula
13:30 – 17:00 Comunicações e mesas redondas
Noite:
Miniauditório do Campus
19:10 – 20:40 Conferência: Eduardo Ferreira Chagas (UFC): “A ética em Marx e seus
pressupostos críticos às éticas de Kant, Hegel e Feuerbach”.
21:00 – 22:30 Conferência: Ronai Pires da Rocha (UFSM): “Iris Murdoch, ética e
linguagem”.
Terça-feira: 22/10/2013
Manhã:
Salas de aula
08:30 – 11:40 Minicursos: “A noção de Filosofia na Alemanha do século XIX”; “Origens e
primeiros desenvolvimentos do copernicanismo”; “Ceticismo e Montaigne”; “Figuras da
Alteridade”.
Tarde:
Salas de aula
13:30 – 17:00 Comunicações e mesas redondas
Noite:
Miniauditório do Campus
19:10 – 20:40 Conferência: Luiz Antonio Alves Eva (UFPR): “Questões céticas em
Montaigne”.
21:00 – 22:30 Conferência: Maria Cristina Theobaldo (UFMT): “Conversação à “maneira”
de Montaigne”.
Quarta-feira: 23/10/2013
Manhã:
Salas de aula
08:30 – 11:40 Minicursos: “A noção de Filosofia na Alemanha do século XIX”; “Origens e
primeiros desenvolvimentos do copernicanismo”; “Ceticismo e Montaigne”; “Figuras da
Alteridade”.
Tarde:
Salas de aual
13:30 – 17:00 Comunicações e mesas redondas
ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia
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Noite:
Miniauditório do Campus
19:10 – 20:40 Conferência: Thamy Claude Ayouch (Université de Lille 3 – França):
“Existe uma psicanálise foucaultiana? Saber, poder e transferência”.
21:00 – 22:30 Conferência: Cláudio Almir Dalbosco (UPF): “Rousseau e o pensamento
iluminista”.
Quinta-feira: 24/10/2013
Manhã:
Salas de aula
08:30 – 11:40 Minicursos: “A noção de Filosofia na Alemanha do século XIX”; “Origens e
primeiros desenvolvimentos do copernicanismo”; “Ceticismo e Montaigne”; “Figuras da
Alteridade”.
Tarde:
Salas de aula
13:30 – 17:00 Comunicações e mesas redondas
Noite:
Miniauditório do Campus
19:10 – 20:40 Conferência: Marcelo Silva de Carvalho (UNIFESP): “Juízos e Regras:
algumas considerações sobre Kant, Wittgenstein e o hiato entre as regras e sua aplicação”.
21:30 – 21:45 Encerramento
ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia
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Programação Comunicações
21/Outubro: SEGUNDA-FEIRA 13h30
SALA 04 – Mesa ―Hannah Arendt‖
Marcelo Barbosa
Andrei Gati da
Costa
Josete Rockenbach
(Coordenadora da
mesa)
Anisia Ripplinger de
Abreu
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PENSAMENTO POLÍTICO DE
HANNAH ARENDT
HANNAH ARENDT: NOÇOES DE POLITICA, PODER E
LIBERDADE
NOVO HOMEM
HANNAH ARENDT: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A
CRISE NA EDUCAÇÃO
SALA 06 – Mesa ―Filosofia Antiga‖
Eliza Menezes de
Lima
Luiz Carlos de
Abreu
Saulo Sbaraini
Agostini
Libanio Cardoso
(Coordenador de
mesa)
EXPLICAÇÕES SOBRE AS TEORIAS QUE SUSTENTAM A
TESE DA IMORTALIDADE DA ALMA NO DIÁLOGO
FÉDON DE PLATÃO
TEORIA DOS CONTRÁRIOS E A PROVA DA
IMORTALIDADE DA ALMA NO FÉDON DE PLATÃO
A CARACTERIZAÇÃO DA ERÍSTICA NO EUTIDEMO DE
PLATÃO
CRÍTICA ARISTOTÉLICA À DIALÉTICA PLATÔNICA
SALA 13 – Mesa ―Deleuze I‖
Evânio Márlon
Guerrezi
(Coordenador de
mesa)
Paulo Roberto
Schneider
Rafael Saragoça
Ortolan
Lucas Henrique
Nunes Batista
CAN YOU SEE THE REAL ME, DOCTOR? APROXIMAÇÕES
ENTRE QUADROPHENIA E O RIZOMA DE DELEUZE E
GUATTARI
ÉTICA E LITERATURA: A NOÇÃO DE LEI A PARTIR DO
AGENCIAMENTO FILOSÓFICO-LITERÁRIO KAFKA,
DELEUZE E GUATTARI
PROUST E DELEUZE: REFERENCIAIS PARA OFICINAS DE
ESCRILEITURAS
DELEUZE, O TEATRO E A PRODUÇÃO DE UMA POLÍTICA
MENOR
ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia
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SALA 20 – Mesa ―Filosofia da Ciência‖
Luiz Antonio Brandt O PROJETO COPERNICANO DE GALILEU GALILEI
Pedro Henrique
A VISÃO DE KEPLER NA REVOLUÇÃO COPERNICANA
Ciucci da Silva
Douglas Antonio
O PAPEL DA OBSERVAÇÃO NA CIÊNCIA
Bassani
(Coordenador de
mesa)
SALA 26 – Mesa ―Filosofia da Linguagem‖
Ulisson da Silva
Pinheiro
(Coordenador de
mesa)
Maria Lucia
Matuczak
Jarbas Mauricio
Gomes
JOHN R. SEARLE E SUA CONCEPÇÃO DE CONSCIÊNCIA:
MATERIALISTA OU DUALISTA?
FUNDAMENTOS EPISTEMOLÓGICOS DO COGNITIVISMO:
AS CONTRIBUIÇÕES DE NOAM CHOMSKY PARA A
PERSPECTIVA INATISTA DA MENTE
CONCEPÇÃO DE MUNDO E LINGUAGEM EM GRAMSCI
21/Outubro: SEGUNDA-FEIRA 15h30
SALA 04 - Mesa ―Política Moderna‖
Luís Fernando
Jacques
(Coordenador de
mesa)
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PACTO DOS RICOS E OS
FUNDAMENTOS DA DESIGUALDADE CIVIL EM
ROUSSEAU: A RECUSA DOS PRESSUPOSTOS LIBERAIS DE
LIVRE CONCORRÊNCIA E COMPETIÇÃO SADIA
Carlos Henrique
Lemes da Silva
CONDORCET E A IDEIA DE VOTO, SUFRÁGIO E
MATEMÁTICA
SALA 20 – Mesa ―Kant‖
Pedro Henrique
Vieira (Coordenador
de mesa)
Christian Carlos
Kuhn
Gustavo Ellwanger
Calovi
JACOBI E A MORALIDADE DO IDEALISMO
TRANSCENDENTAL
REFLEXÕES FILOSÓFICAS ACERCA DO MISTICISMO À
LUZ DO INTUICIONISMO E DO NEO-KANTISMO: KANT E
JUNG
A POSSIBLIDADE DE EFETIVAÇÃO DO SUMO BEM
POLÍTICO SEGUNDO KANT
ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia
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Jaime José Rauber
A LIBERDADE COMO INDEPENDÊNCIA DE
DETERMINAÇÕES
SENSÍVEIS EM KANT
SALA 26 – Mesa ―Discurso e Linguagem‖
Kátia R. Salomão
Rodrigo Wenceslau
(Coordenador da
mesa)
RAZÃO COMUNICATIVA E OS POTENCIAIS
EMANCIPATÓRIOS DO DISCURSO
O CAMINHO DA LÓGICA PARA FELICIDADE
22/Outubro: TERÇA-FEIRA 13h30
SALA 04 – ―Filosofia e Educação I‖
Luciano de Almeida
/
Paulo Evaldo
Fensterseifer
A NOÇÃO DE LINGUAGEM E SEUS DESDOBRAMENTOS
PARA PENSAR O SE-MOVIMENTAR NA EDUCAÇÃO FÍSICA
ESCOLAR
Nilva Aparecida F.
da Silva
Caroline Recalcatti
Silveira
(Coordenadora da
mesa)
O ENSINO DA FILOSOFIA, A EJA E A ESCOLA JOAQUINA
MATTOS – CEEBJA/CASCAVEL, PR
POR UM NOVO ESPAÇO FILOSÓFICO CRIATIVO:
FILOSOFIA NO ENSINO FUNDAMENTAL
SALA 06 – Mesa ―Maquiavel I‖
Alan Rodrigo
Padilha
Douglas Antônio
Fedel Zorzo
José Luiz Ames
(Coordenador de
mesa)
O ESTADO REPUBLICANO E O EXERCÍCO DE
GOVERNANÇA
EM NICOLAU MAQUIAVEL
ENTRE AS BOAS LEIS E AS BOAS ARMAS: OS
FUNDAMENTOS DO ESTADO EM MAQUIAVEL E A
PRIMAZIA MILITAR
MAQUIAVEL E A AÇÃO POLÍTICA: UMA TENTATIVA DE
APROXIMAÇÃO CONCEITUAL
SALA 13 – Mesa ―Filosofia e Música‖
ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia
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Rodrigo Lopes
(Coordenador de
mesa)
Fabricia Piva
Alberto Carlos de
Souza
NÚMEROS E PAIXÕES: RENÉ DESCARTES E AS TEORIAS
MUSICAIS FRANCESAS DO SÉCULO XVII
MUSICA COMO FATOR ESTÉTICO E A TEORIA DAS
PAIXÕES
OS LUGARES DE MEMÓRIA NAS OBRAS FONOGRAFICAS
―MINAS‖ E ―GERAES‖ DE MILTON NASCIMENTO
SALA 20 – Mesa ―Filosofia Alemã I‖
Márcia Elaini Luft
Dennis Donato
Piasecki
(Coordenador de
mesa)
Maglaine Priscila
Zoz
A METAFÍSICA DE SCHOPENHAUER
A FINITUDE E SUA RELAÇÃO COM O TEMPO NA
FILOSOFIA DA NATUREZA DE HEGEL
A VERDADEIRA LIBERDADE
SALA 26 – Mesa ―Descartes‖
Felipe Ricardo
Deuter Becker
Marcos Alexandre
Borges
João Antônio Ferrer
Guimarães
(Coordenador de
mesa)
A DÚVIDA COMO BUSCA DA VERDADE
A NOÇÃO DE IDEIA E A SAÍDA DO SOLIPSISMO NA
FILOSOFIA PRIMEIRA DE DESCARTES
O COGITO COMO CONSCIÊNCIA DE SI
SALA 27 - Mesa ―Política I‖
Rodrigo Fampa
Negreiros Lima
Ricardo Corrêa
(Coordenador de
mesa)
Maurício Rebelo
Martins
REVOLUCIONÁRIOS DE 1776: ENTRE A AGONIA E A
APOSTA
DA DEMOCRACIA À HIPERDEMOCRACIA: UM DIÁLOGO
POSSÍVEL ENTRE ALEXIS DE TOCQUEVILLE E JOSÉ
ORTEGA Y GASSET
REFLEXÕES SOBRE AS MANIFESTAÇÕES DE JUNHO DE
2013 E A TEORIA DO RECONHECIMENTO DE AXEL
HONNETH
22/Outubro: TERÇA-FEIRA 15h30
SALA 04 – Mesa ―Filosofia e Educação II‖
Luiz Carlos
Frederick
(Coordenador de
A QUESTÃO DA ALFABETIZAÇÃO DE JOVENS E
ADULTOS: UMA REFLEXÃO DIALÓGICA A PARTIR DE
FREIRE E DUSSEL
ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia
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mesa)
Francisco Luna
Pereira
A HISTÓRIA DA EJA, A ALFABETIZAÇÃO E A FILOSOFIA
SALA 06 – Mesa ―Maquiavel II‖
Jorge dos Santos de
Araujo
Carla Musa Latsch
Cherem
Gabriel Allan
Drehmer Gonçalves
(Coordenador de
mesa)
Mariana da Silva
Pereira
A CONSTITUIÇÃO DE ESTADO NA OBRA ―O PRÍNCIPE‖
DE MAQUIAVEL
PODER E POVO N‘O PRÍNCIPE DE MAQUIAVEL
LIBERDADE POLÍTICA EM ―O PRÍNCIPE‖ DE NICOLAU
MAQUIAVEL
A OPRESSÃO DE GÊNERO NA POLÍTICA E NA HISTÓRIA:
HÁ UM CONCEITO DE HOMEM E MULHER EM
MAQUIAVEL (1469-1527)?
SALA 13 – Mesa ―Filosofia e Arte‖
Samon Noyama
Danilo Persch
(Coordenador de
mesa)
Elizandra Bruno
Sosa
NOSTALGIA E METÁFORA NA GRÉCIA DE
WINCKELMANN
REFLEXÕES SOBRE O TEMPO: ANÁLISE DO ROMANCE
MONTANHA MÁGICA DE THOMAS MANN
A MODERNA ALEGORIA DA CAVERNA
SALA 20 – Mesa ―Schelling‖
Kayenne Cristine F
S Vosgerau
Rosalvo Schütz
(Coordenador de
mesa)
SCHELLING E O PROBLEMA DA INTUIÇÃO
INTELECTUAL ENQUANTO INTUIÇÃO OBJETIVADA
SCHELLING: ELEMENTOS PARA UMA FILOSOFIA
POSITIVA
SALA 26 – Mesa ―Filosofia e Conhecimento‖
Hélio da Siqueira
(Coordenador de
mesa)
Sérgio Luís Persch
ELUCIDAÇÃO DA CRÍTICA HOBBESIANA AO CONCEITO
DE MOVIMENTO DE ARISTÓTELES
APONTAMENTOS SOBRE O MOS GEOMETRICUS NA
FILOSOFIA DE ESPINOSA
ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia
15
23/Outubro: QUARTA-FEIRA 13h30
SALA 04 – Mesa ―Sartre‖
Helen Aline Santos
Manhães
(Coordenadora de
mesa)
Jussara Teresinha
Henn
Luiza Helena Hilgert
A NOÇÃO DE VALOR NO PENSAMENTO DE SARTRE: O
DESEJO DE SER NO SEIO DO PARA-SI
REFLEXÕES SOBRE A CONDIÇÃO DO JOVEM INFRATOR
A PARTIR DO OLHAR EXISTENCIALISTA DE SARTRE
FILOSOFIA E TEATRO EM SARTRE
SALA 06 – Mesa ―Filosofia e Educação III‖
Letícia Nunes
Goulart
(Coordenadora da
mesa)
Cleder Mariano
Belieri
Claudeonor Antônio
de Vargas /
Cleriston Petry
LIPMAN: APRENDENDO A PENSAR NA EDUCAÇÃO
O DIÁLOGO NAS AULAS DE FILOSOFIA DO ENSINO
MÉDIO
O PAPEL DA VERGONHA E DA CULPA NO
RECONHECIMENTO DO EU E DO OUTRO E SEU PAPEL
NA EDUCAÇÃO
SALA 13 – Mesa ―Nietzsche I‖
Estevão Bocalon
Felipe José Schmidt
Marioni Fischer de
Mello
(Coordenadora da
mesa)
NIETZSCHE: A DOUTRINA DA VONTADE DE POTÊNCIA
A PSICOFISIOLOGIA NA EDUCAÇÃO EM NIETZSCHE
APONTAMENTOS SOBRE A FISIOPSICOLOGIA NO
ÚLTIMO PERÍODO DE NIETZSCHE
SALA 20 – Mesa ―Rousseau‖
Alexandre José Krul
(Coordenador da
mesa)
Marisa Ignes Orsolin
Morgan
Marlene de Fátima
Rosa
A EDUCAÇÃO PARA A CONDIÇÃO HUMANA PROPOSTA
POR ROUSSEAU NO EMÍLIO
DA INFLUÊNCIA ILUMINISMO AO DESENVOLVIMENTO
DA CONSCIÊNCIA MORAL NA NOVA PEDAGOGIA DE
JEAN-JACQUES ROUSSEAU
LIBERDADE E IGUALDADE EM ROUSSEAU
ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia
16
SALA 27 – Mesa ―Popper I‖
Leonardo Edi
Ignácio
Carlos Henrique
Favero
Remi Schorn
(Coordenador da
mesa)
O PROGRESSO DA CIÊNCIA EM KARL R. POPPER
INVESTIGAÇÃO ACERCA DO UNIVERSO E SUA
POSSIBILIDADE DE COMPREENSÃO
O RACIONALISMO CRÍTICO EM KANT E POPPER
23/Outubro: QUARTA-FEIRA 15h30
SALA 04 – Mesa ―Merleau-Ponty‖
Diogo Heber Albino CONSTRUÇÃO, DE CHICO BUARQUE, E O ÉTICOde Almeida
ESTÉTICO:
UMA POSSIBILIDADE DE ANÁLISE EM SARTRE E
MERLEAU-PONTY
Rodrigo Volz
SOBRE CORPO E MÁQUINA NA CONTEMPORANEIDADE
(Coordenador da
mesa)
Litiara Kohl Dors
A ALTERIDADE INFANTIL: MERLEAU-PONTY E
WINNICOTT
SALA 06 – Mesa ―Filosofia e Educação IV‖
Hélio Clemente
Fernandes
(Coordenador da
mesa)
Daniel Salésio
Vandresen
Josiane Beloni da
Cruz / Kátia
Aparecida Poluca
Proença / Neiva
Afonso Oliveira
A FILOSOFIA E A EDUCAÇÃO NO CAMPO
A FORMAÇÃO FILOSÓFICA NA EDUCAÇÃO
TECNOLÓGICA: UMA REFLEXÃO SOBRE A EDUCAÇÃO, O
TRABALHO E AS TECNOLOGIAS
A RELAÇÃO DA EDUCAÇÃO E TRABALHO NOS ESTUDOS
MARXIANOS
SALA 13 – Mesa ―Nietzsche II‖
Douglas Meneghatti
Neomar Sandro
O ESPÍRITO LIVRE DE SÓCRATES: UMA LEITURA A
PARTIR DE NIETZSCHE
O PERSONAGEM ZARATUSTRA NA FILOSOFIA DE
ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia
17
Mignoni
(Coordenador da
mesa)
André Vinícius
Nascimento Araújo
NIETZSCHE
DIFERENÇA E PENSAMENTO SELETIVO NA CONCEPÇÃO
DELEUZIANA DO ETERNO RETORNO
SALA 20 – Mesa ―Marx‖
Gerson Lucas
Padilha de Lima
(Coordenador da
mesa)
Jonece Beltrame
Daltro Lucena
Ulguim
APONTAMENTOS SOBRE A TEORIA DA ALIENAÇÃO NO
JOVEM MARX
A TEORIA DA EMANCIPAÇÃO EM KARL MARX E JÜRGEN
HABERMAS
OS MOMENTOS EVOLUTIVOS DO SER SOCIAL:
ONTOLOGIA E TELEOLOGIA DE MARX A LUKÁCS
SALA 26 – Mesa ―Adorno‖
Luana A. de Oliveira EDUCAÇÃO E POLÍTICA EM THEODOR ADORNO
(Coordenador da
mesa)
Zaira Canci
MAIORIDADE E AUTONOMIA: CONTRIBUIÇÕES
KANTIANAS AO PENSAMENTO DE THEODOR W.
ADORNO
SALA 27 – Mesa ―Popper II‖
Vitor L.P. Diogo
LINGUAGEM E OBJETIVIDADE: CONSIDERAÇÕES DE
KARL POPPER
BERKELEY E A VISÃO INSTRUMENTALISTA DAS TEORIAS
CIENTÍFICAS
Angelo Eduardo da
Silva Hartmann
(Coordenador da
mesa)
24/Outubro: QUINTA-FEIRA 13h30
SALA 04 – Mesa ―Fenomenologia‖
André Dutra
Zanolla
Devair Gonçalves
Sanchez
(Coordenador da
mesa)
Janilce Silva Praseres
ESTUDO SOBRE A FENOMENOLOGIA DE HUSSERL
NATUREZA E INTERSUBJETIVIDADE NA
FENOMENOLOGIA DE HUSSERL
AFETIVIDADE E NÃO-INTENCIONALIDADE: ASPECTOS
DA FENOMENOLOGIA DA VIDA DE MICHEL HENRY
ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia
18
SALA 06 – Mesa ―Nietzsche III‖
Paulo Cesar Jakimiu
Sabino
Francisco Jhon
Lennon Nogueira
Rêgo
Maurício Smiderle
(Coordenador da
mesa)
NIETZSCHE E UMA ÉTICA DIONISÍACA
CONVERSAÇÕES ACERCA DA PRIMEIRA DISSERTAÇÃO
DA OBRA GENEALOGIA DA MORAL DE NIETZSCHE
A CIVILIZAÇÃO ENQUANTO ENFRAQUECIMENTO DO
HOMEM
SALA 13 – Mesa ―Deleuze II‖
Leandro Nunes /
Brendha Evaristo
Luana Borges
Giacomini
(Coordenadora da
mesa)
Ricardo Niquetti
A GEOGRAFIA DO CONCEITO E O RITORNELO NA
FILOSOFIA DE GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATARRI: O
PROBLEMA DA DESTERRITORIALIZAÇÃO
PENSAR INTUITIVAMENTE PARA O ULTRAPASSAMENTO
DA RAZÃO CLÁSSICA
POLÍTICA EM GILLES DELEUZE: N-1 E SUAS
IMPLICAÇÕES NOS MODOS DE SE ESTAR NOS VERBOS
DA VIDA
SALA 20 – Mesa ―Política II‖
Gilmar Derengoski
(Coordenador da
mesa)
Ricardo Bernardi
Castilhos
O CONCEITO DE MERCADORIA EM O CAPITAL DE MARX:
A TEORIA DO VALOR E O FETICHE DA MERCADORIA
A INEFICIÊNCIA DO ESTADO DE BEM ESTAR SOCIAL E
AS MANIFESTAÇÕES POPULARES
SALA 26 – Mesa ―Ciência e Ética I‖
Erickson dos Santos
Adaiana Pinto
Orcheski
(Coordenadora da
mesa)
Maurício Tavares
Pereira
A RESPONSABILIDADE DO CIENTISTA
REFLEXÃO ACERCA DE UMA EDUCAÇÃO AMBIENTAL EM
H. JONAS
LIBERTAÇÃO E ECOLOGIA: A MUDANÇA PARA O
PARADIGMA ECOLÓGICO NO PENSAMENTO DE
LEONARDO BOFF
SALA 27 – Mesa ―Ceticismo‖
ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia
19
Henrique Zanelato
(Coordenador da
mesa)
Josué do
Nascimento
Sandro Nogueira
Borges
QUESTÕES CÉTICAS DO PIRRONISMO: DE PIRRO A
ENESIDEMO
O CETICISMO PIRRONIANO E O CETICISMO ACADÊMICO
MACHADO DE ASSIS: UM CÉTICO BRASILEIRO NA
MODERNIDADE
24/Outubro: QUINTA-FEIRA 15h30
SALA 04 – Mesa ―Heidegger‖
Roberto S.
Kahlmeyer-Mertens
(Coordenador da
mesa)
Marcos Antonio de
Souza Brito
Jean Tonin
Renata Ribeiro
Tavares as Silva
A FUNDAMENTAÇÃO DILTHEYANA DAS CIÊNCIAS
HUMANAS DESDE O PONTO DE VISTA DAS VIVÊNCIAS
O ESQUECIMENTO DO SER NA FILOSOFIA DE
HEIDEGGER
O PROBLEMA DO SER NO ÂMBITO DO
ACONTECIMENTO-APROPRIATIVO
ZUBIRI E HEIDEGGER
SALA 06 – Mesa ―Nietzsche IV‖
Mariély Cássia da
Silva (Coordenadora
da mesa)
Osmilto Moreira
Silva
Eduardo José Lobo
Rodrigues
ENTRE JOGOS: A FILOSOFIA DE NIETZSCHE E A
LITERATURA DE JULIO CORTÁZAR
O SOFRIMENTO COMO POSSIBILIDADE DE
CRESCIMENTO HUMANO: UMA LEITURA NIETZSCHANA
À LUZ DO PERSPECTIVISMO
O PROBLEMA DA CULTURA NAS CONFERÊNCIAS DE
NIETZSCHE
SALA 13 – Mesa ―Filosofia Francesa Contemporânea‖
Nadimir Silveira de
Quadros
(Coordenador da
mesa)
Suellen Dantas
Godoi
Daiane Lemes
A ―PRESENÇA‖ NA FILOSOFIA CONCRETA DE GABRIEL
MARCEL
FOUCAULT E A QUESTÃO CIENTÍFICA DA PSICOLOGIA:
POSITIVIDADE E NEGATIVIDADE NA PESQUISA
PSICOLÓGICA
NOÇÃO DE PESSOA E AGENTE EM PAUL RICOEUR
ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia
20
Pereira
Odair Salazar da
Silva
A METÁFORA ENTRE O SENTIDO E A REFERÊNCIA:
UMA ABORDAGEM RICOEURIANA
SALA 20 – Mesa ―Política III‖
Jéssica Fernanda
Jacinto de Oliveira
(Coordenadora da
mesa)
Leandro de Araújo
Crestani
A FILOSOFIA DA CULTURA E O POTENCIAL
REVOLUCIONÁRIO DA CULTURA POPULAR E INDÍGENA
EM ENRIQUE DUSSEL
RELAÇÕES DE PODER NAS FRONTEIRAS
TRANSNACIONAIS:
ARGENTINA E BRASIL (1857/1895)
SALA 26 – Mesa ―Ciência e Ética II‖
Luiz Roberto
Zanotti
(Coordenador da
mesa)
Wagner Hoffmann
BIOÉTICA: UMA ÉTICA PRÁTICA
A BIOÉTICA PERSONALISTA COMO RESPOSTA À CRISE DE
SENTIDO
SALA 27 – Mesa ―Montaigne‖
Angela Maria da
Silva (Coordenadora
da mesa)
Anderson Lucas
ENSAIANDO O PENSAR FILOSÓFICO: DA PINTURA DE SI
AOS CANIBAIS
CRÍTICA DA RAZÃO EM REYMOND SEBOND
ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia
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RESUMOS EXPANDIDOS*
* A redação e a revisão finais dos textos são de responsabilidade dos próprios autores.
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CRÍTICA DA RAZÃO NA “APOLOGIA DE RAYMOND SEBOND”
Anderson Lucas
UNIOESTE
[email protected]
Gilmar Henrique Conceição
Palavras-chave: Crítica, Razão, Ceticismo, Raymond Sebond
A Apologia de Raymond Sebond constitui um dos tratamentos mais ―sistemáticos‖ da
discussão cética de Montaigne acerca do critério para decidir o critério, retomada no século
XVI, em razão dos conflitos entre o partido protestante e o partido católico. Neste escrito
Montaigne realça sua adesão ao ―mais sábio partidos dos filósofos‖ (II, 15, p. 419). Isto
ocorre dado o fato que, conforme Villey (2006, p. 158), Montaigne renuncia ao uso
absoluto de sua razão individual e vê com preocupações a situação de dilaceramento da
França. Montaigne defende o critério cético para a vida prática: é o ―phainómenon” (―o que
aparece‖), por isso mesmo, os céticos são ―philántropoi‖ (―amantes da espécie humana‖). De
acordo com Eva, o mesmo juízo sobre a superioridade da posição dos ―Skeptiques‖ se
apresenta nesta obra com mais detalhes, ainda que de forma indireta. De acordo com este
intérprete a exposição dos conceitos principais do ceticismo, que ocupa as páginas centrais
desse capítulo, é delimitada por juízos relacionados ao exame da busca humana da verdade.
Desse modo, na Apologia observa-se que a apresentação do ceticismo se realiza quase
exclusivamente com base em elementos pirrônicos. (EVA, 2007, p. 30).
É este o motivo porque neste capítulo dos Ensaios (II, 12, p. 157), o pirrônico
Montaigne critica severamente a razão por meio da razão. Ou em outras palavras, os
pirrônicos se servem da razão para investigar e para debater, mas não para sentenciar e
escolher baseado na certeza. O ceticismo de Montaigne é influenciado fundamentalmente
por Sexto Empírico, mas ele dialoga com os Acadêmicos. Como é sabido, o ensaísta
traduziu a obra de Raymond Sebond do latim para o francês, a pedido de seu pai.
Posteriormente, frente às objeções levantadas contra Sebond, Montaigne se propôs
defendê-lo e isto deu origem à Apologia a Raymond Sebond, onde ele enfrenta as referidas
objeções que lhe são dirigidas. A resposta que o ensaísta dá à primeira objeção é a de que a
razão por si só não pode demonstrar as verdades da religião. Mas julga que é melhor apoiar
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sua crença com razão humanas. Na resposta à segunda objeção o ensaísta argumenta que se
os argumentos de Sebond são insuficientes, seus críticos também não têm nada melhor
para opor-lhe, visto que a razão é incapaz de fundamentar qualquer coisa. Villey acrescenta
a isto o fato de que na Apologia encontramos a crítica da vanidade do homem, da vanidade
da ciência e da vanidade da razão (instrumento da ciência). Vale a pena salientar que a
crítica à ―vaidade‖, ainda que reverbere dos Eclesiastes, o argumento de Montaigne trava-se
na esfera da pura razão humana. Trata-se de uma ―vanidade‖ porque com a razão
defendemos qualquer ideia. A toda afirmação pode-se opor outras afirmações. O núcleo da
argumentação montaigniana está em apontar que o ser humano se distingue pela
arrogância. Ainda que possa fazer com a razão tudo o que quisermos, dado que se trata de
algo maleável, a ciência é muito útil e importante. É este o sentido da própria abertura da
Apologia:
(A) na verdade, a ciência é uma coisa muito útil e grande; os que a menosprezam
dão prova bastante de tolice; mas nem por isso estimo seu valor até essa medida extrema
que alguns lhe atribuem, como o filósofo Herilo, que colocava nela o soberano bem e
afirmava que estava em seu poder tornar-nos sábios e contentes; não creio nisso, nem no
que disseram outros; que a ciência é mãe de toda virtude e todo vício é produzido pela
ignorância. Se isto for verdade, está sujeito a uma longa interpretação (II, 12, p. 160).
Na realidade, Montaigne critica não só a capacidade da razão como também a
razão antropocêntrica no contexto do Renascimento. Critica a ―dignidade humana‖ e a
―miséria humana‖. Não estamos nem acima nem abaixo dos animais. Porém, se pudermos
sintetizar a Apologia em um único enfoque temos: trata-se, aí, de uma crítica radical a toda
forma de dogmatismo. Constata-se que o esforço desta crítica aponta para a tese de que a
razão é incapaz de validar qualquer objeto ou se apresentar como verdade inquestionável.
A partir deste diagnóstico arrola comparações entre animais e homens. Os partidos dos
filósofos são conflitantes e discordantes. As ciências que são os principais produtos da
razão, são contraditórias. Temos, assim, a concordância montaigniana com a questão da
―diaphonia‖ elaborada pela tradição do ceticismo pirrônico. Por isso mesmo a razão não
pode conduzir o domínio da vontade contra as paixões; ao contrário, as paixões podem
ameaçar a teórica ―constância da alma‖, pois a razão inclina-se para diferentes lados porque
é defeituosa e cega: (...) ela é tão defeituosa e tão cega que não há nenhuma facilidade tão
clara que lhe seja suficientemente clara; que o fácil e o difícil lhe são semelhantes; que todos
os assuntos por igual e a natureza em geral renegam sua jurisdição e intermediação (II, 12,
p. 176).
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O que temos é no mais alto grau, o exercício da razão em sua autonomia: O eu
dos Ensaios, portanto, apesar de proceder à crítica das ilusões da razão, não tem nada de
irracionalista: é ainda à razão que cabe conhecer seus limites, reconhecer os seus outros e
proceder a uma ética da medida‖. (BIRCHAL, 2007, p. 204). De certa forma, a razão se
nega radicalmente e se afirma nessa mesma negação. A razão teórica conserva valor em seu
uso negativo, como crítica que destrói os ídolos da razão errante, as ―verdades‖, as
instituições, o costume, a lei, o Estado, etc. O que Montaigne constata são as perpétuas
variações e contradições, desse modo a razão humana é incapaz de determinar a lei moral.
Este o sentido dos exemplos que encontramos em sua escrita, totalmente destrutivos para a
perspectiva dogmática e antropocêntrica. Montaigne escreve, por exemplo, que há uma
perfeição na sociedade e em toda organização das abelhas, que que muitos humanos não
conseguem fazer sua sociedade ―superior‖ ao de simples insetos. Outros argumentos que
podem ser ressaltados neste ensaio é o comunicação entre os animais, ou seja em especial
o ensaísta se refere à linguagem dos animais. Salienta que muitos animais ―sem voz‖
conseguem se comunicar facilmente através de gestos ou até mesmo de movimentos com
significações específicas.
Outros fortes exemplos apresentados por Montaigne visam mostrar que o homem
é o animal mais fraco e desgraçado em qualidades de proteção. Muitos animais têm seus
meios de proteção já anexados a eles como as garras de um caranguejo, o odor de um
gambá. Sem falar que boa parte dos animais tem garras, dentes, chifres para o ataque. Por
seu lado, o homem nasce ―sem nada‖ apenas sabendo chorar, sem nenhuma proteção além
dos da sua espécie. Se formos pensar profundamente sobre esse aspecto vemos que não
temos nada além de ―armas artificiais‖ para nossa sobrevivência no mundo. Com isso
vemos que os mais simples seres, como o piolho ou vermes, podem destruir ―qualquer
príncipe ou imperador‖. Há muitos outros exemplos que reforçam a ideia de que a razão
humana é análoga ao de vários animais. Sendo, portanto, uma loucura buscar razões
decisivas para o debate acerca do critério para decidir sobre a verdade religiosa. Considera
outra loucura ser a imagem e semelhança de Deus. Nunca - como alguns objetores de
Sebond propõem - nossa razão pode ser comparada a de Deus, pois Deus é um ser uno,
inigualável (e até impensável, dado que não cabe em nossa razão). Montaigne por isso
afirma que não conseguimos nem mesmo pensar em que seja Deus, nem muito menos falar
dele. É algo que ultrapassa nossa compreensão. Montaigne se opõe ao mundo e adere ao
mundo, critica a política e se insere na política, critica a razão e recorre à razão. Starobinski
refere-se ao movimento de ―oposição ao mundo‖ enquanto recusa da mentira e da
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dissimulação em Montaigne, e talvez isso componha, na verdade, sua ―adesão ao mundo‖
enquanto veracidade e plenitude; são faces do mesmo homem:
Ao denunciar os prestígios do parecer, Montaigne toma partido, implicitamente,
pela plenitude sem equívoco do ser verdadeiro. Mas ele só o conhece pela força da recusa
que o faz considerar inaceitáveis a mentira e a máscara. Montaigne, no instante em que se
opõe ao mundo, não pode valer-se de nenhuma verdade possuída; proclama apenas o seu
ódio da ‗simulação‘. O verdadeiro é o positivo ainda desconhecido implicado pela negação
dirigida contra o mal pululante; o verdadeiro não tem fisionomia determinada, é apenas a
energia não aplacada que anima e que arma o ato da recusa. (STAROBINSKY, 1992, P. 1516). Qual seja o ensaísta revela uma figura da subjetividade não estritamente racionalista,
ancorada no mundo e em relação com o outro: ele recusa a ideia de que a razão defina,
essencialmente, o ser humano, ao modo do que viria ocorrer na perspectiva cartesiana.
Montaigne não é inconsequente, em sua decisão filosófica pessoal de levar o uso da razão
às últimas consequências, e isso o conduz a uma constatação, e esta o impele, por sua vez, à
recusa em adotar uma filosofia como verdadeira. Coerente com o seu ceticismo, Montaigne
não se engaja em nenhuma ―seita‖ preexistente ou, mais precisamente, em nenhum dos
partidos dos filósofos que, por se estreitar nos limites de um pensamento filosófico que
pretende ser, se não ―o único‖, ―o verdadeiro‖ e ―para todos‖, descarta a subjetividade e
acaba por se constituir em seita; por isso concorda com o partido dos pirrônicos. Não há
razão que não tenha uma razão contrária dela, como dizia Sexto Empírico. Montaigne não
considera em política, conotações objetivas dos conceitos, dado que considera a razão
desprovida de autonomia e constituída da mesma matéria da qual são feitos os hábitos.
Para ele, a razão é incapaz de resolver problemas políticos, religiosos e metafísicos.
Referências Bibliográficas:
BIRCHAL, Telma. O eu nos Ensaios de Montaigne. Belo Horizonte: ed. UFMG, 2007.
CARDOSO, Sérgio . Villey e Starobinski: duas interpretações exemplares sobre a gênese
dos Ensaios. Kriterion, Belo Horizonte, v. 33, n. 86, p. 9-28, 1992.
MONTAIGNE, Michel de, Os Ensaios. Tradução de Rosemary Costhek Abílio. São Paulo:
Martins Fontes, 2000. – (Paideia).
ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia
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SEXTO EMPÍRICO. Hipotiposes Pirrônicas. Tradução de Danilo Marcondes.
http://portalveritas.blogspot.com.br/2009/06/sexto-empirico-hipotiposes pirronicas.html.
Ac.: 02/08/2013.
STAROBINSKI, Jean. Montaigne em movimento. Tradução de Maria Lúcia Machado. São
Paulo: Cia da Letras, 1992.
VILLEY, Pierre. A vida e a obra de Montaigne. MONTAIGNE. Os Ensaios: Livro I. São
Paulo : Martins Fontes, 2006. – (Paideia).
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ENSAIANDO O PENSAR FILOSÓFICO: DA PINTURA DE SI AOS CANIBAIS
Angela Maria da Silva
UNIOESTE/PET- Filosofia
[email protected]
Gilmar Henrique da Conceição
Palavras-chave: Alteridade. Ceticismo. Ensaio. Filosofia.
O objetivo deste trabalho visa discutir o movimento próprio da filosofia
montaigniana. A partir deste entendimento metodológico buscaremos fundamento nos
próprios Ensaios, como uma espécie de guia que se revela no ato da escrita. Intérpretes
buscam conduzir o leitor ao sentido próprio dos Ensaios, porém também se colocam como
dificuldades a serem transpostas, porque são escritos que também exigem entendimento
acerca de suas interpretações. Inicialmente destacamos o argumento de que a escrita
montaigniana se encontra sempre em aberto, estando continuamente por ser desvelada de
forma paradoxal, mesmo quando se revela. Isso implica em registrar os fatos, sem ideias
preconcebidas, e em abandonar uma hipótese se ela não concordar com a realidade.
Montaigne, ao propor, então, seu exercício de pensador na forma de ensaio, entende sua
filosofia, como oposta a um sistema fechado. O que não invalida a perspectiva de se
apresentar como uma profunda reflexão cética e, neste contexto, rigorosamente honesta
como expressão de um eu aberto ao mundo, como ―pintura de si‖. Portanto parece-nos
correto dizer que, para ele, tanto corpo, quanto o espírito são de mesma grandeza. Não há
separação antagônica entre estas duas realidades em seu pensamento. Ao revelar-se a si
mesmo e ―completamente nu‖, o filosofo se retrata de inteiro. Segue-se então que sua
original maneira de filosofar, a partir de si, acaba por se constituir em um radical exercício
da dúvida de Pirro, por ele estudada a partir das Hipotiposes Pirrônicas. Seus Ensaios tratam de
diversos aspectos daquilo que se apresenta como próprio da natureza humana, sejam eles
da vida prática, sejam eles da vida teórica. Para Montaigne a filosofia tem caráter
investigativo e incessante de revelação e ocultamento. Como ele mesmo afirma
desafiadoramente: ―Arranquemos as máscaras às coisas como às pessoas...‖ (I, 20, p.55). O
que ele concluindo é que embaixo de cada máscara há outras máscaras. Neste sentido há a
denúncia da máscara e o reconhecimento de que só nos apresentamos com máscaras.
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Nesta investigação sem fim, ele se desfaz das máscaras e se retrata como puro aparecer. De
modo que, talvez, o ato da morte seja nossa última máscara: ―(...) e por baixo veremos
muito simplesmente a morte‖ (I, 20, p. 55). Os Ensaios vão revelando, em cada capítulo, um
Montaigne desnudo e forte na construção de uma interpretação do homem e do mundo.
Não obstante, em Montaigne encontramos mais o paradoxo e menos o repouso. Ele
elabora seu pensamento para um fim que não tem fim; todavia há certa alegria na procura:
―(B) Meu andar é rápido e firme; e não sei qual dos dois, o espírito ou o corpo, tenho mais
dificuldade em deter no mesmo lugar‖ (III, 13, p. 484). Há um movimento visceral na sua
escrita pirrônica: ―(...) Prefiro, porém, que me vejam na minha simplicidade natural, sem
artifício de nenhuma espécie, porquanto é a mim mesmo que pinto. Vivos se exibirão meus
defeitos e todos me verão na minha ingenuidade física e moral,pelo menos enquanto
permitir a conveniência. Se tivesse nascido entre essa gente de quem se diz viver ainda na
doce liberdade das primitivas leis da natureza, asseguro-te que de bom grado me pintaria
por inteiro e nu... (Ao Leitor, 2002, p. 03). Em seu célebre ensaio intitulado ―Dos Canibais‖ o
ensaísta descreve o ―outro‖, o bárbaro. Sua abordagem crítica nos leva a questionar nossa
posição cultural diante daquele que se nos apresenta como ―desconhecido‖. Ao comparar
os europeus aos tupinambás, Montaigne avalia que os verdadeiros selvagens são os
primeiros, pois estavam promovendo atrocidades não apenas em suas conquistas por toda
América como também nas guerras de religião. Ou seja, em seu movimento argumentativo
mostra que atribuímos ao termo ―bárbaro‖ tudo aquilo que não conhecemos. Assim
aqueles selvagens são apresentados por Montaigne, na realidade, como seres naturais ou
integrados e ―intactos‖, ou seja sem a intervenção (ou colonização) de outros povos, ditos
evoluídos. Neste ponto do Ensaio surge outra questão relevante para nosso entendimento,
a partir da inversão argumentativa de que chamamos de barbárie aquilo que não é de nosso
costume: ―(...) Podemos, portanto qualificar esses povos como bárbaros em dando apenas
ouvidos à inteligência, mas nunca se os compararmos a nós mesmos, que os excedemos em
toda sorte de barbaridades‖ (I, 31, p. 107). Estabelecendo esses parâmetros levantados pelo
filosofo fica evidente sua intenção em dizer que natural e selvagem são sinônimos no caso
dos povos indígenas do Brasil por ele abordado. Avança ainda dizendo ser uma espécie de
preconceito (palavra não dita por ele, mas cabível neste caso), pois se trata de uma violência
aplicada a estes povos. Para ele os bárbaros são deveras os ditos europeus abastardados,
por sua corrupção interna e de natureza corruptiva, ou seja, corruptor de outros. A
propósito disto Montaigne cita em seguida Propércio: ―A hera cresce ainda melhor sem
cuidados; o medronheiro nunca se apresenta mais belo como nos antros solitários e o canto
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dos pássaros é assim tão suave porque natural‖ (I, 31, p. 105). Neste momento do texto
fica claro a sua intenção de clarificar o conceito do que seja o ―outro‖, bem como de se
posicionar, avaliando o povo indígena como admirável e sábio, e não desprezível e
ignorante como quer significar a própria palavra empregada como ―bárbaros‖, ao contrário.
Em razão disso cita Sêneca: ―(...) São homens que saem das mãos dos deuses‖ (I, 31,
p.106). Finalmente, não é na solidão, ou na pura volta a si que Montaigne encontra a
solidez de uma vida verdadeira, a real existência de si mesmo, mas numa relação
paradigmática com o outro. O filósofo propõe uma abertura para além do senso comum,
ou seja, leva o leitor, juntamente com ele, a repensar essa questão do diferente e que não
esteja determinada por nossos usos e costumes. Montaigne alerta para o ―império dos
costumes‖ do qual ninguém escapa: ―(...) E é natural, porque só podemos julgar da verdade
e de razão de ser das coisas pelo exemplo e pela ideia dos usos e costumes do país em que
vivemos‖ (I, 31, p. 105) Aprofundando tais questões ele indaga: o que são os outros, os
desconhecidos, aqueles os quais ignoramos? Nossos usos e costumes, porém, não podem
ser considerados como supostamente superiores aos de outros povos. Assim, ele também
parece problematizar essa ideia, ao apontar para o fato de que, em quase todos os homens,
há um defeito generalizado de ver e seguir apenas o que se praticou desde o berço, e que
isso frequentemente é tomado como a única ―verdade‖. De modo que os usos e costumes
de outros povos e de outros tempos são vistos como bárbaros e selvagens porque tais
povos não se vestem como nós e não têm hábitos como os nossos. Reconhecendo o limite
da razão e a diversidade dos costumes humanos, o filósofo aponta as atitudes dogmáticas
dos que se pretendem portadores da verdade, do certo e do errado. Faz necessária a prática
de reconhecer a diversidade de cada cultura e nela a parcialidade da verdade, sempre situada
em seu contexto próprio. Nesse caminho do conhecer, dúvidas cortantes perpassam toda
sua obra. O limite do sujeito que conhece circunscreve cada capítulo, a constatação de que
quando afirmamos algo de um objeto, não é da verdade desse objeto que falamos, mas da
maneira de como nós o percebemos. E são essas impressões e percepções que
comunicamos. Do mesmo modo ao falarmos de valores, não falamos em valores da coisa,
mas da maneira subjetiva, como reflexos do juízo do sujeito que pensa. Mas, o sujeito não é
puro pensamento, nem constitui a identidade do eu. Tudo são fenômenos, inclusive a nós
mesmos somos fenômenos a nós. Para Montaigne tudo serve como objeto de reflexão e de
aprendizagem, pessoas, livros, acontecimentos, etc. Todavia, o estudo de si mesmo
constitui seu núcleo dinâmico: ―Estudo a mim mais do que a outro assunto. Essa é minha
física, essa é minha metafísica‖ (III, 13, p. 434). Tendo claro que o examinar-se primorosa e
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profundamente não é espontâneo, e requer do sujeito muita determinação, visto que as
afecções podem distrair-nos de nós mesmos. Por isso, ainda que o nosso autor vá a todas
as direções ele não se perde. Somente assim se pode aprender a lógica da produção da
própria identidade. Afinal, para ele, o pensamento sobre si mesmo é o centro unitário das
mais diferentes experiências humanas e pode permitir algum tipo de ―exatidão‖, pois o eu
pode se conhecer, observando-se, mais do que observando o outro. Todavia, em Montaigne
o projeto do conhecimento de si não se exerce sobre uma interioridade fechada. O outro é
trazido para o exercício do julgamento e trazido para o círculo da interioridade (BIRCHAL,
2007, p. 205).
Referências Bibliográficas:
MONTAIGNE, Michel de, Os Ensaios. Tradução de Rosemary Costhek Abílio. São Paulo:
Martins Fontes, 2000. – (Paideia).
SEXTO EMPÍRICO. Outlines of Pyrrhonism. Tradução para o inglês de R. G. Bury.
Cambridge, Massachusetts, London, England: Harvard University Press,
2000.
BIRCHAL, Telma. O eu nos Ensaios de Montaigne. Belo Horizonte: ed. UFMG, 2007.
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BERKELEY E A VISÃO INSTRUMENTALISTA DAS TEORIAS CIENTÍFICAS
Angelo Eduardo da Silva Hartmann
UNIOESTE/MEC-SESu
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Orientador: Remi Schorn
Palavras-chave: Empirismo. Nominalismo. Universais.
A visão oficial da ciência contemporânea, insistentemente (re)colocada em debate
por Karl Popper (1902-1994), é fruto do legado deixado pela posição ortodoxa de
Copenhagen – a concepção instrumentalista das teorias científicas (Cf. Popper, 1982,
p.127).
Empenhados em defender a completude da teoria quântica e o fim do percurso
daquilo que se pode conhecer acerca da natureza e estrutura da matéria, físicos como Niels
Bohr (1885-1962) e Werner Heisenberg (1901-1976) convenceram-se de que o velho ideal
de uma descrição causal da realidade física estava fadado ao fracasso; de que a mecânica
quântica conquistara a última revolução da física; e de que as dificuldades envolvidas pelos
recentes desenvolvimentos da física quântica deveriam ser abandonadas, uma vez que o
domínio do formalismo matemático e o sucesso de suas aplicações era o suficiente (Cf.
POPPER, 1982, 128; 1989, p.27).
Por maior espanto que essa breve descrição possa provocar a um estudante de
Filosofia ou a um admirador da ciência, a posição ortodoxa de Bohr e Heisenberg se
tornou a maior tendência da ciência física na primeira metade do Século XX e enraizou-se
como a sua visão oficial. O princípio de complementaridade – pedra de toque da
interpretação de Copenhagen, como afirma o prof. Mario Bunge (1973, p.180) – foi
apresentado e acolhido com grande satisfação pela grande maioria dos físicos presentes na
Conferência de Solvay de 1927, em Bruxelas.
Duas exceções brilhantes – Einstein e Schrödinger – recusaram-se a aceitar a
posição ortodoxa e traçaram, por caminhos independentes, suas próprias linhas de
investigação em busca de melhorar a compreensão física das dificuldades envolvidas no
formalismo.
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A herança da visão instrumentalista das teorias científicas, uma das formas do
positivismo, no entanto, não é uma novidade filosófica do século passado.
A concepção de que as teorias científicas buscam, não descrever verdadeiramente o
mundo (como se manteve Galileu perante a Inquisição), mas proceder ―por pura hipótese
matemática‖ com a aplicação do instrumento que for ―mais conveniente para os cálculos
astronômicos e para as predições‖ (POPPER, 1982, p.125) emerge na modernidade por
meio de vários defensores da Igreja – com Andreas Osiander (1458-1552) em seu prefácio
ao De Revolutionibus de Copérnico (1473-1543); com o cardeal Roberto Bellarmino (15421621), um dos inquisidores de Giordano Bruno (1548-1600); e, cem anos depois, com o
bispo irlandês George Berkeley (1685-1753) contra a mecânica de Newton.
O objetivo dessa comunicação é mostrar como Popper localiza na crítica de
Berkeley à mecânica de Newton a formulação do primeiro sério ataque à tradição galileana
da busca pela ―verdadeira constituição da natureza‖ (GALILEU, 1973, p.120).
A crítica mais assídua contra a teoria de Newton foi apresentada por Berkeley em
um curto ensaio escrito em latim e intitulado De Motu (―Sobre o movimento ou sobre o
princípio, a natureza e a causa da comunicação dos movimentos‖, 1720). Sua investigação
filosófica com uma preocupação especial – o emprego correto dos termos da linguagem.
Em sua Introdução ao Tratado sobre os Princípios do Conhecimento Humano (1710), se atenta que
para preparar o leitor a mais fácil inteligência do que se segue, convém pôr como
introdução alguma coisa sobre a natureza e o abuso da linguagem. Mas o deslindar deste
tema de certo modo antecipa o meu plano, por tratar-se do que parece ter sido a origem
principal da dúvida e complexidade da especulação como de erros e dificuldades inúmeras
em quase todos os domínios do conhecimento (BERKELEY,1980, p.6).
Dez anos depois, ao iniciar o De Motu, insiste novamente que ―nada é tão
importante quanto o cuidado de não sermos enganados por termos que não
compreendemos corretamente‖ (De Motu, 1). Podemos, assim, reformular a preocupação
de Berkeley nos seguintes termos: como empregar corretamente os termos da linguagem
sem incorrer em erros de compreensão?
Sua resposta a tal problema – e o objeto da presente investigação – configura uma
abordagem nominalista da linguagem, permitida (i) pela distinção entre termos abstratos e
particulares, e consequentemente, (ii) entre hipóteses matemáticas e a natureza das coisas; e
ainda (iii) pela delimitação do domínio de três diferentes áreas do conhecimento humano.
A concepção nominalista da linguagem (quais termos possuem significado)
constitui, na leitura de Popper (1982, p.136), o principal argumento a favor da concepção
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instrumentalista das teorias científicas e, consequentemente, o principal ataque desferido
pela modernidade à tradição galileana – ataque este continuado, ainda que
despercebidamente – pela posição ortodoxa de Copenhagen.
Referências Bibliográficas
BERKELEY, George. Tratado sobre os Princípios do Entendimento Humano. São Paulo: Abril
Cultural, 1980.
___________. ―De Motu‖. Scientiae Studia, São Paulo, v.4, p.115-37, 2006. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/ss/v4n1/v4n1a05.pdf (último acesso: 30/9/2013).
COPLESTON, Frederic. A History of Philosophy, vol. V – Hobbes to Hume. New York: An
Image Book, 1985.
GALILEU, Galilei. O Ensaiador. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Coleção Os Pensadores,
vol. XII.)
LOCKE, John. Ensaio sobre o Entendimento Humano. Lisboa: Fundação Calouste Gubenkian,
1999, vol.1.
MARICONDA, Pablo R. ―Notas ao Diálogo‖ In: GALILEU, Galilei. Diálogo sobre os dois
máximos sistemas do mundo ptolomaico e copernicano. São Paulo: Associação Filosófica Scientiae
Studia: Editora 34, 2011 (pp.539-872).
POPPER, Karl. Conjecturas e Refutações. Brasília: Ed. UnB, 1982.
___________. A Teoria dos Quanta e o Cisma na Física. Lisboa: Publicações Dom Quixote,
1989.
___________. Realism and the Aim of Science. (Ed. W.W. Bartley III) New York: Routledge,
2011.
ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia
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POR UM NOVO ESPAÇO FILOSÓFICO CRIATIVO: FILOSOFIA NO ENSINO
FUNDAMENTAL
Caroline Recalcatti Silveira
Universidade de Évora
[email protected]
Leandro de Araújo Crestani
Universidade de Évora
[email protected]
Palavras-chave: Filosofia; Ensino Fundamental; Espaço Criativo.
A proposta de Filosofia para o Ensino fundamental apresenta-se como um
conhecimento que possibilita o desenvolvimento de um estilo próprio de pensamento para
o ensino fundamental de 5ª a 8ª séries. Diante dessa necessidade social, a Filosofia é um
elemento fundamental no Ensino fundamental, pois é nessa fase que o aluno está no
período de operações formais ou adolescência, no qual demonstra uma criticidade diante
das normas que regem a vida social, começando a conhecer o mundo.
Essa é uma etapa na qual o aluno tem os primeiros contatos com o mundo do
trabalho e, logo percebe que ele está cada vez mais competitivo devido ao avanço
tecnológico e que para manter-se ativo e conquistar seu lugar precisa de qualificação. Com
o objetivo de proporcionar a formação de pessoas críticas, não no trabalho de conceitos
científicos, mas sim nos assuntos do seu cotidiano.
Foi desenvolvido na ―Escola Intentus‖, com base no material ―O Novo Espaço
Filosófico Criativo‖ de 5 ª a 8ª série de Alberto Thomal professor de Filosofia no Curso de
Extensão da PUC/PR; na rede pública Estadual no Ensino Médio; coordenador do
Departamento de Filosofia e responsável pela implantação da Filosofia Educação para o
Pensar na Educação Infantil e Ensino Fundamental da Rede Municipal de Ensino de São
José (SC).
Dessa forma, os conteúdos estavam organizados, para que os alunos refletissem
sobre ―o pensar‖ e para que venham a produzir conhecimentos, pensem suas próprias
ideias e possam ser autônomos. Isso em comunidade de aprendizagem investigativa.
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Na 5ª série, trabalhar o ―pensar‖, ou seja, que está em nós a capacidade de
pensarmos bem sobre o pensar, aprendermos a aprender, indagada pela Teoria do
conhecimento. Na 6ª Série desenvolve-se a investigação lógica, na qual se apresenta para o
educando que somos seres racionais, lógicos, temos a capacidades que nos diferenciam uns
dos outros. Sendo criativos, inventivos, e usando da linguagem para podermos expressar o
que pensamos. Na 7ª série, trabalhar a investigação ―ética‖, enfatizando para o educando,
por sermos racionais, aspiramos à liberdade de pensamento, buscamos pensar bem para
viver bem.
Dessa forma as questões éticas, são da ação humana: a liberdade, a escolha, a
autonomia moral, a religião, etc. Nesse projeto com a 8ª série a investigação sobre a
―Política e Estética‖. Pensar, através da filosofia em alertar que, como seres racionais,
pensamos sempre e podemos pensar melhor ainda sobre o mundo, as ideias, os outros;
incentivar para que, cada vez mais, suas ideias possam ser lógicas, estruturadas com
coerência; despertar uma reflexão filosófica e investigação política e estética. Contudo, o
ensino de Filosofia no Ensino Fundamental neste ―Novo Espaço Filosófico Criativo‖,
recria e desenvolve a imaginação, a crítica e a reflexão. Os campos de estudo da Filosofia
para o Ensino Fundamental pode ajudar em vários momentos do processo educacional.
Privilegiando ao aluno que discuta, argumente, proteste, pesquise, se emocione com as suas
ideias.
Referências Bibliográficas:
CHAUÍ, M. Convite à filosofia. 13. ed., São Paulo: Ática, 2003.
THOMAL, Alberto. Novo Espaço Filosófico Criativo. Editora: Sophos. 2006
.
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NOÇÃO DE PESSOA E AGENTE EM PAUL RICOEUR
Daiane Lemes Pereira
Universidade Federal da Fronteira Sul
[email protected]
Dr. Elsio José Corá
Palavras-chave: Hermenêutica. Cogito. Alteridade. Identidade.
No presente texto discorre-se sobre a noção de pessoa e agente no pensamento
do filósofo francês Paul Ricoeur (1913-2005). Procura-se analisar o afastamento das
chamadas filosofias do cogito e, consequentemente, a afirmação de uma hermenêutica do
si.
Tal discussão terá como plano de fundo a visão de identidade admitida por Paul
Ricoeur, uma identidade dividida em duas, composta por partes que são equivalentes, mas
não idênticas entre si. Ele as chama de identidade-idem e identidade-ipse. A primeira é
parte de mim que é só minha e permanece no tempo e no espaço, e a outra que é minha,
mas tem participação do altero no seu forjar, participa no tempo-espaço, mas como sendo
manutenção de si.
Num primeiro momento analisa-se o afastamento do Cogito assumido pelo nosso
autor que, como sustentação à sua proposta oferece-nos a hermenêutica do ―si‖, onde diz
que uma análise detalhada sobre o si-mesmo levará à consciência de si, não sendo esta,
portanto, uma dedução imediata. Ricoeur foge tanto do triunfo do Cogito, quanto do
niilismo de Nietzsche, ele se viu entre a verdade primeira cartesiana e o rebaixamento ao
grau de ilusão sugerido por Nietzsche. Quando encara o niilismo, nosso autor não
reconhece uma alternativa verdadeira, porque o ―si‖ não é um ―eu‖ que existe
independente do outro, que existe no aqui e no agora, e não se repete. Portanto o sujeito
não é um eu, um substrato metafisico, atemporal e a-histórico sendo ele o contrário a tudo
isto, um si, um singular, capaz de ser o agente de uma ação.
Num segundo momento, no âmbito da gramática, onde se tem o termo ―si‖
equivalendo ao reflexivo de todos os pronomes pessoais e impessoais, o percurso abordará
três dialéticas: a dialética entre reflexão e análise; entre ipseidade e mesmidade; entre
ipseidade e alteridade.
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Quando desviamos a reflexão pela analise, mostramos a estrutura reflexiva do si,
onde se analisa o roteiro dos atos do agente através de suas experiências linguísticas,
práticas, narrativas e éticas. O primeiro ponto de abordagem sobre o sujeito no autor é a
abordagem semântica linguística, dentro desta abordagem conseguimos individualizar o
sujeito que, segundo nosso autor, analisado desta forma o si torna-se referência e potência.
Para especificar o indivíduo, Ricoeur vai empregar a tese da obra ―Os indivíduos‖
de P. F. Strawson, teoria esta que pretende por isolar, entre todos os particulares aos quais
podemos nos referir, aqueles que Strawson chama ―particular de base‖, conceito que
denomina uma amostra em meio a uma gama de ―mesmas coisas‖. Nessa teoria o conceito
admitido é o conceito primitivo de pessoa: uma coisa da qual falamos em meio a uma gama
de objetos que existem no mundo dito real: montanhas, árvores, homens, animais. Os
particulares são os corpos físicos e as pessoas, enquanto que as pessoas não são apenas
corpos físicos. Mas como é definir pessoa como particular de base? Ricoeur conserva três
teses de Strawson:
―1.-nós nos atribuímos dois tipos de predicados, predicados físicos e predicados
psíquicos (X pesa 60kg, X se lembra de uma viagem recente); 2.- é à mesma entidade, a
pessoa, e não ha duas entidades distintas, a alma e o corpo, que nós predicamos os dois
tipos de propriedade; 3.- os predicados psíquicos são tais que conservam a mesma
significação, quer sejam atribuídos a si-mesmo ou a um diverso de si (eu compreendo a
inveja, mesmo que ela seja dita de Pedro, de Paulo ou de mim).‖ ( Le concept de
responsabilité. Essai d‘analyse sémantique, Esprit, 1994, p. 36)
Como sendo pessoa um particular de base a pessoa existe no plano da referência
pública. Mas como foi afirmado acima, pessoa não é apenas corpo, pois possui como seus,
os predicados psíquicos além dos físicos, embora os psíquicos, por serem eventos mentais
ocorrem apenas no plano da referencia privada, afirma nosso autor seguindo por
pensadores lógicos como D. Davidson e E. Anscombe. Esta abordagem, no entanto,
assume somente a identidade-idem.
A abordagem pragmática que, por sua vez, ocorre nos contextos de interlocução e
recai sobre a ipseidade, vai permitir a passagem de ―pessoa como particular de base‖ ao
―sujeito capaz de autodesignar-se como um si‖, sendo assim passa-se à terceira dialética
proposta acima. Ora, o engajamento do ser falante no seu discurso narrativo que solicita a
presença de outro, sendo essencialmente o si que fala a um o outro que escuta, colocamos
aqui a 1º e 2º pessoa em primeiro plano. Esta teoria chamada de atos de discurso, afirma
que todo ato de discurso designa reflexivamente seu locutor, portanto, seria incompleto
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sem a noção de intersubjetividade resultante da relação entre o si e o outro,
consequentemente o si também seria incompleto sem a presença do outro.
E. Benveniste pensou serem a 1º e a 2º pessoa opostas à 3º, ou seja, que o eu e
o tu opõem-se ao ele, como pessoa opõe-se a não-pessoa. Ricoeur não aceita essa
delimitação, pois afirma que o eu só deixa de ser um signo vazio quando aquele que fala faz
uso do termo para designar-se a si mesmo naquele instante, por isso ele é diferente a cada
vez que se ouve afirmar ―eu prometo‖ o que gera uma aporia.
Operação de inscrição é a solução proposta por nosso autor como solução dessa
aporia. Um nome próprio que designa a um único e determinado sujeito, documentado na
história e é aclamado por seu dono quando este se autonomeia, tudo isso mostra que o
―eu‖ admite ser qualquer um. Conclui-se que a linguagem é usada na teoria, como
ferramenta identificante e na capacitação de fazer com que o outro saiba de quem aquele
que fala está falando.
Referências Bibliográficas:
RICOEUR, Paul. Soi-même comme um autri. França: Éditions de Seuil, 1990.
SINTESE, Revista de Filosofia. Belo Horizonte: Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia,
1999.
STRAWSON, P.F. Individuals: Essay of Desciptive Metaphysics. London: Rout Ledge, 1996.
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REFLEXÕES SOBRE O TEMPO: ANÁLISE DO ROMANCE MONTANHA
MÁGICA DE THOMAS MANN
Danilo Persch
Professor da Universidade do Estado de Mato Grosso - UNEMAT
E-mail: [email protected]
Palavras-chave: Thomas Mann. Montanha mágica. Tempo cronológico. Tempo
psicológico.
Nosso intuito como o presente texto é analisar o tratamento dispensado por
Thomas Mann ao ―problema do tempo‖ (Zeitproblem), na sua obra Montanha Mágica.
Selecionaremos algumas passagens desse livro em que o autor faz menções à discrepância
existente entre o tempo dos relógios (cronológico/objetivo/quantitativo) e o tempo psicológico
(subjetivo/qualitativo). Além desses dois aspectos de tematização do tempo, Mann também
faz referências (no último capítulo) à questão do ―tempo narrado‖ (erzählter Zeit) e do
―tempo do narrar‖ (Erzählzeit). No que segue, tentar-se-á elucidar essas três diferentes
perspectivas do ―tempo‖, ou seja, pretende-se demonstrar como Thomas Mann tratou do
tempo e em quais fontes ele se inspirou para tal tratamento.
―Um homem simples e novo viaja no alto verão de Hamburgo, sua cidade natal,
para Davos-Platz. Ele viaja a visita por três semanas‖. (MANN, 2004, p. 11). Com essas
duas frases, Thomas Mann inicia sua grande obra Montanha Mágica, pouco antes do começo
da Primeira Guerra Mundial, mais especificamente em 1912, ocasião em que fez uma visita
a sua mulher Katia, que se encontrava internada em sanatório suíço para curar-se de uma
leve doença respiratória. O homem (simples e novo) em questão chama-se Hans Castorp,
um jovem engenheiro de vinte e poucos anos que, antes de iniciar-se em sua profissão
(Castorp iria ocupar posto em estaleiro na sua cidade natal Hamburgo), faz uma visita a seu
primo Joachim Ziemssen, aspirante a oficial e que se encontrava internado no Sanatório
Internacional Berghoff localizado em Davos (Alpes suíços), destinado ao tratamento de
doenças respiratórias, sobretudo a tuberculose pulmonar. Estava planejada uma visita de
apenas três semanas. Porém, antes de retornar à planície, Castorp foi convencido por seu
primo a fazer consulta, quando então o médico detectou nele sinais de tuberculose
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pulmonar. Os sete dias transformaram-se então em meses e anos (também sete), período
esse em que Hans Castorp vai se afastando pouco a pouco da vida que levava ―na planície‖.
Não é necessário ler várias páginas da Montanha Mágica para encontrar referências
ao tempo. Estas se encontram já no prefácio/propósito (Vorsatz) quando Thomas Mann
discorre sobre tempo medido (objetivo) e tempo sentido (subjetivo). Por exemplo, na
passagem em que ele diz que a história de Hans Castorps será contada ―... minuciosamente,
com exatidão e pormenorizada...‖ (MANN, 2004, p. 10), e pergunta: ―... quando foi que o
agradável ou o maçante de uma história dependeram do espaço e do tempo, a qual ela
recorre?‖ (MANN, 2004, p. 10), percebe-se claramente o confronto entre o tempo objetivo
e o tempo subjetivo. As palavras alemãs Kurzweilig (cativante, agradável, divertido, de
curta duração) e Langweilig (aborrecido, maçante, de longa duração) se prestam muito bem
para expressar o paradoxo que pode ocorrer em relação a essa bipolaridade temporal. Um
determinado espaço de tempo, a princípio, cronologicamente longo, pode parecer
subjetivamente curto, se estiver recheado de muitos pormenores interessantes. E o
contrário também acontece. Mann soube trabalhar isso de forma genial na Montanha Mágica.
A história de Hans Castorps que ele ali narra nos mínimos detalhes não é apenas a história
de um personagem. Trata-se também do espaço em que esse personagem viveu sua história
(anos anteriores à Primeira Guerra Mundial), bem como o tempo que ele mesmo, como
autor, levou para escrever essa história.
Mais especificamente em relação ao espaço e ao tempo em que a história de Hans
Castorps se desenrolou, o autor, no segundo capítulo, faz a seguinte descrição: ―O homem
não vive sua vida pessoal apenas como um ser isolado, mas, consciente ou inconsciente,
também a de sua época ou contemporaneidade‖ (MANN, 2004, p. 49). Trata-se aqui,
repetindo, da época pré-guerra (Primeira Guerra Mundial). Nesse contexto a vida doentia e
de tédio que os integrantes da comunidade internacional do sanatório suíço de Davos Platz
levavam pode ser concebida como um retrato da condição psíquico-espiritual da sociedade
europeia dessa época pré-guerra, sobretudo a classe mais abastada economicamente que,
por isso, estava liberta das preocupações materiais e de subsistência.
Vale lembrar que todos os personagens (habitantes da Montanha Mágica) eram
oriundos de famílias com condições econômicas no mínimo razoáveis. O próprio Hans
Castorps era recém-formado engenheiro naval. Estava, portanto, apto a entrar no mercado
de trabalho e fazer parte desse grupo mais bem situado em termos econômicos. Mas essa
condição não libertava as pessoas do sofrimento, que na obra é retratado de duas formas: o
sofrimento com e sem causa orgânica.
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A evolução crônica da tuberculose pulmonar (conhecida popularmente em alemão
por Schwindsucht) era uma doença daquela época, e atingia muitos cidadãos bem situados da
sociedade. Outra doença que atacava muitas pessoas da época era a fraqueza de nervos
(Nervenschwäche), uma doença sem causas orgânicas específicas, cujos sintomas se
manifestavam por meio da irritabilidade, nervosismo, hipersensibilidade, cansaço
generalizado, incapacidade de descontração, além de desconfortos tais como: batimentos
cardíacos, dores vasculares, dores de cabeça, altas temperaturas, tremedeira nas pernas etc.
Na obra de Mann quem mais sofre dessa doença são os protagonistas Hans Castorps e
Clawdia Chauchat. Esse esgotamento nevrálgico pode ser considerado uma doença de
moda da virada do século XX e, de uma ou de outra forma, o próprio Thomas Mann foi
atingido por tais malefícios. Nesse sentido, já ao final da obra, (sétimo capítulo), os
subtítulos ―A grande estupidez‖ (Der große Stumpfsinn) e ―A grande irritação‖ (Die große
Gereiztheit), são textos bem típicos em que Mann procura retratar esse cenário doentio da
virada de século.
Todas as citações do presente texto são provenientes da editora franfurtiana FischerTaschenbuch: MANN, Thomas. Der Zauberberg. 17. Auflage. Frankfurt am Main: FischerTaschenbuch Verlag, 2004. A tradução (livre) é autoria do autor deste texto.
Referências Bibliográficas:
MANN, Thomas. Der Zauberberg. 17. Auflage. Frankfurt am Main: Fischer-Taschenbuch
Verlag, 2004.
___________. A Montanha Mágica – uma concepção política peculiar. Conferência
apresentada por Thomas Mann em maio de 1939 aos estudantes da Universidade de
Princeton. Trad. Richard Miskolci. Perspectivas (revista de ciências sociais). São Paulo, 19, p.
131-142, 1996.
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NATUREZA E INTERSUBJETIVIDADE NA FENOMENOLOGIA DE
HUSSERL
Devair Gonçalves Sanchez
CAPES
[email protected]
Palavras-chave: Mundo; Natureza; Intersubjetividade; Fenomenologia.
Husserl considera a possibilidade do conhecimento do outro a partir da
identificação de sua corporeidade e do reconhecimento que o ego tem para ele enquanto
índice de uma experiência concordante bilateral, ou seja, a experiência da intersubjetividade
dá-se a partir do surgimento do corpo estranho ao ego e, tal aparecer indica que esse corpo
vivo é uma sede de vivências intencionais e o ―ponto zero‖ (HUSSERL, 2001, p. 137) de
um horizonte infinito de possibilidades e constituinte de um mundo comum. Trata-se de
uma presentificação original do alter ego. Husserl afirma que ―de início, preciso explicitar, como
tal, o que pertence a mim propriamente, a fim de compreender que no ―próprio‖ o ―nãopróprio‖ adquire, também ele, seu sentido existencial, principalmente por analogia‖
(HUSSERL, 2001, p. 162). Os dados de aparição do ego lhe são dados de forma original,
enquanto os do outro são concedidos ao ego por meio da presentificação (Vergegenwartigung),
portanto não de forma original.
A outra mônada que se encontra na posição primordial diante do eu-mônada
mostra-se como estranha na perspectiva ontológica. Esse mostrar-se num sentido
meramente apresentativo confere existência a essa mônada, possibilitando uma verificação
constante e doando sentido ao ego. Nessa forma primitiva de comunicação, o alter ego
permite um vislumbre de si, no entanto, as vivências permanecem restritas ao próprio da
mônada e da outra mônada, levando em conta que se reconhece aquela mônada como
outra semelhante à do ego. Quando se fala em vivências nesse caso, é necessário estar
atento ao estatuto semântico do conceito de vivências puras do cogito transcendental. De
que maneira esclarecer tais vivências? Como elas se dão e de que maneira o ego as percebe
enquanto vivências do alter ego?
Não é possível ao ego tê-las na sua representação, o que não o impossibilita de
efetivar uma penetração intencional na esfera primordial das vivências do outro. Husserl
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reconhece a existência, na comunidade primordial das mônadas, de uma espécie de
introspecção empática. Nas palavras do filósofo, tal dinâmica ―é uma ligação que em
princípio é sui generis, uma comunhão efetiva, esta que é precisamente a condição
transcendental da existência de um mundo, de um mundo dos homens e das coisas‖
(HUSSERL, 2001, p. 142).
Na análise da nova esfera em que acontece o segundo grau de comunidade do eu se
relacionando com os outros, leva-se em conta o caráter psicofísico desse eu e desse outro.
Quando Husserl propõe essa nova configuração constitutiva, a dinâmica de apreensão do
outro na esfera do eu ganha um sentido de assimilação como reciprocidade. Mas qual a
novidade dessa intercomunhão subjetiva? A grande novidade consiste na concepção
perceptiva do outro como numa espécie de reflexo. O eu não tem o outro como um par
somente; não se opõe e ainda, tem a possibilidade de inaugurar a esfera de pertença do
outro a si mesmo. Nessa reciprocidade existencial é certo dizer que há a emergência de um
corpo central, polo das vivências e a partir da consecução da ―refletividade‖ analógica
corporal, descubro o outro como polo também.
No entanto, com a evidência da comunidade intersubjetiva abre-se um novo campo
transcendental de averiguação. Num primeiro momento da análise, tendo como foco a
comunidade intermonádica, o eu ainda não se apercebe na condição de homem. Devido à
redução transcendental rigorosamente atribuída a esse eu – condição que colocaria o sujeito
na condição de solus ipse – o ego retém somente sua postura genética em relação ao
conhecimento. No plano da relação intermonádica, temos a alma pura como o eu do
homem concreto. O importante é ter presente a preocupação de Husserl em atestar que, no
final das contas, mesmo tendo o eu esse caráter metodologicamente necessário de pura
relação consigo mesmo, tudo converge para um fundamento da comunidade intersubjetiva.
Esse outro com quem o ego estabelece vínculo intencional possui, aos moldes
transcendentais, uma noção de mundo tal como a do ego primordial. Um mundo que se
configura ―não como uma obra de minha atividade sintética de alguma forma privada, mas
como de um mundo estranho a mim, ―intersubjetivo‖ existente para cada um, acessível a
cada um em seus ―objetos‖ (HUSSERL, 2001, p. 106). No entanto, sendo essa noção de
mundo similar a do ego, restam ainda as noções particulares que atribuem sentido ao ego e
ao outro em coesão às noções particulares e diferentes lançadas nas esferas individuais de
apreensão do mundo. Cada sujeito faz sua experiência particular de ―fenômeno do mundo‖
e diante dessa gama de atos intencionais algum sentido último deve prevalecer no âmbito
da experiência comum. É importante frisar o sentido que Husserl está dando ao conceito
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de comunidade. No entender do filósofo, a fenomenologia está preocupada com o sentido
das relações que possibilitam ao sujeito livrar-se das ―contingências‖ que caracterizam uma
abordagem ôntica acerca do mundo e das comunidades que se formam nesse âmbito. A
preocupação deve ser exclusivamente transcendental. A partir dessa inteligibilidade de
sentido o mundo passa a ser constituído no âmbito eidético, possibilitando uma ontologia.
Referências Bibliográficas:
ALVES, P. Empatia e Ser-para-outrem: Husserl e Sartre perante o problema da intersubjectividade.
Revista Psi: Estudos e Pesquisas em Psicologia – UERJ. Ano 8, nº 2. p. 334-357, 2008.
HUSSERL, E. Méditations Cartésiennes. Trad.G. Peiffer e E. Lévinas, Paris: Vrin, 1996. Trad.
brasileira (Frank de Oliveira): Meditações Cartesianas. São Paulo: Madras, 2001.
PELIZZOLI, M. A relação ao Outro em Husserl e Levinas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1994.
STEIN, Edith. Sobre el problema de la empatía. Traducción de José Luis Caballero Bono.
Madrid: Editorial Trotta, 2004.
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O PAPEL DA OBSERVAÇÃO NA CIÊNCIA
Douglas Antonio Bassani
Professor de Filosofia-UNIOESTE-Toledo
e-mail: [email protected]
Palavras-chave: Experiência. Significado. Operações.
O objetivo desta análise é destacar o papel da experiência nas estruturas teóricas
das ciências naturais. O destaque é em relação à discussão teórica dos elementos
inobserváveis das teorias. Os chamados elementos inobserváveis têm papel discutível entre
os teóricos da ciência, em particular, entre os realistas, que os consideram justificáveis
cientificamente, enquanto os anti-realistas tendem a uma concepção mais prudente de não
aceitação até que algum tipo de experiência física for possível. Além disso, empiristas
modernos acreditam ser uma questão de convenção ou de discussão meramente acadêmica
a aceitação ou não de tais elementos. Nessas oposições situa-se o problema filosófico
abordado aqui, tendo como inspiração o artigo Operacionalismo: confusión entre significado y
medición, em especial, a partir da seguinte citação:
―A física surgiu da conjunção entre especulação e experienciação. Portanto, não devemos
achar estranho que desde sempre houve uma certa tensão entre esses dois aspectos
fundamentais da atividade científica‖ (CAMPOS & JIMÉNEZ & DEL VALLE, 2001, pg
65).
Trarei um exemplo da modernidade para ilustrar. Historicamente, Galileu Galilei
(1564-1642) foi aconselhado pelo Papa Urbano VIII (seu amigo na época) a admitir que
sua concepção astronômica de Universo deveria ser tomada apenas como um instrumento
melhor do que a teoria anterior (a de Copérnico). Isso significava que o papel da teoria era
apenas o de um instrumento de explicação diferente e, talvez, melhor do que o anterior.
Acreditar no papel instrumental da teoria significava não se comprometer com uma
descrição verdadeira do Universo, nem com uma realidade aos objetos não observados
(como seria uma postura do cientista/astrônomo realista), mas em conceber tal teoria
apenas como um instrumento melhor para as previsões. Desta forma, não há um
compromisso com a verdade da teoria, nem com uma suposta realidade aos termos
inobservados. O problema é que Galileu não seguiu os conselhos do Papa e na publicação
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do Diálogos (1632) já aparece sua decisão por defender o heliocentrismo não como uma
descrição apenas melhor do que a anterior, mas sim, como uma descrição verdadeira do
Universo. O comprometimento teórico é muito maior neste último caso, porque aponta
para descrições verdadeiras do Universo e para a existência dos inobserváveis apontados
pela teoria. O anti-realista não acredita em tal comprometimento e, mais do que isso, não o
adere. Isso apenas para citar um caso.
Aderir a uma dessas concepções não significa defendê-la para todo o sempre. Um
exemplo claro é a concepção de Einstein. No início de suas principais publicações aparece
claramente uma concepção anti-realista em filosofia da ciência, porém, revelando seu
realismo mais tarde. Há uma reclamação explícita de um empirista moderno (Percy
Bridgman 1882-1961) de que Einstein teria abandonado a concepção anti-realista adotada
no princípio da relatividade restrita de 1905, por uma concepção realista em 1916 quando
da publicação da teoria da relatividade geral. Na teoria de 1905, Einstein criticou duramente
as concepções de espaço e tempo absolutos da teoria de Newton, por este ter adotado
conceitos que seriam supostamente ―metafísicos‖ longe da possibilidade de experienciação.
Einstein teria exigido a substituição por conceitos que fossem experienciáveis, como
espaço e tempo relativos, ao invés destes conceitos serem concebidos como ―absolutos‖
como aparece em Newton. Já na teoria da relatividade geral há uma tentativa teórica de
forçar os dados empíricos, uma característica do realismo em filosofia da ciência. Essa
tentativa passou pela noção de curvatura espaço-temporal da teoria da relatividade,
publicada e defendida por Einstein em 1916, sem que uma experiência de algum tipo viesse
acompanhada. A demonstração do que estava propondo Einstein na teoria da relatividade
veio apenas mais tarde, em 1919, com a demonstração telescópica num eclipse solar de que
espaço-tempo realmente eram curvos, corroborando a teoria de Einstein. As principais
chapas fotográficas dessa demonstração foram feitas no Brasil, na cidade de Sobral-CE.
A crítica do empirismo moderno de Bridgman revelou não ser tão radical,
considerando que o próprio Bridgman eliminou o excessivo empirismo de sua concepção
para aderir a uma não exigência de que todos os conceitos teóricos devam ter um
correspondente empírico. Assim:
―Inerente aos requerimentos do próprio modelo , parece não ser necessário que todas as
operações matemáticas devam corresponder a processos reconhecíveis no sistema físico.
Também não há nenhuma razão porque todos os símbolos que aparecem nas equações
matemáticas fundamentais devam ter correspondentes físicos, nem razão para excluir a
introdução de quantidades auxiliares puramente matemáticas criadas para facilitar as
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operações matemáticas, se isso for possível. Um bom exemplo é a tensão dentro de um
corpo sólido na teoria da elasticidade. Uma tensão jamais é medida como tal, mas é uma
quantidade puramente construtiva, um composto de seis componentes que podem ser
calculados em constantes elásticas, e isso é útil porque as forças agem através da face livre
do sólido e são diretamente mensuráveis, podendo ser facilmente calculadas‖
(BRIDGMAN, 1980 (1936), p. 66).
Desta forma, o operacionalismo (concepção defendida por Bridgman) se tornou
uma concepção que enfraquece seu empirismo, mas o torna mais aceitável enquanto
concepção filosófica. Quanto a aceitar ou não entidades não observáveis como tendo uma
realidade, Bridgman preferiu o empirismo, admitindo que esta era uma questão
convencional ou acadêmica.
Referências Bibliográficas:
BRIDGMAN, P. W.: The Nature of Physical Theory. Princeton: Princeton University Press,
1936.
___________. Einstein‘s Theories and the Operational Point of View. In Library of Living
Philosophers, v. VII, Evaston, p. 335-354, 1949.
EINSTEIN, A., LORENTZ, H., WEYL, H. & MINKOWSKI, H.: Os Fundamentos da
Teoria da Relatividade Geral. In: O Princípio da Relatividade. Lisboa, Fundação Calouste
Gulbenkian, p. 141-215, (1916) 1978.
CAMPOS, I; JIMÉNEZ, J. L.; DEL VALLE, G.; Operacionalismo: confusión entre
significado y medición. Em: Revista Contactos 42, p. 65-68, 2001.
POPPER, K. R. ―Três pontos de vista sobre o conhecimento humano‖ In: Conjecturas e
Refutações. Tradução de Sérgio Bath. Brasília, Ed. UNB, 1994.
ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia
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O PROBLEMA DA CULTURA NAS CONFERÊNCIAS DE NIETZSCHE:
SOBRE O FUTURO DOS NOSSOS ESTABELECIMENTOS DE ENSINO
Eduardo José Lobo Rodrigues
Unesp/SEED - PR
[email protected]
Márcio Benchimol Barros(orientador)
Palavras-chave: Cultura; Política; Nietzsche.
Trata-se de investigar, a partir das conferências pronunciadas pelo professor
Nietzsche, intituladas Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino, o problema da cultura na
Alemanha do século XIX, enquanto um problema de ordem política. O formato das
conferências estabelece-se como de um diálogo ficcional, ao modelo do diálogo platônico,
mantendo, no entanto, um tom biográfico com vistas a trazer proximidade com os
ouvintes e buscando ter um timbre de romance de formação (Bildungsroman). Neste diálogo,
o jovem Nietzsche e um amigo presenciam a discussão entre um velho filósofo e seu
discípulo travavam acerca da decisão do discípulo de abandonar a carreira de professor e
dedicar-se a solidão. Diante das acusações do mestre, que qualifica a ação de orgulhosa e
presunçosa, o discípulo apresenta um diagnóstico sobre os estabelecimentos de ensino
alemães que procuram dar razão e justificativa a sua decisão. Neste diagnóstico que é a tese
central para o problema da cultura na Alemanha, o discípulo afirma que duas orientações
passam a conformar a cultura e a educação alemã, que se mostrando aparentemente
opostas, elas estão atadas pelos seus efeitos, submetendo os estabelecimentos de ensino. A
primeira é a tendência a extensão, ―à ampliação máxima da cultura‖ e, a segunda, a
tendência a redução, ―ao enfraquecimento da própria cultura‖. Nestas duas orientações que
se apresentam, a cultura passa ―a ser estendida a círculos cada vez mais amplos‖ e, de outro
modo, que ―a cultura abandone as suas ambições mais elevadas, mais nobres, mais
sublimes‖, que se ponha a serviço do Estado, por exemplo. Apresentado o diagnóstico, o
que se coloca de modo imediato em disputa são os princípios de uma cultura forte e
autêntica que reivindica sua herança na antiguidade clássica, e os princípios modernos de
igualdade e utilitarismo. Esta disputa se apresenta em primeiro plano no livro Cinco prefácios
para cinco livros não escritos, de Nietzsche, em particular nos ensaios: ―O Estado grego‖ e ―A
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disputa de Homero‖, em que se percebe na análise de Nietzsche a descrição da formação
do homem grego que, voltado para as determinações do Estado, tinha como finalidade o
desenvolvimento cultural, o surgimento do grande artista e da obra de arte. Sendo que a
partir destes homens superiores e suas necessidades artísticas era criado um sentido para
existência que superava o pessimismo prático da cultura popular. O processo civilizatório
grego mesmo sendo fundado na escravidão tinha ainda como base a criação de sentido para
a existência, ainda que um sentido simbólico. Já a modernidade, com seu horror à
escravidão, procura se fundamentar na ideia de ―dignidade do homem‖, centrada na
―dignidade do trabalho‖ e na defesa da igualdade e liberdade. No entanto, o que os
modernos encobrem é que todo trabalho é indigno, uma vez que é mera luta pela
existência, não havendo sentido para a vida. Se a cultura popular grega via nesta condição
apenas vergonha e expiação, os modernos procuram encobri-la, fazendo a vida mera
conservação pelo trabalho livre que, na verdade, se trata de uma forma mascarada de
escravidão. O partido de Nietzsche pela cultura grega, que é também reivindicada pelo
discípulo do velho filósofo no diálogo, se sustenta não pela retomada do mundo grego e da
escravidão, no entanto, do modelo de uma cultura autêntica, que possa ressurgir pela
possibilidade de confronto entre fundamentos diferentes, entre gregos e modernos e, na
possibilidade de se criar novos paradigmas para a vida. O que se descortina é a ilusão da
cultura moderna de se estabelecer como absoluta e o reconhecimento da historicidade de
toda cultura.
Referências Bibliográficas:
CAVALCANTI, Anna Hartmann. Nietzsche e a História. O que nos faz pensar – Cadernos do
Departamento de Filosofia da PUC – Rio. Rio de Janeiro, nº 1, 29-36, junho de 1989.
___________. Arte da Experimentação: Política, Cultura e Natureza no Primeiro
Nietzsche. In: Trans/Form/Ação. São Paulo, nº 30 (2), 2007, p.115-133.
CHAVES, Ernani. Cultura e política: o jovem Nietzsche e Jakob Burckhardt, cadernos
Nietzsche, São Paulo, 9, p. 41-66, 2000.
KOFMAN, Sarah. Os Conceitos de Cultura nas Extemporâneas ou a dupla dissimulação.
Nietzsche Hoje. São Paulo: Brasiliense, 1986.
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50
NIETZSCHE, Friedrich. Œuvres T. 1; La Naissance de La Tragédie. Considérations inactuelles.
Trad. de L‘allemanda pra Philippe Lacoue-Labathe. Édition de Giorgio Colli, Mazzino
Montinari. Éditions Gallimard, 2000.
__________________. Cinco prefácios para cinco livros não escritos. Trad. de Pedro Süssekind.
Rio de Janeiro: Editora 7 Letras, 2005.
__________________. Escritos sobre Educação. Tradução, apresentação e notas de Noéli
Correia de Melo Sobrinho. Rio de Janeiro: editora PUC – Rio. São Paulo: Edições Loyola,
2003.
__________________. Obras incompletas. Coleção ―Os Pensadores‖. Tradução de Rubens
Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1974.
__________________. Segunda Consideração Intempestiva – Da utilidade e desvantagem da história
para a vida. Tradução Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.
SAFRANSKI, Rüdiger. Nietzsche – Biografia de uma tragédia. Trad. de Lya Luft. São Paulo:
Geração Editorial, 2001.
WEBER, J. Fernandes. Formação (Bildung), educação e experimentação em Nietzsche. Londrina:
Eduel, 2011.
__________________. Autoridade, singularidade e criação: sobre o problema da
Formação (Bildung) em Sobre o Futura dos Nossos Estabelecimentos de Ensino, de Nietzsche. Educ.
Soc. , Campinas, vol. 29, nº 103, p. 515-532, maio/ago. 2008.
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A RESPONSABILIDADE DO CIENTISTA
Erickson dos Santos
UNESPAR/FAFIUV
[email protected]
Palavras-chave: Ciência, cientista, autonomia, neutralidade, imparcialidade,
responsabilidade, ética normativa.
RESUMO: O ato de pesquisar cientificamente é uma tarefa extremamente específica nos
dias atuais e, por essa razão, merece uma descrição mais detalhada do que são a ciência e o
cientista. A atividade científica estabelece uma agenda capaz de comprometer-se com a
qualidade de vida das pessoas atualmente. O debate sobre o lugar social que cabe à ciência
deve ser um tema que se conecta com a responsabilidade do cientista e a sua pesquisa. Este
trabalho terá, portanto, a perspectiva de aplicar uma ética normativa ao ambiente científico
com a discussão dos valores na atividade da ciência.
A ciência nos dias atuais é composta por um conjunto de várias áreas do
conhecimento humano. Esse fato se apresenta como significativo para a diversidade de
disciplinas que compõem a formação do cientista e o que se denomina, costumeiramente,
por ciência. Além de ser um tipo de conhecimento praticado por pessoas altamente
especializadas, cada uma com seu método bastante específico de investigação, também tem
implicações para com outras atividades usuais da sociedade, ou seja, a ciência é percebida
em vários âmbitos sociais. Ela detém um status altamente relevante na tomada de decisões
do desenvolvimento social de um país.
Atualmente a agenda científica de um país compromete-se com o que se pode
chamar de desenvolvimento da ciência pura e suas aplicações, que resultam em conquistas
tecnológicas. A primeira busca uma prática científica que visa ao progresso de si mesma, do
corpo teórico que ela sustenta por meio de valores racionais, experimentais, lógicos etc. Por
outro lado, as aplicações buscam consequências nas diversas perspectivas tecnológicas, em
geral, que se encontram no âmbito de políticas públicas. Tem-se em vista a expectativa de
alguma compensação para a sociedade que à ciência cabe responder e, por isso, procura-se
oferecer aplicações dos resultados científicos em vários setores sociais que, por sua vez,
apresentam uma forte demanda por tecnologias.
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A relação existente entre o que um cientista produz e o que retorna para a
sociedade como aplicação se apresenta sob alguns aspectos positivos e, muitas vezes,
negativos. Os benefícios trazem elogios que se apresentam como a face positiva da
evolução do pensamento científico; muitas vezes se acredita que é a solução para diversos
males das sociedades contemporâneas; que muitos problemas poderão ser resolvidos com
o uso de novas tecnologias, facilitadoras do mundo mecanizado e informatizado. Trata-se
de um sonho humano de dominar a técnica. Porém, há consequências que podem ser
descritas como nefastas nessa trajetória de domínio da natureza pelo conhecimento
produzido cientificamente.
É preciso, para o propósito do trabalho aqui apresentado, estabelecer que as
seguintes questões precisam ser esclarecidas: o que é ciência? Quem são os cientistas? Qual
o propósito de se fazer ciência? Quais os limites das investigações e aplicações científicas?
Os fundamentos da ciência devem ser preservados como um corpo de
conhecimento racional e bem construído na análise aqui apresentada. Porém, cabe uma
discussão sobre a ética da atuação científica e, como pode ser feita a relação entre a ciência
e a sociedade, dentro da perspectiva que a racionalidade produz na interação social. Além
disso, pode-se estabelecer, se possível, algumas diretrizes que possibilitem maior
compreensão do alcance da razão científica. Algo que o senso comum não tem com clareza
porque se trata de um conhecimento restrito ao meio acadêmico. Os grupos de cientistas,
cada um em seu campo de ação, são os maiores responsáveis por construir uma
terminologia, geralmente, impenetrável ao público leigo. Isso torna a questão da avaliação
da responsabilidade da pesquisa circunscrita ao seleto grupo capaz de dominar uma
literatura bastante específica.
Assim, discutir os temas relativos à ciência reúne o peso da influência sociocultural
que a atividade científica carrega consigo. Todas as áreas do conhecimento concebidas
como ciências, quais sejam elas, humanas, biológicas ou exatas conferem aos seus
praticantes, os cientistas, a confiança de que são indivíduos preparados para desempenhar
suas funções que, comumente, são acadêmicas e, portanto, de pesquisa concebida em
universidades, institutos etc. Por sua vez os laboratórios apresentam uma limitação de
espaço de interação com a sociedade. Os pesquisadores fazem parte do grupo considerado
como representantes de cada atividade denominada como ciência, o que implica na
formação de uma comunidade de pessoas com autoridade para dirigirem seus interesses de
pesquisa com certa autonomia.
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Essa liberdade de atuação produz uma situação inusitada. Se por um lado os
cientistas precisam de livre acesso para tomar decisões sobre suas pesquisas, por outro eles
dependem fortemente de condições de pesquisa que são institucionais; bolsas de fomento,
orçamentos de laboratórios etc. A questão institucional indica como a relação econômica
que, diante do apelo de critérios de escolha apresentados por pessoas que estão em cargos
institucionais, decide pelos rumos que as pesquisas devem tomar. Não é difícil de verificar
que muitos dos temas de pesquisa estão ligados aos interesses econômicos de alguma
instituição, pública ou privada. Isso caracteriza pouca autonomia de trabalho oferecido aos
cientistas; por sua vez implica em pouca capacidade escolha dos pesquisadores.
Outro aspecto bastante importante é a questão ética que envolve o trabalho do
cientista. Trata-se de um prolongamento das questões de autonomia, imparcialidade e
neutralidade. No âmbito ético as questões que percorrem a comunidade científica são
bastante complexas. Alguns indivíduos na sociedade podem receber certo benefício pelo
progresso de uma determinada área tecnológica, que acontecerá somente com o
investimento financeiro para tal linha de pesquisa. Outros podem sofrer prejuízos por
causa da competição criada pelos resultados apresentados da mesma pesquisa.
A autonomia é um dos pontos mais caros aos cientistas. A defesa dela está
fundamentada na liberdade de pensar que, é claro, pode ser garantida, mas não a livre
iniciativa de aplicar os resultados da pesquisa. Eles prezam pela autonomia sem
aprofundarem a temática que ela envolve.
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NIETZSCHE: A DOUTRINA DA VONTADE DE POTÊNCIA
Estevão Bocalon
UNIOESTE/Fundação Araucária
[email protected]
Wilson A. Frezzatti Jr.
Palavras-chave: Nietzsche. Espírito Livre. Vontade de Potência.
Uma das noções mais profundas e discutidas em Nietzsche é a vontade de
potência. A discussão sobre esta noção se faz necessária para entendermos uma
personagem importante no pensamento nietzschiano: o espírito livre. A vontade de
potência é a busca incessante pelo essencial em todo ―querer‖. Em outras palavras, para o
pensador todo querer é querer algo e, essencialmente, esse algo é ―mais potência‖.
Em Além do bem e do mal, o filósofo alemão traça as características principais da
vontade de potência, criticando os fisiologistas ainda ligados à metafísica. A fisiologia
nietzschiana entende os organismos como uma configuração de impulsos, na qual há uma
luta por mais potência. A autoconservação não é impulso cardinal de toda criatura viva, ela
é mera consequência da vontade de potência: a busca sempre por mais, esta sim essencial à
luta de impulsos por mais potência. Este pensamento expande a ação do homem frente ao
mundo, pois reconhece que ele está imerso no fluxo contínuo de mudança (vir-a-ser) do
próprio mundo.
O homem se dá, portanto, nessa relação com o mundo que é a vontade de
potência: para poder crescer deve-se dominar os impulsos adversários. Essa relação de
dominação remete-se sempre a um vir-a-ser, portanto, não se refere a nada fixo. A luta
entre impulsos sempre por mais potência é o próprio movimento do mundo e da
existência. Assim, o homem é resultado dessa luta de impulsos, um caso particular na
multiplicidade. A noção de vontade de potência compreende não só ―resistência‖ entre o
impulso dominante e o dominado, não se trata apenas de ―conservação‖, ela se dá sempre
pela busca por mais potência. Essa luta não cessa, a relação básica é a de dominação:
Vontade de potência não é um caso especial do querer. Uma vontade ―em si‖ ou ―como
tal‖ é uma pura abstração: ela não existe factualmente. Todo querer é, segundo Nietzsche,
querer algo. Esse algo-posto, essencial em todo querer é: potência. Vontade de potência
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procura dominar e alargar incessantemente seu âmbito de potência. Alargamento de
potência se perfaz em processos de dominação. Por isso querer-poder (Macht-Wollen) não
é apenas ―‗desejar‘, aspirar, exigir‖ (MULLER-LAUTTER, 1997, p. 54. Tradução
modificada).
Essa relação de dominante-dominado é equivalente a comando-obediência, o
dominante cresce a expensas do dominado. A partir disso, a noção de realidade entra em
cena: o mundo é uma efetividade (Wirklichkeit, do verbo wirken, fazer-efeito). Pois, como a
vontade de potência constitui sempre uma relação de luta de impulsos, é dessa mesma
forma que a realidade se manifesta, como movimento, transformação contínua. Com isso,
entende-se o mundo e o homem enquanto vontade de potência, e nada mais. Embora essa
doutrina trate da constituição do mundo, ela não deve ser tomada apressadamente como
metafísica. O que de fato ocorre aqui é a própria desconstrução da metafísica, já que rejeita
os valores absolutos e dualistas que nela estão contidos.
A noção de espírito livre não é novidade no último período de produção de
Nietzsche, ela passou por aprimoramentos para, assim, tornar-se o espírito capaz de
encarar o mundo a partir da doutrina da vontade de potência. O que antes possuía a
postura antidogmática, de caráter científico, agora é capaz de conceber a transformação
contínua do mundo, sua efetividade, a partir de um caráter agonístico universal, uma
postura bem mais abrangente para o antidogmatismo. O pensador contrapõe o espírito
livre aos homens da ciência, que, com sua vontade de verdade, simplificam o mundo. Aqui
o espírito livre leva a vantagem, pois leva em conta tanto a vontade de saber como a
vontade de não-saber, não como opostas, mas sim como expressões de um só processo
(vontade de potência). O espírito livre, com esta nova característica, assume os riscos de
conceber um mundo imoralmente, no sentido de não possuir valores de verdade, ou
falsidade: embora a arraigada tartufice da moral, que agora pertence de modo insuperável a
―nossa carne e nosso sangue‖, chegue a nos distorcer as palavras na boca, a nós, homens
do saber: de quando em quando nos apercebemos, e rimos, de como justamente a melhor
ciência procura nos prender do melhor modo a esse mundo simplificado, completamente
artificial, fabricado, falsificado, e de como, involuntariamente ou não, ela ama o erro,
porque, viva, ama a vida. (NIETZSCHE, 1992, p.31).
O espírito livre é um prelúdio para uma filosofia do futuro, na qual o
reconhecimento das verdades seria tão importante quanto o das inverdades, ou nãoverdades. Ele se tornará o ―homem do saber‖, com o fortalecimento do espírito, oriundo
do reconhecimento da efetividade do mundo, e da doutrina da vontade de potência. Mas
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este saber, apesar de aparentar uma concepção metafísica, não pode ser considerado,
segundo o filósofo, enquanto tal: a vontade de potência é unidade enquanto multiplicidade,
deve ser entendida imersa em uma totalidade caótica, sempre mutável, como movimento
contínuo. Portanto, o ente não é fixo, é um processo. O espírito livre é capaz de
desconstruir a metafísica, nesse sentido:
O mundo de que fala Nietzsche revela-se como um jogo e contrajogo de forças ou de
vontades de potência. Se ponderarmos, de início, que essas aglomerações de quanta de
poder ininterruptamente aumentam e diminuem, então só se pode falar de unidades
continuamente mutáveis, não, porém, da unidade. Unidade é sempre apenas organização,
sob a ascendência, a curto prazo, de vontades de potência dominantes. (MULLERLAUTTER, 1997, p. 75. Tradução modificada)
O divisor de águas que esta noção representa nos mostra que o pensamento de
Nietzsche é inevitavelmente parte ativa na história da metafísica. Com isso, o pensador traz
uma desconstrução útil ao saber como um todo, de acordo com seu próprio pensamento, e
de acordo com a figura do espírito livre.
Referências Bibliográficas:
NIETZSCHE, F. W. Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
MULLER-LAUTER, W. A Doutrina da vontade de poder. São Paulo: Annablume, 1997.
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A PSICOFISIOLOGIA NA EDUCAÇÃO EM NIETZSCHE
Felipe José Schmidt
UNIOESTE
[email protected]
Palavras-chave: Psicofisiologia. Educação. Transvaloração.
Consiste em uma investigação acerca da produção do pensamento e do conteúdo
mental deste, ambos constituídos a partir da realidade fisiológica em Nietzsche. De modo
mais específico, discutir-se-á a elaboração da consciência como efeito do modo de vida e de
existência que estes podem sugerir, bem como, por conseguinte, pretende-se esclarecer a
meta da Erziehung (educação) nietzschiana que tem em vista a criação do exemplar
individual superior. Para isso, explicitar-se-á em que sentido Nietzsche compreende o
processo contínuo da construção de si por meio da vontade de poder, assim como
tematizar-se-á em que medida a Erziehung produz grandes homens e causam os tipos mais
elevados. Desse modo, enfim, buscar-se-á mostrar como tal compreensão permite ao
filósofo elaborar uma concepção psicofisiológica na qual a vontade de potência seja capaz
de produzir impulsos bem hierarquizados gerando no intelecto e seus conteúdos.
A reflexão sobre educar a si próprio, isto é, sobre o crescimento de potência é a
mensagem de Nietzsche/Zaratustra, o diagnóstico, crítica e superação deste processo,
encontram-se no âmago do filósofo do martelo. Um capítulo especial na educação
nietzschiana é a formação do verdadeiro filósofo, que não se preocupa com a ―verdade‖,
como queria Kant e Hegel, mas sim com a criação de valores. Neste sentido, toda temática
desenvolvida pelo filósofo acerca dessa questão norteia-se mediante um eixo comum de
discussão: a ótica da vida.
Deve-se lembrar da dinâmica da fisiologia nietzschiana, uma luta de impulso por
mais potência. Nietzsche coloca a ideia de vontade de potência afirmando que o corpo e
suas funções devem ser entendidos em termos de obediência e domínio, não havendo
causalidade ou mecanismo. Após a longa luta com condições desfavoráveis suscitadas pelo
devir, o filósofo alemão afirma que um tipo se fixa, independente do acaso, mas por meio
da educação. Uma educação que produz interpretações partindo do indivíduo como
referencial.
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Enfrentando-se o niilismo que constitui a lógica da decadência que irrompe
mediante um ―necessário‖, lento e insuspeitado processo de desvalorização dos valores,
Nietzsche faz uma crítica à educação, afirma que a humanidade sempre pôs ênfase naquilo
que não era importante para a educação, na verdade, ao desprezar a vida, valorizou aquilo
que a negava e desvalorizou o que incrementava. Devemos para o filósofo evitar a
degeneração, o que o fez assumir, em seus escritos, uma tarefa: estimular a humanidade a
tomar decisões que determinam todo o futuro em uma ação direta da cultura e da educação
sobre o que o homem pode tornar-se.
A crítica nietzschiana dos códigos e do pensamento moral se apóia, portanto,
numa recusa ao dualismo e ao recurso à transcendência. A pluralidade das forças deixa
margem a uma interpretação monista. Para Nietzsche, existem infinitas possibilidades de
interpretação do mundo, e cada uma delas seria por si mesma, um símbolo da ascendência
ou de decadência.
A primeira acepção, entendida como dualista pode ser esclarecida mediante a
análise genealógica empreendida pelo filósofo e a segunda, monista dialético, entendida
mediante a análise da crítica ao idealismo, da qual suscita a grande chave para o
entendimento da homologia daquilo que entende por fisiológico e psicológico. É em
relação a esta última acepção que nossa problemática se desenvolve.
Mediante estes questionamentos e de uma leitura pertinente, a presente proposta
buscará investigar a concepção nietzschiana acerca da construção do psicológico capaz de
adentrar em suas próprias profundezas corporais e physicas, retraduzindo o homem na
natureza para torná-lo senhor do perspectivismo interpretativo e surdo às lisonjas de todos
os pássaros metafísicos. Investigar-se-á também a questão acerca do pensamento como um
princípio imaterial que é a força.
Referências Bibliográficas:
FINK, E. A Filosofia de Nietzsche. Lisboa: Editora Presença, 1988.
FREZZATTI, Wilson Antônio. Educação e cultura em Nietzsche: o duro caminho para
―tornar-se o que se é‖. In Nietzsche: Filosofia e educação. Ijuí: Unijuí, 2008, p. 39-66.
KAUFMANN, W. Nietzsche Philosopher, Psychologist, Antichrist. New Jersey: Princeton
University Press, 1974.
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59
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A Vontade de Poder. Trad. Marcos Sinésio Pereira
Fernandes e Francisco José Dias Moraes. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
___________. Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007.
___________. Assim falou Zaratustra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
___________. Genealogia da Moral. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009.
RIBEIRO, Mário Sérgio. Vida e Liberdade: a psicofisiologia de Nietzsche. Londrina: UEL, 1999.
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60
A DÚVIDA COMO BUSCA DA VERDADE
Felipe Ricardo Deuter Becker
UNIOESTE/Bolsista PET
[email protected]
Palavras-chave: Dúvida, Método, res cogitans.
É
inegável
a
influência
cartesiana
no
decorrer
da
modernidade
e
contemporaneidade. Sendo um dos aspectos mais debatidos e discorridos, a dúvida como
método para uma investigação acerca do indubitável. Tal método levado ao seu radicalismo
extremo, onde tudo o que realmente não traz uma certeza indubitável ou apresenta motivo
para duvidar é rejeitado como possibilidade de um conhecimento seguro para as ciências.
Este método leva a uma questão de cunho crucial para a compreensão da obra cartesiana:
Qual o papel da dúvida como meio de acesso a verdade, se ela por si não é capaz de fundar
nenhuma verdade? Assim temos como objetivo trazer uma discussão que remete tanto ao
método da dúvida como as regras do método cartesiano, - Regras essas citadas no inicio
das meditações, onde fica claro o norte que Descartes toma para a busca do indubitável.
Tal compreensão é necessária tanto para a continuidade da leitura da meditação
proposta pelo filósofo, como para a fundamentação da própria compreensão do que esta
sendo duvidado, pois, assim que a dúvida começa a exercer seu papel dentro da meditação,
começa a necessidade da compreensão da relação que esta provoca, em primeiro, pela
dúvida e o duvidado, mas também pela formulação do que é realmente indubitável, assim,
chegando a uma verdade reconhecendo ela como tal. Assim, cabe a busca da resposta para
a questão que fora proposta no inicio da meditação, qual o fundamento realmente seguro
para as ciências? Para tal fundamentação Descartes estabelece uma hierarquia entre as
ciências, e o fundamento desta é a metafísica. Esta afirmação leva assim a busca do
fundamento.
Diante das dificuldades de um ponto de partida, mas com um ponto de chegada
já pretendido, sendo eles: Ou o da afirmação de que não a verdade alguma ou o encontro
com o indubitável, encontrando assim uma verdade ou mais. Instaura-se a questão por
onde começar a duvidar. Um dos aspectos que estão postos como pano de fundo e que é
fundamental para entender o principio do método, o ataque aos sentidos. É a crítica feita
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por Descartes ao aristotelismo de sua época, onde a base do conhecimento aristotélico é os
sentidos, o primeiro a ser atacado pela dúvida, demonstrando assim a fragilidade do
conhecimento adquirido por estes, mas não apenas isso, os sentidos agora junto com os
prejuízos causados por eles, começam a dar espaço a razão.
Dentro da questão, entra um ponto de suma importância, a normatização da
dúvida ou melhor, quais as regras que esta deve seguir até a indubitabilidade. Surgem então
as regras, estas agem como um complemento ou norteador da dúvida, pois não basta
duvidar é necessário estabelecer o que é realmente seguro e para isso, surgem as diretrizes
básicas necessárias para se constatar a verdade, caso o método da dúvida encontre algum
limite.
Diante deste inicio, que se pauta na busca da verdade e que já obteve o seu
primeiro ponto, surge então a retomada da relação, a normatização da dúvida agora se
torna necessária mais do que nunca. Pois já esta posto o que é primeiro no caminho a ser
percorrido, e os instrumentos para a busca do indubitável - Dúvida como método,
duvidado e regras já estabelecidas para o que é o indubitável. Neste inicio onde ocorre cada
vez mais uma redução dos itens a serem duvidados, levando cada vez mais a dúvida ao
limite. Embora cada passo da dúvida sempre deixe algo fora de seu alcance, mas
principalmente a cada novo grau da dúvida surge a necessidade de uma mais forte, até
chegar a seu limite intitulado Deus enganador. A dúvida, em todo seu trajeto se torna um
meio de acesso ao indubitável a res cogitans, esta a primeira verdade encontrada na
meditação. Deste modo a dúvida é apenas um instrumento utilizado por Descartes, para a
fundamentação que este procurava, uma verdade indubitável.
Referências Bibliográficas:
DESCARTES, René. Descartes obras escolhidas. São Paulo: Perspectiva, 2010.
FORLIN, Eneias. A teoria cartesiana da verdade. São Paulo: Associação Editorial
Humanitas / Editora da Unijuí, 2005.
FORLIN, Eneias. O papel da dúvida metódica no processo de constituição do cogito. São Paulo:
Humanitas, 2004.
GOMBAY, André. Descartes. Porto Alegre: Artmed, 2009.
LANDIM FILHO, Raul Ferreira. Evidência e verdade no sistema cartesiano. São Paulo: Loyola,
1992.
ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia
62
SCRIBANO, Emanuele. Guia para leitura das Meditações metafísicas de Descartes. São Paulo:
Loyola, 2007.
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LIBERDADE POLÍTICA EM “O PRÍNCIPE” DE NICOLAU MAQUIAVEL
Gabriel Allan Drehmer Gonçalves
Fundação Araucária
[email protected]
José Luiz Ames
Palavras-chave: Conflito; Liberdade; Monarquia.
Diferente dos clássicos, onde o conflito é a ausência, ou corrupção da vida
política, para Maquiavel é justamente no conflito enquanto movimento interno que faz do
Estado algo vivo e autônomo. Em outras palavras, para Maquiavel o ideal político não é
mais fundamentado em uma metafísica ou teologia, mas sim no mundo fatual, no jogo
político.
Assim, para argumentar sua concepção política como inerente ao Estado,
Maquiavel coloca no centro do jogo político a dicotomia de humores, o povo e os grandes,
cada qual tendo um fim conflitante com o seu oposto, não sendo mais esse fim um bem
comum, fundado na natureza do homem enquanto animal político e/ou social.
Em Maquiavel a ordem de fins é dissimétrica, heterogênea. O conflito não está à
parte da relação política, mas é o que legitima a mesma, a política nunca atinge um fim
ideal, uma harmonia perfeita, porém está sempre em manutenção, sendo constantemente
autolegitimada, de acordo com o movimento interno em relação ao jogo de humores.
O conflito, enquanto tal, enquanto liberdade política, permanece sem resolução
conclusiva. Cabe ao príncipe regulá-lo, não neutralizá-lo, pois tal seria a morte da vida
pública como pensa Maquiavel. O conflito deve ser regulado não em vista de um fim ideal,
mas sim, a manter o estado das coisas. Assim, uma vez que é tarefa do príncipe regular os
humores no Estado ele estará sempre no campo do contingente, daquilo que não se deixa
prever. Cabe ao príncipe de virtù antecipar-se à fortuna, não prever seus efeitos e, além
disso, usando-a a seu favor.
Como diz Lefort 1972, p.11:
―Ao afirmar a permanência do conflito, ao rejeitar a ideia de que uma forma política carrega
em
si
estabilidade,
o pensador reconhece
a
permanência
dos acidentes e,
consequentemente, designa a função do príncipe como a de um sujeito que conquista a
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verdade num movimento continuado de racionalização da experiência. Ao mesmo tempo
se arroga o direito de conceber as relações de força em sua generalidade, ensina que estas se
instituem sempre pelas operações empíricas de agentes colocados em condições
contingentes. Ao mesmo tempo em que extrai de toda situação os termos de um problema
e nos torna sensível à exigência de um método, mostra que os dados deste problema não
deixam de mudar e que a solução jamais é fornecida antecipadamente‖.
Assim, em relação ao conflito, o príncipe de virtù deve ser capaz de regulá-lo para
que se mantenha deste modo a vida política, dando vazão institucional para que ocorra a
manutenção necessária para assegurar-se a liberdade política na relação entre os humores e
seus fins. O príncipe deve usar a força ou os favores, dependendo de sua forma de
governo. Ao conflito interno só resta essa opção uma vez que não deve ser neutralizado,
mas somente regulado.
A pergunta que se coloca a seguir é a de que, como, em um principado tem-se tal
regulação institucional entre os humores para que se conserve a vitalidade do Estado?
Para tratar de tal tema, mesmo que de modo superficial, comecemos pela questão
da fundação.
Para Maquiavel, diferente dos medievais, a fundação do Estado não é algo natural,
precisando somente de um impulso por parte de um agente legislador para que as partes
sejam um só corpo buscando um só fim comum à harmonia, mas sim por uma coesão das
partes que tem interesses diferentes. O ato fundador sempre pressupõe um ato de
violência, mas esta por si só não mantém o poder. Manter o poder é necessitar de algo que
vem depois do ato fundador. Para isso o legislador deve instituir uma ordem que, coagindo
as partes, as unifique em grupos sociais dentro de um Estado consolidado. É a necessidade
de o príncipe dar vazão institucional aos humores que compõem a cidade.
Essa ação por parte do príncipe deve sempre renovar-se. Em Maquiavel o ato, ou
ação política, é o legitimar-se enquanto tal constantemente. A manutenção do estado, do
conflito de humores por parte do governante, é ele mesmo, sua própria legitimação
enquanto ato de governo.
Assim, manter o estado é legitimá-lo constantemente pela ação do príncipe acerca
do conflito inerente a vida política. O estado é refundação contínua. A legitimidade não se
dá mais em um finalismo moral ou divino, nem em vista de um único bem visado por
todos os cidadãos, mas sim a ação política consequente da relação entre os humores.
Deste modo, ação é legitimação, ação é poder manter-se enquanto tal sabendo
usar de força coerciva e modos de governo. Do mesmo modo que a ação deve ser
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continuamente revivida o conflito não pode, ou não deve, ser neutralizado pois é
justamente aí que se dá a liberdade na vida política segundo Maquiavel.
Referências Bibliográficas:
ADVERSE, Helton. O olho o juízo e o inganno: a produção da imagem. In: ADVERSE,
Helton. Maquiavel: política e retórica. 1ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009, p.33-115.
CASSIRER, Ernst. La nuevaciencia política de Maquiavelo: La leyenda de Maquiavel, El
triunfo Del maquiavelismo, Consecuencias de La nueva teoria del Estado. In: CASSIRER,
Ernst. El Mito del Estado. Tradução de Eduardo Nicol. 7ed. México: Fondo de Cultura
Económica, 1992, p.138-166.
CHABOD, Federico. Post res perditas. Lo que queda de El príncipe. In: CHABOD,
Federico. Escritos sobre Maquiavelo. Tradução de Rodrigo Ruza. 2ed. México: Fondo de
Cultura Económica, 1994, p.91-115.
LEFORT, Claude. Le travail de l‟oeuvre Machiavel. Tradução para uso didático de José Luiz
Ames. Paris: Gallimard, 1972.
MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe e escritos políticos. Tradução de Lívio Xavier. 5ed. São
Paulo: Nova Cultural, 1991.
POCOCK, John GrevilleAgard. La restauración de losMédicis. In: POCOCK, John
GrevilleAgard. El momento maquiavélico: El pensamiento político florentino y La tradición
republicana atlántica. 2ed. Madrid: Editora Tecnos, 2008, p.245-270.
SKINNER, Quentin. Os fundamentos da política moderna. 1ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996.
ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia
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A LIBERDADE COMO INDEPENDÊNCIA DE DETERMINAÇÕES
SENSÍVEIS EM KANT
Jaime José Rauber
Doutor em Filosofia
Professor e pesquisador da PUCPR - Campus de Toledo.
[email protected]
Palavras-chave: Kant. Liberdade. Filosofia moral.
O objetivo desta comunicação consiste em mostrar que o conceito de liberdade é
um conceito-chave da filosofia moral de Kant e que ser livre consiste em agir com absoluta
independência de toda e qualquer influência sensível. O fundamento do conceito de
liberdade na filosofia moral de Kant não se encontra nas obras dedicadas à filosofia prática,
mas, antes disso, em sua filosofia teórica, mais especificamente na Crítica da Razão Pura.
Nessa obra, Kant não tem como objetivo central a discussão do problema da liberdade.
Não obstante isso, a investigação apurada para avaliar o que é possível à razão pura
conhecer de maneira absolutamente a priori faz com que o problema da liberdade
inevitavelmente apareça no âmbito da investigação acerca dos princípios e limites da razão
pura especulativa. Mostrar-se-á que o conceito de liberdade não é algo que pode ser
conhecido pela razão pura especulativa. Contudo, trata-se de uma ideia necessária da razão
sem a qual não se poderia compreender o homem como um ser dotado de livre arbítrio,
mas como um ser plenamente determinado segundo as leis da causalidade natural.
De acordo com o pensamento de Kant, o homem é sujeito de dois mundos: por
um lado, é afetado por inclinações sensíveis, podendo inclusive orientar seu agir por essa
influência, e assim pertence ao mundo dos fenômenos; por outro, também pode guiar-se
pelas leis da causalidade inteligível e, como tal, pertence ao mundo inteligível. Enquanto
membro do mundo dos fenômenos, o homem segue as leis da causalidade natural e,
portanto, é determinado, não livre, pois não é a razão prática pura que determina para si
como deve agir, mas segue as determinações das inclinações sensíveis, que se encontram
em conformidade com as leis da causalidade natural. Quando, porém, o homem determina
para si mesmo a sua vontade seguindo unicamente as determinações da razão prática pura,
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isto é, seguindo as leis da causalidade inteligível, ele é membro do mundo inteligível e,
como tal, é efetivamente livre.
Segundo Kant, não há dúvidas sobre a existência de apenas duas espécies de
causalidade em relação ao que acontece, quais sejam a causalidade segundo a natureza e a
causalidade pela liberdade (cf. CRP, B 560; trad. port. p. 462.). A causalidade pela liberdade é
uma faculdade capaz de iniciar por si só um estado de coisas sem que esteja subordinada a
outra causa que a determine na ordem tempo (cf. CRP, B 561; trad. port. p. 463). Sob esse
aspecto, a liberdade é ―uma ideia transcendental pura que, em primeiro lugar, nada contém
extraído da experiência e cujo objeto, em segundo lugar, não pode ser dado de maneira
determinada em nenhuma experiência‖ (CRP, B 561; trad. port. p. 463). Visto que na
ordem dos fenômenos tudo tem uma causa, através do conceito de liberdade explica-se a
existência de uma ordem causal não atrelada ao mundo natural (fenomênico) e que,
portanto, pode iniciar uma série nova de causas não subordinada às leis da natureza.
A liberdade transcendental é compreendida, em Kant, como uma ideia necessária
da razão pura, pois, considerado apenas o entendimento (razão especulativa), tudo no
mundo se seguiria dependente unicamente da causalidade segundo a natureza e, assim,
todos os acontecimentos seriam determinados por outros segundo leis absolutamente
necessárias (cf. CRP, B 562; trad. port. p. 463). Como consequência, o arbítrio humano
(vontade) também seria determinado somente segundo a causalidade da natureza, e não
haveria a possibilidade de ações humanas livres. Se não fosse possível admitir a causalidade
pela liberdade, não haveria um domínio próprio para a liberdade prática (moralidade), pois
cada ação humana seria sempre apenas conforme à causalidade natural.
A determinação das ações por causas inteligíveis faz com que o sujeito
agente seja capaz de determinar a sua própria vontade segundo as leis da liberdade. Em tal
situação, a razão prática pura determina a vontade e, consequentemente, inicia uma ação
sem que essa tenha uma causa anterior, como é o caso da série pertencente à causalidade
natural. Sem a causalidade inteligível, todos os eventos do mundo natural seriam regidos e
determinados plenamente de modo mecânico-causal e não haveria espaço algum para se
falar de liberdade nem de responsabilidade moral. Pelo fato de o sujeito agente ser capaz de
determinar sua ação a partir da razão prática pura, ele se torna pertencente ao mundo
inteligível (noumeno) e suas escolhas são determinadas com absoluta independência de
qualquer influência sensível. Sem a liberdade, todas as ações do homem se compreenderiam
sob o domínio do arbitrium brutum, segundo o qual todas as ações são patologicamente
necessitadas, isto é, determinadas sempre por impulsos sensíveis (cf. CRP, B 562; trad.
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port. p. 463). Nesse sentido, mostrar-se-á que a liberdade consiste em agir, não segundo as
leis da causalidade natural, mas segundo as leis da causalidade inteligível com absoluta
independência de toda e qualquer influência sensível, o que constitui a base de toda a
filosofia prática de Kant.
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CONCEPÇÃO DE MUNDO E LINGUAGEM EM GRAMSCI
Jarbas Mauricio Gomes
PPGE-UFSCar/CNPq
[email protected]
Palavras-chave: Filosofia. Linguagem. Gramsci. Cadernos do Cárcere.
O presente texto tem como tema o pensamento do italiano Antonio Gramsci
(1891-1937) e se dedica a explorar as notas dos Cadernos do Cárcere (QC) com o objetivo
de analisar a relação entre linguagem e concepção de mundo. Busca-se determinar se essa
aproximação entre linguagem e concepção de mundo permite afirmar a presença de uma
Filosofia da Linguagem nos QC. Gramsci defendia que a filosofia é a própria linguagem e
que esta era um fator determinante no processo de superação do senso comum e da
concepção de mundo hegemônica no início do século XX.
O problema da linguagem apresentado por Gramsci nos QC dizia respeito à
influência da concepção religiosa de mundo sobre a formação cultural dos italianos
(BOOTHMAN, 2009), em especial dos grupos subalternos onde o predomínio de dialetos
era um empecilho à apropriação e ao exercício da crítica filosófica (FROSINI, 2009). A
aproximação entre os conceitos de linguagem e concepção de mundo se consolida na
medida em que Gramsci considerava que a linguagem era o instrumento de apropriação e
exercício da filosofia (SCHIRRU, 2009).
Gramsci indagava se era preferível participar de modo inconsciente de uma
concepção de mundo imposta ou era preferível elaborar a própria concepção de mundo de
modo consciente e crítico (QC 8, § 204). Gramsci apresentou a filosofia como a crítica da
religião e do senso comum, isto é, à uma concepção de mundo determinada (FROSINI,
2009). Considerando que todo homem participa de uma concepção de mundo seja por
meio do senso comum ou da religião, apontou a relação entre religião, senso comum e
filosofia, afirmando que não existia um único senso comum, dado que este, produto do
devir histórico, é uma desagregação da própria concepção religiosa de mundo, manifesta no
domínio e o uso que o sujeito faz da linguagem (QC 8, § 204).
A questão da linguagem, presente nos QC, é decorrente de um problema prático,
a unificação do Estado italiano operada durante o século XIX em um movimento político
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que ficou conhecido historicamente como Risorgimento. Gramsci entendia que a unificação
política da Itália não era suficiente para dar uma identidade ao povo italiano que não
possuía uma cultura homogênea. A linguagem se apresentava como principal elemento
desagregador da cultura, um problema a ser superado.
Nos QC Gramsci fez a distinção entre os conceitos de língua e linguagem. Ele
concebia a língua como o modo de falar e se expressar de um determinado grupo social.
Isto é, Gramsci considerava a língua um produto social a expressão cultural de um povo
determinado (QC 6, § 71). A linguagem, por sua vez, era a expressão mais ampla da cultura,
caracterizando-se como a própria filosofia, como expressou Gramsci no QC 10-II, § 44 ao
afirmar que a linguagem é uma multiplicidade de fatos mais ou menos coerentes,
organizados de maneira orgânica e coordenada.
A indicação de que a linguagem remete aos fatos foi retomada por Gramsci no
QC 11 § 12, mediante a afirmação de que a linguagem contém em si os elementos de uma
concepção de mundo e se caracterizar como um conjunto de noções e conceitos
determinados (QC 11, § 12).
Demonstrando que todos são filósofos, a seu modo, que não existem homem
normal e sadio intelectualmente que não participe de uma determinada concepção de
mundo, ainda que inconscientemente, porque toda linguagem é uma filosofia, passe ao
segundo momento, ao momento da crítica e da consciência (QC 8, § 204, p. 1063).
Gramsci considerava que o domínio da linguagem estava diretamente atrelado a
capacidade de filosofar e fazer a crítica à concepção de mundo hegemônica. Do mesmo
modo, afirmava que era possível estabelecer a complexidade da concepção de mundo de
um individuo a julgar pela complexidade de sua linguagem (QC 11, § 12). A relação entre a
linguagem e a concepção de mundo, apresentada por Gramsci, conferia a linguagem uma
historicidade, por meio da qual ela se desenvolve e representa a realidade.
(...) Toda língua é uma concepção de mundo integral, e não só uma veste que sirva
indiferentemente como forma a qualquer conteúdo. Mas, e então? Não significaria isto que
estavam em luta duas concepções de mundo: uma, burguês-popular que se expressava no
vulgar, e outra, aristocrático-feudal que se expressava em latim e se referia à antiguidade
romana? E que esta luta, e não a serena criação de uma cultura triunfante, é que caracteriza
o renascimento? (QC 5, § 131, p. 645).
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Gramsci pensou a questão da linguagem partindo das condições históricas e dos
problemas de seu tempo. Na análise gramsciana, a linguagem é portadora de uma
concepção de mundo, uma elaboração intelectual que remete a realidade do mundo
material. Desta forma, o desenvolvimento da linguagem se encontra na origem do projeto
gramsciano de superação da concepção de mundo hegemônica pela elaboração de uma
filosofia originária da necessidade da classe trabalhadora, elaborada consciente e
criticamente, a filosofia da práxis.
É possível concluir que a abordagem que Gramsci fez da linguagem nos QC,
aproximando-a da noção de concepção de mundo, garantiu a presença de uma filosofia da
linguagem no interior dos QC. Essa filosofia da linguagem se desenvolveu ora pela
investigação filosófica acerca da natureza da linguagem e de seus significados, ora pela
abordagem crítica de problemas filosóficos orientada pela crítica da própria linguagem.
Os Cadernos do Cárcere foram citados a partir da Edição Italiana organizada por Valentino
Gerratana em 1975, indicada PELA abreviatura QC, o numero do caderno, do parágrafo e
da página da edição consultada. EX: QC 1, § 1, p. 1.
Referências Bibliográficas:
BOOTHMAN, Derek. Linguaggio. In: LIGUORI, Guido; VOZA, Pasquale. (Org.).
Dizionario gramsciano 1926-1937. Roma: Carocci, 2009. p. 482-483.
FROSINI, Fabio. Filosofia. In: LIGUORI, Guido; VOZA, Pasquale. (Org.). Dizionario
gramsciano 1926-1937. Roma: Carocci, 2009. p. 305-308.
GRAMSCI, Antonio. Quaderni del Carcere: Edizione crittica dell‘Istituto Gramsci a cura di
Valentino Gerratana. Torino: Einaudi, 2007. 4 vol.
SCHIRRU, Giancarlo. Filosofia da Linguagem e Filosofia da Práxis. In: AGGIO, Alberto;
HENRIQUES, Luiz Sérgio; VACCA, Giuseppe (Orgs.). Gramsci no seu tempo. Brasília:
Fundação Astrogildo Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto, 2010. p. 309-337.
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A FILOSOFIA DA CULTURA E O POTENCIAL REVOLUCIONÁRIO DA
CULTURA POPULAR E INDÍGENA EM ENRIQUE DUSSEL
Jéssica Fernanda Jacinto de Oliveira
Unioeste/Capes
[email protected]
José Luiz Ames
Palavras-chave: Reconhecimento. América Latina. Transformação.
Na perspectiva de uma filosofia da libertação acredita-se que a cultura latinoamericana se constituiu na exterioridade de toda a cultura eurocêntrica, na medida em que
se encontrava fora da história das culturas. Em seguida notamos o fenômeno da
dominação cultural na qual comumente vemos e ouvimos argumentos de que somente
manifestações euro-norteamericanas são adequadas, completas e satisfatórias. Que o
produzido na América Latina não possui importância nem complexidade artística, uma vez
que os fatos comprovam o atraso educacional de séculos se comparado com países de
primeiro mundo.
Encontramos, então, outra característica de opressão: os primeiros sobre os
últimos (ou terceiros). Logo, no interior do nosso continente também podemos visualizar
blocos de oprimidos pelas ruas das metrópoles. Ou seja, a cultura popular encontra fortes
barreiras ao se deparar com a cultura elitista, burguesa, o que o filósofo Enrique Dussel
denomina de ―cultura dos crioulos-brancos‖1. Podemos observar, por exemplo, o desprezo
pelo artesanato, músicas e lendas indígenas em comparação com os produtos chineses, as
músicas estadunidenses e os mitos gregos; o desprezo pela comida camponesa em
comparação com os fast-foods; o desprezo pelo história da América Latina em comparação
com a história europeia; o desprezo pela religiosidade ameríndia em comparação com a
religiosidade (e racionalidade) europeia. 2
Na poesia encontramos uma forma mais direta: ―são caboclos querendo ser ingleses‖ (Cazuza, Burguesia).
Esta avaliação se fundamenta na observação do comportamento social da população brasileira (quiçá
americana), desde as grades curriculares de cursos acadêmicos até constatações fáticas como as
exemplificadas, que são visíveis e notórias a qualquer observador, sem muito – ou nenhum – esforço teórico.
Vejamos o tanto que as escolas ensinam sobre a Revolução Francesa e o tanto que ensinam sobre a
Revolução Zapatista. Vejamos o tanto que conhecemos de religião católica e o tanto que conhecemos da
1
2
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Mas o que caracteriza a cultura do oprimido? Qual o momento da cultura indígena
no processo de libertação? Qual o potencial destas culturas? Refletir sobre estas questões
relacionando-as ao contexto prático, cotidiano, de existência de leis, de mortes, de dados
empíricos e contextualizados é o objetivo deste trabalho. Justo porque reconhecer a
dominação histórica da cultura indígena e originalmente americana não é um trabalho
árduo e inovador, mas pensar como estas questões estão ocorrendo sob a égide de uma
ligeira liberdade e igualdade é no mínimo assustador.
Por um lado temos a liberdade de escolha, de modo que não existe fundamento
moral ou racional que imponha para a maioria da população continental o dever de voltar
às suas raízes culturais, por outro lado o reconhecimento do outro como Outro, isto é,
como oprimido e vítima do sistema, é algo plenamente exigível desde uma metafísica da
alteridade. Além disso, a cultura popular em uma perspectiva dusseliana não consiste
somente em uma caracterização externa ou ideológica, todavia possui um potencial
revolucionário peculiar.
Resta-nos a questão: como utilizar os traços étnicos e tradicionais para a
libertação? Com qual ponto de partida? Como os indígenas podem resistir à séculos de
opressão e exclusão tendo em posse a cultura como sua arma primordial? Falamos em
revolução cultural ou perpassamos para os níveis ônticos de uma revolução social? Por
conseguinte este trabalho terá a preocupação em analisar estes pontos a partir de uma
filosofia que se propõe a pensar o ponto de vista do oprimido, fazendo uso das obras Oito
Ensaios Sobre Cultura Latino-Americana e 1492: o encobrimento do Outro ambas de Enrique
Dussel. Partiremos da opressão cultural indígena pelo fato de ser a originária na América
Latina, mas reconhecendo obviamente as dominações culturais de outros povos aqui
existentes.
Deste modo, além de pensar a dominação cultural elencando suas características e
conotações, a práxis filosófica nos convida a interagir com as comunidades e grupos
populares para que seja possível um diálogo real entre as culturas oprimidas, entre os países
latino-americanos (ou de ―terceiro mundo‖) para que a visão do colonizador (ou do
―primeiro mundo‖) não seja totalmente incorporada ao ideário popular, mas que também
não se corra de o risco de cair em um populismo extremo. Certamente a reflexão sobre a
religião xamã. Vejamos o tanto que sabemos de Aquiles (personagem grego) e o tanto que sabemos de
Maculelê ou Nhanderú (personagens indígenas, latino-americanos). A fonte para o parágrafo de afirmações é
o conhecimento geral, senão, a observação social.
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temática cultural cedo ou tarde convergirá em debates econômicos, ambientais, políticos,
dentre outros, pois como se percebe na filosofia dusseliana um campo de atuação perpassa
o outro, mas ainda assim é possível se pensar a Filosofia da Cultura como um campo
altamente influente para a prática da libertação.
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O COGITO COMO CONSCIÊNCIA DE SI
João Antônio Ferrer Guimarães
UNIOESTE
[email protected]
Palavras-chave: Metafísica. Consciência de si. Subjetividade. Cogito.
O caminho através do qual são delineadas as bases da metafísica cartesiana
apresenta-se mais claramente exposto – como sabemos – em suas Meditações Metafísicas.
Numa primeira abordagem – considerando que muitas outras são possíveis –, duas
características emergem do projeto metafísico proposto neste pequeno texto que abrange
seis etapas meditativas na busca por três verdades de existência – a consciência, Deus e o
Mundo. Primeiramente, há um aparente velamento, no que concerne aos conceitos-chave e
suas relações, do processo de gênese dos mesmos; vale dizer, há como que um
esquecimento das fontes nas quais estes conceitos – no processo histórico da filosofia –
foram sendo lapidados, e mesmo transformados; isto não constitui novidade significativa se
atentarmos ao pensamento e aos objetivos de filósofos do mesmo período. No entanto,
esta característica, no que se refere precisamente à subjetividade como princípio que reflete
sobre si, terá importância decisiva, na medida em que reforçará a originalidade e trará luz a
uma metafísica concebida ao mesmo tempo como ontologia e epistemologia fundamentais.
Em segundo lugar, a obrigatoriedade de aceitar o ―caminho‖ metafísico que leva à
subjetividade, como caráter essencial do pensamento cartesiano, implica também
corroborar a tese – tese esta nem sempre explicitada claramente nos textos cartesianos – de
que o papel da metafísica, muito mais do que perquirir o ser enquanto ser3, propõe uma
transformação da ontologia tradicional – e mesmo um corajoso abandono de suas teses
fundamentais – em direção a uma concepção que supõe uma noção profunda de
consciência – uma consciência de si que se volta para si – em busca de uma solução para a
questão da evidência e certeza do conhecimento. Isto, em outras palavras, indica que o
3
É preciso frisar aqui que a pergunta ―o que é o ente?‖, que deve perpassar a reflexão filosófica como um
todo, segundo muitos autores, deverá ser respondida por Descartes no âmbito de sua metafísica, mas não
como análoga à resposta da tradição e sim como questão fundamental de sua teoria do conhecimento como
fica implícito, principalmente, no transcurso da investigação de suas Meditações Metafísicas.
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tema central de todas as ponderações cartesianas consiste no problema da certeza e da
evidência (LANDIM, 1992, p. 121), tanto do ponto de vista metodológico – onde se
analisa como opera a razão, o cogito –, quanto do ponto de vista metafísico – onde são
legitimadas suas operações. Esta temática constituirá, por fim, um âmbito psicológico que
se abrirá para as muitas possibilidades da razão inquirir sobre si mesma culminando
diretamente nos questionamentos e nas tentativas de síntese propostas pelo século do
iluminismo.
Por outro lado, este segundo ponto coloca Descartes como principal articulador da
superação da noção aristotélica de ―ente substancial‖ em prol de uma metafísica da
subjetividade – de uma noção particular de subjetividade. Na verdade, como tentaremos
mostrar, estes dois pontos podem ser reduzidos apenas à questão que gravita em torno
dessa subjetividade e que pode ser expressa pela pergunta sobre a presença do ego como
instância metafísica privilegiada; o existente como ente de razão do qual emana o
conhecimento tanto da existência de uma ciência verdadeira e universal quanto de seus
princípios, ou seja, de seu fundamento.
Em todo caso, ao analisar com mais acuidade o desenrolar do sistema proposto por
Descartes devemos pensar tais afirmações com certa relativização. Não que elas não
contenham verdades ou não se sustentem no contexto reflexivo cartesiano – os
testemunhos de dezenas de comentadores da grandeza de Gueróult, Gouhier, Beyssade,
etc., que descrevem Descartes como o desbravador de uma nova subjetividade na qual está
implícita uma nova epistemologia, não deixam dúvidas sobre a natureza inovadora de seu
pensamento. O que devemos ter sempre em mente é que não há – na modernidade, pelo
menos – uma ruptura tão radical a ponto de prescindir totalmente de, pelo menos, alguns
pressupostos da tradição4. Sendo assim, é inegável que o papel da subjetividade surge,
enquanto manifestação de uma consciência fundamentadora, como princípio essencial da
filosofia moderna e, em Descartes, funda uma metafísica do sujeito, cujas consequências
mostrar-se-ão tanto mais fortemente quanto mais nos debruçarmos sobre os sistemas
filosóficos – principalmente no que concerne ao pensamento metafísico – dos pensadores
posteriores. Deste modo, neste trabalho, o que propomos é o aprofundamento da
investigação sobre esta consciência, o ego cogito, princípio metafísico fundamental, no intuito
4
É claro que devemos levar em consideração afirmações como as de Husserl que considera as Meditações
Metafísicas como tendo um sentido único dentro da história da filosofia pelo fato de sua volta radical ao
puro ego cogito. (Conf. HUSSERL, 1996: 40). Isto, no entanto, não encerra a questão; o sujeito que emerge
da reflexão cartesiana apresenta ainda, implícita em sua natureza, a noção de substância, por exemplo.
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de tentar entender, primeiramente, sua natureza a partir dessa consciência pura que parece
ser o centro para onde gravitam o conhecimento e o ―mundo‖ e, em segundo lugar, tentar
apontar, no que concerne à noção de subjetividade, em que consiste sua originalidade
baseada na noção de consciência de si.
Referências Bibliográficas:
DESCARTES, R. Obras: Discurso do método, Meditações, Objeções e respostas, As paixões da alma,
Cartas. Coleção os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
HUSSERL, E. meditaciones cartesianas.Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1996.
LANDIM, R. Evidência e verdade no sistema cartesiano. São Paulo: Edições Loyola, 1992.
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MAQUIAVEL E A AÇÃO POLÍTICA: UMA TENTATIVA DE APROXIMAÇÃO
CONCEITUAL
José Luiz Ames
Unioeste/CNPq
[email protected]
Palavras-chave: Maquiavel. Ação política. Virtù e Fortuna.
Maquiavel se propõe a questão da análise das condições de possibilidade da ação
política. Em relação a isso, sua tese é: nada predetermina a priori a ação (providência,
astros, fortuna, etc.) e, por isso, o resultado depende unicamente da capacidade do ator. A
afirmação da ausência de um determinismo divino ou dos astros poderia nos levar a pensar
que a ação humana seria totalmente desimpedida; que o homem seria capaz de controlar
plenamente todos os fatores que intervêm na sua execução. Ainda que o homem seja
responsável por seu destino, Maquiavel reconhece a intervenção de forças que fogem ao
seu controle: a fortuna e a corrupção. A reflexão sobre estes elementos evidencia que a
ação política, embora sofra limitações de fatores que escapam ao controle humano, não é
impossível. O fato de não ser eficaz em todos os momentos não pode justificar um
desencorajamento prévio, mas também não ilusões sobre o resultado das ações políticas,
pois o êxito delas se decide em função das circunstâncias e do caráter mais ou menos
propício da ocasião. Isto remete à ideia de virtù: termo de significado polissêmico no
pensamento maquiaveliano e que é empregado para indicar todo aquele complexo de
aptidões que permite aos homens destacar-se e impor às coisas o rumo por eles decidido.
É, assim, a principal qualidade requerida para o êxito na ação política. Uma vez
analisadas as condições de possibilidade da ação política, tanto dos elementos que se
opõem ao êxito – fortuna e corrupção – quanto a principal qualidade responsável pelo
sucesso, ou seja, a virtù, é possível tentar delinear a concepção de ação política para
Maquiavel. Esta pode ser captada por uma rede de metáforas dentre as quais se destacam
três principais: a da arquitetura (que remete à ação de fundar e edificar), a de forma e
matéria e a de arte médica. Qual concepção de ação política se desprende do conjunto das
três metáforas? Todas mostram que a ação política em Maquiavel está orientada, antes de
tudo, para o estabelecimento de uma ordem, sua manutenção, sua reforma ou
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transformação e sua salvaguarda. Maquiavel não pretende oferecer receitas prontas para o
sucesso, e sim convidar o ator político a recriar, segundo as circunstâncias concretas em
que a ação se desenvolve, as condições de êxito desta. Por outro lado, porém, entende que
a leitura dos acontecimentos passados e presentes será capaz de fornecer referências para
uma ação segura, desde que o ator político saiba adaptar sua personalidade à ―qualidade dos
tempos‖.
Sugeriria com isso que circunstâncias semelhantes se reproduzem na história
tornando possível a imitação do modelo de ação política? O que levanta este problema é
uma situação antitética: por um lado, a afirmação da possibilidade da imitação fundada
sobre a identidade dos tempos e, por outro, a relativização desta identidade. Pensar a
imitação sob o prisma da invenção ou da criação de modos de ação, situa a ação política na
esfera da verità effettuale. Ao estabelecer esta como objetivo, o discurso maquiaveliano
constitui-se numa recusa do modelo de príncipe moral em proveito de outro capaz de dizer
―coisa útil a quem a entende‖. Com isso, Maquiavel declara sua ruptura com uma tradição à
qual acusa de ocupar-se de governos imaginários e, consequentemente, de coisas inúteis
proclamando-se ele próprio o descobridor da verdade política. Em que consiste esta
verdade? Nas palavras de Maquiavel, a verdade política de uma ação pode ser captada
unicamente por meio de seus efeitos (isto é, a verdade é effettuale) e não pelas motivações:
quer dizer, ela se situa nas consequências, nas repercussões - sejam elas afortunadas ou
infelizes - no sistema complexo das condições a partir das quais a ação se desenrola.
A concepção de verità effettuale proposta por Maquiavel permite pensar que a realidade
se esgota completamente na aparência, não porque somente trapaceando o príncipe seria
capaz de satisfazer suas ambições, e sim porque é o único modo de aceder ao vivere politico.
Em outras palavras, a vida política se desenvolve na esfera da aparência: a verdade da
política é possível de ser captada tão somente pelos efeitos (resultados ou consequências)
das ações. É nisto que consiste a conhecida ruptura maquiaveliana com a ética e a
instituição da política como um domínio autônomo, pensado a partir dele mesmo.
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O CETICISMO PIRRONIANO E O CETICISMO ACADÊMICO
Josué do Nascimento
Unioeste – 1º ano de filosofia noturno
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Vários autores da Antiguidade atribuíram a origem da tradição do ceticismo à figura
do filósofo Pirro de Élis (365-275 a.C.). Sexto Empírico, por exemplo, explica o emprego
do termo ―pirronismo‖ para designar a orientação cética, ―a partir do fato dePirro parecer
ter se dedicado ao ceticismo de forma mais significativa que seus antecessores‖. E
Diógenes Laércio, após enumerar os discípulos de Pirro, afirma ―que estes chamaramsepirronianos por causa de seu mestre subdividiram em aporéticos, céticos, eféticos ezetéticos‖.
Pirro, um personagem não muito diferente de Sócrates, ou quem sabe, igual a
Sócrates em alguns aspectosideológicos e exposição de pensamentos, explorava seu
discurso cético, levando em diante ideias voltadas a mudança do mundo antigo, com
atitudes espirituais indo ao encontro das do Oriente. Seu intuito era exatamente relembrar
Sócrates na sua maneira de filosofar. Junto com Anaxargo, viajou com Alexandre o
grande em suas explorações no oriente, e estudou na Índia com os ginosofistas e com os
Magi na Pérsia. Da filosofia oriental parece ter adotado uma vida de reclusão. Voltando a
Elis, viveu pobremente, mas foi muito reconhecido pelos habitantes desta região e também
pelos atenienses, que lhe concederam a cidadania. Suas doutrinas são conhecidas
principalmente pelos escritos satíricos de seu pupilo Timon.
Os princípios de sua obra são expressos, em primeiro lugar, pela palavra acatalepsia
que define a impossibilidade de se conhecer a própria natureza das coisas. Qualquer
afirmação pode ser contraditada por argumentos igualmente válidos. Em segundo lugar, é
necessário preservar uma atitude de suspensão intelectual, ou, como Timon expressa,
nenhuma afirmação pode ser considerada melhor que outra. Em terceiro lugar, estes
resultados são aplicados na vida em geral. Pirro conclui que, dado que nada pode ser
conhecido, a única atitude adequada é ataraxia ―despreocupação‖. Pirro falava de uma paz
de espírito possível de se alcançar e lutava a favor de estabelecer uma política ética.A
impossibilidade do conhecimento, mesmo em relação à nossa própria ignorância ou dúvida,
deve induzir o homem sábio a resguardar-se, evitando o stress e a emoção que acompanha
o debate sobre coisas imaginárias. Este ceticismo drástico é a primeira e mais completa
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exposição de agnosticismo na história do pensamento. Seus resultados éticos podem ser
comparados com a tranquilidade ideal dos estóicos e os epicuristas
O caminho do sábio, diz Pirro, é perguntar-se três questões. Primeiro deve
perguntar o que são as coisas e de que são constituídas. Segundo, como estamos
relacionados a estas. Terceiro, perguntar qual deve ser nossa atitude em relação a elas.
Sobre o que as coisas são, podemos apenas responder que não sabemos nada. Sabemos
apenas de sua aparência, mas somos ignorantes de sua substância íntima. A mesma coisa
aparece diferentemente a diferentes pessoas, e assim é impossível saber qual opinião é a
correta. A diversidade de opiniões entre os sábios, como entre os leigos, prova isso. A cada
afirmação pode-se contrapor outra contraditória, mas com base igualmente boa, e qualquer
que seja minha opinião, a opinião contrária é defendida por alguém que é tão inteligente e
competente para julgar quanto eu. Podemos ter opiniões, mas certeza e conhecimento são
impossíveis. Daí nossa atitude frente às coisas (a terceira pergunta) deve ser a completa
suspensão do julgamento. Não podemos ter certeza de nada, mesmo as afirmações mais
triviais. Diz-se que Pirro era tão cético que isso o teria levado a agir de maneira insensata.
Segundo Diogenes Laércio não se guardava de risco algum que estivesse em seu caminho,
carroças, precípicios ou cães. Certa vez, quando Anaxarco caiu em um poço, Pirro
manteve-se imperturbável, conforme a sua filosofia, não socorrendo o mestre.Enesidemo
argumenta, porém, que Pirro ―filosofava segundo o discurso da suspensão do juízo, mas
que não agia de maneira inaudita‖. Parece confirmar essa observação o fato de Pirro ter
vivido até os 90 anos.
Pirro deixou por escrito somente um poema para Alexandre, portanto a maior parte
do que sabemos sobre a filosofia dele foi escrito por seu seguidor Timon e os comentários
que Aristocles fez sobre os escritos de Timon.
Pirro, ao trazer essa influencia oriental, se preocupou com a valorização da pobreza
e este criou três princípios:
1) É impossível se conhecer a natureza das coisas
2) Todas as afirmações tem igual valor, ou seja, não há afirmação melhor que a
outra, as opiniões são iguais.
3) Já que não podemos conhecer a natureza das coisas, como definir uma
afirmação melhor, sugere que devamos ser despreocupados com debates
filosóficos.
O primeiro cético, sem se preocupar em fundar uma escola nos moldes tradicionais,
e não deixou nenhum escrito. As informações de que dispomos para tentar reconstruir a
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vida e pensamento de Pirro são encontradas em fragmentos de obras de autores que se
consideraram discípulos do filósofo, sobretudo nos textos de Timon de Fliús, e nos
testemunhos apresentados por Diógenes e Laércio.
Segundo Diógenes, Pirro dedicou-se primeiro a pintura. Sem grande sucesso,
voltou sua atenção para Filosofia. Inicialmente teria sido discípulo de certo Brison, filósofo
ligado à escola de Mégara, e, posteriormente, de Anáxarcos de Abdera, de quem pode ter
recebido lições acerca do atomismo de Demócrito. Na companhia de Anáxarcos, Pirro
participou da expedição de Alexandre ao Oriente, onde teve contato com os chamados
gimnosofistas, espécie de sábios indianos, que, segundo contam, levariam uma vida de tipo
monástico, voltada à superação das necessidades humanas e à conquista da impassibilidade.
Esta passagem da biografia de Pirro é considerada, de forma unânime, de
fundamental importância para compreensão do ulterior desenvolvimento de seu ceticismo.
Ao lado de Alexandre, Pirro assistiu à reprodução, em outras terras, das transformações
político-culturais que a pouco haviam abalado em muitos aspectos a vida na Grécia. A
experiência da diversidade dos valores, crenças, costumes, leis e religiões, com os quais
Pirro se deparou ao longo da expedição, seria incorporada definitivamente ao repertório de
argumento céticos, como indício maior da relatividade dos padrões normativos de conduta.
Mas foi do contato com dos os gimnosofistas que Pirro retiraria a principal lição de sua visita
ao Oriente. Segundo Diógenes, fora desses sábios que Pirro recolhera o que parece ser a
pedra de toque de seu pensamento, a saber: o princípio da akatalexía, a irrepresentabilidade,
ou incompreensibilidade das coisas.
O mais significativo texto acerca do pensamento de Pirro – um testemunho de seu
discípulo imediato Tímon, colhido de uma de suas obras por Arístocles, e reproduzido na
obra Preparação evangélica, de Eusébio – permite que compreendamos sumariamente a forma
como o filósofo constrói seu pensamento sobre o primado da akatalexía.
Conforme Arístocles, Tímon resumiria a filosofia de Pirro como se segue:
(...) aquele que quiser ser feliz deve considerar três pontos: em
primeiro lugar, o que são as coisas em si mesmas? Depois, que
disposições devemos ter em relação a elas? Finalmente, o que nos
resultará dessas disposições? As coisas não têm diferença entre si,
e são igualmente incertas e indiscerníveis. Por isso, nossas
sensações e nossos juízos não nos ensinam o verdadeiro nem o
falso. Por conseguinte não devemos nos fiar nos sentidos nem na
razão, mas permanecer sem opinião, sem nos inclinarmos para um
lado ou para o outro, impassíveis. Qualquer que seja a coisa de
que se trata, diremos que não se deve mais afirmá-la do que negá-
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la, ou que se deve afirmá-la e negá-la ao mesmo tempo, ou que
não se deve nem afirmá-la nem negá-la.
Ao analisamos esses seis pontos – as três questões levantadas por Pirro e suas
respectivas respostas –, tendo como pano de fundo o contexto no qual são enunciados, o
período helênico, temos aqui reunidos, de um lado, o que haveria de se tornar o mais
convencional no discurso filosófico do período, mas, de outro, nos deparamos com alguns
elementos que nos parecem sem precedentes na história da Filosofia. O pensamento de
Pirro desdobra-se explicitamente em função do ético: é àquele que quer ser feliz que seu
discurso se dirige. Conduzir aquele que busca a felicidade, à compreensão de que, para
alcançá-la, se faz necessário um tipo de conhecimento da ―natureza das coisas‖, de si
mesmo, de sua ―medida‖ e conveniência, de seu lugar na ordem geral das coisas, para
poder, então, saber como dispor-se perante a elas, também é algo que dita a rotina do
discurso moral helênico. O que faz de Pirro uma voz destoante desse contexto, o que há de
inédito em seu pensamento, não é, pois, propriamente a estrutura de seu discurso (sua
forma), ou as questões que ele enuncia, mas, como veremos a seguir, as respostas por ele
elaboradas para estas questões.
O que são as coisas em si mesmas? Para Pirro, o que há para saber acerca da natureza
das coisas é o fato de não haver natureza alguma, bem entendido, nenhuma ―ideia‖,
―essência‖ ou ―substância‖ (mesmo material), que permaneça como ponto de estabilidade.
E, neste sentido, não há ser. Mas apenas aparência.
O conhecimento quer o ser, a essência, a forma... Mas se não há ser, essência, forma, ou
qualquer outro termo que represente uma dimensão estável e, mais do estável, eterna do
real; o que há, pois, para se conhecer (cientificamente)? A esse respeito, lembremos a
definição do objeto do conhecimento científico apresentada por Aristóteles, no livro Ética à
Nicômaco:
Todos supomos que aquilo que conhecemos cientificamente não é
sujeito a variações; quanto às coisas sujeitas a variações, não sabemos,
quando elas estão além de nossa observação, se elas realmente existem
ou não. O objeto do conhecimento científico, portanto, existe
necessariamente. Ele é consequentemente eterno, pois todas as coisas
cuja existência é absolutamente necessária são eternas.
(ARISTÓTELES, 1996, p. 218).
A quase totalidade das filosofias antigas concebeu-se como um tipo de discurso
capaz de desvelar o ser mesmo, ou a natureza íntima das coisas, concebeu-se como a ciência
(episteme), nos moldes aristotélicos. Ultrapassando o âmbito da aparência – domínio marcado
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pela impactante experiência da contingência, precariedade e multiplicidade dos seres, e cujo
correlato epistemológico seria a opinião, as filosofias levantam a pretensão de dar conta dos
aspectos universais e necessários das coisas, aspectos estes postulados como elementos
supra-sensíveis, não imediatamente evidentes e accessíveis apenas à razão. O discurso
filosófico seria a tradução adequada e o correlato epistemológico de tais aspetos, seria ele
mesmo universal e necessário.
Pirro universaliza o domínio das ―coisas sujeitas a variações‖. A aparência, nas
palavras de Timon, é ―onipotente onde quer que ela se mostre‖ (Vidas, IX, 11, §105). Não
se trata, explica Marcel Conche, de uma ”aparência de‖, isto é, a manifestação de algo que
teria uma natureza em si intangível (fenômeno). Tampouco se trata de uma ―aparência para‖,
ou seja, representação subjetiva. Mas uma ―aparência pura‖, absoluta. (CONCHE, 2000 p.69)
A consequência epistemológica dessa ―ontologia‖, que resolve o ser no aparecer é um
tipo de ceticismo, onde o conhecimento fracassa, não por alguma deficiência de natureza
cognitiva ou dificuldade metodológica, mas por absoluta falta de objeto.
Que disposições devemos ter em relação às coisas? Sem referencial absoluto, nossas
sensações e opiniões não podem mais ser ditas rigorosamente verdadeiras ou falsas, e, por
isso, não teríamos, na compreensão de Pirro, razão para conceder-lhes maior atenção.
Devemos ser, pois, sem opinião e sem inclinação. A mesma recomendação se aplica às
opiniões dos filósofos, como sugere outro fragmento da obra de Tímon:
Como e onde, Pirro, encontraste salvação, em face de submissão às vãs e falsas opiniões
dos sofistas, e rompestes as cadeias de todos os enganos e o encanto de suas charlatanices?
Não te preocupaste com a investigação de quais são os ventos que correm na Helade, nem
quiseste saber de que se formam todas as coisas e em que as mesmas coisas se resolvem.
(Vidas, IX, 11, §65)
Esse princípio de indiferença especulativa que encontramos, nesta citação, aplicado
às opiniões filosóficas no campo físico, estende-se às demais áreas da filosofia, em especial,
ao campo da Ética, entendida com arte de viver que conduziria a felicidade. Aqui também
encontramos um desdobramento absolutamente estranho ao pensamento grego: a ideia de
quê para ser feliz, para viver com arte, não é necessário possuir um critério para discernir o
que nos é por natureza conveniente daquilo que devemos evitar a todo custo. Segundo
Diógenes:
Pirro afirmava que nada é honroso ou vergonhoso, nada é justo ou injusto, e
aplicava igualmente a todas as coisas o princípio que nada existe realmente, sustentando
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que todos os atos humanos são determinados pelos hábitos e pelas convenções, pois cada
coisa não é mais isso que aquilo.
Exemplos de como esse princípio de indiferença fora posto em prática são
variados. Desde o caricato passeio em que, encontrando Anarxarco preso em um pântano,
Pirro não teria se preocupado em ajudá-lo, continuando seu passeio (e ainda teria sido
louvado pelo amigo por conta de sua indiferença), até coisas bastante simples, como o fato
de Pirro limpar ele mesmo sua casa ou levar um leitão para vender no mercado. Um
exemplo mais significativo para compreensão da postura de Pirro é a narrativa do episodio
em que, perseguido por um cão, o filósofo teria buscado refúgio no alto de uma árvore. À
alguém que assistindo a cena lhe cobrará coerência com seu pensamento, Pirro respondeu
não ser fácil abandonar a debilidade humana.
O que nos resultará dessas disposições? Não ter opinião sobre essas coisas, considerá-las
sem inclinação, sem agitação, podemos dizer, indiferentemente, conduz segundo Pirro,
primeiro, a afasia, o silêncio, o fim da tagarelice acerca de uma suposta natureza das coisas.
E como consequência disso, sobrevém a ataraxia, a imperturbabilidade (mais literalmente),
ideal de perfeição moral em seu pensamento... Mas por que não falar em serenidade ou
tranquilidade como ideal de vida feliz que o filósofo parece ter sido capaz de alcançar?
A atitude do filósofo é interromper em si mesmo a ação de fazer juízos, parar de
julgar e conceituar as convenções pois esses juízos e conceitos são indiferentes para o
homem. É inútil preferir algo em detrimento de outra coisa, todas as duas coisas são
somente combinações feitas pelos homens e são combinações passageiras. O homem não
deve se perturbar com nada no mundo, nem mesmo pelas paixões, essa é a atitude que ele
chama de ataraxia, que é uma indiferença para com o mundo e suas coisas. A ataraxia leva
o indivíduo à felicidade através da tranquilidade e da serenidade, indiferente ao mundo que
o circunda.
Sobre as coisas do mundo não vale a pena nem sequer pronunciarmos nossas
opiniões, a atitude mais coerente é ficarmos totalmente indiferente a elas.Toda afirmação
positiva,para o cético é dogma.
Referências Bibliográficas:
A CURA: Fernanda Declara Cizzi – PIRRONE TESTEMONIANZE 1981
ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia
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Pirro De Elis – O Ceticismo Pirroniano E Ceticismo Acadêmico
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SCHELLING E O PROBLEMA DA INTUIÇÃO INTELECTUAL ENQUANTO
INTUIÇÃO OBJETIVADA
Kayenne Cristine F S Vosgerau
Bolsista PET FILOSOFIA - UNICENTRO
Orientador: Manuel Moreira da Silva
[email protected]
Palavras-chave: Intuição objetivada. Intuição de si mesmo. Intuição do Absoluto.
Schelling na oitava carta das Cartas Filosóficas sobre o Dogmatismo e o Criticismo (1795)
desenvolve sua concepção de intuição intelectual partindo da noção de intuição de si
mesmo, tal como ensinara Fichte em sua Doutrina da Ciência de 1794. Ao fazer isso, afirma
que a intuição de si mesmo se apresenta como base da intuição intelectual do Absoluto.
Intuição intelectual do Absoluto significa aqui os dois modos de intuição, tanto a intuição
de si mesmo, quanto a assim chamada intuição objetivada – termo utilizado por Schelling
para referir-se à concepção espinosana da intuição intelectual da substância ou de Deus.
Contudo, a intuição em si mesmo se apresenta como tendo primazia em relação à
intuição objetivada pelo fato de constituir-se como o ponto de partida da passagem do
finito ao infinito, na medida em que, possuí a mesma estrutura desta, ao passo que a
intuição objetivada se mostra como desdobramento da intuição de si mesmo, sem elevar-se
à consciência disso.
Ao afirmar a intuição de si mesmo como base da intuição intelectual do
Absoluto5, Schelling apresenta uma crítica à filosofia de Espinosa pelo fato deste ter
entendido a intuição intelectual enquanto intuição objetivada. Não obstante, ao fazer tal
crítica alega que mesmo objetivando a intuição intelectual, Espinosa teve que pressupor a
intuição de si mesmo, na medida em que a intuição objetivada se desdobra da primeira da
própria intuição de si mesmo. Assim, sobre a intuição intelectual, entendida desse modo,
Schelling nos diz que:
Este trabalho de constituí em duas partes distintas, mas respectivamente coordenadas. Na primeira, tratouse da intuição de si mesmo como base da intuição intelectual do absoluto. Na segunda parte, tal como
exposta aqui, trata-se do problema da intuição objetivada, mas especificamente, da crítica de Schelling à
Espinosa quanto ao procedimento da intuição intelectual enquanto intuição objetivada.
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―Essa intuição intelectual se introduz, então, quando deixamos de ser objetos para nós
mesmos e quando, retirado a si mesmo, o eu que intuí é idêntico ao intuído. Nesse
momento da intuição, desaparecem para nós tempo e duração: não somos nós que estamos
perdidos no tempo, mas o tempo – ou antes, não ele, mas a pura eternidade absoluta – que
está em nós. Não somos nós que estamos perdidos na intuição do mundo objetivo, mas é
este que está perdido em nossa intuição‖ (SCHELLING, 198, 1973).
Assim, há uma intuição de um eu (Selbst) que intuí a si mesmo e ao fazer isso
deve-se considerar que o Absoluto não é um mero objeto, ―ele se encontra em nós e é
acessível, por esse motivo, apenas por meio da contemplação de si‖ (PUENTE, 1997, P.
30). Quando há uma autointuição há a unificação do eu e do não-eu. Deste modo, a
posição schellinguiana de intuição intelectual afirma que o eu que intui torna-se, de modo
imediato, idêntico ao absoluto e, por conseguinte, esta se introduz quando deixamos de ser
objetos para nós mesmo, na pura eternidade absoluta. Neste momento da intuição, o
mundo objetivo se perde nessa intuição. Com efeito, segundo Schelling:
Foi essa intuição de si mesmo que Espinosa objetivou. Enquanto intuía em si o
intelectual, o Absoluto não era mais, para ele, um objeto. Isso era uma experiência que
permitia duas interpretações: ou ele se havia tornado idêntico ao Absoluto, ou o Absoluto a
ele. Neste último caso a intuição intelectual era intuição de si mesmo; no primeiro, intuição
de um objeto absoluto. Espinosa preferiu esta última. Acreditou que ele mesmo era
idêntico ao objeto absoluto e que estava perdido em sua infinitude (SCHELLING, 1973, p.
198).
No entanto, Espinosa se iludia ao acreditar nisso, pois na intuição intelectual do
Absoluto, é o mundo objetivo, isto é, o objeto que se dissolve na intuição, não
inversamente. Não era ele, Espinosa, que desaparecia nessa intuição. Dessa forma, deve-se
considerar que ―o sujeito, como tal, não pode aniquilar-se a si mesmo; já que, para poder se
autoaniquilar, ele teria de sobreviver à sua própria aniquilação‖ (PUENTE, 1997, p. 31).
Ressalta-se assim, a diferença da filosofia crítica que poderia alegar à filosofia dogmática6:
―Não te forces por te aproximar da Divindade, mas sim deixa que ela te conduza ao
Infinito7―.
O objetivo das Cartas é uma tentativa de mediação entre o criticismo (tendo como expoente Fichte) e o
dogmatismo (apresentado por Espinosa). Em carta a Hegel de 4 de fevereiro de 1795, Schelling alega que ―a
diferença essencial entre a filosofia crítica e a filosofia dogmática parece residir em que a primeira tem como
ponto de partida o eu absoluto que ainda não é condicionado por nenhum objeto, a segunda parte do objeto
absoluto ou não-eu‖.
7 Schelling apud Puente, 1997, p. 31.
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Não obstante, Schelling pensa que, na medida em que a intuição intelectual do
Absoluto é sempre a intuição de um eu que intui a si mesmo, a intuição pode ser
interpretada de duas maneiras. De um lado, o eu que intui torna-se idêntico ao Absoluto;
de outro, o Absoluto torna-se idêntico ao Eu que intui. Espinosa preferiu aceitar a ultima
delas, o erro da filosofia dogmática é ter acreditado que ele próprio era idêntico ao objeto
absoluto e que tinha se perdido em sua infinitude.
Diante disso, para Espinosa, o terceiro gênero de conhecimento, o conhecimento
intuitivo é mais importante do que o conhecimento do primeiro e segundo gênero, sendo
que é só por meio deste que chegamos às ideias adequadas e alcançamos a condição de
indivíduos ativos, que conhecem as ideias, suas causas e efeitos e suas ligações, isto é, disso
―procede a ideia adequada da essência formal de certos atributos de Deus.‖ Assim, ―o
terceiro gênero propicia um conhecimento de nossa essência e da essência de cada coisa
particular, isto porque, através dele, temos um conhecimento da essência de Deus‖
(MACHADO, 2006, p. 89). Se o conhecimento de terceiro gênero é conhecimento
intuitivo e este se dá pelo conhecimento adequado, então tal adequação é a uma intuição, a
rigor, imediata, na medida em que não se perfaz por nenhuma mediação e, então é
adequada. Só a partir desse modo é que ―a mente humana tem um conhecimento adequado
da essência eterna e infinita de Deus‖ (II, Prop. XLVII).
Assim, essa intuição, sendo este conhecimento adequado, é o ultimo grau ao qual
podemos chegar, pois se assim se compreende, assim se conhece a Deus, isto é, o Absoluto
segundo Schelling. Por esse supremo gênero de conhecimento descobre-se a origem das
essências infinitas, o que se consegue mediante a compreensão da ordem necessária e
imutável da substância única. É o que Espinosa chama de amor intelectual a Deus que ―é
parte do amor infinito com que Deus ama a si mesmo‖ (V, prop. XXV). Com isso,
segundo Rubens Filho (1973, p. 197) ―todos os conhecimentos adequados, isto é,
imediatos, são, segundo Espinosa, intuições de atributos divinos‖.
Com isso, o problema da filosofia espinosana se dá na medida em que, segundo
Schelling, apesar deste defender certa união entre o eu e não-eu, no entanto, dá-se
prioridade ontológica ao ultimo – ao não eu. Assim, Espinosa havia ―elevado o próprio
não-eu ao eu‖ (AMORA, 2010, p. 67.) na medida em que se serviu da intuição intelectual
caracterizada enquanto intuição objetiva para admitir a substância única e infinita e deste
modo, sem o saber, acabou por fazer uso do eu como instância definidora e produtora da
própria substância. Dito isso é que se explicita a crítica de Schelling à Espinosa quanto a
procedimento da intuição intelectual, pois ―de onde mais poderia ele ter tirado a ideia dessa
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intuição, se não de sua intuição de si mesmo‖? (SCHELLING, 1973, p. 198), pois esta está
pressuposta na objetivação e, tendo a mesma estrutura da primeira por se desdobrar dela,
mesmo Espinosa objetivando tal intuição, fazia uso da intuição de si mesmo, sem o saber,
para produzir conhecimento da Substância infinita. Logo, a base da intuição intelectual do
Absoluto é a intuição de si mesmo.
Referências bibliográficas:
AMORA, K. Dinâmica da Natureza, de Deus e da Liberdade em Schelling. Revista Conatus –
Filosofia de Spinoza. Fortaleza: vol. 4, nº 8. p. 65-72, dez, 2010.
ESPINOSA, B.. Ética. In: Os Pensadores. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
MACHADO, R. O nascimento do trágico: de Schiller a Nietzsche. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2006.
PUENTE, F. R. As concepções antropológicas de Schelling. São Paulo: Loyola, 1997.
SCHELLING, F. W. J. Cartas filosóficas sobre o dogmatismo e o criticismo.. Trad. Rubens
Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
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PROPRIEDADE, GOVERNO E RESISTÊNCIA EM LOCKE
Leandro da Silva Bertoncello
Universidade de Caxias do Sul
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Palavras-chave: Locke. Propriedade. Governo. Resistência.
O pensamento moderno destaca a razão individual como meio para o
desenvolvimento da humanidade. O interesse do indivíduo encontra na coletividade os
meios de sua defesa, e o Estado passa a ter como papel a proteção do indivíduo e dos seus
direitos fundamentais.
Conhecido como o pai do liberalismo político e um pensador contratualista, John
Locke entendia que os seres humanos viviam inicialmente em estado de natureza, com a
mais perfeita liberdade e igualdade, previamente à organização social.
Desde então, o homem é dotado de direitos inalienáveis, conferidos pela própria
natureza. Na teoria de Locke, é central o direito individual natural à propriedade. Por
propriedade, deve ser entendido a propriedade que os homens têm de si mesmos, tanto
quanto dos seus bens, além de suas vidas e liberdade (sentido lato); ou apenas de seus bens
(sentido estrito).
A propriedade de si mesmo significa que sobre a minha pessoa ninguém tem
qualquer direito, a não ser eu mesmo. Qualquer coisa que o homem retire da natureza,
mistura com o seu trabalho e junta algo que é seu, torna essa coisa sua propriedade, e a
exclui do direito comum dos demais homens.
A terra e seus frutos foram dados pelo Criador em comum à espécie humana.
Nenhum consentimento alheio é necessário a sua apropriação. Dois postulados justificam a
apropriação individual: 1) os homens têm direito à conservação de suas vidas; 2) o trabalho
de um homem é propriedade sua (MACPHERSON, p. 212).
Mas há três limitações ao direito de propriedade, duas explícitas e a terceira
implícita. 1ª) Alguém pode apropriar-se somente de um tanto que deixe bastante e de igual
qualidade para os demais em comum. 2ª) Qualquer pessoa pode fazer uso de qualquer
vantagem da vida antes que se estrague; o que excede isso pertence aos outros, nada pode
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perecer inutilmente nas mãos do apropriador. 3ª) Para Macpherson (1979, p. 213), a
terceira limitação seria a quantidade que cada pessoa pode obter mediante seu trabalho.
Essas limitações ao direito de propriedade podem ser transcendidas. A invenção
do dinheiro e o acordo tácito de atribuir-lhe um valor possibilitaram um direito a posses
maiores.
Das limitações, a do desperdício pareceu obviamente transcendida pela criação do
dinheiro. O desejo de ter mais do que o necessário ao consumo era um desejo de acumular
terra e dinheiro como capital.
Quanto à limitação da suficiência, não é absoluta, mas sim derivada do direito
natural de cada homem à subsistência. Perceba-se que Locke fala em subsistência e não em
direito à vida. A Constituição Federal do Brasil fala em direito à vida e, para os juristas,
trata-se de um direito à vida digna. Mas Locke fala em subsistência ou autoconservação.
O direito à subsistência ou autopreservação só pode ser atendido de duas
maneiras. Uma é determinar que todos tenham acesso à apropriação da terra, enquanto
existir muita terra não apropriada. Mas a outra maneira, viável quando já não houver terras
livres, é garantir aos despossuídos o direito de trabalhar para os proprietários.
O fim principal para a união dos homens em sociedade política e submissão a um
governo é a preservação da sua propriedade. Às vezes Locke refere-se a propriedade em
sentido lato (vida, liberdade e bens), mas às vezes apenas a bens e fortuna. Dessa
ambiguidade resulta que os despossuídos podem ou não estar dentro da sociedade civil.
Para Macpherson (1979, p. 260), todos são membros da sociedade civil, tendo ou
não propriedade, e nela estão incluídos como interessados na preservação das próprias
vidas e liberdades. Ao mesmo tempo, somente os proprietários podem ter plena cidadania,
pois apenas eles têm interesse na preservação da propriedade e apenas eles são capazes de
vida racional. A ambiguidade com relação a quem é membro da sociedade civil permite que
Locke considere que todos são membros para efeito de serem governados, mas apenas os
proprietários é que devem governar. Vale lembrar que, na Constituição do Império do
Brasil, o direito de ser votado era baseado na propriedade e na renda.
Nenhuma sociedade civil pode existir sem ter os meios necessários para preservar
a propriedade e, para tanto, punir os culpados de delitos contra a propriedade. A sociedade
política implica a renúncia ao poder natural de punir de acordo com o juízo particular de
cada um.
O fim do governo é o bem da humanidade, mas se o povo estiver exposto à
vontade ilimitada da tirania, esse é o exercício do poder visando ao interesse próprio do
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governante e não ao bem comum. O Estado foi criado para garantir o direito à propriedade
e, quando deixa de cumprir esse fim ao qual foi destinado, torna-se ilegal e degenera em
tirania. Com a violação do direito à propriedade, Locke reconhece ao povo o direito de
resistência, mediante o recurso à força para a deposição do governo rebelde
Referências Bibliográficas:
CINTRA, Rodrigo Suzuki. Locke e o direito de resistência. Disponível em: <
http://www.estig.ipbeja.pt/~ac_direito/Rodrigo_Suzuki2.pdf> Acessado em: 01/08/2013
HENRICHSEN,
Chris.
Locke
on
Property:
A
Critique.
Disponível
em:
<
http://www.patheos.com/blogs/faithpromotingrumor/2012/02/locke-on-property-acritique/> Acessado em: 30/07/2013.
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil - e outros escritos: ensaio sobre a
origem, os limites e os fins verdadeiros do governo civil. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1999.
MACPHERSON, C. B. A teoria política do individualismo possessivo de Hobbes até
Locke. Rio de Janeiro: Paz e Terra Ltda, 1979. 318 p.
MELLO, Leonel Itaussu Almeida. John Locke e o individualismo liberal. In: Os clássicos
da política: Maquiavel, Hobbes, Locke, Montesquieu, Rousseau (Org. Francisco C.
Weffort). V: 1. 6a ed., São Paulo: Ática, 1995, pp. 79-110.
NODARI, Paulo César. A emergência do individualismo moderno no pensamento de John
Locke. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999.
John Locke. Conjectura, Caxias do Sul, RS , v.9, n.1/2, p. 19-41, jan. 2004.
ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia
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LIPMAN: APRENDENDO A PENSAR NA EDUCAÇÃO.
Letícia Nunes Goulart
UNIOESTE
[email protected]
Palavras-chave: Crianças. Educação. Filosofia.
Na perspectiva de Matthew Lipman a sala de Aula vem apresentar todos os passos
para orientar o professor a desenvolver nas crianças o pensar. A cuidar de si em qualquer
idade. Desenvolvendo o cultivo nas diversas habilidades de raciocínio, investigação e
formação de conceitos. Lipman mostra que elas podem ler, discutir e raciocinar. As
crianças conseguem falar das mesmas coisas sobre as quais falam os filósofos: a verdade, a
justiça, a beleza, etc.
Pensar e organizar pensamentos melhorar a lógica das crianças para esta
racionalização ética do pensamento assim como fala no fragmento abaixo:
―A criança que adquiriu proficiência nas habilidades de pensar não é simplesmente
uma criança que cresceu, mas uma criança cuja verdadeira capacidade de crescer foi
ampliada‖. (LIPMAN, 1994, p.36)
A filosofia para crianças é este conjunto de saberes que causam o espanto, a
indagação a curiosidade, que esta profundamente ligada a esse impulso fundamental que
une pensamento e vida.
É um método que alimenta da ideia de autonomia e capacidade de
desenvolvimento do sujeito.
As crianças têm um espaço em suas mentes brilhantes para perguntas metafísicas
extraordinárias que pode nos causar espanto, o fato de que as crianças pequenas são
capazes de fazer perguntas desse porte, é que existem alguns exemplos desses níveis de
perguntas metafísicas que as crianças podem já nos ter feito (ou estão se preparando para
nos fazer) tais como:
O que é espaço?
O que é memória?
O que é número?
O que é matéria?
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O que é a mente?
O que são possibilidades?
O que é a vida?
O que é a morte?
O que é o valor?
Poderíamos dizer: ―- Bem, só porque meus alunos me fazem perguntas que eu
não sei responder isto não os tornam filósofos‖. Com certeza eles não sabem que estão
formulando perguntas metafísicas!
Podem não saber, mas não é isso o que importa. O que se tem que levar em conta
é que as crianças, com sua necessidade de totalidade e globalidade, juntamente com sua
ingenuidade e falta de informação, tentam alcançar respostas completas. Para elas, é tudo
ou nada; não querem saber apenas como isso ou aquilo começou, mas como tudo
começou. Não apenas o que é melhor ou pior, mas o que é ser perfeito. (LIPMAN, 1994,
p.63)
A criança tem esta admiração do mundo, este espanto com as coisas que estão ao
seu redor. Uma das coisas mais maravilhosas da filosofia é que as pessoas de qualquer idade
podem refletir sobre os temas filosóficos e discuti-los de um modo proveitoso. As crianças
ficam fascinadas quando os adultos com noções como amizade ou imparcialidade, e tanto
as crianças quanto os adultos podem reconhecer que ninguém ainda disse a ultima palavra
sobre esses temas. O fato de adultos e crianças, conjuntamente, explorarem as
possibilidades filosóficas, é uma das consequências mais agradáveis e estimulantes da
filosofia na escola de 1° grau.
Na perspectiva de Lipman o ato educacional encerra esta energia humana, capaz
de manter e estimular a capacidade natural de espanto da criança para que esta sinta a
necessidade e o desejo de continuar a se espantar e perguntar ao todo: por quê?
E, mais importante: Lipman acusa o sistema educacional de cultivar a síndrome
do avestruz.
Um visitante de outro planeta cujos habitantes fossem absolutamente racionais
ficaria muito espantado com nosso sistema educacional. Não pelo fato de ignorarmos a
ineficiência do sistema, mas sim pelo método com que combatemos essa ineficiência.
Procuramos, sistematicamente, remedia-lo em vez de reformá-lo para remedia-lo. Quando
o conserto se mostra ineficiente, surgem abordagens compensatórias para remedia-lo.
A origem fundamental do fracasso do sistema em efetivamente distribuir
educação – a imperfeição do seu modelo básico- continua sem serem examinadas, e
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enormes quantias vão sendo investidas em inúteis tentativas de como pensar tanto a
ineficiência do sistema quanto a dos esforços compensatórios e assim sucessivamente.
(Lipman, Sharp e Oscanyan, 1980, A Filosofia e as Crianças p.19).
Para Lipman, as crianças têm as mesmas características dos adultos, mas são
dotadas do pensar bem, ele acredita que uma criança é capaz de analisar ou compreender
um elemento filosófico quanto um adulto, ele afirma também que no programa existe
somente uma diferença entre a criança e o adulto, o programa não pretende modificar o
pensamento infantil, mas explorá-lo naquilo que ele é. Na visão do programa lipmaniano a
criança é um conjunto das aprendizagens essenciais ao desenvolvimento individual e a uma
integração social de qualidade. Portanto, a filosofia graças à reflexão comum, ajuda o jovem
a compreender sua educação e a sua realidade existêncial. Neste sentido á uma educação do
julgamento e do agir que torna ela uma educação moral.
Referencias Bibliográficas:
LIPMAN, Matthew A filosofia na sala de aula/ Matthew Lipman. Ann Margaret Sharp.
Frderick S. Oscanyan: tradução Ana Luiza Fernandes Falcone – São Paulo: nova
Alexandria. 1994.
DANIEL, Marie. France A Filosofia e as Crianças/ Marie – France Daniel; tradução de
Luciano Vieira machado; prefaciação de Matthew Lipman. São Paulo, SP – Nova
Alexandria, 2000.
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FILOSOFIA E TEATRO EM SARTRE
Luiza Helena Hilgert
UNICAMP/FAPESP
[email protected]
Palavras-chave: Teatro de situações. Situação limite. Outro. Liberdade. Projeto.
O estudo da relação entre teatro e filosofia em Sartre permite um recorte
importante dentro de um questionamento muito mais amplo – também mais tenso e
ambíguo – que diz respeito às relações entre as artes e a filosofia. Sem adentrar na
discussão sobre os domínios de uma ou outra, nossa proposta tem o caráter de fomentar a
leitura da dramaturgia sartriana colocando-a lada a lado com sua filosofia, sem buscar
encontrar elementos de representação de uma na outra, mas avizinhando-as de forma a
dotá-las, ambas, com estatuto reflexivo, ainda que cada forma de expressividade mantenha
sua singularidade.
O teatro do modo como Sartre o concebe privilegia o momento da ação, apresenta,
concomitantemente, a construção do ato e do caráter do personagem, revelando a ligação
fundamental entre homem, ação e situação. Assumindo que são os atos que determinam o
caráter de alguém – e não o avesso –, o momento próprio em que a ação acontece, a sua
gênese, os aspectos que a circundam, as consequências e os seus significados, enfim, a
situação toda na qual aquela ação nasce, deverá ser realçada e destacada, isso vale tanto para a
filosofia quanto para os romances e peças de teatro sartrianos. Esse tipo de teatro que
coloca em relevo a situação em detrimento da psiqué dos personagens, ou de lições morais,
foi nomeado de teatro de situações. Nele, são apresentados os grandes mitos da sociedade
contemporânea: morte, exílio, amor, loucura, violência.
São comuns no teatro e na literatura de Sartre temas como a morte e a violência,
exemplos contundentes de circunstâncias extremas, chamadas por Sartre de situaçõeslimite. A iminência da morte demonstra, de forma privilegiada, a vulnerabilidade e a
fragilidade humanas, o que pode configurar como momento especial para constatação da
condição humana por parte de cada homem em sua singularidade. Seria desnecessário dizer
que numa situação de violência e de perigo de morte as ações têm importância e
consequência maiores. Uma escolha errada e a vida é ceifada.
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Na filosofia existencialista de Sartre, a morte é o domínio do Em-si, do ser, da
inércia, da fixidez, da totalização, da impossibilidade da ação; em oposição ao Para-si, ao
nada, à liberdade, à vida, à ação, aos possíveis. Vivo, cada homem constrói sua essência pelos
seus atos, agregando vivências a um passado presentificado, cujo sentido pode ser
modificado a cada novo ato ou nova reconfiguração dos projetos existenciais. Morto, os
atos cometidos são encerrados na totalização do passado, na cristalização da essência e a
vida é agora tornada como coisa que dependente da interpretação daqueles que
permanecem vivos para que ela tenha algum sentido.
Com a intenção de analisar e refletir acerca do lugar do teatro no conjunto da
obra de Sartre, escolhemos três peças. A primeira delas é Huis clos, escrita em 1943,
encenada pela primeira vez no fim da Segunda Guerra Mundial, em 1944; traduzida para a
língua portuguesa como Entre quatro paredes. A segunda peça é Les mouches, As moscas em
português. Escrita entre 1942 e 1943, foi encenada pela primeira vez em 1943 no teatro de
la Cité sob ocupação alemã. A terceira, La putain respectuese, ou A prostituta respeitosa,
encenada em 1946, causou polêmica com os Estados Unidos por conta do seu conteúdo.
Ricas em metáforas e símbolos, todas as peças contêm as principais temáticas do
conjunto da filosofia sartriana, em especial, a liberdade, responsabilidade, projeto, má-fé,
autenticidade, Outro, etc.
A presente comunicação busca ser muito mais um convite à leitura e à pesquisa
do teatro de Sartre que propriamente o esgotamento das possibilidades de estudo sobre a
dramaturgia sartriana ou sobre as peças aqui tratadas ou ainda sobre a relação entre
filosofia e teatro em Sartre. Serão apontados alguns caminhos que visam instigar novas
possibilidades de discussão teórico-filosófica ao aproximar e relacionar filosofia e teatro,
evidenciando a reciprocidade e, inclusive, a exigência entre ambos, principalmente no caso
das obras de Sartre, uma vez que este estudo parte da perspectiva de conjunto da obra,
expandindo a investigação teórica para o campo ficcional, vinculando a uma pesquisa muito
mais ampla e profunda que procura compreender o estatuto e o lugar dessa dupla
expressividade – ficção e filosofia – em Sartre. Mais do que querer encontrar filosofia nas
obras ficcionais, esse texto coloca como proposta encarar a dramaturgia como uma outra
linguagem que expressa questões sobre a condição humana, tema privilegiado na filosofia
contemporânea, sobretudo, no existencialismo.
A dinâmica da apresentação consiste em três momentos. Inicialmente visa
compreender a ideia de teatro de situações em Sartre, para tal lançaremos mão de conceitos
filosóficos como situação-limite, projeto, desvelamento, liberdade, má-fé, autenticidade,
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etc. presentes na obra O ser e o nada vinculados à proposta presente em Un théâtre de
situations. O segundo momento pretende demonstrar como personagem e situação se
relacionam em cada uma das três peças escolhidas para serem trabalhadas, a fim de
evidenciar a característica de teatro de situação. Por último, será exposta uma breve tentativa
de aproximação entre as peças referidas e as obras teóricas de Sartre no ensaio de uma
compreensão da relação entre filosofia e ficção no conjunto da obra de Sartre.
Referências bibliográficas:
COX, Gary. Sartre and fiction. London; New York: Continuum, 2009.
NOUDELMANN, François. Huis clos et Les mouches de Jean-Paul Sartre. Paris: Gallimard,
1993.
O‘DONOHOE, Benedict. Sartre‟s theatre: acts for life. Modern French Identities, 34. Bern:
Peter Lang, 2005.
SARTRE, Jean-Paul. A prostituta respeitosa. Trad. Maria Lúcia Pereira. Campinas: Papirus,
1992.
___________. As moscas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005
___________. Entre quatro paredes. Trad. Alcione Araújo e Pedro Hussak. 2. ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
___________. La responsabilité de lʼécrivain. Lagrasse: Verdier, 1998
___________. L‟être et le néant. Essai d‘ontologie phénoménologique. Paris: Gallimard,
1943.
___________. Qu´est-ce que la littérature? Paris: Gallimard, 2008.
___________. Un théâtre de situations. Paris : Gallimard, 1973.
ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia
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A VERDADEIRA LIBERDADE: POR QUE, PARA HEGEL, A FILOSOFIA
NÃO PODE COMEÇAR PELOS ORIENTAIS?
Maglaine Priscila Zoz
UNIOESTE/CAPES
[email protected]
Luciano Carlos Utteich
Palavras-chave: Hegel. História. Liberdade. Filosofia Oriental.
Diferentemente da Ciência da Lógica, onde Hegel se pergunta ―qual deve ser o
começo da ciência?‖, tratando assim do começo da filosofia dentro de estruturas lógicas do
pensamento; nas suas Lições Sobre História, o foco da sua resposta é quanto aos critérios
para o florescimento da filosofia em um determinado povo e o não florescimento em
outros povos. A perspectiva de explicar o começo da filosofia por um víeis histórico, nos
lança na busca dos elementos que caracterizam este florescimento do pensamento, de
forma que, neste texto, a busca será por esclarecer o porquê Hegel reconhece o começo da
filosofia em berço grego e não oriental. Com o esclarecimento desta diferença, teremos
uma analise de como Hegel concebe historicamente o desenvolvimento do pensamento
nestes povos, e reconhecer o que vem a ser o cerne para o início do filosofar.
A noção de história universal representa a evolução da consciência que o espírito
tem de sua liberdade e a evolução que tal consciência lhe traz. Ou seja, a filosofia surge
onde ela pode encontrar naturalmente a liberdade, a liberdade do pensar. Para um povo
poder desenvolver a filosofia ele deve ter como principio básico à liberdade, o que para
Hegel exige também que esse povo tenha uma liberdade política, que para ele é a
verdadeira liberdade. ―Devido a esta ligação geral de liberdade política com liberdade de
pensamento, a filosofia só aparece na história em que e na medida em que são criadas
constituições livres (...)‖8. (Hegel, 1996, p.92)
É importante se ter claro que para Hegel a liberdade não é uma coisa individual,
mas deve ser algo coletivo, de um povo. Enquanto liberdade individual ela é apenas algo
―Por razón de esta conexión general de la libertad política con la libertad de pensamiento, la filosofía sólo
aparece en la historia allí donde y en la medida en que se crean constituciones libres (…)‖
8
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negativo, sendo um capricho, e assim limitada; Consequentemente, a verdadeira liberdade é
a política, dado que é somente por um Estado plenamente racional que podemos ver o
desenvolvimento do Espírito, pois, é somente quando a vontade se torna geral, por meio
de uma lei geral, é que temos um fortalecimento do espírito, pois, temos a projeção de um
pensamento sobre o pensamento, a vontade deixa de ser finita. ―(...) quando um povo quer
ser livre, o que se faz é suspender seus apetites a uma lei geral, mesmo que antes o que ele
queria era somente algo particular.‖9 (Idem).
A vontade finita é uma característica específica dos povos orientais, para Hegel,
esses povos vivem num estado de senhor e servo, e desta forma, a vontade não é livre, ―(...)
aqui a vontade não se libertou do finito, somente se pode conceber negativamente: e este
sentimento de negação, de que algo não pode fazer frente ao que se opõem, é precisamente
o medo (...)‖10 (Idem, p.93). A consciência oriental pode chegar ao infinito, contudo isso
seria algo abstrato, sendo considerado apenas um acidente, pois vai contra o poder que o
indivíduo teme. Aquele que domina pelo medo, por mais que as suas obras sejam boas, a
sua vontade não se configura como lei, mas apenas arbitrariedades. Para Hegel, onde a
vontade é finita e a infinitude só chega por meio de abstrações, não é terreno para se brotar
a liberdade.
Diante disso, somente onde exista uma relação entre homens livre com homens
livre, existe uma vontade geral, leis essenciais, é neste meio que se encontra o terreno para
o florescimento da filosofia, algo que para Hegel só aconteceu com a chegada do povo
grego. Com isso, Hegel não está negando a existência de escravos na Grécia, porém, em
comparação com os povos orientais, os gregos possuíam uma liberdade real, ou o
florescimento desta, dado que ―(...) no Oriente só é livre um indivíduo, o déspota; na
Grécia, são livres alguns indivíduos; no mundo germânico, rege a norma que todos sejam
livres (...)‖11 (Idem, p.96). Em suma, a liberdade não se constitui de apenas um indivíduo
livre, mas somente quando este indivíduo livre pode fazer frente a outro indivíduo livre,
quando as vontades individuais são deixadas em prol de uma vontade mais geral, é que
constituímos a liberdade.
―(...) cuando un pueblo quiere ser libre, lo que hace es supeditar sus apetitos a la ley general, mientras que
antes lo por él querido era solamente algo particular.‖.
10 ―(...) aquí la voluntad no se ha liberado todavía de lo finito, sólo se puede concebir negativamente: y este
sentimiento de la negación, de que algo no podrá hacer frente a lo que se opone, es precisamente el medo
(…)‖.
11 ―(...) en el Oriente sólo es libre un individuo, el déspota; en Grecia, son libres algunos individuos; en el
mundo germánico, rige la norma de que todos sean libres (…)‖.
9
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Referências Bibliográficas:
HEGEL, G. W. F. Lecciones Sobre la Historia de la Filosofía I. Tradução de Wenceslao Roces.
México: Fundo de cultura económica, 1996.
____________. Lecciones sobre la filosofía de la Historia Universal. Tradução de José Gaos.
Madri: Editora Tecnos, 2005.
TAYLOR, Charles. Hegel e a Sociedade Moderna. Tradução de Luciana Pudenzi. São Paulo:
Edições Loyola, 2005.
ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia
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LIBERDADE E IGUALDADE EM ROUSSEAU
Marlene de Fátima Rosa
Mestranda em filosofia pela
UNIOESTE (Universidade Estadual do Oeste do Paraná).
[email protected]
Palavras-chave: Liberdade. Igualdade. Poder político.
O presente artigo tem como objetivo reunir alguns elementos que nos possibilite
entender como Rousseau resolve o problema da ilegitimidade do poder político, através
dos princípios de liberdade e igualdade presentes no modelo de ordenamento político
apresentado por ele na obra Do contrato social.
As questões da liberdade e da igualdade sempre estiveram presentes nas
investigações de Rousseau, na obra do Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade
entre os homens, onde ele descreve a história hipotética da humanidade para demonstrar
como os homens saíram do estado de natureza para ingressaram na sociedade civil,
podemos encontrar uma série de argumentos que mostram que a liberdade e a igualdade
são princípios que fazem parte da vida nesse no estado. Princípios esses que foram
desaparecendo à medida que os homens foram se afastando de sua condição primitiva e
tornando dependentes uns dos outros.
A desigualdade existente entre os homens no momento da instituição da sociedade
civil fez com que o pacto social, proposto como alternativa de instituir ―regulamentos de
justiça e paz‖ (ROUSSEAU, 1989. P. 99), não cumprisse a sua função. Os homens ao
pactuarem em condições de desigualdades ao invés de resolver os problemas existentes na
sociedade, ―destruíram de maneira irremediável a liberdade natural, fixaram para sempre a
lei da propriedade e da desigualdade (...) sujeitaram daí em diante todo o gênero humano ao
trabalho, à servidão e à miséria (ROUSSEAU, 1989. P. 100)‖.
Para Rousseau a condição humana de miséria e servidão vivida pela maioria das
pessoas só tende a piorar se não forem mudado os modelos de ordenamento existentes até
o Século XVIII.
A desigualdade política ou moral observada nas sociedades é algo
maléfico, ela priva os homens do exercício da liberdade. Sendo assim, se não for criado um
modelo de ordenamento legítimo e seguro que garanta o exercício da liberdade e a
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igualdade entre os homens os poderes políticos chegarão ao mais alto grau de degeneração
que é a tirania. Para evitar que as coisas cheguem a esse ponto e por acreditar que existe um
caminho que pode reconduzir os homens a condição de liberdade, Rousseau propõe na
obra Do contrato social um pacto que ―parte de um consentimento unânime‖, onde ocorre
―a alienação total de cada associado, com todos os seus direitos à comunidade toda‖
(ROUSSEAU, 1987. p 32). O grande diferencial desse modelo de ordenamento dos
existentes, é que nele não existe um superior comum porque cada um ―põe em comum sua
pessoa e todo o seu poder sob a direção suprema da vontade geral‖ (ROUSSEAU, 1987. p.
33).
Segundo Rousseau, esse deve ser o caminho para recobrar a liberdade perdida nos
descaminhos tomados pela sociedade, um tipo de ordenamento político onde os indivíduos
livremente limitam sua liberdade natural e passam a obedecer á vontade geral da sociedade
a fim de proteger sua pessoa e os seus bens. A ideia é estar submetido às leis expressa pela
vontade geral e não a nenhum particular. Os indivíduos após esse pacto se encontram
comprometidos em uma dupla relação com o corpo coletivo. Enquanto membro do
soberano que cria as leis e enquanto súdito que obedece às leis que ele mesmo ajudou a
criar.
Um modelo de poder político assim constituído resulta em uma soberania:
absoluta, inalienável, indivisível e infalível. Quando qualquer uma dessas características é
ferida a soberania deixa de ser da vontade geral e o poder legitimamente constituído se
torna ameaçado, e, se nenhuma medida for tomada corre o risco desse poder se degenerar,
por isso, Rousseau depois de estabelecer os princípios do direito político segue suas
análises mostrando uma série de cuidados que devem ser tomados para que o poder
político legitimamente constituído não se degenere em poder ilegítimo.
Referências Bibliográficas:
RUSSEAU, Jean-Jacques, Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens.
Tradução de Iracema Gomes Soares e Maria Cristina Roveri Nagli. Brasília: Ed. UnB; São
Paulo: Ática, 1989.
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_________. Do contrata social. Tradução de Lourdes Santos Machado. 4ª. Ed. São Paulo:
Nova Cultural, 1987. (Coleção os Pensadores).
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O ESQUECIMENTO DO SER NA FILOSOFIA DE HEIDEGGER
Marcos Antonio de Souza Brito
[email protected]
Palavras-chave: Metafísica, esquecimento, Ser
Explorar os sentidos para ―esquecimento do Ser‖ não se resume em expor a
questão norteadora do pensamento heideggeriano, em simplesmente explicitar o ponto de
partida das suas reflexões mais dedicadas.
A análise deste fato implica na exposição da história da metafísica, da história do
homem. Neste sentido a filosofia de Heidegger adquire o mérito de representar uma
história do pensamento ocidental sem, no entanto, apresentar-se como tal. A composição
de uma história da filosofia não representa o cumprimento de uma deliberação, não
importa sua exposição pura e simplesmente, desvinculada do seu contexto.Repensar esta
história é parte imprescindível à tarefa de recolocação de uma questão há muito
esquecida.A proposta de Heidegger não é de apenas retomar, mas de destruir esta tradição,
tendo em vista sua disposição em seguir por uma via incapaz de fornecer o desvelamento
do Ser.
A preocupação central da filosofia de Heidegger gira em torno da questão do Ser:
esta pode ser declarada como o motivo original de seus trabalhos quando trata do
pensamento, da ciência, da arte, etc. Ainda quando explora a conjuntura política de sua
época, é no horizonte desta questão que se movimentam seus esforços.Com efeito,se
assumimos como estratégia de penetrar em seu pensamento a mediação desta questão, logo
perceberemos o quanto se tornará oneroso visto sermos forçados a tocar em quase toda
obra. Mesmo a exploração de um dos seus aspectos, o esquecimento, resulta em árdua
tarefa pois aí não poderá ser negligenciada a história daquele modo de pensamento
ocupado com o Ser: a metafísica. Sendo mais claro, independente do ponto de inserção
adotado para se chegar ao centro da obra iremos passar invariavelmente por esta
problemática e nela, quando da chegada, seremos obrigados a permanecer demoradamente.
Tão presente entre os filósofos ditos pré-socráticos o sentido do Ser tornou-se
problemático à medida que caiu no esquecimento.
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O fenômeno do esquecimento do ser na modernidade é perfeitamente ilustrado
pelo discurso da ciência; mas em que sentido esta representa entrave ao desvelamento? A
análise detida o suficiente sobre o operar da ciência nos revela que esta se satisfaz (mesmo
se compraz) com a exploração dos entes; não o faz, porém, a propósito de uma
desconsideração deliberada sobre o sentido do ser, mas tão somente por acreditar que tal
exploração quando plenamente realizada irá conduzir ao desvelamento pretendido. Desta
forma o método científico mostra-se como o que há de mais nocivo, pois, valendo-se
autoridade autoconferida incute no imaginário propriedades exclusivamente suas: a ciência
é o instrumento apropriado,a exploração dos entes é o método infalível.Com estes
fundamentos à mão convém ao ―homem teórico‖, no dizer de Nietzsche, divulgar os
benefícios provenientes da racionalidade igualmente desenvolvida em todo humano,para
tanto bastando haver liberdade de expressão suficiente.Destruir os ídolos,erigir o cogito,a
tarefa das críticas, etc, deram o impulso decisivo ao ocultamento do ser,quanto mais
fossem claras e distintas as verdades dos entes.
Quando se fala em esquecimento do esquecimento a referência aí é a
modernidade, exatamente ao caminhar da ciência moderna. Se antes o ser ressurgiu para
depois desaparecer novamente dando lugar a Deus a modrnidade operou a destituição
completa da importância de sua problemática. Não se coloca mais a questão, nem para
atribuir seu sentido a algo que não lhe diz respeito, nem mesmo para remeter a discussão a
um rumo totalmente alheio. Banir a reflexão sobre o ser requer prepararmo-nos para o
domínio da banalidade consequente.
A história do pensamento, a partir de Platão, adquiriu como característica central a
―entificação do ser‖; considerando o peso de suas ideias para a filosofia e a ciência
ocidentais, sem dúvida, podemos dizer que somos herdeiros diretos do platonismo,
independente da versão: popular ou erudita. Além de Platão e, mais que isso, somos
herdeiros do modo grego de pensar e produzir conhecimento; com eles adquirimos o
hábito de perguntar primeiramente ―o que é?‖, tomando geralmente esta pergunta como a
mais importante. O que deveria ser apenas o impulso inicial, a indagação ―o que é?‖ se
consolidou como sendo a principal.
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A CIVILIZAÇÃO ENQUANTO ENFRAQUECIMENTO DO HOMEM
Maurício Smiderle
Unioeste/PET Filosofia
[email protected]
Wilson Antonio Frezzatti Junior
Palavras-chave: Má consciência. Impulso. Nietzsche.
Ao necessitar do convívio social, segundo Nietzsche, o homem precisou controlar
os seus instintos. Realizando isto, gerou-se a má consciência, isto é, a doença do sofrimento
do indivíduo com si próprio. Ela serviu de pré-condição para a civilização, pois é o
resultado da transformação de animais inconstantes e violentos em seres pacíficos e
uniformes. Na pré-história, o homem era um ser que dava livremente vazão aos seus
instintos básicos. Aquela vontade de praticar o mal pelo prazer de fazer o mal era realizada
sem nenhuma culpa ou repressão. O ser humano agia de modo instável, exteriorizando os
seus impulsos ou instintos livremente.
Entretanto foi necessário, segundo Nietzsche, que o indivíduo obtivesse uma
memória para que fosse possível o convívio social. A memória é engendrada através da dor,
isto é, por meio da produção de sofrimento, grava-se certos pensamentos na mente do
animal homem. Ela foi fundamental para criação da civilização, pois serviu de base para a
relação que propiciou a má consciência: a relação entre credor e devedor. Pensando em
adquirir a confiança do credor, o devedor dispunha-se a ceder algo que possuía, caso não
conseguisse pagar a dívida, tal como o seu corpo. Ou seja, caso o devedor não pagasse a
dívida, o credor poderia aplicar todo o tipo de martírios sobre o seu corpo. A ideia era
substituir um dano ocorrido pelo prazer de causar sofrimento. O sofrimento alheio sempre
foi encarado como uma fonte de satisfação. Na comunidade da pré-história, quando o
devedor não restituía a dívida, ele era considerado um criminoso. Assim, segundo o
filósofo, era aplicado o castigo: deixando que a ira do credor pudesse ser descarregada
sobre o devedor.
Foi a relação entre credor e devedor que originou o sentimento de culpa no animal
homem, ou seja, a relação entre o indivíduo e os seus antepassados. A comunidade percebe
uma forma de dívida para com as antigas gerações, pois foi devido a elas que a geração
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atual possui as suas vantagens. Com isto, crescerá o sentimento de dever e culpa conforme
cresce as vantagens da comunidade, encerrando por divinizar os antepassados. Haverá um
sentimento de culpa e dever para com os antigos por causa da impossibilidade de efetuar o
pagamento da dívida ou, até mesmo, de realizar o castigo. Desta forma, o sentimento de
culpa irá penetrar no indivíduo no qual a má consciência já se encontra presente,
provocando um agravamento na situação dessa doença.
Para o filósofo alemão, a má consciência surgiu quando uma população de
conquistadores e senhores dominaram seres nômades. Os senhores expressavam os seus
impulsos básicos nos fracos, fazendo com que estes reprimissem os instintos, criando a má
consciência. Esta não foi criada nos conquistadores, mas foi preciso deles para que ela
surgisse nos demais indivíduos. Com a má consciência, que foi gerada pela sociedade, o
homem passou a torturar e violentar a si mesmo, pois não era possível realizar isto
exteriormente. A má consciência se caracteriza por realizar uma inversão na direção da
expressão impulsional: antes os instintos eram descarregados para fora, agora os instintos
possuem como alvo o próprio indivíduo. Deste modo, a má consciência é ―a profunda
doença que o homem teve de contrair sob a pressão da mais radical das mudanças que
viveu – a mudança que sobreveio quando ele se viu definitivamente encerrado no âmbito
da sociedade e da paz‖ (NIETZSCHE, 2009, p.67). O sentimento de culpa apenas piorou a
gravidade dessa doença, porque o sentimento de estar em débito foi utilizado pelo homem
como justificativa para violentar a si mesmo. ―O que revolta no sofrimento não é o
sofrimento em si, mas a sua falta de sentido‖ (Idem, p.53). Com a má consciência e o
sentimento de culpa, o ser humano tortura a si pelo prazer de causar o sofrer.
A má consciência, segundo o filósofo, se mostra extremamente necessária para a
existência da civilização (Civilisation). Esta não possui como significado o melhoramento do
animal homem, mas o seu enfraquecimento. ―Nietzsche, portanto, considera a civilização
como um esquema que distorce e reprime as capacidades propriamente humanas‖
(FREZZATTI, 2006, p. 91). Ela amansa e doma o indivíduo, procurando transformar o ser
humano em um ser doente. A civilização é vista como o alastramento da doença da má
consciência, convertendo todos os indivíduos em seres fisiologicamente decadentes.
Assim, segundo Nietzsche, a interiorização dos instintos se mostra necessária para
o processo civilizatório. Com a má consciência, o ser humano consegue obter as ―virtudes‖
para a vida na civilização. Isto não representou uma melhora da humanidade, mas
transformou o animal homem em um animal doente.
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Referências Bibliográficas:
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. Tradução, notas e posfácio Paulo César de
Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
FREZZATTI Jr, Wilson Antonio. A fisiologia de Nietzsche: a superação da dualidade
cultura/biologia. Ijuí: Ed. Unijuí, 2006.
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A METÁFORA ENTRE O SENTIDO E A REFERÊNCIA:
UMA ABORDAGEM RICOEURIANA
Odair Salazar da Silva
SED/SC
[email protected]
Palavras-chave: Metáfora. Sentido. Referência
Paul Ricoeur apresenta em sua produção linguístico-filosófica o fenômeno da
metáfora (viva) como um instrumento epistemológico, que objetiva defender a tese de que
o referido tropo não tem apenas função de plasticidade, de imitar as ações humanas na
tragédia ou colmatar uma lacuna linguística. Pensando assim, o filósofo francês procura
criar uma nova metodologia linguístico-filosófica, aplicando-a à metáfora, que garante um
novo significado passível de aceitação. A partir da compreensão do conceito de ―sentido‖ e
―referência‖, adaptado ao discurso literário, cuja origem está Gottlob Frege, é que Ricoeur
propõe não só descrever linguisticamente, mas pensar filosoficamente o poder heurístico
da metáfora. A pesquisa parte da hipótese de que a metáfora é uma ferramenta legítima que
tem o poder de oferecer novos insights sobre a realidade, no momento em que o absurdo
linguístico de uma dada sentença se autodestrói ao eliminarem-se o sentido e a referência
primários, para darem lugar a um sentido e referência secundários, de onde brota uma nova
visão de mundo, válida, passível de aceitação. Esta metodologia adotada por Ricoeur
assegura que não só os discursos ordinários são os detentores de verdades de mundo. Ao
contrário, os discursos literários são também possuidores de informação inédita, a partir de
um erro sentencial já calculado (mistake error- Gilbert Ryle) e resolvido. Afinal, o ―poema é
uma metáfora em miniatura‖, cuja função é desvelar um novo mundo compreensível, no
dizer de Monroe Beardsley, de quem Ricoeur é seguidor.
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O SOFRIMENTO COMO POSSIBILIDADE DE CRESCIMENTO HUMANO:
MA LEITURA NIETZSCHANA À LUZ DO PERSPECTIVISMO
Osmilto Moreira Silva
Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT),
[email protected]
Palavras-chave: Friedrich Nietzsche. Sofrimento. Destino. Perspectivismo. Crescimento
Humano.
O presente texto enseja pensar o tema do sofrimento na filosofia do filólogo e
poeta alemão Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900). A pre-tensão de nosso estudo é
adentrar na questão do sofrimento, abordado por Nietzsche, na tentativa de problematizalo, sobretudo em sua autobiografia (Ecce Homo), algumas obras ( Gaia Ciência; O Nascimento
da Tragédia; Aurora; Assim Falou Zaratustra e Humano, demasiado humano) e consequentemente
os fragmentos póstumos. Por conseguinte, reconhece-se a importância do perspectivismo
como método nietzschiano redigido em sua obra aforismática juvenil intitulada ―Gaia
Ciência‖, no aforismo §374, que traz como subtítulo ―Nosso Novo Infinito”. Nesse pequeno
aforisma, parafraseado sinteticamente, Nietzsche reforça que as distintas perspectivas é a
condição básica de infinidades ópticas de vida. Suscintamente, o ponto de partida gira em
torno de que o sofrimento é inerente à espécie humana em sua permanente trajetória na
terra. Sendo assim, o primeiro passo consiste em dedicar-nos exclusivamente a cultura
grega arcaica. O problema é que a questão do sofrimento (phatos), porventura, foi à
condição pela qual emergiu por meio das narrativas mitológicas, o nascimento da tragédia
grega representada pelos escritores da antiguidade (Ésquilo, Eurípedes e Sófocles).
Posteriormente, as peças teatrais gregas davam ênfase ao sofrimento pessoal no cotidiano
como algo inevitável na/da vida humana. Configurava-se assim então, a ideia de que viver é
colocar-se em abismo (ex-perion) constantemente. Talvez, o sentido crucial da tragédia grega
seja o fato de que existem coisas que estão dadas no mundo como destino (moíras) de
fatalidade para a existência humana. E esse é também o fato do porque Arthur
Schopenhauer (1788-1860) não conseguiu libertar-se do pensamento clássico grego.
Pressuposto levantado por Friedrich Nietzsche. Isto é a experiência da tragicidade se dá a
astuta existência humana, como destino traçado dos deuses pela própria existência, isto é, o
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instante trágico que segundo Nietzsche passa por meio de uma esfera antropológica, como
vontade de superação ética do próprio destino da existência, fazendo com que o SobreHomem (Übermensch), afirme integralmente a vida em sua máxima e corpórea-vital
expressividade artística. Pois, para Nietzsche é somente a arte que em última instância,
confere pleno significado incondicional a própria vida. Em suma, partir da cultura grega
artística e filosófica significa recomeçar o caminho experiencial (empeiria), de aceitação do
destino, em seu aspecto trágico, porém, normal e alegremente a existência humana, cuja
vontade de potência reforça no Sobre-Homem, a superação do sofrimento, como
possibilidade de crescimento humano, que adquire constantemente, no pensamento trágico
do eterno retorno-do-mesmo, uma hipó-tese, cosmológica-ética, de justificação est-ética da
existência.
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JACOBI E A MORALIDADE DO IDEALISMO TRANSCENDENTAL
Pedro Henrique Vieira
UFPR/REUNI
[email protected]
Orientador: Marco Antonio Valentim
Palavras-chave: Crença. Niilismo. Idealismo transcendental.
As objeções publicadas por Jacobi no posfácio ao seu diálogo David Hume sobre a
crença ou Idealismo e Realismo, de 1787, representa um momento decisivo para a assimilação
histórica do pensamento de Kant. Com suas críticas, Jacobi pretende localizar o ponto
preciso do mal entendido kantiano, bem como o caminho da real concretização do
idealismo transcendental. Segundo ele, Kant se afasta do espírito de seu sistema quando
admite que objetos afetam a sensibilidade humana. Isso porque admite que espaço e
tempo, com tudo o que contêm, em nada dizem respeito às coisas mesmas e, com isso,
limita todo conhecimento humano à experiência subjetiva. Contudo, pressupondo uma
afecção sensível, Kant implicitamente aceitaria coisas em si como causa das impressões
recebidas, o que seria contrario à sua própria filosofia. É essa a razão pela qual Jacobi
afirma que Kant deveria deixar de lado a admissão de um objeto que afeta a sensibilidade e,
sendo coerente, reduzir inteiramente a natureza ao sujeito. A realização do idealismo
transcendental seria, segundo ele, a assunção de seu inevitável egoísmo especulativo.
Essa compreensão que Jacobi faz da filosofia crítica alcança grande repercussão na
Alemanha de fins do século XVIII e início do XIX, exercendo influência direta sobre o
desenvolvimento de perspectivas que, ainda que profundamente divergentes, se encontram
todas estreitamente ligadas a interpretações da filosofia de Kant, como por exemplo, o
pensamento de Hegel e o de Schopenhauer. O célebre ―dilema de Jacobi‖, como ficou
tradicionalmente conhecido, possui tal importância no devir histórico das diversas
compreensões do pensamento kantiano que ainda hoje é encarado muitas vezes como um
obstáculo e um desafio necessários de se ultrapassar e combater, se se quer estabelecer a
coerência interna da filosofia crítica.
Por isso, pretendemos aqui investigar os fundamentos dessas objeções a partir do
pensamento do próprio Jacobi. Essa tarefa, necessária para a compreensão do estatuto
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dessas críticas, nos conduzirá a um diagnóstico acerca da moralidade do idealismo
transcendental implícito numa objeção aparentemente revestida de elementos puramente
epistemológicos. Partindo da noção central de crença, compreenderemos que a filosofia de
Kant representa, para Jacobi, o ápice de um afastamento do homem em relação ao cerne
fundamental da vida. A acusação de egoísmo especulativo é fundada na intenção de
restituir ao pensamento de Kant seu verdadeiro espírito, sua moralidade própria, que
consiste na arrogância humana de tentar guiar a si mesmo independentemente de qualquer
outra coisa, e, por fim, se revestir de nada e se pôr distante das coisas divinas.
Para Jacobi, a fé é o elemento primordial da vida. A fé revela a natureza,
possibilitando a percepção e fundamentando qualquer vivência posterior – qualquer anseio,
ação ou conhecimento. O aprofundamento vital da revelação efetuada pela crença é o
caminho pelo qual o homem pode conduzir a si mesmo em consonância com o verdadeiro.
Por este caminho ele se torna consciente de sua liberdade, de sua origem em Deus e da
vida eterna a que se destina sua alma. É assim que, num salto mortal, o homem acede da
transitoriedade de sua natureza rumo a uma experiência interna e intuitiva do infinito.
Contudo, o afastamento em relação ao que ensina a fé primordial se caracteriza
como um desvio do verdadeiro que, no homem, o coloca no caminho do nada. A
complexidade de seu mecanismo vital, expressão de seu alto grau de vida, permite ao
homem compreender os objetos com tal generalidade e universalidade que ele corre o risco
de deixar de lado todo o particular, embrenhando-se num mundo de conhecimentos no
qual confunde as coisas com os conceitos que ele mesmo cria. Ao inventar um
conhecimento que toma como sendo a própria natureza, ele é conduzido a derivar todas as
coisas a partir de si mesmo, abandonando completamente o que a ele se revela pela fé. Por
consequência, é levado a compreender a si mesmo como fundado em nada, como um nada
a partir do qual se derivam todas as coisas que, ao cabo, se reduzem também a nada.
É nessa esteira, derivando toda a experiência humana de si e do mundo a partir do
processo vital engendrado pela crença, que Jacobi interpreta o idealismo transcendental de
Kant. Tratar-se-ia este último de um afastamento do homem em relação à crença que
revela a natureza, afastamento esse que o direcionaria a um mundo de puro conhecimento
em que tudo se converte em nada. Transformando dessa maneira a natureza num produto
subjetivo, fruto da mera razão, o homem encontraria aval para o direcionamento de si
próprio unicamente através da concordância consigo mesmo. Nisso, porém, ele
progressivamente se distanciaria das coisas divinas e da possibilidade de alcançar a
consciência do infinito. É essa a moralidade do idealismo transcendental: a arrogância do
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homem que, querendo se assenhorear de sua própria vida, transforma a natureza num nada
criado por ele próprio. Criticando a Kant, Jacobi pretende restituir-lhe o inevitável egoísmo
especulativo implícito na presunção de sua época. Apenas no coração de um homem vazio
pode a natureza toda converter-se numa forma também vazia e o idealismo transcendental
apenas reflete a morte da crença reveladora em favor de um saber sem objeto.
Referências Bibliográficas:
JACOBI, F. H. Über den transzendentalen Idealismus. Tradução de Leopoldina Almeida.
In: (org.) GIL, F. Recepção da Crítica da razão pura : Antologia de escritos sobre Kant (1786-1844).
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1992, pp. 99-111.
___________. The Main Philosophical Writings and the Novel Alwill. Tradução do alemão, com
estudo introdutório, notas e bibliografia por George di Giovanni. Montreal & Kingston,
London, Buffalo: McGill-Queen‘s University Press, 1994.
___________. Carta de Jacobi a Fichte sobre el nihilismo. Tradução, apresentação e notas
de Vicente Serrano. Anales del Seminario de Historia de la Filosofía, v. 12. Madrid: Servicio de
Publicaciones UCM, 1995, pp. 235-263.
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POLÍTICA EM GILLES DELEUZE: N-1 E SUAS IMPLICAÇÕES NOS MODOS
DE SE ESTAR NOS VERBOS DA VIDA
Ricardo Niquetti
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/CNPq
[email protected]
Palavras-chave: Política. N-1. Criação. Devir.
Temos cada vez mais nos afastado das teorias políticas clássicas, não porque elas se
tornaram obsoletas, mas porque elas não são as únicas maneiras de se viver, pensar em
política. Deste modo, a proposta do trabalho não é cartografar os inúmeros e criativos
modos singulares de se experimentar política, nem propor um reformismo ou engajamento
nas instituições que quiçá se proclamam representantes sociais.
O estudo pretende-se como dispositivo que insiste na afirmação de um pensamento
político outro, não no sentido dialético formal (um/outro), mas como promotor de uma
proliferação intensa de bons encontros ao mesmo tempo em que assume o ponto de vista a
favor de uma singular ética vitalista. É inegável que esta pretensa discussão salienta a
importância do exercício do pensamento político, porém reivindica a porosidade de outras
vozes nesse campo do conhecimento.
Deleuze propõe, nesse sentido, uma filosofia política, que ele chamará de menor, que
tem sua marca na inseparabilidade entre filosofia, política e produção de vida. Essa
inseparabilidade que trata da integralidade da vida humana pode ser vista em toda sua obra,
entretanto nos concentraremos em três conceitos que a meu ver são fundamentais para
pensarmos os modos de se estar nos verbos da vida, a saber, micropolítica, criação e n-1,
ideias essas que procuraremos esclarecer nas suas conectividades e em seus afastamentos.
Assim, por exemplo, no ensaio que dedica à obra de Carmelo Bene ―Um manifesto
de menos‖, Deleuze estabelece duas operações opostas que nos ajudam a entrar em seu
intenso pensamento político filosófico:
Por um lado, eleva-se ao ‗maior‘: de um pensamento faz-se uma
doutrina, de uma maneira de viver se faz uma cultura, de um
acontecimento se faz a História. Pretende-se assim reconhecer e
admirar, mas de fato normaliza-se. (...) Então, operação por operação,
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cirurgia por cirurgia, pode-se conceber o inverso: como ‗minorar‘
(termo empregado pelos matemáticos) como impor um tratamento
menor ou de minoração, para liberar os devires contra a História, as
vidas contra a cultura, os pensamentos contra a doutrina, as graças e as
desgraças contra o dogma. (DELEUZE, 2010, p.36).
Essa tentativa de subtrair, amputar, retirar, neutralizar alguns elementos de Poder, a
fim da liberação de virtualidades, a fim de praticas que escapem da dominação, parece ser o
grande legado político deleuzeano, ou seja, n-1 como processo de minoração, de fuga ou
impossibilidade de formação do Uno do Um, impondo assim a criação de novas relações
com o corpo, tempo, sexualidade, trabalho, cultura, etc.
Esse processo não é nenhuma superação de um estágio anterior em direção a uma
figura mais alta, mas um ficar a espreita contra aquilo que em nós e no mundo pode ser
qualificado de totalitário ou fascista. Depois desse diagnostico é preciso desencadear
combates, fazer com que o n-1 entre em cena, ou seja, devemos investir na possibilidade de
um uso menor da política, um uso de resistência e revolucionário, que faça nossos modos
de estar nos verbos da vida agirem de outras maneiras, podendo desta maneira haver novas
possibilidades de viver.
Minorar para Deleuze é se engajar em devir, é subtrair o único da multiplicidade a
ser constituída, minorar é conjurar o n-1. Esta afirmação tem inúmeras consequências
políticas e filosóficas, pois estamos constantemente imersos em processos de variação
contínua que podem ser interrompidos por uma operação que procura forjar o uno, ou
seja, como podemos desviar desse destino causal? Como podemos permanecer num estado
menor? Como o n-1 se entrelaça com a criação e a resistência?
Sem avançarmos nestas problemáticas, podemos dizer em linhas gerais que pensar
uma política menor, segundo Deleuze, em que o devir torna-se preponderante e implica
necessariamente uma libertação das singularidades, é provocar um curto-circuito da ordem
linear, cronológica e historicista, desencadeando variações imprevisíveis que produzem
rupturas com as representações que, de um ponto de vista de uma política maior, nos
definem como sujeitos. Essa ruptura desarticula a intensidade da política maior, cujo efeito é
o confisco de nossa potência de variação e de criação, de mudança e de pensamento, em
troca de uma representação e um lugar no status quo.
Essa crítica, entretanto, não inviabiliza uma política maior, mas evidência que os
processos políticos mantêm vitalidades outras, que procuram priorizar aquilo que nos liga à
experiência dos encontros, às circunstâncias de suas ocorrências, ao que nos abre ao seu
jogo de forças, ao que nos absorve em suas tensões, etc. Política em devir, no sentido
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deleuzeano, não é uma utopia, mas a possibilidade de alcançar uma linha de transformação,
oriunda da experimentação, que não proclama uma verdade universal, apenas estratégias
singulares não totalizáveis. E mais, constroem desta forma políticas a espreita das alianças,
das suas conectividades, complicações, vizinhanças, afastamentos...
Assim a pergunta recorrente de Lênin ―O que fazer?‖, ganha em Deleuze uma dimensão
nova, pois o que pulsa na experiência intensiva dos encontros implica que não há solução política
que não passe pela criação. Criar em política, na esteira da experimentação e do devir, é lutar a favor
das micropotências inovadoras do pensar, essas que se agitam em certos entretempos da filosofia,
das artes, das ciências e, de outro lado, potencializar linhas de fuga e de resistência que modulam
agenciamentos do desejo como larvas de uma ―cólera contra a época‖, contra o ―intolerável‖ e a
favor da invenção de modos mais suaves de coexistência entre os entes (DELEUZE, 2006, p.7).
O primeiro ato político, para esta filosofia imanente, consiste em desfazer em nós aquilo
pelo que vivemos sob controle, contribuindo para que o afecto político novamente seja possível, e
que desta maneira possamos desdobrar todas as nossas forças em favor de um mundo sempre por
vir, ou seja, não há verbo que não esteja à disposição das subversões de um intenso processo de
minoração e de alianças.
Referencias Bibliográficas:
DELEUZE, G. Conversações, 1972-1990. São Paulo: Editora. 34, 2006.
DELEUZE, G. Sobre teatro: Um manifesto de menos; O esgotado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2010.
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REVOLUCIONÁRIOS DE 1776: ENTRE A AGONIA E A APOSTA
Rodrigo Fampa Negreiros Lima
Universidade Federal Fluminense (UFF)
[email protected]
Orientador: Renato Lessa
Palavras-chave: Filosofia; História; Revolução, imitação; invenção.
Com palavras mais sofisticadas e metáforas provocadoramente esclarecedoras,
Renato Lessa defende que a Filosofia Política poderia ser descrita como um campo de
batalha onde se desenrola uma guerra semântica na qual palavras e conceitos fazem às
vezes de artilharia decisiva; onde sistemas filosóficos – cada um acreditando deter em si os
modos de descrição do real, ou seja, acreditando estar enunciando a verdade acerca do
mundo – se digladiam numa luta interminável, indecidível, porém decisiva: a luta pelo
estabelecimento de padrões de realidade.
Decisiva porque essa luta de conceitos decanta na Vida Comum sob a forma de
efeitos práticos e sob a forma de normatização da vida em sociedade. Portanto, as variadas
ilhas da Utopia – ou das utopias - estão ligadas ao continente do real por pontes de ida,
mas também por pontes de volta (o filósofo, afinal de contas, volta para a caverna). Em
termos humeanos, a decantação filosófica sobre a Vida Comum em não poucas ocasiões
tem o poder de causar os tão primordiais configuradores dor e prazer. Em outras palavras, a
História acaba por desempenhar o papel de laboratório de exercício público desses
enunciados filosóficos. É nela onde se decide quais seguirão com vida e quais serão
descartados. Mais do que isso, é nela onde se decidirá se sequer esses enunciados
merecerão algum tipo de experimentação. Lessa enxerga nessa luta três momentos
essenciais: agonia, aposta e ceticismo12.
Agonia porque a confrontação é inevitável; aposta porque, apesar do caráter
solipsista desses enunciados pretensamente verdadeiros, está-se a por em jogo proposições
e prescrições que podem ou não vir a ser acolhidas pelos costumes da vida ordinária; e,
Lessa, Renato. Agonia, aposta e ceticismo: ensaios de filosofia política/ Renato Lessa – Belo Horizonte:
Editora UFMG (Coleção Origem).
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finalmente, ceticismo porque só assim seria possível observar que a configuração (no caso,
Política) do mundo não passa de uma angustiante, porém, revigorante disputa entre mundos
sociais possíveis (metáfora lessa-borgeana).
Partindo de duas premissas epistemológicas acerca do mundo fenomenológico como amálgama e confronto de mundos semânticos possíveis e que tem na História o
lugar de reverberação dos conceitos filosóficos enunciados como se fossem de validade
universal -, pretendo analisar filosoficamente o episódio histórico conhecido como
Revolução Americana sob a luz do arsenal conceitual de dois pensadores fundamentais:
Hannah Arendt e David Hume.
A escolha por um evento histórico não é aleatória, pelo contrário. Trata-se, antes,
de uma crença filosoficamente fundamentada: a de que conceitos e assertivas filosóficos só
ganham consistência e movimento quando historicamente exercidos. De outro modo,
exercem uma função muito próxima a da Literatura: serem imaginados enquanto não são
vividos; em suspenso nas prateleiras da biblioteca dos mundos possíveis.
Além disso, episódios históricos onde muitas coisas estão em jogo, tal como
acontece nas revoluções, parecem ser aqueles momentos nos quais a agonia se manifesta da
maneira mais intensa e quando as apostas não podem ser mais adiadas. Momentos em que
não é possível adotar a postura cética de observar de cima da montanha. Momentos nos
quais a História deixa de ser a ―ciência‖ do passado e se apresenta como o tempo de agir
em algum lugar indeterminado entre o passado e o futuro, como bem nos lembra Hannah
Arendt.
O tempo-dilema é quando os homens ordinários se fazem filósofos matando o
inimigo ou escrevendo constituições; quando se veem entre a hesitação da Vida Comum e
a excitação de criar algo novo, ambos os sentimentos fundamentais para que os homens
possam sobreviver na guerra entre mundos. Por vezes, o camponês que decapita o rei é
produtor mais eficaz de novas vivencias ontológicas do que o asceta que apenas quer
descrever.
Partindo da análise que Hannah Arendt faz do conceito de Revolução, primeiro
como desejo de retorno a um ponto de origem (à vida como ela era antes) e depois como a
dolorosa descoberta de que o retorno não é possível, pois agir é produzir algo novo;
primeiro como desejo de imitação e depois como necessidade de invenção, pretendo
sugerir que em nenhum dos dois momentos o homem deixa de ser um animal que crê,
como nos aponta a antropologia humeana. Contudo, mesmo sem deixar de ser um crente,
é nos momentos de tempo-dilema que o homem pode observar o caráter efêmero de
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qualquer crença que seja, mas não sem agonia e sem poder abrir mão de apostar. O
homem, animal que tem prazer na previsibilidade da imitação, por vezes tem de inventar.
A agonia fica evidente quando nos fica claro que o mundo em que vivemos é uma
possibilidade. Piora quando nos damos conta de que não se trata apenas de uma
possibilidade, mas de um frágil conjugado de possibilidades e dói ter de escolher. Com isso,
pretendo fazer uma breve apresentação dos revolucionários americanos como que
esmagados entre uma Vida Comum que já não mais podia ser e a necessidade de ter lidar
com a incerteza do vir a ser. Entre David Hume e Hannah Arendt. Entre a agonia e a
aposta.
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O CAMINHO DA LÓGICA PARA FELICIDADE
Rodrigo Wenceslau
(PPGFIL-Unioeste-CAPES)
[email protected]
Prof. Dr. César Augusto Battisti
Palavras-chave: Wittgenstein – Tractatus – heurístico – mundo – vontade.
Na tentativa de romper com abordagens de cisão da obra do jovem Wittgenstein
surgiu a hipótese de pesquisa que está no pano de fundo desde trabalho – ora direcionando
interpretações, ora exigindo – e que pretende entrelaçar lógica e ética de modo justificado.
Nesta comunicação nos deteremos em explicar como a ética – enquanto o alcançar da
correta visão de mundo – depende do exercício lógico.
A única obra publicada em vida e com anuência de Wittgenstein inicia tratando do
mundo, dos componentes ontológicos e do modo como este está estruturado, não
obstante, segundo o próprio autor, o livro ser de temática ética. Devemos especificar agora
de que tipo de ética trata-se; afinal em 6.422 o autor nos diz que uma ética do tipo
imperativa (uma ética do dever) não é de maneira nenhuma compatível com sua proposta.
Em se considerando isto, a ética proposta no livro é uma ética que não implica punição ou
recompensa no sentido comum, no sentido de consequência de algum ato. Ela, de algum
modo, gera algo de agradável ou desagradável, mas o que ela gera é algo intrínseco ao
próprio ato. O ato, enquanto fato descrito pela linguagem não é bom nem mal, pois a
linguagem não pode exprimir nada de valor, isto faria com que o valor perdesse seu valor,
exigiria dele o fator contingencial, condição da linguagem – o valor de verdade da
proposição. A vontade, enquanto portadora de decisão ética, não altera o mundo, nem
mesmo toca o mundo, pois não existe vinculo lógico entre o mundo e a vontade. É claro
que o jovem filósofo austríaco não nega a vontade enquanto fenômeno. Porém uma
vontade que infla o mundo alterando, não seus fatos, mas seu limite não pode estar no
mundo enquanto fenômeno, ela tem de estar nos limites do mundo. Entendemos que uma
decisão assim nunca estará ao alcance do homem dos fatos, que olha a vontade enquanto
fenômeno, mas com um sujeito transcendental, que reconhece a impotência da vontade
sob os fatos. A pergunta que surge então é: de onde vem uma ideia de sujeito
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transcendental? Aonde ele surge? - torna-se palpável-; se o próprio autor também diz que o
sujeito não pode estar no mundo. Se não há valor nos fatos (mundo); o valor, que pode
gerar algo agradável, tem de estar fora do mundo dos fatos, e a decisão ética, pelo valor,
deve alterar algo que não é mundo, deve então segundo o filósofo alterar os limites do
mundo. Assim o mundo se tornará outro mundo, logo o que deve mudar é a visão mundo,
já que mundo mesmo não pode mudar. Mas a pergunta que surge profundamente e como
um eco no vazio dentro do leitor mais atento é: Como faço para ver meu mundo diferente?
Como faço para ter uma visão de mundo feliz e não uma visão de mundo infeliz? A
resposta de Wittgenstein – acreditamos – seria algo como: estudando lógica.
Isto explica em parte porque um livro que trata de lógica e tem na lógica o tema
com a maior parte de texto dedicada poderia ser um livro de ética. A lógica é proposta no
livro como hermenêutica para a felicidade segundo entendemos. Ela fornece o caminho de
reconhecimento, de descoberta do mundo entendido como contingente, que implica fatos
que poderiam ser totalmente diferentes sem mudar a estrutura de mundo. O estudo da
lógica, tomada no modelo tractariano, leva o homem, que lida com os fatos, deseja fatos,
tem frustrada sua vontade e enxerga a infelicidade para um lugar em que pode se colocar
nos limites do mundo e enxergar um mundo diferente, um mundo do feliz. Para mostrar
este ―caminhar‖ pelo livro, este subir a escada, foca-se atenção sobre o conceito de mundo,
que inicia o livro e permanece até próximo do final, sendo entendido como o mais
importante na mudança de visão, já que esta mudança opera-se sobre ele. Um cuidado e
uma dificuldade que este trabalho enfrenta é o aviso do autor de que seu livro não deve ser
entendido como um manual, dificuldade que se pretende superar em favor da coesão no
entendimento da obra.
Referências Bibliográficas:
WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico Philosophicus. São Paulo. Edusp, 2004.
___________. Diário Filosófico 1914-1916. Madrid. Planeta de Agostini, 1986.
MONK, R. Wittgenstein: o dever do gênio. Trad. Carlos Afonso Malferrari. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.
ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia
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A CARACTERIZAÇÃO DA ERÍSTICA NO EUTIDEMO DE PLATÃO
Saulo Sbaraini Agostini
UNIOESTE/PET Filosofia
[email protected]
Libanio Cardoso Neto
Palavras-chave: Erística. Sofística. Aporia.
Críton conversa com um ouvinte de um diálogo entre Sócrates, Ctesipo, Clínias e
dois estrangeiros, que o ocorreu no Liceu. Esse espectador anônimo, ao sair do debate,
relata que a conversa entre os sábios era tolice e que a filosofia é coisa medíocre feita por
pessoas ridículas. No dia seguinte, Críton encontra Sócrates e pergunta com quem ele
discutiu no Liceu. As perguntas formuladas por Críton nos levam a questão: o que é a
erística? Esta é, como chamam, a arte de discursos dos estrangeiros que foram
interlocutores de Sócrates no dia anterior. Uma arte que pretende vencer qualquer discurso
e conduzir qualquer pessoa a qualquer ação.
O diálogo acontece com o aviso do daemon para que Sócrates permanecesse no
Liceu. Ao continuar no local, entram: (1) Clínias, que pela descrição feita por Platão é um
jovem de extrema beleza, seria o personagem escolhido pelo filósofo para representar o belo
no diálogo; (2) Eutidemo e Dionisodoro, os irmãos e sábios erísticos. Todos se sentam e
Sócrates propõe aos irmãos demonstrem a erística exortando o jovem Clínias à virtude.
Clínias é perguntado sobre quem são os manthánontes (apreender/compreender), os sophoí
(sábios/inteligentes) ou os amatheîs (ignorantes/estúpidos). Ao responder essas perguntas,
Eutidemo leva seu intelocutor à contradição. Dionisodoro cochicha para Sócrates que,
independente da resposta dada pelo belo jovem, ela seria contraditória. De forma aparente,
os irmãos, ao invés de conduzirem o jovem à virtude, apenas demonstram como podem
vencer alguém, argumentativamente, em um debate.
Sócrates, diante desta situação, recoloca a sua proposta aos eristas de conduzir,
discursivamente, o jovem Clínias à virtude. Neste período do diálogo, ele oferece um
discurso protréptico a ser tomado como exemplo de tentativa discursiva de condução à
virtude. Após esta exemplificação, Dionisodoro toma a palavra e ataca o discurso socrático.
O erista atenta à impossibilidade de Clínias passar de não-sábio para sábio sem que morra.
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Pois assim estaria passando do que se é (Clínias não-sábaio) para o não-ser (Clínias sábio),
ocorrendo a morte de Clínias.
Esse argumento, entre muitos outros do diálogo, é considerado sofístico. Iglésias,
nos mostra o que é chamado de ―problema da predicação‖, em que conciliar o predicado
universal com a pluralidade de coisas atribuídas ao sujeito se torna problemático. Mais
especificamente nesse último argumento de Dionisodoro, da passagem do Clínias não sábio
para sábio, está sendo apresentada a dificuldade de apreender uma coisa por meio de suas
mudanças. Na fala dos eristas, transparece que a predicação de algo é sempre essencial.
Destarte, se há a passagem de Clínias não sábio para sábio, o mesmo perde o que faz com
que ele seja o que é.
Durante o diálogo Eutidemo, inúmeros outros argumentos sofísticos são
apresentados. Ao que parece, o que caracteriza a erística é o uso desses argumentos para
vencer qualquer debate. Todavia, sempre que um erista está em contradição, o outro vem
em cobertura e defesa para salvaguardar aquele que está a perder o debate. Dialogo, para a
erística, é sempre uma luta entre opostos em busca de vitória, mesmo que o conteúdo da
conversa não tenha nenhuma conexão com o que há no kósmos. Esse caráter de dupla
defesa da erística permite que comentadores como Claudia Mársico e Hernán Inverso,
comparem os irmãos erísticos com a Hidra e o Caranguejo do mito de Héracles. A erística
tem uma forma característica monstruosa (como a da Hidra e do Caranguejo), porque visa
apenas a vitória discursiva.
Referências Bibliográficas:
MARQUES, Marcelo P. A significação dialética das aporias no Eutidemo de Platão. Revista
Latinoamericana de Filosofia XXIX 1 (2003) p.5-32.
PLATÃO. Diálogos II. Górigas, Eutidemo, Hípias Maior, Hípias Menor. Tradução, textos
complementares e notas de Edson Bini – Bauru, SP: EDIPRO, 2007.
___________. Diálogos Critão, Menão, Hípias Maior e outros. Trad. Carlos Alberto Nunes – 2.
Ed – Belém: EDUFPA, 2007.
___________. Eutidemo. Trad. Apresentação e notas de Maura Iglésias. Rio de Janeiro; Ed.
PUC-Rio; Loyola, 2011.
PLATO. Euthydemus. Trad. W. R. M. LAMB. Loeb Classical Library: London, 1999.
ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia
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PLATÓN. Eutidemo. Trad. Claudia Mársico e Hernán Inverso. 1ª Ed. Buenos Aires: Losda,
2012.
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128
APONTAMENTOS SOBRE O MOS GEOMETRICUS NA FILOSOFIA DE
ESPINOSA
Sérgio Luís Persch
(Professor da UFPB)
Ainda que seja unânime o reconhecimento de que a principal característica da
filosofia de Espinosa seja a de expô-la à maneira dos geômetras, as possibilidades de se
investigarem os motivos e os efeitos de tal modo de exposição nunca se esgotam.
Queremos apresentar uma hipótese explicativa desse modelo argumentativo, que se
distancia um pouco da via comumente tomada para identificar tal característica na obra de
Spinoza. O que se costuma fazer é tomar como um uso completo e acabado do modelo
geométrico, a Etica, que começa com definições e axiomas e, em seguida, parte para a
dedução de toda a doutrina spinozana, através de proposições rigorosamente enumeradas e
cada qual sendo demonstrada com base no que já está escrito anteriormente. Os outros
escritos e tratados seriam menos rigorosos e sistemáticos e, portanto, não se orientariam
propriamente pela exposição à maneira dos geômetras. Entretanto, nesses escritos, Spinoza
também fala com muita frequência das matemáticas e vez por outra ensaia uma pequena
exposição sumária de algum assunto que também se pretende geométrica. Em vista disso,
levantamos a hipótese de que nesses escritos ocorra um emprego elementar do modelo
matemático de explicação filosófica que nos permite compreender algo acerca da essência
mesma desse modelo, compreensão essa que vem a ser bastante útil ao nos depararmos
com o seu emprego explícito e codificado na Etica. Isso ocorre em operações que seguem
a estrutura de uma ‗quarta proporcional‘, que se encontram já no Tratado breve e no Tratado
da emenda do intelecto, e reaparecem na Etica. Portanto, pretendemos mostrar que essas
operações já contêm o que há de essencial no modelo de exposição geométrica e que a
Etica consiste num desenvolvimento exaustivo desse modelo.
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NIETZSCHE: A FILOSOFIA COMO VIVÊNCIA
Wilson Antonio Frezzatti Jr.
UNIOESTE
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Palavras-chave: Filosofia. Fisiologia. Nietzsche. Tragédia. Vivência.
A filosofia, para Nietzsche, nada mais é do que a transmutação dos estados
fisiológicos, ou seja, da dinâmica dos impulsos em luta por mais potência, para formas
elaboradas intelectualmente, isto é, o pensamento filosófico é originado de acordo com a
dor e com os impulsos fisiológicos. Em outras palavras, a filosofia é expressão do modo de
existência do filósofo. Viver, para os filósofos, significa transmutar constantemente em luz
e chama tudo o que são, assim como tudo o que os atinge. No prefácio à segunda edição
de A gaia ciência (1886), o sofrimento e a doença proporcionam uma observação privilegiada
dos sintomas que indicam a condição impulsional. O abandono à própria doença permite,
através de um auto-questionamento, a ação exploratória dos mecanismos do pensamento.
Dessa forma, esse estudo descobre como pensa um corpo doente e sofredor: pressionado
por suas necessidades, ele pensa em direção ao medicamento em qualquer sentido, ou seja,
em direção a um abrandamento seguro. Se o pensamento elaborado afirmar a vida, ele
provém de um corpo fundamentalmente saudável e pleno de força e, ao contrário, se negála ou destruir seu crescimento, é oriundo de um corpo fundamentalmente doente,
decadente e degenerado. Nos estados mórbidos, descortina-se algo que o orgulho do
homem saudável impede o acesso: a dor, especialmente uma grande dor, faz com que se
atinja a profundidade de nossa humanidade e que surja a desconfiança de tudo que se
considerava anteriormente como humano e verdadeiro. Pela experimentação dos
pensamentos originados pelos estados fisiológicos, conhecem-se os caminhos do
pensamento: pode-se identificar as ideias filosóficas sãs e doentias.
A doença, para o filósofo alemão, inspira as noções desejosas de um além, um
apartado, um fora, um acima: a filosofia do transcendente origina-se de uma interpretação
equivocada do corpo e sobre o corpo – é sintoma de um determinado tipo de corpo, ou
seja, o filósofo transforma necessidades fisiológicas de seu corpo doente em conceitos
metafísicos. No entanto, esse caminho rumo ao transcendente não é traçado se o
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organismo afetado pela doença e pela dor, por constituição, isto é, por fundamento
fisiológico, possuir a grande saúde. Ela é a capacidade de aceitação da própria condição e do
modo que se interage com o mundo; em outras palavras, a aceitação da efetividade, do
―vir-a-ser‖. Aplica-se, assim, o critério da vida para avaliar as expressões fisiológicas: a
filosofia de Nietzsche deve afirmar a vida em oposição à tradição filosófica. A filosofia
nietzschiana é expressão de uma vivência saudável e afirmativa.
A perspectiva da filosofia enquanto vivência não é exclusiva do período em que
Nietzsche desenvolve a doutrina da vontade de potência. Em sua produção filosófica
inicial, a vivência inscreve-se em outro contexto, na condição trágica da existência. Em O
nascimento da tragédia (1871), Nietzsche afirma que a fonte da Tragédia como obra artística
provém de dois impulsos cósmicos e artísticos diferentes em essência e metas: o impulso
apolíneo e o impulso dionisíaco. O espectador trágico vivencia experiências que propiciam
uma sabedoria sobre sua condição no mundo por meio desses impulsos. O impulso
apolíneo (o discurso e o drama, o mito trágico) transfigura por meio do principium
individuationis e promove a redenção do pessimismo através da aparência. O impulso
dionisíaco (a música dissonante do coro) rompe a ilusão da individuação e abre caminho
para o conhecimento imediato do fluxo ininterrupto de criação e destruição de formas. O
mito trágico fala através de símiles, de representações, sobre o conhecimento dionisíaco: é a
transposição da sabedoria dionisíaca (a vida eterna da totalidade não é tocada pelo
aniquilamento do indivíduo) para a linguagem das imagens. A figuração da sabedoria
dionisíaca realizada pelo mito trágico através dos meios artísticos apolíneos leva ao limite o
mundo da aparência, o que provoca a auto-negação e a busca das coisas verdadeiras: o
eterno movimento do Uno-Primordial. Enquanto arte, o mito trágico transfigura o mundo
fenomênico de sofrimento no sentimento de que mesmo o feio e o desarmônico são um
jogo artístico que o Uno-Primordial joga consigo mesmo. Em outras palavras, nessa
transfiguração atinge-se o objetivo máximo da metafísica da arte de Nietzsche: a existência
e o mundo são justificados apenas como fenômeno estético.
Este resumo refere-se à palestra ministrada no minicurso ―A noção de Filosofia na
Alemanha do século XIX‖, coordenado pelo Prof. Dr. Jadir Antunes, no XVIII Simpósio
de Filosofia Moderna e Contemporânea da Unioeste, em 2013.
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ARTIGOS COMPLETOS*
* A redação e a revisão finais dos textos são de responsabilidade dos próprios autores.
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REFLEXÃO ACERCA DE UMA EDUCAÇÃO AMBIENTAL EM H. JONAS
Adaiana Pinto Orcheski
UNIOESTE
[email protected]
Rosalvo Schütz
RESUMO: Compreendemos na contemporaneidade a importância dos assuntos que
envolvem o meio ambiente, pois considerando as mudanças arrasadoras que emergem do
progresso tecnológico podemos perceber a situação periclitante em que nos encontramos.
A natureza parece indefesa diante das atividades humanas. A formação de uma
mentalidade, ou mesmo postura ética, capaz de contribuir para a superação desta realidade
muitas vezes carece de fundamentação. Nossa hipótese é de que a proposta ética de Hans
Jonas poderá subsidiar de forma muito produtiva a formulação de ações e posturas
educativas no campo da educação ambiental.
Palavras-chave: Tecnologia. Natureza. Educação Ambiental. Responsabilidade.
O risco que corremos diante de tamanhos inventos resultados do mau uso das
tecnologias percebidos na atualidade são assustadores. Criamos meios mais rápidos e
eficientes para produzir, mas que também se tornam mais eficientes para destruir a
natureza como, por exemplo, bombas atômicas, transgênicos, mecanismos de
desmatamento enfim, estruturas que são prejudicais para o desenvolvimento natural do
meio em que vivemos. A preocupação com a natureza figura, por isto, na obra de Jonas,
como um dos termos chaves na compreensão do panorama ético contemporâneo, no qual
a tecnologia muniu o homem de uma capacidade de intervenção e destruição sem igual a
ponto de podermos destruir por completo grande parte da vida no planeta. Por isto,
preocuparmo-nos com a natureza e com tudo o que habita nosso planeta é essencial para
termos um futuro, ou para novas gerações terem ambientes apropriados para viver. Essas
preocupações são encontradas na obra Princípio Responsabilidade na qual, se preocupando
com o todo, Jonas elabora uma ética a qual visa à integridade do planeta.
A vida humana é repleta de transformações as quais foram se evidenciando ao
longo da história, desde as primeiras civilizações até o século XX. Natureza e ser humano
passaram por diversas mudanças e muitas delas prejudiciais para o seu desenvolvimento e
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permanência. Meio ambiente e homem estão sendo modificados com a chamada evolução
tecnológica, na qual o grande causador é compreendido como: progresso desenfreado.
Percebemos que ao longo da história o planeta sofreu alterações, tanto na sua
estrutura física como na sua organização natural. Consequentemente o agir humano
também se modificou. Além disto, a própria condição humana, sempre em busca do ―ser
mais‖, com a infinita capacidade de criar e recriar coisas no mundo, não permite que o ser
humano seja definido como um ser estático ou, então, determinado sobremaneira por seus
instintos, como parece ser o caso da maioria dos animais. Podemos pensar que a principal
característica identificada, segundo Jonas, no homem, é a resultante de um ser inacabado
frente ao mundo. Este não acredita que o mundo o satisfaça plenamente, na maneira como
ele é. Isto na modernidade se traduziu numa crença exacerbada no progresso, ou seja, o ser
humano, principalmente o ocidental, desacredita que o mundo sem o progresso possa
trazer algum bem para sua vida. O homem parece ter atitudes visando apenas o progresso e
este parece ter, por sua vez, se tornado um fim em si mesmo. O progresso transformado
em ―fim em si mesmo‖ degradou tudo mais em mero instrumento. Neste sentido, pode-se
afirmar que o homem procura fazer da natureza e dos seres extra-humanos instrumentos
do seu desejo de dominar o mundo.
Jonas nos apresenta em seu Princípio Responsabilidade a teoria da elevação do homem
sobre a natureza. Para que entendamos esta questão é necessário compreendermos a
técnica, justo porque, antes de tudo é preferível rever as características passadas do agir
humano para as tomarmos como comparativos ao estado atual das coisas, pois segundo
Jonas, depois da técnica o mundo sofrera alterações significativas. Não podemos dizer que
a tecnologia que encontramos seja ruim em si mesma, pelo contrário, ela pode ser muito
boa. No entanto, podemos nos transformar em seus objetos, passando a ser meras
extensões dela. A tecnologia pode ofuscar nossos olhos diante da percepção de nossas
próprias ações. Diante dessa problemática se faz necessário, segundo Jonas, uma ética que
se preocupa com o todo, uma ética que defenda a vida na sua totalidade e que abranja seres
humanos, animais, meio ambiente e tudo o que tem vida na esfera total do planeta; essa
nova ética proposta por Jonas é chamada de ética da responsabilidade.
Para Jonas a vulnerabilidade da natureza não será reconhecida até não se conhecer
os danos a ela já produzidos. Ou seja, antes que o homem, detentor da técnica, não
perceber que suas ações estão afetando todos os ciclos de vida, a natureza permanece
simples e exclusivamente a sua disposição. Os estudos relacionados ao meio ambiente
levaram ao que conhecemos por ecologia, ou a ciência do meio ambiente. Achávamos que
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a natureza era infinita, ou inesgotável, que jamais a afetaríamos com nossas ações e
técnicas. Hoje, percebemos que muitas pessoas já estão fazendo acontecer, salvando
florestas, lutando por uma produção limpa e um consumo consciente. No entanto,
estruturalmente ainda continuamos tendo uma postura destrutiva em relação ao meio
ambiente.
A proposta do Princípio Responsabilidade é a de possibilitar uma reflexão do homem
frente a suas ações objetivando modificar nossa postura ética diante do que nos cerca. Há
uma necessidade de superarmos a mentalidade do consumismo, grande causador de
conflitos. Segundo Jonas, o que o mundo necessita é de um novo pensamento, que vise o
bem estar do todo, sustentado por uma ética da responsabilidade a qual possamos recriar a
partir do que temos para melhor conviver e deixar de herança para as gerações vindouras a
possibilidade de construir suas perspectivas e melhorias. Para Jonas o futuro é aquele que
possibilita a condição da continuidade da humanidade e de todas as outras formas de vida.
Jonas (2006. p. 229) se preocupa com o futuro da humanidade e admite que o dever
precisa vir em primeiro lugar no nosso comportamento, ao passo que a civilização
tecnológica está se tornando cada vez mais ―poderosa‖ quando nos referimos ao seu
potencial de destruição. O futuro da humanidade obviamente coloca em cheque o futuro
da natureza e vice-versa. Deve ser levado em consideração que o homem está se tornando
cada dia mais perigoso e ameaçador não só perante ele mesmo, mas diante de toda a
biosfera. Segundo Jonas, o interesse do homem coincide com o dever diante de toda forma
de vida, afinal a terra é sua ―pátria‖, não se deve reduzir nossa concepção ao
antropocentrismo. Para Jonas esse dever está estritamente ligado à biosfera total do planeta,
é um dever diante do humano e do extra-humano. Deve-se deixar a vida prevalecer,
preservar e proteger o direito de existir das futuras gerações.
Jonas propõe que nos utilizemos do medo para compreendermos o que podemos
sofrer no futuro, ou seja, nosso filósofo se utiliza do temor diante de projeções de grandes
probabilidades de catástrofe para alertar os seres humanos diante das suas atitudes frente
ao meio ambiente e todas as formas de vida. Faz-se necessário atermos aos dados atuais
que a própria modernidade nos oferece para compreender antecipadamente algumas
consequências, caso nós humanos não alteremos nosso modo de agir diante do ―outro‖
estaremos afetando gravemente todas as formas de vida. A heurística do medo, segundo
Jonas (2006, p. 353) pode nos auxiliar a entendermos as reais probabilidades do perigo
como também fazer com que respeitemos todos os seres que possam existir.
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Antigamente, segundo a visão de Jonas, a técnica seria capaz de afetar apenas
superficialmente a natureza, de modo que não era concebido ―a questão de um dano
duradouro à integridade do objeto e a ordem natural em seu conjunto‖ (JONAS, 2004. p.
35). E como podemos perceber todo o agir ético era organizado dentro deste horizonte.
Isso era compreendido com os olhos do sujeito que possuía a techne, mas de modo que não
percebia ainda como de alguma forma o seu agir especificamente humano (através de
instrumentos técnicos) afetariam a ordem das coisas. Por isso, essa atuação do homem
segundo Jonas sobre tais objetos não era tida como domínio eticamente significativo.
A significação ética só era compreendida na relação homem com homem e o de
cada homem com ele mesmo, por isto pode-se afirmar que ―toda ética tradicional é
antropocêntrica‖ (JONAS, 2006. p. 35), ou seja, Jonas compreende toda a ética tradicional
como sendo aquela que é entendia somente na relação com homens, sendo este o
referencial único para conceber o agir ético.
―O bem e o mal, com o qual o agir tinha de se preocupar, evidenciavam-se na ação,
seja na própria práxis ou em seu alcance imediato, e não requeriam um planejamento de
longo prazo.‖ (Idem p. 35) Para Jonas a ética tradicional tem relação apenas com o que
acontece aqui e agora, com as ocasiões tanto da vida pública como da vida privada.
Para Jonas tudo está modificado diante do contexto tecnológico atual. A ética
antiga não consegue mais ajustar-se a técnica moderna e aos desafios e exigências éticas
específicas que esta apresenta. Foi introduzida uma ação de tal ordem de grandeza que nos
deparamos com novas consequências e objetos. Diante da história o prognóstico da
natureza era entendido como indestrutível ou invulnerável, ficando assim, disponível aos
interesses particulares do homem. Sabemos que uma espécie é dependente da outra para
sobreviver, ou é contribuinte para modificar o meio em que vive, ou seja, preservar cada
ser é contribuir para o equilíbrio de toda forma de vida. Daí a necessidade de uma ética que
leve em conta a totalidade integrada da natureza.
A perspectiva da ética tradicional, baseada, fundamentalmente no presente
antropológico, nos levou, segundo o autor, a certo afastamento da vida. Diante de muitos
acontecimentos ocorridos ao longo da história recente percebemos que os seres humanos
são também carentes de uma educação voltada para a vida. A conservação da vida e a
possibilidade dela vir a existir se faz necessária em uma educação ambiental, ou seja, uma
educação voltada para o todo; para tal educação Jonas nos sugere algumas possibilidades de
aprendizado. Encontramos, por exemplo, no Princípio Responsabilidade reflexões que
podemos tomar por base para construir uma educação consciente com questões como a
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necessidade de preservar a vida humana e a extra-humana. Em sua obra é ressaltada
também a importância de uma ética de responsabilidade que forneça a base para atitudes e
comportamento humano orientado por uma perspectiva mais responsável com o meio
ambiente e as gerações futuras.
Deve-se preservar o outro e o aqui e agora visando o futuro das novas gerações.
Jonas não é tecnofóbico apenas acredita que o progresso deve ser usado moderadamente e
com vistas à qualidade de vida, mas sobremaneira, está convencido de que devemos estar
cientes de que a técnica tem efeitos cumulativos, e que usá-la de maneira irresponsável e
sem necessidade põem em risco as novas gerações. Para Jonas ninguém deve pagar por
nossas irresponsabilidades, pela nossa má utilização da tecnologia – o futuro não tem que
pagar por nossas hipotecas. Devemos valorizar a vida, o nosso maior bem e de onde todas
as coisas derivam. Segundo Jonas, não podemos apostar nada que arrisque a vida, não
temos esse direito. Embasada nesses princípios certamente uma educação ambiental se
construiria de forma pertinente e necessária para uma civilização tecnológica carente de
cuidados.
Jonas defende a tese de que de acordo com novos tipos e limites do agir exige-se
uma ética de responsabilidade que seja compatível com esses limites. Diante desses limites
decorrentes das ações humanas se faz necessário uma educação ambiental que tenha como
base valores que visam a autopreservação de todas as espécies e do meio ambiente. Para
compreender essa educação ambiental embasada no Princípio Responsabilidade de Jonas se faz
necessário fazer um percurso histórico a fim de perceber que vivemos uma ética
antropocêntrica, na qual os seres humanos só se responsabilizam por seres semelhantes a
eles, e a qual precisa ser superada.
Jonas demonstra a importância de nos preocuparmos com o todo e refletirmos a
respeito da situação apocalíptica em que o planeta se encontra. A obra de Jonas nos
proporciona meios para justificar a existência de uma educação ambiental bem preparada,
com vistas a compreender a fundamental importância da sobrevivência de tudo o que vive
e poderá vir a nascer.
Referências Bibliográficas:
JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização
tecnológica. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC – Rio, 2006.
ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia
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SANTOS, Robinson dos. O problema da técnica e à crítica a tradição na ética de Hans Jonas. In:
___________. Ética para a civilização tecnológica: em diálogos com Hans Honas. 1. ed. São
Paulo: Centro Universitário São Camilo, 2011. 21-40.
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O ESTADO REPUBLICANO E O EXERCÍCIO DE GOVERNANÇA EM
NICOLAU MAQUIAVEL
Alan Rodrigo Padilha13
UNIOESTE/ESCRILEITURAS/CAPES/INEP
[email protected]
RESUMO: O presente texto é uma introdução ao pensamento político de Maquiavel
visando mostrar os aspectos de governança como fundamento central do pensamento
maquiaveliano. As análises dos textos do Príncipe e do Discurso sobre a primeira década de Tito
Lívio permitem compreender que interessa a Maquiavel o que diz respeito ao exercício
poder e não a forma. Maquiavel se ocupa de uma política ligada à história; isto quer dizer
que ele faz das ações concretas um caminho para pensar a vida política, inserindo nela a
perspectiva do realismo político, rompendo com a longa tradição grega. Outro aspecto
importante é mostrar o Maquiavel republicano, tão pouco difundido e de suma importância
para pensar vários aspectos da política contemporânea, tais como o Estado republicano, as
instituições políticas e seu funcionamento, as leis, à liberdade e a corrupção.
Palavras-chave: Maquiavel, Governança, Estado e República.
Nicolau Maquiavel é responsável pelo pensamento político autônomo sem ser
condicionado por princípios válidos como modelo, sinteticamente; isto quer dizer que
Maquiavel inaugura uma nova fase do pensamento político, a qual representou uma quebra
no paradigma vigente entre os teóricos da política. Foi ele quem separou o estado da
religião. Maquiavel opõe-se à ideia clássica grega de que toda ação política tem um ―telos‖,
isto é, um fim. Não há um bem comum ou a concórdia entre os seus cidadãos, mas há uma
sociedade política caracterizada por desejos antagônicos.
Maquiavel, ao invés disso, coloca no centro de sua teoria o conflito. Por
isso, podemos sustentar que ele rompe radicalmente com uma longa
tradição, que remonta à filosofia grega, segundo a qual a comunidade
civil está fundada na sociabilidade humana, no desejo do bem e do amor
à concórdia. No lugar deste ideal Maquiavel coloca o conflito, fundado
sobre a oposição dos humores que divide a sociedade em dois grupos
13Professor
do Ensino Básico Técnico e Tecnológico do Instituto Federal do Paraná, IFPR, campus
Umuarama. Pesquisador do Observatória Nacional de Educação/Projeto Escrileituras/CAPES/INEP.
Mestrado em andamento em Filosofia na Universidade Estadual do Oeste do Paraná, UNIOESTE, Brasil.
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antagônicos – grandes e povo – impossíveis de serem saciados
conjuntamente. (AMES, 2012, p. 213).
O elemento central da teoria política em Maquiavel são os fatos políticos e é com
essa característica que os enunciados do Príncipe e do Discurso são levados a efeito, é pela
força do factual que as análises políticas ganham sentido. O realismo político é confirmado
pelo capítulo XV de O Príncipe, que apresenta a noção de governo atrelado aos fatos
políticos e não mais ao modelo falido dos princípios morais de um bom governo. Isto quer
dizer que a manutenção do poder depende do governo comprometido com os aspectos da
necessidade e não da moralidade.
Resta ver agora como um príncipe deve conduzir-se com os súditos e os
aliados. (...) Muitos já conceberam repúblicas e monarquias jamais vistas,
e de cuja existência real nunca se soube. De fato, o modo como vivemos
é tão diferente daquele como deveríamos viver, que quem despreza o
que se faz e se atém ao que deveria ser feito, aprenderá a maneira de se
arruinar. (MAQUIAVEL, 2001, p.93).
Tal postura opõe-se ao pensamento político de Platão e de Aristóteles,
caracterizado por um ideal de estado vinculado a princípios éticos e religiosos; ao propor
um realismo político, Maquiavel inaugura uma nova perspectiva: a dos fatos políticos. A
política maquiaveliana está comprometida com os aspectos gerais do pensamento político.
Maquiavel, ao pensar Florença de sua época, não se restringe empiricamente a um dado
particular, mas associa e atribui à natureza do governo questões próprias de governança, ou
seja, indica as ações a seguir para obter êxito no governo do estado.
É necessário que um homem só dite o modo, e que de sua mente
dependa qualquer dessas ordenações. Por isso, um ordenador prudente,
que tenha a intenção de querer favorecer não a si mesmo, mas ao bem
comum, não sua própria descendência, mas a pátria comum deverá
empenhar-se em exercer a autoridade sozinho; e nenhum sábio engenho
repreenderá ninguém por alguma ação extraordinária que tenha
cometido para ordenar um reino ou construir uma república.
(MAQUIAVEL, 2007, p.41).
No segundo capítulo de O Príncipe, Maquiavel versa sobre os principados
hereditários e justifica a ausência do conteúdo sobre a república visto que outrora já dela
tratara longamente (tal referência pressupõe os escritos do Discurso ou talvez de algum
ensaio sobre a república que futuramente viria a se constituir no Discurso). A passagem de O
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Príncipe para os escritos do Discurso sobre a primeira década de Tito Lívio representa mais
precisamente o pensamento político maquiaveliano.
Não tratarei aqui das repúblicas porque, em outra ocasião, discorri
longamente sobre o assunto. Ocupar-me-ei somente dos principados e,
retomado o raciocínio anterior, discutirei de que forma podem ser
governados e mantidos. (MAQUIAVEL, 2001, p.5).
Maquiavel trabalha com essas duas formas de governo visto ser essa a principal
condição política em análise em suas obras, mas a questão que lhe é cara é a governança.
As obras Discurso sobre a primeira década de Tito Lívio e O Príncipe representam uma mudança
radical na forma de pensar a política porque têm como ponto de partida a realidade, ao
contrário da República de Platão, que tem um modelo de estado ideal cuja experiência nunca
veio a ser realizada.
Muitos imaginaram repúblicas e principados que jamais foram vistos e
que nem se soube se existiram na verdade, porque há tamanha distância
entre como se vive e como se deveria viver, que aquele que trocar o que
se faz por aquilo que se deveria fazer aprende antes sua ruína do que sua
preservação; pois um homem que queira fazer em todas as coisas
profissão de bondade deve arruinar-se entre tantos que não são bons.
Daí ser necessário a um príncipe, se quiser manter-se, aprender a poder
não ser bom e a se valer ou não disto segundo a necessidade.
(MAQUIAVEL, 2001, p.73).
O Discurso sobre a primeira década de Tito Lívio de Nicolau Maquiavel é organizado em
três grandes partes, podendo ser compreendido da seguinte maneira; na primeira parte, o
autor aborda questões sobre o funcionamento interno das repúblicas, desde sua origem à
organização social política de governo estabelecimento das cidades; na segunda parte, versa
sobre os aspectos da vida militar e, na terceira, discute a dinâmica dos Estados, sua
ascensão e queda. No Discurso há uma proposta investigativa da ação política, uma
metodologia para o entendimento dos fatos e para levar a efeito as ações do presente, sob a
finalidade de agir com mais efetividade e evitar os erros. Assim como é nas artes, na
medicina e em outras áreas do conhecimento, é necessário que a política também parta da
observação dos fatos histórico.
Vendo, por outro lado, que as virtuosíssimas ações que a história nos
mostra, ações realizadas por reinos e repúblicas antigas, por reis,
comandantes, cidadãos, legisladores e outros que se afadigaram pela
pátria são mais admiradas que imitadas; vendo, aliás, que tais ações, em
suas mínimas coisas, todos fogem, e que daquela antiga virtú não nos
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ficou nenhum sinal; em vista de tudo isso, não posso deixar de admirarme e condoer-me ao mesmo tempo. (...) No entanto, na ordenação das
repúblicas, na manutenção dos estados, no governo dos reinos, na
ordenação das milícias, na condução da guerra, no julgamento dos
súditos, na ampliação dos impérios, não se vê príncipe ou república que
recorra aos exemplos dos antigos. (MAQUIAVEL, 2007, p.6).
Está presente no Discurso sobre a primeira década de Tito Lívio a noção de realismo
histórico e político. Maquiavel entende a política no campo dos fatos históricos,
desvinculada da providência divina, essa história intra-mundana feita pelos homens, ou seja,
para Maquiavel a história não tem um ―telos” e, portanto, a vida política é construção, um
jogo de interesses entre os homens. Maquiavel faz uso dessa concepção de história com
finalidade prática, de maneira a estabelecer por meio de ideias correlatas, os critérios para
não incorrer nos erros do passado.
Desejando, pois, afastar os homens desse erro, julguei necessário
escrever, acerca de todos os livros de Tito Lívio que não nos foram
tomado pelos malefícios dos tempos, aquilo que, do que sei das coisas
antigas e modernas, julgar necessário ao maior entendimento deles, para
que aqueles que lerem estes meus comentários possam retirar deles mais
facilmente a utilidade pela qual se deve procurar o conhecimento das
histórias. (MAQUIAVEL, 2007, p.7).
Um exemplo dessa análise factual maquiaveliana é a fundação territorial do estado.
O pensador florentino orienta os que instituirão as cidades a tomarem o devido cuidado
em organizar o estado em local estratégico do ponto de vista militar para que possam
garantir a segurança e evitar que tal organização represente ameaça aos estados vizinhos,
por serem esses os dois motivos que gera o estado de guerra.
Acredito que, para criar uma república que durasse muito tempo, seria
necessário ordená-la internamente como Esparta ou como Veneza, situála em lugar fortificado, e com tal poder que ninguém acreditasse capaz de
subjugá-la em pouco tempo; por outro lado, não deveria ser tão grande
que infundisse terror nos vizinhos, e assim poderia gozar por longo
tempo de seu estado. É por duas razões que se trava guerra contra uma
república: uma é querer assenhorear-se dela: outra é ter medo de ser
dominado per ela. (MAQUIAVEL, 2007, p.31).
Para Maquiavel, o estado se funda no antagonismo entre o desejo do povo e dos
grandes; a liberdade e a lei se constituem mais importante para a segurança do estado
republicano, pois, nessa configuração os atores políticos transferem legitimamente ao
estado a força de defender a própria liberdade.
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Ao caracterizar o desejo dos grandes como um desejo de comandar e o
do povo como de viver em liberdade, Maquiavel deixa claro que o que
funda a relação política não se confunde nem com a regulação do desejo
de poder (dos grandes), nem com a regulação do desejo de liberdade (do
povo). O que funda a relação política é, pelo contrário, a diferença
definitiva dos humores. (AMES, 2009, p.184).
O exercício da vida política no estado republicano se dá por duas formas
fundamentais: a liberdade e a igualdade. A liberdade tem a ver com o espaço público da
ação política, pois nela se revela um permanente embate entre grandes e o povo, o qual
somente será mediado pela figura do estado. O importante nesse processo não é a
igualdade formal perante a lei, nem se trata de igualdade material: a igualdade política é
aquela em que ninguém tem precedência de comando, sendo a força da lei o que rege as
ordenações políticas. Em Maquiavel, a construção de um estado funciona como uma
organização da população em torno de seus interesses. Mesmo que conflitante, o estado é
capaz de estabelecer e organizar, por meio da legislação, tais ordenamentos para a efetiva
vida pública dentro de suas capacidades produtiva, assegurando aos cidadãos a liberdade e a
segurança. A liberdade da república deve ser salvaguarda pelo povo. Este, por sua vez, deve
zelar para manter as instituições alicerçadas no princípio da igualdade e evitar a qualquer
custo a corrupção e toda sorte que atentem contra o estado livre. A observação da lei exige,
por sua vez, os bons costumes, isto é, instituições sólidas e um povo moralmente forte.
Entende-se que uma república na qual se insira a desigualdade faz com que as instituições e
as leis, que outrora virtuosas e fortes, se tornem insuficientes e fracas, submetendo o estado
à ruína. No estado republicano, o uso da força, ou seja, da violência deve ser praticado em
último caso, em vista da legislação que seja capaz de diminuir e controlar as tensões. O
emprego da força é importante, entretanto as leis devem limitar o seu emprego para que a
população possa sentir segurança no estado livre.
Todos os que com prudência constituíram repúblicas, entre as coisas
mais necessárias que ordenaram esteve a constituição de uma guarda da
liberdade: e, dependendo do modo como esta seja instituída, dura mais
ou menos tempo aquela vida livre. E, como em toda república há
homens grandes e populares, não se sabe bem em que mãos é melhor
depositar tal guarda. Entre os lacedemônios e, nos nossos tempos, entre
os venezianos, ela foi posta nas mãos dos nobres; mas entre os romanos,
foi posto nas mãos da plebe. Portanto, é necessário examinar qual dessas
repúblicas fez a melhor escolha. (MAQUIAVEL, 2007, p.23 – 24).
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Na obra O Príncipe, encontramos a formação de uma unidade política em torno dos
principados e sua ordenação, que pode determinar a duração e o exercício do poder. As
ações políticas do príncipe na governança dos principados colocam em evidência a
preocupação de Maquiavel, que é a manutenção do poder e a direção do estado. O que
parecia ser uma apologia do estado absolutista não passa de um momento político para a
criação e a manutenção do poder do estado. Evidentemente, não nos podemos furtar de
conhecer o Discurso Sobre a Primeira Década de Tito Lívio, que vem ampliar nosso campo de
visão sobre o pensamento maquiaveliano numa perspectiva do republicanismo e torna
possível uma prática política vinculada à noção de estado como coisa pública e corpo
político.
Referências Bibliográficas:
AMES, José Luiz. Liberdade e conflito: o confronto dos desejos como fundamento da
ideia de liberdade em Maquiavel. In: Kriterion. Belo Horizonte, nº119, pp. 179-196, jun.
2009.
___________. Republicanismo conflitual e agonismo democrático pluralista: Um diálogo
entre Maquiavel e Chantal Mouffe. In: Princípios. Rio Grande do Norte, nº31, pp. 209-234,
jun/jun. 2012.
MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. Tradução de MF. São
Paulo: Martins Fontes, 2007.
___________. O Príncipe. 2ªed. Tradução de Maria Júlia Goldwasser. São Paulo: Martins
Fontes, 2001.
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A EDUCAÇÃO PARA A CONDIÇÃO HUMANA PROPOSTA POR ROUSSEAU
NO EMÍLIO
Alexandre José Krul
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências
[email protected]
RESUMO: Rousseau propõem em suas obras reflexões a cerca da educação do homem
para viver sua condição humana. A criança nasce e precisa ser inserida no mundo pelos
adultos que vivem em sociedade. A única autoridade humana é sua capacidade racional de
inserir-se no mundo sob o acompanhamento de um adulto, mas sem que esse tome as
decisões, ou seja, o homem possui as rédeas de sua própria vida. Por meio da pesquisa de
revisão bibliográfica objetivamos refletir sobre algumas ideias propostas por Rousseau
principalmente no seu livro Emílio que definem a importância da educação da criança para
viver sua condição humana em sociedade. Podemos entender que a ideia de Rousseau é
fundamentar uma educação que visa a autonomia do homem que vive em sociedade com
outros homens. A educação proposta por Rousseau não visa formar cidadão nem soldado,
mas apenas desenvolver a humanidade do ser humano.
Palavras-chave: Condição humana. Sociabilidade. Humanizar.
A educação proposta por Rousseau, coloca o indivíduo como centralidade, mas
percebemos que Rousseau não quer formar homens individualistas. Verificamos que em
toda a sua obra, seus personagens, estão envoltos em questões propriamente humanas, e
seus sentimentos nos direcionam a reflexões sobre a condição humana.
A obra Emílio apresenta que a educação centrada no indivíduo que vive na
sociedade inicia por questões de necessidade propriamente na espécie, ou seja, próprias de
quem chegou ao mundo por via da natureza (ser biológico) e que necessita constituir-se
humano, ou seja, ser humanizado.
Rousseau não propõe uma educação instrumental e utilitária de ordem singular e
nem meramente que vise suprimir necessidades técnicas do homem. Se por momentos
Emílio fez uso de instrumentos e aprendeu uma profissão, essa aprendizagem objetivou
suprir uma necessidade cultural capaz de facilitar o acesso e o uso a técnica.
Por exemplo, para Rousseau, o aprendizado de técnicas visa a supressão de
circunstanciais necessidades, sendo até mesmo que a maioria delas são criadas pelo próprio
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homem quando vive em sociedade, cujas aprendizagens não são menosprezadas. O ato de
saber tocar um instrumento musical, ou ser um hábil marceneiro, é tão importante quanto
saber se relacionar com os outros indivíduos.
A obra Emílio nos remete à reflexão sobre a atenção que se deve ter em relação a
infância, pois o homem que conhecemos nasce na sociedade e nela deve viver. Possuímos
dificuldades e desafios no processo de humanização. Quando o homem nasce suas
principais necessidades são as do corpo e aquelas que brotam do amor de si. Chegará o dia
em que esse homem terá que conviver com os outros; e o tempo é rápido, tanto que
quando menos se espera, no menor descuido, este infante poderá estar dando ordens ao
adulto.
O sentimento propriamente humano é o amor de si, que quer tudo para si, que
busca superar as necessidades, sendo indiferente aos outros; em primeiro lugar está o ―Eu‖,
o indivíduo. Rousseau afirma ―O primeiro sentimento do homem foi o de sua existência; o
seu primeiro cuidado, o de sua conservação‖ (ROUSSEAU, 2009, p.61.). Esse sentimento
que parece ser individualista, não é um sentimento errado ou ruim, pois é um instinto de
sobrevivência; visar o provimento das próprias necessidades não é um ato que deve ser
ajuizado pela moral.
Para colocar o amor de si sob freios, o homem precisa ser educado. Um indivíduo
que está em desenvolvimento e sendo acompanhado pelo preceptor, vai estar muito mais
ligado ao físico e a si mesmo, sem condições morais, até mesmo para chorar pela morte de
outro homem. Não conhecendo o que é a dor, a não ser a sua própria dor, o homem não
tem experiência da dor do seu semelhante. O indivíduo está tão preocupado consigo que
nada está além de suas necessidades.
Rousseau preocupa-se com a educação que inicia na infância porque percebe que a
sociedade de sua época quer tratar a criança como um adulto, e isso é um problema, pois a
constituição do ser deve reconhecer a ordem da natureza. Um infante não possui condições
de resolver sobre questões políticas. Rousseau ressalta que as discussões políticas não
podem ser a pauta de círculos infantis, por isso justamente se faz necessária a educação do
indivíduo, que sai das ―mãos da natureza‖ e um dia irá ser adulto.
A educação proposta por Rousseau em sua obra Emílio salienta os seguintes pontos:
que a educação segundo a natureza oferece as condições para que os infantes desenvolvam,
livremente, suas faculdades e disposições físicas e morais; no Livro I do Emílio, Rousseau
(2004), afirma que ―antes da idade da razão, fazemos o bem e o mal sem sabê-lo, e não há
moralidade em nossas ações, embora às vezes ela exista no sentimento das ações de outrem
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que se relacionam conosco‖ (p.56). A educação de Emílio deve prepará-lo, tanto para ser
homem, quanto para viver em sociedade, pois o homem não nasce homem, nem nasce
preparado para a vida civil, sendo um ser amoral. Desde seu nascimento até a juventude, os
indivíduos devem ser acompanhados, cuidados e protegidos pelo preceptor para que
possam desenvolver suas capacidades físicas e intelectuais respeitando etapas e evitando
que sejam influenciadas pelos preconceitos e vícios sociais estabelecidos.
A educação promovida pela sociedade, com base na razão, quer adiantar e prevenir
o homem, não o deixando fazer experiências próprias antes, e assim cria hábitos que
atrapalham seu desenvolvimento. Por exemplo, querer que a criança aprenda por meio de
sequências lógicas e abstratas um determinado conhecimento que o adulto demorou
décadas para construir.
Caso o adulto não deixe a criança fazer suas próprias experiências, e não a
proporcione experiências, ele estará criando hábitos com base em seus gostos e
conhecimentos, exigindo que a criança entenda e haja conforme informações recebidas em
vez de ela mesma realizar a sistematização. Rousseau diz que a natureza fez o homem
criança antes de ser adulto. Não temos autoridade para mudar esta ordem, e se assim
quisermos estaremos pervertendo a ordem e as corrompendo e facilmente os motivos
secretos tomaram o lugar dos verdadeiros motivos.
Não há como querer instruir uma criança pensando e decidindo tudo por ela, ou
querer realizar raciocínios que não envolvem os sentidos, mas podemos ensinar a criança a
ser criança, para que na vida adulta, quando a razão aos poucos tomará o lugar dos
sentidos, possamos o formar como homem. Não cabe ao preceptor suprimir reações
causadas pelo próprio aluno, pois senão ele não aprenderá com os sentidos os resultados,
por exemplo, de uma mentira.
No Livro IV, Rousseau (2004) define que o homem possui um segundo
nascimento, que é o nascimento para a vida moral, e a partir daí a educação deverá se
preocupar em controlar as paixões para que não se corrompam, por meio da razão
consciente que está tomando forma.
Rousseau (2004) salienta que seria loucura, e até mesmo impossibilidade e
insensatez por parte de alguém querer impedir o nascimento das paixões, pois elas são
naturais e necessárias para a nossa conservação e desenvolvimento; ao mesmo tempo
esclarece que o preceptor deve continuar presente, problematizando e provocando o
raciocínio do aluno para que ele não se deixe afetar pelos ―mil riachos estranhos que são
somadas as águas da fonte natural. A paixão natural é aquela que brota do íntimo e que é
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denominada de amor de si, e as paixões estranhas que surgem do relacionamento com os
outros, do amor-próprio.
O amor de si, que só a nós mesmos considera, fica contente quando
nossas verdadeiras necessidades são satisfeitas, mas o amor-próprio, que
se compara, nunca esta contente nem poderia estar, pois esse
sentimento, preferindo-nos aos outros, também exige que os outros
prefiram-nos a eles, o que é impossível. Eis como as paixões doces e
afetuosas nascem do amor de si, e como as paixões odientas e irascíveis
nascem do amor-próprio (ROUSSEAU, 2004, p.289).
Rousseau (2004), diz que há necessidade do preceptor acompanhar o homem neste
momento ―para prevenir no coração humano a depravação que nasce de suas novas
necessidade‖ (ROUSSEAU, 2004, p.190). As necessidades podem levar o homem à
satisfação de desejos próprios a qualquer custo, e com isto facilmente dispensará qualquer
forma de sacrifício. Nesse momento da vida os sentidos e o corpo estão preparados para
satisfazer necessidade que brotam da natureza, mas a razão ainda não está madura para
regrar a vontade de satisfazer as necessidades que brotaram das novas paixões.
A educação do aluno sempre é racional e lhe reforça o poder de escolher e preferir
o que lhe é melhor, e mais lhe agrada, mas no contato com os outros, os gostos podem ser
transformados, e a comparação tornar-se a referência para tomar qualquer decisão. Cabe ao
professor encontrar um método que previna e alerte o aluno sobre a ideia de que: o amor
que quer tudo para si pode ser influenciada pelas ideias e gostos dos outros, quando a
opção estiver embasada na comparação. Na relação com os outros facilmente ―a torrente
de preconceitos arrasta-o; pra segurá-lo, é preciso puxá-lo em sentimentos contrários. É
preciso que o sentimento acorrente a imaginação e a razão cale a opinião dos homens‖
(ROUSSEAU, 2004, p.298).
A relação que o aluno tem com seus sentidos e com as coisas a sua volta é
desafiante, mas bem mais tranquila, pois são relações de necessidade de sobrevivência,
onde ele estará sozinho e precisará se resolver com o mundo das coisas. Em contrapartida,
na relação com os outros ele terá que lidar com as próprias necessidades e aprender a
decidir racionalmente sobre elas frente à diversidade de opiniões que brotam do amor de si
dos outros homens.
O amor de si quer tudo para si, neste sentido não há como imaginar uma sociedade
na qual cada sujeito somente pense em si mesmo, e queira que todos pensem em agradar a
um homem. Cada um estaria pensando em si mesmo, logo não poderia estar pensando nas
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necessidades dos outros. Quem ama muito a si mesmo não consegue viver com os outros,
pois sempre o eu virá em primeira instância.
Conforme Rousseau (2004), a amizade será o primeiro sentimento de
reconhecimento e valorização do outro. Dos sentimentos de amizade poderá brotar o
amor, que é uma superação do sentimento de amor de si. Desta relação com os outros
resultará o amor-próprio, que é corrupto em si mesmo, mas pode ser superado com o
tempero da compaixão.
Para Rousseau (2004) os homens devem se resolver por si mesmo, e nada está
garantido neste mundo das relações. A educação dos homens, não é garantida previamente
por nenhuma instituição. A educação do homem, mesmo proporcionada com grande
maestria por outro homem, não está garantida. Pode corrompê-lo ou torná-lo virtuoso. Há
educação dos homens cabe ―instruir o jovem mais pela experiência dos outros do que peça
sua própria‖ (Ibid., p.326).
A educação do homem a partir do estudo das relações que os homens possuem
entre si na sociedade, é desafiantes, segundo Rousseau (2004), pois o mundo está cheio de
grandes espetáculos e seus atores vestem belas máscaras. E nesta educação não basta
mostrar a sociedade e afirmar que ali está o exemplo a ser seguido, mas justamente deve-se
alertar e proporcionar ao aluno um exame mais cuidadoso sobre as relações sociais, afim de
que perpasse o verniz superficial e generalista. Rousseau (2004) no Livro V realiza uma
confissão para o seu aluno dizendo:
Quando entraste na idade da razão, protegi-te da opinião dos homens;
quando teu coração se tornou sensível, preservei-te do império das
paixões. (...) No entanto, caro Emílio, ainda que tenha mergulhado tua
alma no Estige, não pude torná-la invulnerável por inteiro; ergue-se um
novo inimigo que ainda não aprendeste a vencer e do qual não te pude
salvar. Este inimigo és tu mesmo. A natureza e a fortuna deixaram-te
livre. Podias suportar a miséria, podias suportar as dores do corpo, mas
as da alma eram-te desconhecidas; só estavas preso à condição humana, e
agora estás preso a toas as afeições que adquiriste; aprendendo a desejar,
tornaste-te escravo de teus desejos (p.654).
A criança deve ser iniciada na vida social, mas afastada das opiniões prontas e
fechadas que não permitem a formação da autonomia. Ela precisa observar as relações
sociais não para julgar, mas para conhecê-las e escolher as mais adequadas; pois a opinião
não pode resultar em opção, mas a opção deve ser racional e independente de qualquer
instituição e autoridade. A única autoridade válida para o homem deve ser sua própria
razão.
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Um adulto que já teve várias experiências de vida em sociedade, e já possui um
conhecimento elaborado, precisa empregar um esforço enorme para se colocar no lugar da
criança para acompanhá-la no desenvolvimento. Cada momento dia é desafiador para o
preceptor conseguir mediar as experiências que seu aluno realiza. Não me parece errado
pensar que depois que um conhecimento é elaborado, muitas vezes até esquece-se os
detalhes de como ocorreu tal processo de sistematização. A educação nunca pode atropelar
o tempo, pois se isto acontecer, com o objetivo de aligeirar processos de desenvolvimento
por meio de resumos ou explicações abstratas, uma ideia pode ser corrompida, e com isto,
a razão autônoma não estará sendo desenvolvida.
A elaboração de conhecimento depende de cada indivíduo, por isso Rousseau
(2004) preza pela educação individual que respeita a natureza humana. A razão sobre as
coisas do mundo e as relações não são inatas ao homem, mas pode ser desenvolvida com
auxilio de um acompanhamento adulto, que provoque por meio de situações reais o
desenvolvimento racional. O preceptor estará cumprindo sua missão quando conseguir
acompanhar o homem, e fazer com que esse desenvolva conhecimentos. De maneira
alguma se deve perder de vista que todo o tempo dedicado a educação tem o foco a vida
do homem em sociedade; e nessa vida, não cabe o egoísmo e mesquinharia. O homem
deve estar preparado para decidir por si, mesmo sentido as opiniões dos outros homens
fervilharem ao seu redor.
Rousseau considera que as opiniões são os vícios da sociedade, pois elas impedem
o desenvolvimento do homem. As opiniões são atitudes que facilmente podem manipular,
caso não estejamos racionalmente preparados para detectar esse mal. Um homem
preparado com uma educação natural terá mais sensibilidade, clareza e liberdade para
decidir, pois terá condições de dialogar de igual para igual com outro homem; qualquer
argumento não o convencerá.
Hábitos, paixões e vontades não podem ser confundidas com necessidade, utilidade
e liberdade. O homem deve nascer e crescer livre, sem esquecer que sua vida não é vivida
no isolamento, mas na sociedade. Quantas pessoas vivem numa mesma sociedade, e todas
possuem liberdade! De que forma poderão viver conjuntamente? Em associações regradas
pela compaixão, mantendo assim os laços humanos e repugnando a maldade. A vida na
República, onde as instituições e as leis são criadas pelos homens livres para os próprios
homens que amam a verdade e a justiça, é o melhor locar para se viver.
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―A sociabilidade não é, portanto, uma inclinação natural, ela foi instituída pelos
próprios homens. Tal é a conclusão à qual Rousseau tinha chegado no Discurso sobre a
desigualdade‖ (DERATHÉ, 2009, p.224).
A leitura que Derathé (2009) faz sobre a sociabilidade proposta por Rousseau, é a
de que ela é um sentimento inato, que só existe ―em potência‖ no homem natural,
desenvolvendo-se somente com a troca entre semelhantes.
A sociabilidade é a condição que o homem deve alcançar por meio do
entendimento interior, baseado no livre arbítrio, de que não se pode somente agir com base
no amor-próprio. Não é por meio dos raciocínios de outrem que o homem consegue
raciocinar. Mas também ninguém consegue viver bem em uma sociedade se somente
pensar em si mesmo, e achar de que tudo e todos vivem para satisfazer suas vontades.
Em resumo: a educação deve oferecer condições para que a criança quando se
torne adulta faça bom uso de suas capacidades de julgamento e de escolha; a educação
segundo a natureza destaca e relaciona, pois, a dimensão da formação do indivíduo,
(infante que chega ao mundo), com a sociedade na qual será integrado quando adulto,
exercendo seus deveres de cidadão.
Para Rousseau todo o caminho educacional proposto em sua obra Emílio visa
formar o homem para viver na sociedade. Quando Rousseau fala em sociedade, se refere a
esta palavra como sendo de cunho local, no sentindo do indivíduo viver sua vida em um
determinado espaço e tempo (caracterizado com patriota), mas possuir sentimentos
cosmopolitas, ou seja, de um cidadão global, que saiba ―ler‖ e interpretar o mundo em que
vive. Embora segundo Garcia (2010):
nenhuma lei, nenhum costume de um povo pode ser critério, ou
medida, para os outros. Por isso, ao conhecer as boas inclinações do
homem, as virtudes e os vícios sociais e os princípios do direito político,
Emílio deve viajar para curar-se de uma quimera. Isso feito, Emílio
poderá escolher um lugar no mundo sem a expectativa de encontrar um
bem absoluto para si mesmo e para a sociedade em que viverá (p.89).
A educação segundo Rousseau (2004, p.7) não pode deixar-se ao cargo da
sociedade, senão esta abafaria a educação natural. A educação não pode iniciar por mostrar
à criança como ela deve agir frente à determinada situação, pois esta seria uma educação
para a sociedade com base em ensinamentos corrompidos; o homem possui suas paixões
pessoais com as quais deve aprender a lidar, para não querer exercer domínio sobre os
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outros e as coisas; então percebemos que para viver na sociedade o homem deve ser acima
de tudo educado para ser homem.
Rousseau propõe uma educação do homem natural com o objetivo de fazer com
que este desenvolva suas faculdades individuais livremente; então pensa a educação para
seu aluno imaginário de uma maneira que primeiramente respeite a liberdade física, pois
não há como ir contra a natureza humana; posteriormente seria a vez da educação moral.
A condição humana para Rousseau está no próprio humano, pois de que vale a
educação se não considerar o homem enquanto tal na sua única condição humana que é
viver na sociedade? ―Aquele que, na ordem civil, quer conservar o primado dos
sentimentos da natureza não sabe o que quer. Sempre em contradição consigo mesmo,
sempre assando das inclinações para os deveres, jamais será nem homem, nem cidadão;
não será bom nem para si mesmo, nem para os outros‖ (ROUSSEAU, 2004, p.12).
Com o desenvolvimento físico, a educação moral reforça as premissas diretamente
ligadas à razão autônoma do indivíduo, que fará com que este viva sem se deixar influenciar
pelas opiniões sociais ou individuais.
Referências Bibliográficas:
GARCIA, Claudio Boeira. Rousseau: a condição humana e a política. Cadernos de Ética e
Filosofia Política 16, 1/2010, pp. 81-96.
http://www.fflch.usp.br/df/cefp/Cefp16/indice.html
DERATHÉ, Robert. Rousseau e a ciência política de seu tempo. São Paulo: Editora
Barcarolla, 2009.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio, ou, Da educação. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes,
2004.
___________. Textos autobiográficos & outros escritos. São Paulo: Editora UNESP,
2009.
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HANNAH ARENDT: NOÇÕES DE POLÍTICA, PODER E LIBERDADE.
Andrei Gati da Costa
UNIOESTE/CNPQ
[email protected]
Orientador: Rosalvo Schutz
RESUMO: O presente trabalho procurou compreender a relação existente entre política e
liberdade segundo a teoria da pensadora Hannah Arendt, mais especificamente em sua obra
―A condição Humana‖. Percebemos que a autora diferencia liberdade de livre arbítrio.
Condição originária da liberdade, segundo a autora é a política, experimentada em espaços
públicos onde indivíduos simultaneamente diferentes embora não desiguais fazem uso da
ação e do discurso.
Palavras-chave: Condição humana. Vita activa. Politica. Liberdade. Poder
Em sua obra ―A Condição Humana‖ Hannah Arendt nos sugere o que seja
condição humana propriamente dita e quais são os elementos que a constituem. Segundo a
referida autora a condição humana diz respeito aos modos sistemáticos de vida, seja ele o
natural (a vida dada ao homem na terra em seu estágio mais elementar) ou o
convencionado (onde os seres humanos em conjunto deliberam e criam paradigmas
regulamentadores do modo de vida da sociedade como um todo). A condição humana nos
remete diretamente ao conceito de vita activa, que para a autora consiste em três atividades
fundamentais, a saber: Labor, Trabalho e Ação. Quando a pensadora analisa a condição
humana, observa que essas atividades não podem ser de forma alguma dispensadas
enquanto a condição humana não mudar. Façamos uma breve analise da cada atividade e
suas personagens humanas correspondentes.
Faz-se sabido que dentre todas as atividades o Labor é a primeira, justamente por
ser esse movimento fundamental e garantidor da vida e de manutenção da espécie, ou seja,
é um processo que corresponde ao âmbito dos mecanismos biológicos e fisiológicos da
vida, é necessariamente uma labuta da dimensão orgânica. Sendo que o processo vital não é
ligado a liberdade, pois possui sua própria necessidade que é a vida, só podemos falar em
liberdade no âmbito do labor na medida em que ele é um processo que acontece de forma
livre, mas não como um desígnio apolítico da política, ele constitui um fenômeno de
margem, que estabelece limites ao qual o governo não deve transpor, pois podem pôr em
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jogo a própria vida e seus interesses imediatos, que constituem a labuta orgânica. A
condição humana do Labor é a própria vida, ele corresponde às atividades de manutenção,
tudo o que visa à manutenção seja do próprio corpo ou de objetos é Labor. Tomar banho,
fazer comida, lavar roupa, as atividades de manutenção de uma ponte, enfim todas essas
atividades em conjunto com os processos biológicos pertencem ao Labor.
O produto gerado por ele é consumido quase tão rapidamente quanto o esforço é
despendido, justamente por ser de caráter incessante, ou seja, enquanto houver vida deve
necessariamente existir o labor.
A personagem humana do labor corresponde ao animal laborans, sendo este que
ganha à vida, mas está enredado fundamentalmente em mantê-la. Visto que esta é de
caráter urgente uma vez que este é um movimento primordial, ou seja, é a partícula que
garante a vida enquanto tal e, portanto não pode sofrer influência das duas outras
atividades. A saber: Fabricação e Ação (política).
A segunda atividade da condição humana é o Trabalho ou Fabricação, que
corresponde a um movimento por meio do qual o homem transforma a natureza, e é capaz
de trazer coisas novas ao mundo, trata-se da ação transformadora do homem sobre a
matéria natural. Natureza aqui tomada como algo não modificado pela forca de trabalho
exercida pela mão do homem, aquilo que se mantem intocado desde os primórdios do
mundo.
A personagem humana do trabalho, a saber, é o Homo Faber, aquele que fabrica que
cria, e com suas próprias mãos age e transforma a matéria em objetos claramente distintos
das coisas naturais. Diferente do labor o trabalho gera produtos utilizáveis (ex: Carros,
estradas, prédios, pontes, cadeira, etc.) e dotados de durabilidade, ou seja, transcendem a
existência de seus criadores. A atividade da fabricação tem início e fim.
A condição humana do Trabalho é a própria mundanidade, e o seu resultado é o
mundo, sendo que este é essencialmente diferente da natureza, e portanto, concernente ao
artefato humano como produto das mãos do homem.
A terceira atividade é a ação ou política que se configura como o nosso principal
objeto de estudo, a partir deste ponto explicitaremos a sua relação com os conceitos de
poder e liberdade. Partiremos de uma máxima que se infere a partir do pensamento político
de Aristóteles e que nos diz o seguinte: ―a razão de ser da política é a liberdade‖.
Mas o que é a política para Hannah Arendt?
Essa diz respeito aos modos que os homens se relacionam sem violência, a fim de
sanar necessidades e problemas em comum. Porém para poder exercer a política os
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homens devem ter se libertado das atividades de manutenção do organismo e fabricação,
uma vez que, para a autora, essa não sofre influência nem do labor enquanto uma
necessidade, nem do trabalho enquanto utilidade.
Aqui se afirma a importância do conceito de liberdade, e liberdade para Hannah
Arendt não é: ―um ―liberum arbitrium‖, uma liberdade de escolha arbitrária e decide entre
duas coisas dadas, uma boa e uma má‖ (ARENDT, 2007, p. 197)
Liberdade para a referida autora se afirma como ação no âmbito do espaço público, ou seja,
uma liberdade essencialmente política, na qual necessita:
(...) além da mera liberação, da companhia de outros homens no mesmo
estado, e também de um espaço público comum para encontrá-los – um
mundo politicamente organizado, em outras palavras, no qual cada
homem livre poderia se inserir por palavras e feitos (ARENDT, 2007, p.
194).
Não existe nessa atividade intermédio das coisas ou matéria, pois por habitarem
juntos o mundo, os homens são capazes de colocar a si mesmos mediante a ação e o
discurso. A Ação remete a condição humana que se revela quando os seres-humanos em
sua pluralidade se reúnem em espaços públicos, e para além dos interesses individuais
decidem livremente. É a única atividade humana que não pode ser pensada fora do âmbito
de uma sociedade de homens, uma vez que a condição humana da ação é a própria
pluralidade. Seu tipo humano de Ação denominaremos de “Homo Politicus” (mesmo
sabendo que esse termo não aparece na obra). É como vemos na própria obra:
Não nos é imposta pela necessidade, como o labor, nem se rege pela
utilidade como o trabalho, pode ser estimulada, mas nunca condicionada,
pela presença dos outros em cuja companhia desejamos estar; seu ímpeto
ocorre do começo que vem ao mundo quando nascemos e ao qual
respondemos começando algo novo por nossa própria iniciativa. Agir,
no sentido mais geral do termo significa tomar iniciativa (ARENDT,
2007, p.190).
Hannah Arendt não considera o homem de ação um ―Animal‖ que apenas labora
em prol da manutenção da vida e muito menos uma espécie de ―fabricante‖ que cria um
mundo a partir de objetos, mas a Ação é a atividade política por excelência, e a política é a
expressão por excelência da liberdade possível quando indivíduos plurais se juntam em
espaços públicos e por meio de ações e palavras iniciam algo novo. A pluralidade humana é
esse fator que comporta duplo aspecto, igualdade e diferença, se não possuíssemos
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estruturas e alguns pressupostos iguais, seriamos incapazes de nos entendermos entre nós,
ou de elencarmos metas ou planos que prevejam as necessidades das futuras gerações, por
outro lado, se os homens fossem todos iguais e não diferissem em relação a qualquer outro
que existe, existiu ou vai existir, não seria necessários a ação e o discurso para se fazerem
entender. Podemos perceber a importância e o duplo aspecto contido na pluralidade no
próprio texto:
A pluralidade humana, condição básica da ação e do discurso tem o
duplo aspecto de igualdade e diferença. Se não fossem iguais, os homens
seriam incapazes de se compreender entre si ou a seus ancestrais, ou de
fazer planos para o futuro e prever as necessidades das gerações
vindouras. Se não fossem diferentes, se cada ser humano não diferisse de
todos os que existiram, existem ou virão a existir, os homens não
precisariam do discurso ou da ação para se fazerem entender. Com
simples sinais ou sons, poderiam comunicar suas necessidade imediatas e
idênticas (ARENDT, 2007p.188).
Mas interligado a esse conceito de liberdade temos o conceito de poder, que
veremos a seguir.
Diferente de outros pensadores da ciência política, Hannah Arendt entende o poder
não como a possibilidade da imposição da vontade individual de um sujeito, mas uma
faculdade que possibilita um acordo em relação ao exercício da ação (política) no contexto
da livre comunicação desprovida de violência, ou seja, há uma grande valorização do
diálogo e do espaço público.
Para Hannah Arendt, poder é o acordo quanto à ação comum, a comunicação livre
de violência e orientada para o entendimento recíproco, há uma grande valorização da
comunicação e da reciprocidade comunicativa. O poder resulta da capacidade humana, não
somente de agir ou de fazer algo, como de unir-se a outros e atuar em concordância com
eles.
O conceito de poder possui um fim em si mesmo, serve para preservar a atividade
humana em sociedade, o poder das convicções orienta o entendimento recíproco e não
para o sucesso próprio, ele é construído na ação comunicativa e é a consequência do
discurso e entendimento mútuo entre os participantes.
Pode-se dizer que é muito trivial confundir ―poder‖ como expressão de ―força‖.
Sendo que a convivência humana pacifica é a verdadeira e legitima fonte de geração do
poder,visto que o poder se configura como possibilidade de ação e tomada de iniciativa que
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se afirma no âmbito público levando em consideração a necessidade da pluralidade
humana, na tão disseminada acepção do ditame popular: A união faz a força.
Desse modo, Arendt identifica naquele que se isola por algum motivo da
convivência humana, renúncia ao poder e torna-se impotente, mesmo que todos os seus
motivos e razões sejam válidos. Assim a geração do poder não é uma espécie de trabalho,
mas uma ação conjunta, entre os homens, na qual propicia por meio do discurso a
revelação de suas peculiaridades.
A não-violência é um fator fundamental e que é capaz de proporcionar o encontro
dos homens por meio da palavra. E esta é necessária, pois na condição humana, não se
mira um determinado fim (individual), mas a constituição de uma meta de caráter comum e
que sirva como fator de aglutinação.
Segundo nossa autora, quando a palavra é usada tão-somente para atingir um fim
em especifico, consequentemente perde sua significação política original. Visto que está
atrelada fundamentalmente a política, e entende a política não como algo instrumental e, ou
pragmático, mas um espaço no qual vige a igualdade e o interesse comum.
Como exemplo do contraste entre poder político e a violência, temos a ação
estratégica, que para H. Arendt é essencialmente apolítica. Ela é violenta e instrumental e
por isso é colocada fora da esfera da política.
A não-violência é esse movimento fundamental que, por conseguinte é fonte
geradora do poder, que advêm do agir e viver conjuntos pautados na união e harmonia,
sendo a violência o extremo contrário, o produto gerado é exclusão da interação e
cooperação social. Em suma a ausência de diálogo.
Como dito anteriormente, devemos sempre ter em mente que liberdade em
Hannah Arendt remete necessariamente a liberdade política, ou seja, é um meio de tornar a
ação efetiva, da qual se podem originar inúmeras consequências, visto que as mesmas
dentro do âmbito da ação são imprevisíveis.
Mas, para se conservar a possibilidade da prática da liberdade, os seres humanos
devem conservar o espaço público, e tendo em vista a manutenção do direito básico, que é
ter cidadania, ou seja, o direito a ter direitos.
Se partirmos de uma breve analise do mundo grego, principalmente o cenário
político de Atenas, concluiremos que a Pólis sempre foi e continua sendo a origem da
liberdade para a referida autora, pois como vimos anteriormente liberdade neste
pensamento em especifico diz respeito ao âmbito civil, ou seja, só há liberdade a partir do
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momento em que o estado é fundado, e que a política não é instrumentalizada, a fim de
atingir interesses próprios.
Arendt discorda de Aristóteles na medida em que diz que o homem não é um ser
essencialmente político, mas sim apolítico, justamente por conceber que em seu estágio
mais elementar não passa de uma espécie de ―animal‖ que labora em prol da própria vida,
nem a medida em que se configura como um fabricante que apenas constrói coisas por
meio da modificação da matéria, mas a medida em que ascende a esfera política, por
consequência, o homem cria o estado à medida de sua liberdade. Neste ponto Arendt se
aproxima de Hobbes, justamente por este entender que a política é uma convenção, mas
não um instrumento, que serve de apetrecho a manutenção da vida, muito pelo contrário,
quando se configura de tal forma, constatamos segundo a autora que, temos um processo
de degradação e não de construção.
Tomemos como exemplo um homem isolado em uma ilha remota, este pode
exercer duas atividades, o Laborans e o Faber, mas nunca a atividade política, pois este,
segundo o pensamento arendtiano necessita da pluralidade.
Mas, em suma, a não-violência é o elemento definidor do exercício do poder, deste
modo a política deixa de ser pragmática, e passa a ser a construção do espaço público e da
possibilidade de exercer a liberdade em sua totalidade.
Onde há política, há espaço público, vige o diálogo e há liberdade, uma vez que
essas são as condições fundamentais para a existência da mesma, visto que um sistema
onde impera o autoritarismo ou seja o não dialogo não pode se não, ser considerado uma
violenta ditadura e jamais poderá se configurar como a legitima política.
Referências Bibliográficas:
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
___________. O que é política? Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
___________. O que é liberdade? In: Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2007.
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INVESTIGAÇÃO ACERCA DO UNIVERSO E SUA POSSIBILIDADE DE
COMPREENSÃO
Carlos Henrique Favero
UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná
[email protected]
Orientador: Marcelo Penna-forte
RESUMO: O presente trabalho trará em discussão ideias relevantes sobre a caracterização
do universo. Virá à tona a possibilidade de sua infinitude, que resultaria na sua
incompreensibilidade do mesmo, ou sua finitude, sendo o motivo de seu não
conhecimento, nossa limitação cognitiva. A defesa principal é o fato histórico da situação
racional aquém em relação ao desenvolvimento do universo: muito tempo de evolução
natural para pouco tempo de entendimento humano. Esse engendramento se passa em
toda obra, tendo como base um ensaio acerca de conceitos de filosofia e ciência, as mesmas
como inseparáveis na procura do conhecimento.
Palavras-chave: Universo. Infinitude. Limitação Cognitiva.
A quantia de teorias levantadas a respeito dessa questão – que me parece tão
imensurável quanto o próprio universo – serviram e servirão de base para criações de
paradigmas, possibilitando sempre o progresso da ciência e da filosofia. Como tal estudo
não se encontra resolvido, são bem vindas, quaisquer que sejam, teorias que apresentem
validações lógicas com as bases científicas tidas atualmente.
Em toda a história dos estudos cosmológicos, uma das coisas que mais se discute é
a infinitude do universo. No entanto, pouco se ressalta – é o que no momento posso
afirmar – que tal predicação possa vir de nossa incompreensão da natureza em uma
situação aquém - não um postulado de que jamais seremos capazes de compreendê-la, mas
de que ambos se desenvolvem, estando o universo além de nossa compreensão - não
descartando a hipótese de que futuramente podemos conhecê-lo plenamente. A partir daí,
entende-se que o universo não é infinito, mas sim, nossa capacidade de compreensão que
não alcança os limites do mesmo.
Quando cito acima que paradigmas foram criados, possibilitando o avanço dos
estudos científicos e filosóficos, um dos principais a ser referir, é a descoberta feita por
Edwin Hubble, em 1920 sobre a expansão do universo. De fato, ele se encontra em
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constante expansão; e o mais assustador é que, quanto mais distante os corpos se
encontram, mais rápido isso acontece.
Temos pois, dois principais pontos a serem discutidos: nossa limitação, seja
cognitiva ou instrumental – que podemos atribuir, respectivamente, filosófica e científica –
a cerca do universo; e o mais desconfortante, para onde nosso universo está expandindo.
Antes disso, vale discorrer algumas linhas deste trabalho a respeito das devidas
limitações atribuídas à filosofia e à ciência que servirão de base para um melhor
entendimento. Tendo em vista uma das principais ideias de ―O balde e o holofote‖ de Karl
Popper (1902), de que a filosofia precede a observação - sendo a primeira aquilo que induz
ao conhecimento e a segunda aquilo que comprova - atribuir a limitação cognitiva em
termos filosóficos, nos coloca aquém de apresentar teorias que dêem conta de explicar o
funcionamento do universo; e nossa limitação instrumental, ligando-a à científica, nos
colocando ainda incapazes de criar utensílios que cheguem a observar o que realmente
acontece – seja lá o que o temos a conhecer. Filosofia precede ciência, a segunda dá
garantia à primeira, mas não se separam. Do que vale uma filosofia apenas ideológica e uma
ciência sem uma base teórica? A primeira pode parecer uma brincadeira de fazer de conta –
levada muito a sério – de exercícios lógicos - que na maioria das vezes tende a provar a
existência de um deus -, e a segunda, nos colocando em uma situação estática, sem
evolução – e se houver alguma, muito lenta -, pois não há comprovação apenas por
consecuções de fatos, ou seja, sem antes ter algo que induzisse àquilo.
Pode-se afirmar, portanto, que a filosofia é aquilo que liga todas as ciências – o
estudo primeiro das coisas. Como que se todas as ciências tivessem um fio condutor lógico,
cada uma com suas distinções, tendo a filosofia como refúgio a se buscar conceitos
estabelecidos, seja da moral, dos fenômenos, do ser, ou qualquer assunto. Se levarmos em
conta, de que a filosofia levanta as hipóteses e a ciência comprova, seria como se essa
primeira lançasse suas ramificações – ciência – para resolver suas próprias questões; como
se o inventor usasse de suas invenções para buscar respostas para suas indagações e quando
resolvidas, arquivadas quase que como dogmas.
Esse levantamento, apontando especificações da filosofia e da ciência, é crucial para
tentarmos entender o universo, nesse caso, trazer em discussão a possibilidade de
caracterizá-lo. Ver-se-á, a partir deste trabalho, a ascensão desse problema, colocando a
filosofia um tanto limitada para explicação do mesmo; e sua ramificação científica, ainda
mais. Hipóteses serão levantadas advindas de hipóteses, induções atribuídas com base nos
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paradigmas já estabelecidos, e tendo como preceito, sobre esse assunto não estar resolvido,
isso abre um leque de ideias a serem discutidas.
É comum termos na história da filosofia autores que negam a possibilidade de
conhecer plenamente qualquer objeto da natureza, sendo esse o ponto de partida desse
trabalho. Segundo David Hume, por mais que estejamos acostumados com vários
acontecimentos naturais, como o aparecer do Sol, não temos como ter a certeza que o
mesmo aparecerá no próximo dia; Kant já deixa claro que não vem ao caso estudar o
objeto em si, mas sim sua representação; ambos creditam à razão, a responsável de
estabelecer verdades. Alguns racionalistas conseguem ―provar‖ a existência de uma
Substância necessária através de argumentos lógicos e nada mais disso, negligenciando a
experimentação. De certa forma, os exemplos dados acima, nos mostram que nossa
capacidade intelectual não dá conta de explicar o mundo, seja ele por ser infinito, ou por
nossa limitação cognitiva. Minha defesa, a partir desses escritos, é em prol à segunda opção,
entendendo que estamos ―atrasados‖ em relação à expansão do universo.
Façamos o seguinte exercício mental: há mais de dez bilhões de anos, segundo a
teoria do ―Big Bang‖, houve a tal explosão que se desenvolveu - e continua desenvolvendo
– no que temos hoje por universo. Ou seja, todo ele estava condensado em algo
extremamente minúsculo. Com o passar do tempo foi crescendo e ganhando forma. Tenho
como válido imaginar o universo, pouco tempo após seu surgimento, ter o tamanho de
uma maçã, algum tempo depois de uma melancia, e por conseguinte, o universo todo tendo
o tamanho do planeta Terra. Agora, levemos em consideração o mais avançado e potente
telescópio e imaginemos logo o seu limite; de fato, esse instrumento não tem a devida
capacidade de alcançar o possível limite do universo, e boa parte da ciência acredita estar
―infinitamente‖ longe dessa façanha. Logo, se relacionarmos nossas capacidades cognitivas
e instrumentais de hoje, com a hipótese acima, do universo ainda muito pequeno – do
tamanho da Terra -, saberíamos pelo menos seu tamanho. Minha intenção é a defesa de
que há muito tempo o universo está em expansão e nós, seres humanos, habitamo-lo enquanto homo erectus14 segundo o livro ―O homem pré-histórico‖ de principal autoria de
Clarck Howell – há pouco mais de 500 mil anos. Também devemos levar em consideração
o fato de duas espécies de homo-sapiens terem sido extintas, o que pode ter deixado mais
lenta a evolução humana. Ou seja, é muito tempo de expansão para pouco tempo de
O homo-erectus foi o primeiro homem de nosso gênero, seus traços físicos estão muito próximos do homem
atual; foi a primeira espécie a fazer uso do fogo.
14
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conhecimento! Há pouco menos de mil anos, a crença ainda era na teoria geocêntrica e
nosso universo não passava - ideologicamente – de nosso sistema solar, com sérias
desavenças com a teoria atual; e não pensemos através disso, que os paradigmas da época
não foram importantes, pelo contrário, tais bases foram necessárias para a nossa concepção
atual. É precoce deliberarmos a ideia de um universo infinito, ou já nos colocarmos
incapazes de compreendê-lo.
Caracterizado por Alexandre Koyré, por ―espalhar o ceticismo e a perplexidade‖
(1979, p. 38), Copérnico revoluciona a ciência não só pela ideia de mudar o local de visão
das orbes, isto é, de simular sua visão como se fosse estar na posição do Sol para tentar
entender melhor os movimentos celestes15 - e a partir daí, sendo o grande autor da teoria
heliocêntrica -, mas, tendo em sua teoria um detalhe crucial, a afirmação de um universo
finito, em um espaço ilimitado .
Enquanto a teoria ptolomaica era sustentada, advinda da teoria aristotélica de
mundo, Copérnico, tem a ideia inovadora, sendo para muitos, a mais importante revolução
científica de todos os tempos. Para entendermos melhor, devemos ter conhecimento de
como era a descrição ordenária cosmológica do medieval:
(...) a primeira e suprema dentre todas (esferas) é a esfera das estrelas
fixas, que contem a tudo e a si própria e que está, por conseguinte em
repouso. Na verdade, trata-se do lugar do mundo que serve como
referência para o movimento e a posição para todos os outros astros. (...)
(depois da esfera das estrelas fixas) vem Saturno, que executa seu circuito
em trinta anos; depois dele, Júpiter, que se move numa revolução
duodecenal. Então, Marte, que circungira em dois anos. O quarto lugar
nessa ordem é ocupado pela revolução anual, que, como já dissemos,
contém a Terra, como um orbe da Lua como um epiciclo. No quinto
lugar, Vênus resolve em nove meses. Finalmente, o sexto lugar, é
ocupado por Mercúrio, que gira no espaço de oitenta dias. (KOYRÉ,
1979, p. 41).16
O universo de Copérnico é finito e esférico, tendo como centro o Sol.
Por mais que pareça que Copérnico seja um defensor da infinitude do universo, por
trazer superficialmente em discussão que além da esfera das estrelas teríamos uma
―extensão espacial indefinida‖, ele apenas a coloca em condição de imensurável; não
podemos conhecer seus limites e dimensões, por tamanha grandeza. Cabe aqui evidenciar
Tendo também a crença e a confortabilidade de que é muito mais aceitável a condição de estar em repouso
- também considerando nobre e divino - do que a idéia de mudança, dessa forma, a estaticidade do universo
se encontra no Sol; atribuindo movimento à terra.
16 A necessidade de explicação matemática do universo vem à tona, sua medição é de 200.000.000 de
quilômetros.
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que tal afirmação, da não compreensão desse espaço, se dá por nossas limitações. No
entanto, deixa brechas para discutir o que viria além dessa última esfera e curiosamente tal
assunto é colocado como filosófico por ser imensurável17. Remete-se o pensamento
copernicano, ao que foi colocado acima: essa é uma oportunidade de levantar hipóteses.
Trazendo em cheque a interpretação por Koyré de Copérnico que ―o infinito, na
verdade, não pode ser movido ou atravessado‖ (1979, p.40), temos pois, a prova lógica e
ideológica de que o universo não pode possuir qualquer estrutura infinita. Se compreendo
algo e constato esse mesmo como finito, não tenho como somar extensões desse mesmo
com a intenção de obter o infinito; pois de partes finitas não se faz infinito; não há
também, como repartir o infinito – duas ―metades‖do mesmo:
(...) inter finitum et infinitum non est porportio18. Não nos aproximamos do
universo infinito aumentando as dimensões de nosso mundo. Podemos
torná-lo tão grande quanto quisermos; isto não nos situa em nada perto
da infinitude. (KOYRÉ, 1979, p.42).
É claro que se tem como premissa a compreensão de algo, e sendo assim, posso
evoluir à partir do mesmo. No entanto, podemos nos lançar em emaranhados céticos
declarando que nada se pode conhecer pela possível estrutura infinita da natureza em geral.
A questão é: se todos os objetos possuem tais infinitudes, ou nossa mente é possuidora de
estruturas infinitas – capaz de entender o objeto - ou nada que dizemos – por entender – é
verdadeiro.
A segunda opção não é de descartar, pois a própria ciência não trabalha com
verdades, mas sim, aproximações, ―verdades momentâneas‖, e basta uma teoria que
comprove que a atual esteja errada, para que tenhamos o possível início de uma crise
científica, necessitando de novos paradigmas. Me parece mais válido, crer na finitude do
universo – e mais confortável.
Mesmo nesse ―conforto‖, Copérnico foi também capaz de despertar um
desconforto maior. Levando em consideração a constante expansão do universo - de
Hubble -, e esse mesmo, finito – de Copérnico -, nos cabe pensar: para onde tudo isso está
indo? Segundo Copérnico, o mundo é finito, distribuído em um espaço ilimitado; nesse
caso, há uma segunda questão a se preocupar – como se a discussão da finitude ou
infinitude do universo fosse estar resolvida – para onde segue tal expansão, ou em que se
Fica claro que Copérnico não se coloca como filósofo, estando à disposição de discorrer apenas o
mensurável; o oposto é puramente de caráter filosófico.
18 Pode-se traduzir como ―Não há proporção entre o finito e o infinito‖.
17
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sustenta? Algo que podemos constatar é que, já existia esse ―espaço ilimitado‖ antes do Big
Bang. O que muda aqui é apenas o alvo da discussão, no entanto, caímos no mesmo
problema – pois o que pode se entender de ilimitado, senão infinito?
É de se concluir que, se quisermos ―resolver‖ tal questão, deve ser em usos lógicos
racionais. Pode-se levantar a hipótese advinda de Nicolau de Cusa, em sua obra De Docta
Ignorantia (1440), que a incompreensibilidade do universo tem como base seu estado infinito
e proporções inacabadas; o mesmo é afirmado em relação à incompreensão da natureza de
Deus, por Ele mesmo possuir estado infinito. Logo, se ligarmos essa ideia de Deus e
universo à noção de espaço ilimitado de Copérnico, podemos afirmar que o mundo se
distribui no próprio Deus – o Espaço Ilimitado. Confesso um devido desconforto na
limitação de não poder afirmar outra coisa senão a colocação dessa ―Substância primeira‖
como um dos resultados desse trabalho; no entanto, é tudo que temos.
A crença que coloco, de que algum dia, algum ser racional possa compreender o
universo, seja o ser humano ou outra espécie que possivelmente habitaria em nosso lugar –
ou talvez outra espécie que já dê conta de resolver tal assunto – nos remete à uma outra
colocação, talvez utópica: seguindo o raciocínio tido no decorrer desse trabalho – na
colocação de um universo limitado, em constante progressão e de que ainda não
encontramos limites para nossa mente - basta que ―alcancemos‖ o desenvolvimento do
universo para compreendê-lo.
Referências Bibliográficas:
HAWKING, Stephen. Uma nova história do tempo. Rio de janeiro: Ediouro, 2005.
HOWELL, F. Clark. O homem pré-histórico. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1969.
HUME, David. Uma investigação sobre o entendimento humano. São Paulo: UNESP, 2003.
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008.
KOYRÉ, Alexandre. Do Mundo Fechado ao Universo Infinito. São Paulo: Forence-universitária,
1979.
KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2006.
POPPER, Karl. Conhecimento objetivo: Uma abordagem Evolucionária. Belo Horizonte:
Itatiaia, 1902.
ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia
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REFLEXÕES FILOSÓFICAS ACERCA DO MISTICISMO À LUZ DO INTUICIONISMO E DO
NEO-KANTISMO: KANT E JUNG
Christian Carlos Kuhn
[email protected]
Orientador: Marcelo Pennaforte
PIBIC – PRPPG
RESUMO: As contribuições de Emmanuel Kant deixam seu marco na história da
Filosofia, cujos vestígios se encontram nos conceitos de Intuição e Símbolo, utilizados e
modificados por pensadores posteriores considerados expoentes do neo-kantismo. O
conceito de intuição que tem raízes gregas, perpassa o medievo, a modernidade e chega até
nós, no senso comum, sendo compreendido em sentido de insight, também é utilizado
pelos místicos na exposição de suas ideias. De acordo com Kant, como veremos, não é um
assunto tão simples de se tratar, pois, como o próprio autor apresenta, o conteúdo intuitivo
da experiência humana comporta representações inconscientes (ou obscuras), e até mesmo
o esquematismo do entendimento, com sua confiabilidade que traz ao conhecimento é
considerado ―uma arte oculta das profundezas da alma humana‖. As ideias ou conceitos
que se apresentam nas narrativas místicas, devem ser compreendidas à luz da lei moral e do
simbolismo. A crítica de Kant ao misticismo se refere ao modo como se utiliza do intuitivo.
Se utilizado corretamente, este, o intuitivo, será um ótimo aliado na tarefa por vezes árdua
do conhecimento. Porém, se mal utilizado, pode seduzir e levar ao desvario. Finalmente, o
trabalho de Jung, considerado um expoente do neokantismo, parece demonstrar que se
pode compreender a verdade (em sentido simbólico e intuitivo e não demonstrativo e
conceitual) das exposições de certas experiências místicas, somente compreendendo o
contexto compatível a tais experiências. Compreendida sob esta perspectiva, a doutrina
kantiana da intuição, se aliada à importância que Jung concede a este fator hermenêutico
indispensável, ou seja, a visão-de-mundo, pode ser um primeiro passo para, tal como
apresenta Karl Jaspers, seguirmos com Kant a tarefa crítica da Filosofia de compreender o
mundo, e algo não menos importante segundo Jung, compreender a nós mesmos.
Palavras-chave: Intuição, Misticismo, Conhecimento simbólico, Visão-de-mundo
Pretende-se neste trabalho apresentar algumas reflexões acerca deste tema que a
muitos inquieta e contudo, a outros é objeto de indiferença. Primeiramente serão
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apresentadas algumas referências de Kant a este tema, as quais utilizaremos como princípio
de nossas reflexões, para então refletir com Kant a respeito deste tema, trazendo à
discussão, apontamentos de comentadores de Jung.
Logo de início nos defrontamos com a dificuldade em se precisar o conceito de
misticismo para Kant, pois não encontramos uma definição kantiana clara para essa corrente
filosófico-religiosa. Como veremos mais adiante, a crítica de Kant ao misticismo se refere
ao modo como se utiliza do intuitivo. Se utilizado corretamente, este, o intuitivo, será um
ótimo aliado na tarefa por vezes árdua do conhecimento. Porém, se mal utilizado, pode
seduzir e levar ao desvario. Conforme se dá esse processo de associação ou relação entre o
material intuitivo (sensibilidade) e o conceitual (entendimento) é que se pode distinguir o
gênio e desvario.
Antes de adentrarmos mais profundamente no tema proposto, são necessárias
algumas considerações sobre um conceito que permeia nossa discussão: a intuição. Como
veremos mais adiante, segundo referências de J.J.Clarke, Jung parece ter sido um grande
expoente do simbolismo e do intuicionismo contemporâneo e, por isso, julgamos pertinente
trazê-lo à discussão. No entanto, a compreensão deste conceito não é algo pacífico na
história da filosofia. A intuição perpassa a escolástica, o neoplatonismo e o aristotelismo
medieval até atingir, no senso comum, um sentido de insight.
Além do conceito de intuição temos outro conceito relacionado que parece
permear a discussão do tema proposto e que Jung dera especial atenção: o conceito de
visão-de-mundo.
As formulações kantianas acerca da intuição parecem abrir margem para duas
interpretações do termo alemão Anschauung, ora compreendido em um aspecto meramente
negativo e arbitrário, em sentido de ―algo ainda não conceitual‖ e, portanto, ainda não
passível de ser considerado um conhecimento em sentido superior, ou, sob outro ponto de
vista, algo análogo a uma faculdade de conhecimento, porém restrita à sensibilidade.
A dificuldade que se apresenta a essa última perspectiva parece consistir justamente
em se admitir a imediaticidade no conhecimento, ou seja, a não mediação do entendimento
discursivo, e também na relação entre sujeito e objeto, tendo-se em vista as objeções de
Kant à Intuição Intelectual. Kant compreendia que o conhecimento humano se encontra
limitado fenômenos, mera aparência dos objetos, e, disso se segue que não podemos
conhecer as coisas em si mesmas. Kant afirmava:
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A intuição de nossa mente é sempre passiva; e, por isso, só é possível na
medida em que algo pode afetar os nossos sentidos. Mas a intuição
divina, que é o princípio dos objetos e não o principiado, dado que é
independente, é um arquétipo e, por isso, é perfeitamente intelectual.
(KANT, 1982, p.50)
A distinção kantiana entre uma intuição arquetípica (intelectual) e uma intuição sensível
parece se fundamentar justamente em um conceito limite que pressupõe a existência de um
ser originário e um ser derivado, e, nisso parece residir a herança medieval do conceito
kantiano de intuição. Enquanto o ser supremo cria seus objetos pela intuição arquetípica, o
ser humano pode somente ter acesso aos objetos de modo reprodutivo, de modo a ter
somente uma representação do objeto sendo a ele impossibilitado um acesso à sua
realidade intrínseca.
Ora, a intuição, a partir da segunda perspectiva anteriormente apresentada, ou seja,
abrindo a possibilidade de se pensar em uma faculdade de intuição como um modo de
relação imediato entre sujeito e objeto, se poderia então, compreender a intuição em um
sentido de visão, contemplação, algo que não parece ser absurdo de se conceber ao se
estabelecer contato com as observações de Kant acerca do sentido da visão contidas em
sua Antropologia. No entanto, não se deve esquecer que já aí, segundo Kant, poderia haver
uma contradição, pois não se poderia estabelecer a relação imediata entre sujeito e objeto se
somente podemos conhecer nos limites de nossa faculdade de representação (fenomênica)
e dos nossos sentidos. Acerca do sentido da visão Kant afirma:
(...) Se não é mais indispensável que o ouvido, a visão é seguramente o
sentido mais nobre, porque é, dentre todos, o que mais se distancia do
tato, como condição mais limitada das percepções, e não só contém a
maior esfera delas no espaço, mas também sente seu órgão menos
afetado (porque do contrário, não seria mera visão), e, com isso, se
aproxima, portanto, de uma intuição pura (a representação imediata do
objeto dado sem que nela se note mistura de sensação). (KANT, 2006,
§19, p.55).
Para os leitores mais familiarizados com o rigoroso pensamento kantiano logo pode
se recordar do desenvolvimento do conceito de intuição de acordo com sua estética
transcendental, onde Kant chega à conclusão de que são o espaço e o tempo, exemplos
genuínos de intuições puras. Obviamente, isto se fundamenta em uma concepção marcante
em seu tempo, a visão newtoniana e euclidiana de espaço e tempo, tidos por Kant como
um caminho seguro para fundamentar uma possível nova Metafísica.
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A matemática é considerado um instrumento legítimo e confiável para as ciências e
até mesmo a filosofia, pois suas demonstrações são dadas a priori. isto é, apesar de se referir
à experiência, não é totalmente dependente à esta. No entanto, apesar da segurança e
evidência que o conhecimento matemático possui, ao se averiguar a fundo de que modo ele
é possível, se encontra aí algo que parece demonstrar a fragilidade do entendimento
humano. Trata-se de um conceito também custoso para os leitores kantianos: o conhecimento
simbólico ou intuitivo.
Estamos aqui, diante de uma oposição crucial: conhecer as coisas abstratamente e
corrermos o risco de incorrer em uma pretensa universalidade de conceitos ou se restringir
a aspectos meramente singulares e sensitivos da experiência. Kant afirma que ―Não é dada
ao homem uma intuição das coisas intelectuais, mas apenas um conhecimento simbólico, e
a intelecção só nos é permitida mediante conceitos universais em abstracto, e não mediante
um singular no concreto.‖ (KANT, 1982, §10).
Na Crítica da Faculdade do Juízo, §59, que tem como título Da beleza como símbolo da
moralidade, Kant distingue dois modos de apresentação de conceitos, a saber, esquemático e
simbólico. O primeiro ocorre quando ―a intuição correspondente a um conceito que o
entendimento capta é dada a priori (...)‖ e o segundo quando ela ―é submetida a um
conceito, que somente a razão pode pensar e ao qual nenhuma intuição sensível pode ser
adequada‖.
O pensador parte do pressuposto de que todo conceito do entendimento ou ideia
da razão possui um modo ideal de apresentação, isto é, para que estes sejam claramente
compreendidos, é necessário sua sensificação19, a aplicação dos mesmos a intuições, sem as
quais aqueles correm o risco de serem vazios ou não possuírem significado. O intuitivo
pode ser adequado a um uso esquemático ou simbólico, este último não podendo ser
considerado nas palavras de Kant um esquema legítimo, no entanto, serve de análogo de
esquema do entendimento.
Kant diferencia, ainda, o modo direto e indireto de apresentação. Os esquemas
apresentam demonstrativamente e diretamente os conceitos de modo a priori. Os símbolos
indiretamente, mediante analogia. Kant resume, a seguir, como se dá o processo de
apresentação simbólico: ―(...) a faculdade do juízo cumpre uma dupla função: primeiro, de
aplicar o conceito ao objeto de uma intuição sensível e então, segundo, de aplicar a simples
19
Possui praticamente o mesmo sentido de sensibilização.
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regra da reflexão sobre aquela intuição a um objeto totalmente diverso, do qual o primeiro
é somente um símbolo.‖ (KANT, 2002, p.196).
Mas poderia se questionar, afinal, e, que tem a ver intuição com o misticismo? O
quê Kant diria a este respeito?
Conceber introvisões em espécies de revelações divinas ou visões de espíritos seria
um pouco estranho para se pensar, pois parece fugir do âmbito de realidade, isto é, do
ponto de vista materialista. Que dizer então da clarividência e da adivinhação? A primeira,
considerada por alguns místicos uma faculdade de conhecimento, supostamente permite ao
sujeito contemplar certos fenômenos impossíveis e imperceptíveis a humanos não dotados
da mesma, como por exemplo, ver um fenômeno natural ocorrer a uma distância
inconcebível para a visão humana.20
Para que em uma narrativa ou relato se encontre material que se possa considerar
como digno do status de conhecimento, e essa é uma condição epistemológica
indispensável em Kant, são necessários dois elementos harmoniosamente associados:
intuição e conceito. Certas ideias da razão não podem encontrar uma correspondência na
intuição, daí decorre a necessidade de se recorrer a analogias com certas intuições para, no
máximo se pensar determinados objetos. Ora, essa abordagem kantiana parece ficar mais
atraente quando indica um problema de fundo: o inconsciente. Embora Kant não admitisse
explicitamente a existência um campo ou instância da mente a que se poderia chamar de
inconsciente, demonstrava certa inquietação acerca desse campo de representações. Cito
Kant:
Que seja imenso o campo das nossas sensações e intuições sensíveis, isto
é, das representações obscuras no ser humano de que não somos
conscientes ainda que possamos concluir indubitavelmente que as temos;
(...) que, por assim dizer, no grande mapa de nosso espírito só haja
poucos lugares iluminados, isso pode nos causar espanto com relação ao
nosso próprio ser; pois bastaria apenas que um poder superior
esclamasse: ―faça-se a luz!‖, que, mesmo sem o acréscimo de quase
nada,(...) meio mundo, por assim dizer, se abriria diante de nós. (KANT,
1982, §5, p.35).
Tendo-se em vista o quê já apontamos anteriormente acerca do simbolismo e da
intuição em Kant poderíamos retomar algo a respeito da apresentação dos conceitos ou
Teria chegado a Kant relatos acerca de um místico sueco chamado Emmanuel Swedenborg ao qual era
atribuído o dom da clarividência. Obviamente tais relatos inquietaram o filósofo o levando a investigar a
fundo a possibilidade de tais fenômenos.
20
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ideias da razão. Os conceitos do entendimento devem apresentar diretamente, e na
intuição, de modo a priori, já para certas ideias da razão não se encontram com facilidade
intuições que lhes sejam correspondentes, isto se agrava quando partimos de um âmbito
meramente teórico e discursivo da razão para um prático, pois, a Liberdade, a Lei moral
não devem ter um fundamento empírico mas sim supra-sensível.
A crítica de Kant ao misticismo parece incidir de modo mais intenso sobre a
obscuridade
de
seus
conceitos.
A
esse
obscurantismo
da
razão,
chamado
contemporaneamente de ocultismo, poderia se inferir a desconfiança causada acerca desse
posicionamento, pois, este pode ser o método utilizado por charlatães para seduzir novos
fieis a suas falsas doutrinas. Outro motivo que parece ser bem mais evidente consiste no
uso equivocado da razão, ao deixar a sensibilidade tomar as rédeas no conhecimento, e,
desse modo, se tornando um hábito estabelecer certas conexões absurdas e inadequadas
entre intuições e conceitos.
Para simular penetração e profundidade usa-se, muitas vezes com o
resultado desejado, até mesmo uma obscuridade estudada, assim como,
no crepúsculo ou através de uma névoa, os objetos são vistos sempre
maiores do que são. O skotíson (torna obscuro!) é a palavra de ordem de
todos os místicos para, mediante uma obcuridade artificial, simular
atraentes tesouros de sabedoria. – Mas em geral, um certo teor
enigmático numa obra não é desagradável ao leitor, porque com isso se
lhe tornará sensível a própria sagacidade para resolver oquê é obscuro
em conceitos claros. (KANT, §5, p.37).
No entanto o posicionamento de Kant a respeito dessa corrente filosóficoespiritual, se observado à luz do intuicionismo e do simbolismo, parece não ser totalmente
inadequado a uma posição filosófica genuína. Por outro lado, Kant se apresenta como um
defensor do simbolismo religioso, com a condição de não se cair em idolatria:
Mas nas exposições dos conceitos (denominados ideias) pertinentes à
moralidade, que constitui a essência de toda a religião, e portanto à razão
pura, distinguir o simbólico do intelectual (o culto da religião), distinguir
o invólucro, necessário e útil por algum tempo, da coisa mesma, é
esclarecimento, porque senão se troca um ideal (da razão prática pura)
por um ídolo, e não se atinge o fim-último. (KANT, 2006, §38, p.90)
Como se pode observar, demos ênfase no conceito de intuição em Kant. Isto
ocorreu com o propósito de prepararmos o terreno para trazer à discussão outro conceito
que julgamos pertinente a este trabalho, a saber, o conceito de visão-de-mundo. Retomando o
quê dissemos acerca da intuição, poderíamos compreender a relação entre ambos os
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conceitos. Todo conteúdo recebido pelo sujeito mediante as experiências, formam uma
espécie de ―arquivo intuitivo‖ que pode ser acessado pelo entendimento e pela consciência
sempre se constate a necessidade.
Carl Gustav Jung, considerado um herdeiro da doutrina crítica kantiana, adota
como ferramentas para sua obra filosófica, concepções kantianas, sobretudo os conceitos
de arquétipo, símbolo, representação e fenômeno. No entanto, procura superar o mestre
desenvolvendo seu conceito de representações obscuras ou inconscientes sobre um
panorama muito mais abrangente e complexo.
Segundo o psicólogo, a crise espiritual do homem contemporâneo, e isso se
constata empiricamente em seu trabalho, se dá devido a uma separação entre homem,
tradição, religião e de modo geral no enfraquecimento do aspecto simbólico do homem.
Isso se constitui em um perigo enorme para a humanidade, pois, uma vez ignorados estes
aspectos primitivos e inerentes à natureza humana, estes conteúdos inconscientes podem
emergir de modo catastrófico. Segundo Marco Heleno Barreto, o conceito de visão-de-mundo
para Jung constitui um elevado grau de importância, sobretudo no que tange o contexto do
resgate do simbolismo como uma preocupação que ocupou o mente não só de Jung, mas de
uma geração de filósofos.
Finalmente, relembremos o diagnóstico de Jung a respeito da crise
espiritual do homem contemporâneo atribui ao fator “visão de mundo”
uma importância decisiva. Sendo assim, o significado terapêutico e
cultural do resgate da sensibilidade simbólica almejado por ele atinge o
seu limite máximo quando, com sua extensão aos fenômenos
sincronísticos, o simbolismo reclama uma ―visão de mundo‖ compatível
com a experiência de que o sentido não pode ser pensado como produto
exclusivo do arbítrio humano, mas encontra um fundamento que
transcende o próprio sujeito, um fundamento que Jung não teria
dificuldade em descrever como cósmico. (BARRETO, 2008, p.147)
Os limites conceituais de um sujeito coincide com os limites de alcance de sua visãode-mundo. É compreensível a indignação de certos interlocutores ao ouvir uma narrativa
sobre fenômenos tidos como sobrenaturais como, por exemplo, comunicação com
espíritos da natureza, humanos falecidos ou com seres divinos, pois, em geral, todas as
coisas que escapam o alcance da experiência humana exige esforço demasiado do
entendimento e da imaginação para se pensá-las.
O misticismo, de fato, parece ser incompatível com o ideal epistemológico
kantiano. No entanto, rechaçar veemente suas concepções com pretensa objetividade é
uma atitude apressada e superficial para não dizer negligência e imaturidade filosófica. Sob
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esta perspectiva, Jung demonstrou profundidade e seriedade filosófica em encarar o desafio
de compreender o quê estes homens tinham a nos dizer. Segundo Marco Heleno Barreto, o
conceito de visão-de-mundo para Jung constitui um elevado grau de importância, sobretudo
no que tange o contexto do resgate do simbolismo como uma preocupação que ocupou a
mente de uma geração de filósofos.
Finalmente, em Kant, apesar das intensas críticas dirigidas a esta corrente, o
misticismo possui algo especial em comparação com o empirismo. A posição favorável de
Kant se refere ao seu resultado moral. O filósofo, apesar das severas críticas ao misticismo
considera essa corrente filosófica menos prejudicial que o empirismo da razão que
extermina na raiz toda moralidade de disposições e aniquila o arquétipo da intenção moral,
portanto da ideia pura de bem supremo, em favor de um interesse meramente empírico da
dita felicidade que nada mais é, na maioria das vezes, que uma satisfação egoísta das
próprias inclinações, distante do arquétipo de homem agradável a Deus. O misticismo,
portanto, ainda é compatível com a beleza e sublimidade da lei moral.
Referências Bibliográficas:
BARRETO, M. H. Símbolo e Sabedoria Prática: C.G.Jung e o mal-estar da modernidade.
CLARKE, J. J. Em busca de Jung: Indagações históricas e filosóficas. Rio de Janeiro:
Ediouro, 1993.
DILTHEY, W. Psicologia e Compreensão. Lisboa: Edições 70, 2002.
NAGY, M. Questões filosóficas na psicologia de C.G.Jung. Petrópolis: Vozes, 2003.
KANT, I. Antropologia de um ponto de vista pragmático. São Paulo: Iluminuras, 2006.
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O PAPEL DA VERGONHA E DA CULPA NO RECONHECIMENTO DO EU E
DO OUTRO E SUA RELAÇÃO COM A EDUCAÇÃO: ESPECULAÇÕES
TEÓRICAS
Claudeonor Antônio de Vargas
Universidade de Passo Fundo (UPF)
[email protected]
Cleriston Petry
Universidade de Passo Fundo (UPF)/PROSUP-CAPES
[email protected]
Enquanto, sentado, num bosque, repousava,
Mil combinações sonoras ouvi.
Quando, naquele doce estado de ânimo, agradáveis pensamentos
Ao meu espírito trazem pensamentos tristes.
Uniu a natureza às suas belas obras
A alma humana que em mim penetrou.
O coração por demais afligiu-me ao pensar
Em que se transformou o gênero humano.
(...)
Se esta convicção divina mensagem me for,
Se tal possa ser da natureza um sagrado plano,
Não tenho eu motivos para lamentar
O que de si mesmo fez o homem?
William Wordsworth (1770 – 1850).21
RESUMO: Para pensar questões relativas à formação do indivíduo e sua relação com o
―outro‖, o artigo se propõe a analisar os conceitos de vergonha, culpa e estigma social a
partir dos estudos realizados pela filósofa Martha Nussbaum. Nesse sentido, analisam-se as
Nussbaum cita os poemas de Wordsworth como um dos fatores que contribuiu no desenvolvimento de
John Stuart Mill, o qual se valeu da leitura da obra do poeta como parte integrante do cultivo de si mesmo. A
referência ao filósofo ocorre para respaldar sua tese da importância de uma educação que inclua a poesia e
cultive o prazer no mundo interior.
21
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distinções dentro da emoção da vergonha (vergonha primitiva, vergonha construtiva e
vergonha social), bem como sua relação com o narcisismo infantil. Defende-se a relevância
da educação e os cuidados do adulto, em relação à criança, que deve se basear numa
concepção de ser humano como um ser vulnerável, possibilitando a ela o desenvolvimento
pessoal e o rompimento com a vergonha primitiva e o narcisismo infantil. O não
rompimento com tais fatores pode conduzir à constituição de hierarquias sociais com sua
consequente estigmatização de grupos tidos como ―vergonhosos‖.
Palavras-Chave: Martha Nussbaum, vergonha, culpa, estigma social, educação.
Introdução
Martha Nussbaum propõe, a partir de sua pretensão de discutir políticas públicas,
uma retroação à infância e a formação do narcisismo infantil como forma de desvendar a
origem da formação das hierarquias socialmente produzidas. No referido conceito, gerado
pala psicanálise freudiana, a criança vive uma profunda e idílica unicidade com o ventre e o
seio materno, o que lhe fornece a ilusão de perfeição e completude. A percepção posterior
de imperfeição e vulnerabilidade leva o sujeito, diante da não superação da referida
patologia, a buscar readquirir tal condição.
Esta recuperação dá-se pela via da normatização das existências humanas que
passam a receber classificação como ―normais‖ ou ―inusuais‖. Seleção realizada, o ato
seguinte é a constituição de dois mundos separados onde no primeiro habitam seres e/ou
grupos considerados perfeitos, completos e qualificados - em outras palavras, superiores -,
e, no segundo, os outros, geralmente considerados imperfeitos, incompletos e
desqualificados - em suma, inferiores -, por não atenderem a norma. Toda esta ramificação
resulta na hierarquização das relações humanas, instância na qual os ―normais‖
reencontram a sensação de perfeição e completude original sentida na embrionária relação
com a mãe. Deriva disto a tese de Nussbaum de estigmatização social como ato reativo ao
narcisismo infantil não superado e da vergonha nascida de nossa condição de seres
incompletos, o que deságua em uma postura de desumanização dos atingidos.
1 Vergonha primitiva e o sentimento de culpa
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Pensar a prática pedagógica ou a educação de modo geral, mesmo em ambientes
pré-escolares e socializadores, implica que se construa uma representação do que é o
homem, ou melhor, de sua condição. O que de si mesmo fez o homem? pergunta o poeta, com a
sensação de que extrapolamos nossa condição na direção de algo que não somos, não
conseguimos ser, mas, equivocadamente, desejamos ser. Martha Nussbaum (2006, p.210),
afirma que ―os seres humanos nascem em um mundo que não fizeram e que não
controlam. Depois de permanecer um tempo no ventre materno em que suas necessidades
foram satisfeitas de maneira automática, entram no mundo (...)‖22.
Essa entrada no mundo já existente e diferente delas exige uma introdução que a
permita diferenciar-se dele e de seus objetos (que são diferentes de si mesma) e reconhecêlos como iguais em dignidade e em suas limitações. Em suma, desenvolver uma empatia
com aqueles que também são necessitados, limitados e indefinidos. É em virtude dessa
indefinição que os seres humanos precisam conduzir seu processo de desenvolvimento
considerando a carência de uma definição a priori do que são. Sem ela, podem construir
uma imagem equivocada de si mesmos, enquanto indivíduos, levando a consequências
individuais e sociais.
Para a criança, todos os agentes externos causam dano, pois são passíveis de não
fornecer os elementos essenciais para a promoção do prazer e a supressão das
necessidades. Em relação às necessidades, podemos estabelecer um vínculo com a emoção
da ―vergonha primitiva‖, relacionada a esta fase do desenvolvimento infantil e que deve ser
trabalhada positivamente para evitar problemas posteriores, como por exemplo, a ira em
relação ao outro (ou outros) e a construção de um falso self na vida adulta. O que é a
―vergonha primitiva‖? Por que ela tem um estatuto negativo quando não é superada por
outros tipos de vergonha? Qual a relação entre a vergonha primitiva e o narcisismo? Qual o
papel da formação na superação desse tipo de vergonha? Em que medida a ―culpa‖ pode
auxiliar na superação desse sentimento e no reconhecimento do outro como um ser igual
em direitos?
Ao tratar da ―vergonha primitiva‖, Nussbaum faz referência à origem do amor,
feita por Aristófanes no Banquete de Platão. Nesse mito, descreve a autora, os seres
humanos, em outros tempos, eram completos e redondos, cuja forma esférica inspirava
poder (importante destacar o fato de que o círculo ou as formas esféricas representavam o
ideal de perfeição, de completude, no mundo grego).
22
A tradução das citações do livro supracitado é de nossa autoria.
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Em consequência, os humanos atacaram os deuses com o objetivo de
estabelecer o controle sobre o universo em sua totalidade. Em vez de
exterminá-los por completo, Zeus, tornando-os mais débeis,
simplesmente nos converteu em humanos criando-nos a situação de
necessidade, de insegurança e a condição de incompletos (...)
(NUSBAUM, 2006, p.216).
A partir daí, os homens sentem vergonha de sua condição. Tal emoção aparece
relacionada com o vestígio de uma onipotência original, que se imbrica com a
incompletude, debilidade e fragilidade no que é ser humano. Agora o ser humano se sente
desamparado, como a criança que ao nascer toma consciência de si e dos outros, bem
como de suas necessidades. Ela é um ser frágil, débil, necessitado, mas ao mesmo tempo,
conserva o ímpeto de ser onipotente, completa. A relação entre a vergonha e a onipotência
pode conduzir ao encobrimento das fragilidades, a fuga do outro que ―me olha‖ e vê
―minhas imperfeições‖.
A ―vergonha primitiva‖, portanto, refere-se: a) a uma emoção dolorosa por não
alcançar um estado ideal. A vergonha é uma emoção mais ou menos realista, pois constata
que somos frágeis, por exemplo, sem a tentativa de negar essa condição. ―Nesse sentido,
não é inerentemente autoenganadora, nem expressa sempre o desejo de ser quem não é.
Em consequência, nos diz a verdade (...)‖ (NUSBAUM, 2006, p.244). Veremos adiante que
em determinadas circunstâncias, a vergonha pode impulsionar o indivíduo a negar-se a si
mesmo, a construir uma auto-imagem enganosa que evite aqueles elementos que causam
vergonha, ou seja, o que o lembra de sua humanidade. b) Ocorre pela consciência de
necessidade e vulnerabilidade. Desde o nascimento, quando o bebê espera o alimento e ele
não chega, percebe-se como vulnerável, apesar dos pensamentos característicos do
sentimento de vergonha não aparecerem tão cedo. Esses sentimentos dizem respeito ao, c)
sentido de inadequação em relação ao que é adequado; que promove uma d) reação de
esconder-se dos olhos de quem pode ver a deficiência e, por seu turno, a ―vergonha
primitiva‖ e) é vinculada a falta de perfeição.
O narcisismo estabelece uma relação com a ―vergonha primitiva‖ quando o
primeiro é ―derrotado‖, quando se veem como humanos, vulneráveis, necessitados e
débeis, frente ao desejo de ser o centro na vida de outras pessoas que, por sua vez, nem
sempre estarão dispostas a sê-lo. Assim, o tipo de vergonha aqui analisado é particularmente
punitivo, substituindo o narcisismo primário. Para Nussbaum, ―a vergonha primitiva que
está relacionada com a onipotência infantil e com o fracasso narcisista (inevitável), anda
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furtiva por nossas vidas, só superada parcialmente pelo posterior desenvolvimento e
autonomia da criança‖ (2006, p.219). Quando a criança adquire essa autonomia? O que ela
significa?
Partimos da ideia de que autonomia significa se auto-determinar. Mas, como é
possível se auto-determinar se somos seres frágeis, vulneráveis, débeis e incompletos? A
consciência dessa condição humana é um primeiro passo. Saber-se ―constituído‖ por esses
fatores implica iniciar um processo de construção do eu a partir de elementos que não são
enganosos. Entretanto, essa ―consciência‖ de si como vulnerável pode ser um estágio da
autonomia, mas não é o fator que irá possibilitar a superação da ―vergonha primitiva‖.23
Utilizando os estudos feitos por Winnicott, Nussbaum analisa as circunstâncias em que a
vergonha pode deformar a personalidade adulta. O Paciente B, objeto de análise, sofre com
a impossibilidade de se revelar ao outro, constituindo-se como uma pessoa sem vida e
petrificada, que busca manter o controle onipotente sobre seu interior. Winnicott descobre
que a criança havia sofrido um excesso de atenção ansiosa por parte da mãe, para quem o
filho perfeito não deveria chorar e estar sempre dormindo. A demanda de perfeição da
criança fez com que ela não se aceitasse como uma criança necessitada. Revela ainda, que
em determinados momentos, quando se deparava com suas imperfeições, o paciente B
procurava dormir. ―Devido ao desejo de sua mãe de querer a perfeição (...) não podia
permitir-se depender ou confiar em nada‖ (NUSSBAUM, 2006, p.225). A autora
supracitada afirma ainda, que havia um excessivo cuidado da mãe, sempre disposta a
atender ao filho, não o permitindo desenvolver a capacidade da confiança e da criatividade.
Se o objetivo da educação é o desenvolvimento da autonomia, e num aspecto
particular, a da superação da ―vergonha primitiva‖, a primeira só é conquistada mediante a
aceitação da humanidade, pois não há como se determinar o que é desconhecido. E aquele
indivíduo que constrói uma imagem falsa de si, como um ser perfeito, não se autodeterminou? No sentido aqui tratado não, pois ele negou a possibilidade de se individuar na
medida em que construiu o que é a partir de um pressuposto antropológico falso ou ainda,
Um conceito estrito de consciência como, por exemplo, a consciência moral, implica afirmar que ela
―supõe acrescentar ao simples ‗saber algo‘ ou ‗saber fazer algo‘ a duplicação desses saberes: um ‗saber que se
sabe‘‖ (PUIG, 1998, p.79). Ter consciência de sua vulnerabilidade, ao contrário da vergonha primitiva que
parte de uma noção ―verdadeira‖ do que se é, a consciência de um ‗saber que se sabe‘ implica uma postura
diferente daquela de rejeição de sua condição. A autonomia, portanto, diz repeito a não deixar se determinar
por essas fragilidades, debilidades e incompletudes, mas muito menos, em torná-las ―vergonhosas‖ a ponto
de se esconder dos outros ou culpá-los por essas condições. Significa, por seu turno, ―tornar-se melhor‖
dentro dessas possibilidades, fazendo escolhas a partir da vontade própria e por razões fundamentadas e,
quiçá, passíveis de universalização.
23
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quando negou a si mesmo, enquanto um ser humano. No caso do Paciente B, ―os sinais de
humanidade foram excluídos por parte da mãe que, devido a sua própria ansiedade, só
estava contente com um bebê calado, perfeito‖ (NUSSBAUM, 2006, p.225), portanto, não
houve autonomia, mas heteronomia, pois o que determinou o self do Paciente B foi a
conduta de sua mãe, não sua própria.
A ―vergonha primitiva‖, que demanda a perfeição, é autopunitiva no sentido de que
o indivíduo não se aceita como ser humano e tenta esconder dos outros aquilo que ele é.
Deste modo, está relacionada com a onipotência infantil e com o narcisismo. Para
Nussbaum, esse estágio da vergonha que se estende na vida adulta pode ser um perigo para
a vida social e moral, pois verá o ―outro‖ como uma ameaça, que pode ver o que está
escondido na imagem de perfeição (conduzindo o indivíduo ao isolamento e a fuga de
relações mais ―profundas‖ com os outros), ou que é o causador da vergonha.
Winnicott e Nussbaum defendem que a família e a sociedade são cruciais para o
desenvolvimento da vergonha, seja qual for o tipo. Para superar a ―vergonha primitiva‖ e
evitar seus efeitos nocivos para o indivíduo e a sociedade, a autora retoma a prescrição de
Winnicott em que essa vergonha é superada ou transformada numa ―vergonha construtiva‖
com a adoção de uma ―forma de vida que os pais vejam e se apresentem como imperfeitos,
e encorajem na criança o sentido de deleite do tipo de ‗interação sutil‘ que podem ter as
figuras igualmente incompletas‖ (2006, p.228).
Essa ‗interação sutil‘ ocorre com o concomitante desenvolvimento da confiança.
Na medida em que a criança ―sai‖ cada vez mais ao mundo, experimenta quem é e quem
são os outros, sem precisar dos cuidados constantes do cuidador ou adulto. Confiança esta
que é depositada na criança por ele. A criança passa a desenvolver um sentimento de si
mesma, a partir das experiências que faz com o mundo e consigo própria. Lembra a autora,
ainda, que a estabilidade no cuidado, adequadamente sensível, conduz a criança à crença de
que pode confiar no outro, pois esse também é imperfeito e a aceita e se aceita como tal.
Assim, a criança deixará sua onipotência, pois perceberá que pode confiar nos demais.
Além do desenvolvimento da confiança e interdependência, Nussbaum afirma que
a origem do amor e da criatividade humana, a ser desenvolvida a partir da superação do
estágio da ―vergonha primitiva‖, ocorre quando a criança começa a perceber que a
demanda por ser o centro do mundo causa um dano aos outros (culpa). ―Agora começa a
fazer coisas pelos outros, mostrando que reconhece que outras pessoas também tem o
direito de viver e ter seus próprios planos‖ (2006, p.223). O amor que surge aí difere
daquele narcisista, baseado na necessidade de ser atendido nos desejos e necessidades, no
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controle do outro; agora, o amor é entendido em termos de intercâmbio e reciprocidade,
pois ambos se aceitam como seres humanos, incompletos e parciais.
Sentir vergonha não é o mesmo que sentir-se culpado. Nesse aspecto, Nussbaum
retoma seu conceito de ―vergonha primitiva‖, para esclarecer que a culpa é um tipo de ira
dirigido a si mesmo, uma reação ante a percepção de que se cometeu uma injustiça ou um
dano contra alguém. Nesse sentido, a culpa implica um reconhecimento do direito de outra
pessoa, algo que não ocorre com a vergonha. Esta se refere ao que o indivíduo é,
centrando-se em seu defeito ou imperfeição. A culpa, por outro lado, diz respeito não ao
que o indivíduo é, mas a sua ação ou omissão. Se inferirmos que a autora refere-se aí
também ao conceito de vergonha mais amplo, distinto do ―primitivo‖, consideraremos
ainda que em termos morais a culpa tem um estatuto mais abrangente, pois a moral implica
um conjunto de regras, valores e desejos que compartilhamos com os outros. ―Ter culpa‖,
nesse sentido, significa que se sabe do erro cometido ante uma moral estabelecida,
garantidora dos direitos dos outros e com os outros. O Paciente B, citado anteriormente,
era incapaz de sentir culpa, vendo-se não como alguém que fez uma ação má, mas como
um indivíduo mau. A resposta da ―vergonha primitiva‖ não é o reconhecimento de um
direito igual válido também ao outro, mas o ocultamento e o fechamento em si mesmo.
―Em consequência, se tornou, assim, totalmente incapaz de moralidade, dado que esta
envolve o uso de capacidades de reparação, respeito pela humanidade de outra pessoa e
atenção à necessidade do outro‖ (NUSSBAUM, 2006, p.245).
Sem o desenvolvimento do sentimento de culpa, que se inicia quando a criança
percebe que seus desejos causam um dano a outro, não é possível imaginarmos uma
convivência democrática, considerando que não existe o ―outro‖ enquanto ser dotado de
dignidade. Apesar de a ―vergonha construtiva‖ poder se tornar um móbil para o
desenvolvimento da moralidade, a culpa parece ser aquele fator que garante a constituição
completa da moralidade a partir do indivíduo que se relaciona consigo mesmo, com o
mundo e os outros que o cercam. No desenvolvimento infantil, e a desejável superação da
vergonha primitiva e a renúncia da onipotência infantil, a culpa exerce um papel central,
pois ―funciona como uma ajuda nesta tarefa, porque contém a grande lição de que outras
pessoas são seres separados com direitos, que não devem ser afetados (...)‖. Contudo,
continua Nussbaum, ―a vergonha ameaça minar a tarefa do desenvolvimento por
completo, ao subordinar os outros as necessidades do eu‖ (2006, p.246).
Tal ameaça é ampliada pela relação entre a ―vergonha primitiva‖ e a ira. A segunda,
como tratado acima, refere-se a uma reação ante uma injustiça. Diferentemente da ira
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produzida pela culpa, a que se vincula à vergonha busca culpar alguém pela própria
condição. No caso das crianças, sua inadequação volta-se ao cuidador, que é o mais
próximo de si. Se esse tipo de emoção não for superado, na vida adulta é possível se
deparar com eventos que marcam a relação entre a vergonha primitiva e a ira, como se
observou na Alemanha depois da Primeira Guerra Mundial, em que existia a necessidade da
imagem de um homem que não pudera ser envergonhado. ―A meta, como vimos, era ser
duro, um homem de aço e metal, capaz de qualquer coisa, insensível a tudo‖
(NUSSBAUM, 2006, p.247). Isso significa que os alemães se reconhecem enquanto débeis,
frágeis, vulneráveis e incompletos (obrigados a se submeter a condições humilhantes pelos
vencedores24), mas presos ao imperativo da perfeição que, quando vinculado à ira, tende a
escolher um ―outro‖ como fonte de frustração, para se autoafirmar. As fontes de
frustrações são conhecidas: judeus, comunistas, pobres, mulheres, etc.
2 A possibilidade de uma vergonha construtiva
Nussbaum se questiona se seria bom que os adultos sentissem vergonha e em que
medida o seria se os conhecidos e concidadãos estimulassem uns aos outros a sentir essa
emoção. Para dar conta deste questionamento opta por dialogar com Barbara Ehrenreich
através da avaliação da obra Por cuatro duros, na qual a referida autora descreve a experiência
de viver algum tempo fazendo-se passar por uma mulher necessitada de trabalho, sem
titulações e sem antecedentes. Das peripécias resultantes de tal empreitada recolhe a
conclusão (universal?) de que a ausência de segurança, para os trabalhadores, de opções de
vida e emprego adequados é um importante problema social americano. Apresenta ainda a
afirmação de Ehrenreich de que o sentimento de culpa não se aproxima nem remotamente
ao que se deve sentir e de que a emoção apropriada é a vergonha, ao que busca entender
então o que a mesma que dizer com tal postulação.
Segundo Hobsbawm, ―impôs-se à Alemanha uma paz punitiva, justificada pelo argumento de que o Estado
era o único responsável pela guerra e todas as suas consequências (...),para mantê-la permanentemente
enfraquecida. Isso foi conseguido não tanto por perdas territoriais, embora a Alsácia-Lorena voltasse à França
e uma substancial região Leste à Polônia restaurada (...), além de ajustes menores nas fronteiras alemãs; essa
paz punitiva foi, na realidade, assegurada privando-se a Alemanha de uma marinha e uma força aérea efetivas;
limitando-se seu exército a 100 mil homens; impondo-se ‗reparações‘ (pagamentos dos custos da guerra
incorridos pelos vitoriosos) teoricamente infinitas; pela ocupação militar de parte da Alemanha Ocidental; e,
não menos, privando-se a Alemanha de todas as antigas colônias ultramar‖ (2010, p.41).
24
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A proposição de Ehrenreich envolve o reconhecimento de que a situação dos
trabalhadores pobres de nossa sociedade e o fato de que pessoas prósperas vivam a partir
da dependência do trabalho mal pago a outrem não é um ato levado a cabo por este ou
aquele indivíduo. Com clareza e contundência, afirma:
Ao contrário, é consequência de padrões de pensamento e compromisso
de raízes profundas e de larga data na sociedade americana: o amor ao
luxo, o ressentimento comum contra os impostos redistributivos, a
crença de que são os pobres que causam a sua própria pobreza e muito
mais (NUSSBAUM, 2006, p. 249).
Segue então, com evidente inspiração socrática em termos do ―Conhece-te a ti
mesmo‖ e estabelece que o que temos que fazer não é pura e simplesmente enunciar um
pedido de desculpas diante da situação e sim buscar um reexame de nossa própria vida,
hábitos e caráter, agora com vistas à dimensão total da existência. Defende a substituição
da postura fácil do simples ―não fazer mais assim‖ pela adoção de coragem necessária para
mudar aspectos humanamente nocivos tais como a cobiça, o materialismo, a hostilidade
frente à igualdade e etc.
Neste ponto de seu raciocínio, situa a vergonha no âmbito da constatação de
vigente cumplicidade individual ou de colaboração com um elemento normativo ruim mesmo que este contenha a desejada formulação de norma moral pública, valiosa e seja
kantianamente universal. Entende a mesma como expressando a dicotomia excesso e
insuficiência - a primeira de avareza e a segunda de compaixão -, advertindo ainda para a
subversão dos ideais de igualdade e democracia em face da desatenção para com os demais.
E também chama a atenção para a gênese estar na falta de atenção ao problema e na não
participação política com vistas à produção de alteração da situação. Na relação com a
vergonha primitiva, estabelece:
Ademais, aceitar estes ideais (*igualdade e democracia) e sentir vergonha
pela sua não realização em mim mesmo não reforça a vergonha
primitiva; opera ativamente contra ela. Porque a pessoa que sente
vergonha está deixando para trás a cômoda convicção narcisista de que
tudo está bem a respeito de seu mundo e reconhece as demandas
justificadas dos outros de que invista tempo, esforço, dinheiro. Em vez
de seguir por seu caminho sem perturbar-se, reconhece o fato de que
tem sido consciente da realidade da vida de outras pessoas e dá passos
no sentido de deixar para trás o narcisismo e de cultivar uma ―sutil
interação‖ (NUSSBAUM, 2006, p. 250).
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Finaliza a interlocução com Ehrenreich reconhecendo a estratégia da obra como
sendo reveladora da vulnerabilidade comum a todos os humanos, sendo que esta se
apresenta na dupla, dinâmica e instável estruturação existencial. Em um momento, um
indivíduo pode ser titulado como inteligente, trabalhador, atraente, exitoso e em bom
estado físico; em outro, sendo-lhe retirada tal titulação e antecedência, este mesmo
indivíduo pode fundir-se em um mundo de miséria no qual permanece emaranhado e
contido. A vergonha então - para Nussbaum -, gerada nos leitores da obra, emerge da
verificação de que a diferença abissal entre os status de vida privilegiada e vida miserável
pode não ser meramente uma questão de talento e sim de circunstâncias.
Amparada nesta avaliação, Nussbaum expõe dois aspectos pontuais contidos na
obra de Ehrenreich e que a fazem merecedora de sua defesa. Primeiro, que as normas
geradoras de vergonha são, em geral, moralmente boas, básicas e compartilhadas mesmo
por quem difere politicamente a respeito da temática meios e fins. Segundo, que o
antinarcisismo inspirado pelo conteúdo e gerador da emoção de vergonha reforça a
percepção de vulnerabilidade compartilhada e a inclusão de todos os seres humanos nos
ideais de interdependência e responsabilidade mútuas.
Feito o percurso no mundo adulto, Nussbaum inicia a prospecção temática no
universo infantil e, logo de saída, deixa muito clara a sua posição a respeito da
vulnerabilidade das crianças:
Minha análise sugere que qualquer apelação a vergonha relacionada às
debilidades humanas das crianças, sejam físicas ou mentais, seria uma
estratégia muito perigosa e potencialmente debilitante. E dado que a
criança sempre é tão vulnerável ao poder do progenitor e facilmente
pode interpretar, inclusive, uma vergonha moral limitada como uma
humilhação dolorosa, me inclino a afirmar que a vergonha é sempre
perigosa no processo de criação (NUSSBAUM, 2006, p.251).
Alerta, na sequência, que a apelação à vergonha pode facilmente significar
desprezo, sendo mais inteligente centrar-se na culpa acerca de atos ruins e expressar amor
pela criança, mesmo diante de atos repetidos e persistentes. Ressalva, todavia, que em uma
situação em que a criança habitualmente mostra-se desatenta frente às necessidades dos
semelhantes, com comportamento depreciativo, insensível e manipulador, o recurso à culpa
pode ser insuficiente. Assim, utilizar o sentimento de vergonha baseado em traços ou
padrões de conduta pode ser moralmente apropriado.
A autora, após rápida inserção na questão da vergonha infantil, enfatiza aqui haver
sentido construtivo em um sentir vergonha a partir de aspirações elevadas, porém, ressalta
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que o mais apropriado é que tal motivação emerja do interior do indivíduo, gerada pela sua
própria conscientização. Faz ainda uma interessante distinção entre o apontamento externo
de distanciamento dos ideais a partir dos níveis de identidade e comportamento. No
primeiro, pode ser criada uma situação de atrito a partir da interpretação de que se está
sugerindo a existência de um defeito na pessoa; no segundo, evita-se a personalização da
crítica, indicando ser melhor centrar-se em atos específicos, ainda que estes estejam
estruturados em padrões geralmente defeituosos.
Nussbaum alerta também para a repercussão do sentimento de vergonha na pessoa
atingida; esta pode ser estimulante ou limitante. No primeiro caso, cita como exemplo a
vergonha pelo padrão de baixo desempenho em atividade de equipe, o que pode resultar
construtivo e motivar o aumento da dedicação e do esforço - particularmente se tal
incitação à vergonha parte do indivíduo mesmo. No segundo, a vergonha sentida pode ser
paralisante se vier a ser estimulada por sugestão de outrem, e pode vir a minar a confiança
em si mesmo, piorando ainda mais as coisas.
Relativamente às crianças Nussbaum dá ênfase aos perigos inerentes a estimulação
da vergonha centrada em ideais, especialmente se a ação provier dos pais:
Os progenitores podem pensar que estão promovendo ideais valiosos
(trabalho duro, excelência) e estimulando seus filhos a comportarem-se
de acordo com eles. No entanto, geralmente há algo mais em jogo: os
progenitores impõem, de forma rígida, ideais e expectativas pessoais a
uma criança que tem talentos e ou desejos diferentes. O progenitor pode
estar expressando uma falta de amor e aceitação pela criança
(NUSSBAUM, 2006, p. 252).
Ou seja, independentemente de que tal imposição se dê de maneira consciente ou
inconsciente por parte dos pais, abre-se a possibilidade de que a criança veja-se às voltas
com uma declarada ode à perfeição. A interpretação da criança pode girar em torno da
compreensão de que a atitude de causar vergonha significa desamor e distanciamento e
concluir pela ideia de que somente a perfeição merece amor.
Retomando concepção anterior, a autora observa que o fato de os pais
concentrarem-se no ato em si, dentro de um contexto de manifestação de amor pela
criança apresenta-se como uma mensagem mais construtiva e mais clara.
3 A vergonha a partir de si mesmo: auto-avaliação e interação sutil
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Seguindo as palavras de Nussbaum, independente de faixa etária, a disponibilidade
à incitação ao sentimento de vergonha com a sua consequente autoavaliação parece
apropriada, em especial quando se dá pela via de pessoas amadas e respeitadas. Ao
contrário, a indisponibilidade à emoção de vergonha frente a pessoas com as quais
compartilha os ideais e nas quais confia indica o perigo explícito da presença do narcisismo.
Configura-se aqui um requisito da ―interação sutil‖, a saber, a ideia de que alguém pode
beneficiar-se moralmente através da interação com um amigo. Neste contexto, ao confiar
em um amigo ou em um ser que ama, surge a necessidade de se observar a dupla
repercussão resultante, conforme seja a postura de considerar ou de ignorar o que ele
representa. Por um lado, dando devida e positiva consideração, o indivíduo aprende a
prestar atenção às opiniões daquele a respeito de si mesmo e de seu caráter. Por outro lado,
ignorando-o em suas assertivas e não sentindo vergonha diante de suas críticas referente a
traços de caráter significa isolar-se do mesmo, impedindo com esta postura a concretização
da intimidade amigável. Esclarece Nussbaum que isto mostra a problemática inerente a
incitar o outro a sentir vergonha: há uma grande exposição e vulnerabilidade na intimidade.
Alerta também para os perigos de uma relação de intimidade que não esteja baseada em
valores compartilhados e respeitados, citando o exemplo dos danos psicológicos sofridos
por muitas mulheres envolvidas em relacionamentos íntimos vividos à margem da ideia de
respeito mútuo. Afirma com ênfase:
Assim, a vergonha, por certo, pode ser construtiva. A pessoa totalmente
livre de vergonha não é um bom amigo, amante ou cidadão, e há
instâncias em que a incitação a sentir vergonha é algo bom, sobretudo
quando parte de si mesmo e, ao menos algumas vezes, quando surge de
outro (NUSSBAUM, 2006, p. 254).
Em resumo, as instâncias construtivas mostram, concomitantemente, os benefícios
e perigos inerentes à incitação da emoção de vergonha a outrem, sendo que tais incitações
podem ter caracteres antinarcísicos e narcísicos. Podem ainda ocultar estes últimos, como
no exemplo dos progenitores que, sob a aparência do estímulo à criança para esforçar-se,
tratam de controlá-lo e constituí-lo a sua imagem de ideal. Da mesma forma, podem ser
expressões de crítica respeitosa em uma relação de amor e amizade e, no seu reverso
nocivo, podem levar mensagens de sutileza narcísica de controle do outro, depreciando a
humanidade da pessoa envergonhada.
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4 O padrão social estigmatizante: o normal e o inusual
Em determinada sociedade, cada pessoa olha para o mundo desde a perspectiva
de seu padrão de normalidade. E, se o que observa quando se olha no
espelho não se ajusta a esse padrão, é provável que o resultado seja a
vergonha (grifo nosso) (NUSSBAUM, 2006, p. 254).
As ocasiões em que a vergonha social surge estão diretamente imbricadas a
questões físicas: limitações e incapacidades diversas, obesidade, feiura, torpeza, inabilidade
desportiva, carência de característica sexual secundária desejável, etc. Outra fonte refere-se
à forma de vida da pessoa: minorias sexuais, criminosos e desocupados, por exemplo.
O ato de estigmatizar pessoas acompanha a história da humanidade, como
demonstra a autora ao citar a tradição grega antiga. Nesta, estigma significava tatuagem, e
esta era largamente utilizada para propósitos penais: a marca geralmente situava-se no rosto
do indivíduo delinquente com o objetivo de envergonhá-lo publicamente. Conforme
Nussbaum, as evidências mostram que tal ato não se restringia aos delinquentes: marcava
também outros indesejáveis, tais como os escravos, os pobres e os membros de minorias
sexuais e religiosas.
Nussbaum trabalha, então, com a ideia de que no centro da questão está presente a
noção de ―normal‖ - estranha em sua avaliação -, e o movimento de vínculo que contém,
ao relacionar algo que simplesmente representaria duas ideias completamente distintas.
Por um lado, está a ideia de frequência estatística: o normal é o usual, o
que a maioria das pessoas fazem. O oposto ao ―normal‖, nesse sentido, é
o ―inusual‖. Por outro lado, temos noção de bom ou normativo: o
normal é o correto. O oposto de ―normal‖, neste sentido, é
―inapropriado‖, ―mau‖, ―desonroso‖. As noções sociais de estigma e de
vergonha podem vincular ambos estreitamente: aquele que não faz como
a maioria das pessoas é tratado como desonroso ou mau. Resulta um
feito intrigante que a gente tenha feito esta relação em particular, porque,
obviamente, o que é típico pode ou não ser bom (NUSSBAUM, 2006, p.
255).
Citando Mill25, indica que grande parte do progresso em assuntos humanos é
produzida por pessoas inusuais e que tem formas de vida que a maioria não possui e nem
sequer aprecia (interessante constatação em uma sociedade pautada pela ideia de maioria
democrática). Questiona, a partir desta indicação, o porquê de, em quase todas as
25
MILL, John Stuart (1806,1873), autor de obras como O Utilitarismo e Sobre a Liberdade, entre outras.
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sociedades, a noção de normal e usual cumprir função normativa produtora de
estigmatização para com os diferentes. E diz crer que o uso da categoria ―normal‖ com
intuito estigmatizador deve ser entendido como um desenvolvimento da vergonha
primitiva que de alguma maneira afeta a todos. Tal desenvolvimento deve-se ao fato de
termos consciência das inúmeras provas de que não estamos à altura das demandas
excessivas do narcisismo infantil. Este aspira a um controle completo de todas as fontes do
bem em função de reter um anseio nostálgico de felicidade advinda da unidade infantil com
o útero e o seio; diante da impossibilidade de realizar tal demanda a substitui em busca de
segurança e completude. O elemento surgido a partir desta premissa gira em torno do
estabelecimento do conceito de ―normalidade‖, gestado e vivenciado em grupos sociais
que, pelo entrelaçamento de seus pares, julgam-se e apresentam-se como bons e aos quais
nada falta. Segue que:
Ao definir certo tipo de pessoas como completas e boas, e rodear-se
delas, os normais se sentem reconfortados e tem a ilusão de segurança. A
ideia de normalidade é como um útero substituto, que anula estímulos
intrusos do mundo da diferença (NUSSBAUM, 2006, p. 256).
O contraponto social destes é a postura de estigma para com algum grupo de
pessoas, a fim de confirmar e afirmar sua superioridade diante daqueles. Os que se
consideram normais sabem de suas vulnerabilidades e fragilidades, porém, estigmatizando
os fisicamente incapacitados e os de modo de vida inusual, sentem-se melhor acerca de
suas próprias debilidades e incompletudes humanas. Em síntese:
Ao lançar a vergonha para fora, ao marcar o rosto e o corpo dos demais,
os normais alcançam um tipo de harmonia substituta: satisfazem seu
desejo infantil de controle e de invulnerabilidade (NUSSBAUM, 2006, p.
257).
Entretanto, acreditamos que é de se observar aqui o paradoxo: ao estigmatizar
minorias e isolá-las o efeito concreto é o de identificar grupos com características
consideradas nocivas. Estes, uma vez catalogados, deixam a condição de passivos
recebedores da carga preconceituosa e tornam-se ativos refletores àqueles que os segregam.
Então, uma vez que relembram aos ―normais‖ a sua própria condição básica, alertando-os
assim para a possível alteração de seu status vigente e frágil, os recolocam na mesma
postura de insegurança narcísica à qual anseiam refutar e da qual objetivam separar-se.
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Poderia estar nesta constatação paradoxal um dos elementos motivadores que levaram
Hitler a primeiro criar os guetos para depois lançar-se à loucura do holocausto?
Na sequência desta avaliação acerca da emoção da vergonha com gênese nas
interações sociais, onde determinados grupos consideram-se superiores a outros - seja por
características físicas e/ou de forma de vida -, esboça sua tese:
Para resumir, sugiro que a conduta estigmatizante de todas as sociedades é
comumente uma reação agressiva ao narcisismo infantil e a vergonha nascida de nossa
própria condição de incompletos (grifo nosso) (NUSSBAUM, 2006, p. 257).
Ciente da condição de perfectibilidade humana, diz ela que, mesmo considerando a
capacidade humana de superação do narcisismo infantil e o consequente desenvolvimento
de relações de interdependência com o reconhecimento da coexistência de realidades
separadas entre as pessoas, existem riscos. Estes podem incorrer a partir da instabilidade
desta interdependência e reconhecimento, em face de emergente anseio de negar a
mortalidade e debilidade humana, aspectos que, uma vez sentidos, implicam uma possível
suspensão da valoração qualificada do outro e de sua consideração como igual em termos
humanos.
Na esteira de suas reflexões, faz duas importantes considerações acerca da geração e
do estabelecimento de normas sociais. Na primeira, explica que sua análise acerca do tema
não retira do mesmo a sua potencialidade positiva, ao contrário, afirma que, se as normas
socialmente instituídas são valiosas e boas, a vergonha social pode cumprir uma importante
função moral na relação com bons ideais. Na segunda, ao pensar nas raízes infantis da
vergonha, faz um alerta no sentido de que não se deve confiar facilmente nas condutas
sociais que visam provocá-la e nem aceitá-la pelo que diz ser. Solicita então especial atenção
ao que segue:
Por trás do desfile de moralismo e de altos ideais, geralmente é provável
que haja algo muito mais primitivo para o qual é basicamente irrelevante
o conteúdo preciso dos ideais em questão e seu valor normativo. Tais
reflexões deveriam fazer-nos mais céticos inclusive a respeito do tipo de
vergonha moralizante, mais decididos a eleger e a analisar os ideais em
questão para ver se tem algo mais a seu favor que sua mera generalidade
(NUSSBAUM, 2006, p. 258).
Fechando esta instância de seu trabalho, Nussbaum aponta para o que considera
um aspecto central da operação geradora de estigma social: a ação de desumanização da
vítima, seja esta situada e concretizada em um sujeito em particular, seja representada por
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um determinado grupo. Retomando, reflexivamente, a prática sócio-histórica anteriormente
detalhada, mostra que, ao marcar os delinquentes e/ou grupos específicos, a sociedade na
verdade lança-os à margem da mesma, condenando-os a uma existência ―manchada‖.
Coloca-os ainda em situação de ruptura com a unicidade humana ao distingui-lo como
membro de uma classe degradada.
Classificar um sujeito como mutilado, mongoloide ou homossexual significa
negarmos tanto a humanidade que compartilhamos com ele quanto retirarmos a sua
individualidade. Isto equivale a situá-la socialmente (ou não socialmente?) na dimensão do
inusual, incompleto, ―manchado‖ e desvalorizado, abrindo as comportas para a
discriminação diversa e ―justificada‖. Finalizando:
Uma das vantagens de nossa abordagem de temas de políticas públicas
através de questões do desenvolvimento da criança é que nos alerta a
respeito da dinâmica frequentemente envolvida em envergonhar e nos dá
motivo para supor que sua tendência desumanizante não é nenhum acidente,
nada que possamos eliminar facilmente, retendo, ao mesmo tempo, o
potencial expressivo e dissuasório da vergonha (grifo nosso)
(NUSSBAUM, 2006, p. 259).
Considerações finais
Da exposição desenvolvida até aqui emergem inúmeros aspectos de grande
relevância para toda e qualquer estruturação de estratégias de formação que aspire a
realização educacional nos moldes iluministas. Entre estes, destacaríamos a necessidade de
trabalhar teoricamente com adequados conceitos de condição humana e de infância, sem os
quais seria temerário projetar um itinerário educacional. A correta, profunda e atualizada
compreensão destes dois conceitos apresenta-se como componente imprescindível à que se
possam traçar estratégias funcionais com possibilidades de eficácia ampliada e que resultem
em elevação da própria condição humana. Utilizando expressões próprias à Nussbaum,
diríamos que a superação da ideia de ocultamento do humano e a priorização de seu
inverso, ou seja, da consciente e natural consideração de nossas imperfeições e
vulnerabilidades, é algo próprio à educação. Ao menos da educação entendida como um
produto histórico-social que tenha por objetivo último a construção de uma vida a ser
vivida em um ambiente que propicie a preservação e a elevação da vida de todos,
indistintamente. E que tal preservação seja o mais ampla possível: física, mental,
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psicológica, emocional, moral, espiritual e, em suma, atinja o limiar da existência em sua
máxima kantiana que estabelece ser a conquista de humanidade o fim último do homem.
Referências Bibliográficas:
ARAÚJO, Ulisses Ferreira de. Contos de escola: a vergonha como um regulador moral. São
Paulo: Moderna; Campinas, SP: Editora da Universidade de Campinas, 1999.
LA TAILLE, Yves de. O sentimento de vergonha e suas relações com a moralidade.
Psicologia: Reflexão e crítica. 2002, 15(1), p.13-25.
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). 2.ed. São Paulo: Cia
das Letras, 2010.
NUSSBAUM, Martha C. El ocultamiento de lo humano: repugnancia, vergüenza y ley. Buenos
Aires: Katz Editores. 2006.
PUIG, Joseph Maria. A construção da personalidade moral. São Paulo: Ática, 1998.
ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia
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O DIÁLOGO NAS AULAS DE FILOSOFIA DO ENSINO MÉDIO
Cleder Mariano Belieri
Doutorando em Educação - PPE/UEM
[email protected]
RESUMO: Neste trabalho, será analisada uma situação de aprendizagem em busca de
evidências sobre o papel do diálogo como princípio educativo nas aulas de Filosofia. O
estudo está fundamentado em pressupostos de autores da Teoria Histórico-Cultural acerca
da aprendizagem e do desenvolvimento do pensamento. Os dados empíricos foram
obtidos por meio de um experimento didático, desenvolvido com os alunos do 3º ano do
Ensino Médio de um colégio estadual do Paraná, que tinha como objetivo a localização de
princípios didáticos para o ensino de Filosofia. Observamos, por meio da análise dos
dados, que as situações dialógicas, quando mediadas pelo conceito filosófico, permitem ao
professor acompanhar o nível de pensamento do aluno em relação ao conteúdo de ensino,
encaminhar e reencaminhar suas ações para que a atenção esteja dirigida para o conceito
filosófico, permitindo a reordenação das operações mentais do aluno.
Palavras-chave: Diálogo. Ensino. Filosofia.
Introdução
É comum entre professores de Filosofia relatos de que o diálogo entre professor e
alunos e entre alunos e seus pares, durante as aulas, permite o desenvolvimento da
capacidade crítica. Em algumas situações em que o diálogo se apresenta como um princípio
didático, cabendo ao professor coordenar a discussão, atento ao desempenho
argumentativo (lógico) dos alunos.
Assim, considera-se que, por meio do diálogo, os alunos vão aprendendo a
distinguir um argumento bom de outro ruim, a exigir dos outros e de si mesmos coerência
na argumentação e a se autocorrigir; ou seja, mediante o processo de argumentação e
contra-argumentação os estudantes aprendem a ―pensar melhor‖.
Ocorre que esse
processo de argumentação e contra-argumentação tem consistido na emissão de opiniões
fundadas apenas em vivências cotidianas, distanciando-se dos conteúdos próprios da
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190
Filosofia. Esse fato tem dificultado a elaboração de argumentos mediados por conceitos
filosóficos e, assim, impedido que o pensamento do aluno atinja níveis mais teóricos.
Diante disso, é lícito questionar se os momentos de interação dialógica entre alunos
e entre eles e o professor podem ser transformados em um princípio educativo para as
aulas de Filosofia, e, em caso afirmativo, em como essa transformação pode se efetivar. No
presente artigo, buscaremos analisar – ainda que de modo bastante breve – uma experiência
―didático-dialógica‖ que nos permite enfrentar às questões formuladas.
O diálogo em uma situação de aprendizagem
Pautados em pressupostos da Teoria Histórico-Cultural, consideramos que é a
aprendizagem dos conceitos sistematizados, mediante a instrução escolar, o meio de
desenvolvimento das funções psíquicas superiores, como reflexão, análise e síntese, enfim,
o meio para o desenvolvimento humano (VIGOSTSKI, 2001). Assim, defendemos a
necessidade de um ensino que resulte em aprendizagem, em nosso caso, um ensino que
favoreça a aprendizagem de conceitos filosóficos e o desenvolvimento do pensamento do
aluno.
Considerando a compreensão acima apresentada, a pesquisa Aprendizagem de
Conceitos Filosóficos no Ensino Médio26 (BELIERI, 2012), desenvolvida com o propósito de
investigar como o ensino de Filosofia pode ser organizado para que haja a aprendizagem de
conceitos filosóficos e o desenvolvimento do pensamento teórico dos alunos no Ensino
Médio, identificou alguns elementos sobre o papel do diálogo nas aulas de Filosofia por
meio de um experimento didático27.
O experimento foi desenvolvido de setembro a novembro de 2010 com alunos do
3º ano do Ensino Médio de um colégio estadual do Estado do Paraná. A turma era
composta por 25 alunos, cuja idade oscilava entre 16 e 18 anos. Durante o experimento, o
A pesquisa de mestrado foi realizada pelo professor Cleder Mariano Belieri, sob a orientação da professora
Dra. Marta Sueli de Faria Sforni, no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Estadual de
Maringá. Ela está disponível em http://www.ppe.uem.br/dissertacoes.html.
27 O experimento didático ―(...) caracteriza-se pela intervenção ativa do pesquisador nos processos mentais
que ele estuda. Neste sentido, ele difere essencialmente do experimento de constatação, que somente enfoca
o estado já formado e presente de uma formação mental. A realização do experimento formativo pressupõe a
projeção e modelação do conteúdo das formações mentais novas a serem formadas, dos meios psicológicos e
pedagógicos e das vias de sua formação (...) plasma uma combinação (unidade) entre a investigação do
desenvolvimento mental das crianças e a educação e ensino destas mesmas crianças‖ (DAVIDOV, 1988, p.
196)
26
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professor atuou como pesquisador, organizando uma atividade de ensino na qual alguns
dados foram coletados.
Optou-se por trabalhar o conceito de alienação, por ser um conteúdo presente no
programa da disciplina para o semestre no qual o experimento foi realizado. Pretendia-se
que os alunos internalizassem o núcleo conceitual, ou seja, o princípio geral básico que dá
unidade ao sistema conceitual que constitui o conceito de alienação. Os estudos para a
organização do experimento haviam revelado que o princípio geral que uniria as diferentes
representações sobre alienação estaria relacionado a perder o ser; perder o que o faz ser; perder a
humanidade; perder o que o faz ser o que é; enfim, perder a essência do que define o homem como tal.
Desse modo, a alienação seria, de um modo geral, a perda do ser. Assim, o homem estaria
alienado quando perdesse o que o define como homem. Devido às poucas horas possíveis
para a realização do experimento, optamos por focar o ensino na produção de apenas um
autor. Foi trabalhado, então, o conceito de alienação no pensamento de Sartre.
Inicialmente organizamos uma atividade em grupo para a leitura de uma narrativa
que culminava com uma situação-problema a ser revolvida coletivamente, com o objetivo
de reconstruir os traços essenciais que compõem o conceito de alienação. Pretendíamos
que a chave para a resolução dessa situação-problema seria o uso do conceito de alienação.
Não pretendíamos um ensino que viesse apenas aumentar o vocabulário dos alunos, mas
que possibilitasse a eles um maior nível de consciência da realidade. E o meio para isso,
segundo Vigotski (2003), é a internalização dos conceitos sistematizados.
A quantidade de estudantes por grupo ficou estabelecida em no máximo 5, sendo
esse o único critério que utilizamos para o primeiro momento do experimento. Esse
número nos pareceu adequado, pois permitia desencadear uma reflexão coletiva em que os
alunos tentariam em conjunto responder ao problema apresentado na narrativa. Para
viabilizar o trabalho, solicitamos à turma que nenhum aluno permanecesse fora dos grupos.
Os alunos, como já esperávamos, agruparam-se de acordo com os laços de amizade já
existentes na turma.
Tendo em vista os limites impostos pela extensão do presente texto, não nos é
possível apresentar todo o experimento didático, assim, optamos por destacar apenas uma
das situações de diálogo ocorridas durante a leitura da narrativa, ocorrido no primeiro
momento do experimento. O episódio descrito a seguir evidencia o papel do diálogo na
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192
promoção da reflexão28 pelos alunos, bem como a possibilidade que a verbalização,
manifestada nas argumentações e contra-argumentações, ofereceu ao professor no
acompanhamento do nível de pensamento do aluno em relação ao conceito de alienação.
No episódio a seguir, o professor e alguns alunos organizados em um grupo, Adriá,
Kal, Lídia e Maya29, colocam-se em uma situação de diálogo na tentativa de responderem ao
problema presente na narrativa:
Problema: Mas a que fim estava voltada a minha opção em continuar varrendo, a um fim meu, próprio,
interno (a minha vontade), ou a um fim determinado exteriormente? Estaria de fato deixando de ser
humana caso continuasse a varrer todos os dias aquelas ruas? Não estaria submetida a essa condição por
ter como maior valor a possibilidade de poder viver? A que fim e o que justificava o modo de agir dos goim,
dos jundenrat e do prefeito? A atitude dos goim, dos jundenrat e do prefeito também consiste em abrir mão
da sua humanidade? Estariam os goim os jundenrat e o prefeito em uma condição semelhante a minha?
Por quê? Que condição traduz a minha atitude de continuar varrendo? Estaríamos em uma condição de
alienação?
Kal: Ela fez o que ela queria, ela fez a vontade dela, foi uma opção dela.
Adriá: Por que naquela época mesmo que os nazistas vissem a pessoa varrendo ou não fazendo nada eles
matavam. Eles achavam que tinham que matar e já matavam. Eles matavam também para mostrar o
poder...
Lídia Então ela preferia a vida e não ligava em perder a liberdade dela, mas preferia continuar vivendo.
Lídia: Eles (os jundenrat) eram judeus também?
Kal: Sim.
Professor: E a resposta à questão: “Que condição traduz a minha atitude de continuar varrendo?
Estaríamos em uma condição de Alienação?” Como ficou?
Grupo: Sim! Sim! Sim!
Professor: Por quê?
28A
reflexão ―(...) consiste na descoberta, por parte do sujeito, das razões de suas ações e de sua
correspondência com as condições do problema‖ (SEMENOVA, 1996, p. 166). Pelo fato de a narrativa
apresentar condições para a solução do problema do experimento didático, ela subsidiaria os alunos para que
estes pudessem encontrar a razão da sua ação, que nesse caso seria encontrar a generalização conceitual
substancial (DAVIDOV, 1988), o conceito de alienação. Assim, durante a realização do experimento caberia
ao professor estar atento ―(...) ao plano intrapsíquico, à presença e à qualidade das negociações entre os
alunos e destes com o professor acerca dos critérios utilizados na resolução das tarefas‖ (SFORNI, 2004, p.
117), ou seja, o professor deveria estar atento aos mecanismos utilizados pelo aluno na tentativa de responder
ao problema. Portanto, era fundamental criarmos momentos e situações em que os alunos verbalizassem o
seu pensamento. Nesse sentido, as discussões em pequenos grupos e a socialização das ideias de cada grupo
foram previstas no experimento.
29 Para garantir o anonimato dos sujeitos envolvidos nessa pesquisa foram utilizados nomes fictícios.
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Kal: porque era uma coisa obrigada, imposta pelo prefeito dela também, pelo líder, pela ditadura...
Adriá: Ela foi induzida a fazer aquilo...
Kal: É, ela foi induzida.
Kal: Se não ela (Léa) agisse assim ela morreria então ela teria que fazer.
Adriá: tem pessoas que estão alienadas sem perceber. Mas ela está alienada impondo aquilo a ela.
Kal: O prefeito também estava em condição de Alienação. Por que se ele se opusesse a esse regime ele
morreria. Então ele estava na mesma situação que ela.
Adriá: Quando aconteceu o Nazismo eles colocavam o poder... por exemplo... eles foram lá mataram as
crianças, os filhos, para mostrar que ele poderiam fazer aquilo com todos.
Maya: Eles tinham o poder!
Adriá: É, eles tinham o poder e esse poder era baseado na força que eles tinham, eles demonstravam para
as pessoas para amedrontar. Eles estão em situação de alienação não só pelo o que está acontecendo, pelos
acontecimentos, mas pelo medo, pelo... Para conservar a vida! É claro que eles não tinham liberdade, mas
eles se apegavam naquilo para preservar a vida. Ela mesma se apegou varrer as ruas como uma ultima
esperança... É o que dá para entender... Ela queria viver.
No trecho relatado, podemos verificar que o diálogo se estabelece para tentar
responder de modo coletivo o problema apresentado. Isso possibilitou o envolvimento
desse grupo de alunos com a temática, desencadeando a atividade reflexiva. A reflexão
pode ser observada quando os alunos tentam encontrar os fundamentos e os limites de
seus posicionamentos, despertando neles o desejo de superação da condição que se
encontravam em relação ao conceito de alienação. É o que podemos ver nas falas de Adriá
e Lídia:
Adriá: Por que naquela época mesmo que os nazistas vissem a pessoa varrendo ou
não fazendo nada eles matavam. Eles achavam que tinham que matar e já matavam.
Eles matavam também para mostrar o poder... Lídia: Então ela preferia a vida e
não ligava em perder a liberdade dela, mas preferia continuar vivendo.
Por meio da observação atenta do diálogo nos grupos, foi possível ao professor
verificar que o nível do pensamento dos alunos em relação ao conceito filosófico não era o
esperado. Isso levou o professor a intervir por meio dos seguintes questionamentos: E a
resposta à questão: “Que condição traduz a minha atitude de continuar varrendo? Estaríamos em uma
condição de Alienação?” Como ficou? Por quê?
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O acompanhamento e a intervenção do professor, por meio de seus
questionamentos, contribuiu para colocar em sintonia os passos do professor e dos alunos
rumo à aprendizagem almejada. Isso pode ser observado na sequência do diálogo:
Grupo: Sim! Sim! Sim! Kal: porque era uma coisa obrigada, imposta pelo prefeito
dela também, pelo líder, pela ditadura... Adriá: Ela foi induzida a fazer aquilo...
Kal: É, ela foi induzida. Kal: Se não ela (Léa) agisse assim ela morreria então ela
teria que fazer. Adriá: tem pessoas que estão alienadas sem perceber. Mas ela está
alienada impondo aquilo a ela. Kal: O prefeito também estava em condição de
Alienação. Por que se ele se opusesse a esse regime ele morreria. Então ele estava na
mesma situação que ela.
Com isso, podemos afirmar que a intervenção do professor mediada pelo conceito
filosófico, após a identificação do nível do pensamento dos alunos em relação ao conteúdo
de ensino, permitiu-lhe reencaminhar suas ações para que a atenção dos alunos fosse
dirigida para o conceito de alienação e não se desviasse para outros aspectos não essenciais
do conceito.
Após termos mobilizado a atenção dos alunos por meio diálogo promovido pela
tentativa de responder a situação-problema presente na narrativa, foi apresentado aos
alunos conceitos de alienação de diferentes dicionários (incluindo dicionário filosófico),
comparando-os à situação existencial das personagens da narrativa a fim de que saíssem da
situação particular apresentada no texto e percebessem nela traços de um fenômeno geral,
ou seja, que caminhassem em direção à elaboração de uma síntese geral relativa ao conceito
de alienação. Não esperávamos, nesse momento, que os alunos chegassem ao conceito, já
que eles não tinham ao seu dispor reflexão proveniente dos clássicos da Filosofia, apenas
elementos do seu cotidiano, somados às definições dos dicionários; nossa intenção era a de
que tentassem elaborar uma síntese provisória que seria ampliada ou modificada à medida que
tivessem contato com o pensamento filosófico. Ao chegarem ao pensamento de Sartre, que
ocorreu no terceiro momento do nosso experimento, os alunos já estariam mentalmente
ativos com o conceito em pauta.
Considerações finais
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O presente estudo permitiu concluir que o diálogo pedagogicamente orientado,
mediado pelo conceito filosófico, possibilita ao aluno reordenar as suas operações mentais.
Entre essas operações está a reflexão, capacidade que entendemos ser de extrema
importância para a aprendizagem de conceitos, pois permite ao educando localizar os
fundamentos e os limites de seus posicionamentos em relação ao conceito filosófico.
A análise dos dados nos permite reforçar a ideia de que o diálogo durante as aulas
potencializa o desenvolvimento dos sujeitos envolvidos na atividade, contudo, esse diálogo
deverá ser sempre mediado por determinado conhecimento, em nosso caso, pelo conceito
filosófico. A interação entre os alunos e entre eles e o professor, na tentativa de se resolver
de maneira conjunta um problema de aprendizagem, promove novas conexões com o
objeto de estudo por meio da manifestação de ideias contrárias apresentadas
(SEMENOVA, 1996).
O enfrentamento da situação-problema, por meio do diálogo, além de ter sido um
importante procedimento para mobilizar o pensamento dos estudantes em torno do objeto
de conhecimento, também possibilitou ao professor acompanhar a relação que o aluno está
estabelecendo com o conteúdo em questão. Isso contribui para colocar em concordância as
ações e as operações realizadas pelo aluno e pelo professor no caminho rumo à
aprendizagem conceitual, colocando o aluno como sujeito da aprendizagem.
Com base nesse estudo, também podemos afirmar que situações de diálogo
possibilitam ao professor intervir e fazer com que o aluno deixe de ter como foco de sua
atenção apenas os elementos advindos das experiências cotidianas e dirija sua atenção para
o que acreditamos ser essencial no ensino de Filosofia: os conceitos filosóficos. Com isso,
destacamos que nos momentos de interação dialógica ocorrida nas aulas de Filosofia os
conceitos filosóficos devem ocupam um lugar central, tanto no processo de argumentação
e contra- argumentação como na organização desse processo pelo professor. Pois, é a
aprendizagem dos conceitos filosóficos o meio para instrumentalizar os alunos para realizar
a crítica consistente da realidade.
Referências Bibliográficas:
BELIERI, C. M. Aprendizagem de conceitos filosóficos no Ensino Médio. Dissertação (Mestrado),
Universidade Estadual de Maringá, Programa de Pós-graduação em Educação, Maringá,
Paraná, 2012.
ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia
196
DAVIDOV, V. La enseñanza escolar y el desarrollo psíquico: investigación teórica y
experimental. Moscu: Editorial Progresso, 1988.
SEMENOVA, M. A formação teórica e científica do pensamento nos escolares. In:
GARNIER, C., BEDNARZ, N. e ULANOVSKAYA, I. Após Vigotsky e Piaget. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1996.
SFORNI, M. S. de F. Aprendizagem conceitual e organização do ensino: contribuições da teoria da
atividade. Araraquara: JM Editora, 2004.
VIGOTSKI L. S. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
_________. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia
197
OS MOMENTOS EVOLUTIVOS DO SER SOCIAL: ONTOLOGIA E
TELEOLOGIA DE MARX A LUKÁCS.
Daltro Lucena Ulguim
Universidade Federal de Pelotas - FEPráxiS
[email protected]; [email protected]
Orientador: Avelino da Rosa Oliveira
RESUMO: O tema tratará especificamente de dois momentos evolutivos do ser social: a
ontologia e a teleologia. Tem-se como objetivo principal a intenção de explicar de forma
básica como pode ser visto o ser social através destes importantes momentos. Elaborou-se
como problema uma questão que se insere no tema: ―Como a ontologia e a teleologia
contribuem para a visibilidade do ser social?‖. Para tal problema tem-se como hipótese que
―a compreensão do ser social passa pelo entendimento de sua ontologia e teleologia
originária‖. Sabe-se que existem diversos momentos evolutivos do ser social, contudo estes
dois momentos são inicialmente os mais importantes. Para esta tarefa trabalhar-se-á com
Marx e György Lukács, por que embora todos saibam que foi Marx quem criou esta
categoria, também sabe-se que foi Lukács foi quem a organizou.
Palavras-chave: Ser social, ontologia, teleologia e generalidade.
Partindo para os fatos concretos: é possível afirmar que Lukács escreveu uma
grande obra sobre a categoria do ser social: mesmo que sobre os ombros de Karl Marx, ele
sistematizou de tal forma a categoria que sem sombra de dúvidas se tornou um estudo
muito organizado. Para esta abordagem, selecionou-se dois dos diversos momentos do
desenvolvimento do ser social conforme estudos de Lukács: a ontologia e a teleologia. Não
se entrará em detalhes dos outros momentos em razão do espaço e do momento, que aqui
são apenas propícios aos escolhidos. Assim organizado, entende-se que a categoria do ―ser
social‖ será melhor entendida desde que, analisando-se a tese e a antítese se realize uma
síntese dialética concreta sobre a categoria em estudo.
A ontologia30 e a teleologia 31.
2 1
Ontologia: ―on.to.lo.gi.a sf (onto+logo +ia ) 1 Ciência do ser em geral. 2 Filos Parte da metafísica que estuda
o ser em geral e suas propriedades transcendentais (…)‖ (DICIONÁRIO MICHAELLIS).
30
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198
Conforme Lukács (2010, p. 59), nas decisões teleológicas desparece o fato de que
os atos derivados da consciência, que muitas vezes parecem funcionar como única fonte de
alternativa de atividade do ser humano pudessem também constituir ontologicamente, de
modo isolado, o fundamento real da práxis e da existência humana. Essa aparência é um
elemento no ser social que não deve ser negligenciado.
―Mas, o que vem a representar em Lukács a palavra teleológico?‖ Para Lukács a
teleologia não tem o sentido comum de finalidade, objetivo ou meta. No domínio do ser
social o processo genético já é em si um processo teleológico. Isto tem como consequência
que o seu produto só mais tarde ganharia uma forma fenomênica de produto definido e
acabado, fazendo desaparecer sua própria gênese, quando o resultado alcança sua finalidade
(LUKÁCS, 2007, p. 79-80).
As formas de objetividade do ser social desenvolvem-se no rastro da emergência e
do desenvolvimento da práxis a partir do ser natural, tornando-se cada vez mais social.
Esse desenvolvimento é um processo dialético, que começa com um salto com o ―pôr
teleológico‖ do trabalho sem o qual não pode ocorrer analogia alguma na natureza. O salto
ontológico não pode ser revogado pelo fato de que na realidade se trata de um processo de
longo alcance e com múltiplas formas de transição. Com o ato da posição teleológica do
trabalho temos em si o ser social (LUKÁCS, 2007, p. 71). Sobre o ato da posição de
trabalho, Marx deixa claro em Para a Crítica da Economia Política do capital que: ―(...) o
trabalho de um se torna o trabalho do outro, ou seja, os respectivos trabalhos de ambos se
tornam um modo de ser social‖ (MARX, 1996, p. 62).
Explicado o sentido da palavra ―teleológico‖ em Lukács, é necessário esclarecer a
expressão ―pôr teleológico‖. Para Lukács (2010, p. 61) não é um fim posto, mas um fim
consciente que separa as formas biológicas antigas do novo ser social. É a linha primária de
separação que mostra o ilimitado desenvolvimento da adaptação ativa do ser social. O ―pôr
teleológico‖ distingue ontologicamente as formas antigas de adaptação passivas fundadas
apenas no biológico. É essa necessidade de adquirir forma humana que, quando
relativamente estática, é o elemento de importância decisiva para a humanização do ser
humano em seu processo de socialização.
―Teleologia. Doutrina que considera a finalidade como princípio explicativo da realidade‖ (DICIONÁRIO
HOUAISS, 2009, p. 720).
31
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199
Lukács (2010, p. 71) entende que a ontologia crítica de Marx não é só crítica, não se
limitando apenas a controlar, mas é criativa e reveladora de novos processos dialéticos.
Desde o começo essa crítica partia dos princípios mais profundos do ser social e da
prioridade ontológica da práxis em contraposição a simples contemplação da realidade
efetiva por mais enérgica que se orientasse para o ser. A crítica de Marx é uma crítica
ontológica: ela se origina do fato do ser social ser uma adaptação ativa do homem ao seu
ambiente, repousando irrevogavelmente na práxis.
Todas as características reais relevantes do ser social só podem ser compreendidas a
partir dessa práxis e do exame ontológico das premissas de sua essência em sua verdadeira
constituição. No capítulo ―Crítica da Economia Política‖ em Para uma ontologia do ser social,
vol. 1, Lukács deixa expresso:
(...) A prioridade do ontológico com relação ao mero conhecimento,
portanto, não se refere apenas ao ser em geral; toda objetividade é, em
sua estrutura e dinâmica concretas, em seu ser-propriamente-assim, da
maior importância do ponto de vista ontológico (LUKÁCS, 2012, p.
303).
Acrescendo-se componentes puramente sociais na convivência dos seres humanos
uma descrição tão abstrata da situação social mostra que uma exigência da sociedade de
realizar seu ser social na forma de ―pôr teleológico‖ consciente feita a seus membros tem
de estar contida em seu crescimento (LUKÁCS, 2010, p. 92).
Assim, todos os traços específicos que distinguem qualquer outro ser do ser social
seriam eliminados. Se não quiser falsear os nexos ontológicos uma ontologia do ser social
deve tentar apreender exatamente seus traços específicos no ―ser-propriamente-assim32―
originário. É característico que todos os processos dinâmicos dos complexos da práxis
sejam em sua gênese fundado no respectivo modo de desenvolvimento social, em sua
economia e determinados em suas características específicas (LUKÁCS, 2010, p. 100).
Lukács (2010, p. 102) afirma, de forma sistemática e concreta, ser possível uma
ontologia do ser social com base em uma teoria ontológica apoiada sobre si mesma e nas
diversas fases e formas da práxis social dos seres humanos. É uma teoria da generidade 33
que operaria quanto a forma e conteúdo que poderá ajudar a expressar com razoabilidade a
problemática do ser social.
32
Ser-propriamente-assim: conceito de Lukács para designar a essência do ser antes de se tornar ser social.
generidade é uma teoria que auxilia a entender os momentos evolutivos do ser social.
33A
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200
Diante desse amplo espectro, só uma análise do novo ser social perante a natureza
pode avançar no sentido da verdadeira existência do ser (Seinsbestand). Lukács percebe que a
―concepção coisificada do ser‖ passa a ser substituída pela ―prioridade ontológica do ser‖ e
descreve:
Todavia, apenas o conhecimento e o reconhecimento de que a
concepção ―coisificada‖ do ser começou a ser substituída pela prioridade
ontológica do ser dos complexos, e a simples explicação causal dos
processos dinâmicos substituída pelo conhecimento de sua
irreversibilidade tendencial, nos deixa em condições de reconhecer e
descrever os problemas categoriais do ser, sobretudo do ser social, em
termos marxistas autênticos (LUKÁCS, 2010, p. 156).
As categorias do ser são formas e determinações da existência, nelas há um
contraste radical com a gnosiologia idealista, segundo a qual as categorias são produtos do
pensar sobre a constituição do ser e de suas determinações concretas. Elas são isso, na
medida em que são reproduções imediatas do pensamento e do que existe. Elas são
operantes no processo de movimento do ser em si como momento do próprio ser. A
importância dessa inversão da relação entre categoria e ser atinge toda relação prática com
o meio ambiente no sentido mais amplo: em relação ao trabalho todo ―pôr teleológico34―
pressupõe o conhecimento do determinado ou categorialmente determinado existente
(LUKÁCS, 2010, p. 171-172).
É difícil distinguir os procedimentos técnicos das determinações existentes em si,
tendo como base a mera gnosiologia e a metodologia de um domínio específico. Só uma
crítica ontológica revelaria a real constituição do ser e as consequências amplas que tais atos
produzem sobre as relações entre as ciências particulares e a filosofia (LUKÁCS, 2010, p.
172).
O devir homem ou surgimento do ser social se entrelaçam necessária e
ontologicamente, mas, de maneira tal que o devir homem, conforme o trabalho, torna-se
uma adaptação ativa ao ambiente, ocultando em si uma tendência à auto-superação que vai
além da determinidade biológica sucessiva e incompleta (LUKÁCS, 2010, p. 231).
No âmbito das possibilidades humanas que se forma, os efeitos retroativos da
constituição do homem é determinado por exigências práticas da necessária adaptação ao
ambiente. Isso revela a direção de desenvolvimento no qual o controle crescente do
ambiente e do domínio dos princípios sociais sobre os naturais se tornam visíveis. Sócio34 A
explicação sobre ―pôr e pores teleológicos‖ já foi dada anteriormente.
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201
ontologicamente se pode falar de tendência de progresso, quando os traços específicos do
ser social se tornam dominante no curso desse processo (LUKÁCS, 2010, p. 246-247).
Quando o pensamento projeta na natureza as relações categoriais que só podem
surgir no ser social como determinações, comete ontologicamente o falseamento do ser
produzindo um mito, não um conhecimento objetivo da natureza (LUKÁCS, 2010, p. 262).
Do ponto de vista da ontologia do ser social, na práxis e no pensamento que lhe dá
fundamento e lhe conduz, só e em raras exceções os membros da sociedade se defrontam
com uma objetividade que opera particularmente se confrontando antes com seus
complexos reais que se processam realmente (LUKÁCS, 2010, p. 276).
Ao avançar para problemas das categorias, Lukács (2010, p. 325) constata que Marx
explicou o ser social de modo amplo. Nele está evidente que a ontologia do ser social só
seria pensável levando em conta a propriedade dos outros seres,
suas conexões e
diferenças. A conexão e a contraposição entre a constituição ontológica das categorias
devem ser concretizadas em sua objetividade e em seu ser independente da consciência e
de suas formas do pensamento com que procura intelectualmente apreendê-los.
Mas, a consciência só se torna um elemento importante na causalidade do social
pelo significado do ―pôr teleológico‖ no ser social. Todavia, nunca se pode esquecer que
neste caso não pode ocorrer processos de tipo teleológico, mas apenas um ―pôr-emandamento‖ especial e por esta via uma influência dos processos causais que foram
iniciados pelos pores teleológico (LUKÁCS, 2010, p. 338).
Conforme Lukács (2010, p. 338), o conhecimento ontológico do nexo do ser entre
causalidade e teleologia produz a possibilidade de determinar mais precisamente suas interrelações quanto ao ser em geral, em especial o ser social, único modo do ser em que
ocorrem de maneira faticamente comprovável e em determinações recíprocas.
Para Lukács (2010, p. 339), em relação ao trabalho, no interior da autonomia
necessária das atividades humanas e na práxis em geral destaca-se o ser social que surge
simultaneamente com ele: nunca é demais repetir que não se trata de processos teleológicos
desencadeados, mas apenas influências dos processos causais de modo teleologicamente
correspondente.
Lukács destaca que o novo o ser social já se encontrava na primitiva teleologia do
trabalho: ―O momento, pois, em que o trabalho se relaciona, do ponto de vista da
ontologia do ser social, com o surgimento do pensamento científico e a evolução deste,
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202
precisamente é aquele âmbito que foi denominado investigação dos meios‖ (LUKÁCS,
2004, p. 73)35.
Ensina Lukács (2010, p. 339) que a formação do ser social advinda dos processos
ontológicos da espécie humana, que no início eram analogicamente tomadas, e o crescente
domínio prático e teórico que o fundamenta mostram por toda parte um recuo das
representações objetivas transcendentes36 e teleológicas.
No posfácio de Prolegômenos Para uma Ontologia do Ser Social, Tertulian (2010, p. 390),
mostra que, para a religião, a necessidade é onipotente, transcendente e funcional às
determinações do real, derivando conexões, mudando premissas e o curso dos fenômenos.
Para Lessa (1992, p. 46), mesmo na questão da fé religiosa a unidade essencial do espírito
só poderá ser postulada num plano que transcenda a bipartição do mundo imediato. Ensina
Lessa (2007, p. 45), como ensina Lukács, que a relação entre o projetar a forma ideal e
prévia da finalidade de uma ação (teleologia) corresponde à essência do trabalho,
permitindo compreender claramente sua ontologia.
Relevante para Lukács (2010, p. 349), se trata daquilo que se torna qualitativamente
novo. No qualitativamente novo não se deve ignorar que essas reações no ser social, por
vezes, não são puramente espontâneas e materiais. Elas são desencadeadoras de novos
tipos de pores teleológicos que respondem de maneira consciente com novos pores
teleológicos. Isso não apenas às próprias modificações, mas, principalmente, às
constelações por elas provocadas: as necessidades e tarefas decorrentes.
Lukács (2010, p. 358) exige serem objetivamente corretos os postulados da
efetividade dos pores teleológicos que surgem durante o curso do metabolismo do novo.
E tal exigência só pode ser efetivada em dimensão, conteúdo e formas no modo e ao ponto
em que permitir a respectiva constituição econômica e ideológica daquela etapa do
desenvolvimento do ser social em que tem lugar o metabolismo concreto.
Em relação a teleologia e a ontologia é preciso dar destaque a categoria trabalho.
Lukács (2010, p. 347-348) é categórico afirmando que o ponto ontológico da gênese do ser
social é o trabalho. Isso expressa uma adaptação ativa dos modos de vida socializado,
fazendo surgir novas determinações para novos modos de ação em que os processos
Gyorgy Lukács. Ontologia del ser social: el trabajo. ―El punto, pues, en que el trabajo se relaciona, desde el
punto de vista de la ontología del ser social, con el surgimiento del pensamiento científico y la evolución de
este, es precisamente que aquel ámbito que fue denominado investigación de los medios‖ (2004, p. 73).
36 Transcendente: (…) 2 que transcende a natureza física das coisas; metafísico. Ex.: entidades t.; 4 que está
acima das ideias e conhecimentos ordinários. Ex.: <simbolismo t.> <verdades t.> (...) (DICIONÁRIOS
HOUAISS, 2009, p. 736).
35
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203
ontológicos precedentes não puderam revelar o momento decisivo do ser e sua relação
com a casualidade normal: o ―pôr teleológico‖, onde não menos importante para a
ontologia do ser social são as consequências subjetivas deste ―pôr‖ e o fato de que ele seja
caracterizado pela objetivação do processo de trabalho. E neste caso, para encerrar a
questão da ontologia, muito propriamente Lukács cita Marx e seu famoso exemplo:
Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha
supera mais de um arquiteto ao construir sua colmeia. Mas o que
distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua
construção, antes de transformá-la em realidade. No fim do processo de
trabalho aparece um resultado que já existia antes idealmente na
imaginação do trabalhador (MARX, 1999, p. 211-212).
Certamente ontologia e teleologia são partes de uma teoria da generidade que opera
quanto a forma e conteúdo pelo trabalho, expressando a problemática do ser social. Em
Lessa (1992, p. 43), os indivíduos desenvolvem personalidades autênticas em
individualidades cada vez mais socializadas mediadas por categorias sociais cada vez mais
genéricas e as formações sociais adquirem formas materiais e espirituais genéricas cada vez
mais desenvolvidas. Esta generalidade não é mera abstração, mas universalização realizada
pelo real e pela história. A esta universalidade concreta Lukács denominou generidade.
Para Carli (2009, p. 20-21) quanto menos se desenvolve uma sociedade, quanto
menos é intrínseca a retração dos limites naturais, menor é a variedade de questões postas
para seus membros e sua diferenciação resulta do desenvolvimento social. À proporção que
a sociedade avança, a sociabilidade e a natureza cede espaço à intervenção das categorias
sociais, o homem alcança níveis maiores de humanização e individualidade da mesma
maneira que a generalidade ganha em complexos.
Em Tertulian (2010, p. 384), a ontologia compreendida nos Prolegômenos, culmina
efetivamente numa teoria do gênero humano, distinguindo entre generidade em-si e
generidade para-si: esta problemática é resolvida por meio da Ética.
Em conclusão: a compreensão do ser social passa pela compreensão de sua
ontologia e teleologia originária como prevê nossa hipótese, resolvendo-se a questão de
como ambas contribuiriam para a visibilidade do ser social. Ontologia e teleologia mostram
os momentos bem definidos do desenvolvimento dos ser, antes de atingir a humanização
transformadora, através de saltos qualitativos ontológicos e teleológico que se mostra por
pores teleológicos dentro de um movimento finalístico de transformação do não ser em
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204
ser, do inorgânico em orgânico, do orgânico em animal e, por fim, neste salto qualitativo se
mostra também o movimento de transformação do ser animal em ser social.
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Ser Social: questões de princípios para uma ontologia hoje tornada possível. Tradução de
Lya Luft e Rodnei Nascimento. São Paulo: Boitempo, 2010.
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A FORMAÇÃO FILOSÓFICA NA EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA: UMA
REFLEXÃO SOBRE A EDUCAÇÃO, O TRABALHO E AS TECNOLOGIAS
Daniel Salésio Vandresen
IFPR/Assis Chateaubriand
[email protected]
RESUMO: O objetivo deste trabalho é refletir sobre o papel da filosofia na educação
tecnológica. Neste estudo pretende-se analisar a inter-relação educação, trabalho e
tecnologias através da problematização do ensino técnico, principalmente do Ensino
Médio, como formação para adaptação as necessidades mercadológicas ou como
subjetividade emancipatória. Daí a importância da formação filosófica como ferramenta
para a construção do pensamento crítico e autônomo, bem como, para o exercício da
cidadania. Também, procura-se analisar como aparece o conceito de trabalho como princípio
educativo como requisito para a compreensão histórica do conhecimento científico e
tecnológico.
Palavras-chave: Filosofia. Educação. Trabalho. Tecnologias.
O presente trabalho se insere na área temática da relação entre filosofia e educação,
buscando refletir sobre o papel da formação filosófica na educação tecnológica. O objetivo
é analisar a contribuição do pensamento filosófico no Ensino Médio da educação
tecnológica. Para isso, trata-se de investigar como aparece o conceito de trabalho como
princípio educativo como requisito para a compreensão histórica do conhecimento científico e
tecnológico.
Este conceito de trabalho educativo remete ao pensamento de Antonio Gramsci
em sua reflexão sobre a escola unitária. Para o autor o princípio educativo da educação é o
trabalho, porque este não pode se realizar sem o conhecimento de sua produção.
O conceito e o fato do trabalho (da atividade teórico-prática) é o
princípio educativo imanente à escola primária, já que a ordem social e
estatal (direitos e deveres) é introduzida e identificada na ordem natural
pelo trabalho. O conceito do equilíbrio entre ordem social e ordem
natural com base no trabalho, na atividade teórico-prática do homem,
cria os primeiros elementos de uma intuição do mundo liberta de toda
magia ou bruxaria, e fornece o ponto de partida para o posterior
desenvolvimento de uma concepção histórica, dialética, do mundo, para
a compreensão do movimento e do devir (...) (GRAMSCI, 2001, p. 43).
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Nessa citação, Gramsci mostra que o trabalho como atividade teórica (conceito) e
prática (fato) permite ao processo educativo uma formação histórico-dialética do mundo.
Segundo Frigotto, Ciavatta e Ramos (2013) esse duplo sentido do trabalho também está
expresso no pensamento de Lukács, o qual aborda o trabalho pela dimensão ontológica e
histórica. A dimensão ontológica do trabalho revela que por meio dele o ser humano se
humaniza, cria, produz conhecimento e se aperfeiçoa. Pela dimensão histórica, o trabalho
permite compreender sua utilização como força produtiva e sua consequência de trabalho
explorado. Para Saviani (2007) em uma concepção ontológico-histórico do vínculo entre
educação e trabalho, o homem torna-se homem, porque trabalha e educa.
Os autores Frigotto, Ciavatta e Ramos (2013) alertam ainda que na relação
educação e trabalho é preciso não ser inocente e reconhecer que esta relação é parte da luta
hegemônica entre capital e trabalho. É preciso admitir que o trabalho não é
necessariamente educativo. Então, como entender esta relação? Para estes autores: ―o
trabalho, no sentido ontológico, é princípio e organiza a base unitária do ensino médio‖.
Assumir esta postura significa também assumir o trabalho como princípio éticopolítico, ou
seja, uma educação emancipatória que reconhece a dimensão criativa do trabalho na
produção existência humana e social.
Segundo Ramos (2003) é importante notar que historicamente o Ensino Médio
esteve predominantemente centrado na formação para o mercado de trabalho. Isso
significa que é preciso deslocar o foco de seus objetivos para a pessoa humana. Ainda,
afirma que a finalidade do Ensino Médio deve ser o sujeito e o conhecimento, ou seja,
garantir o direito ao conhecimento historicamente construído em uma base unitária em que
o sujeito tenha uma formação que sintetiza humanismo e tecnologia. Assumir o trabalho
como princípio educativo implica defender um projeto unitário de educação que supere a
dualidade histórica entre a formação básica e a formação profissional.
Outro importante pensador que trabalha a dimensão ontológica da relação
educação e trabalho é Álvaro Vieira Pinto37. Segundo Pinto (2003, p. 20) ―a educação é
parte do trabalho social‖, pois é por meio do trabalho que o homem expressa e define sua
Álvaro Vieira Pinto (1909-1987) é considerado um filósofo marxista e chamado por Paulo Freire de
―mestre brasileiro‖. Cito uma de suas principais obras: O Conceito de Tecnologia (em 2 volumes). Através de seu
enfoque da filosofia da técnica vinculava, em plena ditadura militar, a relação filosofia, antropologia e história
em um projeto emancipador para países em dependência tecnológica. Este autor é utilizado como referência
teórica em documentos dos Institutos Federais, daí a importância de uma análise mais profunda desta
referência teórica para a educação tecnológica.
37
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207
essência, o homem é produto do trabalho, pela maneira como dialeticamente constrói a si
mesmo. Em relação a educação e tecnologia afirma: ―(...) a proposição mais geral da teoria
do desenvolvimento social é a seguinte: é o trabalho que transforma o trabalho (cria as
novas formas de trabalho - conceito da técnica como invenção, como o ―fazer o novo‖)‖
(PINTO, 2003, p. 47). Isto porque, na visão do autor, através da técnica como trabalho
criativo é possível pensar a emancipação.
Desde a leitura marxista o trabalho passou a ser a categoria pelo qual utilizamos
para nos situarmos no mundo. Karl Marx em sua interpretação do trabalho pela dimensão
ontológica compreende esta atividade como construção do humano, ou seja, o homem é o
que é pelo trabalho criativo e transformador que realiza. Já, por outro lado, sua crítica
histórica ao trabalho alienante da sociedade indústria entende que o trabalhador se
desumaniza, pois através de atividades repetitivas e delimitadas o operário perde o vínculo
com a identidade do trabalho criativo.
A passagem para a formação flexível do modelo do toyotismo provocou alterações
no trabalho como formação fechada do modelo fordista-taylorista. Segundo Foucault, na
obra Nascimento da Biopolítica, a partir da Teoria do Capital Humano da ótica neoliberal, o
trabalho passa a ser analisado a partir das estratégias de conduta de quem trabalha. O
trabalhador deixa de ser um objeto no processo do capital e passa a ser sujeito. Nesse
panorama neoliberal o trabalho aparece como retorno ao homo oeconomicus, mas não mais
como homem parceiro da troca na concepção clássica e, sim, como um empresário, um
empresário de si mesmo. ―(...) homo oeconomicus empresário de si mesmo, sendo ele
próprio seu capital, sendo para si mesmo seu produtor, sendo para si mesmo a fonte de
(sua) renda‖ (2008, p. 311). Se na economia clássica o indivíduo era explorado pela sua
força de trabalho, agora na concepção neoliberal o indivíduo vale enquanto seu capital
humano é útil para os interesses do mercado. A constituição de um capital humano
funciona na racionalidade neoliberal como exercício do biopoder (poder sobre a vida). Agir
sobre a população com o objetivo de estimular e garantir que haja capital humano é a meta
da biopolítica neoliberal.
Na educação este reflexo é visível na concepção de educação permanente. Gilles
Deleuze (1992), no texto Post-Scriptum sobre as Sociedades de Controle, relaciona a educação
permanente com o que chama de ―sociedade de controle‖. Para o autor, a educação em
uma sociedade de controle aparece sob o modelo da empresa, ou seja, nessa realidade criase um ambiente de competição, tendo como princípio o salário por mérito e a ênfase na
formação permanente. O autor aponta que na sociedade disciplinar era preciso sempre
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208
recomeçar, seja na escola, na fábrica, etc., já na sociedade de controle nunca se termina
nada. No texto a seguir, Deleuze descreve o que marca a escola nesta sociedade de
controle: ―No regime das escolas: as formas de controle contínuo, avaliação contínua, e a
ação da formação permanente sobre a escola, o abandono correspondente de qualquer
pesquisa na Universidade, a introdução da ‗empresa‘ em todos os níveis de escolaridade‖
(DELEUZE, 1992, p. 226).
Nesse sentido, a ideia de formação permanente/continuada além de constituir na
sociedade de controle uma ferramenta capaz de instigar o indivíduo a estar sempre
investindo em seu capital humano, também funciona como um poderoso elemento de
construção de subjetividade, ou seja, um instrumento político para direcionar as condutas
individuais e coletivas sob o modelo das competências e da criatividade. Para Aranha (1996,
p. 244) a educação permanente é, ao mesmo tempo, uma exigência dos novos tempos e,
também, uma condição de manter as pessoas ocupadas. Então, seria ilusório pensar que
por meio dela haja transformação social e que, ao contrário, sua prática mantém os
indivíduos ocupados consigo e, por consequência, fechados aos problemas éticos e
políticos?
No atual cenário de adaptação a economia informacional, a educação tecnológica
tem exigido a ampliação da necessidade de formação permanente. Para buscar as
competências requeridas pelo capital humano a educação torna-se um investimento, alvo
não só do Estado e escolas privadas, mas também de empresas e do próprio trabalhador
individualmente.
Por um lado, teóricos como Manuel Castells e Gustavo Cardoso (2005, p. 19s)
defendem que essa sociedade tecnológica, a qual denominam como Sociedade em Rede,
caracterizada por um sistema de produção baseado na flexibilidade, na autonomia e na
criatividade tem capacidades de performance superiores em relação aos anteriores sistemas
tecnológicos. Afirmam ainda que: ―Sabemos, pelos estudos em diferentes sociedades, que a
maior parte das vezes os utilizadores de Internet são mais sociáveis, têm mais amigos e
contactos e são social e politicamente mais activos do que os não utilizadores‖
(CASTELLS; CARDOSO, 2006, p. 23).
Por outro lado, segundo Moacir Viegas (2010, p. 173s) no modelo tayloristafordista o cotidiano da produção constitui-se em um ambiente de pura alienação, já no
novo paradigma da economia informacional os trabalhadores tem maiores condições de
expressar sua subjetividade. E o autor questiona: teria essa condição maior possibilidade de
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209
emancipação? O autor afirma que os teóricos da teoria crítica já mostraram sua visão cética
da possibilidade de emancipação da tecnologia. Assim expressa um dos teóricos:
Parece que enquanto o conhecimento técnico expande o horizonte da
atividade e do pensamento humanos, a autonomia do homem enquanto
indivíduo, a sua capacidade de opor resistência ao crescente mecanismo
de manipulação de massas, o seu poder de imaginação e o seu juízo
independente sofreram aparentemente uma redução (HORKHEIMER,
2002, p. 26).
Diante do paradoxo dos autores expostos uma questão surge: nessa sociedade
tecnológica, onde os indivíduos têm maiores espaços para expressarem suas subjetividades,
também estaríamos formando trabalhadores com maiores condições de emancipação
social? Precisamos investigar se a formação que a nossa escola proporciona está
problematizando esta relação entre trabalho, tecnologias e emancipação. Outra questão
ainda se pode colocar: essa subjetividade que o trabalho flexível exige está funcionando a
partir de que lógica, como adaptação ou autonomia?
Retomando o conceito de capital humano a partir da visão de Foucault, percebe-se
a construção de uma subjetividade38 para atender os interesses econômicos. A formação de
competências visa formar um indivíduo com capital humano para o mercado de trabalho.
(...) um capital humano no curso da vida dos indivíduos, que se colocam
todos os problemas e que novos tipos de análise são apresentados pelos
neoliberais. Formar capital humano, formar, portanto essas espécies de
competência-máquina que vão produzir renda, ou melhor, que vão ser
remuneradas por renda, quer dizer o quê? Quer dizer, é claro, fazer o que
se chama de investimentos educacionais (FOUCAULT, 2008, p. 315).
Quanto melhor seu capital humano maior a possibilidade de aumento da renda,
mas também maior a possibilidade de desenvolvimento e crescimento para uma empresa,
para o capitalismo. A busca pela permanente atualização do capital humano torna o
indivíduo sujeitado pelos interesses econômicos, ou seja, seduzido pelos seus estímulos o
A subjetividade, para Foucault, se refere às práticas por meio das quais o indivíduo constrói uma verdade
sobre si. Em suas palavras, define subjetividade como: ―a maneira pela qual o sujeito faz a experiência de si
mesmo num jogo de verdade, no qual ele se relaciona consigo mesmo‖ (FOUCAULT apud REVEL, 2005, p.
85). Abordar o tema da subjetividade na perspectiva foucaultiana significa tratar dos modos de subjetivação,
ou seja, os modos – as práticas, as técnicas, os exercícios – colocados em ação em um determinado espaço
institucionalizado, no qual o sujeito se constrói nas relações de saber-poder e na produção de verdade.
Entender como os indivíduos através de práticas que os relacionam a si mesmo, se produzem e se
transformam. E como isso, buscam a afirmação de uma subjetividade autônoma, como meio de superação
das práticas de subjetivação (dominação do sujeito).
38
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210
indivíduo direciona sua vida para escolhas e desejos que ele não fez, já foram estabelecidos
por outros.
Este cenário demonstra que estamos diante da construção de uma subjetividade
submetida. Ideia também defendida por Viegas (2010, p. 186), o qual aponta que ao mesmo
tempo em que há uma liberação da subjetividade do trabalhador, há também, uma
submissão dela aos objetivos da produtividade.
Retomando a relação educacional, Jean-Claude Forquin (1993, p. 20) ao tratar da
educação na modernidade defende que não podemos nos satisfazer com um discurso
pedagógico instrumentalista, que faz da tarefa da educação como único alvo a formação de
espíritos ágeis, adaptáveis, flexíveis para estarem preparados para as eventualidades.
Segundo Lukács (1969) nesta sociedade em que se tem ênfase o desenvolvimento
das capacidades se tem na verdade uma alienação da personalidade humana, pois ela
assume um caráter coercitivo em sua própria produção. Para superar esta coerção e buscar
a autonomia se faz necessário designar o homem pelo trabalho como um ser que dá
respostas. Pode-se ainda complementar afirmando que o homem só responde, porque há
perguntas, problemas. E nisso a dimensão filosófica tem papel indispensável, como
veremos a seguir.
Desta maneira, retomemos a questão: como construir uma subjetividade
emancipadora em meio a uma sociedade de consumo passivo de tecnologias e informação
para adequar-se as necessidades do capital? A resposta pode estar na problematização da
estrutura que sustenta a complexidade desta realidade: a informação/o conhecimento.
Nesta sociedade tecnológica em que se exige do trabalhador cada vez mais domínio
dos mais variados conjuntos de informação, dificilmente se está formando um sujeito capaz
de produção de conhecimento, mas apenas como instrumento de reprodução do capital.
―Nenhuma outra criação humana tornou-se instrumento mais valioso na atualidade do que
o conhecimento capaz de fazer com que o capital se reproduza‖ (BAIBICH;
MENEGHETTI, 2008, p. 90). Ainda, segundo Baibich e Meneghetti (2008, p. 93) tal como
a postura da dialética negativa de Adorno é preciso questionar os próprios pressupostos
racionais que constroem a ciência.
Já para Saviani (2007) o conhecimento deve ser o objeto do processo de ensino,
pois compreender sua construção é indispensável para uma visão crítica do processo
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211
produtivo. ―O papel fundamental da escola de nível médio será, então, o de recuperar essa
relação entre o conhecimento e a prática do trabalho‖ (SAVIANI, 2007, p. 160)39.
Para tal empreendimento, entende-se como indispensável a postura teórica
assumida por Gilles Deleuze e Félix Guattari na definição de filosofia. Para esses autores, a
tarefa da filosofia é o de criar conceitos, atitude que só é possível pela problematização.
Todo o conceito remete a um problema, a problemas sem os quais não
teria sentido, e que só podem ser isolados ou compreendidos na medida
de sua solução (…). Mas, mesmo na filosofia, não se cria conceitos, a
não ser em função dos problemas que se considerem mal vistos ou mal
colocados (pedagogia do conceito) (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.
27-28).
Em Deleuze a criação de conceitos implica em uma atitude de criação de sentido,
daquilo que é capaz de nos afetar, sendo que isso se realiza pela problematização. Os
problemas são primeiros. É ponto de partida para construção de sentido e de criação de
conceitos. A verdadeira liberdade de pensamento está no movimento de problematização.
Estar envolvido pelo problema é questão indispensável para construir sentido e
conhecimento.
Ideia defendida também por Silvio Gallo no texto Filosofia e o exercício do pensamento
conceitual na Educação Básica (2008). Para o autor, o problema é o ―motor de arranque do
pensamento‖, aquilo que força a pensar, coloca o pensamento em movimento. O problema
produz novas conexões, criações, conceitos. ―(...) problema e conceito são as duas pontas
da filosofia, de um pensamento não ortodoxo. (...) Problema suscita conceitos e conceito
suscita problemas. Uns retornam sobre os outros produzindo novas experiências de
pensamento‖ (GALLO, 2008, p. 70).
Pensar a filosofia a partir da articulação dos elementos conceito e problema é
fundamental para a problematização da atualidade, da relação informação versus
conhecimento e, reconhecer a filosofia como uma atividade política, no sentido, de que a
formação do aluno na educação tecnológica seja voltada para sua emancipação.
Referências Bibliográficas:
Em uma primeira análise se percebe que os currículos dos cursos técnicos do IFPR não têm a disciplina de
filosofia como componente curricular. Isso seria imprescindível para que o aluno tenha uma visão crítica do
processo de construção do conhecimento e da ciência. Geralmente os cursos tem a disciplina de ética, a qual
não abarca essa temática.
39
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214
A FINITUDE E SUA RELAÇÃO COM O TEMPO NA FILOSOFIA DA
NATUREZA DE HEGEL
Dennis Donato Piasecki
UNIOESTE/CAPES
[email protected]
Orientador: Luciano Carlos Utteich
RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo analisar as relações entre o tempo, tal
como concebido por Hegel na sua Naturphilosophie, e a finitude da matéria, que é
determinada por sua própria natureza múltipla e dispersa, cujo estilhaçamento é exposto
pela divisão entre o antes e o depois. Buscar-se-á também fazer alguns apontamentos sobre
a tríade tempo, duração e eternidade e suas relações com a finitude das coisas expostas no
tempo, inclusive no que concerne ao indivíduo vivo e a alterabilidade que lhe é inerente.
Palavras-chave: Morte; tempo; Filosofia da Natureza; Hegel.
Na sua Naturphilosophie, Hegel trata principalmente do conceito de tempo (Zeit)
envolvido nas ciências físicas e não em sua relação com algum aspecto da consciência de
sua percepção.
O tempo é o ser, que, enquanto é, não é, e, enquanto não é, é; ele é o vira-ser intuído. O tempo é uma pura forma da sensibilidade ou do intuir40,
é o sensível insensível. O tempo é a negatividade abstratamente
referindo-se a si. No tempo, diz-se, tudo surge e (tudo passa) perece.
Mas não é que no tempo surja e pereça tudo, porém o próprio tempo é
este vir-a-ser, surgir e perecer, o abstrair essente, o Kronos que tudo
pare, e que seus partos destrói (devora)41.
A imagem da mitologia grega42 é pontual: o tempo é aquele que consome a si
mesmo no seu vir-a-ser. È em seu devir referente a si, que lhe é a própria negatividade, a
―Não pode entender-se como se o espaço e o tempo fossem formas apenas subjetivas. A tais formas Kant
queria reduzir o espaço e o tempo. Contudo, em verdade, as coisas mesmas são espaciais e temporais; essa
dupla forma do ‗fora-um-do-outro‘ não lhes é introduzida unilateralmente por nossa intuição; mas já lhes é
fornecida originariamente pelo espírito infinito essente em si, pela ideia eterna criadora‖. Cf. HEGEL,
G.W.F. Enciclopédia das ciências filosóficas. – A filosofia do espírito, 1995, p. 231, (§ 448 A).
41 HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das ciências filosóficas. – Filosofia da natureza, 1997, p. 55, (§ 258 A).
42 Kronos é o deus do tempo na mitologia grega, tendo em Saturno seu correspondente na mitologia romana.
Por ter medo de ser destronado, comia todos os seus filhos quando nasciam. Devorou todos, menos Zeus,
que conseguiu escapar e se vingar de seu pai. Não dá para deixar de mencionar a famosa obra de Francisco
Goya (1746-1828), um dos mestres na representação do sofrimento humano, Saturno devorando seu filho (181940
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negação da negação. O tempo é a própria morte exposta na constituição de seu criar e
destruir, que é dado no agora, no instante, na constante mudança que não pode ser
mediatizada a não ser por si, no momento do atualizar de sua abstração: Kronos destrói
tudo que ele cria.
Como indica Moraes43, pensar o tempo como esta abstração do consumir implica
não toma-lo nem como coisa, nem com inerente às coisas, nem como ente da subjetividade
da consciência finita, mas como algo que se abstrai do ato do consumir. Tal abstrair é uma
necessidade do entendimento na sua função de separar e distinguir; o tempo mesmo é algo
que não se deixa apreender empiricamente, pois, sempre que se tenta agarrá-lo pelos
sentidos, ele se mostra inapreensível em sua fluidez. No tempo se faz justiça ao finito44,
que não é finito por estar no tempo, mas, antes, está no tempo por ser finito.
Por isso o finito é transitório e temporário, porque ele não é, como o
conceito nele mesmo, a negatividade total, mas tem esta em si, de fato,
como sua essência universal, entretanto – diferentemente da mesma
essência – é unilateral, e por isso se relaciona à mesma (essência) como à
sua potência. Só o natural é portanto, enquanto é finito, sujeito ao
tempo; o verdadeiro, porém, a ideia, o espírito, é eterno45.
Todo o finito está submetido à força do tempo e sucumbe no mesmo, assim como
também se torna temporal por meio do tempo46. Traz consigo a sua temporalidade, porque
tem em si a contradição da finitude e do ser natural, a sua unilateralidade no processo, que
toma o negativo como essência, mas não em sua totalidade; a sua temporalidade, assim, é a
forma na qual a contradição aparece nele. Já no conceito a contradição resolve-se, o finito
não tem lugar nele e o tempo não consegue impor sua potência sobre ele: o conceito está
fora do tempo, visto que a temporalidade é a forma da exterioridade do próprio conceito.
1823). Amargurado pela surdez e pela turbulência de sua época, no fim da vida (curiosamente!) Goya criou
várias obras sombrias e perturbadoras. Algumas das mais notáveis fazem parte das Pinturas negras (entre elas a
mencionada acima) – assim chamadas por causa das cores escuras e do clima sóbrio – que ele começou a
pintar em 1820, na Quinta del Sordo, sua casa nos arredores de Madrid. Cf. FARTHING, Stephen (org.). 501
grandes artistas. 2009, pp. 164-167.
43 MORAES, Alfredo de Oliveira. A metafísica do conceito, 2003, pp. 176-180.
44 ―O tempo é o modo geral do nascimento e da morte, vistos no grau do ser outro e da exterioridade. O fato
de tudo nascer e morrer ―no tempo‖ é muito conhecido, mas não é a verdade do tempo, pois o tempo não é
qualquer coisa de diferente desse nascer e morrer: se se lhe removesse o conteúdo que nele nasce e morre
nem por isso careceria do devir‖. Cf. HARTMANN, N. A filosofia do Idealismo alemão, 1983, p. 574.
45 HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das ciências filosóficas. – Filosofia da natureza, 1997, p. 56, (§ 258 A).
46 ―A cada instante do tempo o ser finito, enquanto efetivamente existente, é (existe), mas, por depender de
condições por ele não controladas para existir, pode por igual não-ser (deixar de existir): ele não é capaz de
eliminar a possibilidade de sua própria dissolução‖. LUFT, Eduardo. As sementes da dúvida, 2001, p. 180.
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Ora, quando lidamos com o finito estamos já no tempo, pois só o ser finito parece
comportar uma separação entre um antes e um depois. A possibilidade de tal dissociação em
geral deve, pois, encontrar-se no seio do ser finito: aquilo que constitui a definição das
coisas finitas, aquilo que as torna corruptíveis e mortais é a diferença que apresentam entre
o conceito e a realidade, onde corpo e alma se cindem. A finitude das coisas, como já foi
observado, inscreve-se sobre o plano de fundo desta divisão originária (Urteil). Que o finito
desapareça não é consequência de uma mera contingência. Ele volta-se à desaparição por
sua própria natureza múltipla e dispersa, cujo estilhaçamento é exposto pela divisão entre o
antes e o depois47.
No tocante ao que até agora foi abordado, cabe fazer alguns apontamentos sobre a
tríade tempo, duração e eternidade e suas relações com a finitude das coisas expostas no
tempo. Que se permita a longa citação da Filosofia da natureza:
O agora tem um enorme direito – ele é nada como o agora singular; mas
este excludente em seu pavonear-se é dissolvido, liquefeito, pulverizado
enquanto eu o (digo ou) pronuncio. A duração é o universal deste agora
e daquele agora, é o ser-suprassumido deste processo das coisas, que não
duram. Porém as coisas finitas são todas temporais, pois estão sujeitas à
alteração por pouco ou por longo (tempo); sua duração, com isto é
relativa. A intemporabilidade absoluta é diferente da duração; é a
eternidade que é sem o tempo natural. A eternidade não será, nem foi,
mas ela é. A duração é apenas um relativo suprassumir do tempo; mas a
eternidade é duração infinita. O que não está no tempo é o semprocesso; o péssimo e o mais perfeito (isto) não está no tempo, dura.
Mas a duração não é vantagem. O duradouro é mais altamente cotado do
que o (breve) transitório; mas toda florescência, toda bela vitalidade tem
morte cedo48.
O agora (jetzt) é o simples indivisível; é um limite simples e vazio, não sendo
determinável e que exclui de si toda a multiplicidade. Esta singularidade do agora traz
consigo também a característica de ser um imediato, onde o limite simples é o que se
diferencia absolutamente, logo o tempo não é senão o seu próprio diferenciar-se, que tem
no momento da dimensão do presente (com o agora) seu acontecer. A duração diferenciase do tempo, do agora, por ser a suprassunção destes no seu constituir.
―O entendimento visa a essência passageira e temporal do finito, mas não consegue concebe-la, ainda mais
por mostrar-se incapaz de captar o finito como um nada e o ser deste como um ser que tem apenas o valor e
a significação do não ser. Tal é a impotência do entendimento, justamente aquela que está na origem do
destino que põe o entendimento à mercê da oni-potência do tempo‖. Cf. ARANTES, Paulo Eduardo. Hegel –
a ordem do tempo, 1981, pp. 73-80.
48 HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das ciências filosóficas. – Filosofia da natureza, 1997, pp. 56-57, (§ 258 A).
47
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Mas isso não quer dizer que durar seja algo vantajoso para a coisa. Por exemplo, ―a
terra aparece como um produto morto. Ela dura. Os membros da terra por isso
permanecem, e isto não é nenhuma vantagem; o ser vivo, ao contrário, tem o privilégio de
surgir e desaparecer49―. Algo como o Sol, a natureza inorgânica e até as pirâmides50 do
Egito duram; mas esta sua ―durabilidade‖ não lhes dá o certificado de serem superiores ao
transitório ou efêmero: Hegel assume que é exatamente o inferior que têm uma duração
especialmente longa, como é o caso, por exemplo, do inorgânico em relação ao orgânico,
de figuras medíocres comparadas com indivíduos que pertencem à história mundial51.
Como nos aponta Hosle, um nível de ―maior complexidade oferece mais ocasião de ataque:
um organismo unicelular, justamente por ser tão simples e exercer tão poucas funções,
corre menos perigo que o de um vertebrado‖52. Porém as coisas finitas estão todas no
tempo e mais dia, menos dia, também terão seu desaparecimento, pois estão envoltas na
mudança, pelas alterações que se dão através do próprio tempo.
Quanto à eternidade53 (Ewigkeit), se deve fazer diferença entre ela e a temporalidade.
A eternidade, ainda que possa se apresentar como duração infinita, não está no tempo.
Hegel não compreende a eternidade como algo além, que viesse após o tempo, pois desse
modo ―a eternidade seria transformada no futuro, em um momento do tempo‖54. Hegel
sugere que a eternidade é anterior ao próprio tempo e isto tem consequências no
pensamento do alemão no que tange à imortalidade. A imortalidade genuína requer uma
Idem, Ibidem, p. 360, (§ 339 A).
Curioso provérbio árabe: ―O tempo ri-se de tudo, mas as pirâmides riem-se do tempo‖.
51 ―Alexandre Magno, esta individualidade infinitamente forte, não permanece; somente persistem seus feitos,
suas ações, isto é, o mundo por ele suscitado‖. HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das ciências filosóficas. – Filosofia da
natureza, 1997, p, 57, (§ 258 A).
52 HOSLE, Vittorio. O sistema de Hegel, 2007, pp. 345-346.
53 Sobre o entrelaçamento das dimensões do tempo em Hegel: ―No sentido positivo do tempo pode-se pois
dizer: só o presente é, o antes e depois não é; mas o presente concreto é o resultado do passado, e está prenhe
do futuro. O verdadeiro presente é assim a eternidade‖. Cf. HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das ciências filosóficas.
– Filosofia da natureza, 1997, p. 60, (§ 259 A). Uma explicação: ―Ora, pode-se dizer, então, que as dimensões do
tempo não apresentam entre si nenhuma diferença efetiva. Só o entendimento no que lhe é peculiar, ou seja,
na sua capacidade de separar e distinguir, pode hipostasiar cada dimensão do tempo e permitir assim a cada
uma corresponder ao seu conceito. Passado é presente que já não é, o futuro é presente que não é ainda, e o
presente esmo sempre se esfuma num e noutro, quando tentamos surpreendê-lo‖. Cf. MORAES, Alfredo de
Oliveira. A metafísica do conceito, 2003, p. 179.
54 HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das ciências filosóficas. – Filosofia da natureza, 1997, p. 56, (§ 258). ―A eternidade
não é antes nem depois do tempo, não antes da criação do mundo nem quando ele se acaba; mas a eternidade
é presente absoluto, o agora, sem antes nem depois. O finito é temporal, tem um antes e um depois; e quando
se tem o finito diante de si se está no tempo. Seu tempo começa com ele e o tempo é só do finito. A filosofia
é compreensão intemporal também do tempo e de todas as coisas em geral, segundo sua determinação eterna.
O tempo infinito é só uma representação, um ir-além que permanece no negativo‖. Idem, Ibidem, p. 28, (§
247 A).
49
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constância no tempo; logo o conceito e o espírito55, que são eternos, não podem ser
imortais, pois estão desvinculados do tempo.
A imortalidade no sentido de eternidade que Hegel reivindica para o
espírito equivale apenas à capacidade do homem para abstrair de sua
posição espaço-temporal e estudar tais assuntos não-temporais como
lógicos, e à significação universal, espiritual, que uma pessoa adquire por
sua morte. Hegel admite a possibilidade de pensamento puro, no qual eu
me abstraio do meu contexto histórico a fim de me dedicar a um pensar
lógico, intemporal, acerca da natureza das coisas. Mas, ao fazê-lo, perco
todo o senso de mim mesmo como indivíduo distinto cuja sobrevivência
é possível ou desejável. O que importa para Hegel é a persistência não de
indivíduos, mas das estruturas intersubjetivas do espírito 56.
Esta caracterização hegeliana de uma impossibilidade da imortalidade individual 57 e
até mesmo espiritual, visto que o espírito não está no tempo, encontra reflexos nas suas
críticas a respeito da infinitude, ou melhor, da má infinitude aos moldes kantianos. Para
Hegel, Kant havia concebido uma má infinitude nas suas ideias teóricas e práticas ao nível
do conceito. As infinitudes criticadas por Kant na sua Crítica da razão pura58 eram más
infinitude das intermináveis séries matemáticas, prolongando-se até ao infinitamente grande
e recrudescendo até ao infinitamente pequeno. No mesmo feixe de ideias, a infinitude
postulada na filosofia prática kantiana59 era de uma espécie que fazia da moralidade uma
tarefa sem fim, algo que não se podia poupar esforços para alcançar através de toda a
eternidade.
Em vez dessas noções de infinitude, Hegel propõe uma infinitude em que o infinito
não é visto simplesmente como negação do finito, mas como internalizado no mesmo.
Em Hegel, temporalidade e finitude são co-extensivos; as coisas finitas são mortais e contingentes, isto é,
estão no tempo – sua potência – porque se definem pela separação de seu conceito e de seu ser; em
contrapartida, somente o espírito, que está no elemento do universal, evolui no elemento da eternidade.
56 INWOOD, Michael. Dicionário Hegel, 1997, pp. 228-230.
57 ―Conforme sua crítica ao mau infinito, que permanece um finito justamente como algo do além, na medida
em que tem algo em face de si, Hegel rejeita a concepção segundo a qual a alma existiria independente do
corpo. De fato Hegel parece simpatizar com a concepção aristotelizante-averroísta, segundo a qual apenas a
razão supra-individual é imortal – ela é, afinal, a essência do mundo. Segundo consta, quando sua mulher uma
vez o interrogou sobre isso (a imortalidade da alma), ele teria, ‗sem gastar uma só palavra, apontado com o
dedo para a Bíblia‖. Cf. HOSLE, Vittorio. O sistema de Hegel, 2007, p. 393.
58 Cf. KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura, 2010, pp. 392-418 (B 454 – B 489 ).
59Kant define o que é um postulado da razão prática pura: ―Uma proposição teórica mas indemonstrável
enquanto tal, na medida em que ele é inseparavelmente inerente a uma lei prática que vale incondicionalmente
a priori‖. Cf. KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática, 2003, pp. 425 – 477. Para se aproximar da santidade,
requerida como prática de toda razão, e que só pode se espraiar num progresso ao infinito, este (progresso ao
infinito) só é alcançável através da postulação da imortalidade: uma existência do ente racional que perdure ao
infinito. Para uma crítica de Hegel aos postulados da razão prática, cf. MULLER, Marcos Lutz. A crítica de
Hegel aos postulados da razâo prática como deslocamentos dissimuladores. IN:_ Veritas, Porto Alegre, Vol. 43, Nº 4,
1998 , pp. 927-960.
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Desta forma, a filosofia prática, tema da segunda crítica de Kant, podia tornar-se
concretizada dentro desta vida e não exigia a interminável tarefa implícita no postulado da
imortalidade da alma, por exemplo. Quanto a isso, Hegel assim se expressa:
Essa infinitude é a má ou negativa infinitude, enquanto nada é senão a
negação do finito, o qual entretanto nasce também de novo; por isso
igualmente não está suprassumido; ou seja, essa infinitude exprime
apenas o dever-ser do suprassumir do finito. O progresso até o infinito
fica no enunciar da contradição que o finito contém – de que é tanto
Algo como é seu Outro; e é o prosseguir, que se pereniza, da alternância
dessas determinações que se causam uma á outra60.
De resto, se pode fazer uma contraposição a esta crítica de Hegel, no que Kant
expõe no seu opúsculo O fim de todas as coisas (1794). Nele, como explica Artur Morão, Kant
busca transformar a teologia em antropologia, a religião em moralidade, retirando todos os
elementos místicos da fé histórica e transmudando-os para uma fé moral, onde ―tudo o que é
histórico e sobrenatural se circunscreve à medida do homem com a sua razão e se subordina à sua realização
moral61―. A imortalidade, que se apresenta como uma espécie de vida eterna nas doutrinas
religiosas (principalmente no catolicismo) é criticada por Kant, pois ela teria a característica
de ser uma passagem do homem, ao morrer, no tempo para a eternidade, o que, segundo
Kant, é um erro se por eternidade for entendido um tempo que se estende até ao infinito, o
que resultaria também numa má infinitude. Nesse sentido, Kant e Hegel parecem convergir
na mesma perspectiva da impossibilidade de uma genuína imortalidade das coisas e até
mesmo do próprio espírito.
Mas como se dá a relação do tempo com o indivíduo imerso no mundo natural?
No indivíduo, como tal, é de outro modo, (aí) está de um lado o gênero;
a vida mais bela é a que une perfeitamente o universal e sua
HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das ciências filosóficas. – A ciência da lógica, 1995, pp. 189-190, (§ 94).
Cf. KANT, Immanuel. O fim de todas as coisas. In: Biblioteca online de Filosofia e cultura. Disponível em: <
http://www.lusosofia.net/textos/kant_o_fim_de_todas_as_coisas.pdf>. Acesso em: 10 jul. 2013. Continua
Morão: ―(Neste texto) aborda-se tão-só a doutrina que, tradicionalmente, se refere aos Novíssimos (morte,
juízo, inferno e paraíso). Respeitoso para com o cristianismo (que, no entanto, empobrece e desfigura),
coerente consigo mesmo, Kant expurga o tema do Juízo de todos os resquícios míticos e reduz a sua
substância à exigência e ao veredicto da razão moral‖. Segundo Kant: ―É uma expressão corrente, sobretudo
na linguagem religiosa, aplicar a um homem que está a morrer a expressão de que ele passa do tempo à
eternidade. Esta expressão nada diria se por eternidade se entendesse aqui um tempo que se estende até ao
infinito; porque assim o homem nunca sairia do tempo, antes passaria constantemente de um a outro. Deve,
pois, entender-se por ela um fim de todo o tempo, com a ininterrupta duração do homem. Mas tal duração
(olhada a sua existência como grandeza) considerar-se-á, todavia, como uma grandeza de todo incomparável
(duração noúmenon) com o tempo, da qual não podemos fazer conceito algum (excepto apenas negativo)‖.
Idem, Ibidem,, p. 1.
60
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individualidade em uma figura (Gestalt). Mas também então o indivíduo
está separado do universal, e assim é um lado do processo, a
alterabilidade; após este momento mortal ele cai no tempo62.
No pensar de Hegel, o ser-aí, a determinidade, põe-se também como a negação,
que é limite e fronteira, de tal modo que a finitude e a alterabilidade pertencem
especificamente ao ser-aí. O ser-aí (dasein) sendo alterável, logo está submetido à mudança,
justamente por ser finito. O conceito de indivíduo implica a determinação da alteração e
esta é a manifestação daquilo que o ser-aí é em si. Assim sendo, a alterabilidade constitui
um dos lados do processo, e é por isso que, de acordo com sua determinação, o indivíduo
finito cai no tempo. A sua separação do universal, a alteração mesma inserida no próprio
indivíduo, é o seu limite, sua realidade; mas também é a sua negação.
Com isso está expressa, de maneira geral, a natureza do finito, que
enquanto Algo não defronta indiferentemente o Outro, mas é em si o
Outro de si mesmo, e por isso se altera. Mas essa ―alterabilidade‖ do seraí aparece à representação como uma simples possibilidade, cuja
realização não está fundada nela mesma. De fato, porém, alterar-se reside
no conceito do ser-aí, e a alteração é só a manifestação do que o ser-aí é
em si. O vivente morre, e na verdade simplesmente pelo motivo de que,
como tal, carrega dentro de si mesmo o gérmen da morte63.
Esta contradição, que envolve todo o ser-aí (ser vivo), de ser em si o gênero, apesar
de existir como indivíduo, e só ganhar sua verdade de singular no espírito, onde a
universalidade (gênero) é para si, e desta forma, a morte animal não sendo conduzida a um
mau infinito de vidas e mortes sem significação, é o que ganha sentido na morte do
indivíduo e força do gênero, ponto mais alto da natureza em sua exteriorização.
Referências Bibliográficas:
ARANTES, Paulo Eduardo. Hegel – a ordem do tempo. São Paulo: Editora Polis, 1981.
FARTHING, Stephen (org.). 501 grandes artistas. Rio de Janeiro: Sextante, 2009.
HARTMANN, N. A filosofia do Idealismo alemão. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1983.
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Loyola, 1995.
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ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia
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--------------------- Enciclopédia das ciências filosóficas. Filosofia da natureza. São Paulo: Edições
Loyola, 1997.
-------------------- Enciclopédia das ciências filosóficas. A Filosofia do espírito. São Paulo: Edições
Loyola, 1995.
HÖSLE, V. O Sistema de Hegel. São Paulo: Loyola, 2007.
INWOOD, M. Dicionário Hegel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2010.
----------------------- Crítica da Razão Prática. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
---------------------- O fim de todas as coisas. In: Biblioteca online de Filosofia e cultura.
Disponível em: < http://www.lusosofia.net/textos/kant_o_fim_de_todas_as_coisas.pdf>.
Acesso em: 10 jul. 2013
MORAES, Alfredo de Oliveira. A metafísica do conceito. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003.
MULLER, Marcos Lutz. A crítica de Hegel aos postulados da razâo prática como deslocamentos
dissimuladores. IN:_ Veritas, Porto Alegre, Vol. 43, Nº 4, 1998.
ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia
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ENTRE AS BOAS LEIS E AS BOAS ARMAS: OS FUNDAMENTOS DO
ESTADO EM MAQUIAVEL E A PRIMAZIA MILITAR
Douglas Antônio Fedel Zorzo
Mestrando em Filosofia pela UNIOESTE/PR – Bolsista Capes/CNPq
[email protected]
Orientador: Prof. Dr. José Luiz Ames
RESUMO: Os Estados, para Maquiavel, devem possuir como fundamento de suas
estruturas políticas dois sólidos elementos: boas armas e boas leis. Essa normal geral da
ação política é construída pelo Secretário florentino desde seus Primi Scritti Politici ecoando
fundamentalmente em suas obras clássicas. No entanto, o aspecto positivo dessas esferas
essenciais pode ser observado somente na medida em que atuarem concomitante e
articulatoriamente: leis, por si, não bastam; a força, sem dispositivos legais, é malograda.
Porém, Maquiavel entrelaça estruturalmente o campo legal e o militar de modo que a
eficácia das leis acaba condicionada à realidade das boas armas. De fato, a necessidade de
amar-se encaminha os dispositivos legais ao aperfeiçoamento político, enquanto condição
para as milícias próprias.
Palavras-chave: Maquiavel. Fundamentos do Estado. Leis e armas. Armas próprias.
Todos os Estados para serem erigidos com segurança, e assim manter-se, devem
possuir em sua base dois sólidos elementos: boas armas e boas leis. Para Nicolau Maquiavel
são esses os fundamentos de todo e qualquer organismo político. Este postulado aproximase de uma verdade axiomática para o Secretário. A existência dos Estados está sujeita ao
modo como essas duas esferas são constituídas e articuladas no interior do aparelho estatal.
Esta é uma lei universal e imutável da política: um exército forte e a capacidade governativa
são as duas pilastras sobre as quais se apoia qualquer Estado. Considerando a importância
que a teoria maquiaveliana atribuiu a essas duas esferas, o trabalho aqui apresentado possui
um duplo propósito: por um lado, a partir de uma breve análise das obras do Secretário
florentino, situar o modo pelo qual essa tese alcançou proeminência e se fixou como uma
verdade inquestionável; por outro lado, indicar a dinâmica de complementaridade que leis e
armas desempenham no interior de um Estado, dedicando particular atenção ao aspecto de
superioridade que a esfera militar granjeia.
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A construção da tese maquiaveliana: as boas armas e as boas leis
Nos Primi scritti politici64 de Maquiavel a ideia de que boas armas e boas leis eram os
fundamentos dos Estados já estava fortemente presente. Esse conjunto de textos, redigidos
enquanto servia a segunda Chancelaria de Florença, possuem em estágio embrionário
algumas das concepções políticas que serão desenvolvidas com maior rigor e acuidade em
suas obras clássicas. De modo particular, o posicionamento acerca dos fundamentos do
Estado é algo enunciado por Maquiavel nesses escritos de forma acabada, atravessando
posteriormente todas as obras ―maduras‖ do Secretário, escritas no isolamento das
atividades práticas da política em Sant‘Andrea in Percussina. Dessa forma, armas e leis são
os alicerces da política: essa é uma assunção teórica que não apresenta a oportunidade de
ser reformulada ou sequer questionada.
A constatação do papel decisivo desempenhado pela força aliada às leis no interior
do Estado é apresentada pela primeira vez nas Parole da dirle sopra la provisione del danaio, facto
un poco di proemio et di scusa65, texto de 1503 composto para solucionar um problema muito
específico e prático da República de Florença: a carência de armas e a resistência da classe
governativa em aprovar novas taxas para armar a cidade. Assim, diz Maquiavel com o
intuito de persuadir as esferas governativas a abandonaram sua postura irresoluta e aprovar
as indispensáveis taxas, que ―Todos os Estados (città) que em um momento determinado
(...) tenha sido governado por um príncipe absoluto, por optimates ou pelo povo (...) tem
contado como base de sua defesa com a força unida à prudência‖. Essa interação decorre de
que a prudência ―sozinha não basta‖, e a força ―ou não chega a resolver os assuntos, ou, se
os resolve, não consegue torná-los duradouros‖. Assim, essas duas esferas ―são o nervo de
todos os Estados (signorie) que foram ou serão no mundo‖ (Parole, p. 12).
Consequentemente, a privação de um desses âmbitos é a razão do esfacelamento
dos corpos políticos. Nesse sentido, afirma o Secretário florentino, a mutação dos reinos, a
ruína das províncias e das cidades não é nada além ―do que a carência de armas ou de
sentido comum (senno)‖. (Parole, p. 12). E o fim desses Estados é essencialmente desastroso,
fatidicamente ocorrendo ou ―pela destruição ou pela servidão‖ (Parole, p. 13).
No entanto, apesar da dramaticidade com que Maquiavel realiza essas afirmações,
em um texto voltado exatamente para alertar os florentinos da carência dessas armas, como
Seguimos a designação dada por J. J. Marchand na edição de 1975, Niccolò Machiavelli. I primi scritti politici
(1499-1512). Pádua: Antenore.
65 Doravante, Parole. Todas as passagens que porventura utilizarmos são de nossa tradução.
64
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224
era o caso das Parole, o mais relevante para nosso propósito é observar a dimensão que a
tese alcança: força e prudência não são princípios diretivos que apenas Florença deveria
providenciar, mas algo que todos os corpos políticos deveriam prezar. Assim, do caso
particular florentino emana uma norma geral que preanuncia fortemente O Príncipe, os
Discursos e aqui também a Arte da Guerra: ―todo Estado, para manter-se, deve estar bem
armado; a força, e a força somente, é aquela que induz os outros ao respeito nas relações
entre Estados‖ (CHABOD, 1964, p. 325).
Com o mesmo teor universalista Maquiavel reapresentava sua tese em um
documento de 1506 que serviria de base para uma futura lei sobre as ordenanças
florentinas, o La cagione della‟ordinanza, dove la si truovi et quel che bisogni fare.66 Assim, como
uma verdade claramente manifesta, afirma que ―todos sabem que quem diz império, reino,
principado, república, quem diz homens que comandam (...), está dizendo justiça e armas‖
(La cagione, p. 26). Certamente, isto fica ainda mais explícito na própria lei que
regulamentava e institucionalizava as milícias em Florença, a Provisione della Ordinanza67,
escrita (tanto a lei quanto o projeto) pelo então Secretário florentino. O texto é aberto com
termos similares aos apresentados anteriormente. Assim, considerando todas as repúblicas
―que em tempos passados se mantiveram e engrandeceram, contaram sempre com duas
coisas como seu principal fundamento, isto é: a justiça e as armas‖ (Provisione, p. 31).
Nos escritos políticos clássicos essa posição ecoa claramente as Parole, a La cagione e
a Provisione. Nos capítulos voltados aos assuntos militares do Príncipe, Maquiavel afirmava
em termos análogos que ―os principais fundamentos de todos os estados, tanto dos novos
como dos velhos ou dos mistos, são boas leis e boas armas‖. Mas acrescenta uma
importante observação – que analisaremos posteriormente – de que ―não se podem ter
boas leis onde não existem boas armas, e onde são boas as armas costumas ser boas as leis‖
(O Príncipe, XII, p. 57). Essa passagem parece ser recordada por Maquiavel, quando nos
Discursos escreve que ―embora doutra vez já tenha dito que o fundamento de todos estados
é a boa milícia, e que onde ela não existe não pode haver boas leis nem coisa alguma que
seja boa, não me parece supérfluo repeti-lo‖ (Discursos, III, 31, p. 416-7).
A complementaridade e a primazia militar
66
67
A partir de agora, La cagione. São nossas as traduções.
Ou apenas Provisione. A tradução do italiano, novamente, é de nossa autoria.
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Com essa investigação, em parte bibliográfica e em parte histórica, identificamos o
par indissociável de elementos que conferem solidez e segurança ao corpo político: de um
lado a prudência, o sentido comum, a justiça e as boas leis, que podem ser apontados como
termos sinônimos, enquanto expressão das capacidades de governo da classe política
dirigente, e por outro, a força, as boas armas, a boa milícia, o braço armado do Estado
responsável pela segurança dos indivíduos em seu interior e por assegurar sua posição
exterior diante das demais potências.
Todavia, é essencial notarmos o caráter complementar e articulatório existente
entre essas duas esferas. Como salientava Maquiavel nas Parole (p. 12), as leis, por si, não
são suficientes para assegurarem a ordem, tanto interna quanto externa, do corpo político;
a força, por sua vez, também sozinha não é capaz de conferir segurança ao Estado, ou
ainda que conseguisse algum resultado satisfatório, sem os mecanismos legais, dificilmente
teria a capacidade de conservá-lo. Logo, a possibilidade de criar algo sólido e duradouro só
pode ser observada na medida em que atuarem concomitantemente, isto é, cada qual
desempenhando sua devida função no organismo político, porquanto nenhuma delas é
capaz de manter o bom funcionamento do aparelho estatal por si.
Mas esse aspecto necessário de complementaridade que assumem não isenta
Maquiavel de traçar, em termos qualitativos, a superioridade de um desses âmbitos sobre o
outro. É justamente isso que o Secretário afirmava na passagem supracitada do capítulo
XII do Príncipe e que reforçava no capítulo 31 do terceiro Livro dos Discursos: só existe a
possibilidade de existirem boas leis no lugar onde as boas armas também se revelarem
presentes. Apenas a capacidade militar pode conferir estabilidade ao conjunto legal do
Estado. Todas as ordenações estabelecidas em uma cidade ―para que se viva no temor das
leis e de Deus‖ seria em vão caso ―não fossem preparadas para suas defesas‖. Defesas essas
que ―se bem ordenadas, mantêm tais coisas, ainda que estas não sejam bem ordenadas‖. E,
caso contrário, as boas ordenações, sem o socorro militar se desordenariam ―tanto quanto
as instalações de algum soberbo e régio palácio que, conquanto ornadas de gemas e de
ouro, em não estando cobertas, nada teriam que da chuva as protegesse‖. (Arte da Guerra,
Proêmio, p. 77-8).
A primazia pelas armas não pode ser simplificada como um mero movimento
estilístico por parte do autor, como propõe Gennaro Sasso. Escorado no capítulo XII d‘O
Príncipe, o comentador afirma que ―aquilo que unicamente Maquiavel diz é que, posta a
complementaridade dos dois termos, a ele é bem lícito, segundo a específica oportunidade
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226
do discurso, tratar das armas e deixar sobre o fundo as leis‖ (SASSO, 1980, p. 343). A
insistência maquiaveliana sobre este ponto não nos autoriza a resolver o problema desta
maneira. Com efeito, apesar de compartilharem a mesma condição, a de base do corpo
político, Maquiavel entrelaça estruturalmente esses termos de maneira que a eficácia das leis
acaba, de certo modo, condicionada à realidade das boas armas.
A relativa diferença das posições ocupadas pela estrutura militar e pela estrutura
política pode ser explicada se compreendermos que a qualidade bélica do corpo político
mantém uma estreita relação com a qualidade de sua organização política e constitucional.
Um aparato militar razoável pressupõe que as leis que o regulamentaram também sejam
favoráveis, uma vez que possibilitaram o estabelecimento dessa estrutura. Todavia, isso
ainda não esgota a questão da superioridade das armas sobre as leis. Por certo, prover a
cidade de um exército só é algo possível se a própria organização política também sofrer
significativas alterações. É nesse sentido que Maquiavel afirma que onde são boas as armas
também as leis costumam ser boas: ali, o conjunto legal sofreu modificações – para melhor,
é lícito supormos – que permitiram a inclusão dessa estrutura no corpo político, algo que
só é possível se algumas condições políticas bem determinadas também forem observadas.
Além disso, a questão da prioridade das armas é permeada pela necessidade da
sobrevivência do próprio organismo estatal. Nesse sentido, a exigência de um bom governo
é determinada por um motivo maior: a existência do próprio Estado. Armar os súditos ou
cidadãos, no entanto, só se torna uma realidade possível se existir uma estreita relação de
fidelidade68 entre os indivíduos e o Estado ao qual pertencem. Favorecer essa ligação, através
das leis, é uma das principais circunstâncias – quiçá a principal – para que a defesa dos
interesses políticos estatais seja feita através dos seus próprios meios. Em suma, boas leis
são necessárias para que haja essa maior identificação entre cidadãos e Estado. E a razão
essencial que impele a essa identificação é a imprescindibilidade do corpo armado para
garantir a autonomia do corpo político. Do mesmo modo, compreendemos, no encalço de
Frosini (2004, p. 16), que existe aqui um problema de consenso, uma vez que é ingenuidade
pretender ―fidelidade e lealdade se não existe uma base de reciprocidade dada pelo bom
governo e pelos direitos‖. Ao faltar o bom governo, a fidelidade entra em processo de
colapso, expondo o Estado a qualquer potência disposta a dominá-la. Existe assim, destaca
o comentador italiano, ―uma prioridade lógica da guerra sobre a política, pela qual a guerra
Era justamente a falta dessa fidelidade em Florença que Maquiavel denunciava com veemência nas Parole
(Cf. p. 13).
68
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227
determina as formas ―boas‖ da política‖. Em outras palavras, somente quando os
indivíduos não encaram o próprio Estado como um inimigo em potencial é que surge a
possibilidade de um bom exército florescer.
Desse modo, as armas assumem de modo definitivo sua posição no jogo político.
No final das contas são elas que asseguram a existência do próprio jogo. Externamente, são
responsáveis por asseverarem a posição política de um Estado diante das demais potências,
isto é, por criarem uma condição de igualdade política na esfera internacional, que torna
possível o relacionamento com os demais Estados sem o temor de uma latente invasão e
submissão.69 Internamente, enquanto exigência para sua própria implementação, as armas
são responsáveis pelo reordenamento constitucional, adequando as estruturas estatais para
uma maior identificação entre Estado e indivíduo, entre pátria e patriota. E, exatamente por
esse movimento de reestruturação, superiores às leis. Mas, além disso, e não menos
importante, essa relação entre a esfera militar e a legal se apresentará como pano de fundo
para orientar o pensamento maquiaveliano em sua noção de soldado cidadão e milícias
próprias, fortemente presente n‘A Arte da Guerra, mas que perpassa todas as obras clássicas.
Cidadão e soldado, reunidos na figura do mesmo indivíduo, seriam a expressão sublime da
participação política ativa do povo em sua totalidade na esfera pública de governo. Assim,
leis e armas estariam direcionadas ao modelo mais fluído do republicanismo primado por
Maquiavel: a república popular, mas por ora investigar esses pormenores excede o esforço
aqui proposto.
Referências Bibliográficas:
CHABOD, Federico. Scritti su Machiavelli. Torino: Giulio Einaudi Editore, 1993.
FROSINI, Fabio. Guerra e Politica: considerazioni su alcuni testi di Machiavelli. Università di
Urbino
-
IESA,
2004.
Disponível
em:
<
http://digital.csic.es/bitstream/10261/2093/1/17-04.pdf>. Acesso em 20/09/2013.
MACHIAVELLI, Niccolò. Opere. Org. Corrado Vivanti. Torino: Einaudi-Gallimard, 1997.
MAQUIAVEL, Nicolau. A Arte da Guerra. Trad. de MF. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
A política entre Estados só é possível se escorada em um eficaz regimento militar, pois se "entre os homens
privados são as leis, os escritos e os pactos o que fazem observar a fé", "entre os senhores somente as armas a
mantém" (Parole, p. 14)
69
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228
______. Discursos sobre a primeira década de Tito Livio. Trad. de MF. São Paulo: Martins
Fontes, 2007.
______. O Príncipe. 2ª ed. Trad. de Maria Júlia Goldwasser. São Paulo: Martins Fontes,
1998.
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O ESPÍRITO LIVRE DE SÓCRATES: UMA LEITURA A PARTIR DE
NIETZSCHE
Douglas Meneghatti
UNIOESTE/Campus de Toledo
[email protected]
RESUMO: Nietzsche apresenta Sócrates como o responsável pela dissolução da tragédia e
pelo declínio da sabedoria trágica grega, além de criticá-lo por seus comportamentos
racionais e moralizantes diante da vida e da ciência, para se referir ao filósofo ateniense usa
expressões como: ―demônio‖, ―moribundo‖ e ―doente‖. A partir disso, o trabalho se
restringe a analisar a outra face de Sócrates descrita por Nietzsche na obra Humano,
demasiado humano, na qual Sócrates se torna exemplo positivo de otimismo teórico científico,
uma vez que o filósofo alemão não hesita em classificá-lo como espírito livre.
Palavras-chave: Sócrates, Espírito livre, Trabalho, Educação, Marx.
Espíritos livres
No capítulo referente à Humano, demasiado humano da obra Ecce homo, Nietzsche
explica o significado da expressão espírito livre: ―(...) a expressão ‗espírito livre‘ quer ser
entendida: um espírito tornado livre, que de si mesmo de novo tomou posse‖ (EH/EH
―Humano, demasiado humano‖ § 1). Para que um espírito se torne livre, ele deve
desprender-se das imposições e amarras sociais e religiosas, por isso Nietzsche volta-se
contra os ideais que tolhem a ―liberdade‖ dos espíritos: ―(...) onde vocês vêem coisas ideais,
eu vejo – coisas humanas, ah, somente coisas demasiado humanas!‖ (EH/EH ―Humano,
demasiado humano‖ § 1). Em palavras quase redundantes, mas dotadas de significado
explícito, podemos dizer que o espírito livre é aquele que aprendeu a viver a sua própria
humanidade.
Espíritos livres vivem numa perspectiva diferente dos espíritos tradicionais, têm
como característica a negação dos valores metafísicos e religiosos, são alimentados pela
dúvida que abre horizontes para novas descobertas, oriundas da investigação científica. Por
seu caráter investigativo, são contrários à tradição sobre a qual se constroem os valores
milenares da moral, sustentada unicamente devido à obediência aos costumes. A ação de
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um espírito livre é precedida por um estado de tensão, o resultado da ação ocorre de modo
inusitado, somente a partir dele os princípios universais construídos pelo estado e pela
religião são dilacerados. O conhecimento revela o seu poder criador e repentino, as velhas
certezas pautadas sobre princípios lógicos e verdades dogmáticas cedem lugar à gratuidade
e à desmedida da experiência sempre singular e aberta a novas interpretações. Referindo-se
a eles, Nietzsche descreve:
Um homem do qual caíram os costumeiros grilhões da vida, a tal ponto
que ele só continua a viver para conhecer sempre mais, deve poder
renunciar, sem inveja e desgosto, a uma coisa, a quase tudo o que tem
valor para os outros homens; deve lhe bastar, como a condição mais
desejável, pairar livre e destemido sobre os homens, costumes, leis e
avaliações tradicionais das coisas. Com prazer ele comunica a alegria
dessa condição, e talvez não tenha outra coisa a comunicar – o que
certamente envolve uma privação, uma renúncia a mais. Se não obstante
quisermos mais dele, meneando a cabeça com indulgência ele indicará
seu irmão, o livre homem de ação, e não ocultará talvez um pouco de
ironia: pois a ‗liberdade‘ deste é um caso à parte (MA I/HH I § 34).
Espíritos livres vivem aquém das imposições e imperativos morais, o único
―imperativo‖ que se faz presente é a dúvida, que incita o homem à criação. A interrogação
é o crivo pelo qual o conhecimento é estabelecido, valores e verdades absolutas deixam de
existir. O mundo perde assim sua rigidez ontológica, abrindo margens para novas
interpretações que passam a caracterizar o surgimento de uma nova cultura. Enfim, as
certezas indefectíveis do ―velho‖ homem ocidental cedem espaço à investigação e às
experiências vitais que circundam e caracterizam os espíritos livres.
Nietzsche ainda diferencia os ―espíritos livres‖ dos ―espíritos cativos‖, afirmando
que, na busca da verdade, os primeiros exigem razões que são fruto de um pensamento
peculiar e independente da tradição, enquanto os outros exigem fé, que nasce do hábito por
meio da observação dos costumes. Nesse viés: ―É chamado de espírito livre aquele que
pensa de modo diverso do que se esperaria com base em sua procedência, seu meio, sua
posição e função, ou com base nas opiniões que predominam em seu tempo‖ (MA I/HH I
§ 225). O ―espírito livre‖ possui uma nítida autonomia, estando desvinculado dos
hereditários valores morais e culturais, enquanto o ―espírito cativo‖ carrega consigo a soma
desses valores transmitidos pela tradição. O espírito cativo não possui autonomia, pois não
é capaz de discernir entre as escolhas possíveis; ao contrário, o espírito livre, rompendo
com as razões pré-estabelecidas, constrói sua existência a partir das próprias escolhas.
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231
Sócrates como espírito livre
No que se refere à classificação de Sócrates como ―espírito livre‖, cabe mencionar
os aforismos 433 e 437 de Humano, demasiado humano, nos quais Nietzsche relata o
casamento e a morte de Sócrates, respectivamente. No § 433 Nietzsche demonstra o
heroísmo do espírito livre de Sócrates que encontrou uma mulher (Xantipa) tal como
precisava, mas que não a teria buscado se a conhecesse suficientemente bem. Na sequência,
no § 437, assim se expressa: ―Há várias espécies de cicuta, e geralmente o destino encontra
oportunidade de pôr nos lábios do espírito livre um cálice desse veneno – para ‗puni-lo‘,
como diz depois o mundo inteiro‖. O parágrafo termina com Sócrates pedindo a Críton
que mande alguém retirar as mulheres. Mas o importante é perceber, em ambos os
parágrafos, o tratamento peculiar de Nietzsche para com Sócrates, que é claramente
incluído entre os espíritos livres. Nos dois casos Sócrates é apresentado como vítima,
primeiramente de sua mulher que, tornando sua casa inabitável e inóspita, lhe impeliu à
profissão de viver e ensinar nas ruas de Atenas e, depois, do destino, que lhe apresentou a
cicuta.
Além da metáfora acima descrita, encontramos ainda em O andarilho e sua sombra (2º
volume de Humano, demasiado humano) algumas das mais positivas referências a Sócrates de
toda a obra nietzschiana, em que transparece a preocupação com a questão da educação.
Chamado de ―professor apolínio‖ por Nietzsche, Sócrates é visivelmente oposto a todos os
educadores idealistas, ou mesmo, propagadores de ideais ascéticos, Nietzsche assim expõe
um Sócrates voltado para os problemas cotidianos, como um exímio professor que não
negligência às coisas humanas.
No § 6 do Andarilho e sua sombra: A fragilidade terrena e sua causa principal, Nietzsche
demonstra que as pessoas raramente atentam às coisas simples do dia-a-dia, o que resulta
em enfermidades físicas e psíquicas, a saber, que devido a um mau direcionamento na
educação infantil, as crianças são habituadas à busca de coisas ideais, tais como: ―a salvação
da alma‖, ―o serviço do Estado‖, a ―promoção da ciência‖, enfim, serviços que visam ao
bem da humanidade, deixando de lado as questões vitais diretamente ligadas ao bem estar
do indivíduo, como, por exemplo, o ―sentimento pela natureza e pela arte‖, a ―escolha dos
relacionamentos‖, a ―habilidade em obedecer e comandar‖, em suma, atividades como:
comer, refletir (nachdenken) e trabalhar. Nietzsche assim critica a educação enquanto
reprodutora dos moldes idealistas e reclama um modelo educacional voltado para as coisas
―mínimas e mais cotidianas‖:
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Já Sócrates se defendia com todas as forças contra essa orgulhosa
negligência das coisas humanas em nome do ser humano, e gostava de
lembrar, com uma frase de Homero, a área e o conteúdo reais de toda a
preocupação e reflexão: é aquilo é somente aquilo, dizia ele, ―que em
casa me sobrevém, de bom e de ruim‖ (WS/AS § 6).
Além de espírito livre, Sócrates é também lembrado por se preocupar com as coisas
próximas e, portanto, humanas. Outras passagens, como, por exemplo, o § 72 de WS/AS,
ressalta a alegria da ironia ática como auxiliar inerente à missão socrática, o que corrobora
com a passagem de JGB/BM § 191, em que Sócrates é descrito como: ―(...) grande irônico
rico em mistérios‖, enfim, para respondermos a questão: por que Sócrates é citado como
espírito livre? Devemos levar em consideração, dentre outras coisas, o professor apolínio e
a atitude irônica.
Tais testemunhos sobre Sócrates revelam as nuances do pensamento nietzschiano,
que vai se construindo em meio à diversidade de personagens e conflitos que o próprio
Nietzsche vai estabelecendo no decorrer dos seus livros. Numa perspectiva deleuziana,
para a qual, ―(...) Cada personagem tem vários traços, que podem dar lugar a outros
personagens, sobre o mesmo plano ou sobre um outro: há uma proliferação de
personagens conceituais‖ (DELEUZE; GUATARI, 1992, p. 100). Sócrates teria sido um
dos mais intrigantes e dinâmicos personagens conceituais retratados por Nietzsche,
destarte, desde já, compete ressaltar, que embora personalidades como Sócrates e Voltaire 70
sejam, nesse momento do pensamento nietzschiano, retratados como ―espíritos livres‖,
posteriormente o mesmo inverte sua concepção, concluindo que não existem e nunca
existiram ―espíritos livres‖. A este respeito é conveniente citar uma passagem do prólogo
da obra em discussão acrescido na primavera de 1886:
Foi assim que há tempos, quando necessitei, inventei para mim os
―espíritos livres‖, aos quais é dedicado este livro melancólico-brioso que
tem o título de Humano, demasiado humano: não existem esses ―espíritos
livres‖, nunca existiram – mas naquele tempo, como disse, eu precisava
deles como companhia, para manter a alma alegre em meio a muitos
males (doença, solidão, exílio, acedia, inatividade): como valentes
confrades fantasmas, com os quais proseamos e rimos (...) (MA I/HH I
―Prólogo‖ § 2).
No § 221 de MA I/HH I, Nietzsche destaca que Voltaire foi o ultimo grande escritor que no tratamento da
prosa oratória teve ouvido grego, consciência artística grega e simplicidade e graça gregas, além de reunir em
si a suprema liberdade do espírito e uma mentalidade decididamente não revolucionária, sem ser covarde ou
inconsequente.
70
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233
Convém evidenciar que no período em que escreveu Humano, demasiado humano
Nietzsche encontrava-se doente e solitário, o que não descarta o fato de ter inventado os
―espíritos livres‖ como uma espécie de ―interlocutores terapêuticos‖ que o ajudaram a
suportar a própria doença. A esse respeito Nietzsche prescreve em Ecce homo: ―Tomei a
mim mesmo em mãos, curei a mim mesmo: a condição para isso – qualquer fisiólogo
admitirá – é ser no fundo sadio‖ (“Por que sou tão sábio‖ § 2). Levando em consideração,
conforme assegura o próprio Nietzsche, que os espíritos livres não passaram de
―interlocutores terapêuticos‖, acreditamos que tal comparação é apenas um anestésico, em
outras palavras, a liberdade socrática descrita por Nietzsche não passou de um momento de
―descanso‖ ou ―cura‖ do próprio Nietzsche que restabelecia suas forças, para usar a
linguagem de Deleuze, o espírito livre de Sócrates foi um ―personagem conceitual‖ criado
por Nietzsche para tornar a sua própria existência mais agradável, o que não deixa de ser
intrigante e passível de outras interpretações.
Deixando de lado os motivos que levaram Nietzsche a inventar os espíritos livres,
nos deparamos com imagens antagônicas que revelam a dinamicidade do pensamento
nietzschiano ao longo de sua produção intelectual, fator que revela a abrangência do seu
pensamento e a necessidade de compreender o corpus da obra nietzschiano, que de modo
algum deve ser fragmentada para servir de base a interpretações tecnicistas do seu
pensamento.
Considerações finais
A principal dificuldade para classificar Sócrates como ―espírito livre‖ reside na
aparente assertiva de que os espíritos livres possuem uma postura antimetafísica e Sócrates
uma postura metafísica, haja vista que as conclusões socráticas remetem à existência de
essências imutáveis e superiores às coisas sensíveis, dê-se o caso, por exemplo, da
superioridade da alma sobre o corpo. Certamente seria um exagero fazermos da metáfora
nietzschiana uma máxima para compreender sua imbricada relação com o filósofo
ateniense, contudo, não podemos ignorar que algo de Sócrates despertou certa
consideração em Nietzsche, caso contrário, o mesmo não seria vinculado aos espíritos
livres.
Consideradas em conjunto as imagens de Sócrates descritas por Nietzsche nos
revelam um Sócrates mórbido e fisiologicamente degenerado com relação aos instintos. A
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principal característica que nos permite melhor compreender a analogia nietzschiana
encontra-se no estilo argumentativo adotado por Sócrates, de clara oposição ao
dogmatismo filosófico, uma vez que o filósofo ateniense demonstra prontidão em acolher a
dúvida como meio elucidativo para construir o conhecimento, não se prendendo em
certezas indefectíveis na construção argumentativa da filosofia. Embora o procedimento
filosófico de Sócrates não seja dogmático, boa parte de suas conclusões são estritamente
dogmáticas e metafísicas, por isso, no que se refere às ―verdades filosóficas‖ construídas
por Sócrates é insustentável a metáfora com os espíritos livres.
Enfim, visto isoladamente Sócrates poderia ser descrito como um personagem da
mais alta estima nietzschiana, o que seria um erro gravíssimo considerando o conjunto da
obra, na qual Sócrates aparece como símbolo máximo da decadência e da mais alta
morbidez entre os homens. Por isso, acreditamos que uma maneira plausível de
compreender a metáfora nietzschiana, que vincula Sócrates aos espíritos livres, seja através
da passagem do § 2 do ―Prólogo‖ de MA I/HH I, na qual Nietzsche nega a existência real
dos espíritos livres, que lhe serviram de interlocutores terapêuticos durante um período de
doença.
Referências bibliográficas:
DELEUZE G. e GUATARRI. F. O que é filosofia? Trad.: B. Prado Jr. e A. A. Muñhoz. 34
ed. Rio de Janeiro: 34, 1992.
NIETZSCHE, W. F. Além do Bem e do Mal – prelúdio a uma filosofia do futuro. Trad.: P. C.
de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
___________. Ecce Homo. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2005.
___________. Humano, demasiado humano – um livro para espíritos livres. Trad.: P. C. de
Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
___________. Humano, demasiado humano II – um livro para espíritos livres volume II.
Trad.: P. C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
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A MODERNA ALEGORIA DA CAVERNA
Elizandra Bruno Sosa
Universidade Estadual do Oeste do Paraná-UNIOSTE
[email protected]
RESUMO: O Presente trabalho tem como foco estabelecer relações, pontos de encontro
entre os textos filosóficos e literários, apontar elementos possíveis e analogias entre
literatura e filosofia. Como elemento comum dos textos temos a metáfora da visão, como
referências serão usadas a alegoria da Caverna de Platão e o romance Ensaio sobre a Cegueira
de José Saramago. Evidencia-se neste texto a distinção entre o olhar e o ver advindos de ambas
as obras. Olhar neste caso é meramente o funcionamento do órgão sensitivo atribuído ao
ser humano; já o ver é o resultado de um olhar cuidadoso, apurado. Tem-se uma crítica à
sociedade atual, essa escrava da cultura audiovisual, trazida à tona pelo escritor português
José Saramago.
Palavras-chave: Ver. Cegueira. Caverna. Metáfora. Alegoria.
Particularmente a paixão pela literatura e o compromisso acadêmico com a filosofia
induz muitas vezes a enxergar pontos de convergência entre as duas. É comum nos
depararmos com literaturas e incondicionalmente tentarmos ligar à filosofia. E nesse caso,
explicitamente, ao ler as obras do escritor português José Saramago71 - isso se faz quase que
necessário - é por sua sobriedade e forma de prender à história, que suas obras parecem
não serem feitas para pessoas de extrema fragilidade, no entanto, é impossível terminar a
leitura sem se sensibilizar. Não é permitido alívio até que a história acabe, e quando se
acaba, particularmente, me encontro em um estado de desassossego.
As obras citadas acima possuem em comum um tratado sobre a visão. Em ambas
não é uma afirmação unicamente como ser dotado de olhos. No romance temos a
distinção entre o olhar e o ver; sendo o segundo dotado do verdadeiro sentido: o mais
apurado e cauteloso.
Discorrerei um breve resumo do texto filosófico e do literário: com a Alegoria da
caverna que se encontra no livro VII da República de Platão e o Ensaio sobre a cegueira de José
Saramago. A primeira obra citada é constituída por um diálogo entre Sócrates e Glauco:
José Saramago nasceu em 1922 na província do Ribatejo, Portugal. Filho de agricultores, foi serralheiro,
desenhista, funcionário público, tradutor e jornalista. Romancista, poeta e teatrólogo, ganhou o prêmio Nobel
da literatura, em 1988. Morreu em 18 de junho de 2010.
71
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imaginemos seres humanos que desde que nasceram, vivem em uma caverna, acorrentados
de forma que só podem ver o que há diante deles. Nessa caverna há uma entrada para a luz
que chega de uma fogueira acessa numa colina detrás deles; entre a fogueira e os
prisioneiros, passa uma estrada, e ao longo da mesma passam homens com os mais
variados objetos. Esses sujeitos nada vêem além de sombras projetadas na parede da
caverna pelo fogo e tomam como objetos reais as sombras. Considerando que um dos
prisioneiros se liberte e é ―curado‖ de sua ignorância:
Considera agora o que lhes acontecerá, naturalmente, se forem libertados
das suas cadeias e curados de sua ignorância. Que se liberte um desses
prisioneiros, que seja ele obrigado a endireitar-se imediatamente, a voltar
o pescoço, a caminhar, a erguer os olhos para a luz: ao fazer todos esses
movimentos sofrerá, e o deslumbramento impedi-lo-á de distinguir os
objetos de que antes via as sombras (...) (PLATÃO, 2004, p. 226).
No Ensaio sobre a cegueira temos uma história alegórica que não se passa em nenhum
lugar e com pessoas sem nome, é uma história universal e os personagens se distinguem
por características como: ―o médico‖, ―a mulher do médico‖, ―a rapariga de óculos‖, ―o
velho de venda preta‖, entre outros. Nome, endereço, profissão são rótulos os quais nos
reconhecemos e somos conhecidos, mas são irrelevantes quando todos se fazem cegos.
A história começa com carros em um semáforo a espera do sinal verde, e quando
há condições de seguir, o primeiro da fila permanece parado; os outros motoristas buzinam
e uma situação estressante se desenvolve - o barulho estrondoso e pessoas batendo nos
vidros - até que alguém consegue abrir uma porta e o motorista diz: ―Estou cego‖. A
cegueira é descrita ―como se nadasse naquilo a que chamara mar de leite‖ (SARAMAGO,
2008, p.14). A ―treva branca‖ que assalta esse primeiro cego vai se espalhar pela cidade e
haverá uma única pessoa que não será afetada: ―a mulher do médico‖. A epidemia de
cegueira ocorre sem se saber a causa, a solução encontrada pelas autoridades é a
quarentena; os homens numa situação dessa passam a agir de forma mesquinha, egoísta e
injusta; todos os valores morais e hierárquicos são negligenciados.
É uma historia com caráter abstrato mostrando a importância e a responsabilidade
de ter olhos quando todas as outras pessoas os perderam; mesmo com os olhos
perfeitamente ―normais‖ não se tem garantia de enxergar. Ter olhos não é uma garantia de
ver, pois vivemos em um mundo de cegos que se encontram no pior estado - são os cegos
que não querem ver.
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A cegueira se dá como um conjunto de representações falsas e na alegoria da
caverna, mesmo os personagens possuindo visão, são enganados pelas falsas
representações e essas mesmas, se fazem superiores às verdadeiras formas. Olhar se
caracteriza por percepção visual, uma consequência física natural dos sentidos atribuídos ao
ser humano; ver é possibilidade de observação cuidadosa, de exame daquilo que nos
aparece à vista. Entende-se melhor tais passagens pela Epígrafe do livro: ―Se podes olhar,
vê. Se podes ver, repara‖.
O objetivo do romance é causar um desconforto necessário para se pensar na
situação em que nos encontramos72. A história é agonizante tanto quanto o movimento do
prisioneiro que se liberta das amarras na alegoria da caverna: ele tem os olhos ofuscados
pela luz do Sol e não consegue de imediato fazer distinções até ele se habituar a ver os
objetos cobertos pela luz; depois disso poderá enfrentar a claridade mais facilmente e as
sombras não serão mais verdadeiras.
Na Caverna, tem-se uma espécie de dissimulação da realidade, o qual podemos
atribuir a característica de ―cego‖, ―(...) não o são apenas dos olhos, também o são do
entendimento‖ (SARAMAGO, 2008, p.213), isto é, não somente aquele sujeito que é
desprovido de visão mas também de capacidade cognitiva. O Cego no romance possui
sentido metafórico: a cegueira apresentada por Saramago pode ser encarada como um
sintoma da alienação do homem em relação a si próprio e aos outros; e a falta de clareza,
uma crítica à razão que se faz cega.
No documentário Janela da Alma (2002) o autor explica como surgiu a ideia do
livro:
(...) de repente, eu pensei: se fossemos todos cegos? E depois,
praticamente no segundo seguinte, eu estava a responder, eu respondia a
esta pergunta que tinha feito, mas nós estamos realmente todos cegos!
Cegos de razão, cegos de sensibilidade, cegos enfim, de tudo aquilo que
faz de nós não um ser razoavelmente funcional no sentido da relação
humana, mas, pelo contrario, um ser agressivo, um ser egoísta, um ser
violento, enfim, isso é o que somos. (SARAMAGO, 2002).
Nunca se esteve mais próximo da Caverna de Platão como atualmente. Em uma
sociedade totalmente visual, que faz suas projeções e está longe de ver com nitidez a
A descrição do próprio autor na apresentação do livro: "Este é um livro francamente terrível com o qual eu
quero que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrevê-lo. Nele se descreve uma longa tortura. É um livro
brutal e violento e é simultaneamente uma das experiências mais dolorosas da minha vida. São 300 páginas de
constante aflição. Através da escrita, tentei dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem
para reconhecer isso.".
72
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cegueira metafórica - um olhar sem ver. Estamos vivendo em uma sociedade com a visão
distorcida da realidade e acreditamos nas coisas que aprendemos através da cultura.
Saramago faz uma colocação que vem a esclarecer:
O que eu acho é que nós nunca vivemos tanto na caverna de Platão
como hoje. Hoje é que nós estamos a viver de fato na caverna de Platão.
Porque as próprias imagens que nos mostram da realidade de alguma
maneira substituem a realidade. (...) estamos num mundo que chamamos
Audiovisual. Nós estamos efetivamente a repetir a situação das pessoas
aprisionadas ou atadas na caverna de Platão olhando em frente, vendo
sombras, e acreditando que estas sombras são realidade. Foi preciso
passarem todos esses séculos para que a caverna de Platão aparecesse
finalmente num momento da história da humanidade, que é hoje. E vai
ser, e cada vez mais. (SARAMAGO, 2002)
A distinção que ocorre entre a alegoria e o romance é que na primeira a cegueira se
encontra dentro - da caverna - e na segunda, fora – da cultura audiovisual. Na alegoria os
prisioneiros foram habituados a enxergar apenas de uma forma – olhar – e ao se libertar
passam a ver; e tal libertação exigirá um tempo e esforço para se habituar. Já no romance, a
cegueira ocorre de forma externa: os homens se fazem cegos da visão, mas muito antes se
faziam cegos de entendimento.
Platão coloca que os olhos podem ser perturbados de duas formas: ―(...) pela
passagem da luz à escuridão e pela escuridão à luz‖. (PLATÃO, 2004, p.229)
A visão é semelhante ao Sol, sua luz fornece às coisas visíveis a capacidade de
serem vistas. De nada adiantaria ter olhos numa treva profunda. A luz do Sol é um
elemento necessário que podemos compreender de maneira semelhante à razão. ―A mulher
do médico‖ tem o papel da Razão - todos se fazem cegos e ela é a única que pode ver tendo a responsabilidade de guiar os que não enxergam: responsabilidade de ter olhos
quando os outros os perderam.
É um fardo extremamente pesado ser o único que vê quando todos outros
simulam uma cegueira; o pior do que estar cego é ser a única pessoa a enxergar em meio ao
caos. E não ver em uma sociedade totalmente visual é tido como uma desgraça:
Como toda a gente provavelmente o fez, jogara algumas vezes consigo
mesmo, na adolescência, ao jogo do E se eu fosse cego, e chegara à
conclusão, ao cabo de cinco minutos com os olhos fechados, de que a
cegueira, sem dúvida alguma terrível desgraça, poderia, ainda assim, ser
relativamente suportável se a vítima de tal infelicidade tivesse contornos,
supondo, claro está, que a dita cegueira não fosse de nascença. Chegara
mesmo ao ponto de pensar que a escuridão em que os cegos viviam não
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era, afinal, senão a simples ausência da luz, que o que chamamos de
cegueira era algo que se limitava a cobrir a aparência dos seres e das
coisas, deixando-os intactos por trás do seu véu negro. Agora pelo
contrário, ei-lo que se encontrava mergulhado numa brancura tão
luminosa, tão total, que devorava, mais do que absorvia, não só as cores,
mas as próprias coisas e seres, tornando-os, por essa maneira,
duplamente invisíveis. (SARAMAGO, 2008, p.15-16).
E ao final da história ―o primeiro cego‖ tem de volta a visão descrevendo: ―até me
parece que vejo ainda melhor do que via‖ (SARAMAGO, 2008, p.307). O médico diz o
que todos pensavam, mas não ousavam dizer em voz alta: ―É possível que esta cegueira
tenha chegado ao fim, é possível que comecemos todos a recuperar a vista.‖
(SARAMAGO, 2008, p.307). A ―mulher do médico‖ começa a chorar, supostamente por
estar contente e aliviada: estava esgotada de tanta resistência mental; ser a única a ver dava à
ela extrema responsabilidade.
Ao final do livro temos o seguinte pensamento que sintetiza o maior propósito da
história: ―Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que,
vendo, não vêem.‖ (SARAMAGO, 2008, p.308). É esse o maior caráter metafórico do
romance: a cegueira não é a deficiência física visual, somos cegos com os olhos perfeitos,
cegos que não querem ver, nos fazemos cegos de entendimento, nos cegamos da razão.
Concluímos que o texto filosófico e o literário muitas vezes convergem em suas
intenções e José Saramago nos obriga a parar, fechar os olhos e ver. Nos induz a recuperar a
lucidez em meio aos brilhos ofuscantes de nossa sociedade. Platão também nos mostra o
libertar da escuridão e nos conduz em direção à luz que nos faz distinguir as coisas; a
alegoria da caverna talvez seja a mais poderosa metáfora para descrever a situação geral dos
homens que estão tendendo a ver as sombras e tomá-las como realidade. Assim, como na
alegoria podemos concluir que estamos presos na caverna, apenas observando as distorções
da realidade, não ousamos a sair dela: somos os piores tipos de cegos, aqueles que preferem
cegar-se.
Referências Bibliográficas:
JARDIM , João ; CARVALHO , Walter . Janela da Alma . Rio de Janeiro : Copacabana
filmes , 2002 . 1 DVD (73 minutos )
PLATÃO . A República . São Paulo : Nova Cultural , 2004 .
SARAMAGO , José . Ensaio sobre a cegueira . São Paulo : Companhia das letras , 2008 .
ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia
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MARÇAL, Jairo. Antologia de textos filosóficos. Curitiba : SEED, 2009.
ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia
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CAN YOU SEE THE REAL ME, DOCTOR? APROXIMAÇÕES ENTRE
QUADROPHENIA E O RIZOMA DE DELEUZE E GUATTARI.
Evânio Márlon Guerrezi
PPG-Filosofia/UNIOESTE/CAPES
[email protected]
Dra. Ester Maria Dreher Heuser (orientadora)
RESUMO: Pretendemos nesse texto apresentar as possíveis aproximações entre o enredo
criado pela banda The Who em seu ópera-rock Quadrophenia e o conceito deleuzeguattariano de rizoma. O álbum da banda inglesa apresenta o que poderíamos compreender
como a problemática da formação do sujeito. Quando o personagem Jimmy dispara a
questão ―você pode ver o meu eu real, doutor?‖ tendo como plano de fundo a vontade de
encontrar uma unidade para si, poderíamos nos perguntar sobre a necessidade ou não dessa
unidade na formação de um sujeito. Acreditamos que Gilles Deleuze e Felix Guattari
contribuem para essa questão, quando expõem a diferenciação entre o que chamam de
modelo arbóreo e o rizoma. Jimmy, nesse sentido, parece-nos ser a expressão de uma
subjetivação rizomática, que se forma mais pela força da multiplicidade do que da unidade.
Palavras-chave: Rizoma. pensamento. multiplicidade.
O que é um rizoma?
Quando Mil Platôs é publicado em 1980, Deleuze e Guattari republicam o texto
―Rizoma‖ de 1976. A obra está dividida em platôs, os quais os próprios autores afirmam
serem independentes uns dos outros quanto a sua necessidade de leitura seriada – embora
se relacionem mutuamente. ―Rizoma‖ ocupa, contudo, o platô de número um, deixando
transparecer seu caráter de introdução à obra, não só por ser o primeiro platô, mas por dar
sinais de que a própria lógica do livro é apresentada pelo rizoma. Pretendemos desse modo,
relacionar o conceito de rizoma apresentado por Deleuze e Guattari em sua versão que
aparece em Mil Platôs (1995), com o álbum Quadrophenia da banda inglesa The Who,
acreditando ser possível encontrar relações de ressonância entre ambos.
Ao iniciarem a apresentação do rizoma, Deleuze e Guattari o fazem por meio da
problematização acerca da forma pela qual um livro é criado e com o que o livro se
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relaciona. É interessante notar como os autores dão grande importância para a relação que
o livro estabelece para além de seus próprios limites: ―não se perguntará nunca o que um
livro quer dizer, significado ou significante, não se buscará nada compreender num livro,
perguntar-se-á com o que ele funciona, em conexão com o que ele faz ou não passar
intensidades, em que multiplicidades ele se introduz e metamorfoseia a sua, com que
corpos sem órgãos ele faz convergir o seu. Um livro existe apenas pelo fora e no fora‖
(DELEUZE, 1995, p. 18). O livro nesse sentido não é onipotente, não possui sentido
algum em si mesmo, mas tão somente na potência que possui de estabelecer relações com
aquilo que lhe é externo.
Tendo apresentado essa concepção de livro, os autores procedem pela exposição de
três ―modelos‖ distintos de livro – e que podemos estender a toda forma de criação e
manifestação de modos de vida –, dos quais o rizoma se apresentará como um deles.
Inicialmente nos apresentam duas formas de ―livro raiz‖. O primeiro sendo a raiz
propriamente dita e o segundo afirmado como radícula. Esses dois modelos estão
associados à figura da árvore, por procederem por meio de um fluxo linear raiz-caulefolhas, ou seja, há uma linearidade necessária para a compreensão do livro. Assim como no
sistema cartesiano, deve-se partir do fundamento-raiz, atravessar o caule e somente então
acessar os galhos e as folhagens. O sistema-raiz é tomado por Deleuze e Guattari como o
modelo do livro clássico e se configura já como uma imagem do pensamento. Esse sistema
é movido pela existência de um Uno, de um centro, do qual o múltiplo, se existente, está
necessariamente ligado ao centro. Há toda uma relação de necessidade para com a
identidade em um sistema-raiz. ―Isto quer dizer que este pensamento nunca compreendeu
a multiplicidade: ele necessita de uma forte unidade principal, unidade que é suposta para
chegar a duas, segundo um método espiritual. E do lado do objeto, segundo o método
natural, pode-se sem dúvida passar diretamente do Uno a três, quatro ou cinco, mas
sempre com a condição de dispor de uma forte unidade principal, a do pivô, que suporta as
raízes secundárias‖ (DELEUZE, 1995, p. 19). A hierarquia é pressuposta nesse modelo de
sistema e os livros que deles surgem expressam a grande dívida para o com seu
fundamento.
Quanto ao sistema-radícula, ou raiz fasciculada, vemos que Deleuze e Guattari o
expõem como o sistema que abortou sua raiz principal e em seu lugar fez surgir uma
multiplicidade de raízes secundárias. Essa alteração, no entanto, pouco modifica a relação
do sistema-radícula para com a unidade pressuposta. Há ainda uma hierarquia subjacente.
Ela, todavia, não se encontra de maneira imediata no pensamento, mas é compreendida
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como passada ou como por vir. O livro ou a imagem do pensamento, nesse sentido, dá
sinais de um aspecto fragmentário e múltiplo, mas ainda possui uma unidade que aparece
como seu fundamento ou sua finalidade.
A esses dois modelos de livro, os quais já podemos afirmar que são como modelos
de pensamento em geral, e que por sua vezes exigem a presença de uma unidade tida como
superior, Deleuze e Guattari irão contrapor outra forma de pensamento, o rizoma. Mas o
que é um rizoma? Biologicamente, trata-se de uma espécie de caule, geralmente
subterrâneo, e que tem a capacidade de se ramificar em qualquer direção, sem estabelecer
pontos centrais. Essa noção será de grande utilidade para Deleuze e Guattari, já que
diferentemente dos sistemas árvore-raiz apresentados até então, o rizoma não será tomado
como um modelo de pensamento. Antes, é a própria reversão do modelo, outra
compreensão do cosmos que se agita contra as figuras de unidade superior. ―O que conta é
que a árvore-raiz e o rizoma-canal não se opõem como dois modelos: um age como
modelo e como decalque transcendentes, mesmo que engendre suas próprias fugas; o outro
age como processo imanente que reverte o modelo e esboça um mapa, mesmo que
constitua suas próprias hierarquias, e inclusive ele suscite um canal despótico‖
(DELEUZE, 1995, p. 42). O rizoma, tomado como conceito filosófico faz valer, ao
contrário dos modelos árvore-raiz, a força da multiplicidade e para tanto não possui
elemento superior, na medida em que todas as multiplicidades são exaltadas. Não se trata
aqui de operar por pontos de definição e identidade. Existem somente linhas de
movimento em contrapartida aos pontos. Linhas essas que parecem ser sempre inseguras,
sempre devir infinito. Temos aqui uma grande diferença do pensamento que opera por
imagem da árvore-raiz para aquele que opera por rizoma. Em uma ciência, arte ou filosofia
que demande de uma criação por pontos, temos sempre a força da unidade que opera por
meio de raiz superior. Passa-se de uma raiz à outra, mas somente com o prejuízo de quem
interrompe o movimento para apreender uma segunda unidade derivada de um
fundamento superior. Quanto à criação por linhas, diremos que essa não procede por
unidade, mas por processos, que não encontram nunca seu início e muito menos o seu fim.
O rizoma ―não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes, de direções movediças.
Ele não tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e transborda‖
(DELEUZE, 1995, p. 43).
Desse modo, acreditamos que nosso excêntrico personagem Jimmy, que será
apresentado adiante, procede por rizoma, que tem na sua própria vida a forma rizomática
de ser. Jimmy é processo e mais n processos. A linha ao invés do ponto.
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O que é “Quadrophenia”?
Quadrophenia é uma doença ou apenas um sintoma inevitavelmente natural de
toda a lógica da imanência? Disso pouco se sabe. Sabe-se apenas que Quadrophenia,
enquanto ―álbum conceitual‖ criado por The Who, surge em 1973 e está sim associado à
esquizofrenia – ainda que por uma concepção com embasamento pouco científico. Todo o
álbum, que veio a virar longa metragem em 1979, está baseado na história de Jimmy. As
informações que temos e que aparecem no próprio encarte do álbum revelam-nos que o
personagem padece de quadrophenia, um ―distúrbio‖ de personalidade múltipla, que no
caso em questão são quatro. Desse modo, cada membro do The Who empresta a Jimmy
sua própria personalidade, transformando-o na própria quimera em meio a um mundo de
identidades. Vejamos a descrição das quatro personalidades, as músicas que a apresentam e
a quais membros pertencem:
Helpless Dancer - Um cara durão, um dançarino incapaz. Roger Daltrey.
Is It Me? Um romântico, sou eu por um momento? John Entwistle.
Bell boy - Um maldito lunático, eu até mesmo carrego tuas malas. Keith Moon.
Love Reign O‟er Me - Um mendigo, um hipócrita, amor, reine sobre mim. Pete
Townshend.
Interessa-nos pouco, no entanto, saber desse empréstimo de personalidades, que é
usado pela banda apenas como um trunfo para deixar mais clara a quadrophenia do
personagem. O que se mostra como objeto de nosso interesse é a relação entre Jimmy, sua
quadrophenia e as relações de identidade presente no mundo que o cerca, bem como as
exigências de uma única identidade em nossa sociedade que opera pela lógica arbórea,
fazendo com que ele mesmo deseje uma identidade, uma unidade superior pela qual possa
se definir.
A pergunta mais importante: o que se passa com Jimmy?
O que se sabe do personagem é que se assume como um Mod, abreviatura para
Modernismo, movimento cultural popularizado principalmente no Reino Unido dos anos
sessenta. Os mods por sua vez, ou ao menos na concepção de Jimmy, possuem um laço de
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fraternidade que os liga e os define enquanto os distingue do resto da população. A
vestimenta refinada, o estilo musical e os lugares comuns frequentados pelos mods são
fortes elementos para criar essa relação entre os membros. Se Jimmy sofre de
quadrophenia, sua relação para com o movimento Modernista parece ser aquilo que ele
mesmo compreende como sua cura. Ser um mod é a unidade que faltava em sua vida.
Ao longo do álbum como também do longa-metragem somos apresentados aos
variados aspectos das personalidade de Jimmy. Em The Real Me, segunda faixa do álbum,
Jimmy vai para o que parece ser uma nova consulta ao psiquiatra. Daí surge a questão que
irá atravessar todo o enredo: ―Você pode ver meu ‗eu‘ real, doutor?‖. Essa necessidade de
Jimmy por uma identidade percorrerá todo o álbum. Já quase ao final em Doctor Jimmy, por
exemplo, nosso personagem se pergunta se aquele seria ele por um momento. Pois bem, e
como explicar a relação de Jimmy, um quadrophenico que deseja a todo custo encontrar
sua identidade? Jimmy não é uma árvore. Árvores são apenas efeitos de uma lógica mais
subterrânea. Jimmy é um rizoma, o que quer dizer que é quase impossível dizer o que
Jimmy é. Jimmy é devir? Muito provavelmente um singular devir de processos de
subjetivação. É a própria expressão de uma subjetividade rizomática. A história do rizoma
não é, entretanto, a história de uma convivência pacífica com seus diferentes. Deleuze e
Guattari afirmam que a história foi sempre contada a partir da lógica da árvore-raiz,
configurando-se, como dotada de uma unidade fundante e fundamental (DELEUZE,
1995, p. 46). Ora, Jimmy nada mais é do que um rizoma em um mundo que supõe árvores,
daí toda a necessidade que sente por se afirmar como um indivíduo definido e indivisível.
Se enquadrar na subcultura Mod torna-se um subterfúgio para ele.
Jimmy, para nós, enquanto subjetividade rizomática é a própria relação com o fora.
As personalidades de Jimmy só podem surgir por conta de uma sensibilidade apurada para
aquilo que lhe acontece na vida. Nesse sentido devemos ainda traçar uma diferença
significativa quanto ao rizoma e a árvore-raiz. Na perspectiva arbórea, a quadrophenia de
Jimmy será tratada como uma doença, um distúrbio que tem origem em uma série de
sobrecódigos de poder. A genética da mãe, a relação familiar ou mesmo um fato da infância
pode se afigurar como fonte do distúrbio, que deve ser tratado a fim de que Jimmy
restabeleça aquilo que é de mais normal na sociedade contemporânea: sua identidade
subjetiva. Na perspectiva do rizoma, no entanto, a quadrophenia do personagem pode ser
compreendida como algo até mesmo afirmativo, como uma potência criadora. Jimmy é
expressão da multiplicidade porque a unidade é algo de muito pobre. Se são quatro
personalidades que operam em Jimmy, é porque sua vida é algo de muito grande.
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Jimmy é um processo, e ao final, ele próprio se aproxima dessa compreensão.
Mesmo no movimento Mod, encontra a figura do negativo. Percebe que se trata de uma
espécie de afirmação demasiadamente negativa – para ser um mod é necessária a negação
de uma série de outros aspectos de sua vida. É assim que Jimmy opta por um suicídio
simbólico, destronando o poder da unidade de sua vida. Não há mais um início nem uma
finalidade para a vida, só existem rizomas. ―Um rizoma não começa nem conclui, ele se
encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o
rizoma é aliança, unicamente aliança. A árvore impõe o verbo ―ser‖, mas o rizoma tem
como tecido a conjunção ―e... e... e...‖ Há nesta conjunção força suficiente para sacudir e
desenraizar o verbo ser. Para onde vai você? De onde você vem? Aonde quer chegar? São
questões inúteis‖ (DELEUZE, 1995, p. 48-49).
Acreditamos, portanto, ser possível afirmar que Jimmy está muito mais próximo de
uma subjetivação rizomática do que de uma arbórea. E se tínhamos como questão
motivadora a pergunta ―você pode ver o meu eu real, doutor?‖, parece-nos agora que a
resposta para essa pergunta não pode ser dada a Jimmy em forma de um ponto de
definição. Quando Deleuze e Guattari problematizam o verbo ―ser‖, parecem estar
trabalhando justamente nesse nível. A resposta que em geral se busca é a que procede em
forma de ponto, que define e que entrega uma unidade. O verbo ser é usado, desse modo,
como forma de linguagem útil ao sistema-árvore. Mas a resposta mais interessante a ser
dada para Jimmy exige que o verbo em questão se torne algo outro que não o anunciante
de uma identidade. É preciso que ele sabote a unidade, que exprima processos, que dê
conta das linhas: Jimmy é um rizoma. Não há a necessidade de que o personagem se
reencontre com uma unidade quando visita seu psiquiatra. Pelo contrário, ao configurar-se
como um sistema aberto, em constante relação com aquilo que lhe é externo e incapaz de
encontrar uma unidade sólida, o rizoma permite a Jimmy a constituição de uma
subjetividade que se dá na multiplicidade. Assim ele pode ser Helpless Dancer e Is It Me? e Bell
boy e Love Reign O‟er Me e.... e.... e...
Referências Bibliográficas:
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. Tradução de
Ana Lúcia de Oliveira, Aurélio Guerra Neto e Celia Pinto Costa. São Paulo: Ed. 34, 1995.
QUADROPHENIA. Direção: Franc Roddam. (S.I), The Who Films, 1979.
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WHO, The. Quadrophenia. Londres: MCA Records, 2011. CD.
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A HISTÓRIA DA EJA, A ALFABETIZAÇÃO E A FILOSOFIA
Francisco Luna Pereira
CTESOP, [email protected]
Orientador: Hélio Clemente Fernandes
SEED/CTESOP, [email protected]
RESUMO: Este estudo apresenta como ponto inicial a alfabetização arraigada num Brasil
Colônia, onde a Igreja Católica ocupava papel preponderante nas questões educacionais.
Nesta perspectiva, busca-se compreender o processo de educação para jovens e adultos a
partir da história. Os cursos de capacitação e as especializações são espaços em que o
debate, a leitura corroboram com o aprofundamento desta temática em pauta. Destaca-se,
dentro deste panorama, o livro: A Ação Cultural para a Liberdade de Paulo Freire que serve
como fundamentação teórica. Enseja-se, desta forma, apresentar um pouco das inúmeras
reflexões referentes à alfabetização de jovens e adultos. Objetiva-se que esta pesquisa
contribua para que a EJA seja uma ferramenta em favor dos jovens e adultos para que
saibam ler, escrever, interpretar e atuar de modo filosófico na sociedade do capital.
Palavras-chave: Sujeito crítico. Alfabetização. Educação. EJA. Emancipação.
Introdução
Esta pesquisa tem como enfoque às práticas da Educação de Jovens e Adultos
(EJA), ou seja, os inúmeros métodos de aprendizagem que foram surgindo ao longo do
desenvolvimento do sistema educacional do nosso país.
A partir de Álvaro Vieira Pinto compreende-se que ―na forma elementar, ingênua, a
educação é considerada como o procedimento de transformação do não-homem em
homem. Na forma superior, crítica, a educação se concebe como um diálogo entre dois
homens, na verdade entre dois educadores‖ (1997, p. 35). Essa relação dialógica precisa
ocorrer entre aqueles que com experiências de vida voltam aos bancos escolares e os
trabalhadores em educação que se dedicam nesta modalidade de ensino. Neste sentido,
com base na afirmação de Paulo Freire assinala-se para a relevância do trabalho enquanto
um princípio educativo: ―(...) o processo do trabalho é o verdadeiro processo de educação.
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Mas o homem que vive hoje em dia mergulhado na sociedade de consumo não entende as
coisas claramente‖ (1982, p. 24). Desvela-se, deste modo, o compromisso técnico e político
que o docente precisa ter ao trabalhar na Eja. Com uma formação filosófica sólida terá
condições de decodificar juntamente com os estudantes da Eja os mecanismos que regem a
sociedade.
No desenvolvimento deste trabalho, primeiramente, será realizada uma breve
abordagem da História da EJA no Brasil, como foi seu surgimento e as várias etapas e
transformações que houve desde o colonialismo passando pelo o império até chegar aos
dias de hoje. Registram-se as dificuldades da época colonial onde quem promovia a
Educação de Jovens e Adultos era a Igreja Católica. Mais tarde, no período imperial era
premente o preconceito contra o analfabeto que, por sua vez, era desconsiderado por
todos. No séc. XX, com influências tecnicistas, os cursos de Supletivos de várias formas
pedagógicas foram instituídos e perduraram até os anos 90, aonde é substituído pela
instauração da Educação de Jovens e Adultos (Eja) que perdura na atualidade.
Num segundo momento é apresentada a problematização da educação na Eja,
colocando em mostra as dificuldades dos professores com estes alunos que precisam de um
ensinamento específico. Nesta parte, analisa-se a relevância da alfabetização e da formação
filosófica do estudante da Eja para a sua participação na sociedade.
A história da Eja no Brasil
A Eja é uma modalidade de ensino, amparada por lei e voltada para pessoas que
não tiveram acesso ao ensino regular, na idade apropriada, de acordo com o consenso
estabelecido pela sociedade. No entanto, suas origens remontam à colonização do Brasil e
o trabalho jesuítico:
(...) destaca-se que as primeiras iniciativas de educação de Jovens e
Adultos aconteceu com a intervenção dos missionários da Igreja Católica
que chegaram ao Brasil e que vieram para evangelizar. A educação nesta
fase confunde-se com a catequização e seus interesses intrínsecos.
(FERNANDES, 2012, p. 267-268).
Para tornar possível a catequese os padres jesuítas se empenharam na alfabetização
dos nativos. Nesta época evangelização e educação caminharam juntas. Pode-se dizer que a
influência dos missionários influenciou e influencia até os dias atuais.
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Cumpre registrar que o olhar educacional, no momento da colonização, é pautado
pelo viés do colonizador. Por conseguinte, não podemos deixar de explicitar que ―os
portugueses trouxeram um padrão de educação próprio da Europa, o que não quer dizer
que as populações que por aqui viviam já não possuíam características próprias de se fazer
educação‖ (BELLO, s/d, p. 1). Logo, a história da educação brasileira liga-se com a
evangelização e, também, com o desrespeito ao nativo (herdeiro legítimo das terras do
Brasil).
Em linhas gerais, a história da educação brasileira passa pelo período jesuítico
(1549-1759), politicamente ajustado ao ideal de combate ao protestantismo e com o
objetivo de concretizar ―toda glória para Deus‖. No entanto, se o referencial dos jesuítas
era a fé, o mesmo não ocorria com a corte portuguesa. Para Pombal o que importava era o
lucro. A razão de ser de uma colônia era oferecer vantagens econômicas para a sua
metrópole. Por isso, o período pombalino (1760-1808) representou o ―fazer com menos
propagado na atualidade‖. Com pífios investimentos Pombal visou tornar a escola um
―braço do Estado‖ (Durkheim). Costuma-se assinalar que neste período foi derrubado o
que tinha e nada foi posto no lugar. Com a vinda da Família Real temos o período joanino
(1808-1821), onde melhorias foram apresentadas: ocorre no Brasil à criação do Jardim
Botânico, a Biblioteca Real. Porém, no país tido com vocação para a agricultura a educação
continuava a ocupar um plano subalterno. A questão econômica tinha preponderância
sobre o âmbito educacional: ―(...) a abertura dos portos, além do significado comercial da
expressão, significou a permissão dada aos brasileiros (madeireiros de pau-brasil) de tomar
conhecimento de que existia, no mundo, um fenômeno chamado civilizaçõa e cultura‖
(LIMA, 1969).
Na época do período Imperial (1822-1888) temos o Artigo 179 que determinava:
―instrução primária é gratuita para todos os cidadãos‖. Vale recordar, contudo, que poucos
eram designados como cidadãos nesta época. O ―museu de coisas novas‖ na área da
educação chegou ao século XX. Muitas coisas copiadas do exterior, extintas quando
exitosas e bem recebidas pela população. Repetem-se os eternos reclames dos números de
analfabetos e que a educação não é levada a séria no Brasil. Intencionalmente é feito de
tudo para que a classe trabalhadora não se compreenda enquanto classe. Basta analisar o
que aconteceu em 1961 com a iniciativa de Paulo Freire que propunha alfabetizar o povo
em apenas 40 horas. Pelo fato de haver educação com politização o método Paulo Freire
foi considerado ―comunizante e subversivo‖, e, portanto, posteriormente abortado.
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Assim sendo, feito estas considerações, num passado recente, observa-se a
implantação do Ensino Supletivo em 1971 com base na Lei 5.692, no intuito de golpear
todas as tentativas de se revolucionar a educação brasileira. O ano de 1971 constitui-se num
fato histórico para os anais da Eja do Brasil. Campanhas progressistas do tipo: ―De pé no
chão se aprende a ler‖ e tantas outras iniciativas foram suprimidas pelo Regime Militar, a
Eja adquire oficialidade pela primeira vez na sua história. Foi organizado um capítulo
exclusivo sobre esta modalidade da educação expresso na Lei nº 5.692/71: ―O artigo 24
desta legislação estabelecia com função do supletivo supri a escolarização regular para
adolescentes e adultos que não a tenham conseguido ou concluído na idade própria‖
(VIEIRA, 2004, p.40). Além da questão da alfabetização o povo recebia formação política.
Sujeitos politizados incomodam e a temática do momento político que o país vivia rendeu
muitas reflexões. O movimento brasileiro de Alfabetização (MOBRAL) tinha como
objetivo se contrapor a todas as iniciativas progressistas que se alardeavam pelos campos
do país.
Em todo o território brasileiro, foram criados os Centros de Estudos Supletivos,
tendo como objetivo ser o modelo de educação no futuro, visando atender a necessidade
de um processo de modernização. Suprindo a falta de mão de obra qualificada no mercado
de trabalho, visando escolarizar o maior número de pessoas, mediante a um baixo custo
operacional.
O sistema não requeria frequência obrigatória e a avaliação era feita em dois
módulos: uma interna ao final dos módulos e outra externa feita pelos sistemas
educacionais. Contudo, a metodologia adotada gerou alguns problemas: o fato de os cursos
não exigirem frequência fez com que os índices de evasão fossem elevados; o atendimento
individual impediu a socialização no mercado de trabalho. O estudante teve restringida a
busca apenas do diploma sem conscientização da necessidade do aprendizado, do estudar
constantemente para a vida.
A alfabetização e a filosofia
Quem atua no ―chão da escola‖ percebe facilmente a problemática da evasão
escolar. Além disso, as estatísticas apontam uma parcela considerável da população que
quase não teve a oportunidade de frequentar os ―bancos escolares‖. Sem ater-se nas causas
(que são inúmeras) o fato é que a quantidade de estudantes que precisam da modalidade de
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Educação de Jovens e Adultos (Eja) é crescente e aumenta diuturnamente. Ao lado do
crescimento da demanda por vagas é importante a ampliação da qualidade educacional que
passa necessariamente pelos estudos filosóficos.
Certamente, o modo de ensino na Eja é diferenciado. Trata-se de estudantes com
responsabilidades, pais, mães, trabalhadores, que na sua maioria almejam recuperar o
tempo perdido. Destarte, o professor que se dedica nesta modalidade da educação carece
aprofundar-se no conhecimento dos eixos que direcionam o trabalho educacional na Eja
que é o tempo, o trabalho, a cultura. Nesta esteira, pesquisadores apontam a necessidade de
formação específica de formação docente aos trabalhadores da educação que visam
laboram neste âmbito da educação. As universidades, as faculdades, os responsáveis em
preparar os professores da educação básica, necessitam estarem atentos a essa realidade,
pois ―Aprender a ler e escrever de forma autônoma é um direito que precisa ser assegurado
a todos‖ (LEAL, ALBUQUERQUE e MORAIS, 2010, p 24). Sem este entendimento
conceitual, corre-se o risco dos estudantes Jovens e Adultos serem tratados como criança, o
que é - no mínimo - inadmissível. A filosofia ao lidar com o conceito, neste sentido, pode
contribuir.
De acordo com Paulo Freire a alfabetização do estudante da Eja não pode ser uma
prática mecânica, dogmática, sem motivação, sem encanto e descolada com uma concepção
filosófica de mundo. De modo envolvente o docente tem que conquistar a atenção de seus
discentes para um fazer pedagógico dinâmico, comprometido, enobrecedor, com a
finalidade de emancipação do ser social. ―Por essa razão, não acreditamos nas cartilhas que
pretendem fazer uma montagem de sinalização gráfica como uma doação e que reduzem o
analfabeto mais à condição de objeto de alfabetização do que de sujeito da mesma
(FREIRE,1979, p.72)‖. Acrescenta-se, também, que a alfabetização não pode ocorrer de
cima para baixo. Afinal, platonicamente, sabemos que ―a educação não se impõe, se
desperta‖. Logo, o docente precisa contribuir para que de dentro para fora o saber do
discente floresça. Este método filosófico faz do professor um estudante e vice-versa.
Neste processo de comunhão ambos apreendem e ensinam.
Considerações finais
O processo de educação da Eja está em pleno desenvolvimento. A atuação de
professores que procuram aprimorar-se constantemente: no planejamento das aulas, no
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estudo sistemático dos textos filosóficos, na sistematização de conceitos etc. A Filosofia é
fundamental para a construção e desenvolvimento dos estudantes da Eja. Certamente, para
o professor potencializar sua prática na Eja ele precisa de embasamento teórico, filosófico e
metodológico. Além disso, favorece o trabalho docente as políticas pedagógicas e a
liberdade de desenvolver sua práxis educativa. É sabido que os estudantes da Eja
demandam especificidades no processo de ensino-aprendizagem. Alguns adultos nunca
estiveram numa escola e não podem aprender como as crianças e, sim, dentro da sua
realidade, da sua vivência. Por sua vez, os mais jovens que pararam de estudar por algum
motivo também carecem de uma preparação mais atenciosa. Não se pode olvidar, que
alguns jovens são impacientes e precisam de apoio pedagógico para não desistir.
No Brasil existem docentes comprometidos com a Eja e que escrevem e deixam
suas obras como um legado para as novas gerações de trabalhadores em educação. Neste
panorama, cita-se o professor Paulo Freire, que escreveu inúmeros artigos, livros
imprescindíveis para quem almeja compreender a Eja e a educação na sua totalidade. A
visão de Paulo Freire acerca da educação é amorosa, encantadora. Com seu trabalho, Paulo
mostrou o quanto é importante saber ler e escrever para o exercício da nossa liberdade de
pensar/filosofar, de viver.
Envolve, também, o esclarecimento das relações que porventura possam existir
entre o processo educacional e outros processos que, à primeira vista, parecem ser seus
parentes chegados: doutrinação, socialização, aculturação, treinamento, condicionamento,
etc. Uma análise que tenha por objetivo o esclarecimento do sentido dessas noções, dos
critérios de sua aplicação, das suas implicações, e da sua relação entre si e com outros
conceitos educacionais é tarefa da filosofia da educação e é condição necessária para a
elucidação do conceito de educação.
Referências Bibliográficas:
ALBUQUERQUE, Eliana Borges Correia de; LEAL, Telma Ferraz, MORAES, Artur
Gomes de. Alfabetizar Letrando Na EJA: fundamentos teóricos e formas didáticas /organização. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2010.
BELLO, José Luiz de Paiva. Educação no Brasil: a História das rupturas. Site: <
HTTP://www.pedagogiaemfoco.pro.br/heb14.htm > Acesso em 11/03/2013. Ano 2001.
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FERNANDES, Hélio Clemente. Algumas considerações sobre a educação de jovens e adultos. In:
Simpósio de Pesquisa Estado e Poder, III. :2011: Marechal Cândido Rondon. Processos de
Construção de hegemonia no Brasil contemporâneo: Anais. Cascavel, PR: Edunioeste,
2012.
FREIRE, Paulo. Ação Cultural Para A Liberdade E Outros Escritos. Rio de Janeiro: Paz E
Terra S/A, 1976.
___________. Educação E Mudança. Tradução Moacir Gadotti e lillam Lopes Martins.Rio
de Janeiro: Paz E Terra,1979.
___________. Trabalho e Mercadoria, São Paulo: Editora Loyola, 1982.
LIMA, Lauro de Oliveira. Estórias da educação no Brasil: de Pombal a Passarinho. Rio de Janeiro:
Brasília, 1969.
PINTO, Álvaro Vieira. Sete Lições Sobre Educação de Adultos. Introdução e entrevista de
Demerval Saviani e Betty Antunes de Oliveira: versão final revista pelo autor. São Paulo:
Cortez, 1997.
SAVIANI, Dermeval. Educação: do senso comum à consciência filosófica. São Paulo: Cortez,
1980.
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APONTAMENTOS SOBRE A TEORIA DA ALIENAÇÃO NO JOVEM MARX
Gerson Lucas Padilha de Lima
UNIOESTE/CAPES - CNPq
[email protected]
Dr. Rosalvo Schutz
RESUMO: O propósito do estudo é investigar os significados da teoria da alienação no
pensamento do jovem Marx. Para Marx a teoria da alienação é pensada a partir da noção
do trabalho. O trabalho é atividade vital produtiva que intermedeia a relação do homem
com a natureza, pelo qual, este produz os meios de produção e subsistência, além de
desenvolver suas potencialidades físicas e mentais. Porém, no capitalismo, seu exercício é
responsável pela alienação do homem e, por conseguinte, sua transformação em
mercadoria. O plano geral, é evidenciar como Marx rompe com a perspectiva hegeliana do
Estado Ético, avança nos debates sobre os temas da emancipação política e humana, até
que ao se confrontar com o pensamento da economia política nos Manuscritos econômicoFilosóficos, desenvolve os fundamentos ontológicos e históricos da alienação.
Palavras-chave: Marx, Trabalho, Alienação.
As tendências filosóficas e as experiências políticas dominantes na época da Marx e
as que o precederam, se incluem como motivações teóricas e práticas nas quais o autor se
apropriou para tematizar o estatuto da teoria da alienação em seus escritos juvenis. No
âmbito prático, presenciou e participou dos movimentos sociais e políticos do século XIX
na Alemanha e Inglaterra; e no âmbito teórico, foi influenciado pelo idealismo de Hegel, o
materialismo de Feuerbach, e pelos economistas políticos da Inglaterra: David Ricardo e
Adam Smith.
A tematização mais importante para a compreensão da teoria da alienação de Marx
até 1843 está na obra Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. No linear da análise do Estado,
Marx faz a crítica ao caráter especulativo da filosofia do direito e do Estado de Hegel. Para
ele, a ―ideia‖ de vontade manifestada de forma concreta no Estado, encarnada na soberania
do rei, é o momento ético unificador entre os fins particulares e universais da sociabilidade
humana. Por essa razão o Estado é a instância onde predominam os interesses universais
que, por intermédio das leis e de suas instituições, realizam e dão racionalidade,
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objetividade e substância ética às vontades particulares dos indivíduos situados na
sociedade civil. Nas instituições se opera a unidade, sendo que, por um lado, se forma a
consciência do universal que nasce dos fins particulares e, por outro, como nas
corporações, se tem garantido o direito da atividade dirigida ao universal. Em Hegel, o
conceito, a ideia ou as categorias lógicas, em vez de reconstruírem idealmente o movimento
do objeto real, acabam por constituí-lo, tornando-se sujeitos que tudo movimentam. O que
Marx propõe é buscar a lógica específica do objeto específico. No entanto, ao invés de
Hegel buscar a ―lógica da coisa‖, buscou a ―coisa da lógica‖, de maneira que ―a lógica não
serve para justificar o Estado, ao contrário, é o Estado que serve para justificar a lógica‖
(MARX, 2005, p.39).
Marx, valendo-se, especialmente, do aporte teórico de Feuerbach, promove a
inversão crítica entre as esferas do Estado e da sociedade civil. Segundo Feuerbach, ―em
Hegel, o pensamento é o ser; - o pensamento é o sujeito, o ser é o predicado (...) a
verdadeira relação entre pensamento e ser é apenas esta: o ser é o sujeito, o pensamento é o
predicado‖ (FEUERBACH apud ENDERLE, p. 26). Conforme Enderle, Marx assim
como Feuerbach, não centra suas críticas ―à especulação Hegeliana na denúncia de um erro
de método, mas sim na falsidade da determinação ontológica em que o método está
assentado‖ (Enderle, 2005, p. 20). Marx não se contenta em apropriar-se da dialética para
descrever a realidade enquanto tal, mas busca igualmente evidenciar os pressupostos e as
contradições estruturais imanentes a lógica da sociedade capitalista, bem como a
possibilidade efetiva de sua superação. O que Marx demonstra é que a sociedade civil
expressa a determinação fundamental do Estado, portanto, sua razão de ser.
O Estado tem sua raiz no antagonismo de classes e na defesa dos interesses da
propriedade privada, constituindo a organização externa e alienada dos interesses da vida
genérica dos homens. O Estado considera idealmente a propriedade, a cultura e a ocupação
como diferenças não políticas, porém não promove a igualdade real; pelo contrário,
subsiste sobre tais premissas. Já, a sociedade civil é o espaço real das relações privadas, do
atomismo social, demarcado pelo conflito e pela oposição de interesses, ou seja, constitui o
mundo ―das necessidades, do trabalho, dos interesses privados, do direito privado‖ (Marx,
1991 p. 50). Esse é o cenário da anarquia, análoga ao estado de natureza, caracterizado pela
guerra de todos contra todos e da existência humana fortuita e corrompida pela
organização social; da busca desenfreada pelo dinheiro – Deus secular.
Os desdobramentos dessa contradição entre as esferas da vida política e econômico
– social implicam a instituição dos direitos humanos, divididos em direitos do homem e do
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cidadão. Os direitos humanos (igualdade, segurança, liberdade e propriedade) não
constituem direitos universais efetivos, são apenas universais pela abstração política, de
maneira que neles o ―homem real só é reconhecido sob a forma do indivíduo egoísta e o
homem verdadeiro somente sob a forma de cidadão abstrato‖ (MARX 1991, p. 51). O
estado se opõe formalmente ao burguês e este se opõe materialmente ao estado. O burguês
não tem significado político pela sua vida e organização social, mas apenas enquanto
individualidade privada. Então, a liberdade é o direito determinado pela lei de se fazer tudo
o que não prejudique o outro, assim como as estacas demarcam o limite divisório entre
duas terras. Logo, ―a aplicação prática do direito humano da liberdade é o direito humano à
propriedade privada‖ (MARX, 1991, p. 42). Direito do ―membro da sociedade burguesa,
do homem egoísta, do homem separado do homem e da comunidade‖ (MARX, 1991).
Marx assemelha o lugar do Estado político em relação à sociedade civil, àquele
lugar que na religião o céu representa para a terra. A democracia política realiza o
―fundamento humano‖ do cristianismo, porque eleva o homem de sua situação desumana
à condição de cidadão, de ser supremo no Estado. O homem cindido existe, por um lado,
como individualidade alienada em meio às relações sociais, por isso uma ―manifestação
carente de verdade‖, e também na figura ilusória do cidadão de Estado, onde, enquanto
―membro imaginário de uma cidadania imaginária‖, é o ser genérico. Por isso, entre o
homem religioso e o político existe a mesma contradição que ―entre o bourgeois e o
citoyen, entre o membro da sociedade burguesa e sua aparência política‖ (MARX, 1991, p.
27).
Nos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, o ponto de convergência dos
complexos de alienação é a alienação no trabalho. Este é considerado em sua significação
geral, enquanto atividade vital produtiva: a determinação ontológica fundamental do
homem, isto é, o modo efetivamente humano de existência; bem como em sua acepção
particular, na forma da divisão do trabalho, estruturado em moldes capitalista, que o
trabalho é a base de toda alienação.
Sob o conceito de trabalho alienado – trabalho que alcança sua mais clara expressão
na sociedade capitalista – podemos, identificar quatro formas de alienação: a) Em relação
ao produto do trabalho; b) Em relação a sua própria atividade produtiva; c) Em relação aos
outros homens; d) Aliena-se em relação a sua própria espécie, seu ser genérico.
A alienação em relação ao produto do trabalho – objeto - ocorre porque o
trabalhador está impossibilitado de adquirir o objeto produzido. Após a consecução da
produção, o operário entrega a um terceiro o objeto produzido, em troca de um salário
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para atender a satisfação de suas necessidades básicas, indispensáveis à sobrevivência e
assim continuar reproduzindo a força de trabalho. Constata-se então a venda não do
produto do trabalho e do trabalhador propriamente dito, mas da força de trabalho,
transformando-se assim em mercadoria. Então, ocorre uma dupla produção de mercadoria:
aquelas produzidas pelo trabalho do operário que se objetiva mediante a transformação da
natureza; e o trabalho do operário produzido como mercadoria. Marx observa que quanto
mais o trabalhador se exterioriza pelo trabalho do mundo exterior, mais se afasta de sua
riqueza produzida. O objeto produzido apresenta-se ao operário como algo estranho e
alheio a si. Quanto mais gera mercadoria no sistema capitalista, em proporção equivalente,
afasta-se delas, no que se refere a sua distribuição e aquisição das mesmas. Em
contrapartida, acaba-se cada vez mais ficando a mercê da acumulação dessa mesma
produção. Desse modo, o objeto produzido não só não lhe pertence como se lhe opõe, e,
ainda passa a caracterizar a sua condição.
Também argumenta Marx, que a alienação não se processa no trabalhador somente
em relação aos produtos de seu trabalho, mas igualmente em face ao próprio ato de sua
produção, no linear da própria atividade produtiva. Dado que o produto do trabalho não
pertence ao trabalhador, o processo do trabalho tem que necessariamente ser passível de
alienação. O objeto, em relação á produção aparece como um elemento passivo de uma
alienação ativa, hostil e estranha para o operário. Mediante essas razões,
O trabalho externo, o trabalho em que o homem aliena-se, é um trabalho
de auto sacrifício, de mortificação. Em definitivo, a exterioridade do
trabalho para o operário mostra-se como algo que não é seu, sendo de
outro, que não lhe pertence, e em que ele mesmo, no trabalho, não
pertence a si mesmo, senão que pertence a outro. (MARX, 2004, p.71)
O trabalho alienado abafa e anula o desenvolvimento das potencialidades distintivas
da condição humana enquanto tal. Reduz as funções propriamente humanas, em funções
animais. Embora comer, beber e procriar são necessidades humanas inexoráveis, torná-las
determinante, seria aproximar o homem ao estado animal. O diferencial do homem, é que
este deveria exercer o trabalho, enquanto uma atividade livre, consciente e criativa,
distinguindo sua humanidade. O trabalho aparece como atividade mediadora entre o
homem e a natureza e entre o homem e o próprio homem, pois este é participante desta
dimensão natural. Em função que o homem vive da natureza, esta se constitui como corpo
inorgânico do homem. Tal fato acontece porque a natureza propicia as condições para o
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ser humano prover a sua existência física, bem como o aporte de instrumentos para a
realização de sua atividade vital.
Todavia, em um trabalho onde o produto do trabalho objetivado não retorna ao
trabalhador, dá-se a alienação em relação à natureza e em relação a sua atividade vital
produtiva. Já, se interpõe outra mediação em face à atividade produtiva enquanto
responsável pela intermediação entre o homem e a natureza, e o homem em relação aos
outros homens. Por conseguinte, se dará a alienação do homem enquanto parte da
natureza, de si próprio e enquanto homem entre os outros homens.
O trabalho alienado, 1) porque converte a natureza em uma coisa alheia
ao homem, e 2) porque aliena-se a si mesmo sua própria função ativa,
sua atividade vital, faz do gênero algo alheio ao homem, faz que sua vida
genérica se converta em meio à vida individual, e em segundo lugar,
converte a vida individual em sua abstração, no fim da vida genérica,
também sob sua forma abstrata e alienada. (MARX, 2004, p.73)
Doravante, o trabalho alienado anula o homem, ao metamorfosear sua atividade
social e real, em uma atividade individual e abstrata. A transformação da atividade
produtiva consciente, livre e coletiva em atividade mecânica, imposta e individual, resulta
na alienação do homem com relação ao seu próprio ser.
Já que o trabalho alienado apresenta a alienação em relação ao objeto do trabalho,
no ato da produção, e com relação ao próprio ser do homem, segue-se sua alienação em
relação aos outros homens, uma vez que o produto do trabalho não pertence ao seu
produtor, deve pertencer necessariamente a outro homem. Assim pertence a alguém que se
apresenta ao operário como estranho.
Como o produto fabricado não retorna ao trabalhador, se transforma na posse de
um terceiro. Com isso, formam-se duas classes antagônicas: uma que se apropria da
produção de outrem, e, outra que é despossuída dos meios de produção e dos objetos
produzidos. Porém, segundo Marx, ambas as classes são alienadas, muito embora a classe
burguesa é a privilegiada, pois porta em seu bojo as riquezas resultantes do excedente do
tempo de trabalho não remunerado do trabalhador, isto é, a mais-valia ou o sobre valor.
Contudo, há características distintas no que se refere à alienação da classe proletária em
relação à classe proprietária. A primeira apresenta um comportamento ativo e concreto
frente à atividade produtiva; enquanto a segunda, se comporta em relação a esta mesma
produção com uma conduta teórica. Isto é, pertencem à classe parasitária da sociedade,
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administrando o processo de subordinação hierárquica de exploração do trabalho em
relação ao capital, uma vez que não produzem o conteúdo material da riqueza social.
O produto da atividade alienada dá origem à propriedade privada. Da mesma
forma, a propriedade privada que não pertence ao trabalhador é condição necessária para a
efetivação da alienação. Igualmente, não só a propriedade privada aparece como meio e
produto do trabalho alienado, mas também o salário. Este é a ratificação da usurpação do
objeto produzido e da transformação do homem em mercadoria.
Na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel – Introdução, aparece o conceito de
revolução como responsável pela liberdade social do povo, e, por conseguinte, a superação
das condições de alienação. A revolução tem como pressuposto, em seu movimento
prático, ―a dissolução da ordem social existente‖ e a ―negação da propriedade privada‖,
tarefa ―de uma classe na sociedade civil que não seja uma classe da sociedade civil‖
(MARX, 2005, p.159). Tal emancipação é atribuição da classe proletária, que,
diferentemente da classe burguesa não tem interesses particulares a impor à sociedade, pois
sua condição de subordinação e seus ―sofrimentos universais‖ não a levam a exigir uma
―reparação particular, mas a dispõe pela emancipação humana geral‖ (MARX, 2005, p.
155).
Marx nos Manuscritos ao se confrontar com as tendências do comunismo grosseiro
e político, democrático ou despótico, formula a sua própria noção de comunismo,
entendido como a ―superação positiva da propriedade privada enquanto auto-alienação do
homem‖ (MARX, 1978, p.8). Por um lado, o comunismo é um movimento de ruptura com
a propriedade privada e as relações e condições de produção que dominam o produtor e,
por outro, aparece como um horizonte em vista do qual o movimento da realidade
histórica poderá ser constituído, sem que, no entanto, seja necessário. Contudo, o
desenvolvimento da propriedade privada possibilitou a produção ampliada da riqueza
material e cultural entre os homens, o desenvolvimento de suas carências humanas e a
determinação social das relações da vida genérica, mesmo que estabelecidas sobre relações
sociais de produção alienadas. Então, Marx levanta a suposição da produção social livre dos
trabalhadores em relação à propriedade privada burguesa, possibilitando ao produtor
contemplar, através do produto do trabalho, o poder objetivo de sua personalidade,
fazendo de sua atividade uma manifestação singular de sua vida. Na produção livre, além
de o objeto, por um lado manifestar as forças essenciais da individualidade de seu criador, o
desfrute do objeto, por outro, o realizará na medida em que seu trabalho terá satisfeito uma
necessidade humana genérica.
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Referências Bibliográficas:
MARX, Karl. A questão judaica. São Paulo: Moraes, 1991.
___________. Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2005.
___________. Glosas críticas ao artigo “O rei da Prússia e a reforma social”. Por um prussiano
(Vorwärts!). Práxis, Belo Horizonte, n. 5, 1995.
___________. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.
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262
O CONCEITO DE MERCADORIA EM O CAPITAL DE MARX: A TEORIA DO
VALOR E O FETICHE DA MERCADORIA
Gilmar Derengoski
Graduado em Administração
[email protected]
RESUMO: O presente artigo objetiva investigar e problematizar o processo de produção
capitalista pela ótica do filósofo alemão Karl Marx; tendo como ponto central o estudo do
conceito de mercadoria e seus componentes essenciais. Em essência, trata-se de uma
analise cuidadosa sobre os principais conceitos relacionados com o que Marx entende por
mercadoria: quais sejam: Valor, Valor de Uso e Valor de Troca. Assim como, da teoria
marxista sobre o Fetiche da Mercadoria e sua importância para o surgimento da teoria do
valor. Salientando as relações sociais desenvolvidas entre homens e oriundas da interação
entre o conceito Valor e o Capital. Sempre procurando evidenciar o caráter transitório do
capital.
Palavras-chave: Capital. Mercadoria. Valor. Fetiche.
A Mercadoria
A mercadoria é entendida por Marx como tendo dois fatores primordiais e
indissociáveis, quais sejam: valor de uso e valor de troca. Uma vez que, toda coisa que
possui alguma utilidade é considerada sobre estas duas categorias. Assim sendo, é forçoso
concluir que ―a riqueza das sociedades onde reina o modo de produção capitalista parece
como uma ―enorme coleção de mercadorias‖ e a mercadoria individual como sua forma
elementar‖ (MARX, 2013, p.113).
É sabido que em algum momento da história da civilização o homem deixou de se
preocupar somente com o trabalho para prover suas necessidades básicas e passou a se
preocupar com acumulo de riqueza, ou seja, o acumulo de mercadorias. A mercadoria, em
resumo, é definida como sendo um objeto que visa (a partir de suas propriedades materiais)
satisfazer as necessidades ou carências do homem. Logo, é essa utilidade inerente a
mercadoria que constitui o valor de uso da mesma.
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Valor de Uso
O valor de uso de uma mercadoria é apenas efetivado quando a mesma pode ser
usada ou consumida: ―os valores de uso formam o conteúdo material da riqueza, qualquer
que seja a forma social desta‖ (Idem, p. 114). Em primeira analise, o valor de uso de uma
mercadoria não possui uma relação imediata com o trabalho humano despendido sobre a
produção da mesma; todavia, na forma social capitalista, o valor de uso sempre estará
presente no conteúdo material da mercadoria.
Nesse sentido, quando retirada a utilidade de uma mercadoria, esta perde o seu
valor de uso e, portanto, seu valor como mercadoria; uma vez que, sem o seu caráter útil a
mercadoria se transforma em uma simples abstração pura: ―nenhuma coisa pode ser valor
sem ser objeto de uso. Se ela é inútil, também o é o trabalho nela contido, não conta como
trabalho e não cria por isso, nenhum valor‖ (Idem, p. 119).
Segundo Marx, enquanto valor de uso, as mercadorias possuem uma grande
diversidade. No entanto, tomadas enquanto valores, as mercadorias possuem uma
igualdade qualitativa, diferenciando-se apenas na quantidade. Tal característica implica que
a mercadoria tomada enquanto valor é divisível, entretanto, enquanto objeto físico, não o é;
ou seja, enquanto valor, as mercadorias não se diferenciam de outras mercadorias que
possuem o mesmo valor. Assim sendo, a troca de mercadorias existe justamente pela
diversidade de necessidades do homem.
Enquanto valor, toda mercadoria é universal – como mercadoria real, ao
contrário, é uma particularidade; enquanto valor, toda mercadoria é
continuamente cambiável – na troca real, pelo contrário, só o é em
determinadas condições; enquanto valor, a medida da característica da
troca da mercadoria é determinada por ela mesma (isto é,
pelo quantum de trabalho nela contido) – na troca real, pelo contrário, é
cambiável só em quantidade relacionada com a sua qualidade natural e
correspondente às necessidades daqueles que efetuam as trocas
(TROTTA, 1991, p. 16).
Como dito, a mercadoria de certa forma é uma ―contradição, real, sensível e
materialmente existente‖ (Idem, p. 17). Segundo Marx, a mercadoria existe como desigual a
si mesma.
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O conceito de Valor de Uso é trabalhado por Marx em sua significação econômica;
o que acarreta no estudo acerca da relação com ―as condições sociais de produção, tanto
quando é influenciado por elas, como quando influi nessas condições‖ (CARCANHOLO,
1998, p. 1). Por tal razão, é chamado de formal o valor de uso em que o significado
perpassa o caráter material da mercadoria. De modo que, tal entendimento é responsável
―pelas especificidades do que se chama de mercadorias especiais‖ (Idem, p. 1).
Toda mercadoria carrega em si mesma uma representação de um duplo caráter do
trabalho, uma vez que, intrinsicamente toda mercadoria surge de uma determinada
atividade ou trabalho útil. Isso acontece pelo fato de que ―valores de uso não podem se
confrontar como mercadorias se neles não residem trabalhos úteis qualitativamente
diferentes‖ (MARX, 2013, p. 120).
O trabalho despendido para a produção de uma mercadoria é um importante fator
para a determinação do valor de uso da mesma, todavia, não é o único fator. Segundo
Marx, a natureza e suas consequências também determinam o valor de uso de uma
mercadoria: a escassez de um determinado produto aumenta seu valor de uso.
Por sua vez, o caráter útil de uma mercadoria é adquirido pela determinidade do
trabalho contido na mesma, ou seja, o padrão e o método pelo qual se produz tal
mercadoria determina sua utilidade.
O valor de uso pode ser entendido como uma espécie de receptáculo
material/físico do valor. Como dito anteriormente, são as propriedades físicas que
conferem o valor de uso da mercadoria; ―mesmo quando os objetos são diretamente
tomados da natureza, situação na qual o valor de uso independe da quantidade de trabalho
nele corporificada, é sua apropriação pelos seres humanos que faz do objeto valor de uso‖
(MIRANDA, 2009, p. 2).
Isso acontece pelo fato de que o valor de uso é uma apropriação social, mesmo
quando em sua forma natural. Pois, o homem ao apropriar-se de um objeto que advém da
natureza acaba por reconhecer o valor de uso do mesmo.
Através do reconhecimento correto das propriedades dos objetos, pode
o ser humano conscientemente alterar sua forma material segundo uma
finalidade inicialmente posta. A transformação do mundo natural
(incluindo a natureza já previamente mediada pelo trabalho humano)
responde a estímulos mais que imediatos – para além das necessidades
imediatas de manutenção da existência biológica (da vida) dos indivíduos
e da espécie –, sendo, portanto, específico da espécie humana e lei
tendência indispensável ao desenvolvimento desta forma de ser. Ao pôr
de novos valores de uso, sob a ineliminável base natural, corresponde
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265
um processo de aumento da complexidade das relações sociais (Idem, p.
2).
Isso significa que a criação oriunda do homem implica uma transformação continua
da realidade dada para uma realidade cada vez mais social.
Valor de Troca
Como explanado, a mercadoria possui em sua gênese dois fatores indissociáveis
que lhe conferem seu valor como mercadoria. Uma mercadoria abarca em si mesma tanto
o valor de uso (―o corpo‖ da mercadoria: ferro, linho, papel, trigo), como também o valor
de troca; isso porque, uma mercadoria só pode ser denominada como tal, quando possui
essas duas categorias de valor.
As mercadorias, segundo Marx, são algo duplo: ―objetos úteis e, ao mesmo tempo,
suportes de valor. Por isso, elas aparecem como mercadorias ou só possuem a forma de
mercadorias na medida que possuem esta dupla forma: a forma natural e a forma de valor‖
(MARX, 2013, p. 124).
O valor de uma mercadoria permanece do âmbito da subjetividade, ao contrário da
mercadoria, enquanto corpo inerte e em si-mesma um objeto sensível. Isto é, uma
mercadoria possui ―objetividade de valor apenas na medida em que são expressões da
mesma unidade social, do trabalho humano, pois sua objetividade de valor é puramente
social e, por isso, é evidente que ela só pode se manifestar numa relação social entre
mercadorias‖ (Idem. p. 124).
O valor de uso de uma mercadoria tomado no modo de produção capitalista
unicamente se realiza quando a mesma é usada ou consumida. Assim sendo, o valor de uso
é precisamente o conteúdo físico/material do acúmulo de riqueza, algo que independe da
forma social. No entanto, o valor de troca, por sua vez, surge (mesmo que de forma
genérica) como uma relação quantitativa.
Relação em que valores de uso se trocam com valores de uso de outra
espécie, por exemplo: βx é trocado por Δx. Logo as mercadorias
possuem múltiplos valores de troca em relação umas com as outras ou
entre si. As mercadorias, em seus valores de troca, devem encontrar os
seus respectivos pontos em comum (TROTTA, 1991. p. 5).
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266
Isso significa que esse ponto comum referido anteriormente pode ser entendido
como a utilidade que é dada para a mercadoria pelo valor de uso. É por tal motivo que as
mercadorias são de variadas qualidades. Por sua vez, o valor de troca é concebido por Marx
como uma equação ―sendo efetuada através da identidade dos objetos trocados (...) Marx
concebe a troca como uma equação, expressando os valores de troca uma ‗igualdade de
propriedade das coisas trocadas (identidade de seus tempos de trabalho)‖ (HIRST, 1980, p.
17-19). Não obstante, nenhuma mercadoria possui valor em si-mesma ou de forma isolada,
o valor lhe é conferido pelo valor de uso através da troca de mercadorias.
Dessa maneira, as mercadorias possuem um valor objetivo somente quando
expressam uma mesma unidade social, isto é, um mesmo dispêndio de trabalho humano.
Uma vez que, ―sua objetividade de valor é puramente social e, por isso, é evidente que ela
só pode se manifestar numa relação social entre mercadorias‖ (MARX, 2013, p. 125).
Forma de Valor Relativa e Forma de Valor equivalente
De forma geral, Marx objetiva chegar na gênese do que ele denomina como formadinheiro. Para tanto, ele busca desvelar todo o desenvolvimento do que denomina-se valor
na relação valorativa das mercadorias; os dois polos do que ele denomina como expressão
valor, quais sejam: forma de valor relativa e forma de valor equivalente.
Aqui, duas mercadorias diferentes, A e B – em nosso exemplo, o linho e
o casaco –, desempenham claramente dois papéis distintos. O linho
expressa seu valor no casaco; este serve de material para essa expressão
de valor. A primeira mercadoria desempenha um papel ativo, a segunda
um papel passivo. O valor da primeira mercadoria se apresenta como
valor relativo, ou encontra-se na forma de valor relativa. A segunda
mercadoria funciona como equivalente, ou encontra-se na forma de
valor equivalente (Idem, p. 126).
Para Marx, ambas as formas (relativa ou equivalente) são momentos inseparáveis
que se inter-relacionam e que acabam por se determinar reciprocamente. No entanto, são
polos mutuamente excludentes, ―isto é, polos da mesma expressão de valor; elas se
repartem sempre entre mercadorias diferentes, relacionados entre si pela expressão de
valor‖ (Idem, p. 126).
Segundo Marx, o segredo de toda e qualquer forma de valor situa-se na forma de
valor simples. Isso porque, a forma de valor simples é obtida na relação entre duas
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267
mercadorias distintas. Sendo que, essa forma é a mais simples expressão do que dr
denomina como valor. No entanto, para um total entendimento do conceito valor, é
preciso que descubramos sua origem, seja ela, etimológica ou conceitual; e para descobrir
como a ―expressão simples do valor de uma mercadoria está contida na relação de valor
entre duas mercadorias é preciso, inicialmente, considerar essa relação de modo totalmente
independente de seu aspecto quantitativo‖ (Idem, p. 126).
De modo geral, o valor de uso de uma mercadoria obtém-se quando tal mercadoria
posta-se na relação de mercadorias de valores equivalentes. Uma vez que, uma mercadoria
tomada isoladamente prova somente que seu valor se encontra na relação valorativa obtida
na comparação entre duas mercadorias distintas. Pois, o valor do casaco apenas ampara-se
no casaco tomado como simples objeto, mas, o casaco em-si-mesmo, não altera qualquer
aspecto que não seja inteligível previamente; ―somente a expressão de equivalência de
diferentes tipos de mercadorias evidencia o caráter especifico do trabalho criador de valor,
ao reduzir os diversos trabalhos contidos nas diversas mercadorias àquilo que lhes é
comum: o trabalho humano em geral‖ (Idem, p. 128).
O Fetiche da Mercadoria
Uma mercadoria em primeira instância aparenta ser algo simplório e banal. No
entanto, a suposta trivialidade está retida na parte sensível da mesma, uma vez que, o
caráter útil da mercadoria é uma qualidade suprassensível. Pois, enquanto mercadoria, sua
valorização abstém-se do material do qual ela é formada.
A forma-mercadoria e a relação de valor dos produtos do trabalho em
que ela se apresenta não tem (...) absolutamente nada a ver com sua
natureza física e com as relações materiais que dela resultam. É apenas
uma relação social determinada entre os próprios homens que aqui
assume, para eles, a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas
(Idem, p. 147).
A forma-mercadoria possui um caráter misterioso, qual seja: as marcas sociais e as
marcas objetivas inerentes ao próprio produto do trabalho refletem a totalidade do trabalho
do homem posto no horizonte das relações sociais.
Assim sendo, o caráter místico da mercadoria ―não resulta, (...) de seu valor de uso,
tampouco resulta do conteúdo das determinações de valor‖ (Idem, p. 146). Desse modo, o
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caráter fetichista da mercadoria surge da relação entre os produtos do cérebro humano e os
produtos do manuseio humano que se colam perante os produtos do trabalho enquanto
mercadorias: o ―produto do trabalho se torna assim um fetiche e o fenômeno da
transformação desse produto em algo enigmático, misterioso, ao adotar a forma de
mercadoria é o que Marx chama de fetichismo da mercadoria‖ (VÁSQUES, 1968, p. 445).
Desse modo, o caráter místico da mercadoria se origina do fato de que ela reflete
para os homens ―as características sociais do seu próprio trabalho como características
objetivas dos próprios produtos de trabalho, como propriedades naturais sociais dessas
coisas‖ (Idem, p. 71); por tal motivo, reflete também a relação social de quem produz a
mercadoria com produto final de seu trabalho como se fosse uma relação social entre
objetos; ―os objetos (produtos do trabalho, mercadoria, dinheiro ou capital) que só existem
como fruto de sua atividade, apresentam-se como objetos autônomos, subtraídos a seu
controle e dotados de um poder próprio‖ (Idem, p. 447).
Por fim, segundo Marx, o homem acaba se tornando aquilo que possui, seu poder é
o dinheiro que possui. Logo, o homem não é mais determinado pela sua individualidade. O
dinheiro acaba transformando as incapacidades do homem em seu contrário (MARX, 2001,
p. 516-517).
Referências Bibliográficas:
CARCANHOLO, Marcelo Dias. A importância da categoria Valor de Uso na teoria de Marx. São
Paulo: Pesquisa & Debate, 1998.
HIRST, Paul et alii em O capital de Marx e o capitalismo de hoje. Vol. I. RJ: Zahar Editores,
1980.
MARX, Karl. O capital: Crítica da economia política: Livro I: o processo de produção do capital.
Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013.
___________. Grundrisse: Manuscritos econômicos de 1857-1858: Esboços da crítica da
economia política. São Paulo: Boitempo, 2011.
MIRANDA, Flávio. A colonização da produção pelo capital: uma síntese do argumento de Marx.
Rio de Janeiro: IE/UERJ, 2009.
TROTTA, Wellington. Mercadoria, valor e trabalho como relações necessárias em O Capital. Rio de
Janeiro: Edições Siciliano, 1991.
VÁSQUES, Adolfo Sánchez. A filosofia da Práxis. São Paulo: Paz e Terra, 1968.
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269
A NOÇÃO DE VALOR NO PENSAMENTO DE SARTRE: O DESEJO DE SER
NO SEIO DO PARA-SI
Helen Aline Santos Manhães
UNIOESTE
[email protected]
RESUMO: O ser da realidade humana consiste numa presença a um ser que ela não é.
Como presença, pressupõe separação, distância, negação – caso contrário, a distância se
anularia e recairia na identidade dos termos presentes. Pretende-se, neste escrito, abordar o
surgimento do Para-si de modo a explicitar a ruptura no ser pleno e sua fundamental
implicação: o movimento perpétuo de uma ausência ideal que constitui o próprio sentido
de ser do Para-si.
Palavras-chave: Falta. Para-si. Projeto. Valor.
A ―história do humano‖, o desenrolar da aventura do ser em busca de si mesmo é o
que Sartre chama ―ato ontológico‖. No princípio era o ser, indeterminado e indiferente,
massa maciça de positividade empastada de si mesma, ―ausente‖ a tudo, inclusive a si; de
tanto que é si, não se sabe ser. O ser é o que é, eis tudo. Desliza no seio desse mar de
plenitude uma fissura que é sua única possibilidade de escapar à total positividade, ao ser
maciço. Apenas sendo e não sabendo senão ser, o que lhe resta como fuga é negar o que é,
negar seu ser desde dentro, desde seu coração.
Uma negação que fosse pura negação, no entanto, seria tão plena como o ser que
apenas é, seria também indiferenciada. O ser que nega a si mesmo ser o que é, relaciona-se
intimamente com aquilo que nega, de tal modo que mantém em seu horizonte o ser que
nadifica para permanecer na existência. É este ser negado que fornece sentido e razão ao
próprio ato nadificador. Tendo em vista que o ser busca extravasar a plena positividade e
sua única alternativa de se desprender é saindo dela através de sua negação, o negado
permanecerá co-extensivamente ao ser que se constitui a partir da negação de ser simesmo.
Este movimento de saída de si para poder existir (constituir sentido, abrir mundo,
inventar possibilidades) desdobra-se na estrutura do desejo, e fica claro o porquê. Toda
fuga é fuga de algo para algo. Todo desejo é busca, falta, tendência a algo que se encontra
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270
ausente. Estas duas estruturas complementam-se na explicação do ato pelo qual o Em-si se
perde de seu ser e dá origem ao Para-si. Inicialmente fuga de sua plenitude de ser através da
negação de seu ser, sempre o mantendo à vista como aquilo que permanece sendo o
sentido de seu movimento originário, o ser negado é, ao mesmo tempo, seu alvo, o ―para
onde‖ o olhar se dirige por ser apenas o que o olhar conhece. Arrancado bruscamente do
passado como aquilo de que se foge, é lançado ao futuro, torna-se a ausência, o ser negado
de si mesmo que permite que o movimento de descompressão de ser permaneça e não se
recaia novamente no puro ser.
O ser perdido em negação, sempre presente enquanto ausência, o si-mesmo tão
familiar que liga o ser e o não ser através da negação, permanece sendo a saudade do ser.
Esta saudade é a busca, a tentativa de recuperação daquilo que havia de pleno; mas não só.
Se fosse simplesmente desejo de ser o que é, o movimento se extinguiria na reabsorção no
ser, a nadificação fundamental da existência cessaria e tudo deixaria de existir, porque não
haveria mais a testemunha do ser, não haveria não-ser; tudo apenas seria, de volta em plena
positividade empastada de si.
O desejo, a tendência original do ser que busca aquilo mesmo que nega em seu
coração é expressão duma união impossível entre ser e saber que se é. O Para-si, fruto
deste movimento ontológico, é o ser que se arranca de si mesmo para fugir à indiferença de
ser e apenas ser, ser o que se é, mas que não pode se desvencilhar do ser do qual foge: este
permanece na partida e na chegada, o que deve ser negado, mas também o que é
perseguido, porque é só o que o Para-si conhece: o Em-si que lhe falta, seu ser desfigurado,
perdido quando de seu nascimento.
Esta é a paixão fundamental do homem: o desejo de ser seu ser perdido. Não lhe
basta ser esta plenitude, ser este ideal positivo que ele vislumbra separado de si e que o
motiva em seu próprio seio a ser movimento. O Para-si não quer perder a ciência de si que
conquistou, não quer retornar ao puro ser. Ele quer se saber enquanto este ser, quer trazer
para si tanto a plenitude de existência daquilo que é o que é, quanto o afastamento que lhe
permita saber-se este ser. Negando o puro ser do qual proveio, não admitindo também ser
puro nada, isto é, ser somente a negação de ser tão indiferenciada quanto o próprio ser que
nega, o Para-si visa a comunhão destes dois modos de ser excludentes por princípio, visa
ser a totalidade ideal Em-si-Para-si daquele ser que perdeu em seu surgimento mesmo.
Pode-se entender a frase emblemática de Sartre, como fecho desconcertante de sua
grande obra: ―O homem é uma paixão inútil.‖ (SARTRE, 2009, p. 750). O homem não é
um fruto alheio do movimento descrito, ignorante de sua condição. O homem vive esta
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271
estrutura transcendental, vive seu fracasso fundamental em cada uma de suas ações,
podendo vislumbrar sua condição, refletidamente, através da angústia, experiência de fundo
transcendental e sempre possível na vida humana.
O valor, acima citado, é esta totalidade ideal que o Para-si tem em vistas e que lhe é,
por princípio, inalcançável. Constitui-se como um faltado, um todo desejado, o ideal de ser
que o Para-si seria se pudesse coincidir consigo mesmo – o que seria se ―absorvesse‖ seu
faltante, aquilo que lhe falta para ser-todo: seu si-mesmo, o ser singular que o Para-si
nadifica enquanto pessoa, aquilo que ele é ao modo de não sê-lo, sua maneira singular de
negar o ser – o que lhe confere individualidade. ―A ausência de ser não aparece
diretamente, mas através do ser que é ausente. Assim, toda aparição remete a um ser que
não aparece, mas que enquanto totalidade que a consciência deve ser, condiciona a aparição
atual.‖ (SOUZA, 2009, p. 84).
Esta totalidade ideal visada pelo Para-si tem seu sentido próprio determinado pelo
projeto singular que constitui a individualidade, a pessoa particular que é cada homem-nomundo. A realidade humana, se não possui a substancialidade do ser, se não pode ser
definida segundo uma natureza fixa e imutável, deve, entretanto, poder ser explicada a
partir de uma estrutura que lhe confira sua singularidade; caso contrário, sequer se poderia
falar duma realidade-humana. Há algo que confere ao homem sua particularidade em
relação aos entes em geral, algo que, aliás, confere até certa primazia ao homem: ―Como se
explica então que, dentre todos os entes, o homem ocupe uma posição tão privilegiada? É
que ele é o único ente para o qual algo como existir pode ter um sentido.‖ (BEAUFRET,
1976, p. 15).
Se é negada ao homem a consistência do ser, é porque seu modo de existência é
ultrapassagem de si mesmo rumo a algo que ele não é. ―O ser-no-mundo, longe de ter a
existência inalterável da coisa, é essencialmente um poder-ser. Por isso, pertence à sua
essência revelar-se a si mesmo no impulso ou na ultrapassagem do projeto.‖ (BEAUFRET,
1976, p. 21). Perpétuo lançamento de si para o futuro, desgarramento de si em direção a
uma ausência, o homem se defini por um perpétuo fazer através do qual escolhe seu ser. A
ação se confunde com a essência humana. Por sua própria estrutura, toda ação desdobra-se
em projeto de ser, de alcançar algo que ainda não se é. ―Agir é modificar a figura do
mundo, é dispor de meios com vistas a um fim, é produzir um complexo instrumental e
organizado (...). Com efeito, convém observar, antes de tudo, que uma ação é por princípio
intencional.‖ (SARTRE, 2009, p. 536). Ou seja, uma ação implica dupla nadificação: 1) a que
se efetua quando posicionamos um estado ideal em relação ao qual captamos o estado
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272
presente concreto enquanto faltante ou insuficiente, sendo que este estado ideal está
presente enquanto uma ausência, e 2) a nadificação de meu estado concreto, que não é o
valor, aquilo que viso.
Os fins que o Para-si visa determinam o modo como ele recorta o mundo em
busca de motivos para a ação. É o ser que lhe falta que o motiva em seu ser a constituir o
sentido do mundo: sua instrumentalidade, seus empecilhos, suas comodidades. Essas
características que se atribui ao mundo só fazem sentido como horizonte de um projeto
singular e fundamental que é o próprio homem. Sendo constituído a partir da negação de si
pela nadificação do ser, o homem mantém-se no ser enquanto busca perpétua do ser que
ele nega a si. Este ser ausente, que fornece sentido ao fazer humano, é o Para-si enquanto
projeto fundamental de ser.
de regressão em regressão, alcançamos a relação original com sua
facticidade e o mundo escolhido pelo Para-si. Mas essa relação original
nada mais é do que o próprio ser-no-mundo do Para-si, na medida em
que este ser-no-mundo é escolha; ou seja, alcançamos o tipo original de
nadificação pelo qual o Para-si tem-de-ser seu próprio nada. A partir
daqui, não se pode tentar qualquer interpretação (...). (SARTRE, 2009, p.
564)
Ou seja, a partir da apreensão desta totalidade que orienta toda ação de um homem
e o torna determinado homem, este e não aquele, não se pode explicar o porquê de o projeto
ser assim e não de outro modo. Percebe-se, neste ponto da investigação, a estrutura
fundamental da consciência que substitui, funcionalmente, a figura do Ego tal como
afirmada pela tradição73. A individualidade da consciência, a pessoalidade própria a um
homem provém de seu projeto fundamental de ser, que ele realiza existindo, sendo
homem-no-mundo.
O sentido da existência, isto é, a própria constituição do mundo; a projeção do
conjunto de possibilidades que o homem é; a relação com o Outro com o qual partilho a
condição de ser-lançado-ao-mundo. Em suma, todos os aspectos constitutivos da vida
duma consciência estão ancorados neste projeto inicial que é a escolha que o Para-si faz do
modo como se relaciona com o ser que ele nadifica e, num segundo momento, idealiza74
Faz-se referência aqui especialmente a Kant e Husserl, interlocutores privilegiados de Sartre na obra A
transcendência do Ego, na qual expõe sua teoria acerca do ego transcendente que existe como objeto para a
consciência e não como princípio de unidade e individuação.
74 ―Talvez esta seja a origem do idealismo sartriano, visto que essa totalidade (o valor) é que vai, em última
instância, determinar todos os fenômenos particulares; até mesmo a relação do Para-si com o Em-si da
facticidade.‖ (SOUZA, p. 84 - Nota de rodapé 59).
73
ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia
273
como alvo de seu desejo. E esta decisão fundamental do sentido particular do ser-nomundo expressa-se em toda ação, manifesta-se na vida empírica do sujeito.
Encontramo-nos frente a arquiteturas simbólicas muito complexas e que
estão, pelo menos, em três níveis. No desejo empírico, posso discernir uma
simbolização de um desejo fundamental e concreto que é a pessoa e que
representa a maneira como esta decidiu que o ser estará em questão em
seu ser; e esse desejo fundamental, por sua vez, exprime concretamente e
no mundo, na situação singular que envolve a pessoa, uma estrutura
abstrata e significante que é o desejo de ser em geral e deve ser
considerada como a realidade humana na pessoa, como aquilo que constitui
sua comunhão com o Outro, como aquilo que permite afirmar que há
uma verdade do homem e não somente individualidades incomparáveis.
(SARTRE, 2009, p. 694)
Enquanto constituinte do Para-si, o projeto é vivido, coincide com a própria
existência consciente singular do homem, mas não é, primeiramente, visado pela reflexão75.
Sendo, em última instância, o que determina a ação, se expressa nela pela dupla estrutura de
motivos e móbeis. Estes, correlatos entre si enquanto meios para realizar a ação,
distinguem-se em surgirem no lado objetivo ou subjetivo da vivência, respectivamente.
Enquanto o motivo aparece à consciência como estando no mundo, como dado ou
circunstância objetiva da situação, o móbil, por sua vez, é a captação deste mesmo motivo
mas pela via subjetiva, isto é, ressalta o aspecto ―relativo‖ do motivo, que é sua referência
ao ato que visa empreender. O móbil aparece como motivação íntima da consciência
porque ela o capta como sendo seu; ele é a consciência não-tética (do) projeto que realiza ao
significar mundo e empreender ações.
Referências bibliográficas:
BEAUFRET, Jean. Introdução às filosofias da existência: de Kierkegaard a Heidegger; tradução
Salma Tannus Muchail. São Paulo: Duas Cidades, 1976.
SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Tradução de Paulo
Perdigão. Petrópolis: Vozes, 2009.
Sartre desenvolve um método de acesso ao projeto chamado psicanálise existencial, obviamente de
inspiração freudiana. Partindo da premissa de que toda ação é significante da decisão fundamental que é o
homem, e tendo na comparação de condutas e ações o modo de elucidar um projeto específico, Sartre afirma,
no entanto, a impossibilidade da clarificação total do projeto.
75
ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia
274
SOUZA, Luiz Henrique Alves de. O estatuto da reflexão em Sartre. 2009. Tese de doutorado.
UFSCar. São Carlos.
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A FILOSOFIA E A EDUCAÇÃO NO CAMPO
Hélio Clemente Fernandes
CTESOP/SEED/UNIOESTE
[email protected]
RESUMO: A finalidade do presente texto é contribuir com o debate acerca da Filosofia
relevância entre os estudantes do Ensino Médio e, especialmente, da sua importância na
Educação no Campo. O retorno da disciplina de Filosofia nos bancos escolares da
educação básica não foi um consenso entre os estudiosos. Concernente a estes embates,
num primeiro momento temos a problematização da filosofia no que tange ao bacharelado
e a licenciatura. Depois temos um pouco da história do ensino da Filosofia e, na sequência,
a apreciação da Filosofia enquanto disciplina capaz de contribuir com a educação no
campo.
Palavras-chave: Filosofia. Bacharelado. Licenciatura. Campo. Educação.
A Filosofia, o bacharelado e a licenciatura
Inicialmente, é pertinente enfatizar que a visão da Filosofia enclausurada numa
torre de marfim, encontra-se constantemente revivida no debate acadêmico. Por um lado, é
difícil sustentar que a Filosofia (ao bastar-se a sim mesma) independa do âmbito da
pedagogia. A pesquisa que não visa divulgação/transmissão carece de sentido. Nesta
perspectiva, o bacharelado é tão importante quanto à licenciatura. Pode-se dizer que a
socialização das produções filosóficas é a razão que justifica o trabalho daqueles que
entregam a vida nessa nobre causa. Além disso:
A introdução do ensino de Filosofia na escola básica deve ser entendida
como uma oportunidade de investigar outras práticas escolares que
permitam que o ensino de Filosofia possa se transformar em um modo
de vida por meio do cuidado de si que deve consistir no conhecimento
de si (OLIVEIRA, 2012, p. 1).
Por sua vez, o argumento daqueles que defendem o bacharelado é para valorizar a
Filosofia enquanto pertencente à academia, aos ―doutos‖. Nem todos estão prontos para
filosofar e desmitificar os mecanismos que regem o mundo. Entende-se que a difusão da
ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia
276
filosofia nos setores populares (em específico os que vivem no campo) tem em si o perigo
da superficialidade.
Certamente o risco da banalização existe. Interpretações equivocadas são possíveis,
mas isso não pode servir de argumentação para tolher o direito de todos os setores da
sociedade de entrarem em contato com tudo aquilo que foi produzido pela tradição
filosófica. Todos possuem direito a uma educação de qualidade. E a materialização deste
ideário representa uma contradição na sociedade capitalista, pois:
A escola, a educação formal – um dos tipos de educação que a sociedade
utiliza para preparar os indivíduos para viverem nela mesma – surge
durante o escravismo, numa sociedade de classes, e torna-se uma escola a
serviço da classe detentora do poder. E, como tal, deixa de estar voltada
para o ensino da vida, pela vida e para a vida; passa-se a ensinar um saber
―especializado‖, privilégio das classes dominantes. Aos demais, resta a
educação informal voltada para a resignação, aceitação da sua condição
de subserviência estabelecida, para a aceitação da sua condição de classe
e para o trabalho. Esta realidade estende-se desde o surgimento da escola
até a modernidade (ORSO, 2002, p. 92).
A partir do fragmento exposto, defende-se um processo de ensino e aprendizagem
onde a disciplina de Filosofia possa contribuir com a emancipação das classes verticalmente
menos favorecidas. Uma Filosofia engajada que não se reduz a aplicações de técnicas,
instrumentalização de professores e estudantes moldados de acordo com interesses préestabelecidos. Conforme Immanuel Kant, não se ensina filosofia (conteúdo) e sim o
filosofar (pensar). Reduzir as aulas de Filosofia a técnicas de aprendizagem, a memorização
de conteúdos, a regras de como ela precisa ser consumida, diminui o entendimento do
trabalho docente realizado pelo professor de Filosofia enquanto um autômato que aplica a
teoria na prática. A saber, a educação extrapola essa noção minimalista. Caso contrário, o
ensino da Filosofia torna-se mais uma disciplina em que o estudante é obrigado a assimilar
no desejo de receber um certificado de conclusão de Ensino Médio sem, contudo,
conseguir perceber a relação do que conteúdo estudado com os seus embates do cotidiano.
Numa concepção estreita, os resultados pedagógicos da Filosofia e de qualquer disciplina
são pífios. A educação transcende as divisões disciplinares, o ensino engavetado, enjaulado.
Quiçá pelo fato de na universidade a Filosofia encontrar dificuldades para impor-se
e livrar-se da pecha de curso de segundo plano, ela apostou no bacharelado, na pesquisa,
no mestrado, no doutorado para livrar-se deste estigma. Assim sendo, o entendimento de
que bastava formar o estudante com apropriação de toda tradição filosófica para ter-se o
exímio professor de Filosofia relegou as questões pedagógicas a um apêndice, sem muita
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importância. Na escola básica aos problemas para a cristalização desta disciplina se
acrescentam os baixos salários, as salas de aula superlotadas, a desvalorização dos
trabalhadores da educação dedicados à escola básica, a falta de apoio pedagógico, a falta de
hora atividade para que sejam preparadas aulas atrativas para o adolescente em
desenvolvimento físico, psíquico e cognitivo.
Por conta de uma carga horária extenuante, o licenciado em Filosofia, terá que
atender dezesseis turmas de em média trinta estudantes. Nem sempre consegue concentrar
suas aulas em uma só escola e, por isso, passa a ter que conciliar seu planejamento de aulas
com mais de uma escola. Em contato com mais de quatrocentos e oitenta alunos encontra
no livro didático um aliado. Com trinta e duas horas em sala e com oito horas de atividade,
o professor corre o risco de tornar-se um aplicador de receitas pré-estabelecidas por um
livro pensado, elaborado por professores da universidade. Tido como salvação o livro
didático pode ser a camisa de força daquele que ao exercer o magistério nestas condições
debilitantes deixa-se vencer por uma rotina perversa.
A defesa destes escritos é a de que a formação do professor licenciado é
complementar a formação do bacharel em Filosofia. A licença para lecionar é tão
importante quanto à capacidade de buscar constantemente o saber por meio da pesquisa.
Além disso, o profissional da Filosofia transita pela comunidade, possui peculiaridades
genéticas e psicológicas singulares, tem projetos pessoais e coletivos, sonha e almeja realizar
ideais, vive segundo regras, enfrenta obstáculos, é pai, filho, esposo. É uma pessoa que
influencia ao mesmo tempo em que se deixa influenciar pelo meio onde se encontra, logo,
na sala de aula muito mais que saberes filosóficos historicamente construídos a serem
transmitidos ocorre o exercício incessante do filosofar. Explicita-se, por conseguinte, que o
ensino da Filosofia não pode desvencilhar-se da práxis filosófica, da ação do filosofar. Caso
contrário, a Filosofia corre o risco de ser apenas mais uma disciplina que preenche o
currículo e que o estudante precisa dar conta de assimilar. Com tal reducionismo, a
disciplina de Filosofia afasta-se da dialética inerente ao exercício do pensamento, da
criatividade, da reflexão. Isto é, ―a realidade muda‖ e o filosofar é um ―devir constante‖
(Heráclito).
O ensino da Filosofia no Brasil
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No Brasil, antes das determinações da LDB 9394/96, com algumas exceções, os
cursos de Filosofia (e outras áreas de docência) formavam professores com licenciatura
plena, com proficiência para atuarem nas escolas de ensino básico. Sem olvidar as variações
ocorridas durante o século XX, recorda-se do esquema três anos para o bacharelado e mais
um ano para a licenciatura. No primeiro caso, se buscava formar o pesquisador, o bacharel,
os que pretendem avançar para o mestrado, doutorado. No segundo plano, se encontravam
os estudantes com a intenção de lecionar e, por isso, no quarto ano realizavam as
disciplinas de Prática de Estágio, de didática, para apropriarem-se das condições
pedagógicas de repasse do conteúdo aos estudantes da escola básica.
A partir de 1996, mudanças começam a serem introduzidas e este modelo de
formação nos cursos de graduação de Filosofia é paulatinamente extinto. Com o apoio do
Ministério da Educação, no ano de 2000 é elaborada a Proposta de Diretrizes para a Formação
Inicial de Professores da Educação Básica, em Cursos de Nível Superior. Destaca-se, a partir
desta proposição, as Resoluções do Conselho Nacional de Educação-CNE/CP 01 e
02/2002 que condicionam os cursos de licenciatura a refletir acerca da sua obrigação de
formar profissionais vinculados tanto a pesquisa quanto as questões relativas ao ensino. De
certo modo, há um rompimento com as noções e práticas cristalizadas ao longo do tempo.
A relação entre teoria e prática, materializadas por meio do estágio supervisionado e a
prática de ensino são uma exigência nos cursos de licenciatura.
Obviamente, numa sociedade meritocrática, elitista, as disputas no campo
acadêmico refletem a disputa pelo poder. Como afirma Rosalvo Schutz:
A função da educação é, assim, reduzida a um instrumento determinado
no interior da luta de todos contra todos por uma melhor posição dentro
das relações de produção, uma vez que, fundamentalmente, por esta
posição, se define a parcela de cada indivíduo na riqueza socialmente
produzida. Este é o pressuposto, que não apenas marca de forma
progressiva o sistema de educação, reduzindo-o a mero instrumento na
luta por posições no interior do sistema produtor de mercadorias, mas
também é confirmado e aprofundado através deste (2012, p. 63).
Talvez, por isso, as mudanças oriundas destes embates fazem-se sentir
vagarosamente. A saber, é notório o fato de que ilibados doutores da área filosófica
posicionaram-se contrários ao ensino da Filosofia na escola básica no entendimento que
isso baratearia o conjunto dos saberes da tradição filosófica. Ironicamente, alguns
iluminados do conhecimento filosófico, trancafiados em suas torres de marfim, por vezes,
não perceberam o óbvio: não tem sentido a pesquisa se não houver o interesse pela sua
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divulgação e preocupação para que haja o correto entendimento advindo pelo processo
pedagógico do ensino e aprendizagem. O saber filosófico precisa ir onde os sujeitos
históricos estão. O conhecimento é um bem inalienável e necessita ser socializado entre
todos os seres humanos. Quer vivam na cidade, quer vivam no campo.
A Filosofia e a educação no campo
A Filosofia nasceu de um processo de superação do mito, numa procura de
explicações metódicas, rigorosas a respeito da vida na Grécia Antiga. O homem não
consegue viver no caos. Ele possui necessidade de explicar o que acontece ao seu entorno.
Assim, num primeiro momento utilizou-se da mitologia para situar-se no mundo para
posteriormente conseguir explicações no âmbito filosófico.
Feita estas considerações, e tendo presente toda a problemática exposta
anteriormente, pode-se afirmar que a Filosofia tem muito a contribuir com a educação no
campo. Ela favorece o pensamento da ordem social construída pelos seres humanos que
no (e do) campo buscam compreender o que ocorre no mundo.
Deste modo, no campo ou na cidade existe o homem que nas palavras do filósofo
Descartes ―pensa e se pensa, existe‖. E, no ato de exercitar o pensamento, o ser racional
envolve-se nos problemas filosóficos (cosmológico, teológico e antropológico). Em todo
caso:
(...) O exercício filosófico ocorre numa determinada realidade social e
política. Seu projeto pedagógico vela pelo bem público. Uma de suas
finalidades é a superação do senso comum (imediato, acrítico) pelo saber
científico (sistemático, crítico, reflexivo). Trata-se da passagem da
aparência para a essência, da obscuridade para a luminosidade
(FERNANDES, 2012, p. 2).
A Filosofia trabalha com o conceito. O filósofo (no sentido lato) é todo aquele que
se esforça para compreender a realidade na qual se encontra inserido. Filósofo, no sentido
abrangente da palavra é todo ser racional que faz perguntas, que deseja conhecer, amante
do saber. Por isso, o homem e a mulher do campo que se questionam constantemente são
filósofos. E por falar em questionamento, importa enfatizar as indagações propostas pelos
Cadernos Pedagógicos preparados para fundamentar o Seminário de Educação no Campo
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realizado na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE) nos dias 11,12 e 13
de julho de 2013.
A teoria educacional tem como função formular uma concepção de
educação a partir de um projeto histórico e discutir relações entre
educação e sociedade. As perguntas que dizem respeito à teoria
educacional são: Que tipo de homem se quer formar? Quais os fins da
educação? Educar com que concepção de sociedade?
A Filosofia é a indagação constante. Perguntas abrem novos horizontes, novas
possibilidades. Respostas, na medida do necessário, são importantes para nos fazerem
caminhar com segurança. A educação é condicionada pela sociedade. Para cada conceito de
homem corresponde um modo de educação e de luta para a construção da sociedade.
Todavia, não se trata de qualquer Filosofia e, sim, daquela que se liga a criticidade e
compromisso de uma teoria do agir comunicativo que:
(...) é construída a partir do horizonte da compreensão do mundo e da
realidade por parte dos educandos. Na comunicação solidária e
intersubjetiva, o sujeito aparece em sua dignidade própria como alguém
que não pode ser reduzido a sua dimensão instrumental. A relação
professor-aluno depende do reconhecimento recíproco entre sujeitos e
se encaminha numa dimensão libertadora (TESSER; HORN; JUNKES,
2012, p. 117).
Neste sentido, Marcos Gehrke corrobora com a reflexão compromissada com a
educação no campo. Seu empenho é pela edificação da identidade da escola no campo. De
acordo com seu entendimento isso não é uma dádiva, por isso depende do engajamento, da
mobilização dos trabalhadores que defendem a vida no campo. Logo, a escola do campo
vincula-se as lutas dos movimentos sociais (Movimento Sem Terra, Via Campesina, entre
outros). A manutenção da memória favorece a renovação da luta. A história da origem, do
desenvolvimento, dos embates conduz a vivência da organicidade e favorece a educação
humanizada. O filosofar engajado fortalece a práxis daqueles que se dedicam ao ensino no
campo.
Nas escolas do campo enfatiza-se a construção do conhecimento comprometido,
fundamentado teoricamente em função da práxis social transformadora. A mística, os
rituais, os debates, o diálogo ocorre na direção de fortalecer a consciência de classe. O
campo possui suas especificidades em relação à cidade e, deste modo, a educação no
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campo é peculiar e demanda uma reflexão filosófica que contribua com o fortalecimento de
sua identidade.
Destaca-se, entre os trabalhadores da educação vinculados ao campo, a importância
da base teórica pautado nas categorias de contradição e totalidade. Por isso, o engajamento
social e político, a filosofia da práxis, serem partes essenciais neste processo de luta por
uma escola no campo com qualidade:
O Brasil já passou por vários movimentos pedagógicos em torno da
escola e da educação no campo democrático, e todos surgem vinculados
a um movimento político maior. Compreendemos que a Escola do
Campo só acontece e se sustenta no projeto político dos movimentos
sociais, caso contrário será apenas uma experiência alternativa ou ficará
condicionada à política de governo (GEHRKE, 2009, p. 198).
É complexa a sociedade capitalista, os interesses são muitos e não há espaço para o
amadorismo, para a consciência ingênua. A cobrança dos docentes empenhados na
educação no campo é constante. O ideário filosófico é construir a educação no campo a
partir dela mesma. Para tanto, é indispensável uma formação filosófica, humana capaz de
possibilitar leituras e escritas do mundo campestre inserido numa lógica social-político e
econômica maior. ―A leitura da palavra é precedida pela leitura do mundo‖ (Paulo Freire) e
os pressupostos da Filosofia são basilares na solidificação de uma educação no campo
consistente, sistematizada, profunda e radicalmente voltada aos interesses dos habitantes do
campo.
Considerações finais
Nestes escritos buscou-se apresentar uma reflexão em defesa dos estudos
filosóficos de licenciatura, num primeiro momento. Na sequência, se apontou alguns
elementos históricos do ensino da Filosofia na história do Brasil. E, por fim, destacou-se a
relevância da Filosofia, quando voltada aos interesses da educação no campo em favor dos
que trabalham e defendem a sobrevivência a partir do campo.
Por sua vez, sabe-se das dificuldades enfrentadas pela educação no campo na
atualidade. O êxodo rural intensificado a partir da década de 70 fez as favelas nos grandes
centros aumentarem e na proporção inversa os moradores do campo diminuíram. Com a
falta de incentivos os pequenos produtores diante da falta de incentivo do Estado
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Capitalista sucumbem diante da concorrência com os grandes proprietários de terra. Com o
esvaziamento do campo em detrimento do inchaço da cidade, a defesa da educação no
campo fica ainda mais complexa. A reflexão filosófica, a educação comprometida em
formar o ser humano na sua totalidade é aquela que respeita as especificidades de cada
educando. Numa educação assim: (...) a relação entre professor e aluno é uma relação ativa,
de vinculações recíprocas, e que, portanto, todo professor é sempre aluno e todo aluno,
professor (GRAMNSCI, 2004, p. 399).
Ao compreendermos o ato de filosofar enquanto um processo contínuo tal qual a
vida. Ao entendermos a complexidade da sociedade capitalista, então, percebemos a
atualidade da afirmação de que ―o mundo precisa de filosofia‖. E, conforme o que fora
supracitado, é preciso uma reflexão filosófica que vá de encontro às especificidades dos
educandos do campo. Deste modo, entre outras coisas, explicita-se que não existe ‗a‘
filosofia e, sim, ‗as‘ filosofias. Que o saber filosófico contribua com uma educação no
campo engajada e em favor dos seres racionais que defendem a vida a partir do trabalho na
terra, especialmente, daqueles que dedicam-se a agricultura familiar.
Referências Bibliográficas:
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GEHRKE, Marcos. Formação de infâncias ledoras-escrevedoras: desafios da Escola do
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ORSO, Paulino José. As Possibilidades e os Limites da Educação. In: A Comuna de Paris de
1871: História e Atualidade. Paulino José Orso, Fidel Lerner e Paulo Barsotti (Orgs). São
Paulo: Ícone, 2002.
TESSER, Gelson João; HORN, Geraldo Balduíno; JUNKES, Delcio. A Filosofia e seu ensino
a partir de uma perspectiva da teoria crítica. In: Educar em Revista, Curitiva, Brasil, n. 46,
out./dez. 2012. Editora UFPR.
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ELUCIDAÇÃO DA CRÍTICA HOBBESIANA AO CONCEITO DE
MOVIMENTO DE ARISTÓTELES
Hélio da Siqueira
Unioeste
CAPES
[email protected]
Orientador: Jadir Antunes
Resumo: O objetivo deste trabalho é elucidar a crítica hobbesiana ao conceito aristotélico
de movimento. Para isso, faremos uma breve exposição da teoria do movimento de
Aristóteles. É o livro III da física de Aristóteles que traz uma definição rigorosa do
movimento. A física aristótelica é, do princípio ao fim, uma teoria do movimento nesse
sentido. A partir dessa definição mostraremos como Hobbes transporta a teoria do
movimento para as teorias da moral e política, ele entende que não apenas os corpos em
geral, mas também os homens se movem inercialmente, de modo que não apenas seus
movimentos físicos, mas também suas emoções se movem sem fim e sem repouso. Por
fim, mostraremos em que medida a teoria do movimento utilizada para explicar o
comportamento dos corpos em geral é utilizada por Hobbes para explicar o poder
cognitivo do homem, bem como as suas paixões e o seu comportamento.
Palavras-Chave: Movimento, zoon politikon, telos
A teoria do movimento para Aristóteles
Segundo Aristóteles, o movimento natural é teleológico, causado por uma
tendência natural do corpo a obter sua completude, a atualizar sua essência; sendo assim,
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ele é a ―atualização do que é em potência, a atualização do que é potencialmente, enquanto
é potencialmente, é movimento‖ (ARISTÓTELES, 1995, 179). O movimento tem um telos
e termina quando este passa da potência ao ato. Tudo o que se move naturalmete o faz
para a realização de sua essência natural, para seu acabamento. Desta forma ele é
teleológico, pois é causado por uma atração na direção de um fim, um propósito, um
objetivo, que os corpos têm tendência natural a realizar.
Segundo Yara Frateschi a teoria da tendência natural explica tanto o movimento de
uma pedra que cai como a natureza política do homem. O movimento natural do homem
que se inicia na união do macho com a fêmea, passando pela família, pela aldeia e
terminando na cidade, não é senão o movimento do homem tendendo naturalmente para o
seu bem, que reside na cidade. Pois é somente nela que os homens realizam plenamente a
sua natureza, atualizando o que são potenciamente.
De acordo com o conceito aristotélico de movimento, no que se refere ao repouso
nenhuma causa externa é necessária para o seu término, que ocorre naturalmente quando
se completa a atualização daquilo que se move. Um objeto repousa por si mesmo quando
alçança o seu lugar próprio, pois não há outra razão para se mover senão alcançá-lo.
Quando a causa final é iliminada por meio da realização do fim, é iliminada uma das
condições necessárias do movimento natural e, portanto, torna-se interiramente natural que
o movimento cesse. Sendo assim, a principal causa do movimento é a causa final.
De acordo com Ricardo Ernesto Rose, ao final do primeiro capítulo de a Política,
Aristóteles deixa claro o quanto a vida em sociedade é a situação ideal para o homem. Na
realidade, o estado natural da espécie humana é a associação. Fora da cidade, o homem
deixa de ser humano para se tornar uma fera (ROSE, 2011, p. 2).
Ainda segundo Rose, o homem assim que se associa aos seus semelhantes para
viver em sociedade, passa a pavimentar o seu caminho para a virtude; o mais nobre
objetivo da vida do homem. Além disso, em todo este processo civilizacional por que passa
o homem aristotélico, este adquirirá também uma formação cultural e política cada vez
mais elaborada, a paideia, no sentido grego. Na analise do homem feita por Aristóteles, esse,
é necessariamente predestinado a viver em sociedade, sendo este seu estado natural
(ROSE, 2011, p. 5).
A sociedade que se formou através desse movimento natural e da junção de várias
aldeias constitui a cidade, que tem a faculdade de se bastar a si própria, sendo organizada
não somente para conservar a existência, mas também para procurar o bem-estar.
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A cidade, ou sociedade politica, é mesmo o primeiro objeto que a natureza se
propôs. O todo é, necessariamente, anterior à parte. As sociedades domésticas e os
indivíduos não são mais do que as partes integrantes da cidade, totalmente subordinadas ao
corpo na sua totalidade, perfeitamente distintas pelas suas capacidades e pelas suas funções
e completamente inúteis se se separam, semelhantes ás mãos e aos pés, que, uma vez
separados do corpo, só conservam o nome e a aparência, sem qualquer realidade, como
acontece com uma mão de pedra. O mesmo se passa com os membros da cidade; nenhum
se pode bastar a si próprio. Quem quer que seja que não tenha necessidade dos outros
homens ou que não seja capaz de viver em comunidade com eles ou é um deus ou um
animal. Desta forma, a própria inclinação natural conduz através de um movimento natural
todos os homens a este género de sociedade.
Crítica de Hobbes a teoria aristotélica de movimento
Transportando a teoria do movimento para as teorias da moral e política, Hobbes
entende que não apenas os corpos em geral, mas também os homens se movem
inercialmente, de modo que não apenas seus movimentos físicos, mas também suas
emoções se movem sem fim e sem repouso. No mundo inercial todas as coisas tendem à
perscistência, sendo o homem uma criatura natural este não constitui uma execeção.
A diferença entre Hobbes e Aristóteles no que se refere ao conceito de movimento
é iluminada pela substituição de uma concepção teleológica de natureza (Aristóteles) por
outra que é mecânica (Hobbes). Pois como já foi visto anteriormente, para Aristóteles o
movimento natural é teleológico, causado pela tendência natural do corpo a obter a sua
completude, a atualizar a sua essência (FRATESCHI, 2008, P. 62).
Para Hobbes movimento é apenas mudança de lugar, indiferente a qualquer
processo teleológico: os homens não se movem na direção da atualização do que são
potencialmente, mas na direção dos benefícios almejados, exclusivamente por efeito de
causas efientes. Para ele o movimento não é a atualização do que é em potência como
afirma Aristóteles, mas pura e simplesmente mudança de lugar, ou seja, o estado de
movimento de um corpo só muda pela ação de outro corpo.
Dado que, todo corpo, uma vez em movimento tende a mover-se eternamente,
salvo se algo ou alguma força o faça parar, assim eles tendem, necessariamente, uma vez
em movimento, manter-se em tal condição cinética. É aparentemente, em torno dessa ideia
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que se fundamenta todas as ações humana (VASCONCELOS 2011, p. 263).
Ao contrário de Aristóteles, para Hobbes o movimento é explicado apenas e tão
somente pela causa eficiente, não restando na natureza hobbesiana nenhum lugar para a
causa final. Para ele, um corpo que está em movimento só para se um outro corpo o fizer
parar. Se o movimento não termina com a atualização do que é em potência, mas sim com
a ação de algo externo, é porque a carateristica básica do movimento é a perscistência a
continuação. Desta forma, Hobbes adere definitivamente ao novo modelo cosmológico
inercial que substitui o modelo teleólogico tradicional, de origem aristotélica.
A aplicação da teoria mecânica do movimento ao homem resulta na constatação de
que ele tende a persistir, isto é, a procurar os meios que lhe permita continuar vivo,
continuar o movimento. As circunstâncias em que se encontra o homem conjuga-se com
sua tendência ou inclinação natural à autopreservação; daí resultam suas paixões, enquanto
reações mecânicas a tais circunstâncias, reações de aproximação ou afastamento, conforme
os objetos externos afetem favorável ou desfavoravelmente o movimento vital. É essa
concepção da natureza humana, articulada em torno de uma formulação mecanicista de
tendência à autopreservação, que constitui a base da explicação hobbesiana do processo de
formação das afeições, escolhas e ações humanas. A tendência do homem é procurar os
meios para fazer com que o seu movimento, isto é, a sua vida, se perpetue (FRATESCHI,
2008, p. 72).
Tendo Hobbes alterado radicalmente a filosofia natural de Aristóteles, altera em
igual medida, as concepções de desejo felicidade e bem. Enquanto para Aristóteles o desejo
tende à sua aniquilação e, portanto, a um fim que é o bem, para Hobbes o desejo transita
continuamente de um objeto a outro. Assim que se atinge o fim proposto, este se torna
meio para outro fim. Dessa filosofia hobbesiana esta excluída, portanto, a existência de um
fim último, ou dito de outra forma, o sumo bem. Cedo ou tarde fins se tornam meios para
uma outra empreitada.
A felicidade consiste, então, na possilbilidade de continuidade desse movimento na
direção dos objetos do desejo. Para Hobbes, enquanto o homem viver possuirá desejos, e
será feliz uma vez que possua os meios para realizá-los. O homem nunca deixa de desejar,
isto é, o homem sempre almeja algo que não possui no presente. Com isso, ele recusa a
existência de um fim que seja a própria atividade. Uma vez extraída da natureza humana
essa instabilidade e essa inquietude, que se traduzem na busca incessante de fins que logo
se transformam em meios para outros fins, o que Hobbes faz é negar, em última instância,
a possibilidade de sua efetivação, por ser contrária à natureza humana. É importante
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entendermos a causa dessa inquitude do homem hobbesiano e saber porque ele deseja algo
que não tem. O que podemos dizer é que tem uma explicação mecânica para essa
instabilidade.
Hobbes descarta a possibilidade de que o homem viva em estado de indiferença
quanto aos objetos externos, ou de que possa atingir a perpétua tranquilidade de espírito.
Porque a vida é movimento, porque estar vivo é estar em movimento, enquanto vivermos
estaremos reagindo à ação dos objetos externos: pois não existe uma perpétua tranquilidade
de espirito enquanto vivemos, porque a própria vida não passa de movimento, e jamais
pode deixar de haver desejo, ou medo, tal como não pode deixar de haver sensação. Não
existe o estado absoluto de indiferença ou de tranquilidade porque de acordo com os
Elementos da Lei, 2010, p. 29 ―todas as concepções que temos imediatemente pela sensação
ou são de prazer, ou de dor, ou de apetite, ou de medo‖. Há uma explicação mecânica para
isso, os corpos sofrem a ação de outros corpos, e essa ação, que é movimento, gera
movimento. Portanto, enquanto houver sensação, haverá desejo. Se não há reação, a um
determinado objeto, é porque estamos sob a efeito da ação de um corpo fisíco mais
potente ou porque estamos mortos.
O homem é um ser racional e não procura apenas o bem presente, mas também é
capaz de projetar o bem futuro, ele deseja ter poder não apenas para satisfazer o desejo de
agora, mas também para continuar em movimento e garantir a satisfação de desejos
futuros. A expectativa de um bem ou de um prazer futuro envolve a concepção do nosso
próprio poder para alcançá-lo. Diante da insegurança gerada pela possibilidade constante
de que alguém venha a impedir a satisfação de seus desejos, o homem busca sempre
aumentar o seu poder, isto é, munir-se cada vez mais de novos meios para realizar seus fins
(HOBBES, 2008, p. 75).
A felicidade não consiste na posse de um bem soberano, mas na persistência segura
da vida enquanto movimento; ser feliz não é ter prosperado, mas prosperar: o sucesso
contínuo na obtenção daquelas coisas que de tempos em tempos os homens desejam, quer
dizer, o prosperar constante, é aquilo a que os homens chamam felicidade. A vida é
movimento, e todo o movimento tende a perscistir.
A instituição do poder absoluto é a única solução para a guerra, por ser ao mesmo
tempo restrição e reordenação do movimento humano, restrições e reordenações das
paixões humanas, as quais permitem a continuidade do movimento com mais seguraça e
permanência.
O que o homem deseja primeiramente é a obtenção daquilo que julga benéfico para
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si mesmo. Por natureza, não tende necessariamente a se reunir com os outros, mas tão
somente a procurar o que julga ser benéfico. A aplicação da teoria mecânica do movimento
na investigação do comportamento humano resulta no estabelecimento daquilo que é
vantajoso para o homem e na negação do princípio aristotélico de zoon politikon.
Se a sociedade política chegou a se constituir foi porque cada membro reconheceu
os meios mais eficazes para obtenção de benefícios permanentes e isso em virtude das
circunstâncias externas particulares vividas por eles no estado de natureza. Assim, a
sociedade não é um produto natural da atividade humana, mas um meio artificial para a
obetenção do que de fato é natural no homem, ou seja, o desejo de preservar sua existênia.
Por fim, Hobbes não concorda com Aristóteles de que sendo o fim da cidade o
sumo bem do homem, a cidade é natural, já que o homem tende naturalmente para o seu
bem. Em primeiro lugar a finalidade da cidade não é o sumo bem, por que não a há nada
nesse mundo que seja um sumo bem, todo o bem é sempre meio para que possamos
atingir um outro bem mais distante. Em segundo lugar, os homens se movem
continuamente na direção daquilo que consideram ser um bem para si mesmos, e não para
atualização do que eles são potencialmente. A cidade não é, portanto, um fim em si mesma,
mas o meio mais eficaz para que possamos garantir a nossa segurança e o nosso conforto.
(FRATESCHI, 2008, p. 84).
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______________, A Política. Martins Fontes, São Paulo, 2006
HOBBES, Thomas, Leviatã. Martins Fontes, São Paulo, 2008
______________Os elementos da lei natural e política, Martins Fontes, São Paulo 2010
FRATESCHI, Y. A. “A física da política – Hobbes contra Aristóteles”. Editora da UNICAMP,
São Paulo, 2003.
LUZ, Vasconcelos, Gerson. Força vital e Movimento animais: Fundamentação das ações humanas
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ROSE, Ernesto, Ricardo. O modelo político de Aristóteles e o de Hobbes. Disponível em:
http://www.consciencia.org. Acessado em: 01/07/2013
ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia
290
QUESTÕES CÉTICAS DO PIRRONISMO: DE PIRRO A ENESIDEMO
Henrique Zanelato
UNIOESTE
[email protected]
Gilmar Henrique da Conceição
RESUMO: O presente trabalho é fruto do desenvolvimento de meu projeto de iniciação
científica, que é centrado no estudo do ceticismo grego. Meus estudos visam estudar como
o ceticismo se estruturou a partir de Pirro, seu fundador, até Enesidemo, que teria
organizado os argumentos de forma mais sistemática que seus predecessores. Portanto,
estudo aqui a centralidade que tem os Tropos para esta estruturação do ceticismo. Para
isso, pretendo expor quais são os chamados Tropos, e de que forma eles foram utilizados
para refutar os argumentos dogmáticos acerca do conhecimento da verdade. Para tal, me
basearei nas duas principais obras para o estudo do ceticismo antigo: Hipotiposes Pirrônicas,
de Sexto Empírico, As vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, precisamente o capítulo A vida de
Pirro, de Diógenes Laércio.
Palavras-chave: Ceticismo. Pirronismo. Epoché. Tropos. Enesidemo.
O ceticismo grego é geralmente dividido em quatro períodos: o antigo ceticismo, a
nova academia, ceticismo dialético, e ceticismo empírico76. Depois de Pirro e de seu
discípulo, Tímon, é Enesidemo quem constrói, ou, pelo menos, organiza boa parte do que
se conhece do ceticismo. É basicamente sobre esse ―avanço‖ que tentaremos discorrer
aqui: a enumeração dos dez tropos e a busca de sua elucidação.
É concedido a Pirro o título de pai, ou fundador do ceticismo. Nascido em Élis,
Pirro teria exercido a pintura quando jovem, e, depois de algumas experiências, aplica-se
―ao caminho mais nobre da filosofia77―. Discípulo de Demócrito, Pirro foi um dos
seguidores de Alexandre em sua grande expedição que radicalizou a visão de mundo entre
os antigos no período helenista. Nesta viagem, ao ter contato com os magos persas e com
os gimnosofistas, ele teria incorporado ao seu modo de vida a epoché, ou suspensão do juízo,
para que fosse possível o alcance da tranquilidade do espírito (ataraxia), noção comum
76
77
BROCHARD, 2009.
LAÊRTIOS, 2008, p. 267.
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entre as demais correntes helênicas – estoicismo, epicurismo. Notando alguns aspectos da
filosofia e da própria vida dos homens comuns, encontra discórdia entre as opiniões de
todos, sentindo-se inseguro quanto a tomar posição a favor ou contra qualquer uma delas.
Aplicando a suspensão do juízo, Pirro evitaria afirmar qualquer coisa dogmaticamente,
chegando até a ataraxia, por não preocupar-se com as ―querelas dos dogmáticos‖. Ele,
então, passa a agir, na vida cotidiana, de forma a seguir os fenômenos, limitando-se a dizer
somente como as coisas lhe aparecem.
Como parece sustentar Brochard, os contemporâneos de Pirro parecem ter apenas
imitado seu modo de vida. Como admiradores, eles teriam tentado atingir a ataraxia, assim
como Pirro teria supostamente alcançado. Entre eles, destaca-se a figura de Tímon de
Fliunte:
Tímon nasceu em Fliunte, por volta de 325 a.C., e morreu em Atenas,
por volta de 235. Exerceu inicialmente o ofício de dançarino, depois
renunciou a ele e foi para Mégara, onde ouviu Stílpon. Retornou em
seguida para sua pátria, onde se casou; depois foi encontrar Pirro em
Élis; nessa época, Tímon já era célebre. A pobreza o obrigou a partir; ele
seguiu para a Calcedônia, onde enriqueceu ensinando e ainda aumentou
sua reputação. Enfim, estabeleceu-se em Atenas e, salvo uma curta
temporada em Tebas, nela permaneceu até a sua morte78.
Apesar de várias obras atribuídas a ele e algumas especulações sobre o que teria
sido tratado em algumas obras perdidas, o ceticismo em Tímon parece ter sido, ―como em
Pirro, mais uma reação contra as pretensões da antiga filosofia, uma renúncia a toda
filosofia sábia e ao aparato dialético do qual ela se cerca. Como seu mestre, é a prática, a
maneira de viver que ele tinha sobretudo em vista‖79.
Desse modo, o ceticismo de antigo, ainda não tão exigido pelo debate, não
ultrapassa os limites da ética teleológica antiga, ficando simplesmente preocupado com a
coerência entre a doutrina e a vida prática para alcançar a felicidade. Mas, conforme o
desenvolvimento das críticas ao ceticismo faz-se necessária uma espécie de elaboração,
requerido pelo aprofundamento dos debates filosóficos com os dogmáticos e com os
acadêmicos. Nessa perspectiva, metodologicamente não levaremos em conta aqui, o
ceticismo acadêmico, restringindo-nos ao estudo apenas do chamado pirronismo.
78
79
BROCHARD, Idem, p. 92.
BROCHARD, Idem, p. 102.
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Descartando a discussão acerca de uma possível lacuna do pirronismo encontrada
entre Tímon, discípulo de Pirro, e o chamado ceticismo dialético de Enesidemo, vamos
expor como este desenvolveu os seus tropos, ou tópicos, mostrados por Sexto Empírico e
por Diógenes Laércio.
A respeito de Enesidemo, pouco se sabe sobre sua vida.
Enesidemo nasceu em Cnossos, Creta, ou talvez na Egeia; ensinou em
Alexandria, não se sabe em que época. Num período de duzentos e dez anos (80
a.C. a 130 d.C.) não se pode designar-lhe um lugar com certeza. Alguns
historiadores dizem que ele viveu por volta de 130 d.C.; outros, no começo da
era cristã; outros, finalmente, veem nele um contemporâneo de Cícero80.
Comumente se diz81 que Enesidemo foi o primeiro a organizar os argumentos
céticos de forma ―sistemática‖, ao enumerar os dez tropos, mesmo que talvez eles já
fossem conhecidos dos céticos anteriores. Temos duas fontes principais acerca destes
argumentos: uma em A vida de Pirro, das Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, de Diógenes
Laércio; e a outra é em Sexto Empírico, em suas Hipotiposes Pirrônicas. Apesar de Sexto
expor uma análise mais exaustiva acerca de cada tropo, as duas obras são representadas
quase nos mesmos termos, sem que existam contradições entre uma e outra. Apenas uma
coisa difere da exposição de um para outro: ordem de alguns dos tropos. Mas isso será
destacado no momento adequado. Sexto nos diz que os tropos são formulados para
mostrar ser possível a refutação de um argumento por outro contrário (isosthéneia),
alcançando a suspensão do juízo (epoché), e, consequentemente, a tranquilidade (ataraxia).
Passemos então para a compreensão deles, seguindo a ordem de Sexto Empírico.
O primeiro tropo diz respeito às diferenças entre os animais: devido às diferenças
quanto às origens e quanto às estruturas dos órgãos dos sentidos entre os diversos animais,
é forçoso admitir que as percepções dos objetos não sejam as mesmas de um para outro.
Os alimentos que fortalecem alguns são nocivos a outros, a visão de alguns é mais aguçada
enquanto outros possuem um olfato melhor desenvolvido. Desta forma, o mesmo objeto
causa impressões diferentes de um animal para outro, e os sentidos do homem não podem
ser considerados como critério para um juízo correto, visto que alguns animais enxergam,
ou ouvem melhor.
O segundo é em relação às diferenças entre os homens: afunilando a questão,
mesmo que concedêssemos aos homens uma superioridade sobre os animais, mesmo assim
80
81
BROCHARD, Idem, p. 249.
LAÊRTIOS, 2008, p. 272.
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não poderíamos chegar a uma conclusão satisfatória, visto que um objeto causaria
diferentes impressões mesmo aos seres humanos. E isso não só em relação ao corpo
(sentidos) por alguns, como diz Diógenes Laércio, sentirem frio ao sol e se esquentarem na
sombra, mas também na alma, quanto as diferentes disposições, onde ―um busca a
medicina, outro, a agricultura e um terceiro, o comércio‖.
O terceiro é sobre a diversidade dos sentidos: ora, mesmo que seja admitido a
algum homem julgar sobre um objeto, não há como saber quais qualidades ele tenha
realmente, pois o objeto se lhe apresenta com diversas qualidades aos seus diferentes
sentidos. O mel, por exemplo, ―produz a impressão de ser pálido para os olhos, doce para
o paladar e aromático para o olfato‖. E da mesma forma para um único sentido, por
apresentar diferentes figuras quando vista por perspectivas ou em condições diferentes.
Segue-se daí que é impossível dizer com acerto o que é um objeto, pois ele pode possuir
uma só qualidade, em oposição ao modo em que aparece, ou possuir mais qualidade do que
as captadas pelos nossos sentidos.
O quarto tropo é dito acerca das diferentes circunstâncias em que podem se
encontrar os seres humanos: vista a impossibilidade de algum homem encontrar-se fora de
qualquer condição que seja ele é afetado de formas diferentes por um objeto quando em
uma e em outra dessas condições. O alimento aparece de uma forma para o indivíduo
saudável, e de forma diferente para o homem doente; as coisas aparecem, também, de
forma diferente para quem está sóbrio e para quem está embriagado. Assim como os
tropos anteriores, concluímos que se deve suspender o juízo.
Este é um dos que diferem na ordem entre os dois autores: enquanto é apresentado
em quinto por Sexto Empírico, no texto de Diógenes Laércio ele nos aparece como o
sétimo dos tropos. Ele é referido às situações, distâncias e lugares: um objeto pode ser
grande quando visto de perto, mas pequeno quando visto de certa distância; uma torre
quadrada pode ser considerada redonda caso vista de longe; um remo parece quebrado
quando dentro da água, mas reto fora. Da mesma forma que alguém não pode perceber
algo sem estar disposto em certas condições e circunstâncias, também não se pode isolar o
objeto das condições nas quais está inserido.
O sexto tropo diz respeito às misturas: não percebemos nada sem que o que é
percebido esteja separado do ambiente que o cerca. A luz, o ar, o calor, a umidade, o
movimento sempre vão interferir na nossa percepção: os objetos não tem a mesma
aparência quando expostos à luz do sol ou de uma lâmpada; uma pedra é leve e pode ser
facilmente levantada dentro da água, mas fora dela não.
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O sétimo também não se encontra na mesma posição nos dois textos: na obra de
Diógenes, ele se encontra como o oitavo. Este é desenvolvido para discorrer sobre as
quantidades ou composições dos objetos: também as quantidades das coisas nos causam
reações diversas. O vinho, por exemplo, nos fortalece caso ingerido moderadamente, mas,
se bebido em excesso, nos debilita; o alimento, da mesma forma; um grão de areia,
analisado separadamente, parece áspero, mas liso quando em montes.
O oitavo tropo é o último da ordem de Diógenes e diz respeito à relação: nada é
em si, mas sempre em relação ao outro: ninguém é pai, ou está à direita, ou é menor,
melhor, mais quente por natureza, mas sempre em relação a algo ao qual é comparado.
Ninguém é pai sem um filho; nada está à direita sem algo à sua esquerda para referência; e
assim com tudo o resto.
O nono é sobre a frequência ou raridade de acontecimentos: os terremotos causam
espanto maior aos que nunca o experimentaram ou que não o experimentam com
frequência, mas nem tanto aos que já se acostumaram com ele; o fato do sol aparecer todos
os dias é normal, mas se algum dia ele não aparecesse seria estranho.
O décimo tem relação com os costumes, leis e opiniões, e é o quinto da ordem de
Diógenes: este argumento mostra que em diferentes lugares as crenças morais são
diferentes. Entre alguns povos, os corpos dos mortos são queimados, enquanto em outros
lugares eles são enterrados ou atirados no pântano; alguns permitem a poligamia, e outros
não; as religiões e os governos também diferem de país para país.
Logo depois da exposição, Sexto Empírico diz ser possível agrupar esses dez tropos
em três grupos maiores, chamados por ele de espécies: os primeiros quatro tropos podem
ser subordinados a um único, baseado no sujeito que julga; o sétimo e o décimo podem ser
agrupados em outro, que se baseia no objeto julgado; e por último, os demais – quinto,
sexto, oitavo e nono – podem ser dispostos na espécie que se baseia em ambos (sujeito que
julga e objeto). E esses três podem, ainda, serem agrupados em um gênero, maior,
chamado de modo, ou tropo, de relação, que se encontra mais elevado.
Nessa hierarquia, então, todos os dez tropos agrupados formam o gênero de
relação; logo após, estão as três espécies: a do sujeito que julga, seja ele homem ou animal,
do objeto julgado, e o de ambos; e os dez, se tomados isoladamente, são classificados como
sub-espécies. Porém, antes de fazer essa classificação, Sexto Empírico deixa bem claro que
esta lista pode ser maior, e que a ordem é adotada sem prejuízo82.
82
SEXTO EMPÍRICO, 2000, p. 25
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Mas há um aspecto principal para o qual devemos chamar a atenção: assim como
em Pirro, os tropos de Enesidemo devem culminar na suspensão do juízo, a epoché. Sexto
destaca muito bem esse ponto no capítulo intitulado Dos Modos gerais que conduzem à suspensão
do juízo (Of the general Modes leading to suspension of judgement) dizendo que sua próxima tarefa
será mostrar como se alcança esta suspensão83, e então, no capítulo seguinte introduz aos
tropos. Segundo Sexto, entre os antigos céticos, como vimos acima, os modos que levam à
epoché são dez, mas logo após a descrição dos dez modos, ele84 e também Diógenes
Laércio85 inserem outros cinco modos, atribuídos aos céticos mais recentes: o primeiro
sobre o desacordo; o segundo sobre o regresso ao infinito; o terceiro sobre a relatividade; o
quarto sobre as hipóteses; o quinto sobre a reciprocidade.
Pirro se nega a tomar qualquer partido, a afirmar qualquer coisa dogmaticamente,
visto a equipolência, ou igualdade dos discursos, para alcançar a tranquilidade, ou seja, da
epoché segue a ataraxia. Posteriormente, se mostra como os céticos que procederam do
mestre para mostrar com maiores exemplos que, no fim das contas, tudo deve levar à
epoché.
Referências bibliográficas:
BROCHARD, Victor. Os céticos gregos. Tradução de Jaimir Conte. São Paulo: Odysseus
Editora, 2009.
GAZZINELLI, Gabriela. A vida cética de Pirro. São Paulo – São Paulo: Edições Loyola,
2009.
REALE, Giovanni. Estoicismo, ceticismo e ecletismo. São Paulo: Edições Loyola, 2011.
SEXTO EMPÍRICO. Outlines of Pyrrhonism. Tradução para o inglês de R. G. Bury.
Cambridge, Massachusetts, London, England: Harvard University Press, 2000.
LESSA, Renato. Veneno pirrônico – ensaios sobre o ceticismo. Rio de Janeiro: Francisco Alves
Editora: 1997.
LAÊRTIOS, Diôgenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Tradução Mário da Gama.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008.
Idem, p. 23.
Idem, p. 95.
85 LAÊRTIOS, 2008, p. 274.
83
84
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O PROBLEMA DO SER NO ÂMBITO DO ACONTECIMENTOAPROPRIATIVO
Jean Tonin
Universidade Estadual do Centro Oeste (UNICENTRO)
[email protected]
Orientador: Manuel Moreira da Silva
RESUMO: A partir da leitura da conferência Tempo e Ser, o presente trabalho procura
esclarecer a concepção heideggeriana do ser no interior do acontecimento-apropriativo86.
Busca-se assim, primeiramente, apresentar a tentativa do filósofo de pensar o ser pelo que
lhe é próprio; por conseguinte, mediante o que é próprio de ser e de tempo, o mutuo
determina-se de ambos no interior do Ereignis. Posteriormente, recorre-se à leitura de O
Princípio da Identidade para discutir mais adequadamente o acontecimento-apropriativo nos
limites de Tempo e Ser, elucidando a compreensão do comum-pertencer87 de pensar e ser.
Palavras-chave: Ereignis, Heidegger, Ser.
Heidegger parte da compreensão do ser como presença, pois o ser como presença é
um traço que perpassa todo o pensamento ocidental, somos levados a crer que ser se
determina pelo tempo. Já que presença é a ―característica do tempo junto com o passado e
o futuro‖ (HEIDEGGER, 1996, p. 253), ser como presença pressupõe uma determinação
pelo tempo, que por sua vez, sempre permanece. Assim, de algum modo, o tempo deve
determinar-se pelo ser.
Ser não se confunde com o ente, sua determinação pelo tempo não é como a de
um ente em um determinado curso temporal. Tempo não é temporal, o que é temporal
passa junto com o tempo, como faz o ente, contudo, tempo não pode ser pensado como
um ente qualquer. Do tempo sabemos que ele passa, e assim, em seu passar permanecendo,
possui presença. Assim sendo, tempo deve ser de alguma forma determinado pelo ser. Para
esclarecer essa relação, torna-se necessário saber o que é próprio de Ser e tempo.
Embora os textos-base utilizados sejam os traduzidos em Língua portuguesa por E. Stein, que verte Ereignis
– a partir do francês evénement-appropriation – por acontecimento-apropriação, optou-se por utilizar o termo
acontecimento-apropriativo.
87 Comum-pertencer traduz Zusammengehören. Expressão que busca acentuar o caráter recíproco de pensar e
ser ou, mais propriamente, a comunidade de homem e ser, sendo assim grafada, com destaque no pertencer
para mostrar que a comunidade em questão é determinada a partir do pertencer (Cf. HEIDEGGER, 1996, p.
175).
86
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Heidegger compreende que a relação entre ser e tempo só existe por uma
justaposição entre ambas, é uma relação que surge a partir das coisas mesmas que por elas
são nomeadas. Nessa compreensão, o filósofo pretende refletir acerca do que é próprio de
tempo e ser. Ser e tempo não são compreendidos como coisas, como um ente. Isso
porque, no dizer de Heidegger: ―Do ente dizemos: ele é. No concernente à questão ‗ser‘ e
no que diz respeito a questão ‗tempo‘, permanecemos cautelosos. Não dizemos: ser é,
tempo é: mas dá-se ser e dá-se tempo‖ (HEIDEGGER, 1996, p. 254). A partir desse modo
de pronunciar as questões, Heidegger procura conduzir o pensamento para tornar evidente
o dar se que resultam ser e tempo, ao passo que busca o esclarecimento do que é próprio
de cada questão.
Pensando sob o ponto de vista do que presenta, pre-sentar se mostra
como pre-sentificar. Trata-se, porém, agora de pensar esse pre-sentificar
propriamente, na medida em que é facultado pre-sentar. Pre-sentificar
mostra-se no que lhe é próprio pelo fato de levar para o desvelamento.
Pre-sentificar significa: desvelar, levar ao aberto. No desvelar está em
jogo um dar, a saber, aquele que no presenti-ficar dá o pré-sentar, isto é,
ser (HEIDEGGER, 1996, p. 254).
Essa passagem refere-se à tentativa heideggeriana de pensar no que é próprio do
ser, apresentando o modo que ocorre o ―dar‖ que dá ser. Pois o ser como presença se
presentifica a nós em sua abertura, para sabermos o que é próprio do ser devemos
acompanhar o presentificar, que é de onde fala o ―dar‖ que dá ser. Deve-se entender isso
para pensar o ser no que lhe é próprio. Para isso, devemos também, abandonar o modo de
pensar da metafísica, que pensa o ser a partir do ente e como seu fundamento. Pois, ser é
seu próprio dom que desoculta no presentar.
Um dar que somente dá seu dom a si mesmo, entretanto nisso mesmo se
retém e se subtrai, a um tal dar chamamos: destinar. De acordo com o
sentido de dar a ser assim pensado, é ser que Se dá, o que foi destinado.
Destinado, desta maneira, permanece cada ato de suas transformações
(HEIDEGGER, 1996, p. 256).
Para Heidegger o dar do ser não está no ente, mas em si mesmo, esse dar a si
mesmo é chamado por ele de destinar. O ser acontece de forma historialmente
determinada nesse destinar. Desse modo, em cada época o ser faz um apelo, que
imediatamente se subtrai em si mesmo, nesse sentido, todas as doutrinas metafísicas são
respostas a esse apelo, e não meras palavras produzidas ao acaso (HEIDEGGER, 1996, p.
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257). Na tradição do destino do ser, ele mesmo recebe sua determinação pelo seu dar-se. O
dar é compreendido então como um destinar.
Para Heidegger o homem situa-se no interior da abordagem pela presença, pois, o
presentar se direciona a ele, que por sua vez recebe como dom o dá-Se do ser. Essa é a
relação que faz o homem ser aquilo que ele é. Contudo, não é apenas o presente imediato
que nos alcança, o ausentar, do não-mais-presente e do ainda-não-presente, se presenta a
nós, não da mesma forma, mas de um modo próprio. A partir desse pensamento,
Heidegger afirma que o presente, passado e futuro são em si um alcançar, uma unidade do
caráter temporal que assim nos alcança.
O filósofo caracteriza a unidade do recíproco alcançar-se como pré-espacial,
podendo então, doar espaço de tempo, ou seja, ―dar‖ tempo. No alcançar iluminador de
passado presente e futuro, dá o espaço de tempo, e nesse, repousa a chamada dimensão.
Nesse sentido, o tempo que se dá pelo alcançar iluminador que é compreendido como
tridimensional, passado, presente e futuro. Contudo, essa unificação das três dimensões
deve ser determinada de algum modo.
Esta unidade das três dimensões repousa muito antes, no proporcionar
cada um à outra. Este proporcionar-se mostra-se como o autentico no
alcançar que impera no que é próprio do tempo, portanto como uma
espécie de quarta dimensão – não apensa uma espécie, mas um dimensão
efitivamente real (HEIDEGGER, 1996, p. 261).
Heidegger diz que o tempo é quadridimensional, sendo a última dimensão
apresentada, na verdade, a primeira, porque ela é o alcançar que determina as demais. Ela
ilumina ao passo que também retém, ou seja, ao passo que ela dá o espaço de tempo ela
também preserva o que no passado está recusado e no futuro retido. Assim, o dar que dá
tempo, o alcançar iluminador do quadridimensional, oculta-se em si mesmo, não há como
indicar onde ocorre o dar que dá tempo, pois esse se configura como pré-espacial, é
condição para o espaço de um onde.
Mostrou-se até aqui, que o dar que dá ser é um destinar da presença e o dar que dá
tempo é apresentado como o alcançar iluminador do âmbito quadridimencional
(HEIDEGGER, 1996, p.263). O que é destinado sempre repousa no alcançar iluminador
do tempo, assim, ambos se colocam mutuamente em uma unidade. O caráter de tal
unidade é o que agora procuramos clarear.
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O que vincula ambas as questões mutuamente, aquilo que conduz ambas
as questões não apenas para o interior daquilo que lhes é próprio, mas
que conserva em sua comum-unidade e ali as sustenta, a relação de
ambas as questões, o estado de coisas, é o Ereignis (HEIDEGGER, 1996,
p. 265).
Para Heidegger, aquilo que sustenta e conserva a questão de ser e tempo em sua
unidade, e que assim determina o lugar de ambos, é o acontecimento-apropriativo
(Ereignis). O filósofo não diz que ser e tempo sejam constituintes do acontecimentoapropriativo, o que ocorre é que ambos acontecem no interior do que lhes é próprio, ou
seja, acontece e apropria. O acontecimento-apropriativo acontece e apropriar tempo e ser,
se oculta no destino do ser e no alcançar iluminador do tempo (HEIDEGGER, 1996, p.
267).
Nesse acontecer e nesse apropriar que, à diferença da tradição, consiste para
Heidegger o comum-pertencer de pensar e ser ou de homem e ser, deve-se enfatizar a última
palavra; ―pertencer‖, no sentido que ela determina à primeira: ―comum‖, que representa a
comunidade. Ou seja, só é possível a comunidade entre Ser e homem por que eles se
determinam e se pertencem. Deve-se experimentar essa comunidade a partir do seu mutuo
pertencer. Para tanto, será necessário esclarecer o ―recíproco-acontecer‖, de ser e homem,
tal como o autor nos indica.
O homem é manifestamente um ente. Como tal, faz parte da totalidade
do ser, como a pedra, a arvore e a águia. Pertencer significa aqui ainda:
inserido no ser. Mas o elemento distintivo do homem consiste no fato de
que ele, enquanto ser pensante, aberto para o ser, está posto em face
dele, permanece relacionado com o ser e assim lhe corresponde. O
homem é propriamente essa relação de correspondência, e é somente
isso. (...) O ser se apresenta ao homem, nem acidentalmente nem por
exceção. Ser somente é e permanece enquanto aborda o homem pelo
apelo. Pois somente o homem, aberto para o ser, propicia-lhe o advento
enquanto presentar. Tal presentar necessita do aberto de uma clareira e
permanece assim, por esta necessidade, entregue ao ser humano, como
propriedade. (HEIDEGGER, 1996, p. 177).
Nesse trecho, Heidegger apresenta a relação entre ser e homem. No que foi dito,
ser é presença, e como tal, necessita do aberto da clareira, ou seja, sempre está entregue ao
ser humano, que constitui sua morada nesse aberto. Isso não quer dizer que ser precise do
homem para existir, ele somente torna-se claro ao entregar-se na clareira do homem. O
homem também é compreendido, em sua plenitude, por esta relação de correspondência.
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Isso indica que no recíproco entregar-se, temos o comum-pertencer de ser e homem, no
interior do qual, ambos recebem suas determinações essenciais.
Heidegger pretende, a partir do disso, adentrar no interior do comum-pertencer, para
isso, será necessário um salto, que como tal, se distancia do pensamento da metafísica
ocidental, que pensa somente o ser como fundamento. Para o filósofo ser é abismo (Abgrund), palavra alemã que significa sem fundamento, assim o ser para Heidegger é abissal,
ele não pode ter um fundamento que o funde. Só assim podemos compreender que
homem e ser, em um recíproco dar-se, alcançam juntos aquilo que lhes é essencial.
O filósofo afirma que devemos experimentar o comum-pertencer entre homem e ser,
para que se possa abrir os olhos para o que agora é no mundo da técnica (HEIDEGGER,
1996, p. 190) ao passo que também, na medida em que recebermos nossa essência no
acontecimento-apropriativo, enquanto comum-pertencer de ser e homem, podemos nele
abandonar as determinações que nos vem da tradição. Contudo, o importante é
compreender que ser e homem fazem parte de uma identidade, que enquanto tal, se
essência no acontecimento-apropriativo, ou seja, identidade é uma propriedade do Ereignis.
Assim a tentativa heideggeriana de pensar o ser por um saldo no abismo do sem
fundamento, é na verdade, pensar o ser como acontecimento-apropriativo, que nesse caso
é entendido como o abismo.
O ser foi pensado pela tradição de vários modos: ―ser enquanto ideia, enquanto
enérgeia, enquanto actualitas, enquanto vontade, sempre a partir do ente‖ (HEIDEGGER,
1966, p. 266). Poder-se-ia entender agora o ser enquanto Ereignis, isso seria o mesmo que
afirmar que Ereignis é subordinado ou derivado do ser, isso se mostra inverídico, pois como
foi apresentado, o ser como destino que repousa no alcançar iluminador faz parte do
acontecimento-apropriativo. Não que acontecimento-apropriativo seja conceito abarcador,
mas tempo e ser acontecem apropriados no Ereignis.
Ao dar como destinar pertence a suspensão, isto é, no alcançar do
passado e do porvir acontece o jogo da recusa do presente e da retenção
do presente. O agora nomeado: suspensão, recusa, retenção, mostra algo
como subtrair-se, em resumo: a retração. Mas na medida em que os
modos de dar por ele determinados, o destinar e o alcançar, residem no
acontecer apropriador, deve a retenção fazer parte do que é específico do
Ereignis (HEIDEGGER, 1966, p. 267-268).
Heidegger compreende que o dar do ser é um destinar, que acaba se retraindo em si
mesmo. No mesmo sentido, o dar do tempo é também um ocultar-se no próprio tempo,
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somente com a recusa do que não é mais presente do passado, com a retenção do ainda
não presente do futuro, o presente se pre-sentifica. Tanto em ser como em tempo, há um
subtrair-se. Como o destino do ser e o alcançar revelador do tempo residem no Ereignis,
Heidegger afirma, que o acontecimento-apropriativo retém sua propriedade em uma
subtração sem limites.
Desse modo, Heidegger nos diz que o que é mais próprio do acontecimentoapropriativo permanece ocultado por ele mesmo. Ou seja, em seu próprio sentido ele se
desapropria. ―Do Ereignis enquanto tal faz parte a Enteignis, o não-acontecer
desapropriador. Através deste último o Ereignis não se abandona, mas guarda sua
propriedade‖ (HEIDEGGER, 1996, p. 267). Desse modo, Heidegger diz que o
acontecimento-apropriativo retém sua propriedade.
Tempo e ser determinam-se mutuamente no acontecimento-apropriativo, o homem
por situar-se no aberto da clareira esta em um comum-apropriar-se com o ser, e, por
conseguinte, constitui sua morada no acontecimento-apropriativo.
Assim, Heidegger
assinala algo importante: ―de nunca sermos capazes de colocar o Ereignis diante de nós,
nem como algo que se opõe a nós, nem como algo que a tudo abarca‖ (HEIDEGGER,
1996, p. 267). Assim, não há como representarmos ou fundamentarmos o acontecimentoapropriativo, fazer isso seria tratá-lo como um ente, mas ele não ―é‖ nem mesmo ―se dá‖,
desse modo, sobre ele, não podemos nada enunciar. ―Que resta dizer? Apenas isso: o
Ereignis acontece-apropria‖ (HEIDEGGER, 1996, p. 268).
Em fim, apresentou-se a tentativa heideggeriana de pensar o ser no que lhe é
próprio, sem sua relação com o ente, ou seja, sem a metafísica. A partir do que é próprio de
tempo e ser, pelo modo que estes se dão, compreende-se que ambos se determinam
mutuamente, o que prepara o caminho para aceder-se ao interior do acontecimentoapropriativo. Este não pode ser questionado, nem conhecido; dele só se pode ter
experiência; no dizer de Heidegger (1966, p. 252), ―não se trata de ouvir uma série de frases
que enunciam algo; o que importa é acompanhar a marcha de um mostrar‖. Não se trata
portanto de buscar um modo de dizer o Ereignis, pois dele só se pode dizer que acontece e
apropria.
Referências Bibliográficas:
ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia
302
___________. Conferencias e escritos filosóficos. Trad. de Ernildo Stein. São Paulo: Abril
Cultural, 1996.
___________. Identidad y Diferencia. Traducción de Helena Cortés y Arturo Leyte.
Anthropos, Barcelona, 1988.
STEIN, Ernildo. Nas Proximidades da Antropologia: Ensaios e conferências filosóficas. Ujuí:
Unijuí-RS, 2003.
ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia
303
A TEORIA DA EMANCIPAÇÃO EM KARL MARX E JÜRGEN HABERMAS
Jonece Beltrame
Doutorando UFPB / Bolsista Capes
[email protected]
RESUMO: Este texto apresenta o projeto de pesquisa de doutorado vinculado ao
Programa Interinstitucional de Pós-Graduação em Filosofia UFPB/UFRN/UFPE. Possui
como objetivo compreender o desenvolvimento histórico conceitual da teoria da
emancipação, investigando as teorias de Karl Marx e de Jürgen Habermas a partir de duas
categorias distintas: trabalho e interação. E partindo desses conceitos, como se dá
finalmente, a teoria da emancipação. Nossa hipótese consiste em analisar a concepção de
emancipação em Marx e Habermas e observar as semelhanças, as diferenças e as
aproximações destas teorias.
Palavras-chave: Emancipação. Trabalho. Interação. Marx. Habermas.
A emancipação é uma noção que se vincula a Filosofia da História e a Filosofia
Prática. Em seu desenvolvimento histórico conceitual, a emancipação converteu-se em um
conceito de movimento e no século XVIII torna-se o denominador justificável para
algumas reivindicações que perseguiam a eliminação da desigualdade política, econômica,
jurídica e social. Essa expressão torna-se, no Iluminismo, numa concepção que exige a
eliminação do poder pessoal do ser humano sobre o ser humano.
A teoria da emancipação em Marx vincula-se à concepção de natureza humana, na
qual a ideia de homem é dada pelas categorias de trabalho, de ser social e de ser histórico.
A alienação enquanto negação da essência humana, presente nos Manuscritos econômicofilosóficos, perde seu status de centralidade, na obra A ideologia alemã. Nela o homem passa a
ser um ser histórico e social, atenuando-se a ideia de alienação. É pelo trabalho que o
homem emancipa-se da natureza – primeira natureza humana – estabelecendo uma
natureza histórica e social – segunda natureza humana. O problema é que esta segunda
natureza humana encontra-se em uma sociedade histórica cuja forma de existência é uma
condição de exploração, dominação, opressão e alienação. Uma condição histórica social de
não emancipação, pois o trabalho e a sociedade definem a natureza humana, no entanto,
esta sociedade histórica provoca a alienação e opressão no trabalho e no social. Este é o
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elemento que dá unidade ao pensamento marxista, a finalidade é atingir o livre
desenvolvimento do humano.
Em Habermas, a teoria da emancipação vincula-se à concepção de natureza
humana – a ideia de homem fundamenta-se na razão e na comunicação, esta última como
linguagem e interação. A partir dessa relação – razão e comunicação, interação e linguagem
–, a emancipação vincula-se ao interesse de liberação, ao interesse do conhecimento. As
noções de interesse e de conhecimento são importantes, pois em Habermas a autorreflexão
corresponde a emancipação e o conceito de interesse é o mediador para a emancipação.
Habermas atenua a ideia de conflito, não utiliza mais a noção de alienação em
contraposição a emancipação, há o conflito e este é caracterizado como a impossibilidade
plena na comunicação – a comunicação é restrita e restringida – e o interesse universal da
emancipação é constrangido. Na ontologia habermasiana o homem é comunicação, e a
linguagem é a centralidade da natureza humana – atenua a ideia de essência humana. A
questão torna-se simbólica dado que a ideia de comunicação e a ideia de emancipação
corresponde à comunicação livre, embasando, por sua vez, os conceitos de interação e
interesse.
Um dos elementos da teoria da emancipação humana em Marx é a crítica à
desigualdade social, econômica e política, presente na sociedade capitalista e legitimada pela
emancipação política, constituição do Estado moderno, caracterizada como ―redução do
homem, por um lado, a membro da sociedade civil, indivíduo independente e egoísta e, por
outro, a cidadão, a pessoa moral‖88. Todavia, segundo Marx, a emancipação política não
constitui a forma plena, livre de contradições. A emancipação humana, afirma Marx em A
questão judaica, depende das seguintes condições,
a emancipação só será plena quando o homem real e individual tiver em
si o cidadão abstrato; quando como homem individual, na sua vida
empírica, no trabalho e nas relações individuais, se tiver tornado um ser
genérico; e tiver reconhecido e organizado as suas próprias forças (forces
propres) como forças sociais, de maneira a nunca mais separar de si esta
força social como força política89.
A emancipação humana funda-se numa tripla exigência de da conciliação: entre
homem e natureza; entre homem e sociedade; entre homem e homem. Constitui-se na
superação, supressão e transcendência de toda forma de alienação existente no contexto da
88
89
MARX, 1975, p. 63.
MARX, 1975, p. 63.
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305
produção e reprodução da vida, na superação da alienação no contexto da produção social,
do trabalho e da práxis90.
Na Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel, Marx identifica o proletariado
como classe responsável por promover a emancipação. É a primeira vez que Marx utiliza o
termo proletariado em seus escritos.
O comunismo, afirma Marx nos Manuscritos, é a realização da emancipação humana,
sendo ―a posição como negação da negação é, pois, o movimento da emancipação e
recuperação humanas, momento efetivo e necessário para o movimento histórico
seguinte‖91. Este não significa o fim do desenvolvimento humano, ―é a configuração
necessária e o princípio energético do futuro próximo, mas o comunismo não é como tal, o
objetivo do desenvolvimento humano, a configuração da sociedade humana‖92. Segundo
Marcuse, a emancipação humana proposta por Marx implica a existência de uma ―ordem
em que o princípio de organização social não seja a universalidade do trabalho, mas a
satisfação universal de todas as potencialidades individuais que constituem o princípio da
organização social‖93.
Em A ideologia alemã ao tratar do desenvolvimento dos indivíduos, Marx afirma que
―esse desenvolvimento é determinado justamente pela conexão entre os indivíduos, uma
conexão que em parte consiste em pressupostos econômicos, em parte na solidariedade
necessária ao livre desenvolvimento de todos‖94.
No Manifesto do Partido Comunista, ao tratar das relações entre trabalho, produção e
emancipação, Marx reitera que ―quando o capital é transformado em propriedade comum,
pertencente a todos os membros da sociedade, não é a propriedade pessoal que se
transforma em propriedade social. O que se transformou foi o caráter social da
propriedade. Este perde seu caráter de classe‖95.
Na obra Grundrisse, afirma Marx,
quando mais fundo voltamos na história, mais o indivíduo, e por isso
também o indivíduo que produz, aparece como dependente como
membro de um todo maior: de início, e de maneira totalmente natural na
família e na família ampliada em tribo (Stamm); mais tarde, nas diversas
formas de comunidades, resultantes do conflito e da fusão das tribos.
LÖWY, 2002, p. 97.
MARX, 1975, p. 22.
92 MARX, 1975, p. 22.
93 MARCUSE, 1969, p. 267.
94 MARX; ENGELS, 2009, p. 423.
95 MARX; ENGELS, 2010, p. 53.
90
91
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306
Somente no século XVIII, com a ―sociedade burguesa‖, as diversas
formas de conexão social confrontam o indivíduo como simples meio
para seus fins privados, como necessidade exterior. Mas a época que
produz esse ponto de vista do indivíduo isolado é justamente a época das
relações sociais (universais desse ponto de vista) mais desenvolvidas até
o presente96.
Os indivíduos que produzem não se efetivam enquanto produtores de suas relações
sociais, em todas as formas de sociabilidade espontânea, contrariamente, eles são
determinados a partir de fora, pelas relações sociais inconscientes.
A obra O Capital repousa sobre a concepção básica de uma dialética da história e
tem como pressuposto desvendar a forma da alienação. Marx estabelece como intenção
crítica descobrir a forma do modo capitalista de produção que domina a sociedade
burguesa enquanto lógica da alienação. A preocupação não se encontra em provar as
condições de possibilidade da alienação – prova dialeticamente fundada que torna possível
a superação. Marx pressupõe isso, quando seguindo a lógica imanente do capital elabora
sua contraditoriedade97.
A contradição básica do modo capitalista encontra-se no fato de os indivíduos
agentes deixarem-se determinar e dominar pela forma do capital. O capital é trabalho
objetivado que extrai sua força e mobilidade da manipulação do trabalho real, se comporta
como se autofundamentasse a partir de si mesmo, promovendo a negação contínua do
trabalho vivo, juntamente com a negação dos indivíduos vivos. Portanto, a intenção de
promover uma crítica, na lógica de seu desdobramento é a de possibilitar a efetivação da
práxis humana, superando o economicismo que destrói as relações sociais98.
A teoria crítica da sociedade em Habermas, situada na tradição filosófico histórica
que vai de Kant a Adorno, Horkheimer e Marcuse, passando por Hegel, Marx e Freud,
possui uma forma de reflexão sobre história da humanidade, na qual reflete-se acerca da
história passada com a finalidade prática, que é a descoberta de determinados temas gerais
de desenvolvimento e que pode orientar na tarefa de fazer avançar a história de forma mais
consciente e racional. Essa reconstrução teórica do desenvolvimento histórico ocorre a
partir de duas dimensões: da dimensão técnica, que reflete a relação do homem com a
natureza externa; e da dimensão prática, que reflete a relação do homem com o ser
MARX, 2011, p. 14.
MARX, 2010.
98 GRAMSCI, 2011.
96
97
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307
humano. Essa reconstrução histórica pode se dar na análise do desenvolvimento
progressivo das instituições sociais99,
falamos, portanto, de um interesse técnico ou prático na medida em que,
através de recursos da lógica da pesquisa, as conexões vitais da atividade
instrumental e das interações mediatizadas pelos símbolos pré-molduram
o sentido da validade de enunciados possíveis de tal forma que estes,
enquanto representam conhecimento, não possuem outra função senão
aquela que lhes convêm em tais contextos vitais: serem aplicáveis
tecnicamente ou serem praticamente eficazes100.
A distinção entre o trabalho – ação dirigida à consecução de um fim – e a interação
– ação comunicativa – é o instrumento teórico com o qual Habermas esboça um esquema
interpretativo da evolução da sociedade e da história da humanidade. Seu diagnóstico sobre
a sociedade contemporânea revela uma crescente tendência da dimensão técnica invadir e
eliminar a dimensão prática – social ou da moralidade101.
Em Conhecimento e interesse, Habermas define nos seguintes termos os interesses do
conhecimento,
chamo de interesses as orientações básicas que aderem a certas
condições fundantes da reprodução e da autoconstituição possíveis da
espécie humana: trabalho e interação. É por isso que cada uma destas
orientações fundamentais não visam à satisfação de necessidades
empíricas e imediatas, mas à solução de problemas sistêmicos
propriamente ditos102.
De acordo com a definição, o conhecimento humano não pode ser compreendido
independentemente de uma reflexão sobre o que o processo histórico nos ensina sobre o
ser humano: que este se especifica frente ao animal pelo duplo fato de transformar,
primeiro, as condições materiais que determinam suas relações com a natureza externa e,
segundo, as normas que regulam as relações dos indivíduos entre si.
O interesse emancipatório corresponde ao processo histórico da autoconstituição
humana. Esse processo é concebido como a liberação progressiva do homem das
condições reais opressoras causadas por uma natureza externa não dominada e por uma
UREÑA, 1978, p. 95.
HABERMAS, 1987, p. 217.
101 WELLMER, 1985, p. 310.
102 HABERMAS, 1987, p. 217.
99
100
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natureza própria deficientemente socializada. O interesse técnico e o interesse prático
aparecem, assim, como duas especificações de um mesmo interesse emancipatório.
Habermas chega ao interesse do conhecimento emancipatório através de uma
ciência determinada, a psicanálise. Na psicanálise, teoria e terapia, autoconhecimento e
autoliberação convergem. Neste caso, não ocorre uma separação entre conhecimento e
aplicação, o interesse de emancipação, libertador, do conhecimento psicanalítico é
inseparável do conhecimento. Na obra Conhecimento e interesse, Habermas tem na psicanálise
um modelo de ciência emancipadora na qual a filosofia poderia se inspirar103.
Em Teoria do agir comunicativo Habermas responde pela exigência de emancipação
formulada pela Teoria Crítica desenvolvendo e aprofundando um novo paradigma
encarregando-o de reconstruir normas de vida em sociedade. Trata-se do paradigma da
comunicação, da intersubjetividade. A linguagem torna-se princípio da razão e a razão
torna-se ato. Trata-se da linguagem enquanto pressuposto que possibilita a sociedade e a
justiça – não é simples meio, fonte de erro e de manipulação.
A investigação da emancipação a partir de duas categorias diversas – a de interação
de trabalho em Marx e a de interação em Habermas – justifica-se pelo fato de que
proporciona a compreensão de um esforço contínuo em refletir o desenvolvimento
conceitual desta noção; em compreender a forma como Marx e Habermas desenvolvem
suas teorias sobre a emancipação; e em reconstituir a compreensão histórico conceitual
desta noção a partir destes preceitos.
Referências bibliográficas:
DUPEYRIX, Alexandre. Compreender Habermas. São Paulo: Loyola. 2012.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Vol. I. 5ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira,
2011.
HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e interesse. Rio de Janeiro: Guanabara. 1987.
___________. Connaissance et intérêt. Paris: Gallimard. 1976.
KOSELLECK, Reinhart. Historias de conceptos Estudios sobre semántica y pragmática del
lenguaje político y social. Madrid: Editorial Trotta. 2012.
O modelo psicanalítico deixará de ser adequado para desenvolver uma teoria da emancipação, Habermas, a
partir de 1970, estabelece os fundamentos de uma teoria da comunicação, concebida como aliança entre uma
teoria da sociedade e uma teoria da linguagem (DUPEYRIX, 2012, p. 47).
103
ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia
309
LÖWY, Michael. A teoria da revolução no jovem Marx. Petrópolis: Vozes, 2002.
MARCUSE, Herbert. Razão e revolução. Hegel e o advento da teoria social. Rio de Janeiro:
Editora Saga, 1969.
MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. Manifest der Kommunistischen Partei. Stuttgart: Reclams
Universal. 2010.
_____. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2009.
MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos. São Paulo: Abril, 1975.
_____. Grundrisse. São Paulo: Boitempo, 2011.
_____. O Capital. Crítica da economia política. Livro Primeiro: Vol. I e II. 27ª Ed. Rio de
Janeiro: Civilização brasileira, 2010.
UREÑA, Enrique M. La teoria crítica de la sociedad de Habermas la crisis de la sociedad
industrializada. Madrid: Tecnos. 1978.
WELLMER, Albrecht. Comunicazione e emancipazione: riflessioni sulla svolta della Teoria
crítica verso l´analisi del linguagio. In: AGAZZI, Emilio. Dialettica della razionalizzazione.
Milano: Edizioni Unicopoli. 1985. P. 297-324.
ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia
310
NOVO HOMEM
Josete Rockenbach
[email protected]
RESUMO: O tema ‗o novo homem‘ trata do fluxo eterno de humanos, tendo em vista
que a todo o momento novos homens vêm ao mundo e outros desaparecem, indo para
lugar nenhum. Arendt (2004) apresenta a natalidade como perspectiva desse novo domínio,
em que a pluralidade é aparente na história dos humanos, e estabelece uma perspectiva
distinta sobre o homem, suspendendo a lógica argumentativa que trata das essências e do
universal, apresentando a perspectiva da aparência e permanência, que diz respeito ao
domínio dos assuntos humanos.
PALAVRAS-CHAVE: Liberdade, política, humanidade, natalidade.
O termo ‗natureza‘ explica-se como um princípio de movimento que se produz por
si. Pode-se acrescentar que é um princípio de vida que cuida bem dos seres em que se
manifesta. Sobre a natureza humana as concepções e teorias apresentam algo que mistifica
ou cientifica a existência do homem. As tentativas de identificar o ponto de partida deixam
em aberto a natureza do homem. Desse modo, partimos para um enfoque sobre a condição
humana com os argumentos para fundamentar a pluralidade humana e dar início à
perspectiva da natalidade humana.
A concepção sobre a natureza humana tem aspectos que não se sustentam ao
serem questionados. O conceito usualmente apresentado para defini-la vincula-se a uma
divindade. Então, se o homem tem capacidade e qualidades semelhantes a uma divindade,
estamos falando de uma natureza divina. Essa forma de conceber essa natureza considera
mais a causa que o efeito, ou seja, privilegia a divindade em detrimento da humanidade. Ao
privilegiarmos a causa e desconsiderarmos o efeito que, neste caso, são os homens e o
mundo que os cerca (a realidade), valorizamos a causa sobrenatural, e, partindo disso, a
concepção da natureza foge a qualquer fato que consigamos comprovar. Dessa forma, o
homem é visto como um único homem, possuidor de capacidades e qualidades que
presumem algo de sobrenatural ou divino, o que não é compatível com a pluralidade104 dos
homens.
104
Cf. Arendt (2004, p. 188).
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311
Por sua vez, a concepção científica diz que o homem tem sua origem na matéria
inorgânica. Se a origem da vida é a matéria inorgânica, poderíamos supor que os cientistas
conseguissem comprovar sua existência, mas tal afirmação carece de provas. Se a origem da
vida está vinculada à evolução da vida humana na Terra a partir da vida animal, isso não
justifica o novo, que sempre acontece à revelia da certeza estatística e probabilística da
ciência. O novo é sempre algo inesperado, incalculável e, por fim, inexplicável em sua
causa.
Diante disso, resta-nos observar que elas não passam de crenças para conceber a
natureza do homem. Para definirem a natureza humana, tais concepções consideram ‗o
homem‘ como ser único e permanente, idêntico e igual. É como se os homens fossem
repetições intermináveis de um modelo, todos com a mesma natureza, e assim, tudo seria
previsível105, tudo estaria determinado.
Isso porque há necessidade de colocar uma ordem, estabelecer a origem e as
propriedades comuns a todos os homens. A propensão de encontrar um modelo universal,
a partir da essência primordial, da ideia, do modelo universal de homem, representa uma
verdade infalível. Revela mais a percepção interior do que a exterior, entidade separada do
particular, superior à realidade, que jamais se extingue, nunca muda. Ou seja, a Ideia é
imutável, eterna e estática, e é apreendida pela razão. Determina a essência do homem e
apresenta um modelo universal de homem.
Se o homem aparece e desaparece, nasce e morre se suas relações estão em
constante mudança, em processo interminável de transformações, podemos concluir que
cada homem é diferente de qualquer homem que tenha existido. Diante do argumentado,
consideramos que o nascimento expressa o novo que vem ao mundo, elimina a
continuação e repetição de um modelo, revela a pluralidade. Cada ser humano difere de
todos os que existiram, existem ou virão a existir.106 As atividades do homem demonstram
que cada homem é diferente do outro. Por isso o homem necessita da fala para
compreender o outro. O sentido de igualdade está relacionado à liberdade que todo
homem tem para expressar essa alteridade (capacidade de distinguir-se e exprimir a sua
diferença perante o outro) e, apesar disso, poder planejar e prever as necessidades das
gerações vindouras.
105
106
Cf. Arendt (2004, p. 16).
Cf. Arendt (2004, p. 188).
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312
Considerando-se a perspectiva da aparência e permanência, o homem aparece no
mundo e é pelos sentidos físicos que apreende o mundo. O aparecimento físico original do
homem, ao nascer, garante uma identidade física sem qualquer atividade própria. Esse
aparecimento físico é um fato original e singular, que expressa as diferenças entre os
homens. A existência de um homem está sempre vinculada à existência de outros homens.
Ao aparecer, aparece a alguém no mundo. Nascemos para sermos percebidos. Destacamos
que essa relação do homem com o homem acontece em um espaço da aparência, um
mundo que é permanente e que compõe a história da humanidade. O espaço da aparência
existe sempre que os homens se reúnem para conversar e agir sobre as coisas do mundo
que os relacionam e interligam. Com isso, o que é permanente é o mundo que sempre
existiu e existirá, enquanto os homens aparecem e desaparecem – ―em um mundo que
precede a nossa própria chegada e que sobreviverá à nossa partida‖.107 Estabelecemos a
natureza fenomênica do mundo como a sua principal característica – a permanência.
Consideramos a perspectiva da aparência e da permanência a fim de refletir sobre os
assuntos humanos.
É sobre o mundo que nos aparece que iniciamos nossas ações, pois o mundo
contém muitas coisas para serem vistas, ouvidas, tocadas, cheiradas, enfim, para serem
percebidas. Em relação à existência do homem, podemos dizer que ―não é o Homem, mas
os homens quem habita o planeta. A pluralidade é a lei da terra‖.108 A dimensão da
aparência é o que apresenta o ser vivo. Todos têm receptores das aparências: olhos,
ouvidos, olfato, tato, paladar. O que aparece é para ser percebido. Imaginemos o deserto,
um lugar em que não há o que ser percebido e não pode ser percebido por nada e por
ninguém. Nada existe no singular. É na pluralidade que as coisas aparecem no planeta.
Tudo que existe no mundo está destinado a ser percebido por alguém.
Estar vivo significa: primeiro, que vivemos em um mundo que precedeu a nossa
própria chegada e que sobreviverá a nossa própria partida; segundo, que estamos possuídos
por um impulso de automostração, que corresponde à dimensão de aparência. Se aparece,
aparece a alguém, ao expectador, porque ―tudo o que pode ver deseja ser visto, tudo que
pode ouvir pede para ser ouvido, tudo que pode tocar, pede para ser tocado‖.109 Esse
impulso de ―automostração‖110 é distinto do instinto (da preservação da vida) e transcende
Cf. Arendt (2000, p. 31).
Cf. Arendt (2000, p. 29).
109 Cf. Arendt (2000, p. 30).
110 Cf. Arendt (2000, p. 31).
107
108
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313
o que é necessário à atração sexual (a permanência da espécie). Esse impulso de se mostrar
ao outro, ver e ser visto pelo outro, tocar e ser tocado por outro, é um indicativo de como
a aparência interfere no desenvolvimento das capacidades exclusivamente humanas.
É claro que há sempre um elemento de ilusão em toda aparência. E a ilusão só é
possível no meio das aparências. Nessa relação de aparência e ilusão, o que leva à certeza é
a permanência do que aparece. A ilusão parece, mas não é, pois no conjunto de percepções
a ilusão é desfeita. Há uma opinião sobre aquilo que é percebido e todos concordam.
Apresenta-se a todos os espectadores. O real se mostra, aparece aos sentidos e tem sua
permanência no mundo.
A autoapresentação111 é o que caracteriza o ser humano. A primazia da aparência,
para o homem, é o modo como o mundo aparece aos seus sentidos, o que tem grande
relevância para as atividades mentais, das quais se origina a atividade da ação. Há uma
escolha ativa sobre o que deseja ser apresentado, que decide o que esconder ou o que
mostrar. Isso só é possível devido ao caráter reflexivo das atividades do espírito. O
comportamento pode esconder o medo e mostrar a coragem. A autoapresentação é o
resultado da decisão de cada homem que lhe impulsiona a aparecer aos outros, com atos e
palavras, e mostrar quem é.
Compreendemos a pertinência e relevância da perspectiva da aparência e
permanência com relação aos assuntos humanos ao entendermos que cada novo homem
que vem ao mundo se insere em um mundo que antecedeu a sua chegada e permanecerá
após seu desaparecimento, e que a renovação requer a atenção no sentido de resguardar o
que é humano.
A condição humana corresponde às atividades e capacidades humanas, que
dependem das condições existentes onde foi dada a vida ao homem – pois os homens ―são
seres condicionados ao mundo onde a vida lhe foi dada‖112. A condição humana vai além,
no sentido de acrescentar algo ao recém-chegado – aquilo que resulta das percepções. Esse
novo homem chega bem equipado e entra em contato com o mundo que aparece e com a
História da humanidade.
A vida foi ―dada‖ ao homem na Terra. É a partir do momento em que se ‗dá‘, em
que aparece a vida, que o novo homem, no singular, é um novo começo. O novo homem,
o recém-chegado incide sobre um mundo humano, e a convivência (caracterizada pelas
111
112
Cf. Arendt (2000, p. 31).
Cf. Arendt (2004, p. 18).
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teias de relações humanas) possibilita o seu desenvolvimento e o contato com o mundo
humano. O mundo que aparece aos sentidos e às atividades são a condição da existência
humana. Uma coisa sem a outra não existiria. O que dá a condição de existência humana
no mundo são as atividades do trabalho, da fabricação e da ação. Estas têm a tarefa de
―produzir e preservar o mundo para o constante influxo de recém-chegados que vêm a este
mundo na qualidade de estranhos, além de prevê-los e levá-los em conta‖113.
O trabalho é uma atividade condicionada às necessidades vitais do processo
biológico do corpo. A fabricação/arte é a atividade que produz coisas (cadeiras, livros, carros,
casas, telefone, obras de arte) que permanecem no mundo, regidas pela utilidade e beleza.
A ação, atividade decorrente do ímpeto de começar, impulso de autoapresentação, ocorre
quando somos estimulados pela presença dos outros com os quais desejamos estar, a nos
inserir no mundo humano. A revelação, pela ação e pelo discurso, ocorre quando estamos
com os outros, no gozo da convivência. Podemos dizer que é no espaço entre os homens e
fora dos homens que se estabelece a característica exclusiva dos homens – a ação. A ação e
o discurso, quando vêm à tona, representam um segundo nascimento, nesse momento o
homem assume e confirma o aparecimento físico original, superando as necessidades
impostas pela própria vida e que regem a utilidade das coisas.114 O segundo nascimento
revela a pluralidade entre os homens.
A coragem presente na disposição de agir e falar, de abandonar o esconderijo para
mostrar quem é aos outros homens demonstra a liberdade de começar uma história e
inserir-se em um mundo. A história de alguém é o resultado da revelação do agente. Mas,
ninguém é autor e produtor da sua própria história. A vida individual pode ser narrada
como uma história com princípio e fim, nascimento e morte, mas a sua narrativa existe se
consideramos como condição de sua história a História da Humanidade, sem começo e
sem fim.
Em nome da disposição para agir – a liberdade, a coragem original, o impulso para
―automostração‖, a autoapresentação – torna sua identidade inconfundível, só visível aos
outros na convivência. A história individual passa a existir somente quando a vida acaba,
quando se encerra o movimento de revelação do homem. Nesse momento, o homem deixa
uma história que se torna tangível. Ao se mostrar aos outros, revela quem é, tornando
113Cf.
114
Arendt (2004, p. 17).
Cf. Arendt (2004, p. 189).
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ativamente sentida e ouvida a sua presença pelos outros homens. Isso quer dizer que,
enquanto viver, a sua história estará inacabada, isso permite um começar de novo.
Pela história da humanidade podemos entender que cada recém-chegado incide em
uma teia de relações humanas já existentes e inicia um novo processo que vai afetar as
histórias de todos com os quais convive. É por meio da História sem começo e sem fim
que se estabelece a condição humana da ação. O que é produzido pela ação é o que
permanece no mundo, é do mundo.
Além das condições em que a vida é dada ao homem na Terra e, até
certo ponto, a partir delas, os homens constantemente criam as suas
próprias condições que, a despeito de sua variabilidade e sua origem
humana, possuem a mesma força condicionante das coisas naturais. (...)
Tudo o que espontaneamente adentra o mundo humano, ou para ele é
trazido pelo espaço humano, torna-se parte da condição humana. (...) A
objetividade do mundo – o seu caráter de coisa ou objeto – e a condição
humana complementam-se uma à outra; por ser uma existência
condicionada, a existência humana seria impossível sem as coisas, e estas
seriam um amontoado de artigos incoerentes, um não mundo, se esses
artigos não fossem condicionantes da existência humana. (ARENDT,
2004, p. 17)
Assim, a condição humana é a soma de atividades, capacidades humanas, sem as
quais deixaria de ser humana. O que ressaltamos, assim, é que, por mais que o homem
esteja condicionado às coisas do mundo, ele jamais é condicionado em absoluto. Diante de
novas condições, dificuldades, obstáculos, problemas que surgem, esse homem está sempre
a inventar muitas soluções.
Toda a percepção do mundo é apreendida em forma de palavras ao nomear as
coisas. Quando o homem pensa, pensa em palavras, símbolos que têm um significado, um
sentido para o indivíduo.115 O pensar e o falar brotam da mesma fonte, da experiência no
mundo das aparências. O homem, um animal falante, transforma o objeto que é visível em
uma imagem invisível. Pensar em palavras, criar palavras e nomear as coisas é o modo
humano de se apropriar do mundo como recém-chegado. O que permanece no mundo, no
que se refere aos assuntos humanos, é a narrativa. Ela revela o sentido do que aconteceu e
introduz o recém-chegado na História da Humanidade e no mundo que é permanente.
O que percebemos são os elementos que constituem os dados para aquilo que
aparece – o novo homem. O homem tem o seu caráter de individualidade e, somado a isto,
é um ser temporal. É posto no mundo de mudança e movimento, com um começo e um
115
Cf. Arendt (2000, p. 112).
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316
fim, característica diferente de um ser eterno. Todos os homens nascem e ao nascer são
como um novo começo, novos homens.
Referências Bibliográficas:
ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. de Roberto Raposo. Posfácio de Celso Lafer.
10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.
___________. A vida do espírito: pensar. Trad. de João C. S. Duarte. Lisboa: Instituto Piaget,
1999. (Volume 1).
___________. A vida do espírito: querer. Trad. de João C. S. Duarte. Lisboa: Instituto Piaget,
2000. (Volume 2).
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REFLEXÕES SOBRE A CONDIÇÃO DO JOVEM INFRATOR A PARTIR DO OLHAR
EXISTENCIALISTA DE SARTRE
Jussara Teresinha Henn
UNIOESTE Campus Toledo
[email protected]
Dr. Claudinei A. de F. da Silva
RESUMO: Esta pesquisa bibliográfica objetiva compreender um pouco mais sobre o
fenômeno violência e como esta permeia a existência do ser no mundo, relacionando
aspectos sócio-econômicos e enfatizando que o sujeito é um ser em relação, mais
especificamente aqui, neste estudo, tal fenômeno será analisado em relação à adolescência,
pois muitas vezes o adolescente opta pela violência como a única possibilidade de existir
em meio as inúmeras formas de escassez no mundo partindo de uma escolha alienada. Esta
compreensão está pautada nos pressupostos filosóficos de Jean Paul Sartre, no que
compete aos pressupostos teórico-filosóficos de fragmentos de sua obra Saint Genet –
Ator e Mártir, a qual explicita de forma muito clara o conceito de liberdade de escolha.
Palavras-chaves: Adolescência. Violência. Existência.
Este texto tem como objetivo realizar uma breve análise sobre o tema do jovem116
que comete algum tipo de infração e, portanto, encontra-se segundo a ciência jurídica, em
Conflito com a Lei. Pautaremos esta pesquisa bibliográfica, nos pressupostos teóricofilosóficos do Existencialismo Moderno, de Jean Paul Sartre, bem como, teceremos
algumas considerações a partir de sua obra intitulada Saint Genet – Ator e Mártir (1950), não
cabe, aqui, uma análise da obra, mas sim, um recorte, do fenômeno violência, vivenciado
por Genet em uma época específica, bem como, um olhar geral para o mesmo fenômeno,
hoje na sociedade em que estamos inseridos.
Antes de iniciarmos a análise sobre o tema proposto, destacaremos o que o próprio
Sartre, escreveu sobre a intenção de sua obra:
Neste texto, os conceitos de jovem e adolescente, não sofrerão nenhuma distinção conceitual, iremos nos
referir a eles como sinônimos.
116
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318
Indicar os limites da interpretação psicanalista e da explicação marxista,
afirmar que só a liberdade pode tornar inteligível uma pessoa em sua
totalidade, mostrar essa liberdade em luta com o destino – primeiro,
esmagada por suas fatalidades, depois, voltando-se para elas, digerindo-as
pouco a pouco – provar que o gênio não é um dom, mas a saída que se
inventa nos casos desesperados, descobrir a escolha que um escritor faz
de si mesmo, da sua vida e do sentido do universo, até nas características
formais do seu estilo e da sua composição, até na estrutura das suas
imagens e na particularidade dos seus gostos, traçar detalhadamente a
história de uma libertação: foi isso que desejei. (2002, p. 546)
Sartre teceu uma análise existencialista da vida de Genet, aquele que, durante
muitos anos experimentou o abandono pessoal e social como uma forma de existir, “apenas
com sua existência, ele já perturba a ordem natural e a ordem social” (Sartre, 2002, p.20). Para
Schneider (2008), Sartre mostra em sua obra, uma compreensão existencialista do processo
de constituição da personalização de Genet, enquanto alguém que está situado em um
contexto sócio-histórico.
Quem foi Jean Genet? Ainda bebê, fora abandonado por sua mãe e confiado à
Assistência Pública, aos sete anos, fora adotado por um casal de camponeses do interior da
França e recebera desta família uma educação pautada em valores religiosos tradicionais e
rígidos.
Aos dez anos de idade, Genet passa a existir para o Outro, para a sociedade local,
para os demais meninos de sua idade, com uma nova identidade, a de ladrão.
O menino brincava na cozinha; de repente, notou a sua solidão e foi
tomado de angústia, como sempre. Então, ele se ―ausentou‖. Uma vez
mais, mergulhou numa espécie de êxtase. Agora, não há mais ninguém
ali, uma consciência abandonada reflete os utensílios. Eis que uma gaveta
se abre, a mãozinha avança (…) (SARTRE, 2002, p. 29)
De repente, uma voz o define por meio de uma frase:
(…) Você é um ladrão. (SARTRE, 2002, p. 29)
De acordo com Schneider (1977), para Sartre, Genet escolhe-se ladrão. Para
compreendermos tal afirmativa, precisamos entender a concepção sartriana de homem e
aqui fundamentar-se-á novamente nos escritos de Schneider (1977) que diz, Sartre apoia-se
na visão antropológica de que o homem só pode ser compreendido a partir de sua história
individual, levando-se em consideração as questões sociais e culturais de sua época. Desta
forma, podemos dizer que o homem se faz e é feito nesta relação com o mundo, numa
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319
dialética consigo e a sociedade, a fim de transformá-las, é a lógica da ação, sempre
recomeçada.
Cabe aqui, refletirmos sobre o que é que Sartre quis dizer quando, referiu-se a escolha de
Genet, em tornar-se um ladrão. Ainda conforme Schneider, (1977), quando o homem escolhe, este
ato não é gratuito e nem determinante de seu desejo, mas, uma escolha que se apresenta a partir de
possibilidades e frente as quais o homem não pode deixar de escolher, pois não escolher já é uma
escolha.
A escolha de Genet, foi pautada na sua própria situação quando comparada com a de
outras pessoas que viviam naquela comunidade, pois no contexto sócio-econômico em que estavam
inseridos, eram definidos a partir de suas posses, ou seja, prevalecia a premissa de que para ser,
tinha que ter. O que estava impresso nos valores daquela sociedade onde as pessoas eram definidas
em função das terras herdadas, era a forma de existir, as terras herdadas eram carregadas de um
modo de ser.
Para a Psicologia Existencialista, entende-se por existir, sair de si, transcender, mostrar-se,
lançar-se para fora, ultrapassar a situação imediata, fazer-se. De forma paradoxal, Genet só existiria
para aquela sociedade capitalista se fosse igual aos demais, proprietário de terras, do contrário, seria
apenas um menino pobre, adotivo e desprovido de existência.
Diante a possibilidade de ser e de futuro, Genet tenta integrar-se na sociedade, cometendo
pequenos furtos. Experimenta-se então um proprietário, passa a ser aquele que possui algo,
portanto, poderia ser definido como pertencente aquela comunidade, ocorre que, ao ser flagrado,
sua identidade toma outra forma, a de ladrão. ―Não há dúvida, é um roubo. E o roubo é um delito,
um crime. O que ele queria era roubar; o que ele fazia, era roubo; e o que ele era: um ladrão‖
(SARTRE, 2002, p. 29).
A partir do exposto, podemos dizer que, Genet escolheu-se ladrão, pois
vislumbrava ―como única possibilidade de seu ser o de existir na marginalidade‖
(Schneider, 1977, p. 13), mas será que ele, um menino de apenas dez anos tinha consciência
reflexiva para compreender qual era sua intenção quando cometia pequenos furtos?
Uma voz tímida ainda protesta nele, não reconhece a sua intenção. Mas logo a
voz se cala. O ato é tão luminoso, tão nitidamente definido, que é impossível
enganar-se sobre a sua natureza. Tenta voltar atrás, compreender; mas é tarde
demais, ele não consegue. Esse presente de uma clareza meridiana confere ao
passado a sua significação. Genet se lembra agora de que, cinicamente, decidiu
roubar. O que aconteceu? Afinal, quase nada: uma ação impensada, concebida e
executada na intimidade secreta e silenciosa, onde ele muitas vezes se refugia,
acaba de passar para a objetividade. Genet fica sabendo o que ele é,
objetivamente. É essa passagem que vai determinar a sua vida inteira. (SARTRE,
2002, p. 29-30).
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Não foi apenas na época de Genet que a situação sócioeconômica, política e
cultural levava o sujeito às escolhas equivocadas. A questão é que, ainda hoje, na
contemporaneidade vive-se um grande paradoxo, pois por um lado temos a globalização
que por meio do avanço tecnológico, atinge de forma imensurável as mais variadas
possibilidades de ser, em contrapartida estas possibilidades causam-nos também sofrimento
e angústia. (CASTRO e GUARESCHI, 2007), da mesma forma que na época em que
Genet era criança, o poder ainda está fortemente associado ao dinheiro que pode comprar
produtos de marcas.
Para Castro e Guareschi (2007), este aumento do consumismo que vivemos hoje,
iniciou na década de 80, por meio do crescimento desenfreado da riqueza e da influência
cultural das corporações multinacionais originarias da ideia de que o sucesso estaria em
produzir marcas e não produtos.
Na sociedade campesina francesa em que Genet vivia, o que definia a forma de ser
de cada um dos camponeses, era o número de terras que cada um possuía, atualmente o
cenário não está diferente, em ambas as sociedades, a de Genet e a de nossa época,
consumir aparece como uma das formas de existência, pois os produtos vêm carregados de
um modo de ser (CASTRO e GUARESCHI, 2007).
Da mesma forma que a sociedade atribuía a Genet o título de bastardo e filho
adotivo, portanto, um não proprietário de terras, deixando-o fora do circuito daqueles que
tinham posses, a globalização deixa de fora muitas pessoas que não podem comprar, não
podem ter e, assim vive-se a exclusão.
Conforme Castro e Guareschi, 2007, o conceito de exclusão aqui mencionado
refere-se a um processo complexo, com dimensões materiais, políticas, relacionais e
subjetivas, trata-se de um processo sutil e paradoxal, já que somente existe em relação à
inclusão, como parte que a constitui. Exclusão enquanto a impossibilidade de partilhar,
tendo como consequência a vivência de privação, não é um processo individual, embora
atinja pessoas, mas de uma lógica que está presente nas várias formas de relações
econômicas, sociais, culturais e políticas da sociedade brasileira.
Cabe-nos aqui, a reflexão sobre o que é liberdade de escolha para a filosofia
existencialista, para depois articular tal conceito com as escolhas dos adolescentes que
cometem algum tipo de infração em nossa sociedade.
Estes jovens são livres para escolher, aqui a expressão liberdade esta pautada em
limitações, uma liberdade situada, que, segundo Pimenta (1981) não está presente só
quando há várias alternativas, mas também quando há apenas uma; aceitar ou negar.
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Aceitar ou negar a condição de exclusão, aceitar ou negar que se tem vontade de ter, mas
não poder-se ter.
O homem opta pelo projeto que vai realizar, pois a liberdade se afirma no realizar,
no fazer, ou seja, a liberdade é responsabilidade, que é a capacidade de decidir, de querer,
de afirmar ou negar, de aceitar ou rejeitar, é pessoal e intransferível.
A liberdade não é uma qualidade que se acrescente às qualidades que já possuía
como homem; segundo Angerami (1993) a liberdade é o que precisamente me estrutura
como homem, porque é uma designação específica da própria qualidade de ser consciente,
de poder negar, de transcender.
De acordo com Pimenta (1981) o homem está em constante processo de escolha,
na medida em que seu futuro torna-se presente e o seu presente torna-se passado, sendo
que ambos sempre contam em função do presente, sendo assim o tempo é a existência,
compreendendo que a decisão deste sujeito é considerada como temporalidade um
constante se ver como presente, significando o seu passado em relação ao seu futuro,
permitindo sempre novas possibilidades de vir-a-ser a partir do que é.
Diante do exposto, deve-se pensar que quando o jovem comete algum tipo de
infração, este não é apenas vítima de uma sociedade corrupta e capitalista, mas é também
um indivíduo livre que pode, por meio de uma consciência mais reflexiva, escolher de
forma autônoma e ainda, poder responsabilizar-se por estas escolhas, afinal, ao intervir
diretamente sobre a situação sócio-histórica e econômica em que ele, o jovem, se encontra,
estará de fato agindo enquanto um ser livre, que age em prol de transformação.
Diante do exposto, pode-se pensar que da mesma forma que Genet, muitos são os
jovens responsabilizados apenas individualmente por sintomas sociais e pelo mal-estar em
que vivemos na contemporaneidade.
Interessa, portanto compreender, que ao mesmo tempo em que são considerados
pela sociedade e que se consideram vítimas da escassez econômica, cultural e educacional é
fato que trazem em seus atos, não apenas uma forma de abandono de ordem social, mas
também de ordem emocional, quando não conseguem assumir para si, tampouco para o
mundo, que são livres para escolher dentre as opções que se apresentam, não
necessariamente a pior, mas muitos destes jovens, escolhem a pior e por meio de suas
justificativas, acreditam que não têm outra, senão aquela escolha.
Assim, ele escolhe o pior; não tinha outra escolha. Sua vida está traçada:
será a viagem no país do desespero. Mais tarde, escreverá: ―Decidi ser o
que crime fez de mim‖. Já que não pode escapar à fatalidade, ele será a
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322
sua própria fatalidade; já que lhe tornam a vida inviável, viverá essa
impossibilidade de viver como se a tivesse criado propositalmente para si
mesmo, provocação particular só a ele reservada. (SARTRE, 2002, p.
61).
De acordo com Charbonneau (1980) este adolescente que está em constante
transformação precisa assumir uma postura mediante suas escolhas, necessita tornar-se
consciente do mundo, dos outros e de si próprio.
Com base nos pressupostos acima mencionados e em conformidade com Sartre
(1995) a forma mais desumana possível, desde a falta de alimentos até as mais variadas
formas de violência poderá gerar no adolescente uma reação de afrontar-se com o outro
numa ação irreflexiva culminada pelo meio em que está inserido.
No entanto, pode-se assim intuir-se que, cada vez mais, escolhemos o que faremos
com nossa forma de estar no mundo. Entretanto, a pergunta é, de que maneira as escolhas
do homem contemporâneo, tem contribuído para que cada vez mais tenhamos crianças e
jovens agindo de forma contraria as leis vigentes, ou seja, infringindo leis?
Talvez não tenhamos a resposta para a questão acima, pois escrever sobre este
tema, é antes de qualquer coisa, estarmos abertos para novas formas de pensar, em especial,
pensar que não há um único motivo que possa compreender tal situação.
No Brasil, um dos motivos, para a existência da violência, é sem sombra de dúvida
a diferença na distribuição de renda e oportunidades, gerando com isso, mendicância, falta
de empregos, e tantas outras formas de violência. Este fato não deveria existir, mas vive-se
num mundo aonde os recursos de subsistência são precários, aonde a intervenção do
homem
na
matéria
para
extração
dos
produtos
esbarra
com
a
escassez.
(PERDIGÃO,1995).
Conforme Nicolau (2007), não se pode afirmar que a miséria resulta em vínculos
fragilizados, deve-se considerar que esta insuficiência leva as famílias a gastarem toda a sua
energia em busca da sobrevivência, impossibilitando-os aos cuidados com a educação dos
filhos, de melhores empregos, atenção nas relações afetivas, cuidados com a saúde, ou seja,
essas dificuldades estão presentes numa sociedade excludente, gerando o aumento do
índice de criminalidade, tornando-se impossível coexistir fraternalmente.
Segundo a Declaração dos Direitos Humanos, no Artigo I, todos os homens nascem
livres e iguais em dignidade e direitos, são todos dotados de razão e consciência e devem
agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade, porém, esse igual não existe
principalmente no que se refere a direitos e de acordo com Zaluar (1999) a cidadania e os
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323
direitos humanos parecem existir só para determinados grupos dentro da sociedade e a
maioria fica excluída, tendo apenas a opção entre trabalhar e/ou ser bandido.
Desta forma podemos inferir que o ato de estigmatizar está enraizado desde a
formação da sociedade que exclui o diferente, considerando muitas vezes o adolescente em
conflito com a lei, não apenas como uma história individualizada, mas como um sintoma
social, pois este jovem utiliza do delito para refletir suas dificuldades de enfrentamento com
uma sociedade consumista nestes tempos de globalização que exclui o ser pelo ter, o que
não significa que isso justifique o ato da violência, mas contribui para uma melhor
compreensão deste fenômeno.
Isso tudo nos faz pensar que, se não há possibilidades de pertencer e ter as
qualidades que o social prioriza, muitos jovens acabam por criar através de ações violentas
formas de chegar mais rápido ao poder, as quais estão visíveis na atualidade. A violência é
real e se constitui na falta de perspectiva, no estigmatizar, no afastar o outro de direitos que
lhe são prioridades como o direito ao trabalho, a moradia, saneamento básico, a educação
com qualidade e a saúde com dignidade.
Nesse sentido, não podemos pensar o ser do homem como sendo apenas um
simples aglomerado de desejos ou modos de se lançar na vida, a exemplo, ser ladrão, estar
em conflito com a lei, faz-se necessário, compreender o que há de comum entre os desejos
e as escolhas não enquanto tese natural do mundo, uma lei universal, mas acima de tudo,
com características relacionais, inseridas em um contexto maior, para Schneider (2008),
enquanto nexo de totalização do ser, um ser situado no mundo, em relação com este
mundo e um ser-consigo-mesmo, ou seja, agente de seus sentimentos e pensamentos.
De acordo com Sartre (2002, p.76) em sua obra Saint Genet, ele relata que Genet
foi filho sem mãe, efeito sem causa, que realizou na revolta, no orgulho, na infelicidade, o
soberbo projeto de ser causa de si. Por ocasião de um delito particular, um olhar
surpreendeu e o constituiu como natureza perversa.
Para Sartre (1995, p.24) o homem é condenado a sua liberdade, isto é, vê-se
forçado a fazer escolhas diante mesmo do desconhecimento da sua própria existência. Não
dá para não fazer escolhas; mesmo a não-escolha já é uma opção escolhida pelo homem,
portanto o destino do homem está nas suas próprias mãos. De acordo com este
pensamento somos livres para escolher o nosso destino, mesmo que haja o relacionamento
com o outro, a interferência do social, a decisão final é do sujeito, o qual deverá assumir as
consequências de seus atos.
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De acordo com Sartre (1995, p.30) a liberdade implica desfazer um equívoco,
segundo o qual a liberdade significaria ter condições de poder fazer o que se quer, ou
melhor, significaria uma ausência de impedimentos externos para se alcançar o que se quer,
a autonomia do querer, do projetar-se.
Cabe aqui ressaltar que a transformação somente ocorrerá, quando o jovem e a
sociedade como um todo deixar de pensar-se como vítimas de um contexto sócio-histórico
falido e começar por meio de uma consciência mais reflexiva, entender quais são suas
intenções diante do ato e poder agir, por meio de diferentes escolhas e estratégias em prol
de uma mudança de vida, sendo esta individual e também social.
Referências Bibliográficas:
ANGERAMI, V.A. Psicoterapia existencial. São Paulo: Pioneira, 1993.
CASTRO, A. L. & GUARESCHI, P. A. Adolescentes autores de atos infracionais: processos de
exclusão e formas de subjetivação. Psicologia Política 13 (1), 2007, página?
CHARBONNEAU, P-E. Adolêscencia e liberdade. São Paulo: E.P.U, 1980.
NICOLAU, M J. Revista jurídica. Curitiba: Fonte do Direito, 2007.
PIMENTA, S.G. Orientação Vocacional e Decisão – Estudo crítico à situação no Brasil. São Paulo:
Loyola, 1981.
SARTRE, J- P. Existencialismo e liberdade. São Paulo: Moderna, 1995.
___________. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Trad. Paulo Perdigão.
Petrópolis (RJ): Vozes, 2002.
___________. Saint Genet: ator e mártir. Trad. Lucy Magalhães. Petrópolis (RJ): Vozes,
2002.
SCHNEIDER, M. Neurose e classes sociais: uma síntese freudiano-marxista. Rio de Janeiro:
Zahar, 1977.
PERDIGÃO, P. Existência e liberdade: uma introdução à filosofia de Sartre. Porto Alegre:
LP&M, 1995.
ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia
325
RAZÃO COMUNICATIVA E OS POTENCIAIS EMANCIPATÓRIOS DO DISCURSO
Kátia R. Salomão117
UNIVEL
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RESUMO: O artigo apresenta a postura de Habermas no que tange à crítica àquelas
filosofias que depõem contra a razão e a favor de certo tipo de pós-modernidade, que
rompem com a modernidade e consequentemente com o esclarecimento. A razão
comunicativa na filosofia de Habermas se destaca por repensar a razão, como elemento
crucial no projeto da emancipação humana, do esclarecimento kantiano (Aufklärung), ou
mesmo, como oponente direto aos processos de ampliação da instrumentalidade e da
tecnificação circundantes da ação do homem no mundo. A teoria da ação comunicativa
está assentada na construção de uma teoria crítica da sociedade, cuja base normativa
repousa nas estruturas do agir comunicativo.
Palavras-chave: Razão comunicativa, Filosofia da consciência, Interação.
Habermas na década de 80 desenvolveu o conceito de razão comunicativa como
alternativa reabilitar a razão, se opondo as filosofias centradas no abalo causado pelas
leituras filosóficas que atribuíram descredito na possibilidade de emancipação via
racionalidade do sujeito. Com o conceito de razão comunicativa, ele desejou abalar a
‗rigidez cadavérica‘ das leituras e interpretações concedidas à modernidade, desde a crítica
hegeliana, que atina a presença de um novo tempo, isto é, o tempo moderno, até os mais
recentes discursos embasados nas aporias do poder acalentadas por Nietzsche e seus
seguidores.
Ao falar de tais filosofias pensa-se no homem contemporâneo inserido no mundo
fomentado através do caos da razão instrumental e da ampliação da técnica. Ao longo
desse processo, simultaneamente, a sua racionalidade foi reduzida a alienação visceral. O
sujeito que mediante a história da civilização ocidental, buscou emancipar-se mediante o
A autora é mestre em filosofia pela Unesp/Marília. Professora de filosofia da Univel— União Educacional
de Cascavel. Esse artigo é fruto das discussões do grupo de pesquisa Habermas: direitos fundamentais e
emancipação social coordenado pela profº Kátia R. Salomão.
117
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uso da reflexão não atingiu definitivamente os potenciais de tornar-se livre ou desenvolver
a condição emancipatória da própria autonomia, já que sua razão acabou imersa na
dominação que o mesmo praticava sobre a natureza. Nessa condição a moralidade e a
eticidade seriam esferas vazias de sentido, pois os sujeitos instrumentalizados no cotidiano,
não teriam mais que uma relação heterônoma no mundo da vida. Habermas vai à
contramão desse diagnóstico que envolve o homem ocidental, seus valores, princípios e
suas relações emancipatórias no mundo vivido. Pensa uma filosofia que confere na
racionalidade dialógica a condição para livre pensamento e produção de uma outra razão,
distante da noção instrumentalizada que permeia a filosofia da teoria crítica e seus escopos
teóricos.
Nesse sentido, Habermas segue na construção de um paradigma da razão
comunicativa liberado das condições coercitivas presentes na racionalidade instrumental,
pois quer estabelecer um resgate do potencial da Aufklärung118, que ainda não está
plenamente concluída. Para muitos, apoiados no foco paradoxal, que atinge a vida
moderna, da perda de liberdade, do desrespeito pela vida humana e, até mesmo, de seu
significado ou, usando a terminologia habermasiana, das crises do capitalismo tardio, essa
posição é vista como otimista. Contudo, atentamos que Habermas não descarta os avanços
das ciências e tecnologia na modernidade — conquistas inegáveis da racionalidade
instrumental — e a história da humanidade ocidental que inexoravelmente mostra o ontem
e o hoje de forma clara. Para nosso autor, o hoje é irremediavelmente melhor que o ontem,
seja por meio da observação da sociedade grega em que a maioria dos homens não tinha
sua cidadania reconhecida, seja na idade média no qual o luxo era resguardado a alguns
nobres enquanto o povo tinha o seu imaginário contaminado e garantido pelos laços de
vassalagem que mantinha vivo tal ideário. Ou ainda, deve-se considerar, segundo ele, que,
apesar de não sermos livres em plenitude racional e reflexiva, também não estamos cegos
pela tradição. A modernidade, acima de quaisquer hipóteses, oferece ao homem o direito à
vida, à liberdade e à igualdade perante a lei: basta esses homens saberem lutar por tais
direitos inalienáveis, sendo que deles consiste no próprio desempenho nas esferas públicas.
Em função disso, Habermas confere à sua postura filosófica nova alternativa que, apesar de
lidar com o mundo das incertezas, resgata a confiança na cultura ocidental. Mediante tal
Apesar de comumente tomadas como idênticas, o Iluminismo refere-se ao movimento francês e Aufklärung,
ao esclarecimento alemão, que tem a ver, por sua vez, com o idealismo alemão, o que traz certa especificidade
e diferenciação em relação ao francês, portanto, mesmo Habermas não fazendo as devidas distinções, não é
correto conceber como iguais. Cf. McCARTHY, 1992, p.86.
118
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perspectiva, se nosso autor estiver correto, precisar-se-ia acreditar na prioridade da razão
humana em vista do ontem, do hoje e do amanhã.
Por isso, o grande problema que envolve essas filosofias, na visão de Habermas é o
desenvolvimento delas, que está arraigado ao paradigma do sujeito e objeto, das filosofias
da consciência, relativo ao logocentrismo ocidental119. Exemplos disso são: a dialética do
esclarecimento, o diagnóstico nietzscheano do niilismo, e até mesmo, na interação do
homem com seu trabalho em Marx, que sofrem da mesma patologia oriunda da relação
mediada pelo sujeito e objeto.
Diferentemente, ocorre no campo da interação sujeito e sujeito, na qual o
reconhecimento da identidade, do eu, depende do reconhecimento do outro;
exemplificando, minha identidade depende do reconhecimento do outro. Existe, dessa
forma, uma interdependência condicionada na interação entre os falantes, donde surge um
novo modelo que opera contra o caráter meramente cognitivo instrumental da
racionalidade — o paradigma da linguagem. O potencial humano de incluir a razão como
base para a solução dos problemas oriundos do âmbito social e político, para Habermas,
estaria ameaçada por uma simplificação da racionalidade, pela qual se foca exclusivamente
o aspecto estratégico-instrumental. A unilateralidade dessa razão se revela na história social
humana: voltada para o domínio por meio da técnica e da ciência a serviço do mercado,
demonstrava sua inadequação ao humano: refere-se mais ou tão somente à eficiência dos
meios para atingir os fins (de mercado), que tem subordinado a própria configuração da
vida social e cultural (WELLMER, 1991).
A teoria da ação comunicativa está assentada na construção de uma teoria crítica da
sociedade, cuja base normativa repousa nas estruturas do agir comunicativo, isto é, na
comunicação linguística via a pragmática da linguagem. O escopo é embasar um novo
conceito de racionalidade que, sem colocar em riscos os propósitos da razão, torna-se
capaz de interagir com o pensamento crítico e de oferecer acessos para a filosofia
contemporânea pensar um novo modelo de subjetividade para a constituição do estado
Na filosofia da consciência, a relação sujeito versus objeto se reproduz de maneira objetivante, de controle
teórico e prático do primeiro sobre o segundo. Nesse modelo é a razão subjetiva quem regulamenta as
relações fundamentais (representação e ação) que o sujeito estabelece com os objetos. Essas suas funções
estão intimamente imbricadas. Pois, por um lado a possibilidade de conhecimento de estado de coisas está
diretamente direcionada com a capacidade do sujeito de intervir no mundo. Por outro lado, o sucesso da ação
está relacionado com seu nexo causal. Em função dessa interconexão entre o conhecimento e a ação,
Habermas define essa razão como subjetiva e instrumental: subjetiva porque privilegia a autoconsciência
epistêmica do sujeito cognoscente, em detrimento do objeto cognoscível; instrumental, porque sobre o objeto
conhecido o que importa é o controle teórico ou prático. Cf. Aragão, 1997.
119
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humano consciente e integrado a uma nova fase da modernidade, cujo intento é projetar o
esclarecimento. Esclarecimento esse que repousa suas bases na Aufklärung kantiana, mas
almeja uma ambição menor à capacidade racional humana e ainda foge do paradigma do
sujeito e objeto. Posto que a teorização habermasiana não alimenta a preocupação com a
fundamentação última da razão, esteja ela voltada para os moldes subjetivos da filosofia da
consciência, como estabelece Hegel, ou no modelo da relação epistemológica do sujeito e
do objeto originário do purismo da razão kantiana. A respeito deste último, conforme
Terra (1998, p. 26):
Habermas, com o paradigma da comunicação, radicaliza a perspectiva
kantiana, renunciando a uma racionalidade substancial e confiando numa
racionalidade procedural. Com a diferença (...) de que, no lugar de uma
teoria das faculdades da filosofia da consciência, Habermas propõe uma
teoria da argumentação, com a diferenciação em discurso teórico,
discurso prático ético-jurídico e crítica estética. De qualquer forma, tratase ainda de uma radicalização da desubstancialização da metafísica levada
a cabo por Kant, que vai de par com a primazia progressiva do caráter
procedural da racionalidade.
Habermas (2000) com o intuito de recuperar o caminho da unidade da razão, como
condição para a emancipação do gênero humano, segue buscando amparo nas ciências
humanas e sociais, e oferece ênfase a uma perspectiva interdisciplinar, na qual a sociologia,
a hermenêutica, as ciências jurídicas, entre outras, surgem como esteio para as análises e
explicações, que se referem aos problemas das manifestações anômicas da modernização
capitalista oriunda da sociedade burguesa.120 Interessa então aos filósofos, com base em
diversificados saberes do âmbito das ciências sociais (Geistwissenschaften), apontar um novo
rumo metodológico de análise das manifestações e dos processos racionais que permita
demonstrar a contínua interação linguística como formadora da racionalidade não redutível
aos fins estratégicos.
Diante desse aspecto, é contundente o esforço de instaurar um conceito de razão
comunicativa embasado historicamente sem recorrer ao historicismo, e sim, buscar suas
bases no método reconstrutivo. As bases do conceito de razão, amparado historicamente,
são estabelecidas a fim de aclara no olhar minucioso habermasiano a percepção de que a
razão comunicativa não pode resolver as problemáticas que envolvem a modernidade se
120A
Sociologia surge como ciência da sociedade burguesa. A ela compete a tarefa de explicar o decurso e as
formas de manifestações anômicas da modernização capitalista nas sociedades pré-burguesas (TAC, 1992,
v.1, p. 21).
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seus fundamentos estiverem apoiados apenas na subjetividade.
Em A Crise de Legitimação do Capitalismo Tardio, Habermas promove uma abordagem
sobre a temática relativa à leitura marxista dos problemas inerentes à modernidade e se
atém principalmente em relação aos questionamentos da práxis social, que tem inerente o
elemento do trabalho e da interação. É assim que para ele nem mesmo Marx, com o
paradigma do trabalho, abandonou a relação proposta por Kant da filosofia do sujeito. Pois
sua filosofia continua mesmo sendo observada, suas diferenças e críticas, arraigadas às
relações que envolvem o sujeito aos objetos.
De certo modo, o paradigma do trabalho e da interação em Marx tem o respaldo de
ter abandonado o aspecto transcendental em função do mundo material empírico (DFM,
2000). Habermas considera lucrativa a observação marxista, da interação do homem com o
trabalho, situado no mundo objetivo. Porém, em sua visão a interação ultrapassa o mundo
objetivo, isto é, a interação não é restrita ao mundo do trabalho: ela atinge o mundo
individual e social (mundo subjetivo e social), onde pode ser observada a condição do
homem que interage consigo mesmo (sujeito), com os outros homens (sujeitos) e também
com seu trabalho. Em Horkheimer e Adorno, até mesmo a relação dos homens com os
outros homens era correlata ao sujeito que transformava tudo no mundo em objeto para
atingir seus fins próprios numa sociedade dominada pelas leis de mercado e na qual a
relação dos homens uns com outros havia se coisificado de tal forma, que encobria a
consciência e a identidade (ROUANET, 1986).
Entretanto, Habermas (2000), não descarta essa condição de possibilidade e oferece
no momento da interação dos homens, que aumentem a expectativa da plausibilidade por
uma relação que despreze a instrumentalidade e procure a ação orientada para o
entendimento, na qual deve ocorrer o consentimento racional e consensual, isto é, deve
ocorrer uma ação comunicativa. Em vista disso, esse entendimento orienta a humanidade
justamente para um novo tipo de esclarecimento que ocorre paralelamente a formação da
esfera pública global. ―Ora, essa atitude dos participantes em uma interação mediada pela
linguagem possibilita uma relação do sujeito consigo mesmo distinta daquela mera atitude
objetivante adotada por um observador em face das entidades no mundo‖ (DFM, 2000, p.
414-415).
A modernidade está impregnada pelas crises endêmicas, isto é, crises econômicas se
transformaram diretamente em uma crise social, que afeta o sistema e o mundo da vida e
que coloca em risco a interação entre os agentes comunicativos em que as ameaças de
colonização sistêmica que se manifestam em formas de crise de acumulação
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periodicamente recorrentes, também apresentam ameaças diretas para a interação social.
Habermas compreende na velha ideologia burguesa a inutilidade frente a esse panorama
social modificado do capitalismo-tardio, no qual como já prenunciava Marcuse, a ideologia
vigente é a tecnocrática e tem tanto um potencial opressor quando um libertador. Assim,
são abandonados os pressupostos do marxismo, que fazem uso direto da crítica à base
econômica do capitalismo. Portanto, o que inviabiliza a emancipação não são mais as
forças negativas advindas da relação de produção do sistema econômico, porém essas
forças se inebriaram num tipo de repolitização e se converteram em parte direta do próprio
sistema, que se transforma no motivo eleito por Habermas, para explicar a crise da
racionalidade. Diante desses pressupostos, a TAC será desenvolvida, ao lado das noções de
mundo da vida e de sistema. Aquele, no qual ocorrem as relações sociais e as
representações simbólicas é constituído por três componentes estruturais: a cultura, a
sociedade e a personalidade. Este, o sistema, compreende um conjunto de instituições
específicas, sejam elas econômicas, políticas ou mercadológicas, cujas racionalidades
vigentes em cada esfera apresentam suas especificidades, posto que norteadas de acordo
com os princípios inerentes a cada esfera seja do sistema ou o mundo da vida.
O compromisso assumido é o de pensar sobre um conceito de razão distanciandose tanto das aporias do poder quanto das próprias críticas pronunciadas a ela—que
sutilmente, ao que indica, tiveram suas bases assentadas na teoria marxista — ou seja,
Habermas quer ir além da teoria crítica, além do niilismo e para além da dialética negativa.
Sob o conceito de razão comunicativa, ele propõe, por um lado, uma alternativa as aporias
do poder e, por outro, lança luzes sobre as contradições impingidas à sociedade ocidental
pela racionalidade instrumental. Com isso, Habermas quer resgatar a possibilidade da
emancipação pelo uso da razão, até mesmo pelo ―uso da razão pública‖, como está
evidenciado em sua obra Mudança Estrutural da Esfera Pública e por meio da revisão do
projeto do esclarecimento. Segundo Habermas, esse conceito procedural de racionalidade é
mais amplo e rico que a racionalidade instrumental, que, assentada na filosofia da
consciência, sobrelevava seu aspecto cognitivo estratégico. O conceito de racionalidade
comunicativa é a explicitação do potencial da razão de amparar e fundamentar na condição
da validade do discurso, sua anuência tanto no sistema quanto no mundo da vida,
interpretados sempre a partir de uma compreensão descentrada:
Essa racionalidade comunicativa lembra as mais antigas representações
do logos, na medida em que comporta as conotações da capacidade que
tem um discurso de unificar sem coerção e instituir um consenso no qual
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os participantes superam suas concepções inicialmente subjetivas e
parciais em favor de um acordo racionalmente motivado (DFM, 2000, p.
437).
Ao analisar as tendências do pensamento contemporâneo de abrir mão do
elemento da razão, a preocupação de Habermas é a de garantir um novo paradigma que
respeite o conteúdo normativo e também o estético-expressivo, a fim de preencher a lacuna
deixada pela razão subjetiva objetivadora, quando revela e denuncia a opressão do universal
(razão subjetiva), sobre o particular (razão intersubjetiva). Na medida em que possibilita
aflorar o potencial esquecido do outro da razão, ao mesmo tempo em que considera as
condições pluralistas latentes na modernidade, é que ele passa a pensar na relação do agente
que se revela e interage com os outros atores sociais. O outro da razão pode ser explicado
na teoria habermasiana, em consideração à interação mediada pela linguagem que
possibilita uma relação do falante consigo mesmo, distinta daquela atitude objetivante
adotada por um observador face às entidades no mundo. O outro da razão, já não é mais o
todo cindido.
O outro da razão é a natureza, o corpo humano, a fantasia, o desejo, os
sentimentos; ou melhor: é tudo isso na medida em que a razão não pode
se lhe apropriar. Agora são imediatamente as forças vitais de uma
natureza subjetiva perdida e oprimida; são os fenômenos do sonho, da
fantasia, da loucura, da excitação orgástica e do êxtase, redescobertas no
romantismo; são as experiências estéticas, centradas no corpo próprias
de uma subjetividade descentrada que desempenham a função de lugartenente do outro da razão (DFM, 2000, p. 427).
A sociedade é apresentada como uma práxis, na qual a razão está incorporada. Essa
práxis é realizada historicamente e é dela que emana a racionalidade comunicativa.
Habermas, nesse sentido, assimilou o conceito de práxis social de Marx, no qual promove
uma releitura do conceito de trabalho em que o relaciona diretamente com o conceito de
interação. Para Habermas, foi Hegel quem inicialmente desenvolveu uma conexão dialética
entre trabalho e interação121, mas que num exame mais atento reconhece que a filosofia de
A relação entre trabalho e interação pode ser observada na relação do reconhecimento unilateral do senhor
pelo escravo, mas que na Fenomelogia do Espírito acabou ocupando uma posição inferior e somente recebe
atenção na Enciclopédia, no qual a ―linguagem, o trabalho e a ação baseada na reciprocidade não só eram
etapas do processo de formação do espírito, mas princípios de sua própria formação‖. Essa relação ―(...)
constroem-se agora só como relações reais subordinadas: a linguagem surge mencionada na filosofia do
espírito subjetivo, na transição da imaginação para a memória numa nota bastante ampla (§459), ao passo que
o trabalho desaparece enquanto ação instrumental em geral e, em vez disso, caracteriza como trabalho social,
sob o titulo de sistema das necessidades, uma importante na evolução do espírito objetivo‖. Apud. Habermas,
J. Trabalho e Interacção. In:Técnica e Ciência como Ideologia. Lisboa: Ed. 70, 1987a, p. 35, 42-43.
121
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Hegel não esclareceu a relação entre trabalho e interação satisfatoriamente. Habermas, por
meio do posicionamento dos conceitos de trabalho e interação na práxis social, está
novamente se opondo a situação da razão instrumental totalizadora presente na primeira
teoria crítica, em que a natureza interna é instrumentalizada simultaneamente com a
instrumentalização da natureza exterior. Amparando a razão comunicativa na leitura de
uma práxis que incorpora a razão por ela se manifestar no tempo histórico, mesmo a ação
sendo instrumental, objetiva, voltada para o mundo do trabalho, é possível, mediante essa
compreensão dessa práxis social na qual a razão está situada, a interação entre a natureza
subjetiva (interna) de casa indivíduo, na busca pela supressão de suas necessidades de
sobrevivência, com uma natureza objetiva (externa) do trabalho. ―Essa práxis social é o
lugar em que a razão historicamente situada, corporalmente encarnada com a natureza
exterior faz a mediação concreta com o seu outro‖ (DFM, 2000, p.424).
O modelo da relação sujeito e objeto só permite pensar o aspecto cognitivo
instrumental, e o processo comunicativo possui em si mesmo outros aspectos que devem
ser considerados. No intuito de estabelecer respaldo a esses conteúdos, seja de ordem
normativa ou estético-expressiva, Habermas (TAC, 1992), toma de J. L. Austin a ideia de
que todo emprego do agir comunicativo, ocorre por meio de um ato ilocucionário. Austin
demonstrou que ao proferirmos alguma coisa, simultaneamente fazemos alguma coisa. E,
Habermas, procura provar que, como locutores, ao pronunciarmos sentenças variadas,
apresentamos um núcleo universal a elas, a saber, as situamos como sequências de
símbolos linguísticos que constituem, num sistema de pretensões de validades (verdade,
inteligibilidade,
retidão/correção,
veracidade/autenticidade),
nosso
fazer/agir
comunicativo. Consequentemente, cada indivíduo busca pretensões de validade
(Geltungsansprüche) com relação a proposições dispersas na tríplice dimensão do mundo
objetivo, social e subjetivo: o elemento proposicional para expor o estado das coisas diante
do mundo objetivo; o elemento ilocucionário para contrair relações interpessoais no
mundo social, normativo; finalmente, os componentes linguísticos que expressam as
intenções dos falantes no mundo das vivências e emoções:
(…) a utilização comunicativa de saber proposicional em atos da fala,
estamos tomando uma decisão inicial em favor de um conceito de
racionalidade mais amplo está ligado à velha ideia de logos. Este conceito
de racionalidade comunicativa possui conotações que, em última instância,
remontam à experiência central da capacidade de se reunir sem coações e
gerar consenso. Este tem uma fala argumentativa em que diversos
participantes superam a subjetividade inicial de seus respectivos pontos
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de vista, graças a uma comunidade de convicções racionalmente
motivada. Os participantes se asseguram, ao mesmo tempo, da unidade
do mundo objetivo e da intersubjetividade do contexto em que
desenvolvem suas vidas 122.
Os participantes do discurso têm a condição de ora questionar a validade, ora
aceitá-la parcimoniosamente. Assim, se aceitarem inquestionavelmente, o entendimento
consensual é um resultado imediato, porém falho. Mas, se recusarem surge dissensos que
levantam a pretensões de validade arbitrárias e imbuídas de interesses, nas quais estão
envolvidos os participantes dos discursos que procuram condicionar sua argumentação.
Logo, quaisquer tentativas de manipulação do consenso no discurso, o resultado, então,
não é um entendimento comunicativo racional. Desse modo, é necessário mencionar que
Habermas identifica duas dimensões da racionalidade que também são devedoras da noção
de sociedade complexa weberiana, que estão análogas ao mundo da vida e aos sistemas
sociais, como da ideia de práxis social. A primeira dimensão da racionalidade é a do
trabalho ou ação racional teleológica constituída pelas ações instrumentais ou pelas
escolhas racionais, ou ainda, uma combinação entre ambas. Elas podem ser observadas nas
ações técnicas do homem no mundo objetivo que ao buscarem sua subsistência, em que o
ator de uma ação elege os meios mais congruentes, e os aplicam de uma maneira adequada
para atingir o fim almejado no início da ação. A segunda dimensão é a da ação
comunicativa que é uma interação simbolicamente mediada entre os concernidos. O
objetivo dela é o entendimento recíproco que funciona, segundo Habermas, como um
mecanismo coordenador da ação, por meio do qual os participantes da interação
reconhecem a intersubjetividade compartilhada e apostam suas pretensões de validade, ou
até mesmo reavaliam suas pretensões a fim de obterem sucesso (HABERMAS, 1997, p.
493).
Entretanto, a ação racional teleológica se desdobra em ação estratégica e ação
instrumental: converte-se em racionalidade estratégica a ação do ator que calcula um meio
para atingir um fim em vista de atingir o objetivo da maximização utilitarista. Esse
participante da ação interage com outros atores dando margem a uma interação regida por
(...) la utilización comunicativa de saber proposicional en actos de habla, estamos tomando una predecisión
en favor de un concepto de racionalidad más amplio que enlaza con la vieja idea de logos. Este concepto de
racionalidad comunicativa posee connotaciones que en última instancia se remontan a la experiencia central
de la capacidad de aunar sin coacciones y de generar consenso que tiene un habla argumentativa en que
diversos participantes superan la subjetividad inicial de sus respectivos puntos de vista y merced a una
comunidad de convicciones racionalmente motivada se aseguran a la vez de la unidad del mundo objetivo y
de la intersubjetividad del contexto en que desarrollan sus vidas (TAC, 1992, v.1, p. 27).
122
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meios, que são mediadas linguisticamente e em que a comunicação se torna um meio como
outro qualquer de manipulação para se alcançar o comportamento desejado, isto é, o êxito
da ação. Portanto, o resultado da ação também depende de outros atores, na qual cada um
luta pelo êxito de sua pretensão de validade, e esses participantes da argumentação, só se
comportam cooperativamente se identificarem suas pretensões, logicamente umas com as
outras. Diante disso, os participantes devem estar preparados cognitivamente, porque não
somente irão lidar com o mundo dos objetos físicos, como também com outros agentes no
mundo da vida. Já a racionalidade instrumental se identifica pelas ações, que têm em vista a
troca de poder entre os participantes que orientam seu êxito particular, e leva em conta a
dinâmica racional do mercado e as relações de dominação ou de poder político voltadas ao
controle, nas quais se estabelecem como médium o dinheiro ou o próprio poder. Diante da
noção de ação estratégica e instrumental, e das suas diferenciações, é possível perceber uma
interlocução entre trabalho e interação ou mesmo, uma associação direta das formas de
racionalidade que derivam dessas dimensões. Ao passo que na racionalidade teleológica
diferenciada em aspectos estratégicos, é promovida a invasão das outras esferas da
sociedade, em que deveria preponderar a interação ou ação comunicativa, mas que conduz
para um tipo de colonização do mundo da vida que compromete o entendimento
recíproco.
Um falante faz valer uma pretensão de validade susceptível de crítica
estabelecendo com sua manifestação uma relação pelo menos com um
«mundo» e fazendo uso da circunstância de que essa relação entre ator e
mundo é em princípio acessível a um reconhecimento objetivo para
convidar a seu oponente a uma tomada de postura racionalmente
motivada. O conceito de ação comunicativa pressupõe a linguagem
como um médio dentro do qual tem lugar um tipo de processo de
entendimento em cujo transcurso os participantes, ao relacionar se com
um mundo, se apresentam uns frente aos outros com pretensões de
validade que podem ser reconhecidas ou postas em questão123.
Parte-se de um saber proposicional mediado linguisticamente, que sofreu algum
tipo de influências subjetivas dos participantes do discurso, que tomaram suas decisões no
Un hablante hace valer una pretensión de validez susceptible de crítica entablando con su manifestación
una relación por lo menos con un «mundo» y haciendo uso de la circunstancia de que esa relación entre actor
y mundo es en principio accesible a un enjuiciamiento objetivo para invitar a su oponente a una toma de
postura racionalmente motivada. El concepto de acción comunicativa presupone el lenguaje como un médio
dentro del cual tiene lugar un tipo de procesos de entendimiento en cuyo transcurso los participantes, al
relacionarse con um mundo, se presentan unos frente a otros con pretensiones de validez que pueden ser
reconocidas o puestas en cuestión (TAC, 1992, v.1, p. 136). Ver também p.126-127.
123
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335
âmbito de favorecer o êxito de uma ação estratégica, com o enfoque de manipular as
informações consoante com a adaptação delas ao mundo objetivo ou sistêmico. Em
contrapartida, pode-se iniciar um novo processo, que tem o médium da linguagem como
regulador, no qual as posições dos interlocutores serão ajustadas reciprocamente por meio
da argumentação discursiva em busca do entendimento, até que se forme uma posição
racionalmente aceitável, por meio da qual são atingidas as pretensões de validez discursivas,
cujo propósito é se oporem à noção de interação estratégica. Contudo, pode-se considerar
o momento da racionalidade comunicativa aquele personificado na capacidade consensual
dos participantes da comunidade de comunicação, que é tão justa quanto injusta, já que não
há plena integração social entre o mundo objetivo das coisas, o mundo social das normas e
o mundo subjetivo das vivências e emoções. Na medida em que investimos na especulação
tangível aos atos de fala inerentes à racionalidade comunicativa, tomamos também,
simultaneamente, a decisão em favor de um conceito que tem potencialidade de se adequar
ao novo éthos da modernidade. Nesse novo éthos serão racionais não as proposições que
correspondem à verdade objetiva, contudo as que tiverem em seu conteúdo de validade
prescritos os requisitos racionais da argumentação e contra-argumentação, da prova e da
contraprova, visando um entendimento mútuo entre os participantes (ROUANET, 1989).
Nesse novo éthos, a modernidade é avaliada por meio da perspectiva da crescente
racionalização, e diferente do que ocorre na leitura dos filósofos herdeiros das aporias do
poder, a leitura que Habermas promulga para a filosofia weberiana, é crítica e distinta. Na
racionalidade comunicativa, o desencantamento das imagens míticas do mundo, não
carrega em seu cerne apenas a característica da racionalidade instrumental difundida na
tecnocratização. Ademais, diante da crescente racionalização, Habermas nega que ocorra a
ausência de sentido para a modernidade. Nesse sentido, ele percebe que, somado ao
aumento gradual da racionalização, é que no mundo aflora uma capacidade reflexiva
concedente de uma abertura, na qual os homens podem vir a atingir níveis de autonomia.
O pensamento habermasiano, quando propõe uma releitura da Aufklärung, destina
incondicionalmente ao homem a condição de ser heterônomo no mundo, mas com
capacidade de atingir níveis de autonomia de acordo com desenvolvimento do juízo moral.
Diferentemente de Kant, não haveria a situação de uma autonomia plena, a não ser sob a
circunstância da hegemonia da moral pós-convencional.
Nossa consideração pode resumir-se, dizendo que a racionalidade pode
ser entendida como uma disposição dos sujeitos capazes de linguagem e
ação. Se manifesta em formas de comportamento para elas, que existem
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em cada caso boas razões. Isto significa que as emissões e manifestações
racionais são acessíveis a um reconhecimento objetivo. O qual é valido
para todas as manifestações simbólicas que, ao menos implicitamente,
está vinculada a pretensões de validade (pretensões que guardam uma
relação interna com uma pretensão de validade suscetível a crítica). Todo
o exame explícito de pretensões de validade controversas requer uma
forma, mas exigente de comunicação, que satisfaça os pressupostos
próprios da argumentação124.
Resumidamente, para Habermas não é a modernidade que estaria esgotada de seu
sentido original. Entretanto, seria o argumento paradigmático usado como condição para
sua interpretação e entendimento, que equivocadamente lhe tolhe uma visualidade
completa das suas possibilidades, o que serviu para anular uma outra leitura a exemplo
daquela frankfurtiana fortemente influenciada por Nietzsche da instrumentalidade que
conduz a ausência total de sentido, isto é, a leitura concernente ao niilismo petrificado no
mundo da vida. Conforme Habermas paradigma da filosofia da consciência está esgotado.
O que pode dissolver os sintomas do esgotamento ofertados à modernidade é um novo
paradigma, o do entendimento recíproco que leva em conta o agir comunicativo enquanto
característica fundamentalmente moderna, ou seja, a racionalidade comunicativa é algo
pertencente aos novos tempos. Kosselleck (2004) formula a questão, a saber, quando o
nostrum aevum, o nosso tempo passa a ser denominado novo aetas, os novos tempos. Para
Habermas, somente as aberturas e especificidades desses novos tempos permitem
vislumbrar algo como a racionalidade comunicativa, que preserva em seu cerne aquilo que
conduz para além da razão estratégico-instrumental. No paradigma do entendimento
recíproco à atitude dos participantes da interação, conduzem as ações sobre um discurso
linguisticamente articulado, no qual passam a vislumbrar o consenso e a faticidade do
mesmo. As pretensões de validade surgem nos processos de argumentação e se
desenvolvem por meio dessas suposições, para evitar a inoperância do entendimento
mútuo entre os envolvidos. A teoria de Habermas trilha a reconstrução de uma
racionalidade livre de qualquer dogmatismo e procura instaurar a autonomia dos agentes
racionais que competem entre si para estabelecer um consenso intersubjetivamente
Nuestras consideraciones pueden resumirse diciendo que la racionalidad puede entenderse como una
disposición de los sujetos capaces de lenguaje y de acción. Se manifiesta en formas de comportamiento para
las que existen en cada caso buenas razones. Esto significa que las emisiones o manifestaciones racionales son
accesibles a un enjuiciamiento objetivo. Lo cual es válido para todas las manifestaciones simbólicas que, a lo
menos implícitamente, vayan vinculadas a pretensiones de validez (o a pretensiones que guarden una relación
interna con una pretensión de validez susceptible de crítica). Todo examen explícito de pretensiones de
validez controvertidas requiere una forma más exigente de comunicación, que satisfaga los presupuestos
propios de la argumentación (TAC, 1992, v.1, p. 41-42).
124
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compartilhado e livre de coerção. Esse ideal de razão busca resgatar o potencial
emancipatório iluminista ainda não esclarecido. É uma perspectiva que quer garantir as
conquistas da tradição do pensamento ocidental. Dessa maneira, o paradigma da razão
comunicativa não pode ser entendido como uma simples troca de conceito. A razão
comunicativa propõe restabelecer o potencial emancipatório da razão, que ficou prisioneiro
na sua dimensão subjetiva que legisla, ordena e controla a natureza e as relações humanas
através da tecnocratização e da racionalidade científica reinante.
Para tanto, Habermas não se coloca contra os avanços conquistados pela
racionalidade instrumental. Ele mesmo afirma que são inegáveis as conquistas no campo da
ciência e da tecnologia. Portanto, ao propor o conceito de razão comunicativa como
alternativa à crise da racionalidade moderna, ele aponta uma saída para as aporias da
filosofia do sujeito, e oferece a alternativa de depositar confiança na cultura ocidental, que
não obstante suas crises procuravam-se compreender sob o signo da razão. Assim, a
pertinência e a força desse paradigma de racionalidade intersubjetiva residem na própria
decisão em favor da razão, equivale à antecipação de uma sociedade emancipada, ou seja, à
antecipação da maioridade realizada dos homens.
Sumariamente, o conhecimento instrumental conduzido por meio da técnica e pela
ciência, teria o objetivo de libertar o homem do medo da natureza adversa a ele, por meio
do trabalho e da produção, o que resultou no domínio dela por ele. O antídoto a essa
dominação do homem na natureza, seria a ação comunicativa. A razão comunicativa tem a
força libertadora como marca principal e por isso rompe com qualquer tipo de repressão
social externa ou intrapsíquica, que se choca diretamente com a premissa de Horkheimer e
Adorno de que a dominação atingiu irredutivelmente a consciência dos homens. A razão
comunicativa é o antídoto da modernidade e é por ela que se pode resgatar a unidade
perdida da razão, e ainda apreender o esclarecimento (Aufklärung) como projeto inacabado.
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Leandro de Araújo Crestani
Universidade de Évora
[email protected]
RESUMO: O presente artigo análise as relações de poder nas fronteiras transnacionais que
separa o Sul do Brasil do Norte Grande Argentino da Argentina. A partir de um
comparativo, busca-se compreender as construções históricas das fronteiras externas entre
os países em questão, uma vez que a apropriação dos territórios e a construção dos espaços
sociais não se limitaram ao marco geográfico, mas mobilizaram, entre conflitos, disputas,
tensões, ameaças entre sujeitos sociais e a ação de agentes políticos e econômicos, ações em
busca do fortalecimento de relações de poder em vista em vista da construção da soberania
nacional. Além de analisar os conflitos nas fronteiras externas, a discussão das disputas
territoriais nas fronteiras internas de ambos os países merecerá atenção especial, tendo
como referência o estudo dos conflitos que ocorreram na região Sul do Brasil, nos Estados
do Paraná e Santa Catarina, e na Região da Patagônia nas Pronvincias de La Pampa e Rio
Negro.
Palavras-chave: Relações de Poder. Argentina. Brasil.
O estudo das disputas e ocupação das fronteiras é de extrema importância para a
compreensão histórica da questão agrária na fronteira, tendo a sua origem no próprio
processo de ocupação das terras devolutas. Ao longo dos anos a estrutura agrária da
fronteira, é decorrente da exploração e expropriação de famílias que viviam na zona rural e
possuíam unicamente ou pouca coisa além da sua posse e da força de trabalho. Dessa
maneira, a constituição da fronteira passou a desempenhar um papel central na formação
do Estado e da economia, através das disputas litigiosas em tais regiões a serem
―ocupadas‖.
Apesar da existência de várias pesquisas sobre o tema fronteiras, isso não significa
que haja um esgotamento das investigações das fontes sobre a forma de ocupação e de
exploração econômica da área geográfica de abrangência desta pesquisa e os conflitos
históricos resultantes desse processo. Persistem, ainda, várias lacunas e inúmeros pontos
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ainda pouco explorados pelos historiadores que se dedicam ao estudo das fronteiras entre
Argentina e Brasil.
A construção das fronteiras externas125 entre países e as fronteiras internas126 entre
Estados e municípios são processos complexos associados a conflitos de natureza diversa,
tanto na sua expressão político-diplomática, quanto em relação à disputa dos territórios. A
fronteira envolve conflitos possessórios, políticos, econômicos, sociais e culturais. A
formação das fronteiras externas comporta, em geral, a intervenção estatal, ou militar, na
apropriação e legitimação dos territórios. A atuação desses aparelhos foi historicamente
decisiva para desequilibrar a disputa pela posse das regiões de fronteiras, especialmente nas
regiões transnacionais situadas na curta linha de fronteira externas entre a região do Sul do
Brasil e a Região do Norte Grande Argentino da Argentina.
Na era pós-colonial e de construção dos Estados-Nação na América Latina, a
construção/delimitação da fronteira territorial segue este padrão geral. Ligia Osório Silva
(2003), entende que nos Estados Unidos a fronteira teria promovido o desenvolvimento da
democracia social e política, uma vez que a existência de ―terras livres‖ a oeste e uma
legislação que disponibilizava o acesso a elas aos imigrantes evitara o conflito social,
característico das sociedades europeias do século XIX.
A existência de ‗terras livres‘ foi determinante na edificação da
democracia americana, porque enquadradas por uma legislação agrária
que as tornava acessíveis a contingentes significados de população,
gerou oportunidades de ascensão social numa escala incomparável com
as existentes nas sociedades europeias127
Na Argentina e no Brasil, cuja fronteira terreste foi delimitada entre 1857 a 1895, a
construção de fronteiras externas e internas não foram exceção a democracia, aos conflitos
Neste estudo o conceito de fronteiras externas, tem como referência empírica os territórios argentino e
brasileiro, que não se limitaram ao marco geográfico, mas mobilizaram, entre ameaças conflitos e tensões,
sujeitos sociais e agentes políticos e econômicos em busca de novas oportunidades, quer para fortalecer as
relações de poder, quer para a construção de territórios que facultassem espaços de vivências para a recriação
de identidades. Cf. SCHALLENBERGER, Erneldo. Fronteiras em movimento e Território em construção:
O caso do Paraná. In. COLOGNESE, Silvio Antonio. (Org.) Fronteiras e Identidades Regionais. Cascavel:
Coluna do Saber, 2008.
126 Procuramos mostrar como noção de fronteira interna a demarcação territorial de municípios, de estados e
mesmo de fazendas e/ou entre fazendeiros e sítios. Muitos pesquisadores não deram muita atenção ao tema,
que na ótica de Motta e Machado (2008), talvez seja resultado de um processo de naturalização dos marcos
territorial, ou ainda, como fruto de uma política de produção de amnésia social. Sendo, dessa maneira,
encobridora dos conflitos de terra que gestaram ou consolidaram (como natural), um determinado lugar,
território, ou espaço, em uma área de um recorte espacial maior: ―o país”.
127 Cf. SILVA, Ligia Osório. Fronteira e Identidade Nacional. Anais do V Congresso Brasileiro de História
Econômica e 6ª Conferência Internacional de História de Empresas. Caxambu, MG: ABPHE, 2003.
125
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diplomáticos em relação a posse. É este processo social que constitui o objeto central desta
tese.
Procuramos aqui analisar em uma ―região transnacional‖ os conflitos agrários entre
Argentina e Brasil. Nessa curta linha de fronteira que separa o Sul do Brasil do Norte
Grande Argentino da Argentina. Procuramos desenvolver um estudo comparativos dos
conflitos que aconteceram nas fronteiras externas internas de ambos os países, na região
Sul do Brasil, nos Estados do Paraná e Santa Catarina e na Região da Patagônia nas
Pronvincias de La Pampa e Rio Negro.
Partindo da análise de Ligia Osório da Silva, que a experiência da fronteira como
responsável pela formação destas sociedades não penetrou com a mesma força as análises
dos historiadores e cientistas sociais latino-americanos. Ao contrário de algumas teses
algumas apresentadas pela historiografia argentina e brasileira, consideram a experiência das
fronteiras como responsável para formação da identidade nacional e das suas instituições.
Sabemos que a experiência histórica da construção desta fronteira nacional foi marcada por
prolongadas negociações diplomáticas, por tensões e conflitos militares.128
Dispomos de muita informação e análises sobre este processo quando visto de
cima; pouco dele conhecemos quando queremos apreender a sua incidência no dia da dia
das populações residentes nos territórios de fronteira, aferir a sua interação com os poderes
e as instituições neles projetados ou constituidos, bem como as relações que se constroem
entre as populações estabelecidas e as adventícias.
A construção das fronteiras externas e internas entre a Argentina e o Brasil é
contemporânea e envolveu embates entre o homem branco, índios, militares, colonos,
posseiros e grileiros. Demonstra o imenso terreno que pode ser percorrido por
historiadores quando se tem como referência a problemática de estudo a fronteira. Para
José de Souza Martins (1997, p.13), ―ela é fronteira de muitas e diferentes coisas, como
fronteira da civilização (demarcada pela barbárie que nela se oculta), fronteira espacial,
Vários autores apresentaram esta temática, a exemplo de Reidy e Murray, Conferencias de 1915, (1916);
Santiago Arcos, La Plata (1865). Antônio Augusto Cançado Trindade, Repertório da prática brasileira do Direito
Internacional Público (Período 1889-1898); Coronel J. S. Torres Homem, Annaes das Guerras do Brazil com os
Estados do Prata e Paraguay (1911); Synésio Sampaio Goes, Navegantes, Bandeirantes e Diplomatas: Aspectos da
descoberta do continente da penetração do território brasileiro extra-Tordesilhas e do estabelecimento das fronteiras da Amazônia
(1991); Nelson Wernack Sodré, O que se deve ler para conhecer o Brasil (1988); Domingos Nascimentos, Pela
Fronteira (1903); Domingo Faustino Sarmiento, Campaña del ejército grande (1852), Conflicto y armonía de las razas
en América (1883), Facundo o civilización y barbárie (1952); Esteban Echeverria, El Matadero (2010); José
Hernández, La Vuelta de Martín Fierro (2010); Horácio Quiroga, Cuentos (2004).
128
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fronteira de culturas e visões de mundo, fronteiras de etnias, fronteira da História e da
historicidade do homem. E, sobretudo, fronteira do humano‖. Percebe-se que o estudo da
fronteira possibilita novas abordagens para o historiador. E é possível analisar a fronteira
para além da delimitação territorial, além do conceito de fronteira nacional, chegando à
compreensão das fronteiras externas e internas de ambos os países.
A perspectiva desse estudo é compreender os conflitos em torno de espaços já
ocupados, já que alguma tese apontam esses espaços como ―vazios‖ na região de fronteira
da Argentina e Brasil. Os países buscavam manipular o simbolismo da fronteira, intervindo
principalmente por razões geopolíticas, econômicas e demográficas, ou seja, sendo
conveniente descolar frentes de migrações para as regiões de fronteira tanto para garantir a
posse quanto a sua soberania.
É este processo social que constitui o objeto central desta tese. Procuramos aqui
analisá-lo numa ―região transnacional‖ que se situa na curta linha de fronteira externas
entre a região do Sul do Brasil e a Região do Norte Grande Argentino e os conflitos nas
fronteiras internas nos Estados do Paraná e Santa Catarina (BR) e na Região da Patagônia
nas Pronvincias de La Pampa e Rio Negro (ARG).
Entende-se que nessa região transnacional as fronteiras externas e internas entre
Argentina e Brasil têm semelhanças nas construções de seus espaços, e que a diferença
entre esses locais se apresenta na criação de cenários contraditórios, nos quais intelectuais,
políticos, militares, comerciantes, indígenas, colonos e posseiros de diferentes
nacionalidades viviam, se relacionavam, intervinham no meio ambiente e, assim, teciam
formas de sobrevivência num ambiente transfronteiriço.
A historiografia oficial da Argentina compreende a fronteira como ―espaço vazio‖,
como ―o espaço improdutivo‖, mesmo que ocupado pelos índios, ou seja, aqueles
territórios não efetivamente era integrados ao território nacional e ao projeto de
desenvolvimento nacional. Na historiografia brasileira a ocupação dos espaços vazios teve a
perspectiva de ocupação dos espaços vazios na fronteira oeste como processo de domínio
territorial em relação às países vizinhos. Porém, a característica principal de sua ocupação
aconteceu pelo processo de valorização das terras.
A partir do estudo das disputas entre Argentina e Brasil pela definição de limites
entre os países, parte-se do pressuposto que antes da definição territorial, a fronteira
representava um campo de tensão entre dois estados nacionais emergentes com seus
territórios em construção. Partimos da hipótese que os conflitos pela posse das terras
contribuíram para a ocupação e delimitação dos espaços transnacional para fins de
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interesses econômicos e políticos, contribuindo, assim, para a definição das fronteiras
externas.
A apropriação das terras da região transnacional surgem em meados do século XIX,
a partir da criação de leis agrárias que separaram juridicamente as terras públicas das
privadas, estabelecendo a compra como maio fundamental de aquisição de domínio. Neste
estudo demonstraremos que na Argentina e no Brasil o padrão de ocupação das áreas
fronteiriças se afastou do modelo de ocupação das fronteiras estadunidense defendido por
Frederick Jackson Turner. Lá, como referido anteriormente, teria promovido o
desenvolvimento da democracia social e política, uma vez que a existência de áreas livres a
oeste do país disponibilizava o acesso aos imigrantes e evitara o conflito social,
característico das sociedades europeias do século XIX.
A especulação, a concentração e a apropriação das terras devolutas geraram, os
confrontos e conflitos contra os índios, colonos, posseiros e grileiros. Desta forma,
entender as relações de poder que nortearam as disputas, os conflitos e o exercício da
hegemonia de grupos locais e regionais. Entende-se que na fronteira interna a violência é
compreendida como processo econômico, social, político e cultural de ocupação da terra.
A discussão acerca da formação do mercado de terras, configurado nas chamadas
fronteiras agrícolas da Argentina e do Brasil, assume desta forma importância relevante
para o entendimento da reprodução e/ou manutenção da propriedade, bem como para a
compreensão da luta pela terra empreendida pelos segmentos sociais envolvidos neste
processo.
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A GEOGRAFIA DO CONCEITO E O RITORNELO NA FILOSOFIA DE
GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATARRI: O PROBLEMA DA
DESTERRITORIALIZAÇÃO
Leandro Nunes
Graduado em Filosofia
[email protected]
Brendha Evaristo
[email protected]
RESUMO: O presente texto trata dos estudos desenvolvidos pelos filósofos Gilles
Deleuze e Félix Guatarri acerca do papel da filosofia e das características inerentes a
atividade filosófica. Segundo os referidos autores, o objetivo primeiro da filosofia é a
criação de conceitos; sendo que, o filósofo é aquele que se envereda pelo mundo, aquele
que experimenta o mundo e seus contágios. Assim sendo, neste trabalho – assim como
Deleuze e Guatarri – nos enveredamos por diversos territórios buscando entender alguns
conceitos por eles propostos, tais como o conceito de Ritornelo – importante para
estabelecer a relação entre território e desterritorialização. Para tal intento, trataremos do
que D&G designam como Geografia do conceito, e por conseguinte, do que eles
denominam como Linhas de fuga. Sempre procurando evidenciar o caráter criativo da
atividade filosófica.
Palavras-chave: Geografia-do-conceito. Ritornelo. Desterritorialização. Linhas-de-fuga.
Geografia do conceito
Segundo Gilles Deleuze e Félix Guatarri (1992), o objetivo primário da filosofia é a
criação de conceitos, quiçá, este seja o único e maior propósito para a atividade filosófica.
Nesse sentido, o filósofo é aquele que experimenta o mundo, aquele que abandona o antigo
e conhecido pressuposto que infere a contemplação do mundo como atividade última do
filósofo.
Como explanado, é da criação de conceitos que a filosofia se estabelece, uma vez
que, seu propósito é criá-los. Assim, o filósofo é aquele que cria um novo mundo, que cria
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novas possibilidades, novos caminhos. Uma atividade em que o filósofo se expõe a
contágios e contaminações.
Criar conceitos. Talvez a filosofia tenha este único e grande propósito,
fazendo do filósofo o experimentador do mundo ao invés do
contemplador deste mesmo mundo. O filósofo como aquele que não
mais reflete passivamente, mas aquele que se envereda pelo mundo, que
se expõe aos contágios e contaminações, fazendo desta experiência o
substrato para aquilo que possui de mais intenso enquanto atividade: a
criação de conceitos. Isto é o que nos propõem os filósofos franceses
Gilles Deleuze e Félix Guattari, levando-nos a pensar numa outra relação
ética (BEDIN, 2010, p. 1).
Para Bedin (2010), o mundo real é a morada do homem, mas ela só serve para ser
abandonada. E a filosofia é o que propícia essa fuga; uma vez que, tal morada é móvel,
pois, a criação de conceitos deve ser contínua e ininterrupta. Isso significa que o filósofo
deve transpassar a reflexão passiva, pôr-se em movimento e adentrar no mundo.
Os conceitos são migratórios, mas podem habitar solos, nos quais possam produzir
alguma interferência com outros conceitos; já que, os conceitos não possuem estruturas
únicas, ―fechadas‖; pelo contrário, eles possuem componentes que estabelecem relação
entre si – e é exatamente nesse ponto que o filósofo age: nos territórios habitados pelos
conceitos.
Um conceito não pode ser entendido como uma estrutura monocelular. Uma vez
que, não existe conceito simples. Todo conceito é composto. Do mesmo modo que
nenhum conceito existe de maneira isolada, ou seja, todo conceito possui uma ligação com
outros conceitos, com a tradição filosófica.
Não há conceito simples. Todo conceito tem componentes, e se define
por eles. Tem, portanto, uma cifra. E uma multiplicidade, embora nem
toda multiplicidade seja conceitual. Não há conceito de um só
componente: mesmo o primeiro conceito, aquele pelo qual uma filosofia
―começa‖, possui vários componentes, já que não é evidente que a
filosofia deva ter um começo e que, se ela determina um, deve
acrescentar-lhe um ponto de vista ou uma razão (DELEUZE;
GUATTARI, 1992, p. 25).
O conceito é uma incisão minuciosa nas cordas vocais da filosofia; uma operação
que ressoa nos mais diversos territórios e que provoca o surgimento de uma variedade
incontável de linhas de fuga.
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De certa forma, a proposta de Deleuze e Guatarri (o adentramento do filósofo no
mundo e sua exposição aos contágios) é audaciosa e suscita a necessidade de se pensar uma
nova relação ética. Uma vez que, ―a ética passa ser a própria experimentação criativa, o uso,
a prática, a pragmática propriamente dita‖ (BEDIN, 2010, p. 1). Isso porque, não existe
mais uma morada segura para o filósofo como fora outrora o Ethos; e, como dito, se
existe, é somente para ser abandonada (DELEUZE, GUATARRI, 1992). De modo geral, o
que eles nos propõem é uma ética do abandono, uma ética que suscite e propicie a criação
de linhas fuga.
Essa ética do abandono pode ser entendida também como uma geografia do
conceito:
A filosofia passa a assumir um aspecto geológico, em camadas de
estratificação que se justapõem e se afetam mutuamente. Trata-se de
movimentos de estratificação e desestratificação operados a partir de um
crivo no caos, de um plano de imanência que opera por intensidades
difíceis de serem apreendidas (BEDIN, 2010, p. 2).
O Ritornelo
Deleuze e Guatarri criam uma grande variedade de conceitos, sendo o Ritornelo
um dos conceitos mais potentes dessa criação; um conceito que se encontra totalmente
ligado a essa questão de território e ao problema da desterritorialização.
Criamos ao menos um conceito muito importante: o de ritornelo. Para
mim, o ritornelo é esse ponto comum. Em outros termos, para mim, o
ritornelo está totalmente ligado ao problema do território, da saída ou
entrada no território, ou seja, ao problema da desterritorialização. Volto
para o meu território, que eu conheço, ou então me desterritorializo, ou
seja, parto, saio do meu território? (DELEUZE, p. 65, 1997).
Segundo D&G129, o ritornelo é uma espécie de refrão, o ponto maior da música; o
ponto central ao qual volta-se em coro. No entanto, é preciso frisar que o conceito de
ritornelo não é universal, logo, não pode ser definido como isso ou aquilo.
Assim como Nietzsche fez com sua Teoria das Forças, Deleuze e Guattari fazem o
mesmo se tratando do Ritornelo, ele é remetido sempre as circunstâncias em que é
129
Abreviação para Gilles Deleuze e Félix Guatarri.
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operado, uma vez que, é um ponto comum, e por tal motivo está totalmente ligado a saída
ou entrada de um território.
Desse modo, esse é o primeiro aspecto do ritornelo: a busca de direção, de um
ponto; para que então se possa traçar um território ao redor desse ponto, algo inseguro,
quase que incerto. Para que assim, após esta busca por direção passe-se a procurar por um
espaço dimensional que possa ser habitado ao redor desse ponto.
O ritornelo é um ciclo assim como a vida, sempre em relação territorial. É um
território que circunda um determinado ponto.
Tem a ver com conceitos de terra, território, caos, cosmos, (...) com o
eterno retorno (...) Tem a ver com o canto dos pássaros para demarcar
limites territoriais, com a criança cantarolando no escuro para se acalmar
e com a música que escutamos para nos dar força nas tarefas diárias
(BEDIN, 2010, p. 3).
O Ritornelo pode ser comparado com uma ―lógica da existência‖, ou seja, o existir
passa a ser em ciclos, o que pode implicar em um aspecto ou outro, ou os dois, etc.; ―o
ritornelo se define pela estrita coexistência ou contemporaneidade de três dinamismos
implicados uns nos outros. Ele forma um sistema completo do desejo, uma lógica da
existência‖ (ZOURABICHVILI, 2004, p. 50), mesmo que seja uma lógica extrema e sem
racionalidade alguma.
Nesse sentido, Zourabichvili afirma que o Ritornelo se mostra em duas tríades
ligeiramente distintas entre si:
Primeira tríade: 1. Procurar alcançar o território, para conjurar o caos; 2.
Traçar e habitar o território que filtre o caos; 3. Lançar-se fora do
território ou se desterritorializar rumo a um cosmo que se distingue do
caos. Segunda tríade: 1. Procurar um território; 2. Partir ou se
desterritorializar; 3. Retornar ou se reterritorializar (Idem, p. 50).
O filósofo deve abandonar o caos com o objetivo de se estabelecer em um
território, o que é entendido comumente como um agenciamento territorial. Essa busca
por um ponto é entendida como um componente direcional; ―é da ordem da criança no
escuro que busca a única direção do ponto estável, cantarolando sua cantiga reconhecível,
seu pequeno tralalá‖ (BEDIN, 2010, p. 4). O ritornelo é a busca pelo agenciamento, pelo
estabelecimento.
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O ritornelo vai em direção ao agenciamento territorial, ali se instala ou
dali sai. Num sentido genérico, chama-se ritornelo todo conjunto de
matérias de expressão que traça um território, e que se desenvolve em
motivos territoriais, em paisagens territoriais (há ritornelos motrizes,
gestuais, ópticos etc.). O ritornelo como traçado que retorna sobre si, se
repete. Assim, todo começo já é um retorno, mas implica sempre uma
distância, uma diferença: a reterritorialização, correlato da
desterritorialização, nunca é um retorno ao mesmo (é repetição e
diferença) (MELLO, 2012, p. 2).
O agenciamento surge com o objetivo de traçar um território em volta do ponto,
isto é, é a fundação de uma base no caos que garanta segurança para que um território
possa ser construído. A partir desse momento busca-se por uma construção de um lugar
que possa ser habitado.
Trata-se de um espaço íntimo, onde as forças do caos são mantidas
numa exterioridade, criando condições para que a tarefa possa ser
cumprida, para que uma obra seja realizada. Este é o segundo aspecto do
ritornelo, seu componente dimensional. Aqui os ritornelos estão mais a
serviço de criar e consolidar o território, já que se tem a segurança
mínima para que alguns ―motivos territoriais‖ possam ser empregados
(BEDIN, 2010, p. 4).
Por fim, parte-se do agenciamento territorial para a busca de outros agenciamentos.
É nesse ponto que surgem as linhas de fuga que fazem desse território algo provisório.
Sendo que, isso dá-se pelo fato de que o ritornelo aponta sempre para a possibilidade de
fuga, de desterritorialização, mesmo se houver perigos, mesmo se as linhas de fuga se
tornarem linhas de morte. Em suma, é sempre necessária a atividade de desterritorializar-se.
Pois, o território carrega em si-mesmo uma bipolaridade:
A bipolaridade da relação terra-território, às duas direções transcendente e imanente - nas quais a terra exerce sua função
desterritorializante. Pois a terra serve ao mesmo tempo como esse lar
íntimo para o qual se inclina naturalmente o território, mas que,
apreendido como tal, tende a repelir este último ao infinito
(ZOURABICHVILI, 2004, p. 50).
É das pontas territoriais que se evade; pois, as linhas de fuga são os processos
criativos que saem do padrão imposto, que criam, que inventam e reinventam novas
possibilidades de vida. Transformando assim, a vida em uma obra de arte.
A operação das linhas é que estabelece o território como algo provisório,
transitório, ou, como D&G denominam: componentes de passagem. Desse modo, o
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ritornelo é composto essencialmente por três aspectos, quais sejam: o componente
direcional, o componente dimensional e o componente de passagem ou de fuga.
Considerações finais
O ritornelo deve ser entendido sobre dois principais aspectos que estão
intimamente ligados ao seu nome: ―em primeiro lugar, como traçado que retorna sobre si,
se retoma, se repete; depois, como circularidade dos três dinamismos (procurar um
território para si = procurar alcançá-lo)‖ (ZOURABICHVILI, 2004, p. 51). Desse modo,
começar é retornar, todavia, trata-se de uma reterritorialização, pois não trata-se de um
retorno ao mesmo ponto, ao mesmo território.
Não há chegada, nunca há senão um retorno, mas regressar é pensado
numa relação avesso-direito, recto-verso com partir, e é ao mesmo tempo
que se parte e se regressa. Por conseguinte, há duas maneiras distintas de
partir e regressar, e de infinitizar esse par: a errância do exílio e o apelo
do sem-fundo, ou então o deslocamento nômade e o apelo do fora (a
terra natal sendo apenas um fora ambíguo) (Idem, p. 51).
Não obstante, o conceito de ritornelo comporta em si dois sentidos do retorno que
―compõem o ―pequeno‖ e o ―grande‖ ritornelos: territorial ou fechado sobre si mesmo,
cósmico ou levado sobre uma linha de fuga semiótica‖ (Idem, p. 51). Segundo Deleuze e
Guatarri, são esses dois aspectos do ritornelo que tornam pensáveis a música e a arte de
forma geral.
O Ritornelo é a passagem por ―uma terra ora natal-imutável (é então a priori, inato
ou, ainda, objeto de reminiscência), ora nova-por vir (é construído sobre um plano de
imanência: quando o filósofo traça seu território sobre a própria desterritorialização)‖
(Idem, p. 51).
Referências Bibliográficas:
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353
A ALTERIDADE INFANTIL: MERLEAU-PONTY E WINNICOTT
Litiara Kohl Dors
UNIOESTE
[email protected]
Claudinei Aparecido de Freitas da Silva
RESUMO: O presente trabalho visa explorar as conexões entre as ideias propostas pelo
psicanalista Donald Woods Winnicott e o filósofo Maurice Merleau-Ponty no que se refere
ao tema da alteridade infantil. Embora não existam evidências de que os dois autores
tenham mantido algum tipo de contato pessoal ou mesmo através de suas obras, ambos
parecem apresentar alguns pontos de convergência e complementaridade principalmente
no que se refere aos conceitos de “espaço transicional” e “campo fenomenal”. Tanto para o
psicanalista quanto para o filósofo esses conceitos se apresentam enquanto eixos
fundamentais para a compreensão das relações construídas pelos indivíduos com os
objetos da cultura e com os outros indivíduos.
Palavras-chave: Winnicott. Merleau-Ponty. Alteridade. Criança.
Tanto na obra de Merleau-Ponty quanto em Winnicott é possível identificar o tema
da alteridade como foco de importantes discussões.
Enquanto o filósofo busca compreender essa questão através de uma relação de
interdependência entre o homem e o mundo, o psicanalista parece explorar as bases dessa
relação, que teriam início nas fases primitivas do desenvolvimento, quando o bebê
encontra-se em estado de dependência absoluta dos cuidados ambientais.
Engajado em formular uma teoria do aparelho psíquico primitivo e inspirado em
psicanalistas que contribuíram para o desenvolvimento de uma Psicologia Infantil,
Winnicott enfatiza o papel da figura materna como base determinante das formas de
relacionamento, com o outro e com o mundo, constituídas por um indivíduo no decorrer
de sua vida. Nessa perspectiva, Winnicott aborda a manifestação da relação afetiva entre o
cuidador e o bebê. Ao tratar dessa relação, o psicanalista inglês busca compreender como
se opera o desenvolvimento do ego na criança e a diferenciação ali emergente entre o eu e o
não-eu. Por outro lado, Winnicott explora, no seio dessa diferenciação, que entre a realidade
externa e interna sempre haverá uma tensão jamais inteiramente solucionada.
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Winnicott faz referência à inicial inabilidade de um bebê em reconhecer e aceitar a
realidade de forma a perceber a existência de um mundo interno e um mundo externo a
ele. Ora, é por meio dessas premissas que se contextualiza aquilo que se pode caracterizar
como fenômenos/objetos transicionais e espaço transicional de modo que estão intimamente
relacionados à experiência ilusória. A despeito de seu interesse pelo tema da
transicionalidade, Winnicott sempre afirma que estará ―interessado na primeira possessão e
na área intermediária entre o subjetivo e aquilo que é objetivamente percebido‖ (Winnicott,
1975, p.15). O que o psicanalista inglês conceitua ―primeira possessão ‗não-eu‘‖ inclui uma
ampla variação de eventos que podem iniciar com a condução do punho à boca pelo bebê
recém-nascido até atividades mais complexas como o manuseio e a ligação a um brinquedo
ou objeto qualquer, simbolizando uma zona intermediária entre o eu e o não-eu. Desta
maneira, esses eventos e objetos aos quais os bebês se apegam poderão ser denominados
―fenômenos transicionais‖ ou ―objetos transicionais‖.
Winnicott mostra ainda que é a partir do objeto e dos fenômenos transicionais que
o bebê inicia o processo de percepção e a tomada de consciência da separação entre o si
mesmo e o ambiente externo. Ora, o objeto transicional tem por finalidade principal a de
acalmar o bebê na ausência da mãe real, tendo em vista que é por meio dele – um objeto
externo – que a criança poderá vivenciar a experiência interna de sua relação com a figura
materna.
É a partir desse ponto de vista segundo a teoria winnicotiana, que o bebê não é
percebido nem como interior, nem como exterior a si mesmo, mas enquanto fronteira ou
espaço de transição entre o mundo subjetivo e objetivo. Winnicott descreve, ainda, que ―ele
(o objeto) é oriundo do exterior, segundo nosso ponto de vista, mas não o é, segundo o
ponto de vista do bebê. Tampouco provém de dentro; menos, ainda, trata-se de uma
alucinação‖ (WINNICOTT, 1975, p. 18).
É por intermédio desse espaço fronteiriço entre o interno e o externo que à criança
são fornecidas as condições para a experiência do jogo, o que, posteriormente, lhe
permitirá a partilha de experiência com outros indivíduos, bem como a experiência cultural
e artística. Como observa Winnicott:
Seu destino é permitir que seja (o objeto) gradativamente
descatexizado130 , de maneira que, com o curso dos anos, se torne não
tanto esquecido, mas relegado ao limbo. (...) Não é esquecido e não é
130
Desprovido de energia psíquica.
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pranteado. Perde o significado, e isso se deve ao fato de que os
fenômenos transicionais se tornaram difusos, se espalharam por todo o
território intermediário entre a ‗realidade psíquica interna‘ e ‗o mundo
externo‘, tal como percebido por duas pessoas em comum, isto é, por
todo o campo cultural. Nesse ponto, meu tema se amplia para o do
brincar, da criatividade e apreciação artísticas, do sentimento religioso,
do sonhar, e também do fetichismo, do mentir e do furtar, a origem e a
perda do sentimento afetuoso, o vício em drogas, o talismã dos rituais
obsessivos, etc. (WINNICOTT, 1975, p. 18-19).
Ora, a função materna quando ―suficientemente boa‖ parece atuar como fundo
afetivo sobre o qual emerge um indivíduo capaz de perceber e relacionar-se intimamente
com o mundo e com o outro, de maneira a modificar e ser modificado por essa relação.
Nesse contexto, o cuidador exerce o papel de ―ego auxiliar‖ ao ego do bebê auxiliando-o,
principalmente, a produzir significados tanto para os objetos de seu mundo externo quanto
para suas próprias sensações e percepções internas. Aos olhos de Winnicott, as sensações
produzidas ao bebê através do contato com o corpo materno, além de uma percepção
puramente corporal, produzem um importante equivalente psíquico. Com isso, o bebê que
é manipulado e segurado de uma maneira adequada tem a percepção de que, não somente
seu corpo, mas também sua estrutura psíquica encontra-se integrada e protegida.
Herdeiro da tradição fenomenológica e apoiando-se nos trabalhos da Psicologia da
Forma e da própria Psicanálise, Merleau-Ponty, por sua vez, dedica-se à compreensão da
percepção, introduzindo o conceito de corporeidade. O filósofo mostra, em primeiro lugar,
que há uma distinção entre o ―corpo objetivo‖, que tem o modo de ser de uma ―coisa‖ e o
―corpo fenomenal‖ ou ―corpo próprio‖ que coloca o sujeito em relação de intimidade com
o mundo, onde interioridade e exterioridade relacionam-se mutuamente, de modo que ―ser
corpo (...) é estar atado a um certo mundo, e nosso corpo não está primeiramente no
espaço: ele é no espaço‖ (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 205). Como nota Dupond, ―o
sujeito aparece para si próprio fazendo aparecer o mundo‖ (DUPOND, 2010, p. 12). Essa
ideia é ilustrada por Merleau-Ponty quando se refere à percepção infantil do corpo do
outro possibilitando-lhe, consequentemente, a percepção do próprio corpo. Merleau-Ponty
observa o comportamento do bebê no momento em que
(...) abre a boca se por brincadeira ponho um de seus dedos entre meus
dentes e faço menção de mordê-lo. E, todavia, ele quase não olhou seu
rosto em um espelho, seus dentes não se parecem com os meus. Isso
ocorre porque sua própria boca e seus dentes, tais como ele os sente do
interior, são para ele imediatamente aparelhos para morder, e porque
minha mandíbula, tal como ele a vê do exterior, é para ele imediatamente
capaz das mesmas intenções. A ―mordida‖ tem para ele imediatamente
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uma significação intersubjetiva. Ele percebe suas intenções em seu
corpo, com o seu corpo percebe o meu, e através disso percebe em seu
corpo as minhas intenções. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 471-472)
Na interpretação de Silva, Merleau-Ponty ―eleva então a dignidade perdida da
experiência infantil, explicitando sua dimensão intersubjetivamente carnal manifesta, muito
propriamente, na gestualidade corporal‖ (Silva, 2009, p.216). Merleau-Ponty visa explorar
também certo regime de ―promiscuidade‖, onde o interno e o externo ao sujeito atuam
como zonas intercambiáveis que constituem a fonte de toda criação cultural, artística ou
linguística. O conceito por meio do qual o filósofo compreenderá essa concepção de
imbricação e interdependência é a noção de ―carne‖. Para Merleau-Ponty:
A carne de que falamos não é a matéria. Consiste no enovelamento do
visível sobre o corpo vidente, do tangível sobre o corpo tangente,
atestado, sobretudo quando o corpo se vê, se toca vendo e tocando as
coisas, de forma que, simultaneamente, como tangível, desce entre elas,
como tangente, domina-as todas, extraindo de si próprio essa relação, e
mesmo essa dupla relação, por deiscência ou fissão de sua massa.
(MERLEAU-PONTY, 2012, p.141)
Merleau-Ponty utiliza-se do exemplo do toque das mãos, para demonstrar a
reversibilidade que se faz presente no tema da ―carne‖, referindo-se a:
(...) um verdadeiro tocar o tocar, quando minha mão direita toca minha
mão esquerda apalpando as coisas, pelo qual o ‗sujeito que toca‘ passa ao
nível do tocado, descendo às coisas, de sorte que o tocar se faz no meio
do mundo e como nelas (MERLEAU-PONTY, 2012, p.130).
Ou seja, quando a mão direita toca a mão esquerda há aí, certa reversibilidade no
ato de tocar, de modo que não se é possível dizer qual das mãos é a que toca e qual é a
tocada. É essa mesma relação que permeia o contato do homem com o mundo e com os
seus semelhantes.
A noção de ―carne‖ surge para descrever a interioridade sensível ―o quiasma,
entrelaço ou entrecruzamento reversível do mundo‖ (Chauí, 2002, p. 57) buscando traduzir
o sentido de conaturalidade do homem com o mundo. É o que Marilena Chauí descreve:
Verticalidade ainda diz que nós e o mundo estamos de pé e abraçados. É
laço que nos enlaça, enlaçando nossa motricidade à mobilidade das
coisas e à nossa visibilidade, enlaçando nossa visibilidade às nossas
palavras e estas às ideias, num trânsito e numa transição intermináveis,
numa invasão de domínio que é troca interminável e que só é possível
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porque somos todos, nós, as coisas, os outros, a palavra e o pensamento,
dimensões de um mesmo Ser que não aguarda sínteses para reunir-se a si
e diferenciar-se. Participamos de uma comunidade originária de onde
nascemos por segregação, e tudo assim nasce, por diferenciação. Essa
promiscuidade das origens, elemento e matriz, é a Carne do mundo
vertical. (CHAUÍ, 2002, p. 115).
Pode-se então supor que esta relação ―carnal‖ aqui ilustrada por Merleau-Ponty
exemplifica a relação que Winnicott descreve entre a ―mãe suficientemente boa‖ e seu
bebê. Sob esse contexto, é que se pode também aproximar o caráter daquilo que MerleauPonty denomina de verticalidade, isto é, a ideia de que sujeito e mundo encontram-se como
que entrelaçados, numa espécie de relação onde não há sobreposições entre um e outro.
Do mesmo modo, a alteridade se desenvolve através desse tecido vertical onde as
subjetividades ao mesmo tempo em que participam de um mesmo terreno comum, podem
se diferenciar.
Neste sentido, podemos supor que essa ideia encontra certa ressonância com a obra
de Winnicott, especialmente quando este se refere à relação mãe-bebê, e à capacidade
materna de compreender as necessidades de seu filho que são expressas primeiramente
através do choro, do olhar e das manifestações corporais.
Quando, por exemplo, a mãe apresenta o peito ao bebê que chora de fome, está
auxiliando-o a produzir um significado acerca desta sensação. Embora estejamos diante de
uma relação que se estabelece entre um sujeito capaz de separar o eu dos objetos externos e
um bebê que ainda não atingiu tal nível de maturidade, podemos conjecturar que a
identificação materna dessa comunicação primitiva do bebê só é possível porque se
encontram os dois, enlaçados e fundidos ao tecido de um mundo que é comum a ambos.
Para Winnicott:
O leite da mãe não flui como uma excreção; é uma resposta a um
estímulo, e este estímulo é a visão, o cheiro e o tato de seu bebê, e o
choro do bebê, que expressa necessidade. É tudo uma coisa só: o
cuidado que a mãe toma com o bebê, e a alimentação periódica que se
desenvolve como se fosse um meio de comunicação entre ambos – uma
canção sem palavras. (WINNICOTT, 2006, p.69)
Winnicott mostra também que através do contato corporal com a mãe, produz-se
no bebê uma memória sensorial que está relacionada com a interpretação afetiva que o
mesmo produz sobre a maneira como seu corpo é segurado e manuseado. O olhar do
outro sobre o bebê também apresenta aqui, importância fundamental. Ora, se em sua
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forma mais primitiva de existência, o bebê percebe a si mesmo como um ser fundido ao
mundo, então, é possível supor que o bebê não atribui relações entre aquilo que é sentido e
o órgão receptor, dado que ele é também, enquanto sente, o próprio sentido. Portanto, para
um bebê, será possível escutar, tatear, olhar com o corpo todo, pois que, como ser ainda
não diferenciado, ele é também aquilo que escuta, ele é aquilo que vê e aquilo que toca. Na
perspectiva do bebê, ele é a própria linguagem encarnada.
Há aí um elo, uma
promiscuidade e possibilidade infinita de sentidos entre ele e o mundo, intermediado pela
figura materna.
O que faz com que este fenômeno se revele é a abertura desse novo campo ou
horizonte entre o real e o imaginário que o psicanalista denomina espaço transicional e o
filósofo concebe como um campo fenomenal. Muito embora o sujeito posteriormente venha a
fazer essa diferenciação entre o eu e o não-eu, a questão da transicionalidade permanecerá
como algo nunca inteiramente solucionado pelo indivíduo.
Para Merleau-Ponty, é essa ―carnalidade‖ que se faz presente na experiência do
sujeito com o mundo, numa verticalidade onde ambos se ―abraçam‖ e se criam um ao
outro sem sobreposições. Como mostra Dupond, em sentido merleau-pontyano, a carne
visa ―não a diferença entre o corpo-sujeito e o corpo-objeto, mas antes, inversamente, a
matéria comum do corpo vidente e do mundo visível, pensados como inseparáveis,
nascendo um do outro, um para o outro, de uma ‗deiscência‘ que é a abertura do mundo‖
(DUPOND, 2010, p. 9).
Ora, é essa zona de entrelaçamento entre objeto e sujeito que o fenomenólogo
passa a descrever como campo fenomenal. Ou seja, aquilo que retrata o espaço que sedia a
vivência compartilhada entre os indivíduos e de onde brota toda produção artística e
cultural humanas. Trata-se, pois, de uma relação íntima do sujeito com o mundo ou, ainda,
da possibilidade de fundir-se a ele e de diferenciar-se que torna também possível ao homem
a produção de sentidos. Neste contexto, o que se manifesta é a possibilidade infinita de
interpretações resultantes do enlace entre uma subjetividade e a objetividade do mundo
perceptível. É o que permite, por exemplo, que o conteúdo de uma obra literária extrapole
seu caráter mais concreto e meramente informativo para conduzir o seu leitor a um estágio
mais ―carnal‖ oferecendo-lhe uma possibilidade para o devaneio.
Merleau-Ponty destaca o aparecimento de uma ―linguagem viva‖ onde o sentido se
manifesta para o indivíduo na medida em que este se engaja na linguagem. Um importante
atributo da linguagem é a sua atuação enquanto elo entre um indivíduo e seus semelhantes,
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como demonstra Silva ―há, aí, uma vida expressiva na linguagem, ou seja, um ‗valor
existencial‘ intersubjetivamente encarnado‖ (SILVA, 2009, p.99).
Tanto no caso da linguagem quanto no da obra de arte em geral, Merleau-Ponty
restitui um sentido próprio da intersubjetividade. As relações entre eu e outrem são
perpassadas pela ideia de que não há mais limite, ou seja, há um sentido de unidade carnal
que os entrelaça. Esse entrelaçamento só se torna possível porque ocorre num mesmo
campo de experiência, um campo fenomenal que não se confunde com um espaço
objetivo. Como atesta o filósofo:
Diz-se que há um muro entro nós e os outros , mas é um muro que
fazemos juntos: cada qual coloca sua pedra no vão deixado pelo outro.
(...) Assim como o espaço não é feito de pontos em si simultâneos, assim
como nossa duração não pode romper as suas aderências a um espaço de
durações, o mundo comunicativo não é um feixe de consciências
paralelas. Os traços se confundem e passam um pelo outro, formando
uma única esteira de ‗duração pública‘. (MERLEAU-PONTY, 1991,
p.19)
Logo, pode-se verificar que tanto em Winnicott como em Merleau-Ponty o tema da
alteridade se desenvolve através de uma concepção de intersubjetividade. Concepção esta,
que se diferencia das filosofias empiristas ou puramente reflexivas em que o sujeito seria
apenas uma ―série de experiências psicológicas‖, ou então, ―uma substância eterna e única‖
(AYOUCH, 2012, p. 254).
Intersubjetividade é, portanto, compreendida aqui como uma relação ―na qual os
termos de sujeito, consciência, ou indivíduo não são primeiros, mas resultam de uma
relação precedendo e determinando a subjetividade – sem que ela se reduza, todavia, à
intersubjetividade‖ (AYOUCH, 2012, p.256).
Na visão de Ayouch há uma primazia da relação com o outro que perpassa toda a
teoria winnicottiana onde ―o afeto aparece como a apresentação alucinatória de uma
promessa e ameaça de encontro com o outro, onde se repete a primeira intersubjetividade
fundadora da psique do infante‖ (AYOUCH, 2012, p.261). Desta maneira, a assim
chamada figurabilidade do afeto ―depende do entrelaçamento dos afetos da criança e do
entorno, num modo muito parecido à dialética da intersubjetividade teorizada por Maurice
Merleau-Ponty‖ (AYOUCH, 2012, p.262).
Referências Bibliográficas:
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360
AYOUCH, T. ―Genealogia da intersubjetividade e figurabilidade do afeto: Winnicott e MerleauPonty‖. In: Psicologia USP, São Paulo, 2012, 23(2), 253-274.
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Martins Fontes, 2002.
DUPOND, P. Vocabulário de Merleau-Ponty. Trad. C. Berliner. São Paulo: Martins Fontes,
2010.
MERLEAU-PONTY, M. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2012.
_____. Signos. Trad. M. E. G. G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
SILVA, C. A. F. A carnalidade da reflexão: ipseidade e alteridade em Merleau-Ponty. São
Leopoldo (RS):: Nova Harmonia, 2009.
WINNICOTT, Donald W. O brincar e a realidade. Trad. J. O. A. Abreu et al. Rio de Janeiro:
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_____. Os bebês e suas mães. Trad. J. L. Camargo. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
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361
EDUCAÇÃO E POLÍTICA EM THEODOR ADORNO
Luana A. de Oliveira
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RESUMO: Com base na Teoria Crítica de Theodor W. Adorno, pretende-se analisar e
explicitar o projeto político que embasa o atual sistema escolar e o projeto político que
necessita ser defendido, ou seja do necessário comprometimento da educação com o
processo de emancipação do sujeito. Em meio a isto serão abordados os conceitos de
emancipação, não-idêntico, semi-formação e resistência, para assim articular a relação
conceitual entre a educação e seu caráter político. Por fim, será exposto o caráter ambíguo
da educação, sendo que, ao mesmo tempo em que o processo de formação emancipatória é
adaptação, também se apresenta como resistência. No entanto, em tempos de conformação
com a lógica do sistema capitalista, torna-se cada vez mais importante que a educação
fomente mais o potencial de contestação e, por conseguinte, de emancipação do sujeito, do
que somente reforçar sua adaptação.
Palavras-chave: Educação, Política, Emancipação, Resistência.
Através da teoria crítica de Adorno podemos refletir sobre os pressupostos
educativos inseridos na sociedade em que vivemos. Conforme a obra intitulada Educação e
Emancipação de Theodor W. Adorno, a educação não está relacionada à modelagem de
pessoas, tão pouco à simples transmissão de conhecimentos. Educação em Adorno está
vinculada com o esclarecimento, com a formação de uma consciência verdadeira, ou seja,
com a busca pela autonomia do sujeito de modo a trabalhar em direção à sua emancipação.
Porém, a escola enquanto instituição social pertencente à sociedade capitalista,
propaga o modelo social da classe dominante e colabora na formação da personalidade do
sujeito educando, a qual já é estruturada conforme os ditames da lógica burguesa. Já o
projeto político da escola propulsora da emancipação, tem como propósito tornar
explícitas as contradições do sistema vigente, e fomentar a resistência contra o mesmo.
Desta maneira, ao evidenciar que a escola transmite ideologia política, fica mais clara a
relação que tem o seu caráter político com a educação comprometida com o
desenvolvimento de uma consciência emancipada.
Na concepção adorniana, o objetivo pedagógico também deve ser de uma educação
que se volte para a reflexão a cerca dos mecanismos que ameaçam e por vezes impedem a
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emancipação dos indivíduos. Tendo a escola como função política problematizar e não
aceitar como válidos os valores egoístas, competitivos e consumistas, próprios da sociedade
capitalista. Emancipação para Adorno é conscientização, sendo que o sentido de
conscientização refere-se à capacidade de fazer experiências, portanto ―(...) a educação para
a experiência é idêntica à educação para a emancipação.‖ (ADORNO, 1995, p. 151.).
A experiência formativa tem como pressuposto a recusa em aceitar somente o mero
repasse de conhecimentos no processo formativo, trata-se do processo formativo levar em
conta também a transformação do sujeito no contato com o objeto. A repressão do nãoidêntico também se opõe à experiência formativa em defesa de uma sociedade homogênea,
pois ele revela-se como possibilidade de mudança, ou seja, o não-idêntico é a permissão da
tematização do diferente, é o novo que possibilita percepções diferentes.
Sobre o não-idêntico, Adorno afirma que a filosofia idealista de Hegel equivocou-se
ao ser fundada no princípio da identidade em que o conhecimento no âmbito da razão
expressa a correspondência entre ser e pensar, trazendo o pressuposto de que os conceitos
representam o real enquanto tal. Para Adorno os conceitos não traduzem a coisa em si em
sua plenitude, já que o conteúdo da coisa em si traz também o não idêntico a si mesmo.
Assim, considerando que os conceitos não relatam a totalidade da realidade, pois não
abarcam o não idêntico, pode-se dizer que há uma tensão entre pensamento e objeto, a
qual impossibilita a exatidão da equiparação entre os mesmo. Portanto, o pensamento não
representa fielmente o objeto, pois não dá conta de teorizar o que não pode ser
conceitualizado.
Ao contrário de Hegel que atribuía primazia ao sujeito cognoscente e que
pressuponha alcançar a verdade através de uma elaboração linear de argumentos, a
primazia do objeto é o motor da dialética negativa de Adorno. Esta reconhece a
impossibilidade de se chegar à verdade absoluta, mas isso também não significa que a
verdade se encontre no objeto. A dialética negativa não tem como pretensão o
endeusamento de uma verdade, e por isso acaba por impedir ações autoritárias.
Para Adorno, um conceito isolado não representa fielmente o objeto, no entanto, se
aliado a outros conceitos, de modo a formar uma constelação, torna-se então mais próximo
da verdade. Porém, como já é suposto, de forma alguma essa constelação conceitual
pretende absolutizar uma verdade, pois ela não carrega consigo a estaticidade, a fixidez e a
imutabilidade, e sim a constante transformação na qual os conceitos estão interligados, isto
é, relacionados entre si em um movimento dinâmico, num processo em devir. Assim, cada
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conceito é um fragmento que irá compor uma verdade e que juntos iluminam a
compreensão da realidade.
A primazia do objeto instiga o sujeito a refletir sobre aquilo que não é apreendido
conceitualmente, mesmo sabendo que não se pode absolutizar uma verdade, existe a
possibilidade do pensamento se aproximar mais da verdade do objeto, desta forma, ocorre
uma reflexão contínua sobre o próprio pensar. Isto é, uma auto-reflexão da razão. Esta não
acomodação do pensamento leva à persistência do pensamento crítico, possibilitando
assim, a autonomia do sujeito.
É importante destacar que para Adorno, embora haja a primazia do objeto, o
sujeito não é colocado de lado, sua importância ainda é reconhecida. Acontece que nesta
relação o sujeito tem consciência de sua limitação, sabendo que não é capaz de dominar
por completo o objeto, sabendo de que não conseguirá ter acesso direto a ele, e por isso a
auto-reflexão sobre o não idêntico não se torna estática, está sim em constante movimento.
No entanto, a exclusão do não idêntico em privilégio do sempre igual gera um
obstáculo na experiência formativa do sujeito, este obstáculo é o fenômeno da
semiformação. A semiformação é uma deformação, uma falsa consciência. Porém, ela não
se limita ao aspecto intelectual, a semiformação se amplia para o empobrecimento geral do
ser humano, em todas as suas formas de ser, sendo a escola uma das agências que reforça a
semiformação.
Outro exemplo de disseminação da semiformação é a indústria cultural, termo
criado por Adorno e Max Horkheimer que se trata da reificação da cultura, isto é, da
cultura que o modo de produção capitalista transforma em cultura de massa. Esta é
produzida em moldes padronizados e ofertada como sendo um objeto de mercadoria e,
desta forma a máquina capitalista acaba por aniquilar com o seu caráter crítico. A
verdadeira arte, aquela que não é criada conforme padrões próprios da indústria cultural,
acaba sendo fraudada ao ser vendida como um produto já adaptado para o consumo das
massas. Este produto é desprovido de valor crítico, e por isso impede a real experiência
estética.
Conforme Adorno, a indústria cultural age com o objetivo de servir interesses
político-econômicos, embutindo de maneira apelativa (supostas) necessidades de consumo,
é pressuposto que ela tende a enfraquecer as possibilidades de uma postura crítica, sem a
qual não há a contestação do status quo. Por isso a importância de uma formação
educacional comprometida com um projeto político que priorize a auto-reflexão crítica, já
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que ela é elemento fundamental no processo de superação indústria cultural, sendo este um
dos obstáculos que impede a emancipação do sujeito.
Por ela (a auto-reflexão crítica) os dominados podem ser esclarecidos a
respeito de sua situação enquanto classe, no contexto de exploração e
subordinação capitalista. (..) Serviria para orientá-los à consequente ação
transformadora que a própria ação transformadora exige. Ela se torna
educativa em dois sentidos; no esclarecimento dos mecanismos de
alienação e de manipulação ideológica presentes no sistema (...). (PUCCI,
1995.p. 48)
Na filosofia de Adorno a educação envolvida com a emancipação do sujeito possui
um duplo caráter: ao mesmo tempo em que é adaptação é também resistência.
Em certo sentido, emancipação é o mesmo que conscientização,
racionalidade. A racionalidade, porém, sempre envolve um momento de
adaptação. A educação seria impotente e ideológica se ignorasse esta
finalidade de adaptação, e não preparasse os homens a operarem na
realidade. Mas ela seria igualmente questionável se se reduzisse a isto,
produzindo nada mais do que ―well adjusted people‖. Nesta medida, no
conceito de educar para tornar racional e para tornar consciente existe de
antemão uma cisão, uma ambiguidade. (ADORNO, 1995. p. 143)
Isto é, adaptação porque ela nos dá preparo para vivermos em sociedade, nos
repassando conhecimentos e toda bagagem cultural por meio do processo de ensinoaprendizagem. Mas a educação não pode ficar somente na adaptação, senão haveria a
padronização de comportamentos e uma progressiva perda da individualidade, de tal forma
que ninguém conseguiria viver a seu próprio modo, assim como haveria a tendência a nos
conformarmos e em absorvermos o já estabelecido, resultando num comportamento
passivo e omisso diante da barbárie.
Por isso a educação que se volta para o objetivo da emancipação necessita ser
ambas: adaptação e resistência. Mas destaco aqui importância de a ação pedagógica se
voltar mais à resistência, de modo a priorizar espaços favoráveis à reflexão crítica, tendo a
escola uma postura crítica diante do ensino tradicional, o qual muitas vezes trabalha em
direção à formar pessoas de consciência ingênua para que assim se resignem frente às
situações decisivas:
Ocorre que, atualmente, que o exercício da reflexão crítica encontra-se
cada vez mais impossibilitado de ser concretizado, uma vez que as
maiores recompensas são entregues para aqueles que melhor se
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―adaptam‖ - leia-se integram-se – ao sistema, nas suas mais variadas
instâncias, inclusive na própria escola. (ZUIN, 1995, p.167-168)131
No caso de a educação ser somente adaptação não se pode considerá-la
emancipatória, pois neste caso ela carrega consigo a tendência ao totalitarismo e à barbárie
em geral. A educação nessa condição age de modo a converter os indivíduos em sujeitos
passivos e inofensivos, sendo esses próprios atributos que dão oportunidade para que a
barbárie se instaure, pois assim contempla-se o horror sem nada fazer.
Para o autor, o passado mal elaborado carregara como herança a barbárie, esta que
ainda permanece presente na conduta humana. Elaborar o passado trata-se de dar sentido à
história, reelaborando sua relação com o presente. Esta elaboração também pode ser
entendida como esclarecimento do passado, num processo de reconhecimento e
identificação das causas, que levaram, como por exemplo, à violência que ocorreu em
Auschwitz, para que a partir desta reflexão eliminem-se essas causas, e para que assim as
barbáries já cometidas não mais se repitam.
É igualmente importante obter conhecimento referente aos mecanismos que
tornam os homens reféns da barbárie, sendo necessário entender como que a conduta
agressiva se constitui , e apurar os motivos que levam aos atos de extrema violência, não no
sentido de justificar tais atos, mas para evitar a formação dessa conduta.
Uma educação voltada somente para a adaptação possui elementos de barbárie que
se expressam em momentos de repressão e opressão, ou seja, uma educação que só se
efetiva pelo autoritarismo do professor que causa medo no aluno. Deste modo, a escola
carrega potencial para ser um agente propagador da razão que desumaniza, isto é, a
barbárie, de forma a contribuir com as injustiças sociais, reproduzindo normas e valores da
ideologia dominante. Mas por outro lado, a escola também possui condições para defender
um projeto político pedagógico que vise a emancipação, que forneça aparatos para a
tomada de consciência e para que esta possa se vincular com a prática, a qual irá permitir a
manifestação da resistência.
Considerando que a escola está inserida numa sociedade capitalista, o seu
verdadeiro projeto político é revelado na execução de seu currículo, o qual, por meio de
práticas educacionais, ensina os valores da classe dominante e os defende como legítimos.
Por isso a escola não pode ser considerada uma instituição neutra, pois ela serve aos
interesses da classe dominante, como por exemplo, formar sujeitos com habilidades e
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competências necessárias para atuar no mercado de trabalho, sendo esta uma maneira de
manter as relações de produção dentro do molde capitalista.
No entanto, a função social do sistema escolar deve ser, segundo Adorno, de
enfatizar a necessidade da luta contra a adaptação do discurso vigente, de modo a
promover constantemente um confronto com a manutenção deste discurso. Desta forma, a
educação precisa se opor a uma existência determinada pela lógica do capitalismo,
contribuindo na construção de subjetividades com a razão e a sensibilidade emancipadas,
de modo a não serem compatíveis com este sistema.
Opor-se a isto tudo que o mundo de hoje nos oferece e que, no presente
momento, não admite vislumbrar qualquer outra possibilidade de
resistência mais ampla, é competência da escola. É por essa razão que
(...) é tão essencialmente importante que ela cumpra sua missão.
(ADORNO, 1995. p.79.)
Por isso a importância do educador estar constantemente revendo as suas próprias
práticas educacionais, para que estas estejam de acordo com o processo formativo
emancipatório. Se faz importante também a busca por recuperar o lugar do sujeito, ou seja,
sua identidade, considerando o que ele realmente é: a finalidade e não o meio. Esta
concepção de sujeito diferencia-se do capitalismo administrado que homogeneíza e ao
mesmo tempo anula o sujeito em consequência de uma visão utilitária que o trata como um
objeto que deve satisfazer as necessidades econômicas, políticas, sociais ou educacionais.
No capitalismo administrado, o sujeito é anulado e se torna coisificado, em
contrapartida o interesse econômico é o fim último. Nele a razão esclarecida é
transformada em razão instrumental, sendo esta racionalidade reduzida à capacidade, isto é,
a um condicionamento social de se adaptar ao que já é estabelecido como natural. A
racionalidade instrumental não percebe que o desenvolvimento científico, embora tenha
potencial para auxiliar no projeto de uma sociedade emancipada, não leva necessariamente
à emancipação do sujeito.
Mesmo havendo grande desenvolvimento das tecnologias é preciso submeter à
dúvida a afirmação de que vivemos em uma sociedade esclarecida, ao contrário a
racionalidade instrumental continuará contribuindo com o poder ideológico da indústria
cultural e com as contradições sociais que geram a semiformação. Desta forma, cabe ao
sistema educacional a denúncia desta falsa consciência que é propagada diariamente e que
promove conformismo e submissão frente a lógica do sistema capitalista , conforme
explicita Adorno:‖(...) as pessoas aceitam com menor ou maior resistência aquilo que a
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367
existência dominante apresenta a sua vista e ainda por cima lhes inculca à força como se
aquilo que existe precisasse existir dessa forma.‖ (ADORNO, 1995. p. 178)
A função política da educação trata-se então, de superar a carência da razão
emancipatória, e de se deixar ser instrumento de luta e de resistência contra a adaptação à
condição social imposta pelo capitalismo. Por fim, a educação voltada para a emancipação
se ampara em uma postura crítica diante de tudo que condiciona o ser à alienação, isto
decorre como exigência de seu caráter político, assim como a necessidade de ser formadora
de consciência verdadeira.
Referências Bibliográficas
ADORNO, Theodor W. Educação e Emancipação. Tradução: Wolfgang Leo Maar. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1995.190p.
ZUIN, Antônio Álvaro S. Seduções e Simulacros. Considerações sobre a indústria cultural e os
paradigmas da resistência a da reprodução em educação. In: PUCCI, Bruno (org.).
PUCCI, Bruno (org.). Teoria Crítica e Educação: A questão da formação cultural na escola de
Frankfurt. Petrópolis:Vozes, 1995. 197p.
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PENSAR INTUITIVAMENTE PARA O ULTRAPASSAMENTO DA RAZÃO
CLÁSSICA
Luana Borges Giacomini
UNIOESTE/PIBIC – Fundação Araucária
[email protected]
Dra. Ester Maria Dreher Heuser (Orientadora)
A ideia de razão clássica parece ser a motivação mais vital do bergsonismo, uma vez que
sem um rompimento dessa razão o filósofo não poderá atingir seus objetivos. Deleuze
adverte que são três o número de teses sobre o movimento da filosofia bergsoniana. A
primeira tese consiste em separar o movimento do espaço percorrido, afirmando que tal
espaço é divisível, já o movimento se divide apenas mudando de natureza. Na segunda tese
o problema dos mistos mal analisados exigirá do filósofo o cuidado com as ilusões que o
impedem de ver, com distinção, a verdadeira natureza existente entre as coisas. Por fim, a
terceira tese, nos dá o sentido primordial da intuição: pensar intuitivamente é pensar como
duração. Pode-se dizer que nestes três momentos o espírito pode conhecer, por intermédio
da intuição, a duração de cada ser, ou seja, o modo como cada indivíduo atravessa o tempo.
Palavras-chave: 1.Intuição 2.Razão Clássica 3.Bergsonismo
A filosofia de Deleuze é marcada pela crítica ao pensamento representativo que
orienta a Filosofia. O problema que atravessa sua criação filosófica pode ser expressa por
meio da simples questão ―O que significa pensar?‖. Deleuze encontrou na História da
Filosofia aliados capazes de lhe fornecerem elementos que potencializassem a produção de
respostas interessantes capazes de erigirem aquilo que ele nomeou de uma ―nova imagem
do pensamento‖ (DELEUZE, 1976). Segundo ele, todo pensamento é orientado por uma
―imagem do pensamento‖ e, ao longo da História da Filosofia a imagem que mais persistiu
foi aquela orientada pela representação, a qual ele denomina ―imagem dogmática‖. Segundo
o filósofo, esta imagem impede o pensamento de pensar as singularidades, os devires e a
diferença. Henri Bergson foi um dos filósofos ―aliados‖ de Deleuze para a criação de uma
nova imagem do pensamento. Em sua obra, Deleuze encontrou no ―método da intuição‖
elementos para sua criação, o qual será o objeto de nossa comunicação.
Para a filosofia bergsoniana é altamente necessário o ultrapassamento da razão
clássica que está orientada pelo pensamento da representação. Ou seja, segundo Bergson,
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trata-se de ultrapassar o próprio conhecimento representativo, aquele que nos impede de
apreender a essência das coisas em si mesmas, aquilo que existe de singular nos seres.
Todavia, Bergson difere de Platão no que se refere à natureza da coisa a ser conhecida. Em
Platão, a natureza é a Ideia, a qual é imutável, supra-sensível e eterna; a fim de alcançá-la é
necessário que a razão ultrapasse os dados da experiência. Em Bergson a natureza do
objeto a ser conhecido deve ser buscada no mundo (imanente) e não para além dele. Ao
contrário do platonismo, a natureza do objeto em Bergson não é caracterizada pela
imutabilidade, ela é puro movimento. A razão clássica, herdeira do platonismo, nos permite
apenas conhecer aquilo que há de geral nas coisas, pois, produz recortes, paradas e
congelamentos num real que é puro fluxo, pura indeterminação.
Bergson concebe que todo ser vivo possui sua própria duração, a qual é singular, ou
seja, uma essência que é apenas sua, o modo como cada ser atravessa o tempo e que é a
própria duração em si. O filósofo, ao criar maneiras para ultrapassar o modo de conhecer
produzido pela razão clássica e chegar a conhecer o objeto absoluto, suas singularidades,
considera necessária a invenção de uma nova linguagem capaz de dar conta da intuição,
pois os conceitos e toda a gama de símbolos utilizados por nós, na representação, não dão
conta do sentido mais íntimo, do que há de mais singular e que não pode ser expressado
pela linguagem. Há a necessidade da invenção de novos conceitos ―para fazer passar o que
há de fluído e cambiante nos seres‖ (SCHÖPKE, p.102). No conhecimento por análise,
além de multiplicar infinitamente as visadas de um mesmo objeto, ele também pressupõe a
ideia de um objeto congelado em algum lugar do espaço. Deste modo, os símbolos e
pontos de vista restringem o observador apenas ao caráter de exterioridade do objeto,
impedindo o mesmo de traduzir aquilo que por essência é incomensurável nesse mesmo
objeto, ou seja, o seu espírito e sua duração. Para Bergson, tal como a razão clássica
procede é impossível apreender os devires. O filósofo, por sua vez, pretende apreender o
devir em seu próprio movimento, coincidindo com ele em sua própria duração, sendo a
duração de um ser seu próprio movimento no mundo.
É preciso, por um esforço do pensamento, inserir-se no interior do
objeto que se pretende conhecer, de modo que já não haja duas
―durações‖ distintas (a do sujeito e a do objeto), mas uma única direção,
um único movimento conjunto. Somente assim, para Bergson, teremos
um conhecimento pleno da essência de um objeto (SCHÖPKE, p.104)
Diversamente do que muitos podem compreender, Bergson não é um místico ao
propor o conhecimento por meio da intuição; na medida em que propõe um novo
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funcionamento da razão deve ser considerado um neo-racionalista. Para ele, somente a
intuição pode dar conta de um real que é pura zona de indeterminação. Nos estudos que
Deleuze (1999) fez da filosofia de Bergson, evidenciou que a intuição tanto é um método
rigoroso quanto um ato simples. Segundo ele, a intuição não se atualizará se antes não
percorrer uma multiplicidade qualitativa e virtual. Deve-se ressaltar que a ideia de
simplicidade em Bergson, não exclui a ideia de multiplicidade.
Bergson produz três teses sobre o movimento. Primeira regra: ―Aplicar a prova do
verdadeiro e do falso aos próprios problemas, denunciar os falso problemas, reconciliar
verdade e criação no nível dos problemas‖ (DELEUZE, 1999, p.8). Somos acostumados a
buscar soluções para problemas já dados, contudo, a verdadeira liberdade consiste no
poder de constituição dos próprios problemas. Cometemos um erro ao acreditar que o
verdadeiro e o falso dizem respeito apenas às soluções, ou seja, que eles começam apenas
com as mesmas. Contudo, este é um preconceito social, afirma Deleuze, ―pois a sociedade,
e a linguagem que dela transmite as palavras de ordem, ―dão‖-nos problemas totalmente
feitos, como que saídos de ―cartões administrativos da cidade‖, e nos obrigam a ―resolvêlos, deixando-nos uma delgada margem de liberdade‖ (Idem, 1999, p.9). Preconceito, que é
infantil e escolar, pois o professor dá aos alunos os problemas, cabendo a eles solucionálos, mantemo-nos deste modo, numa espécie de escravidão. O filósofo ressalta que, colocar
um problema não é simplesmente descobrir, acima de tudo é inventar. Isto porque
enquanto a descoberta incide sobre o existente, tanto atualmente como virtualmente, em
algum momento ela acontecerá, independente do momento. Já a invenção ―dá o ser ao que
não era‖ e podendo nunca ter vindo a ser.
Todavia, na Matemática, e mais ainda, na metafísica, o esforço inventivo está ligado
em dar origem ao problema, em criar os termos aos quais o mesmo se colocará. Bergson
acredita que um problema bem colocado, já esteja resolvido por ele mesmo. Os verdadeiros
problemas, não são colocados se já não se encontrarem solucionados. Ou seja, a solução já
existe imediatamente, embora possa permanecer oculta, faltando apenas, descobri-la.
Regra complementar: ―os falsos problemas são de dois tipos: ―problemas
inexistentes‖, que assim se definem porque seus próprios termos
implicam uma confusão entre o ―mais‖ e o ―menos‖; ―problemas mal
colocados‖, que assim se definem porque seus próprios termos
representam mistos mal analisados (Idem, 1999, p. 10).
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Um problema inexistente é aquele que não diferencia o ―mais‖ e o ―menos‖. Um
exemplo muito corrente é acreditar que existe mais na ideia de não ser do que a na de ser,
sendo que, numa reflexão profunda pode-se provar o contrário.
Sobre os problemas mal colocados, Bergson cita aqueles que tendem a agrupar
coisas que são de naturezas distintas. Ele se refere aos mistos mal analisados, ou seja,
misturas impuras que apenas confundem o filósofo. Um exemplo de misto mal analisado é
o espaço-tempo, ambos são de naturezas diferentes. O espaço podemos ligar ao universo
material, já o tempo é da ordem do espírito.
Segunda regra: ―Lutar contra a ilusão, reencontrar as verdadeiras diferenças de
natureza ou as articulações do real‖ (Idem, 1999, p. 14). Pode-se falar que a segunda regra é
uma extensão da primeira. Bergson não ignora o fato de que as coisas se misturam; a
própria experiência apenas nos oferece mistos. Contudo, o mal não consiste nisso. Deleuze
afirma que medimos as misturas com uma unidade que é por si mesma, impura e já
misturada, perdendo, deste modo, a razão dos mistos. A obsessão pelo puro retorna em
Bergson, na restauração das diferenças de natureza. Pode ser dito puro, apenas aquilo que
difere por natureza, contudo, apenas as tendências diferem por natureza. ―Trata-se, portanto,
de dividir o misto de acordo com tendências qualitativas e qualificadas, isto é, de acordo
com a maneira pela qual o misto combina a duração e a extensão definidas como
movimentos, direções de movimentos (como a duração-contração e a matéria distensão)‖
(Idem, 1999, p.15)
O filósofo deve travar uma batalha contra as ilusões que o impedem de ver a
verdadeira diferença de natureza que existe entre as coisas, tal ilusão que dá origem aos
mistos. A Intuição, sendo o método da divisão dos mistos, possui semelhança com uma
análise transcendental: é necessário dividir o misto, que representa o fato em tendências ou
puras presenças, que apenas existem de direito. Todavia, ocorre um ultrapassamento da
experiência em direção às condições da experiência do real.
Bergson censurará a
metafísica, principalmente por ter percebido apenas diferenças de grau entre um tempo
espacializado e uma eternidade supostamente primeira. Como por exemplo em Platão: o
tempo é excluído do mundo das essências, por justamente estar associado ao movimento,
deste modo é a causa imediata da degradação das coisas.
Contudo, como Bergson procede na divisão da representação em elementos que a
condicionam em puras presenças ou em tendências que diferem por natureza? Num
primeiro momento, ―ele se pergunta se entre isto e aquilo pode (ou não pode) haver
diferença de natureza‖ (Idem, 1999, p.16). A primeira resposta encontrada por ele foi:
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―sendo o cérebro uma ―imagem‖ entre outras imagens, ou sendo o que assegura certos
movimentos entre outros movimentos, não pode haver diferença de natureza entre a
faculdade do cérebro dita perceptiva e as funções reflexas da medula‖ (Idem, 1999, p.16).
Bergson conclui, que o cérebro apenas complica a relação entre um movimento recolhido e
um movimento executado. Contudo, o cérebro coloca um intervalo entre os dois, podendo
ser pelo fato de dividir ao infinito o movimento recebido, devido o mesmo prolongar
numa pluralidade de reações possíveis.
Devido ao efeito do intervalo que o cérebro estabelece entre o movimento
recolhido e o movimento recebido chamado ―intervalo cerebral‖ um ser pode captar de um
objeto material apenas aquilo que lhe interessa. Deleuze ressalta que não deve existir
diferença de natureza entre a faculdade do cérebro e a função da medula, mas somente
diferença de grau. É necessário se questionar sobre o que preenche um intervalo cerebral.
A resposta de Bergson será tríplice:
Primeiramente, é a afetividade, que supõe, precisamente, que o corpo
seja coisa distinta de um ponto matemático e dê a ela um volume no
espaço. Em seguida, são as lembranças da memória que ligam os
instantes uns aos outros e intercalam o passado no presente. Finalmente,
é ainda a memória, sob uma outra forma, sob forma de contração da
matéria, que faz surgir a qualidade (Idem, 1999, p. 17).
Pode-se concluir que aquilo que faz com que o corpo seja distinto de uma
instantaneidade e que lhe dá uma duração no tempo é a memória.
Regra complementar da segunda regra: ―o real não é somente o que se divide
segundo articulações naturais ou diferenças de natureza, mas é também o que se reúne
segundo vias que convergem para um mesmo ponto ideal ou virtual‖ (Idem, 1999, P.20).
Um problema bem colocado tende-se por si só, resolver-se. Deleuze afirma que conforme
o primeiro capítulo de ―Matéria e Memória‖, coloca-se bem o problema da memória.
Como por exemplo: Quando dividimos o misto lembrança-percepção, o mesmo é dividido
em duas direções diferentes e dilatadas, as quais correspondem numa verdadeira diferença
de natureza entre a alma e o corpo, o espírito e a matéria. Contudo, obtemos a solução de
tal problema quando ―apreendemos o ponto original no qual as duas direções divergentes
convergem novamente, o ponto preciso no qual a lembrança se insere na percepção, o
ponto virtual que é como que a reflexão e a razão do ponto de partida‖ (Idem, 1999, P.21).
Todavia este problema, da alma e do corpo, da matéria e do espírito, é resolvido por um
extremo estreitamento, através do qual, Bergson mostra que a linha da objetividade e a da
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subjetividade, da observação externa e da interna, precisam convergir ao término de seus
diferentes processos, até o caso da afasia.
Não obstante, Deleuze afirma que esse método de intersecção forma um
verdadeiro probabilismo, ou seja, cada uma dessas linhas define uma probabilidade. As
linhas, contudo, são qualitativamente distintas, e nessa divergência, na desarticulação do
real que realizam segundo as diferenças de natureza, as quais constituem um empirismo
superior, capaz de colocar problemas e ultrapassar a experiência, rumo as suas condições
concretas. Todavia, as linhas, procedendo numa intersecção do real, definem deste modo,
um probabilismo superior, capaz de solucionar problemas e ―relacionar a condição ao
condicionado, de tal modo que já não subsista distância alguma entre eles‖ (Idem, 1999,. p.
21).
Terceira regra: ―Colocar os problemas e resolvê-los mais em função do tempo do
que do espaço‖ (Idem, 1999, p.22). Contudo, Bergson afirma existir um tempo em si, puro,
o qual abarca todos os tempos ou durações singulares. Todo ser vivo possui uma duração
particular, por outro lado o filósofo defende a tese de que o tempo é uno, universal e
impessoal. ―(...) não existe senão um único tempo (monismo), embora ele tenha uma
finalidade de fluxos atuais (pluralismo generalizado), que participam, necessariamente do
mesmo todo virtual (pluralismo restrito)‖ (SCHÖPKE, p.112). Ou seja, o tempo é uno,
mas abarca infinitas durações particulares. Deve-se ressaltar que a duração de um ser não se
altera, apesar dos múltiplos estados que experimenta. Cada duração é singular,
insubstituível, isto, porque a distinção da multiplicidade interna é de natureza,
diferentemente da externa, que é gradativa. A duração é o ―elan vital‖, pois é a ela que
possibilita o passado de um ser vivo se prolongar em seu presente, sendo o presente,
apenas o momento mais contraído de tal memória. É um devir que dura, uma mudança, a
própria essência do ser.
A intuição é o método da filsofofia bergsoniana, é a visão direta do espírito pelo
espírito. Pensar intuitivamente é entrar em contato imediato com a essência de uma coisa,
percebê-la no seu próprio movimento, ou seja, na sua própria duração, que é o modo como
ela atravessa o tempo. Se a intuição, contudo, parece ser complexa, Bergson afirma que isso
se deve ao fato de que o nosso conhecimento necessita de uma formulação em sua essência
mais profunda. Ou seja, faz-se necessário preparar o espírito para o ato simples de
apreensão da duração. Todavia o ato preparatório é um exercício que violenta o ritmo
costumeiro de nosso pensamento. Devido a isso, a intuição é tanto um ato simples quanto
um ato complexo.
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Referências Bibliográficas:
DELEUZE, Gilles. Bergsonismo; Tradução de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Ed. 34, 1999.
___________. A Imagem-movimento; Tradução de Stella Senra. Paris: Les Éditions de Minuit,
1983.
___________. Nietzsche e a Filosofia;Tradução de Ruth Joffily Dias e Edmundo Fernandes
Dias. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976.
SCHÖPKE, Regina. Por uma filosofia da diferença: Gilles Deleuze, o pensador nômade. São Paulo:
Edusp, 2004.
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DELEUZE, O TEATRO E A PRODUÇÃO DE UMA POLÍTICA MENOR
Lucas Henrique Nunes Batista
Filosofia Unioeste/ Fundação Araucária
[email protected]
DrªEster Maria Dreher Heuser(orientadora)
RESUMO: A presente comunicação expõe resultados de uma pesquisa realizada com o
financiamento do CNPq, 2012/2013, a qual teve por objetivo principal abordar a criação
do conceito de minoração do filósofo Gilles Deleuze. Para alcançar tal objetivo se fez
necessário recorrer às considerações que o filósofo efetivou acerca dos procedimentos
empregados pelo dramaturgo Carmelo Bene em seu teatro experimentação. Este criou suas
peças a partir de obras consagradas, tanto da literatura quanto do teatro, adotando o
procedimento de subtração: retirou alguns elementos de poder da obra original, para que
outros, que só estavam nela como algo virtual, pudessem aparecer e ter um espaço de
relevância na nova obra. A fim de compreender o referido procedimento, bem como o que
Deleuze faz com ele em sua filosofia, se fez necessário, para a realização da pesquisa,
recorrer à uma das obras consagradas pela tradição a qual Bene usa, a escolha foi a peça
teatral Ricardo III de Shakespeare, dando atenção especial às perspectivas de poder, ao
sistema político e às ambições humanas nela presentes.
Palavras-chave: Minoração. Teatro. Deleuze.
Gilles Deleuze, filósofo contemporâneo, criou sua filosofia a partir de conceitos de
outros filósofos, mas também partiu de noções não filosóficas, ou seja, recorreu à criação
de outras formas de pensar, como a literatura, o cinema, o teatro, pois, para ele, a filosofia,
ainda que tenha suas especificidades, está no mesmo nível destes outros domínios, uma vez
que são manifestações criativas do pensamento. Aqueles que criam procedimentos que
escapam dos padrões canonizados para expressarem seus pensamentos importam à
Deleuze, isto porque, para o filósofo, a forma de expressão é capaz de alterar a forma de
conteúdo, tanto na filosofia quanto em outras manifestações do pensamento; por essa
razão, Deleuze se interessou, também, pelos procedimentos inventados por Carmelo Bene.
Carmelo Bene criou suas peças a partir de obras já existentes. Por meio do procedimento
que Deleuze chama de ―minoração‖, o dramaturgo amputa elementos de poder enfocados
majoritariamente na peça originária, para dar visibilidade a personagens secundários; deste
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modo atualiza, em sua criação, aquilo que na obra original é apenas virtual. Para Deleuze, o
mais interessante nos procedimentos de Bene é a fabricação das personagens.
Trata-se em primeiro lugar, da constituição de um personagem no
próprio palco. Até os objetos, os acessórios, aguardam seu destino, isto
é, a necessidade que o capricho do personagem vai lhes atribuir. A peça se
confunde primeiro com a fabricação do personagem, sua preocupação,
seu nascimento, seus balbucios, suas variações, seu crescimento. Este
teatro crítico é um constituinte, a Crítica é uma constituição. O homem
de teatro não é mais autor ou encenador. É um operador. Por operação
deve-se entender o movimento da subtração, da amputação, mas já
recoberto por outro movimento, que faz nascer e proliferar algo de
inesperado (DELEUZE, 2010, p.28-29).
Shakespeare é o alvo preferido do teatro crítico de Bene, de suas peças faz o que
Deleuze chama de uma ―crítica amorosa‖. A fim de darmos evidência ao procedimento de
minoração operado por Bene e a transformação do homem de teatro, apresentaremos
alguns traços característicos de uma das criações de Shakespeare, um dos mais importantes
dramaturgos e escritores de todos os tempos, trata-se da obra Ricardo III, que se passa na
Inglaterra no século XV.
A peça Ricardo III se passa na transição do poder, quando o Duque de Gloucester
ambiciona atingir o reinado. Na peça, o Duque é um homem ganancioso, frio, calculista e
sem nenhum escrúpulo; é apresentado como a personificação do mal, uma pessoa
extremamente ruim, e deformada. A deformidade de seu rosto e corpo eram horríveis, e
estavam dentro e fora dele, como se ele fosse ruim por dentro e ruim por fora. Podemos
perceber isso no começo da peça, quando ele diz em meio ao seu monólogo:
Pois eu, neste ocioso e mole tempo de paz, não tenho outro deleite para
passar o tempo afora a espiar a minha sombra ao sol e cantar a minha
própria deformidade. E assim, já que não posso ser amante que goze
estes dias de práticas suaves, estou decidido a ser ruim vilão e odiar os
prazeres vazios destes dias. Armei conjuras, tramas perigosas, por entre
sonhos, acusações e ébrias profecias, para lançar o meu irmão Clarence e
o Rei um contra o outro, num ódio mortífero, e se o Rei Eduardo for tão
verdadeiro e justo quanto eu sou sutil, falso e traiçoeiro, será Clarence
hoje mesmo encarcerado devido a uma profecia que diz será um ―gê‖ o
assassino dos herdeiros de Eduardo. Mergulhai, pensamentos, fundo,
fundo na minha alma (SHAKESPEARE, 2001, p.6. ).
Ricardo III era um ser tão abominável que até sua mãe Duquesa de York o
desprezava e repugnava suas ações chegando a amaldiçoá-lo e o denomina como ―uma
serpente com a qual o mundo foi presenteado‖ (SHAKESPEARE, 2001, p.60). Ricardo III
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se mostra na peça como um homem muito frustrado, lamentando por sua vida e por sua
deformidade e justificando seus atos por causa dessas frustrações. Ele age de forma
traiçoeira e perigosa, não mede escrúpulos para conseguir o que quer, chegando a matar
todos que estavam em seu caminho para o trono, começa por matar Henrique IV e seu
filho, e depois ordena que matem seu irmão Duque de Clarence. Em seguida, ele ordena a
morte de seus próprios sobrinhos, o príncipe de Gales e o Duque de York que eram
herdeiros do trono e que estavam em sua frente na sucessão, por fim, arquiteta seu golpe
de Estado, matando, torturando todos aqueles que se voltassem contra ele.
Quando a população descobre que o Rei Eduardo está morto, ficam todos ansiosos
para saberem quem será o próximo a herdar o trono, Shakespeare mostra a posição do
povo sem alterações, como apenas telespectadores, impotentes, sem voz, sem poder,
apenas como alguém que cumpre o que lhe vem, sem se questionar.
não disseram palavra alguma, mas como estátuas mudas ou pedras que
respiram olharam-se uns aos outros e pálidos de morte se tornaram. Pelo
que eu, nisto vendo, lhes fiz grande reprimenda. E perguntei ao Alcaide o
sentido de tão obstinado silêncio. Sua resposta foi que o povo não era
acostumado a que, afora o arauto, alguém para ele falasse
(SHAKESPEARE, 2001, p.54).
Ricardo III usa de mentiras e dissimulações em conjunto com o medo que ele causa
na população com a intenção de fazer com que o povo lhe siga. Shakespeare não só retrata
o momento histórico de Ricardo, mas compreende que na luta pelo poder o que muda é
apenas o nome do rei, mas o ―grande mecanismo‖ para se chegar ao trono real é o mesmo.
Por fim, na peça, Ricardo III é abandonado por quem estava ao seu lado e os fantasmas
daqueles que ele matou voltam para perturbá-lo. Ele é engolido por sua própria trama,
quando outros também ambicionam sucedê-lo e são capazes de tudo, tal como ele fora,
para conseguir isso. Ricardo III termina em um campo de batalha lutando
desesperadamente por sua vida, ao ponto de trocar seu reino por um cavalo, daí o célebre
clamor: ―Um cavalo! Um cavalo! Meu reino por um cavalo!‖ (SHAKESPEARE, 2001, .87).
Depois de terem sido evidenciados traços da personagem, pode-se mostrar como
Deleuze evidencia, em Um manifesto de menos (2010), a reconstrução feita por Carmelo Bene
(CB) dessa personagem shakespiriana, bem como, mostrar a atualização do que era virtual
na obra de Shakespeare. Deleuze afirma que isto é feito pelo dramaturgo por meio do
procedimento de subtração ou pelo processo de minoração, quer dizer, ele amputa partes
que na obra original estavam no centro da peça dando lugar a outras secundárias e, a partir
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disso, cria uma nova peça. A operação de Bene funciona para Deleuze pensar uma
perspectiva política menor, ou seja, o teatro do italiano é matéria-prima para criação
conceitual do filósofo.
Deleuze dá a ver que no Ricardo III de CB o que é amputado é todo sistema real e
principesco restando apenas Ricardo III e as mulheres, fazendo aparecer na peça o que só
existia virtualmente na tragédia: a relação da mulher com o poder. Na peça de Shakespeare
as mulheres não travam relações com o poder, têm apenas aquele papel formal das
mulheres da realeza, sem influência nas decisões tomadas pelos homens.
Por exemplo, toda a primeira parte da peça de CB é um debate entre Ricardo III e
as mulheres, o qual diz respeito à imbecilidade do homem ao desconsiderar aqueles que
diferem dele, de seus padrões, de seus modos de pensar e agir; nesta parte, Bene ainda faz
uma observação acerca da obscenidade do feminino na história. CB faz aparecer em cena
as mulheres em guerra entrando e saindo, preocupadas com seus filhos que gemem e
choram, também mostra a mulher como objeto de desejo de Ricardo III: em uma das cenas
elas se despem na frente dele deixando claro o desejo deste pelo corpo feminino. Algo que,
não foi visto na peça de Shakespeare, pela formalidade com a qual fazia suas peças. Na
peça, Ricardo III deverá se tornar disforme para poder divertir as crianças e reter suas
mães. Tal procedimento deixa claro o modo como CB faz suas peças, diferente de
Shakespeare não mostra Ricardo III como um ser monstruoso e maligno, na sua versão
Ricardo III tem a capacidade até de cuidar dos filhos das mulheres, como se fosse uma
babá, ele incorpora um suposto papel feminino, algo que naquela época jamais se podia
esperar de um homem, enquanto coloca as mulheres em relação com o poder e com a
guerra. Outros elementos típicos das peças de CB são os gestos vocais dominados pelo
distúrbio na formulação e compreensão da linguagem e sonoridades que atravessam a cena:
murmúrio, sopro e grito.
CB minoriza Ricardo III de Shakespeare trabalhando em seus personagens
problemas contemporâneos próprios das minorias políticas. O Ricardo III beniano seria
uma das únicas tragédias em que as mulheres entram em relações de guerra e falam sobre o
poder, para que isso aconteça, Bene exclui todos os influentes personagens masculinos
retirando sua importância, à exceção do próprio Ricardo III. Este, por sua vez, ambiciona
menos o poder do que quer introduzir ou reinventar uma máquina de guerra, destinada a
destruir o equilíbrio aparente ou a paz do Estado. Operando a subtração dos personagens
do poder de Estado, que no caso seriam os reis, príncipes e Duques, Carmelo Bene vai dar
livre curso à constituição do homem de guerra na cena, ―com suas próteses, suas
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deformidades, suas excrescências, suas malformações, suas variações‖ (DELEUZE, 2010,
p.30).
Nas peças de Carmelo Bene são eliminadas as constantes ou invariantes; tudo o que
é modelo, que normaliza, padroniza e exerce Poder é subtraído. Não se trata, no entanto,
de querer mudar o mundo, nem de fazer a revolução, diz Deleuze que Carmelo Bene não
acredita nisso, mas, ainda assim, Deleuze percebe importância política neste tipo de teatro.
Tal importância se diferencia, no entanto, do teatro popular que representa conflitos entre
opostos como classes, raças, gêneros. Para Deleuze, este tipo de teatro permanece na lógica
da representação a cada vez que toma os conflitos como objeto, isto porque eles já estão
normalizados, codificados, institucionalizados (Cf. HEUSER, 2012).
Carmelo Bene pretende substituir a representação dos conflitos pela variação,
considerada como elemento sub-representativo. A personagem forma uma unidade com o
conjunto do agenciamento cênico, a saber, cores, luzes, gestos, palavras. O diferencial de
Carmelo Bene está no seu ato de desencadear um processo no qual ele é mais o
controlador, o mecânico ou o operador do que ator. No palco, sua criação é fortemente
marcada pela experimentação do elemento sonoro: com sobreposições de vozes, mudanças
de tonalidades, adjunção de diálogos, aproximações e afastamentos de microfones, com
misturas arbitrárias de músicas clássicas e canções populares, amplificação da voz e
playback. Sobreposições e variações que demonstram a recusa de se fazer entender, de fazer
do palco um lugar de interpretação e representação da vida (Ibidem).
Carmelo Bene opera a peça de Shakespeare de modo que fatores como o poder do
homem na sociedade, o aparelho de Estado não se tornem tão influentes, dando vida para
a relação da mulher e das crianças com o poder, por exemplo, coloca Ricardo III como um
homem menos inescrupuloso e maldoso, e mostra a obscenidade do feminino e o desejo
do homem pela mulher. Também subtrai o modo formal de se fazer uma peça, elevando ao
extremo cada gesto, cada deformidade. Na peça se podem ouvir gritos em meio à música,
esses elementos são colocados de modo que se produza uma nova forma de pensar o
teatro e mostra uma nova perspectiva, digamos que mostrando o que poderia acontecer na
peça original, ele faz acontecer em sua peça.
Segundo Heuser, Deleuze nos faz ver Bene operar em cena a partir de uma peça
originária clássica, abrindo mão, entretanto, de sua ―classicidade‖, isto é, subtraindo o
Poder de Estado manifesto no sistema real e principesco da obra original. Esta operação
deixa de lado toda reverência a autores e a textos e dá vida nova a eles. Intensifica suas
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forças, amputa ou neutraliza os elementos que fazem ou representam um sistema de Poder,
dando chance para que elementos como as mulheres possam aparecer.
A partir da análise deleuziana dos procedimentos de Carmelo Bene podemos
afirmar que há como que duas operações opostas no teatro de Bene. Por um lado, eleva-se
o ―maior‖: de um pensamento ―maior‖ se faz uma doutrina, de um modo de viver
dominante se faz uma cultura, de um acontecimento se faz História. Contudo Deleuze diz
que a maioria não designa quantidade, mas, antes de tudo, o padrão em relação ao quais
aqueles que não se enquadram no padrão, ainda que sejam em maior quantidade numérica,
serão consideradas menores, tais como, as mulheres, as crianças, os negros, os gays, os
indígenas, etc. Ou seja, são minoritários em relação ao padrão constituído pelo Homembranco-cristão-macho-adulto-morador das cidades-americano ou europeu contemporâneo.
Mas, nesse ponto, na perspectiva deleuziana, tudo se inverte e a segunda operação ganha
força, pois, se a maioria remete a um modelo de poder- histórico estrutural ou os dois ao
mesmo tempo, é preciso também dizer que todo mundo é minoritário, potencialmente
minoritário, na medida em que se desvia desse modelo em algum momento. Com tal
inversão, contudo, concluímos que essa função antirrepresentativa que recusa aquele
modelo padrão, tal como CB recusou o modelo padrão do teatro, abre-se a possibilidade de
traçar ou constituir de algum modo uma ―figura de consciência minoritária‖, como
potencialidade de cada pessoa. Daí decorre os dois sentidos de minoria produzidos pelo
conceito deleuziano, a saber: minoria designa primeiro um estado de fato, isto é, a situação
de um grupo que, seja qual for o seu número, está excluído do padrão que é sempre maior,
ou, se está incluído é como uma fração subordinada em relação ao padrão de medida que
estabelece a lei e fixa o que se estabelece como maioria – pode-se dizer, neste sentido, que
as mulheres, as crianças, o Sul, o terceiro mundo, etc., são minorias, por mais numerosos
que sejam, na medida em que não se enquadram no referido padrão; em outro sentido,
minoria não designa mais um estado de fato, mas um devir pelo qual a pessoa se engaja. Eis
a noção cara a Deleuze de devir que é sempre minoritário, pois, devir implica sempre
escapar do padrão: devir minoritário, para Deleuze, é um objetivo que diz respeito a todo
mundo, visto que todo mundo entra nele na medida em que cada um constrói sua variação,
a fim de, em algum momento ou dimensão da vida, escapar dos padrões de medida que
visam o controle e a dominação constituídos pelo sistema de poder. Desse modo
afirmamos que a minoria é mais numerosa do que a maioria em si, bem como que minoria
designa, no segundo caso, a potência de um devir, enquanto maioria designa o poder ou a
impotência de um estado, de uma situação. Por fim, concluímos que, na filosofia de
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Deleuze, a força criadora de possibilidades inauditas das artes – neste caso específico, do
teatro de CB – tem lugar privilegiado, na medida em que exerce uma função política de
produção de saídas coletivas por e para uma minoria – desde que a minoria não represente
nada de regionalista, mas também nada de aristocrático, de estético nem de místico.
Referências Bibliográficas:
BENE, Carmelo. Ricardo III. Buenos Aires: Artes del Sur, 2003._____. Ricardo III.
___________. Ricardo III. In.: http://www.youtube.com/watch?v=UtlKg_zugQM (último
acesso em 22 de maio de 2013).
DELEUZE, Gilles. Um manifesto de menos. In.: ___________. Sobre o teatro; tradução de
Fátima Saad, Ovídio
SHAKESPEARE, Willian. Ricardo III; tradução de Carlos A. Nunes. EbooksBrasil.com,
2001.
NUNES, Silvia Balestreri. Boal e Bene: contaminações para um teatro menor. São Paulo: Programa
de Pós-Graduação em Psicologia Clínica, PUC/SP, 2004 (Tese de doutorado). Disponível
em:www.pucsp.br/.../Textos/TESESilviaBalestreriNunes.pdf, acessada e arquivada em 22
de abril de 2012.
HEUSER, Ester Maria Dreher. Procedimentos de minoração: do teatro de Carmelo Bene à
filosofia de Deleuze. Porto Alegre: Sulina, 2012.
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A NOÇÃO DE LINGUAGEM E SEUS DESDOBRAMENTOS PARA PENSAR O
SE-MOVIMENTAR NA EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR
Luciano de Almeida
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Farroupilha – Santo Augusto/RS
[email protected]
Paulo Evaldo Fensterseifer
Universidade Regional do Noroeste do Rio Grande do Sul – Unijuí – Ijuí/RS
[email protected]
RESUMO: O objetivo deste texto é encontrar argumentos que nos auxiliem a pensar a
Educação Física para além de seu caráter instrumental (fazer pelo fazer; ―exercitar para‖),
tomando cuidado para não transformá-la em um discurso sobre a cultura corporal de
movimento (BETTI, 1994; BRACHT, 2003). Para isso, recorremos à hermenêutica
filosófica de Gadamer para tentar compreender como a noção de linguagem pode nos dar
indicativos para redimensionar o hiato existente entre o fazer (prático), o saber com esse
fazer (teórico) e as dimensões estéticas (subjetivas) e éticas (intersubjetivas) na Educação
Física (escolar).
Palavras-chave: Linguagem. Se-Movimentar. Educação Física Escolar. Experiência.
Ao longo de sua constituição enquanto campo de tematização a Educação Física
alcançou ―seus‖ objetivos através da vivência de movimentos no plano de atividades, de
um ―exercitar-se para‖ (FENSTERSEIFER; GONZALEZ, 2007; 2009; 2010). A crítica a
esses moldes enfatizou a necessidade de uma elaboração conceitual acerca das vivências de
movimento, o que nos coloca em risco de cometermos alguns equívocos e transformar a
Educação Física em um discurso sobre a cultura corporal de movimento (BETTI, 1994), e
mais, como reafirma Bracht (2003), não podemos transformá-la num discurso sobre o
movimento. Aqui parece estar um dos paradoxos da Educação Física escolar, a saber, é
uma disciplina que trata da tematização da cultura corporal de movimento que necessita
manter uma tensão permanente entre: o fazer (práticas corporais), o saber com esse fazer,
de ordem conceitual (ideia geral e abstrata); e, ainda, com um saber não conceitual que
considere as dimensões estéticas (sensível e subjetivas) e éticas (social e intersubjetivas), e
que são difíceis de serem conceituadas (no plano instrumental); fato que nos leva a repensar
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a relação dicotômica teoria-prática, presente em todas as áreas do conhecimento, em
especial na Educação Física, pelo seu estreito vínculo com as práticas corporais.
Com base em Gadamer (2008), que não trata explicitamente da Educação Física,
entendemos que esta não se reduz a um conhecimento conceitual, mas lida com elementos
da cultura (corporal de movimento), que se caracterizam em sua maioria, pelas vivências de
movimento/práticas corporais. Fensterseifer e González (2007) nos ajudam a pensar nessa
incontornável relação teoria-prática, que quando tratada de maneira dicotômica, tais como
paralelas, não se encontram em lugar nenhum do tempo e do espaço, e ainda, cada uma
dessas dimensões necessitam ser tratadas em sua complexidade, como todas as produções
humanas, sendo que hierarquiza-las também não é desejável. Nosso interesse é produzir
argumentos para sensibilizar os envolvidos com a Educação Física escolar (professores,
alunos, pais, enfim, a comunidade escolar) ―para as distintas formas de produção da cultura
humana‖ (FENSTERSEIFER, 2012, p. 324), que não se reduzem a um conhecimento
conceitual (ideia geral e abstrata) do saber, mas precisam incorporar outras dimensões
(ética, estética, política).
Essa constatação nos aproxima da tematização da linguagem (perspectiva
fenomenológica-hermenêutica), o que nos leva a reconhecer os limites que o cientificismo
nos legou com sua pretensão de verdade incontestável e única possibilidade de construção
do conhecimento. Vislumbramos nessa tematização algumas possibilidades de lidar com o
mal estar gerado pelas incertezas inerentes ao inacabamento da condição humana.
A linguagem, segundo Oliveira (2006), se tornou a questão central do debate
filosófico na atualidade. Desde a chamada ―reviravolta linguística‖ ou ―giro linguístico‖
(linguistic turn) que ocorreu no século XX, houve, no entender desta autor, uma ruptura (de
paradigma) que caracterizou a filosofia desde o seu nascimento, na antiguidade clássica, que
atribuiu à linguagem uma função secundária, como instrumento para comunicar o
pensamento, uma vez que a cognição (raciocínio) era superior à linguagem. Neste período,
afirma Lawn ―o pensamento ofuscou a linguagem‖ (2007, p. 104). A partir dessa ruptura a
linguagem passa a constituir a tese fundamental da filosofia, tendo em vista que ―é
impossível filosofar sobre algo sem filosofar sobre a linguagem, uma vez que esta é
momento necessário constitutivo de todo e qualquer saber humano‖ (OLIVEIRA, 2006, p.
13), condição de nossa compreensão e de nosso ser no mundo, nas palavras de Gadamer
(2009), a linguagem considerada no âmbito que só ela consegue preencher, é o centro do
ser humano, pois compreende: ―o âmbito da convivência humana, o âmbito do
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entendimento, do nosso consenso crescente, tão indispensável à vida humana como o ar
que respiramos‖ (p. 182).
Nesse sentido, não podemos pensar e falar fora da linguagem, ela é condição de
nossa compreensão do mundo, uma vez que já ―estamos tão habituados e inseridos na
linguagem como estamos no mundo‖ (GADAMER, 2009, p. 177), e não podemos torná-la
um objeto de investigação no sentido da ciência clássica (LAWN, 2007), pois, entendemos
que ―não existe nenhum lugar fora da experiência de mundo que se dá na linguagem, a
partir donde fosse possível converter-se a si mesmo em objeto‖ (GADAMER, 2008, p.
584), ou seja, não é possível sairmos do mundo e o analisarmos de fora (da linguagem e do
mundo), com imparcialidade como a um objeto (científico). Sem linguagem, lembra Lawn
(2007), não haveria mundo, pois esta trata da ―negociação e do ato de fazer sentido de um
mundo de nossa própria construção‖ (p. 112).
Portanto, considerar a linguagem como mero instrumento é desconsiderar sua
dimensão de historicidade, tendo em vista que o mundo é mais velho que nós mesmos, nos
antecede e só se torna mundo (humano) ―quando vem à linguagem, como a própria
linguagem só tem sua verdadeira existência no fato de que nela se representa o mundo‖
(GADAMER, 2008, p. 572). É no plano da linguagem que o mundo se torna
compreensível para nós, em nosso ―estar-no-mundo‖, pois como lembra Gadamer (2009),
é de Aristóteles a expressão clássica de que o homem é um ser vivo que possui logos. A
expressão logos foi traduzida (na tradição do Ocidente) como razão ou pensar, mas também
significa: linguagem.
Parece-nos que na tradição do pensamento moderno, convencionou-se traduzir
logos por razão, e esta fundamentada em si mesma, começou a ordenar o mundo para
conhecê-lo e dominá-lo (FENSTERSEIFER, 2001). Nesse contexto, surge o homem
moderno, ―livre‖ das amarras da tradição e dos desígnios de Deus, que na condição de
sujeito epistêmico e do uso dos instrumentos adequados (método), passa a dominar a
natureza, para representá-la, explicá-la e dominá-la. O pensamento moderno, segundo
Fensterseifer (2001), a partir de seus fundadores, Bacon e Descartes, ―pretende estabelecer
uma dicotomia entre epistemologia e história ao conceber o conhecimento como destituído
de historicidade‖ (p. 68). Essa ruptura acaba gerando uma cisão na relação entre homem e
natureza, materializadas na dicotomia sujeito-objeto, em que o homem (sujeito epistêmico)
transforma o objeto de seu conhecimento (mundo exterior) em aspectos quantificáveis e
mensuráveis, como pura abstração. Tem-se a pretensão de pensar em um ―sujeito livre dos
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sentidos e das paixões, objeto destituído de cultura e história, consideradas fontes de
engano e ilusões‖ (idem, p. 70).
É na esteira dessa tradição moderna (dualista – sujeito/objeto, corpo/alma,
organismo/mente, qualidade/quantidade...), que o ―homem experimenta o real como
objeto, isto é, como o manipulável, o dominável por ele, como aquilo que se pode pôr a
disposição do homem‖ (OLIVEIRA, 2006, p. 203). A linguagem, neste contexto, passa a
ser vista apenas como um instrumento de informação, ―como processo por meio do qual o
homem toma conhecimento dos entes, a fim de poder exercer sobre eles o domínio‖
(idem).
Esse reducionismo acabou trazendo uma série de desdobramentos que temos
dificuldade em pensar a existência humana, o conhecimento, nossa compreensão do
mundo, sem estarmos presos as certezas ―incontestáveis‖ que herdamos da modernidade132
(relação de domínio sujeito – objeto). Faz-se necessário pensar a linguagem para além de
seu caráter instrumental, pois ela desde sempre, ―nos marca, nos determina, e nela se dá a
revelação dos entes a nós, o que só é possível porque, em sua dimensão última, a linguagem
é o evento de desvelamento do sentido do ser‖ (OLIVEIRA, 2006, p. 206).
Assim acreditamos ser necessário distinguir a ―objetividade‖ (Objektivität) da ciência
para não confundi-la com a objetividade (Sachlichkeit) da linguagem, uma vez que na
primeira, procura-se eliminar os elementos subjetivos do conhecer para distanciar o sujeito
do objeto (na experimentação) com vistas a dominá-lo e torná-lo disponível para os fins
arbitrários da ciência (uma tentativa de ―coisificação‖ do mundo). Na segunda, não
acontece nada parecido, tendo em vista que na experiência natural do mundo, que já está
impregnada de linguagem, não é possível um distanciamento do mundo para manipulá-lo e
dizer o ser em si dos entes (objetificação), isso porque falar ―de modo algum significa
tornar as coisas disponíveis e calculáveis‖ (GADAMER, 2008, p. 585), uma vez que não
podemos dizer o que o ser do ente é, apenas expressar situações do ser (que continua sendo),
pois este é ―revelado e oculto pela linguagem‖ (LAWN, 2007, p. 113).
Portanto, a linguagem não deveria ser vista apenas como um instrumento que após
dominarmos seu uso (como um terceiro), ―nos desfazemos dele assim que prestou seu
serviço‖ (GADAMER, 2009, p. 176), pois esta e o mundo carecem ―totalmente do caráter
de objeto‖ (GADAMER, 2008, p. 584) e não estão disponíveis a um sujeito epistêmico que
Para Fensterseifer (2001), a ciência moderna nos deixou órfãos em relação às certezas medievais, o que
―foi sem dúvida uma grande conquista. O erro em relação a ela é acreditar que a realidade se esgota nela,
quando de fato ela é apenas uma forma de tentar apreender esta realidade‖ (p. 83).
132
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deseja manipulá-los e controlá-los. É preciso entender a linguagem sob uma perspectiva
mais alargada, como condição de mediação de compreensão de nosso ser no mundo, pois é
nesse ―meio em que se realizam o acordo dos interlocutores e o entendimento sobre a
coisa em questão‖ (GADAMER, 2008, p. 497), uma vez que quem compreende faz parte e
já está na linguagem (RUEDELL, 2005).
Com essas notas iniciais sobre a noção de linguagem, buscamos em Gadamer 133,
que não trata explicitamente de temas relacionados ao corpo, ao movimento humano ou as
práticas corporais, algumas pistas (nas entrelinhas de suas obras) para pensar como a noção
de linguagem pode nos dar indicativos para redimensionar o hiato existente entre o fazer
(prático), o saber com esse fazer (teórico) e as dimensões estéticas (subjetivas) e éticas
(intersubjetivas) na Educação Física (escolar). Quando tematizamos as manifestações da
cultura corporal de movimento é possível construir um saber com esse fazer, para além de
um plano conceitual (ideia geral e abstrata das práticas corporais), que considere as
dimensões estéticas (subjetivas) e éticas (intersubjetivas) na Educação Física escolar,
mesmo sabendo que, quando traduzimos esse saber sempre fica algo de não dito (condição
de nosso inacabamento humano)134?
O caminho para enfrentar essa questão (e outras) nos leva a pensar o movimento
humano (ou se-movimentar) como linguagem, o que nos abre o campo da experiência.
Experiência que é aqui entendida em seu caráter de abertura, fluidez, que foge ao controle e
a previsão da ciência, como um dado, que pode ser repetido independentemente do sujeito
(histórico) que dela faz parte.
Desta forma, entendemos que o movimento humano/práticas corporais é uma
linguagem, que, ―permanecendo imbricada na materialidade dos processos corporais, os
transcende para apresentar ideias que emanam da relação do homem com o mundo e
expressam essa relação‖ (FENSTERSEIFER; PICH, 2012, p. 31). Ao apresentar ideias,
dizemos o ser dessa relação para que possa tornar-se compreensível e acessível também a
outros; porém, ao dizer o ser, transmitimos apenas o ser de uma situação e
não imaginamos uma linguagem que se lhe adapte mas antes
encontramos a linguagem adequada à situação. Assim, o que encontra
expressão na linguagem não é a nossa ―reflexividade‖ mas a própria
Chamamos a atenção para o fato de que Gadamer é o autor referência para pensarmos essas questões,
porém não fecharemos as portas para outros autores que tomarão parte nesse diálogo.
134 Fensterseifer (2012) nos dá um alento ao afirmar que ―não há linguagem sem ‗restos‘, sempre ‗sobra algo‘,
mas esse algo inominável ou permanece como tal, sem aceder ao mundo humano, ou para ser comunicado
em uma prática pedagógica, por exemplo, precisa aceder a linguagem, e por isso paga um preço‖ (p. 323-324).
133
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situação: as palavras não funcionam essencialmente para se referirem a
esta subjectividade; pelo contrário, referem-se à situação. O fundamento
da objectividade não está na subjectividade daquele que fala mas sim na
realidade que se exprime na e pela linguagem. É nesta objectividade que a
experiência hermenêutica deverá encontrar seu fundamento (PALMER,
1989, p. 244-245).
Podemos perceber que o ser de uma situação, ao se exprimir na e pela linguagem,
continua sendo, para além da subjetividade daquele que compreende. Fazendo uma relação
dessa afirmação, a título de exemplo, com o conceito de jogo em Gadamer (2008), é
possível dizer que o jogo ganha sentido de quem joga e continua sendo jogado, quem entra
no jogo é jogado por ele, não sendo objetificado pela subjetividade do jogador. O
fundamento da objetividade para a ciência moderna, ao contrário, tem a pretensão de
controlar o ser da situação por um sujeito autônomo que domina um objeto, como se fosse
possível fazê-lo fora da linguagem, da história, do mundo.
De acordo com Palmer (1989, p. 230), ―não há nenhuma perspectiva humana a
partir da qual possamos dizer o que o ser ‗realmente é‘‖, pois, ao compreendermos algo, já
estamos interpretando a partir do ―nosso‖ próprio horizonte e não há como pensar o ser em
si no sentido ―original‖. Nesse sentido, é preciso lembrar Gadamer (2008), quando este
afirma que ―às vezes a linguagem parece pouco capaz de expressar o que sentimos‖ (p.
519), referindo-se à dificuldade de resumir em palavras o que nos dizem as obras de arte.
Parece-me que poderíamos atribuir uma dificuldade semelhante para o movimento
humano/práticas corporais, posto que, ao dizê-lo, não conseguiríamos traduzi-lo em
palavras, mas apenas expressar uma situação do que sentimos135. Essa situação seria
interpretada, por um outro, de maneira sempre parcial, e não conseguiria reconstituir o
―original‖, pois já seria uma interpretação, colocando em jogo os próprios conceitos
prévios do intérprete, trazendo à fala apenas uma situação do se-movimentar
(GADAMER, 2008).
Ao relacionarmos as obras de arte e o movimento humano/práticas corporais com
a experiência, percebemos os limites de dizê-las (como evento inaugural), o que nos leva a
pensar em como a tradução poderia amenizar o nosso esforço em ―dizer‖ o movimento
humano/práticas corporais (gestos, expressões, sentimentos, fala, escrita) para um
entendimento no plano intersubjetivo. Apesar de Gadamer (2008), tratar da tradução,
tomando como referência as línguas estrangeiras, acreditamos ser possível estabelecer uma
Guardadas as devidas proporções, essa relação (ou analogia) parece válida, tendo em vista que as obras de
arte são representadas em telas, figuras, esculturas... e se perpetuam, em alguns casos, através dos tempos, já o
movimento humano ocorre no plano da ação, na imediatez de uma situação.
135
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relação com a tradução do movimento humano (se-movimentar) e produzir um
entendimento sobre essa relação.
O objetivo da tradução (grosso modo) de outras línguas é tornar acessível um
―texto‖, por exemplo, em uma mesma língua, para que os interlocutores possam produzir
um entendimento sobre o que se deseja compreender. Na tradução, o tradutor ―precisa
transpor o sentido a ser compreendido para o contexto em que vive o outro interlocutor‖
(GADAMER, 2008, p. 498), ao fazer isso, já está interpretando dentro do seu próprio
horizonte e percebe a impossibilidade da tradução no sentido original da obra, mas deparase com uma nova obra, que deve guardar uma fidelidade com a original, ―sem suspender a
diferença fundamental entre as línguas. Por mais fiéis que queiramos ser, em nossa
tradução, vamos nos deparar com decisões delicadas‖ (idem, p. 500), com escolhas que
precisam proporcionar um entendimento comum entre os intérpretes para a mesma língua,
algo possível no medium da linguagem (GADAMER, 2008). Para Palmer (1989), a tradução
de um texto é sempre interpretação, pois revela o confronto de dois mundos, o do
interprete e o do texto. Nessa relação acontece a fusão de horizontes (do intérprete e da
obra) que se dá, a cada vez, como interpretação (tradução) (GADAMER, 2008).
Se na tradução de uma língua para a outra, já fazemos uma interpretação e não
conseguimos reconstruir o original, no se-movimentar acontece algo semelhante, pois
mesmo na repetição das práticas corporais sistematizadas (como no esporte, por exemplo),
não conseguimos reconstruir o original, mesmo na reprodução dos mesmos movimentos
há sempre um grau de instabilidade, é sempre um fazer de novo, é sempre uma nova
experiência, que possui um caráter de abertura o que contraria a pretensão de
universalização do movimento humano por parte da ciência (eliminando o caráter de
historicidade do se-movimentar).
Essa limitação também ocorre quando tentamos compreender o nosso próprio
movimento, visto que não conseguimos ―traduzir‖ uma dimensão de nossa percepção, já
há uma perda no pensar e no falar (no dizê-lo). Essa é uma condição de nossa existência no
mundo, que se dá como um acontecimento (na experiência). Na interpretação de um outro
se-movimentar captamos o ser da situação sem alcançar o seu ―plano original‖, mas só
compreendemos o que é visível para nós, a percepção do sujeito que se movimenta fica no
plano da invisibilidade (indizível). Essa é uma condição da própria linguagem que é
enigmática uma vez que ―exprime perfeitamente sob a condição de não exprimir
completamente, toda a sua força estando nessa maneira paradoxal de acercar-se das
significações, aludi-las sem jamais possuí-las‖ (CHAUÍ, 2002, p. 17).
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Nossa compreensão do mundo (e desse se-movimentar) se da nessa
impossibilidade de alcançarmos plenamente a linguagem (dominá-la), pois esta sempre nos
ultrapassa e é condição indispensável para a convivência humana ―sem assassinatos e
homicídios, na forma de uma vida social, de uma constituição política‖ (GADAMER,
2009, p. 174), para que os homens possam se comunicar e pensar nas ―condições de
possibilidade de sentenças intersubjetivamente válidas a respeito do mundo‖ (OLIVEIRA,
2006, p. 13) e produzir um entendimento comum.
Esse entendimento comum só é possível porque temos, somos e pertencemos a um
mundo (humano) que se torna compreensível para nós na e pela linguagem, a partir da
experiência com o que se quer compreender. Assim, experiência e linguagem não podem
ser vistas como dois polos opostos, mas como condição (complementar) de nossa
compreensão do mundo. Faz-se necessário manter uma tensão desta relação paradoxal que
nos parece intransponível, uma vez que a experiência encontra-se no ponto nodal da
interseção entre a linguagem pública e a subjetividade privada, entre os traços que são
expressos no plano comum e o caráter indizível da interioridade individual (JAY, 2009), o
que se acentua ainda mais quando tratamos de nossa relação com as práticas corporais (ou
a cultura corporal de movimento).
Referências Bibliográficas:
BETTI, Mauro. O que a semiótica inspira ao ensino da educação física. Discorpo, São Paulo,
n.3, p.25-45, 1994.
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Paulo: Martins Fontes, 2002. (Coleção Tópicos).
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___________. O que significa aprender no âmbito da cultural corporal de movimento?
Atos de Pesquisa em Educação, Blumenau, v. 7, n. 2, p. 320-328, mai./ago. 2012.
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escolar: a difícil e incontornável relação teoria e prática. Motrivivência, Florianópolis, ano
XIX, n. 28, p. 27-37, jul./2007.
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390
___________. Entre o ―não mais‖ e o ―ainda não‖: pensando saídas do não-lugar da ef
escolar I. Cadernos de Formação RBCE, p. 9-24, set. 2009.
___________. Entre o ―não mais‖ e o ―ainda não‖: pensando saídas do não lugar da ef
escolar II. Cadernos de Formação RBCE, p. 10-21, mar. 2010.
FENSTERSEIFER, Paulo Evaldo; PICH, Santiago. Ontologia pós-metafísica e o
movimento humano como linguagem. Impulso, Piracicaba, 22 (53), p. 25-36, jan./abr. 2012).
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica
filosófica. Tradução de Flávio Paulo Meurer; revisão da tradução de Enio Paulo Giachini.
10. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
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Giachini; revisão da tradução de Márcia Sá Cavalcante-Schuback. 4. ed. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2009.
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70, 1989.
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(Orgs.). Dicionário crítico de educação física. Ijuí: Ed. Unijuí, 2005, p. 264-266.
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391
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PACTO DOS RICOS E OS FUNDAMENTOS DA
DESIGUALDADE CIVIL EM ROUSSEAU: A RECUSA DOS PRESSUPOSTOS
LIBERAIS DE LIVRE CONCORRÊNCIA E COMPETIÇÃO SADIA
Luís Fernando Jacques
UNIOESTE
[email protected]
Dr. José Luiz Ames
RESUMO: Através da análise política proposto por Rousseau em seu segundo Discurso
acerca dos fundamentos das desigualdades e sobre o pacto dos ricos, podemos realizar um
diagnóstico sobre o processo de transição dos acontecimentos sócio-políticos do século
XX ao XXI. A humanidade se encontrava entre dois paradigmas. O paradigma da
competição (da livre concorrência, da competição ou do mercado), que buscou ratificar as
desigualdades civis e econômicas em códigos jurídicos, através das circunstâncias históricas
(pacto dos ricos). E o paradigma da solidariedade, que busca oferecer soluções alternativas
para a preservação da própria humanidade, da natureza e dos pressupostos da sociabilidade
entre os povos. Sobre este tema me proponho a discutir o complexo debate político com o
apoio do pensamento rousseauniano.
Palavras-chave: Pacto dos ricos, desigualdade, livre concorrência.
Através da análise do processo de transição dos acontecimentos sócio-políticos do
século XX ao XXI, com o avanço preeminente do capitalismo e das ideias neoliberais, a
humanidade tem se deparado constantemente com um dilema político o qual possui diretas
implicações sócio-econômicas, que se resumem na escolha entre o paradigma da
competição (da livre concorrência ou do mercado) e o paradigma da solidariedade. É com
o auxílio do pensamento de Jean Jacques Rousseau, mais especificamente na segunda parte
de sua obra Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, que tentarei
apontar possibilidades de pensar e refletir sobre o tema, buscando critérios para melhor
considerar a complexidade do debate acerca destes paradigmas contemporâneos.
Rousseau na segunda parte deste discurso fundamenta sua estrutura conceitual
através de hipóteses sobre quais foram os fundamentos ou a origem, do surgimento da
desigualdade entre os homens. O filósofo argumenta que foi através do desenvolvimento
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392
do hábito de considerar objetos e fazer comparações, que os indivíduos gradativamente
adquiriram insensivelmente à ideia de mérito e de beleza, que produziram sentimentos de
preferência. Isto se apresentava nas comunidades primitivas e continua a se expressar nas
mais diversas manifestações culturais dos povos: a competição na dança e no canto, o mais
belo, o mais forte, o mais hábil ou o mais frequente passou a ser o mais considerado, e foi
esse o primeiro passo para a desigualdade – a ideia de estima e apreço a consideração.
Neste ponto inicial percebemos uma característica primordialmente artificial da ideia de
competição, que foi estabelecida e se desenvolveu com o surgimento da comunidade
política, que não pode ser fundamentada na natureza.
A moralidade assim começou a introduzir-se nas relações humanas, e sendo esta
antes das leis a única mediação entre a relação social dos membros da comunidade, a
bondade desinteressada conveniente antes ao estado de natureza, já não convinha mais à
sociedade nascente. Através do desdobramento histórico da perfectibilidade, que, segundo
Rousseau, é a capacidade que o gênero humano possui de aperfeiçoamento ou de
degeneração, conforme o uso que faz do desenvolvimento de suas faculdades, no qual se
estabeleceu em certo período de tempo. A relação de dependência entre os membros da
comunidade, na qual gerou uma das primeiras noções da desigualdade, através da
introdução da propriedade privada, na qual o trabalho tornou-se uma relação servil atrelada
à escravidão. A invenção de outras artes, necessariamente forçou o gênero humano a
aplicar-se ao desenvolvimento da agricultura.
A noção de posse em relação ao solo neste contexto se deu a partir do uso da terra
através do trabalho. A concepção idealizada de partilha do solo que poderia ter surgido,
seria a noção de distribuição equitativa do território entre os indivíduos, de acordo com
suas necessidades de subsistência e capacidades laborais. Porém, a ratificação das
desigualdades civis e econômicas em códigos jurídicos, e a legitimação na sociedade
primitiva da lei do mais forte, fizeram com que se pensasse contemporaneamente,
principalmente através dos pressupostos liberais da livre concorrência, que a ideia de
competição poderia ser fundamentada fazendo o apelo à natureza.
O desenvolvimento das desigualdades segundo Rousseau, começou a surgir da
diferença das faculdades desenvolvidas, o amor-próprio interessado, o emprego dos
talentos, a desigualdade das fortunas e o abuso das riquezas, formam a constelação de
variáveis fundamentais para pensar a desigualdade civil. A desigualdade natural se
desdobrou insensivelmente com a desigualdade de combinação, e as diferenças entre os
indivíduos, desenvolvidas pelas circunstâncias, ou seja, fatos e acontecimentos históricos
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começaram a ficar gradativamente mais sensíveis e sutis com o avanço e o
desenvolvimento da sociedade civil, influenciando cada vez mais sobre a vida e a liberdade
dos particulares.
Enfim, a ambição devoradora, a gana de aumentar sua fortuna relativa,
menos por verdadeira necessidade do que para ficar acima dos outros,
inspiram a todos os homens uma nefanda inclinação para si prejudicar
mutuamente, uma inveja secreta tanto mais perigosa quanto, para aplicar
seu golpe com maior segurança, frequentemente assume a máscara da
benevolência; em suma, concorrência e rivalidade de um lado, oposição
de interesses do outro e sempre o desejo oculto de tirar proveito à custa
de outrem; todos esses males constituem o primeiro efeito da
propriedade e o cortejo inseparável da desigualdade nascente.
(ROUSSEAU, 1999, p. 218)
Se Rousseau não propôs a eliminação das desigualdades econômicas e sociais, mas
ficou apenas com a ideia da redução das riquezas e das fortunas, ao menos expôs de
maneira clara a natureza e as características artificialmente explícitas de concorrência e
rivalidade pelo ganho e pelo acúmulo de bens e de posses 136. E é por versar sobre este
aspecto da filosofia política que se torna explícito o potencial crítico de Rousseau em pleno
século XVIII.
Sobre a origem das sociedades políticas, o filósofo aponta três principais linhas de
raciocínio: primeiramente, Rousseau afirma que as sociedades políticas se fundamentaram
através da legitimação da violência, não havendo nem corpo político, nem lei senão a lei do
mais forte. Segundo, que as palavras forte e fraco não ajudam a compreender os fundamentos
da desigualdade, mas o uso das palavras pobre e rico expressam o que os indivíduos não
tinham antes das leis. Por último e fundamental, que os pobres têm somente a liberdade e a
vida, e que loucura seria destituir-se voluntariamente da liberdade para receber nada em
troca. Portanto, é razoável acreditar que foram os ricos que pactuaram na origem das
relações de desigualdade, por que esta situação é mais útil aos ricos do que àqueles a quem
prejudica.
Na concepção histórico-genealógica de Rousseau em relação aos fundamentos das
desigualdades, a sociedade nascente surgiu de um terrível estado de guerra. Nesta condição,
Existem algumas correntes interpretativas da filosofia política que contestam a capacidade crítica de
Rousseau ao propor apenas a redução das fortunas. O pressuposto aqui a ser destacado consiste fazer a
devida ressalva ao autor, pois se faz necessário contextualizar historicamente o cenário político de sua época,
pois Rousseau observava a sociedade civil da transição do feudalismo para o surgimento da burguesia do
século XVIII.
136
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os ricos logo perceberam as desvantagens de manter um conflito perpétuo cujas despesas
pagavam sozinhas, e da qual o risco de vida e de perda dos bens era o mesmo.
Foi então que os ricos decidiram se unir com seus semelhantes para combater os
possíveis inimigos comuns: o conjunto de circunstâncias históricas da sociedade civil que
Rousseau nomeou metaforicamente de pacto dos ricos. Através da alegoria literária e da
ironia o filósofo descreve sua possível instituição:
Unamo-nos, disse-lhes, para resguardar os fracos da opressão, conter os
ambiciosos e assegurar a cada qual a posse do que lhe pertence.
Instituamos regulamentos de justiça e paz aos quais todos sejam
obrigados a adequar-se, que não abram exceção a ninguém e reparem de
certo modo os caprichos da fortuna, submetendo igualmente o poderoso
e o fraco a deveres mútuos. Em suma, em vez de voltarmos nossas
forças contra nós mesmos, reunamo-las em um poder supremo que nos
governe segundo leis sábias, que proteja e defenda todos os membros da
associação, rechace os inimigos comuns e nos mantenha numa concórdia
eterna. (ROUSSEAU, 1999, p. 221).
Foi a partir da intuição do pacto dos ricos, na qual Rousseau pensou através da
verossimilhança dos acontecimentos históricos, que ocorreu a destruição definitiva da
liberdade natural fixando a lei da propriedade privada e da desigualdade, tornando este
pacto em direito civil e a regra comum entre os cidadãos, nas palavras do genebrino ―de
uma hábil usurpação fizeram um direito irrevogável‖ (ROUSSEAU, 1999, p. 222).
É uma suposição ingênua e contraditória dizer que os governos foram escolhidos
antes da confederação e que os ministros existiram antes das próprias leis. Não é nem
razoável acreditar que um povo tenha alienado seus bens e sua liberdade a um senhor de
forma absoluta, sem condições e nem compensações. Não é nem razoável imaginar que um
povo possa trocar sua liberdade por uma condição de escravidão travestida de uma ilusória
segurança. Difícil demonstrar a validade de um contrato que só obriga uma das partes, na
qual se coloca tudo de um lado e reverte tudo em prejuízo ao outro lado que assumiu seu
compromisso.
Uma das máximas fundamentais do direito político consiste no fato dos povos
aceitaram ter governantes, para que estes lhes defendessem a liberdade e não para que os
escravizassem. Os políticos discursam sobre o apreço à liberdade e a justiça, da mesma
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395
forma que os sofismas falavam sobre o estado de natureza: pelas coisas que vêem, julgam
coisas muito diferentes137.
Os governos se originaram pelo poder arbitrário, que não passa de corrupção,
através de seu termo mais extremo, que acaba por reduzi-los unicamente a lei do mais
forte. A lei do mais forte é um poder ilegítimo que não pode servir de fundamento para os
direitos da sociedade civil, muito menos para a desigualdade de instituição. O povo reunido
através do pacto de associação civil, tendo as suas vontades convergidas em uma só, todos
esses artigos elaborados por esta vontade tornam-se leis fundamentais que obrigam o
Estado, que não podem permitir privilégios e excepcionalidades, que regulamenta inclusive
a escolha dos magistrados encarregados de zelar pelo bem comum. O direito de abdicar
também pode ser fundamentado, pois nenhum contrato na sociedade civil é irrevogável.
Pode se concluir que o progresso do processo das desigualdades se deu através do
estabelecimento da lei e do direito de propriedade privada. Foi assim que o estado do rico e
do pobre foi autorizado pela época. A instituição da magistratura e a mudança do poder
legítimo para o poder arbitrário autorizaram o estado de dominação e escravidão,
tornando-se o extremo grau da desigualdade. As distinções políticas levam necessariamente
às distinções civis. A desigualdade estende-se sem dificuldade entre mentes ambiciosas e
covardes, sempre prontas a correrem os riscos da fortuna.
A comparação entre os indivíduos sem levar em consideração as diferentes práticas
que possuem entre si, levam a desigualdade de crédito e de autoridade entre os particulares.
As principais espécies de desigualdades e distinções pelas quais os indivíduos medem-se na
sociedade civil: riqueza, posição social, poder e mérito pessoal. O desejo universal de
reputação, honrarias e de preferências que pode ser desenvolvido no gênero humano
através do amor-próprio, no qual exercita e compara os talentos e as forças, tornando os
homens concorrentes e rivais.
As consequências da corrupção e das desigualdades extinguem aos poucos os
direitos dos cidadãos e a liberdade, transforma o protesto dos fracos em murmúrios
sediciosos, reduzindo desta forma a atuação política dos três poderes, em um cartel de
mercenários que se dizem zelar pelo povo e a honrar e defender a causa comum, enquanto
que na verdade estão ali para defender interesses privados, que buscam legitimação através
Assim também como alguns pesquisadores liberais que tentam apelar a natureza para fundamentar a
competição na sociedade civil, é o mesmo que negar sociabilidade e relegar a razão a condição de selvageria e
barbárie.
137
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do jogo democrático e do voto. As leis se tornam regras funestas e extravagantes em
relação à honra, na qual os defensores da pátria que deveriam proteger os cidadãos erguem
suas armas contra a própria população.
A livre concorrência do mercado e a especulação financeira, lança sobre a sociedade
civil, um ar de concórdia aparente e assemelha-se a um germe de divisão real, esforço este
que inspira às diferentes ordens uma desconfiança e um ódio mútuo mediante a oposição
de seus direitos e de seus interesses, para fortalecer o poder dessa convenção social.
O último termo da desigualdade, que aqui comparamos com o paradigma da livre
concorrência e o da solidariedade, em que todos os particulares voltam a ser iguais perante
a constituição porque nada são de fato, e que, já não tendo os cidadãos outra lei além dos
interesses particulares, esvaziam-se as noções do bem e os princípios da justiça. Ou seja, a
sociedade civil fundada através da desigualdade civil, torna-se uma comissão de indivíduos
artificiais e de paixões factícias que são obras de todas essas novas relações 138 e não têm
nenhum fundamento real na natureza.
O genebrino neste Discurso expõe simploriamente alguns princípios da noção
cosmopolita acerca da relação entre as nações, e também sobre a emergente necessidade de
solidariedade para aperfeiçoar as relações de sociabilidade entre os povos:
(...) a comiseração natural, que perdendo de sociedade em sociedade
quase toda a força que tinha de homem, só reside ainda em algumas
grandes almas cosmopolitas que transpõe as barreiras imaginárias que
separam os povos, que a exemplo do ser soberano que as criou
envolvem todo gênero humano em sua benevolência. (ROUSSEAU,
1999, p.222-223).
Deste atual contexto, da extrema desigualdade de condições econômicas e políticas
da contemporaneidade, que se esquecem os defensores das ideias liberais, quando tentam
fundamentar a livre concorrência na sociedade civil: alegam que se todos são iguais perante
as leis e o Estado, logo todos podem competir de maneira ―sadia‖ por seu espaço de
atuação na comunidade política. No entanto, não pode existir competição ―sadia‖, pois a
competição se baseia na anulação do outro, onde os que possuem melhores condições
(ricos) são mais privilegiados do que aqueles que nada possuem se não apenas a liberdade e
a vida (pobres).
Relação de livre concorrência e competição sadia, segundo os ideais do liberalismo e do
empreendedorismo, na qual os indivíduos são iguais formalmente perante as leis, logo podem competir na
sociedade civil.
138
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397
Buscar fundamentar na sociedade civil, o direito, a competição e a livre
concorrência, recorrendo aos animais e ao estado de natureza, é o mesmo que negar a
humanidade e todos os esforços de progresso e de sociabilidade, pois o ser humano
diferente dos animais possuem consciência, razão e discernimento, logo tem a possibilidade
de optar por escolher possibilidades solidárias, na qual preserva a humanidade, a natureza e
os pressupostos da sociabilidade entre os povos.
Referências Bibliográficas:
ROUSSEAU, Jean Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos entre a desigualdade entre os
homens: precedido de discurso sobre as ciências e as artes. Trad. de Maria Ermantina de Almeida
Prado Galvão. 2º Edição. São Paulo: Martins Fontes. 1999.
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398
O PROJETO COPERNICANO DE GALILEU GALILEI
Luiz Antonio Brandt
Instituto Federal Farroupilha, Câmpus Santa Rosa
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RESUMO:
A defesa da teoria copernicana de uma Terra móvel está presente em grande parte da obra
do físico e astrônomo italiano Galileu Galilei e nesse sentido este tema não passou
despercebido aos estudiosos da obra deste importante cientista. No trabalho em questão
abordaremos brevemente alguns destes autores e suas respectivas considerações, mas,
sobretudo, buscaremos apontar alguns obstáculos enfrentados por Galileu no seu projeto
de defesa da tese copernicana. Entre estes obstáculos, podemos destacar a importância da
cosmologia e da física aristotélica como base conceitual que sustenta a teoria geocêntrica. É
em razão da importância e necessidade de desmontar tal base conceitual que Galileu não
poupou esforços em duas de suas principais obras (Sidereus Nuncius e Diálogo) na tarefa de
criticar e substituir a filosofia da natureza aristotélica pelo seu projeto copernicano.
Palavras-chave: Filosofia da Natureza. Cosmologia. Teoria heliocêntrica.
Um dos traços mais marcantes da vida do físico e astrônomo Galileu Galilei (15641642) foi o esforço e a sagacidade com que lutou para mostrar a veracidade da posição
copernicana. Algumas de suas principais obras exprimem este esforço. Publicamente, foi
somente no ano 1610, com a edição do Sidereus Nuncius, que Galileu se pronunciou
favorável à teoria heliocêntrica de Copérnico (1473-1543). É nesta pequena obra que o
físico e astrônomo pisano anuncia ao mundo as novas descobertas astronômicas realizadas
através do telescópio que havia construído no ano anterior. Para Galileu, as descobertas
dos satélites de Júpiter, o aspecto montanhoso da Lua e as incontáveis estrelas fixas
observadas, eram fortíssimos argumentos contra a cosmologia do filósofo grego Aristóteles
(384-322 a.C.). Entretanto, é em sua obra Diálogo sobre dois máximos sistemas do mundo,
publicada no ano de 1632, que melhor se exprime o espírito combativo e a luta de Galileu
em defesa do copernicanismo.
O rompimento com a cosmologia aristotélica era para Galileu uma necessidade,
como também o era para os demais copernicanos, pois se a Terra deixasse de ocupar o
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399
centro do universo, e passasse a ser apenas mais um planeta como os outros girando ao
redor do Sol, considerá-la essencialmente diferente deles já não faria o menor sentido, isto
é, não haveria mais razão nenhuma em separar o universo em duas regiões
substancialmente distintas. Deve-se ressaltar, além disso, que, ao deslocar o centro das
revoluções planetárias, os copernicanos ―deslocam‖ também o ponto de referência do
cosmos aristotélico, ou seja, a coincidência entre o centro da Terra e o centro do universo.
Neste sentido, o que, à primeira vista, parece simples é demasiado dificultoso para os
copernicanos. Primeiramente porque a teoria heliocêntrica vai à contramão de toda uma
tradição milenar que estava baseada nas doutrinas aristotélicas e, em segundo lugar, porque
a suposição de uma Terra móvel contrariava a própria experiência diária do ―movimento‖
do Sol sobre a abóbada celeste. O desafio dos copernicanos não se encerra no âmbito
estritamente astronômico, ou seja, não era apenas uma substituição entre dois sistemas
astronômicos rivais, mas, além disso, significava reformular toda a filosofia natural pela
qual o sistema ptolomaico estava edificado. Por essa via, o copernicanismo trazia consigo
uma gama de problemas no que diz respeito à filosofia natural que impedia uma maior
aceitação por parte dos setores ligados à astronomia:
Aceitar o copernicanismo significava, como já diversas vezes ressaltei,
recusar uma grande parte da filosofia natural aristotélica. Mas em nome
de que filosofia natural se podia afirmar a necessidade de o Sol, e não a
Terra, ser o centro do sistema do mundo. Era também essa consciência
do problema físico existente na base das novas concepções astronômicas
que fazia os jesuítas hesitarem. (FANTOLI, 2008, p. 131).
Para entendermos melhor o pano de fundo que envolvia as discussões presentes na
obra galileana, é necessário compreender algumas implicações do Revolutionibus de
Copérnico sobre o trabalho de Galileu. A teoria física que ampara o geocentrismo é a física
aristotélica. E a física peripatética, como a cosmologia do filósofo grego também são
dependentes da centralidade e da imobilidade da Terra no centro do universo. Isto significa
que, ao afirmar a descentralização e a mobilidade da Terra, Copérnico está longe de
provocar uma simples transformação astronômica, na verdade, acaba deslocando o ponto
de apoio da física e da cosmologia peripatéticas. Entretanto, parece evidente que a grande
lacuna deixada pela obra copernicana seria a falta de uma proposta de uma nova física que
fosse compatível com a nova estrutura cosmológica do universo sugerida pelo astrônomo
polonês, e era necessário que tal proposta substituísse a ausência da física e da cosmologia
aristotélicas. O ―preenchimento‖ desta lacuna, isto é, a substituição da física peripatética
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400
por uma nova física ―copernicana‖, é um dos empreendimentos que encontramos na obra
de Galileu.
Apesar das sensíveis diferenças entre as concepções de mundo de Galileu e
Aristóteles, não podemos nos esquecer de alguns pontos não tão opostos entre os dois
autores. Seria difícil conceber, a partir da filosofia aristotélica, um universo em que os seres
que o compõem não possuíssem finalidades pré-determinadas, pois resultaria em uma
concepção caótica de mundo, o que se apresenta claramente oposto à noção hierarquizada
e perfeitamente ordenada de cosmos defendida pelo filósofo grego. A seu modo, Galileu
também concebe que o universo deva ser perfeitamente ordenado, mas não leva esta
exigência a ponto de estabelecer, como Aristóteles, uma hierarquia de substâncias. Ao
contrário, o cosmos galileano é homogêneo, e essa tese será contraposta ao postulado
aristotélico pelas seguintes razões: a) para uma física com pretensões de interpretar a
natureza às luzes da matemática e da geometria, a física qualitativa seria um obstáculo, pois
acaba caracterizando, de certo modo, o movimento como intrínseco e incomensurável; b)
as teses peripatéticas que afirmam a existência de uma hierarquia e de uma dicotomia
cosmológica limitam a aplicação dos postulados da nova física concomitantemente a
fenômenos celestes e terrestres; e c) em consequência de uma homogeneização do
universo, a aceitação de que a Terra possui movimentos de translação análogos aos outros
planetas seria muito mais plausível e aceitável, visto que a tese aristotélica de que os
elementos estão hierarquicamente arranjados não determinaria mais a exclusividade do
movimento circular à região celeste. Em outras palavras, como cada elemento possui uma
única tendência de movimento natural, a concepção copernicana de que a Terra tem dois
movimentos circulares (translação e rotação) fere tanto a concepção aristotélica de que a
Terra, entendida como elemento, possui exclusivamente tendência a movimentar-se pela
linha retilínea, como fere também a noção de que cada elemento deve ter apenas uma
tendência de movimento.
Ainda que não exista um consenso no que diz respeito às consequências das teorias
e descobertas que ocorreram no campo do saber nos séculos XVI e XVII, não podemos
subestimar o alcance e o impacto, por exemplo, das observações telescópicas e/ou das
obras de Galileu Galilei sobre a história do pensamento científico e filosófico posteriores.
Partilhamos do posicionamento139 de Alexandre Koyré (1892-1964), segundo o qual as
―A dissolução do cosmo, repito-o, eis o que me parece ser a revolução mais profunda realizada ou sofrida
pelo espírito humano depois da invenção do cosmo pelos Gregos. É uma revolução tão profunda, de
139
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401
teorias e obras desenvolvidas neste período, em especial as de Galileu, marcaram
indelevelmente essa época, e de que a revolução copernicana está longe de ser uma
transformação simples e natural da teoria geocêntrica à heliocêntrica.
A ideia básica que temos acerca da revolução copernicana é que ela é uma mudança
entre uma concepção de universo em que a Terra está imóvel no centro do mundo, por
outra em que a Terra passa a ser mais um planeta em movimento ao redor do Sol, agora
considerado centro do universo. Mas, por detrás da aparentemente simples afirmação,
esconde-se um complexo jogo conceitual entre duas tradições, o qual não se limita tão
somente a uma disputa astronômica e cosmológica. O que está em jogo implica
consequências muito maiores, como deixa bem claro Koyré:
O que os fundadores da ciência moderna, e entre eles Galileu, deviam
então fazer não era criticar e combater certas teorias erradas, para as
substituir por melhores. Deviam fazer algo completamente diferente:
destruir um mundo e substituí-lo por outro, reformar a própria estrutura
da nossa inteligência, formular de novo e rever os seus conceitos,
conceber o Ser de uma nova maneira, elaborar um novo conceito de
conhecimento, um novo conceito de ciência – e mesmo substituir um
ponto de vista bastante natural, o do senso comum, por um outro que o
não é de modo algum (KOYRÉ, (198-?), p. 19).
As distinções que Aristóteles realiza entre os movimentos naturais e violentos, e
entre os retilíneos e os circulares são, sem nenhuma sombra de dúvidas, as bases principais
que sustentam a dicotomia céu-Terra e que serão alvos primários das críticas do físico
pisano. Galileu está convencido da importância de romper com estas distinções e durante a
Primeira Jornada concentra todas as suas forças neste objetivo, quer seja por meio de
argumentos demonstrativos, quer seja utilizando-se de evidências empíricas, ou até mesmo
de técnicas persuasivas. Willian Shea (1983, p. 142, grifos do autor) resume de maneira clara
a estratégia central de Galileu na primeira parte do Diálogo: ―Para mudar este cosmos duplicado
pelo uni-verso copernicano, Galileu devia demonstrar que a análise de Aristóteles era
logicamente inconsistente e vazia de fundamentos empíricos reais‖; e completa logo em
seguida: ―(...) e fez atacando a distinção, aparentemente natural, entre o movimento
retilíneo e o circular sobre a que Aristóteles apoiava sua hipótese‖. (SHEA, 1983, p. 142).
Poderíamos afirmar, sem exageros, que, de modo geral, no transcorrer da Primeira Jornada
consequências tão longínquas, que, durante séculos, os homens – com raras exceções, entre as quais Pascal –
não se aperceberam do seu alcance e sentido; e ainda agora é frequentemente subestimada e mal
compreendida‖. (KOYRÉ, (198-?), p. 19).
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402
Galileu questiona a própria ideia de natureza (physis) concebida pelo filósofo grego. Esta
hipótese é possível em razão de no mundo aristotélico o movimento envolver a natureza
constitutiva do objeto e, por exemplo, por menor que seja o deslocamento (queda de uma
pedra), este terá uma finalidade pré-determinada – o seu lugar natural (no caso da pedra, o
centro do mundo). Assim, questionar as distinções entre os movimentos naturais e
violentos, bem como a própria noção aristotélica de movimento em sentido amplo140 é, por
assim dizer, colocar em xeque a própria ideia de physis do filósofo grego.
Poderíamos dividir a crítica galileana à dicotomia céu-Terra presente na Primeira
Jornada em três momentos ou fases diferentes: 1) crítica à classificação aristotélica dos
movimentos; 2) crítica ao princípio de que as gerações e corrupções, como também
qualquer alteração, pressupõem a ação de contrários em um mesmo substrato; e, por fim,
3) apresentação de algumas observações telescópicas e de críticas ao argumento empírico
apresentado na obra De Caelo (cf. De Caelo, I, 3, 270b 12-16).
Além da crítica à classificação peripatética do movimento local em retilíneos e
circulares, outra noção aristotélica será alvo na Primeira Jornada. As regiões celeste e
terrestre, além de possuírem movimentos diferentes, possuem substâncias diferentes; a
essas diferenças podemos acrescentar mais uma: a região celeste é perfeita e incorruptível,
enquanto a terrestre é imperfeita e corruptível. Aristóteles alcança tais distinções a partir
das diferenças entre os movimentos retilíneos e circulares e, sobretudo, através do princípio
de que somente ocorrem gerações e corrupções onde existe a atuação de contrários em um
mesmo substrato. Tal princípio, se assim podemos chamá-lo, está subordinado às
diferenças entre os movimentos retilíneos e circulares, pois as gerações e corrupções que
acontecem na região sublunar são ocasionadas pelos movimentos retilíneos, ascendentes e
descendentes, que são contrários; e na região supralunar, onde se encontra exclusivamente
o movimento circular, não haveria qualquer tipo de geração ou corrupção, pela ausência,
por assim dizer, de qualquer tipo de movimento contrário ao circular. Sem tal classificação
dos movimentos, o princípio de que as gerações e corrupções ocorrem restritamente entre
movimentos contrários perde sua força como critério que distingue o mundo em duas
regiões opostas. Galileu está consciente de que o cosmos heterogêneo está apoiado sobre a
distinção aristotélica dos movimentos locais em retilíneos e circulares e da correspondência
O movimento em Aristóteles não é unicamente o deslocamento ou movimento local. Mas, além disso, o
movimento tem papel fundamental na natureza, como princípio operativo do vir-a-ser. Assim, movimento
para o filósofo grego pode significar também: alterações qualitativas, aumentos e diminuições, gerações e
corrupções, além, é claro, do próprio deslocamento.
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destes com a natureza específica das substâncias141 que compõem o universo. Por essa
razão, o físico pisano declara, por meio do personagem Salviati, que ―Se de algum modo,
no que foi estabelecido até aqui (conforme a classificação dos movimentos), descobrir-se
uma deficiência, poder-se-á razoavelmente duvidar de todo o restante, que sobre isso for
construído‖. (GALILEU, 2001, p. 98).
Apresentamos brevemente neste texto alguns problemas enfrentados por Galileu
no seu projeto de defesa do copernicanismo. Entre os quais destacamos a importância
basilar que a filosofia da natureza de Aristóteles tinha na sustentação da posição
geocêntrica e a necessidade de Galileu e dos copernicanos em desmontar e substituir tal
filosofia por uma nova física capaz de fundamentar o sistema heliocêntrico.
Referências Bibliográficas:
ARISTÓTELES. Acerca del cielo. Traducción de Miguel Candel. Madrid: Editorial Gredos,
2008.
FANTOLI, A. Galileu – pelo copernicanismo e pela Igreja. Tradução de Sergio Braschi. São
Paulo: Loyola, 2008.
GALILEU, G. Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo ptolomaico e copernicano. Tradução,
introdução e notas de Pablo Rubén Mariconda. São Paulo: Discurso Editorial, 2001.
KOYRÉ, A. Galileu e Platão e Do Mundo do „mais ou menos‟ ao Universo da Precisão. Tradução de
Maria T. B. Curado. Lisboa: Editora Gradiva, (198-?).
SHEA, Willian R. La revolución intelectual de Galileo. Barcelona: Editorial Ariel, 1983.
O termo substância, nesta passagem, faz referência aos elementos (terra, água, ar e fogo) e, juntamente
com estes, à quintessência (éter ou substância celeste).
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A QUESTÃO DA ALFABETIZAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: UMA
REFLEXÃO DIALÓGICA A PARTIR DE FREIRE E DUSSEL.
Luiz Carlos Frederick142
RESUMO: Este artigo é um recorte da dissertação de mestrado que levou o título:
―Análise do programa de formação continuada do MOVA/AVIB: a voz de educadores
populares‖. Tem por objetivo compreender como o educador Paulo Freire e o filósofo
Enrique Dussel concebe a alfabetização de jovens e adultos; e como referência de
alfabetização libertadora e dialógica apresenta-se a experiência do Movimento de
Alfabetização de Jovens e Adultos (MOVA) que teve início na cidade de São Paulo em
1989 pelo próprio Paulo Freire e equipe em conjunto com os movimentos sociais; e hoje
está organizado em vários estados do Brasil, sendo um espaço de educação popular que
contribui na leitura do mundo e na busca de transformação social.
Palavras-chave: alfabetização, Freire, Dussel, MOVA, educação libertadora.
DISCUSSÃO
Apresento duas concepções acerca da alfabetização que se complementam: a visão
do professor Paulo Freire e do filósofo Enrique Dussel. Antes, convém elucidar que estes
educadores têm a compreensão que alfabetizar não é um processo neutro e apolítico, ao
contrário, a ação de alfabetizar apresenta implicações políticas que contribuem para um
caminho de transformação social, política, econômica e cultural.
No Congresso Brasileiro de Alfabetização, de 14 a 16 de setembro de 1990, Ano
Internacional da Alfabetização, educadores reunidos em São Paulo apresentaram várias
proposições a respeito da situação da alfabetização no Brasil e das políticas públicas que
deveriam ser implementadas, quando se afirma que ―as políticas de alfabetização precisam
Luiz Carlos Frederick fez Mestrado em Educação na Universidade Cidade de São Paulo em 2011,
apresentando a dissertação: ‖Análise do programa de formação continuada do Movimento de Alfabetização
de Jovens e Adultos (MOVA) da Associação dos Voluntários Integrados no Brasil (AVIB): a voz de
educadores populares‖, orientado pela professora Doutora Ângela Maria Martins.
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envolver ações permanentes e sistemáticas relacionadas a programas de educação básica, de
maneira a garantir sua qualidade‖ (GADOTTI, ROMÃO, 2001, p.109).
O documento acima citado entende que o conceito de analfabetismo carrega
consigo preconceitos e incorreções, pois, usualmente, o analfabeto tem sido colocado
como uma pessoa desqualificada para o exercício da cidadania, um mal a ser extirpado, sem
que haja a compreensão que ele é um sujeito de direitos. Para tanto, o analfabeto deve ser
reconhecido como,
Cidadão participante da sociedade, produtor de cultura e que, por sua
condição de classe, sexo, raça e portador de deficiência, tem sido
privados do direito à aquisição dos códigos da leitura e da escrita e de
conhecimentos que ampliam suas possibilidades de participação e
transformação social. Deve-se superar o conceito restrito de que
alfabetizado é o ‗indivíduo capaz de ler e escrever um bilhete simples‘.
Estar alfabetizado é integrar à vida de qualquer cidadão a condição de
leitor, escritor e comunicador, bem como garantir o acesso a outros
conhecimentos que ampliem sua inserção crítica e participativa na
sociedade (GADOTTI; ROMÃO, 2001, p.109).
Nesta compreensão, a alfabetização é concebida como um processo educacional
que vai além da leitura e da escrita, da superação e da ausência de formação e de aquisição
de conhecimento. É uma questão de política pública, que exige dos governos um projeto
estruturado para responder às expectativas de uma educação de adultos que permita
alcançar o exercício da cidadania, garantindo assim, o cumprimento previsto na última
Constituição Federal de 1988, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB,
1996), e no Plano Nacional de Educação (PNE, 2001) que assegura a educação pública e
gratuita como um direito de todos.
Para Paulo Freire143 (1991), o analfabeto é aquele que vive nas periferias, nas
ocupações, favelas ou cortiços das grandes cidades. Vive geralmente de subemprego,
dedicando-se a profissões que não exigem habilitação específica e tem consciência que
precisa saber ler e escrever. Porém, isto não basta, pois por si só não altera as condições de
moradia e de vida, estas condições só se alteram pelas lutas coletivas dos trabalhadores por
mudanças estruturais da sociedade.
Paulo Freire, pernambucano, nasceu em Recife, em 19 de setembro de 1921 e falecido em 02 de maio de
1997, conhecido mundialmente como educador, pensador, filósofo e militante da educação; e uma referência
importante na educação de jovens e adultos. O MOVA/SP foi criado em 1989 quando ele exerceu a função
de Secretário Municipal de Educação na cidade de São Paulo, no Governo Luiza Erundina. Freire é autor de
mais de 25 livros; foi professor nas Universidades de Harvard e Genebra, na Universidade Estadual de
Campinas e na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
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Segundo Freire (1991, p. 118), a questão principal, na alfabetização,
Não é de natureza técnica. As questões principais na alfabetização são de
natureza político-ideológico e científica a que se juntam aspectos
técnicos necessários. O ponto de partida é a decisão, a vontade política
de fazer, a arregimentação dos recursos e a formação rigorosa dos
educadores e das educadoras.
Freire (1987) constata que o analfabetismo aparece numa visão ingênua ou astuta
como a manifestação da incapacidade do povo de sua pouca inteligência. A partir desta
visão, a alfabetização, ―se rende ao ato mecânico de depositar palavras, sílabas e letras nos
alfabetizandos. Este depósito é insuficiente para que os alfabetizandos comecem a afirmarse, uma vez que, em tal visão, se empresta à palavra um sentido mágico‖ (p. 15).
O autor observa que, geralmente os textos das cartilhas de alfabetização nada têm a
ver com a experiência dos alfabetizandos, pois estes adultos são tratados de maneira
paternalista, às vezes infantil, como passivos, receptores das letras.
Os alfabetizandos deverão lidar com outro aprendizado: o de escrever a sua vida,
ler a sua realidade, daí a importância de tomar a história nas mãos para fazer e reescrever os
acontecimentos importantes que marcaram a sua existência. E acrescenta que
(...) a primeira experiência prática que a concepção crítica da
alfabetização se impõe é que as palavras geradoras com as quais os
alfabetizandos começam sua alfabetização como sujeitos do processo
sejam buscadas em seu universo vocabular mínimo, que envolve sua
temática significativa (FREIRE, 1987, p. 21).
A partir desta perspectiva, o analfabeto é colocado como aquele a quem foi negado o
direito de ler, ninguém é analfabeto por escolha, mas como consequência das condições
objetivas em que se encontra.
O processo de alfabetização, assim, deve ser visto como uma ação cultural para a
libertação, em que o educando assume um papel de sujeito em relação ao educador.
Entretanto, para que haja esse processo de alfabetização e para que seja um ato de
conhecimento, é necessário estabelecer uma relação de diálogo autêntico em que os
alfabetizandos ―assumam desde o começo mesmo da ação, o papel de sujeitos criadores,
aprender a ler e escrever já não são, pois memorizar sílabas, palavras ou frases, mas refletir
criticamente sobre o próprio processo de ler, e escrever e sobre o profundo significado da
linguagem‖ (FREIRE, 1987, p. 59).
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Assim, aprender a ler e escrever envolve ação e reflexão. O significado de dizer a
palavra é carregado de profundidade, é o direito de expressar-se e expressar o mundo, de
criar e recriar. Pois o ato de conhecer,
Envolve um movimento dialético que vai da ação a reflexão sobre ela e
desta a uma nova ação. Para o educando conhecer o que antes não
conhecia, de se engajar num autêntico processo de abstração por meio
do qual reflete sobre formas de orientação no mundo, em que se
sobrepõem momentos de sua cotidianidade (FREIRE, 1987, p. 60).
O autor sublinha que o processo de alfabetização deve relacionar o ato de
transformar o mundo ao ato de pronunciá-lo. Ao referir-se ao diálogo educador-educando,
este não tem nada a ver, ―de um lado com o monólogo do educador ‗bancário‘, de outro,
com o silêncio espontaneísta de certo tipo de educador liberal, o diálogo engaja ativamente
a ambos os sujeitos do ato de conhecer, educador-educando e educando-educador‖
(FREIRE, 1987, p. 61).
De forma sucinta, apresento uma experiência importante que desabrochou a partir
desta concepção freiriana, que é a formação do Movimento de Alfabetização de Jovens e
Adultos (MOVA) que se iniciou em São Paulo e hoje está organizado em vários estados
brasileiros. O MOVA foi idealizado por Paulo Freire e sua equipe em conjunto com
representantes dos movimentos sociais de educação popular explicita o desejo de
organização e superação do analfabetismo, resgatando o direito à pronúncia da palavra em
vista de contribuir nas transformações da sociedade.
O MOVA foi pensado e implementado na cidade de São Paulo, primeiramente em
1.989, em regime de parceria entre os movimentos populares e a Prefeitura Municipal de
São Paulo, na gestão da Prefeita Luiza Erundina (1.989-1.992).
Segundo Ribeiro (2009), com a Constituição de 1.988, chamada de cidadã, e o fim
da Fundação Educar, o Ministério da Educação desobriga-se a atender o direito de ensino
fundamental aos adultos, repassando tal responsabilidade aos municípios e aos estados.
Nesse contexto, surgem diversas experiências voltadas para a alfabetização e sob orientação
dos próprios municípios em parceria com universidades, ONGS e movimentos populares.
Um destaque dessa realidade é a experiência do MOVA/SP.
De acordo com Macena (2009), as práticas de movimentos sociais de educação de
jovens e adultos na zona leste existiam desde 1987, quando as pessoas que participavam
destes projetos não queriam apenas ler e escrever, mas procuravam se envolver
efetivamente nas questões sociais em defesa de direitos e do exercício da cidadania. O autor
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aponta que havia diversas experiências na cidade de São Paulo e analisa dentre outras, a que
foi implementada por Francisco de Assis Ferreira, presidente fundador do Centro de
Educação da Zona Leste, o que resultou na criação do MOVA.
O próprio Freire (2001) testemunha o surgimento do MOVA, quando afirma que
este se origina a partir de grupos populares que desenvolviam trabalhos de alfabetização e
junto com outros setores, como as Universidades e as Igrejas, criou 2000 núcleos para
atender 60.000 pessoas. Os objetivos eram: reforçar e ampliar o trabalho dos grupos
populares que já trabalhavam com a questão, possibilitar aos educandos uma leitura crítica
da realidade, desenvolver a consciência política e reforçar o incentivo à participação
popular e a luta pelos direitos sociais do cidadão.
Para Carlos Alberto Torres, o surgimento do MOVA/SP é uma experiência muito
interessante, pois possibilitou a parceria entre movimentos sociais que lutaram pela defesa
da mulher, da moradia, da alfabetização de jovens e adultos em conjunção com a Secretaria
de Educação e ―que coisa interessante se passa com a presença simbólica e prática de Paulo
Freire à frente de uma equipe na Secretaria da Educação‖. (GADOTTI, 2001, p. 26).
Observa-se que a criação deste projeto de educação não tinha como objetivo
simplesmente o resgate de suprir as dificuldades da não alfabetização, do ensinar a leitura e
a escrita, mas eram outras questões de cunho social e políticos que estavam colocadas
naquela conjuntura. A educadora Janis Kunrath evidencia que a denominação de
movimento de alfabetização, ―traz em si a noção de mobilização, engajamento dos grupos
organizados da sociedade civil, do constante movimento de participação dos grupos que
desenvolvem alfabetização de jovens e adultos‖. (KUNRATH. 2006 p. 4).
Esta parceria é enaltecida por outro educador ao referir-se a questão do MOVA,
Gadotti (2001) afirma:
Que o MOVA é um dos raros exemplos de parceria entre a sociedade
civil e o poder público, acrescenta que essa relação nem sempre é
harmoniosa, pois as tensões e conflitos fazem parte do processo e tornase uma condição necessária para um trabalho que é fruto de uma
construção. Ele acrescenta que o MOVA não impôs uma única
orientação metodológica, o método Paulo Freire, procurou garantir o
pluralismo, com uma condição, não aceitando métodos pedagógicos
anticientíficos e filosóficos autoritários ou racistas. A concepção que
prevaleceu no desenvolver das experiências do mova foi à concepção
libertadora de educação (p. 93).
Assim, a erradicação do analfabetismo não se realiza simplesmente com campanhas
de alfabetização, estas podem até ajudar, porém, o que poderá fazer a diferença é a
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construção de políticas públicas que resgatem a pessoa em situação de analfabetismo,
possibilitando que esta assuma um papel de protagonismo e autonomia na busca de
superação deste problema que tem se agravado com o passar dos anos.
Neste mesmo entendimento, Dussel (1977a)144 destaca que o latino-americano deve
ser identificado como indígena como negro escravizado, como mulher violentada, como
criança empobrecida, como um ―ser negado‖ ao longo da história de colonização e
dominação coordenada pela Coroa Espanhola e Portuguesa. Neste viés o sujeito pode ser
compreendido como aquele que é excluído da alfabetização, em que se nega o direito à
educação, à escola, a alfabetizar-se numa concepção dialógica, onde o alfabetizando é
também sujeito do processo de formação e alfabetização.
Segundo Dussel, o ser negado é propriamente o ponto de partida da filosofia da
libertação, que busca refletir sobre o oprimido e o marginalizado pelo sistema opressor do
centro. Dussel (1977a, p. 62) enfatiza o significado da relação face-a-face entre o pai e o
filho, professor e aluno, em que há necessidade de escutar o outro como exigência para que
ocorra a verdadeira educação que leva à libertação, quando afirma que,
Saber ouvir o discípulo é poder ser mestre, é saber inclinar-se diante do
novo; é ter o próprio tema do discurso pedagógico. O autêntico mestre
primeiro ouvirá a palavra objetante, provocante, interpelante daquele que
quer ser outro. Somente o que escuta com paciência, no amor de justiça
é a esperança do outro como libertador, na fé de sua palavra, somente ele
poderá ser mestre.
Contradizendo a educação dominadora, o autor afirma que a educação libertadora
se funda e vai se delineando na medida em que se ouve a palavra do outro,
Ouvir a voz do outro como Outro significa uma abertura ética, um
expor-se pelo outro que ultrapassa a mera abertura da totalidade ao
outro, esta abertura é, silêncio, mas não silêncio interior à fala, e sim
silêncio da própria fala, silêncio do mundo, aniquilamento e
disponibilidade ao outro como outro. (DUSSEL, 1977a, p.63).
Trata-se de Enrique Dussel, nascido em Mendonza na Argentina em 1934. Tem uma longa história de luta
pela libertação latino-americana, tendo sido inclusive vítima de um atentado à bomba do governo militar
argentino, em 1975 exilou-se no México. É considerado um dos principais nomes da nova filosofia latino
americana, chamada da libertação, que tem as suas origens na década de 80, praticamente no mesmo período
em que emergiu a Teologia da Libertação. Este pensador tem trabalhado e cunhado categorias próprias, no
sentido de resgatar a autonomia e o protagonismo da filosofia ameríndia.
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Registre-se que Paulo Freire (1983, p. 39) pensa na mesma direção, ao afirmar que o
aluno, o discípulo, aquele que se coloca numa atitude de alfabetização, deverá praticar
atitudes de resgate do outro, numa postura de seu reconhecimento. Ele destaca que todos
têm direito à pronúncia da palavra e esta pode levar à liberdade e à consciência, quando
afirma:
Desta maneira, o educador já não é o que apenas educa, mas o que,
enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando que, ao ser
educado, também educa. Ambos, assim, se tornam sujeitos do processo
em que crescem juntos, e em que os ‗argumentos de autoridade‘ já não
valem. Em que para ser-se funcionalmente, autoridade, se necessita de
estar sendo com as liberdades e não contra elas. Já agora ninguém educa
ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: Os homens se
educam em comunhão, midiatizadas pelo mundo.
Corroborando com esta proximidade entre Dussel e Freire, Pazello (2007, p. 18)
afirma que o ouvir o outro, categoria cunhada por Dussel nada mais é do que a
dialogicidade de Freire, que apresenta a educação como prática de dominação como a
imperante no mundo hodierno. Para este autor,
Dussel vai nos apresentar o filicídio cometido pelo Pai-Estado que, ao
mesmo tempo, reprime machistamente a mãe-cultura popular. Em sendo
a mãe libertada, sê-lo-á o filho também e, por conseguinte, o pai, ou seja,
a cultura popular e estada ligados para receberem anadia-leticamente o
novo, o criador, a criança (podemos acrescentar, o jovem e adulto em
que é negada a alfabetização).
Outra categoria cunhada por Dussel é a pedagógica que também dialoga com
Paulo Freire, pois esta pedagógica é vista ―como parte da filosofia que pensa a relação facea-face do pai-filho, mestre-discípulo, médico, psicólogo-doente, filósofo-não filósofo,
político-cidadão‖. (DUSSEL, 1977b, p. 153).
É importante também discutir mesmo que brevemente a ética da libertação em
Dussel, que tem como ponto de partida a participação comunitária na busca de novos
consensos que se dão na relação dialógica entre o educador e educando. Para Pazello
(2007) a ética da libertação em Dussel, ―pauta-se pela validade anti-hegemônica da
comunidade das vítimas‖ (p. 9).
O conceito de ―ser negado‖ de Dussel pode ser utilizado na análise das pessoas
que estão em processo de alfabetização. Aplicado numa perspectiva dialógica, este conceito
sugere que o alfabetizando deve ser ouvido, pois tem o direito à pronúncia da palavra, na
mesma direção apontada por Paulo Freire. Desta maneira, a alfabetização se faz no diálogo
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entre o alfabetizador e o alfabetizado e seus colegas de estudo, mediados pela realidade em
que vivem; e o MOVA pode ser um destes espaços em que se desenvolve esta prática
libertadora, possibilitando o resgate da pronúncia da palavra e da leitura do mundo em vista
da transformação social.
Referências Bibliográficas:
DUSSEL, Enrique. Filosofia da libertação. São Paulo: Loyola, 1977a
___________. Para uma ética da libertação latino-americana acesso ao ponto de partida da ética. São
Paulo/Piracicaba, co-edição Loyola e UNIMEP, 1977b
FREIRE, Paulo. Política e educação. São Paulo: Cortez, 2001.
____________. edagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1983.
____________. A educação na cidade. São Paulo: Cortez, 1991.
____________. Ação cultural para a liberdade. São Paulo: Paz e Terra, 1987.
GADOTTI, Moacir; ROMÃO, José. Educação de jovens e adultos, teoria, prática e proposta. São
Paulo: Cortez, 2001.
KUNRATH, Janis Leonícia. A formação de educação do MOVA/SP no contexto de educação
popular. Dissertação de mestrado, PUC SP, 2006.
MACENA, Chico. De olho na educação, 20 anos de história e frutos do MOVA/SP. Câmara
Municipal de São Paulo, outubro 2009.
PAZELLO, Ricardo Prestes. Pedagógica: diálogo da libertação latino-americana a partir de Enrique
Dussel e Paulo Freire. Curitiba, Faculdade de Direito, UFPR, 2007.
RIBEIRO, Clayton Diógenes. Estado do conhecimento da educação de jovens e adultos no Brasil: um
balanço de teses e dissertações (1999-2006). Dissertação de mestrado, UNISANTOS, 2009.
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CONSIDERAÇÕES SOBRE O PENSAMENTO POLÍTICO DE HANNAH
ARENDT
Marcelo Barbosa
[email protected]
RESUMO: Neste texto se encontra as compreensões de Hannah Arendt no que diz
respeito à liberdade política, à ação e ao discurso. Acerca do sentido da liberdade política
estão ligadas às experiências e às noções de política criadas na antiga Grécia e
desenvolvidas desde o período medieval romano cristão até as revoluções Americana e
Francesa. A autora busca salientar o sentido da ação política, a qual é protagonizado por
atores livres que, desde o nascimento, possuem a capacidade ativa e intersubjetiva de
iniciarem uma nova cadeia de acontecimentos no âmbito da esfera pública. E a novidade da
Revolução Americana, com a experiência dos primeiros colonos no estabelecimento de
uma constituição, e uma forma de governo cujo poder se assenta na participação efetiva do
cidadão nos assuntos da República.
Palavra-chave: Liberdade. Política. Ação.
Com o aparecimento dos governos totalitários desperta em Hannah Arendt o
interesse pela questão da política. A discussão sobre o assunto se move em torno de suas
―experiências de pensamento‖ sobre a política antiga, moderna e da época em que viveu.
Para Arendt, liberdade e política, em termos originários, significam a mesma coisa, ou seja,
uma determinada forma de organização social, baseada na participação ativa dos cidadãos,
desenvolvida na cidade grega nos últimos séculos antes da era cristã. Esse tipo de
compreensão da política, contudo, após o declínio da polis grega e a ascensão do Império
Romano e Cristão, foi ofuscada ou configurada por outros conteúdos e significados.
Principalmente no início dos tempos modernos o significado de liberdade política é
caracterizado por outros conceitos, tendo como lugar central a vida social e a obrigação do
governo de proteger a vida privada do indivíduo. Para tanto, foram utilizadas as seguintes
obras de Hannah Arendt: O que é política?, A condição humana e Da revolução.
Arendt salienta que é a partir do nascimento – natalidade – que o homem é capaz
de iniciar uma cadeia de novos acontecimentos. A natalidade é a forma pela qual o humano
se insere no mundo como algo novo. É a partir desse momento, do inserir-se no mundo,
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que esse ser, que fala e age, tem a possibilidade de dar início a uma cadeia de novos
acontecimentos que estruturam toda a teia de ralações humanas, assim o discurso e a ação
dão uma postura humana aos acontecimentos e ao mundo.
Se a ação, como inicio, corresponde ao fato do nascimento, se é a
efetivação da condição humana da natalidade, o discurso corresponde ao
fato da distinção e é a efetivação da condição humana da pluralidade, isto
é, do viver como um ser distinto e único entre iguais. (ARENDT, 1983,
p. 223).
A pluralidade é a condição humana fundamental para Arendt, pois os homens agem
politicamente numa relação intersubjetiva. O sentido original de liberdade política tem a ver
com a existência de uma esfera pública e com a possibilidade de se unirem para realizar
empreendimentos. É no discurso e na ação, que são coesas, que o homem se distingue dos
outros animais e entre seus pares, ―são os modos pelos quais os seres humanos aparecem
uns para os outros.‖ (ARENDT, 1983, p. 220). Desse modo, os homens expressam ideias e
opiniões, formando uma ―teia de relacionamentos‖ que de forma ilimitada e imprevisível
iniciam novos acontecimentos a cada momento em que o homem age no mundo.
O domínio político é o resultado direto da ação em conjunto, do compartilhamento
de palavras e atos, ―A ação, portanto, não apenas mantém a mais íntima relação com a
parte pública do mundo comum a todos nós, mas é a única atividade que a constitui‖
(ARENDT, 1983, p. 247). A polis, é uma organização humana que surge do resultado do
agir e do falar em conjunto, surgindo entre as pessoas que vivem juntas, ela é um espaço de
aparência entre os homens. Este espaço de aparência emerge quando discursamos e
agimos: ―Onde quer que as pessoas se reúnam, esse espaço existe potencialmente, mas só
potencialmente, não necessariamente nem para sempre‖ (ARENDT, 1983, p. 249). É nesta
potencialidade da ação que se manifesta o poder no domínio público. O único fator
material indispensável para a geração de poder é a convivência entre os homens na
pluralidade que é a sua condição humana.
O poder preserva o domínio público e o espaço de aparência e, como tal,
é também a força vital do artifício humano, que perderia sua suprema
raison d‘être se deixasse de ser o palco da ação e do discurso, da teia dos
assuntos e relações humanos e das estórias por eles engendradas
(ARENDT, 1983, p. 254).
Sem ação não há nada de novo, e sem o discurso não há como materializar e
memorar as coisas novas. E, sem o poder o espaço da aparência produzido pela ação e pelo
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discurso em público se desvanecerá tão rapidamente como o ato vivo e a palavra viva.
Assim a ação esta sempre condicionada à pluralidade, enquanto parte nas relações
humanas ela se torna imprevisível, ou seja, a ação se torna incerta por não possuir um fim
determinado. A busca pela substituição da ação pela fabricação, desde Platão, é de
encontrar nela uma forma de buscar meios práticos de fugir da política, é a noção de que
alguns possuem o direito de comandar e os demais forçados a obedecer, buscando
encontrar um substituto da ação. A fabricação se caracteriza pelo uso da violência e é
limitada, pois parte de um começo e um fim já definido. Em que aquele que toma a
iniciativa não se permite qualquer envolvimento com a ação. Platão via no conceito de
governo o principal instrumento para ordenar e julgar os assuntos humanos sob todos os
aspectos. Na Republica as ideias se convertem em ações; o rei-filosofo aplica as ideias
como o artesão aplica suas regras e padrões. Dessa forma a violência se torna presente
assim como na fabricação, onde todos os meio se tornam admissíveis e justificados para
alcançar alguma coisa que se definiu como um fim. Segundo Arendt, tanto para Platão
como para Aristóteles as questões políticas são tratadas à maneira da fabricação.
Arendt utiliza o exemplo do teatro, este, mostra a arte reveladora da ação e do
discurso e a manifestação implícita do agente e do orador, indicando assim que a
representação teatral é uma imitação da ação, ela nunca acontece com um sujeito isolado. O
ator desse modo nunca é um simples ―agente‖, ele é sempre também paciente, pois toda
estória iniciada por ele causa consequências ilimitadas formando uma reação em cadeia e
causando novos processos. Uma nova ação sempre afeta outros. ―Assim, a ação e a reação
entre os homens jamais se passam em um círculo fechado, e jamais podem ser restringidas
de modo confiável a dois parceiros‖ (ARENDT, 1983, p.238). A ação política é ilimitada,
pois se inter-relaciona entre os homens, uma fronteira sem limites de possibilidades de
novos acontecimentos. ―A ilimitabilidade da ação é apenas o outro lado de sua tremenda
capacidade de estabelecer relações, isto é, de sua produtividade específica‖ (ARENDT,
1983, p. 239), Ela é a virtude política por excelência.
Arendt observa que, para que o cidadão grego pudesse viver de forma livre na polis
ele deveria estar isento da coação do outro e da atividade do trabalho como condição de
suprir suas necessidades vitais. O sentido grego de liberdade, por um lado, ocorria de
forma negativa, isto é, onde o indivíduo não era dominado e nem tinha a intenção de
dominar o outro. Em outro sentido, ela era positiva, pois a liberdade era efetivada na esfera
pública da ágora que só pode ser produzida pelo concurso plural dos cidadãos livres e iguais
que pudessem se relacionar através do diálogo e do convencimento recíproco. Os
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acontecimentos humanos estão sempre relacionando por um ―Inter-esse”, ou seja, aquilo que
está entre as pessoas e as relaciona que afinal é o mundo comum, vinculados por um
interesse comum, se estabelecem o que Arendt chama de espaço-entre, que é o resultado de
uma objetividade mundana. Essa objetividade mundana acolhe toda intersubjetividade
humana e todos os interesses que formam a teia de relações humanas.
É essa teia de relações humanas, no espaço-entre que torna a ação imprevisível e
intangível. ―É em virtude dessa teia preexistente de relações humanas, com suas inúmeras
vontades e intenções conflitantes, que a ação quase nunca atinge seu objetivo‖ (ARENDT,
1983. p. 230). Arendt retoma a ideia da liberdade política na polis grega que não separava o
falar do agir, o próprio falar já é uma forma de ação, ―o autor de grandes feitos também
deve ser sempre, ao mesmo tempo, um orador de grandes palavras‖ (ARENDT, 2011, p.
56). A ideia de que, quando se fala entre iguais as palavras podem ser retrucadas, e no
sentido de réplica a ação da fala se desenvolve no convencimento do outro. Destacando
outra liberdade fundamental que é a liberdade de externar opiniões.
A liberdade de externar opinião, determinante na organização da polis,
distingue-se da liberdade característica do agir, do fazer um novo
começo, porque numa medida muitíssimo maior não pode prescindir da
presença de outros e do ser confrontado de suas opiniões (ARENDT,
2011, p. 58).
A liberdade de iniciar algo novo a partir da opinião na presença do outro já esta
pressuposta na política ―Nesse sentido, política e liberdade são idênticas e sempre onde não
existe essa espécie de liberdade, tampouco existe o espaço político no verdadeiro sentido‖
(ARENDT, 2011, p. 60). Para os gregos o corpo político tinha como fundamental
característica o falar com o outro na polis.
Platão ao definir sua ideia de liberdade se contrapôs a forma grega de liberdade
política. Platão torna a política um meio para um objetivo mais elevado, o que antes fazia
parte da discussão do cidadão, agora esta voltada para uma minoria que utilizava a
academia como um meio para falar livremente a respeito da discussão filosófica da
liberdade política. Platão, estabelece como critério a filosofia acadêmica, deixando assim a
política restrita ao pensamento do filósofo, surgindo dessa maneira um novo espaço para
discutir a liberdade. Nesse sentido o filósofo necessitava se libertar da política no sentido
grego, para poder ser livre no espaço político da academia, ―Assim como a libertação do
trabalho e das preocupações com a vida eram pressupostos necessários para a liberdade da
coisa política, a libertação da política tornou-se pressuposto necessário para a liberdade da
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416
coisa acadêmica‖ (ARENDT, 2011, p. 63).
No período cristão o deslocamento do sentido da liberdade ocorreu pelo fato de
que o pensamento teológico responde a pergunta sobre o que é política pela resposta dada
para a questão, o que é homem? O zoon politikon aristotélico é interpretado de forma
errônea pelos cristãos. Enquanto que para Aristóteles, ―a palavra politikon era de fato um
adjetivo da organização da polis‖ (ARENDT, 2011, p. 46), e não qualquer forma de
organização de convívio humano, o pensamento teológico naturaliza a política. O
cristianismo se apodera da coisa pública tornando-a um meio para realizar objetivos
supostos como mais nobres que a política mesma. Na época da cristandade o pensamento
greco-romano através da interpretação de Agostinho contribui para que a Igreja assuma
papeis políticos apesar de suas origens anti-políticas O fato é que esta concepção de política
como ―um meio para outro objetivo supostamente mais nobre que ela mesma‖ foi decisiva
para o pensamento ocidental, pois com isso a política se desvinculou da participação e da
opinião dos cidadãos. Se na era da política cristã cabia ao Estado Cristão obedecer aos fins
religiosos que para eles eram superiores, nos Estados Modernos a esfera da religião passa a
integrar o plano dos assuntos particulares.
O Estado assume a tarefa de ―proteger a livre produtividade da sociedade e a
segurança do indivíduo em seu âmbito privado‖ (ARENDT, 2011, p. 73). Dessa forma,
liberdade e política continuam separadas. Não há mais, nesse caso, uma relação direta entre
ação e liberdade no sentido da polis. Predomina a concepção de que o Estado é uma
função da sociedade, um meio necessário, para a liberdade social da iniciativa privada no
sentido moderno. A liberdade do cidadão nos governos controlados e limitados ―continua
sendo prerrogativa do governo e dos políticos profissionais que se oferecem ao povo como
seus representantes no sistema de partidos, para representar seus interesses dentro do
estado e, se for o caso, contra o estado‖ (ARENDT, 2011, p75). Os casos mais extremos
de experiências políticas que separaram política e liberdade são exemplificados pelos
regimes assentados em ideologias totalitárias ou em noções políticas e históricas segundo as
quais a liberdade deve ser sacrificada em prol de processos e progressos históricos da
humanidade.
Será, sobretudo na revolução americana no final do século XVIII, que Arendt irá
vislumbrar uma manifestação autêntica da liberdade política. Convencidos de que a
libertação de um governo opressor por si só não assegurava a liberdade, procuraram
estabelecer garantias constitucionais para tal. Entendiam que, ―liberdade política ou
significava ‗participar do governo‘ ou não significava nada.‖ (ARENDT, 1971 p. 175).
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Arendt ressalta ainda, que a liberdade pública busca a instauração de um corpo político
novo, exigindo para isso uma constituição que assegure tanto os direitos civis e a liberdade
pública, A respeito do ato constitucional, Arendt escreve que é: ―bastante óbvia a diferença
entre uma constituição elaborada burocraticamente por um governo e uma Constituição
por meio da qual um povo (se envolve) para constituir um governo‖ (ARENDT, 2011, p.
194). A preocupação nas discussões dos fundadores estava voltada para que o poder da
constituição assegurasse a liberdade dos estados constituintes que:
Poder e liberdade caminhavam juntos; que, conceitualmente falando, a
liberdade política consistia não no eu - quero e sim no eu - posso, e que,
portanto, a esfera política devia ser entendida e constituída de maneira
que combinasse o poder e a liberdade. (ARENDT, 2011, p. 199).
Demonstrando que: ―não é o homem, e sim os homens que habitam a terra e
formam um mundo entre eles. É a mundanidade humana que salvará os homens das
armadilhas da natureza.‖ (ARENDT, 2011, p. 227). Os meios para que o homem possa
manter o poder somente ocorre através da união e do pacto que ―são os meios de manter a
existência do poder (...) A faculdade humana de fazer e manter promessas guarda um
elemento da capacidade humana de construir o mundo.‖ (ARENDT, 2011, p. 228). E o
único modo para que se possa constituir algo novo através de consenso é a ação da
pluralidade dos homens através do poder.
Observa-se, no entanto, que liberdade e política estão estritamente ligadas, e não
decorrem de uma natureza humana e também não estão presentes em todas as formas de
governo. A liberdade política se da no âmbito da pluralidade dos homens, no espaço-entre,
onde esses possam de forma livre, iniciar uma cadeia de novos acontecimentos. No entanto
o agir intersubjetivo e de forma espontânea é de fundamental importância para que as
opiniões sejam expressas de forma pública e de que o cidadão tenha livre participação na
organização do corpo político estabelecendo assim uma forma política de governo onde a
liberdade de participação pública esteja estabelecida de forma segura. E por isso a política
não pode ser pensada como um mero instrumento seja administrativo ou utilitário, ela
possui um fim em si.
Referências Bibliográficas:
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ARENDT, Hannah. A condição humana, Tradução Roberto Raposo, Rio de Janeiro:
Forense-universitária, 1983.
_____. Da Revolução .Tradução de I. Morais. Lisboa: Moraes Editora, 1971.
_____.O que é política? Tradução de Reinaldo Guarany. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2011.
_____Sobre a Revolução. Tradução . Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras,
2011.
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A METAFÍSICA DE SCHOPENHAUER
Márcia Elaini Luft
Unioeste- Toledo
[email protected]
RESUMO: A principal obra de Arthur Schopenhauer O mundo como vontade e como
representação, inicia-se com uma afirmação direta sobre o mundo: ―O mundo é minha
representação‖. O mundo ao redor do indivíduo existe para ele como um fenômeno
ordenado pelas categorias de tempo, espaço e causalidade. Além do mundo como
representação, há a essência íntima das representações, que não pode ser acessada por meio
do intelecto. A essência do mundo, a coisa-em-si é a vontade, independente da consciência
do indivíduo que, através do corpo, reconhece a si como portador desta vontade. O
conhecimento da vontade é possível por duas vias: pela contemplação estética através da
arte pelo gênio e a compaixão extremada através da virtude moral pelos santos.
Palavras-chave: mundo. representação. vontade.
Schopenhauer, a partir do título da sua principal obra O mundo como vontade e
como representação, já traz subjacente a noção de que há um mundo que possui dois
âmbitos: o da vontade e o da representação, sendo estes dois pontos de vista de uma
totalidade do mundo. Para tratar da representação, inicialmente é preciso expor o
envolvimento destas duas noções: sujeito e objeto; ambos estão constantemente
interligados, pois não há objeto sem sujeito e nem sujeito sem objeto. O sujeito se refere
àquele que conhece sem ser conhecido. Quanto ao objeto, a este cabe a pluralidade e pode
ser conhecido. Tais noções de sujeito e objeto são inseparáveis, ―(...) onde começa o
objeto, termina o sujeito‖ (MVR, 2005, p.46)145. A forma de conhecimento entre os dois é
o que se chama representação empírica.
―A representação do mundo é (...) algo colocado diante de nós‖.146 Ou seja, é o
mundo conforme ele se apresenta ao intelecto do sujeito, o que ―aparece‖ a cada um. A
representação possui o caráter de ser ilusória, pois nela mesma não há a revelação da
essência íntima das coisas. O primeiro dado que conduz à representação é o sentido, em
145
146
MVR- Sigla para designar a obra: ―O mundo como vontade e como representação‖.
BARBOZA, 1997, p.30.
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termos empíricos, pois o que está exposto diante do indivíduo passa a ser primeiramente
percebido por eles e, também pelas três formas puras do conhecimento. Essas formas são
o tempo, o espaço e a causalidade: o princípio de razão, através do qual se pode conhecer
as coisas empiricamente. Um objeto específico sempre está situado num dado tempo, num
dado espaço e envolvido numa rede causal.
O mundo constituído pelo princípio de razão está em devir constante, causando
uma ilusão da realidade, trata-se de estar envolto no ―véu de Maia‖ 147. Este véu de Maia é
como o princípio de razão, é comparado a um manto, uma ilusão que vigora para impedir a
visão real das coisas. Assim, o mundo é minha representação ordenada pelas formas puras
de tempo, espaço e causalidade, e essa representação é ilusória por esses dois motivos: por
não dizer a sua essência e por estar em constante fluxo.
Como foi visto, o objeto existe para o sujeito como sua representação. A relação
mútua e subjetiva do tempo e espaço é a sensibilidade pura e essa já pressupõe a matéria. A
matéria ou causalidade é configurada pelo entendimento, a função deste é conhecer a rede
de relações causais. O que está sempre presente no entendimento é a intuição do mundo
efetivo, ou seja, conhecer a causa, o que provocou no tempo e no espaço determinado
efeito. Em consequência, a intuição é intelectual, pois fornece a partir da causalidade os
primeiros dados para o entendimento. Não seria possível alcançar tal intuição se algum tipo
de efeito não fosse conhecido.
Portanto, sem a faculdade do entendimento não haveria intuição empírica: ―(...), ou
seja, puro conhecimento pelo entendimento da causa a partir do efeito‖ (MVR, 2005, p.55).
A intuição depende da lei da causalidade porque o mundo é uma ―conclusão do
entendimento‖ a partir dos dados fornecidos pela sensibilidade. O entendimento, usando o
princípio de razão, faz a relação entre as coisas a partir dos sentidos, e essa relação é
essencial para o acesso ao conhecimento empírico, sendo o corpo o ponto de partida para
o entendimento do mundo. O corpo é um conjunto de sensações fornecido pela
causalidade na qual surge a intuição do mundo e é uma representação. O entendimento
precisa, necessariamente, do corpo para inferir representações do mundo, portanto é uma
função cerebral. O entendimento é a faculdade do intelecto que produz as representações
Maia é um deus que possui um caráter altamente enganador, à disposição dos demônios hindus e nos
impede de ver a realidade autêntica das coisas. Schopenhauer usa algumas comparações que são encontradas
nas passagens dos Vedas e dos Puranas para definir o véu de Maia, por exemplo, assemelha o véu a um
pedaço de corda no chão que ele toma como uma serpente; a corda pode nos enganar, ou seja, pode ser uma
serpente ao invés de uma simples corda.
147
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intuitivas, ou empíricas, ou simplesmente intuições a partir dos dados empíricos formados
pelo princípio de razão.
As representações abstratas (MVR, 2005, p.58) constituem uma classe de
representações que são os conceitos que os homens tem a capacidade de formular através
da faculdade da razão a partir das representações ou intuições empíricas. A reflexão é cópia
do mundo, uma forma simplificada do mundo intuitivo (aquilo que nos aparece, o
fenômeno) e é por isso que os conceitos podem ser denominados de representação da
representação. A razão é a faculdade do intelecto que produz as representações abstratas ou
conceitos. Eles são produzidos a partir das representações empíricas ou intuições por um
processo de indução. As representações empíricas, particulares, pontuais e imediatas, são
reduzidas ao que possuem de comum. Por exemplo, as inúmeras intuições de árvores são
universalizadas no conceito de árvore, abstrato, universal e mediato. Para Schopenhauer, a
função principal da razão é a formação de conceitos, ―(...) a razão possui apenas uma
função, a formação de conceitos‖ (MVR, 2005, p.85). O entendimento faz a intuição dos
fenômenos e a razão os absorve por conceitos que são expostos pelas palavras, ou seja,
pela linguagem. Assim, as palavras indicam a classe de representações abstratas em que a
razão está submersa, a linguagem está indissociada da razão, sendo explícita por uma única
e simples via: os conceitos. É através destes que se podem comunicar os objetos do mundo
pela linguagem.
Os cientistas, por estarem sob o princípio de razão, só lidam com os fenômenos.
Portanto, a razão depende do entendimento e de suas representações empíricas para
formular e fornecer os conceitos. E é a razão a responsável pela ciência, pela qual conhece
o mundo como representação. Pela ciência ainda não é possível conhecer o mundo como
ele realmente é, ela só permite conhecer a relação entre as coisas. São por meio dessas
ilusões que o homem acredita enxergar a verdade das coisas, porém as aparências estão
distantes da realidade.
Portanto, Schopenhauer pretende encontrar o conhecimento do próprio mundo a
partir do íntimo, de uma essência, para que seja possível abandonar as sombras das
cavernas de Platão, ou seja, abandonar o mundo das ilusões e das aparências. A partir disso,
Schopenhauer desiste da via objetiva dos cientistas e concebe a via subjetiva para chegar à
essência do mundo através da experiência do corpo. Parte da noção de Objektität:
(objetidade) da vontade: a ação do corpo é o ato da vontade objetivado. Na perspectiva
objetiva, o corpo é visto como mais um entre vários outros objetos submetidos à causa e
efeito. Já na perspectiva subjetiva, o corpo é a fonte da vontade, o núcleo que se manifesta
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422
nas ações, enquanto indivíduos somos um querer essencial. E é esse querer que o
impulsiona no seu agir e nos movimentos. O corpo é fenômeno da vontade, sendo este o
que há de mais real para o próprio indivíduo. Mesmo o corpo tendo essa referência que é a
vontade, ele continua sendo uma representação, portanto o mundo é minha representação,
e também é minha vontade. Todos os objetos são objetivação da vontade, mas no meu
corpo eu expresso a vontade.
Os fenômenos estão no âmbito da representação e a vontade é a coisa-em-si.
―Coisa-em-si, entretanto, é apenas a vontade (...). Ela é o mais íntimo, o núcleo de cada
particular, bem como do todo. Aparece em cada força da natureza que faz efeito
cegamente, na ação ponderada do ser humano (...)‖ (MVR, 2005, p.168-169). A vontade
encontra-se em toda parte, agindo sem ser percebida. Vontade, em Schopenhauer, é
vontade de vida. É a vontade de vida que impulsiona os seres e objetos, se manifesta no
mundo. O mundo é vontade. Esse conhecimento metafísico só é possível pela Filosofia,
uma vez que a Ciência não decifra a coisa-em-si, pois não vai além dos fenômenos do
mundo, através da ciência não é possível ―(...) penetrar a essência íntima das coisas‖ (MVR,
2005, p.182), ou seja, a vontade, pois a ciência nunca ultrapassa a representação, apenas faz
a ligação entre as representações.
Segundo o filósofo (MVR, 2005, p. 189), a coisa-em-si é totalmente diferente da
representação. A vontade é a coisa-em-si separada de seu fenômeno, permanecendo
exterior ao tempo e espaço e, dessa maneira, a vontade é una enquanto algo alheio à
pluralidade. O conjunto do espaço e tempo é a objetivação da vontade: ―A vontade se
manifesta no todo e completamente tanto em um carvalho quanto em milhões‖ (MVR,
2005, p.190). Portanto, há uma vontade no todo que se manifesta nos objetos e seres
particulares.
Diante disso, Schopenhauer define a Ideia para situar a essência una e
indivisível que há no mundo: ―Os diversos gatos da realidade só existem enquanto reflexo
distorcido de uma ideia de gato inalterável. Todos os gatos do mundo não passam da
pluralização de uma única e mesma ideia de gato‖.148 Portanto, há uma ideia de gato, e esta
não muda, não aparece no tempo e espaço. Mesmo que a espécie se extingua, a ideia de
gato é eterna. Do mesmo modo com os outros seres e demais objetos, seja um cavalo ou
uma cadeira, há a ideia eterna de tudo. Também a ideia de humanidade é eterna e
inalterável, mesmo que os indivíduos que a constituam sejam passageiros. Em outras
palavras, as ideias são representações da vontade, porém independentes do princípio de
148
BARBOZA, 1997, p.53.
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razão. No mundo como representação, sempre há sujeito e objeto, na qual se separam os
indivíduos que conhecem daqueles que são conhecidos. Em relação à ideia, há apenas o
sujeito puro. Em outras palavras, o objeto como ideia está livre das formas do princípio de
razão, e o sujeito como puro sujeito do conhecer está livre de servir à vontade, visto que
esta é condição de toda existência objetiva. Neste caso, a representação é dita como
representação ou intuição estética.
A arte, através das obras do gênio, nos diz Schopenhauer (MVR, 2005, p. 253), é
que considera o essencial do mundo, sem estar submetido às mudanças e mostra o
conteúdo dos fenômenos. São as ideias que podem ser repetidas por pura contemplação
através da arte. A origem da arte é conhecer as ideias e seu fim, enquanto meta, é
comunicar esse conhecimento através da arte plástica, poesia ou música. Portanto, a arte
pode ser definida ―(...) como o modo de consideração das coisas independente do princípio
de razão (...)‖ (MVR, 2005, p. 254). O oposto disso é a ciência, que está presa ao princípio
de razão. Já na arte, as ideias são conhecidas por pura contemplação e é ao gênio atribuído
essa capacidade de contemplar. ―Ora, visto que só o gênio é capaz de um esquecimento
completo da própria pessoa e de suas relações, segue-se que a genialidade nada é senão a
objetividade mais perfeita (...)‖. (MVR, 2005, p. 254).149 Ou seja, o gênio precisa agir
intuitivamente e ignorar o que existe a serviço da vontade.
O gênio precisa ausentar-se de ―si mesmo e do mundo‖, de seus interesses e
daquilo que conhece para reproduzir a ideia, vivenciando um estado diferente do cotidiano,
ou seja, um estado estético de contemplação da ideia na qual a vontade do gênio é negada.
Dessa maneira, o homem comum e o gênio passam a ter distinções marcantes: ―Para o
homem comum, a faculdade de conhecimento é a lanterna com a qual ilumina o seu
caminho, para o homem genial é o sol com o qual revela o mundo‖ (MVR, 2005, p. 257).
O homem comum está voltado somente ao seu caminho na vida, enquanto que o gênio
considera a ―vida mesma‖, ou seja, apreende as ideias das coisas que estão no mundo; dessa
maneira, o gênio tem pouco ou nenhum cuidado pelo seu próprio caminho na vida. O
gênio possui a capacidade da intuição e contemplação, enquanto que o homem comum é o
oposto. São maneiras diferentes e marcantes de ver a vida. Ou seja, é através da exposição
do artista que o homem pode conhecer a ideia propriamente dita. Seus olhos e dom devem
ser tomados como empréstimo para que se possa contemplar toda manifestação artística da
149
Também ao santo é atribuída essa capacidade, e quanto a este será explicado adiante.
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ideia que o artista pretende expor em sua obra. O homem, ao olhar com os olhos do
artista, terá a possibilidade de alcançar a contemplação estética.
A contemplação estética produz, por um curto espaço de tempo, a cessação do
sofrimento. Esse fim do sofrimento, possível pela satisfação, é passageiro devido ao
aparecimento de vários outros desejos que também anseiam por satisfação. O querer é
sofrimento na medida em que pressupõe uma carência, então um novo desejo quer ser
satisfeito e este sendo satisfeito, há ainda vários outros e assim sucessivamente, não há fim.
Essa é a roda de Íxion em que o sujeito do querer está ―preso‖ e que não cessa de girar.
Através da contemplação estética, do conhecimento da ideia, em que o gênio intui o
mundo na sua essência e empresta os olhos para fazermos da mesma maneira, ou seja, para
termos acesso ao belo, nos libertamos por instantes do estado existencial doloroso.
Portanto, ―A obra de arte é simplesmente um meio de facilitação do conhecimento da ideia
(...)‖ (MVR, 2005, p.265) e aqui reside o conhecimento por excelência, sendo a arte
superior à ciência. A ciência é um conhecimento teórico que o entendimento produz
submetido ao princípio de razão e está voltado a conhecer o mundo como representação.
A arte, por sua vez, contempla as ideias e por meio dela é possível aproximar-se do
conhecimento da vontade. O consolo proporcionado pela arte seja através da arquitetura,
jardinagem, pintura, poesia ou música, é o que faz o homem esquecer-se da penúria da
vida. O gênio consegue se destituir do mundo como vontade mais facilmente do que os
demais homens, a estes cabe o esforço de ver através dos olhos do artista, para obter o
conhecimento da ideia, presente no mundo como vontade.
É também atribuído aos santos, através de sua compaixão extremada, o
conhecimento da vontade. O santo rompe uma visão baseado no princípio de individuação
(tempo, espaço e causalidade) e este rompimento ocorre devido a algumas características.
―(...) a perfeita bondade de disposição, o amor desinteressado e o mais generoso autosacrifício pelos outros‖ (MVR, 2005, p.480-481). Tal homem, considerado santo, não está
sob o véu de Maia e é benevolente, há uma compaixão no mais elevado grau ao próximo,
absorve para si as dores alheias, compaixão significa paixão-com. É o colocar-se no lugar
do outro. Um exemplo dessa compaixão extremada foi o amor de Jesus Cristo pela
humanidade, ou de São Francisco de Assis pelos animais. O ser dotado de compaixão se
ausenta do sentimento de egoísmo, pois há uma identificação com o outro na qual não há
diferença entre si e o outro, entre o eu e o não-eu, acabando por anular o eu individual e a
suprimir a individualidade. Os santos se desinteressam pelo seu bem-estar, se colocam no
lugar da humanidade e não ficam somente contemplando o sofrimento alheio, agem para
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ajudar, nem que para isso seja necessário o sacrifício. Com isso, rompe-se o princípio de
individuação, ou seja, o princípio de razão.
A compaixão permite ―penetrar‖ no mundo, assim como no caso da ideia exposta
pela arte. O sentimento de ambos, da compaixão e da contemplação estética (a arte),
possibilitam a separação do eu e não-eu, há a negação da vontade. ―O homem, então,
atinge o estado de voluntária renúncia, resignação, verdadeira serenidade e completa
destituição de vontade‖ (MVR, 2005, p.482). A arte fundamenta a estética, ciência da beleza
e a compaixão fundamenta a moral. Num primeiro momento, o sujeito está no plano da
efetividade regido pelo princípio de razão, e, quando a arte ou compaixão irrompe, visa o
desempenho da espontaneidade da essência do mundo.
Para concluir, a respeito da metafísica de Schopenhauer, pode-se afirmar, em linhas
gerais, que ―(...) este mundo no qual vivemos e existimos, é segundo a sua natureza,
absolutamente vontade e absolutamente representação (...)‖ (MVR, 2005, p.228). A
representação é expressa pelo princípio de razão a partir do sujeito. A representação é
espelho da vontade, pelo qual ela conhece a si mesma. Para tal conhecimento, é preciso
voltar-se à contemplação da arte em que o gênio irá expor a ideia; e a virtude moral dotada
do sentimento de compaixão, esta possível pelos santos, para expor o conhecimento da
vontade, da essência, aqui reside a coisa-em-si do mundo. Tais contemplações, estética e
moral possibilitarão a satisfação e fim do sofrimento e ambas se encontram na unidade
metafísica da vontade.
Referências Bibliográficas:
SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação, Tradução de Jair
Barboza- São Paulo: Editora UNESP, 2005.
BARBOZA, Jair, Schopenhauer- a decifração do enigma do mundo. São Paulo: Moderna, 1997(Coleção logos).
ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia
426
ENTRE JOGOS: A FILOSOFIA DE NIETZSCHE E A LITERATURA DE
JULIO CORTÁZAR
Mariély Cássia da Silva
UNIOESTE
[email protected]
RESUMO: Em face de um trabalho híbrido, estes traços pretendem tecer os fios entre
temas transversais, compor uma amalgama entre o pensamento filosófico de Friedrich
Nietzsche e a literatura de Julio Cortázar.
O objetivo é mostrar que a estrutura e a
narrativa da obra literária O Jogo da Amarelinha, no original Rayuela, são fontes de sensações
capazes de promoverem a criação de conceitos. No caso específico desta pesquisa, se dará
ênfase para o conceito de jogo. Tal conceito foi cunhado também, de um modo especial, na
filosofia de Nietzsche, este será o outro ―novelo‖ a ser utilizado para a composição desta
tessitura. As linhas que se seguem intentarão experimentar a conexão entre a literatura e a
filosofia por meio da complexa noção de jogo.
Palavras-chave: Filosofia. Jogo. Literatura.
―À sua maneira, este livro é muitos livros‖, é com essa frase que somos convidados
a adentrar a obra literária de Julio Cortázar, O Jogo da Amarelinha, de 1963. A orientação do
autor que se segue a frase é advertir o leitor sobre duas formas de leitura da obra, a
primeira maneira de lermos o livro é linear: ler os capítulos na ordem da exposição, do
primeiro até o capítulo 56. A segunda maneira, que é indicada, é iniciar a leitura do livro
pelo capítulo 73 e, ao final é apontado o próximo capítulo a ser lido.
A frase que inicia o ―O Tabuleiro de Direção‖ é o roteiro de leitura do livro, aqui
são estabelecidas as regras desse jogo e as suas inerentes possibilidades de interpretação. O
livro, que contém outros livros é dividido em três agrupamentos intitulados: ―Do lado de
lá‖, ―Do lado de cá‖, esses se constituem até o capítulo 56 e o terceiro agrupamento, ―De
outros lados‖ são os chamados ―capítulos prescindíveis‖, os quais só farão sentido na segunda
maneira de leitura, a que o autor indica no tabuleiro de direção.
O Jogo da Amarelinha implica em infinitas possibilidades de interpretação, o
arcabouço organizacional do texto constitui um jogo no sentido real, denotativo da
expressão. A obra do escritor argentino rompe com os modelos da narrativa padronizada,
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subverte a ordem forjando a sua própria linguagem, assimilando a arte escrita à própria
dinâmica do jogo. Nesse sentido, o título do livro referente à brincadeira infantil, o jogo da
amarelinha, condiz com a proposta literária do escritor: no livro que se faz jogo, o jogo que
se torna um livro, contém seus participantes, suas regras, seu tabuleiro e, inevitavelmente,
como qualquer jogo, está à mercê do imprevisto, ao capricho de todas as possibilidades. A
própria estrutura do livro é um jogo literário e vital, nele vê-se a vida mesma em exercício,
de sua superfície emergem ressonâncias esquecidas, fragmentações de monstruosas
sutilezas, arrebatamentos, contradições. Em suma, magistralmente Cortázar produz muito
mais que um livro, muito mais do que um jogo. Segundo o escritor Mario Vargas Llosa:
nenhum outro escritor deu ao jogo a dignidade literária que deu
Cortázar, nem fez do jogo um instrumento de criação e exploração
artística tão proveitoso. A obra de Cortázar abriu portas inéditas (apud
FIGUEIREDO, 2013)
A estrutura da obra cortazariana permite que o personagem principal seja o leitor.
As ―casas‖ do jogo da amarelinha são os capítulos que lemos, casa um, capítulo um... ao
lermos o segundo modo indicado pelo autor, recomeçamos o jogo de uma casa aleatória,
podemos dar saltos em ziguezague, neste movimento vamos e voltamos de um
capítulo/casa qualquer a outra casa/capítulo qualquer. Efetuamos o ciclo de leitura
conforme a escolha do leitor, dos leitores; como no jogo infantil, efetuamos o ciclo de ir
até o céu, voltar à terra, mas, com Cortázar, estamos no jogo literário da Amarelinha.
Cortázar abre novas possibilidades para o discurso literário e dá, em sua obra, um novo
papel ao leitor:
O campo de possibilidades fica, portanto, condicionado por uma diretriz
traçada a priori pelo autor, enquanto que na obra tipicamente aberta,
como o romance Rayuela, do escritor argentino JULIO CORTÁZAR, o
leitor pode ordenar de maneira diversa os fragmentos da narrativa, de
modo a obter estrutura distinta (RAMOS, 1969, p. 46)
Julio Cortázar, com seu Jogo da Amarelinha, torna-se um literato ímpar na medida
em que elege o leitor como o seu protagonista, o qual se transforma em jogador. O Jogo da
Amarelinha possibilita a produção de uma leitura que é jogo, jogo jogado por um leitor
ativo, que, nesse diálogo, é transformado em jogador; a obra permite ao leitor perceber-se
no jogo; na troca mútua e contínua de cada lance da pedrinha, a obra literária aflora em si
mesma, tornando-se a realização do jogo, a realização da leitura.
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Estabelecido o tabuleiro de direção, obtemos duas leituras da obra literária. A
leitura será condicionada pela escolha dos capítulos, literariamente, o capítulo escolhido é a
casa aonde o lance da pedrinha irá cair. Os agrupamentos dos capítulos ―Do lado de lá‖ e
―Do lado de cá‖, onde a sequência se estende até o capítulo 56 e constituem a primeira
maneira de leitura do livro.
Em ―Do lado de lá‖, a estória se desdobra em Paris, e, primordialmente retrata os
caminhos e descaminhos da personagem Horacio Oliveira, sua relação de amor e repulsa
com Maga, os encontros nas ruas, as conversas no cubículo onde o Clube da Serpente 150 se
encontra, retratos dos devaneios, bebedeiras, filosofias e jogos. A estória se passa
juntamente com as personagens do clube, na obra há vários narradores, mas
principalmente é Horacio ou Maga que descrevem e, junto com o leitor, especialmente,
percorrem as riquezas psicológicas das personagens, de seus esquecimentos, belezas,
vicissitudes, os caminhos da sua una e conjunta trama de (des) construção da vida humana,
demasiada humana. Entre a relação de Horacio e Maga, o filho de Maga (Rocamadour),
torna-se ora o ponto de equilíbrio, ora de desequilibro desta relação; é ele quem suscita
indagações e conflitos dos mais atenuantes da narrativa.
No segundo agrupamento, ―Do lado de cá‖, a partir do capítulo 37 até o 57, o local
da estória é a Argentina, a narrativa aqui gira em torno da tríade Horacio Oliveira, Traveler
e Talita. Horacio retorna ao país de origem, com suas contradições, sua riqueza, sua vida e,
juntamente, retorna a amizade com Traveler. Mas, os retornos sempre trazem algo
enigmático consigo, trazem na bagagem o estrangeiro, e aquele que ficou tornando-se
estrangeiro frente ao outro também, Horacio é estrangeiro para Traveler, e este a Horacio.
Com o retorno de Horacio, Traveler, com seus moinhos de vento, imagina os horizontes e
viagens que nunca fizera. À mercê da vida que julga precariamente, isolado em seu
ambiente, Traveler tem como horizonte apenas as viagens que não realizou, as quais se
tornam quase a obsessão de sua vida e a razão de suas mazelas. A chegada do
estrangeiro/amigo Horácio abala e modifica a relação do casal, indicando sutilmente uma
suposta relação amorosa entre Horácio e Talita, mas que se revela uma relação muito mais
pungente, em certo sentido, de radical aprofundamento existencial. Horácio projeta em
Talita a imagem e a encarnação de Maga. Traveler e Talita anteriormente cuidavam de um
circo, mas recebem uma proposta de trabalhar em um hospital psiquiátrico e inserem
150O
Clube da Serpente é composto pelas seguintes personagens: Horacio Oliveira, Maga (Lucia),
Rocamadour (filho de Maga), Mmé, Perico, Romero, Ronald, Etienne, Gregorovius, Gaby, Guy, Monod,
Bessie, Osiep, Wong e Léonie.
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Horacio no trabalho. Nesse ambiente, as paisagens entre real e imaginário, devaneios e
realidade já não mais se diferem, são um só, a relação entre as personagens ocorre
desvelando uma a outra, em associação recíproca.
O segundo modo de leitura indicado no Tabuleiro de Direção, inicia-se no capítulo
73 e alterna dentro de todos os capítulos/ casas do livro/Jogo da Amarelinha. Outra vez
iniciamos o jogo/livro, mas a obra insere aqui uma nova personagem, Morelli. Dentre as
múltiplas interpretações, uma plausível é que advindo da profissão de escritor, Morelli
passa a criar na própria obra a história de Horacio Oliveira. Morelli, ao passar a descrever a
história sob a sua ótica, torna-se outra personagem na narrativa, envolvendo-se com as
vivências, com as angústias de Horacio, Maga, Talita e Traveler. Morelli, com o decorrer
dos capítulos/ casas passa a imprimir ou confundir as suas vivências com as dos
personagens do texto; a oscilação entre a voz de Morelli, e das outras personagens já não se
difere mais, a história passa a ser una entre eles, podemos dizer que Morelli passa a fazer
parte do Clube da Serpente, e mora na Argentina.
Como intuito, tentaremos elucidar os frutos da relação transacional151 entre a
literatura de Cortázar e a filosofia de Nietzsche, qual ou quais aspectos a obra literária ―O
Jogo da Amarelinha”, serve-se da verve filosófica, mais especificamente iremos propor uma
chave de leitura da obra de Cortázar, sob a ótica da filosofia de Friedrich Nietzsche. Para
isso, serão alternados trechos da obra literária - filosófica de Cortázar e da obra filosófica literária de Nietzsche.
Como foi exposto, ―O Jogo da Amarelinha”, além de possibilitar o exercício de jogar na
própria estrutura da obra literária, o jogo ocorre entre as personagens da história, desse modo,
tentamos diagnosticar algumas formas de jogos empíricos dentro da narrativa, ou seja, identificar os
jogos na obra, para depois subsidiá-las pelo discurso filosófico. Dentro do jogo que contém
inúmeros jogos, indicamos: o jogo da patafísica (p. 15), que são as descrições infindáveis das
pequenas coisas do cotidiano; os jogos de dominação e dominado entre Horácio e Maga,
(p. 52,53 e tantas outras páginas do livro); as regras de um jogo pactuado socialmente (p.
63); jogos de palavras (p. 279) e o abandonar o jogo (p. 338).
Ao final da primeira parte da obra ―Do lado de Lá‖, Horácio descreve o jogo da
amarelinha, os jogos ocorrem por toda a obra, mas é ao final da segunda parte que o jogo é
Nunes, no ensaio ―Filosofia e Poesia: uma transa‖, elenca três formas de relação entre a filosofia e a
literatura: disciplinar, supradisciplinar e transacional. Disciplinar é entendida como a filosofia superior a
literatura, supradisciplinar como a literatura superior à filosofia, e por fim, transacional é a compressão de que
ambas as instâncias, podem interagir, sem a perda das suas especificidades, mas em plena comunhão de ideias.
151
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explicitamente narrado, propriamente é do jogo da amarelinha que emerge a metáfora da
vida:
O jogo da amarelinha se joga com uma pequena pedra que é preciso
empurrar com a ponta do sapato. Ingredientes: uma calçada, uma
pedrinha, um sapato e um belo desenho feito com giz, preferivelmente
colorido. No alto, fica o Céu, embaixo a Terra, é muito difícil chegar
com a pedrinha ao Céu, quase sempre se calcula mal e a pedra sai do
desenho. Pouco a pouco, porém, vai-se adquirindo a habilidade
necessária para salvar as diferentes casinhas (caracol, retângulo, fantasia,
esta pouco usada) e um dia se aprende a sair da Terra e levar a pedrinha
até o Céu, até entrar no Céu (...); o pior aprendeu a levar a pedra até o
Céu, a infância acaba de repente e se chega aos romances, à angústia do
divino foguete, à especulação de outro Céu ao qual também é necessário
aprender a chegar. E, por se ter saído da infância (...), esquece-se de que,
para alcançar o Céu, é preciso ter, como ingredientes, uma pedrinha e a
ponta de um sapato. (CORTÁZAR, 2013, p. 252).
Metáforas e mais metáforas compõe a obra de Cortázar. Deixemos cair as
metáforas, em que sentido, qual a finalidade de todos os jogos? O que buscamos com o
jogo nosso de cada dia? Um novo jogar da pedrinha, uma nova casa a se pular, um novo
capítulo para ler, uma nova realidade que se apresenta. Que céu, buscamos a cada nova
pedrinha lançada, a cada novo desvelar da realidade, que cada vez mais adentramos cada
um em busca do seu céu, em seu jogo da amarelinha?
Uma das similitudes encontradas no trecho acima, com a obra nietzschiana, além de
ambas as obras, cada qual com sua especificidade, expressarem as belezas nos versos, é o
caráter lúdico da existência que é evidenciado, fazendo sorrir a toda elucidação de vida,
toda a brincadeira da filosofia e da literatura, Friedrich Nietzsche (1844 – 1900), desde os
seus textos primevos até as últimas obras, perpassa o conceito de jogo. Nos primeiros
escritos do pensador, se vislumbra a noção de jogo, em A filosofia na Época Trágica dos Gregos
(1873), obra essa escrita no período em que o pensador está absorto sob a idealidade do
ressurgimento dos ideais da cultura grega no meio alemão. No livro citado, sobre os
ombros de Heráclito, o filósofo afirma;
Neste mundo, só o jogo do artista e da criança tem um vir à existência e
um perecer, um construir e um destruir sem qualquer imputação moral
em inocência eternamente igual. E, assim como brincam o artista e a
criança, assim brinca também o fogo eternamente activo, constrói e
destrói com inocência – e esse fogo joga-o Eão consigo mesmo.
Transformando-se em água e em terra, junta, como uma criança,
montinhos de areia à beira-mar, constrói e derruba: de vez em quando,
recomeça o jogo. (NIETZSCHE, 1987, p. 50).
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Em nossa interpretação, o Jogo da Amarelinha é a efetivação do jogo universal
prenunciado acima, somente o jogo instaura sentido ao devir. Jogar a pedrinha para
começar e infinitamente recomeçar o jogo, igualmente como a criança que constrói castelos
de areia na beira do mar. Estando frente a frente com nossa condição humana, estamos
todos na beira do mar, estamos a olhar o jogo da amarelinha traçada no chão. A pergunta
que definirá nossa ação é: o que faremos com a areia? O que faremos com a pedrinha?
Jogar. Temos jogos por todos os lados, das mais variadas facetas e trejeitos, mas,
que são jogos, o jogo supremo de construção e destruição de sentido, jogar é realizar o
sentido do jogo, que é a sua própria razão de ser, o ato de jogar, ação de jogo. Por isso, é
com cuidado que interpretamos o jogo não em sentido empírico, em ganhadores e
perdedores, mas sim no jogo descrito como princípio fundamental que norteia e se
fundamenta como estrutura na qual germina toda a possibilidade.
Aqui, destitui-se do jogo o sentido de finalidade, não buscamos o céu do jogo da
amarelinha, não buscamos a finalidade de nossas ações, estamos radicalmente no jogo,
inseridos fundamentalmente na ação do jogar, a cada lance da pedrinha recomeçamos, a
cada vez que o mar leva nosso castelo de areia, inevitavelmente sempre estamos
começando o jogo da amarelinha.
A pergunta que acompanha todo o livro de Cortázar, e que o inicia é ―Encontraria a
Maga?‖, pergunta norteadora, enigmática. Nos trechos que se seguem podem-se entrever
alguns indícios do que a pergunta significa, bem como seus possíveis pressupostos
filosóficos. No início da narrativa, Horácio se descreve:
Nesse tempo, já me dera conta que procurar era minha sina, emblema de
todos aqueles que saem à noite sem qualquer finalidade exata, razão de
todos os destruidores de bússolas (CORTÁZAR, 2003, p.16).
Podemos entender que a busca de Horácio é a busca filosófica, a busca da unidade,
da essência. Para Horácio essa busca se personificará em Maga, depois em Talita, mas o
que importa mesmo a ele é a própria busca, pois é ela que o livrará do fardo da existência, o
que supostamente o livrará de sua irrecusável condição de finitude.
Os surtos de Horácio tornam-se cada vez mais agudos no hospital psiquiátrico
onde trabalha. Traveler e Talita invadem o quarto para salvá-lo, ali será o palco para
elucubrações, recordações e, mais precisamente, confissões acerca da vida. A conversa
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continua, em meio ao jogo de Horácio tentando apresentar razões para se jogar pela janela
e Traveler argumentando para que o amigo não faça isso, Horácio diz:
(Horacio) - A questão reside toda nisso, ter uma ideia sobre qualquer
coisa, custe o que custar. Você não é capaz de intuir por um segundo que
as coisas podem não ser assim?
(Traveler) - Supunha que sim. Mas a verdade é que você está aí
debruçado na janela.
(Horacio) - Se você realmente suspeitasse de que isto pode não ser assim,
se realmente conseguisse chegar ao cerne da coisa... Ninguém está lhe
pedindo que negue o que está vendo; mas se você, pelo menos, fosse
capaz de empurrar um pouquinho, compreende, com a ponta do dedo...
(CORTÁZAR, 2013, p. 396-397)
―Empurrar um pouquinho‖, essa é a súplica de Horácio, chegar aos confins da
realidade, forjando-a, jogando o jogo ―compreende, com a ponta do dedo”, com a pedrinha ele
pretende alcançar a realidade, mas, cada vez mais em círculos vertiginosos a realidade se
revela no jogo. ―Jogar o jogo plenamente‖, diz Horácio, os que estão lá fora, ―estão
fazendo o exercício sem saber‖ (p. 397).
Heráclito, segundo Nietzsche, intuiu ―a percepção estética fundamental do jogo do mundo”
(NIETZSCHE, 1987, p. 52), assim como Horácio percebeu que os que estão lá fora, estão
realizando o jogo de Zeus: estamos, ao fim e ao cabo, fadados ao jogo. Para Nietzsche,
Heráclito preconiza o grande princípio do universo, o seu eterno fluxo, a sua incessante
perpetuação, o seu eterno ciclo, o fluxo que se auto-alimenta continuamente, sem cessar, o
jogo consigo mesmo, que assim permite todos os jogos.
Como homem entre homens, Heráclito tem algo de inacreditável; e se é
verdade que foi visto a observar os jogos de crianças barulhentas, ao
menos nessa altura reparou naquilo que jamais alguém considerava numa
ocasião dessas: o jogo da grande criança universal, o jogo de Zeus
(NIETZSCHE, 1987, p. 54).
Podemos entender, que Horácio realiza o jogo, que vive a metáfora do jogo da
amarelinha, perpassando o céu, pulando sobre a terra, no seu eterno fluxo, ele completa o
ciclo, rendeu-se, encontrou o kibbutz. Ao final diz:
Era assim, a harmonia durava incrivelmente, não havia palavras para
responder à bondade daqueles dois ali embaixo, olhando para ele e lhe
falando, de dentro do jogo da amarelinha, porque, sem perceber, Talita
estava parada na casa três e Traveler tinha um pé na seis, de maneira que
a única coisa que ele podia fazer era mover um pouco a mão direita,
numa saudação tímida, e ficar olhando a Maga, pra Manú, dizendo a si
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mesmo que, no fim das contas, algum encontro havia, embora não
pudesse durar mais do que aquele instante terrivelmente doce no qual a
melhor coisa a fazer, sem sombra de dúvida, teria sido inclinar-se um
pouco fora e deixar-se cair, paf, acabou-se. (CORTÁZAR, 2013, p. 402).
Iniciamos o livro com a frase lapidar, ―à sua maneira, este livro é muitos livros‖ e
parafraseando Cortázar, ―à sua maneira, este jogo é muitos jogos” jogos que revelam o que está
intrinsecamente ligado à vida, o que ela é, a vida descrita por Horacio com todos os seus
jogos, a vida descrita por Nietzsche com todos os seus jogos, o seu fluxo, o fogo que
perpetua toda a transformação, vida em constante metamorfosear-se, tornando-se
leitor/jogador da obra/jogo, da obra máxima que os gera, a vida.
Referências Bibliográficas:
CORTÁZAR, Julio. O Jogo da Amarelinha. 20ª Edição. Tradução de Fernando de Castro
Ferro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.
FIGUEIREDO, Janaina. O Jogo da Amarelinha é tema de exposição em Buenos Aires. Em:
http://oglobo.globo.com/cultura/o-jogo-da-amarelinha-tema-de-exposicao-em-buenosaires-8948111#ixzz2a5TPsXTP . Acesso em 25 de julho de 2013.
NIETZSCHE, Friedrich. A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos. Tradução de Maria Inês
Vieira de Andrade. Lisboa, Portugal: Edições 70, 1987.
NUNES, Benedito. Poesia e Filosofia: uma transa. In: ROHDEN, Luiz, PIRES, Cecília.
Filosofia e Literatura – Uma relação Transacional. Coleção Filosofia, 29. Editora Unijuí; Ijuí,
2009. p.17-36.
RAMOS, Maria Luisa. Fenomenologia da obra Literária, Editora Forense, Rio de Janeiro, 1969
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APONTAMENTOS SOBRE A FISIOPSICOLOGIA NO ÚLTIMO PERÍODO
DE NIETZSCHE
Marioni Fischer de Mello
UNIOESTE/CAPES
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Dr. Wilson Antonio Frezzatti Jr.
RESUMO: Ao longo do último período de sua obra, Nietzsche utiliza-se dos termos
psicologia e fisiologia em vários sentidos. O estudo pretende analisar algumas destas
ocorrências, buscando traçar um perfil do modo como o filósofo passa a elaborar aquele
que, para fins desta pesquisa se considera seu novo conceito de psicologia: uma
fisiopsicologia enquanto ―morfologia e teoria do desenvolvimento da vontade de potência‖
(Morphologie und Entwicklungslehre dês Wilens zur Macht). O enfoque da pesquisa está centrado
em Além de bem e mal - Jenseits von Gut und Böse,1885/86), contudo, outras obras do terceiro
período de Nietzsche, além dos Fragmentos Póstumos, foram eventualmente consultadas.
Palavras-chave: Fisiopsicologia. Fisiologia. Psicologia. Metafísica.
Para reforçar a necessidade de uma nova psicologia, desvinculada dos preconceitos
metafísicos e religiosos na investigação do homem e do mundo, Nietzsche assinala que na
Antiguidade a psicologia originou-se como parte da antiga retórica, estando, portanto,
vinculada à práxis. (cf. FP 4 (22) Verão 1880)152. A psicologia na Grécia Antiga surgiu
desvinculada do caráter metafísico em que foi compreendida posteriormente. Não tinha o
caráter abstrato da lógica, no qual a realidade (Realität) se dissipa. ―O estudo da psicologia
fazia parte da antiga retórica. Que atrasados estamos! (...) A nova psicologia resulta
imprescindível ao reformador‖ (FP 19 (101) Outubro-Dezembro 1876).
Com a proposta de uma nova psicologia, Nietzsche busca retomar aquele aspecto
prático que caracterizava a psicologia na antiguidade, vinculando-a novamente à vida e
afastando-a das abstrações metafísicas. Ela deverá ser útil no sentido da investigação dos
Será adotado neste estudo o padrão de abreviaturas das obras de Nietzsche tal como convencionado pelos
Cadernos Nietzsche a partir da edição crítica das obras completas organizadas por Colli e Montinari (KSA). As
siglas em português sucederão as siglas em alemão visando facilitar a leitura. Para os fragmentos póstumos, os
algarismos arábicos indicam o número do caderno e o fragmento póstumo, seguido do período de
elaboração, de acordo com a edição Kritische Studienausgabe (KSA).
152
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fenômenos até então considerados psíquicos, das manifestações até então consideradas
fisiológicas, às quais se poderia crer por eles desencadeados, não no estudo abstrato da
alma.
Nietzsche se utiliza do termo psicologia num sentido negativo para se referir a
pressupostos falsos, em sua concepção, ligados à interpretação metafísica e às religiões
pessimistas. Trata-se de contextos nos quais se percebe a alma como noção principal dessa
psicologia. Em O Anticristo § 15 declara: ―nem a moral nem a religião, no cristianismo, têm
algum ponto de contato com a realidade. Nada são senão causas imaginárias (...) esse mundo
de pura ficção (...) falseia, desvaloriza e nega a realidade‖.
Afastar-se da tradicional visada voltada ao interior do homem, conforme
demandara a psicologia tradicional, se faz necessário. O campo investigativo no qual
Nietzsche insere sua nova psicologia começa a delinear-se doravante sob a perspectiva de
uma interpretação que busca um viés científico, desprovido de uma fundamentação moral e
suas implicações, como é possível claramente constatar também no parágrafo 2 do Prólogo
de A Gaia ciência, quando revela:
Para um psicólogo, poucas questões são tão atraentes como a da relação
entre filosofia e saúde, e, no caso de ele próprio ficar doente, levará toda
a sua curiosidade científica para a doença (...) assim nós, filósofos,
ficando doentes, nos sujeitamos à doença de corpo e alma por algum
tempo – como que fechamos os olhos para nós mesmos.
Nietzsche indica mediante quais circunstâncias pode experimentar este sair de si
que o levou formular uma diferente interpretação acerca das manifestações, ou seja, dos
sintomas que acometem o organismo humano, prescindindo das antigas concepções que
antes perpassavam o estudo da natureza humana como sendo estados doentios do espírito,
para os quais propõe uma interpretação diferenciada. Denomina tais estados de ―fraqueza,
recuo, rendição, endurecimento, ensombrecimento‖, ou seja, vinculando-os a uma
decadência fisiológica experimentada pela desierarquização dos centros de forças que em
sua concepção constituem o homem. Identifica dois tipos básicos de comportamentos
enquanto sintomas que caracterizam o filosofar de diferentes tipos humanos em suas
respectivas formas de interpretar o sofrimento:
Num homem são as deficiências que filosofam, no outro as riquezas e
forças. O primeiro necessita da sua filosofia, seja como apoio,
tranquilização, medicamento, redenção, elevação, alheamento de si; no
segundo ela é apenas um formoso luxo, no melhor dos casos a volúpia
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de uma triunfante gratidão, que afinal tem de se inscrever, com
maiúsculas cósmicas, no firmamento dos conceitos. (FW/GC Prólogo §
2).
O filósofo esclarece como dirige sua análise ante a nova psicologia que propõe,
distinguindo-a daquela da qual se utilizavam os psicólogos anteriormente. Ao investigar
como os filósofos procedem mediante as questões mais relevantes da vida, sua observação
está pautada em verificar se suas posturas em relação a ela são de afirmação ou negação.
São as valorações humanas em relação à existência que, expressas fisiologicamente, indicam
a saúde ou a doença, o fortalecimento ou a degeneração de um organismo. É com esse
embasamento que dirá no parágrafo 2 do Prólogo de A Gaia ciência: ―frequentemente me
perguntei se até hoje a filosofia, de modo geral, não teria sido apenas uma interpretação do
corpo e uma má-compreensão do corpo‖.
Sob uma análise superficial poder-se-ia afirmar que Nietzsche claramente
transladara as questões até então tidas como espirituais para o nível corporal. Sua nova
concepção psicológica, no entanto, transcende esse pensamento reducionista, indo além do
conceito de corpo como tradicionalmente é compreendido. A vontade de potência é um
processo relacional de dominação, os impulsos ou forças não são nem corporais, nem
anímicos, efetivando-se como tendência de crescimento de potência. Embora
reconhecendo que cientificamente tais afirmações estão desprovidas de legitimidade,
Nietzsche propõe que sejam tomadas como uma interpretação possível, tanto quanto
aquela que, até então, foi legitimada pela tradição (cf. FW/GC Prólogo § 2).
No fragmento póstumo 14(121) da Primavera de 1888, intitulado ―A vontade de
potência considerada psicologicamente: Concepção unitária da psicologia‖, Nietzsche afirma que
sua tese é: ―que a vontade da psicologia que há havido até agora é uma generalização
injustificada, que essa vontade não existe em absoluto, que em lugar de captar a configuração
de uma única vontade que se há determinado em muitas formas, se há suprimido o caráter da
vontade ao subtrair-lhe o conteúdo, o ponto até o qual se dirige‖. Como vontade única,
entende-se o afeto básico de tendência a crescimento de potência, o ―ponto ao qual se
dirige‖ a vontade. Caso se descuide desta observação, corre-se o risco de compreender
erroneamente as palavras do filósofo, quando alerta para o equívoco advindo do fato de
termos inventado uma falsa compreensão unitária que na verdade não existe (cf. FP 11
(111) Novembro de 1887-Março de 1888).
Com isso, é possível compreender que a psicologia enquanto ―morfologia e teoria do
desenvolvimento da vontade de potência‖ possa ir além da linguagem que ―continua a falar em
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oposições onde há somente degraus e uma sutil gama de gradações‖ (JGB/BM §24). Ou
seja, a psicologia nietzschiana supera o modo metafísico de pensar, que envolve qualidades
absolutas opostas, por meio dos graus de hierarquização e da intensidade de potência dos
impulsos, de caráter quantitativo. Após esse esclarecimento é possível compreender de
maneira mais assertiva as palavras de Nietzsche quando afirma:
em lugar da ―felicidade‖ individual a que deve espirar todo vivente,
colocamos a potência: ―o ser vivo aspira à potência, a um mais (plus) na
potência‖ (...) Que toda força motora é vontade de potência, não há que
acrescentar nenhuma força física, dinâmica, psíquica... (FP 14 (121)
Primavera de 1888).
É nesse sentido que Nietzsche irá propor uma concepção ―unitária‖ de psicologia,
ou seja, porque parte daquela qualidade originária à qual denomina vontade de potência, da
qual sua nova psicologia estudará o desenvolvimento; uma vez que entende que ―os
últimos e mais pequenos ―indivíduos‖ não são compreensíveis no sentido de um ―indivíduo
metafísico‖ nem de um átomo, que sua esfera de valor se translada constantemente‖ (FP 14
(121) Primavera de 1888). É, portanto, a vontade de potência, enquanto primeira unidade
qualitativa que, não constituindo uma unidade material, tampouco espiritual, possibilita a
Nietzsche propor uma compreensão unitária de psicologia. Unitária no sentido de que se
desenvolve unicamente a partir dessa primeira unidade qualitativa, dessa forma primitiva do
afeto (Affekt), cujo desenvolvimento, no sentido das transformações, das mudanças que
acarreta pode ser investigado a partir do quantum de potência que, em variações sucessivas,
atuam no organismo configurando seu tipo hierárquico.
Nietzsche desvincula a psicologia dos pressupostos metafísicos e religiosos sem,
contudo, enveredar pelos caminhos da ciência. Apesar de sua filosofia sofrer influência
considerável da psicologia científica francesa153, o filósofo acredita que as ciências ainda
estejam, de algum modo, ligadas aos pressupostos metafísicos (cf. FW/GC § 344). Propõe,
A proposta de uma nova psicologia desatrelada da metafísica e baseada nas ciências naturais era defendida
pela psicologia experimental francesa, da qual Nietzsche era assíduo leitor. Teve como um dos principais
centros irradiadores o filósofo e psicólogo francês Theodule Ribot. Fundador da psicologia científica francesa
e responsável pela sua autonomia (cf. Nicolas, 2002, p. 103-118; Dugas, 1924, p. 16-32). Assim como
Nietzsche, Ribot defendia que a psicologia baseada na fisiologia teria papel relevante na superação da
psicologia tradicional de caráter metafísico. Diferentemente de Nietzsche, no entanto, para quem a fisiologia
está ligada à dinâmica da luta dos impulsos (Triebe) por mais potência (vontade de potência), para o psicólogo
e filósofo francês o termo fisiologia trata dos processos físico-químicos dos organismos. Para maiores
referências quanto à relação de Nietzsche com a psicologia científica francesa cf. ―Nietzsche e Théodule
Ribot: Psicologia e Superação da Metafísica‖ (FREZZATTI, 2010), bem como ―A Recepção de Nietzsche na
França: da Revvue philosophique de la France et de l‟Étranger ao período entreguerras‖ (FREZZATTI, 2012).
153
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438
então, compreendê-la como ―morfologia e teoria do desenvolvimento da vontade de potência‖, isto
é, como a dinâmica da relação entre os impulsos (Triebe), que não sendo corpo nem alma,
permitem que sua nova psicologia, apresentada no parágrafo 23 de Além de bem e mal como
uma ―autêntica fisiopsicologia‖, se desvencilhe das dualidades metafísicas.
Importante, neste ponto da investigação da noção de fisiopsicologia de Nietzsche,
recorrer à Müller-Lauter (cf. 1999, p. 11), quando menciona três determinações gerais
sobrepondo-se acerca do conceito de fisiologia em Nietzsche. Na primeira o filósofo
seguiria o uso do termo ―fisiologia‖ em consonância com as ciências de sua época. Na
segunda, o termo estaria voltado para a definição daquilo que determina de modo somático
o ser humano, remetendo às funções orgânicas ou ao afetivo no sentido do imediato
corpóreo. É, contudo, na terceira determinação que se identifica a característica
fundamental da qual Nietzsche revestiu o termo, reinterpretando o viés pelo qual fora
compreendido até então e determinando uma nova compreensão de seus significados
usuais. É quando seu emprego já está condicionado a essa reformulação e sendo utilizado
em sua obra enquanto conceito propriamente nietzschiano, mediante o qual ele
compreende ―os processos fisiológicos como a luta de quanta de potência que
―interpretam‖― (MÜLLER-LAUTER, 1999, p. 12).
Importante, todavia, ressaltar que, mesmo ao operar com os conceitos de psicologia
e fisiologia no sentido da primeira e segunda determinações apresentadas por MüllerLauter, Nietzsche permanece tendo em mente, em primeiro plano, suas relações com o
sentido próprio que criou e desenvolveu para o termo. É mediante o seu novo conceito de
psicologia/fisiologia, ou, como enuncia no parágrafo 23 de Além e bem e mal, de
fisiopsicologia que ele opera. As tradicionais formas de utilização dos termos aparecerão
apenas como suporte à compreensão dos leitores ou em referencias críticas bem específicas
donde se percebe sua censura no sentido de não darem conta das questões fundamentais,
tratando superficialmente de processos muito mais complexos. É a análise fisiopsicológica
que está sempre em primeiro plano para Nietzsche, suas formas tradicionais de emprego e
os próprios termos que apontam a dualidade entre o físico e o psicológico foram resultado
de más compreensões dos processos originários nos quais Nietzsche reconhece a atuação
determinante da vontade de potência. Mais uma vez: a tradição vê dualidades metafísicas
onde há um campo quantitativo contínuo (cf. JGB/BM §24).
Sendo assim, pode-se considerar que há um sentido crucial no qual convergem os
termos psicologia e fisiologia para Nietzsche, sendo exatamente o sentido pelo qual se
refere à sua fisiopsicologia – conforme descrita no parágrafo 23 de Além de bem e mal. Isto
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439
porque que é por ela que o filósofo intenta dar conta dos sucessivos processos de alteração
das configurações da vontade de potência e suas concomitantes manifestações que, todavia,
são expressas nos âmbitos tradicionais da psicologia e fisiologia.
Se Nietzsche não separa o fisiológico do psicológico em sua teoria dos impulsos
(Triebe) – uma vez que remete a expressões instintuais, ou seja, a manifestações resultantes
da dinâmica da relação entre os impulsos (Triebe) aquilo que antes constituía um domínio
bem definido de territórios diferenciados –, pode-se compreender que psicologia e
fisiologia coincidam para Nietzsche no sentido de serem manifestações advindas de uma
mesma origem. A nova psicologia, ou fisiopsicologia, enquanto teoria do condicionamento
mútuo dos impulsos (Triebe) (cf. JGB/BM § 23), deverá ser o campo de estudo do novo
psicólogo, que investigará a manifestação das configurações desses impulsos (Triebe) que
condicionam a vida e sua influência na economia global da vida. É assim que o filósofo
almeja garantir outra vez à psicologia o título de ―rainha das ciências‖ (cf. JGB/BM § 23).
Referências Bibliográficas:
FREZZATTI Jr., W. A. A recepção de Nietzsche na França: da Revue philosophique de La France et
de l‟Étranger ao período entreguerras. São Paulo, 2012. Cadernos Nietzsche, n. 30, p. 59-99.
___________. Nietzsche e Théodule Ribot: Psicologia e Superação da Metafísica. Natureza
humana
(online).
vol.12,
n.2,
p.
1-28,
2010.
Disponível
em:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo. Consultado em 30/09/2013.
MÜLLER-LAUTER, W. Décadence artística enquanto décadence fisiológica: a propósito da crítica
tardia de Friedrich Nietzsche a Richard Wagner. In: Cadernos Nietzsche. São Paulo, n. 6, p.
11-30, 1999.
NIETZSCHE, F. W. A Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
___________. Além do Bem e do Mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo:
Companhia das Letras, 1992.
______. Fragmentos Póstumos. Diego Sánchez Meca (org.). 2a ed. Madri: Tecnos, 2008, v. IIV.
______. Humano, demasiado humano - vol. 1. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
______. O Anticristo: maldição ao cristianismo: ditirambos de Dionísio. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007.
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440
DA INFLUÊNCIA ILUMINISMO AO DESENVOLVIMENTO DA
CONSCIÊNCIA MORAL NA NOVA PEDAGOGIA DE JEAN-JACQUES
ROUSSEAU
Marisa Ignes Orsolin Morgan154
UPF/CAPES
Orientador: Prof. Dr. Ângelo Vitório Cenci
[email protected]
Zaira Canci155
UPF/FAPERGS
[email protected]
Orientador: Prof. Dr. Claudio Almir Dalbosco
RESUMO: A proposta deste artigo é apresentar a relação entre a educação natural no
Emílio e a educação para a liberdade e autonomia. Iniciaremos com uma breve
contextualização da influência iluminista no projeto educacional de Rousseau tendo a
natureza como referência normativa da educação buscando salientar aspectos da
fundamentação do projeto educativo de Rousseau que propõe uma nova maneira de pensar
e perceber a criança e sua infância. Enfatizamos o papel da educação natural no
desenvolvimento da consciência moral com o aprofundamento da concepção
rousseauniana
de
educação
negativa
mediante
a
moralidade
apresentando
o
desenvolvimento cognitivo e moral nas diferentes fases.
Palavras-chave: Conceito 1. Infância. Conceito 2. Liberdade. Conceito 3.Razão
1. A Influência iluminista no projeto educacional de Jean-Jacques Rousseau
Para tratar do sistema educacional de Rousseau é indispensável citar o contexto
histórico no qual o filósofo estava inserido e observar as influências do período para o
desenvolvimento das ideias que deram origem a uma das mais importantes obras sobre a
pedagogia. É importante delimitar a influência dos ideais iluministas na constituição do
Mestranda em Educação do programa de pós-graduação da Universidade de Passo Fundo. Graduação em
Serviço Social pela mesma.
155 Mestranda em Educação do programa de pós-graduação da Universidade de Passo Fundo. Graduação em
Filosofia/LP pela mesma.
154
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441
Émile, descrevendo o peso e a importância da tradição antiga na base do projeto
educacional do filósofo.
Rousseau estabelece um novo conceito de razão dentro de um período que exaltava
a superioridade da racionalidade. Já de início o filósofo se mostra um crítico, indo além das
peculiaridades da época e até mesmo mostrando-se a frente de seu tempo. Isso significa
dizer que além de enxergar a definição errada de razão o filósofo entendia os males
possíveis de se acreditar na inefabilidade atribuída à racionalidade humana. Exatamente
como crítico da razão ele observa a importância de buscar uma compreensão de infância
que priorize o desenvolvimento pleno da criança, entendendo-a como um ser em
desenvolvimento que carece de compreensão e atenção particulares.
Este movimento define exatamente como se encontrava o espírito humano neste
período de mudanças. O iluminismo não aconteceu de maneira imediata no século XVIII,
ele é resultado de transformações e reformas de pensamento que datam deste o século XV
e, principalmente com a revolução cartesiana do século XVIII.
O iluminismo é compreendido como o século da luzes. Nome atribuído a
valorização racional em contrapartida ao abandono da fé e da religiosidade que ligava o
homem europeu a igreja. Neste período o homem se liberta do conhecimento dizimado
pela fé em Deus para atribuir todo e qualquer conhecimento a razão. A partir de então o
sujeito passa a dirigir suas vontades e suas ações tendo como guia unicamente a sua
racionalidade.
Jean-Jacques Rousseau posicionou-se frente à concepção ingênua que igualava a
felicidade humana ao progresso da ciência de maneira diferente. De acordo com Dalbosco
―(...) segundo ele, o progresso das ciências e das artes não significam o melhoramento
moral, mas sim a depravação humana‖ (2011a, p. 118), principalmente se em conjunto
caminhasse a educação tradicional do qual o filósofo era crítico. Rousseau criticava a
educação da época principalmente porque esta não respeitava o processo de
desenvolvimento da própria criança considerando-a um adulto em miniatura sem
necessidades e aspirações próprias da sua condição de infante.
Além disso, para contrariar o potencial emancipatório concedido exclusivamente a
razão o filósofo desenvolveu o mito do bom selvagem. Ou seja, Rousseau propõe a volta
do homem ao que lhe é natural, opondo-se a vida artificial da sociedade moderna. Ele faz
uma defesa a vida verdadeira, baseada na simplicidade e no que é essencial ao homem. O
bom selvagem é o conceito que o filósofo criou para contrariar a vida artificial das cidades
e, principalmente da vida parisiense. O argumento que lhe serviu de base é que quanto mais
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442
o homem se socializaria mais ele se depravaria moralmente. Seu pessimismo diante do
progresso estaria no fato de que ―(...) o progresso econômico-social seria a principal causa
da corrupção dos costumes‖ (DALBOSCO, 2011a, p. 120).
Quando o filósofo propõe uma volta à natureza, não significa dizer que ele
pretende que o homem abandone a sociedade e volte à natureza esquecendo todas as suas
conquistas de até então. Até mesmo porque isso seria impossível. O que ele propõe é o
abandono do artificialismo da sociedade do consumo e das aparências para que
integralmente o homem consiga desenvolver as suas potencialidades físicas e mentais. O
retorno do homem ao que lhe é natural é a proposta de Rousseau para que o homem volte
a sua interioridade.
2
A natureza como referência normativa da educação
A natureza assume papel de destaque na teoria educacional de Rousseau
desempenhando sentido normativo quanto á inserção do homem na ordem do mundo. A
normatividade assumida pela natureza acompanha o crescimento do homem frente a sua
condição finita dentro da ordem das coisas. Prepara-o para aceitar a precariedade que a sua
condição de ser humano lhe faz inerente, por isso possui caráter normativo-pedagógico.
A natureza é o primeiro mestre do homem. Logo ao nascer nos deparamos com
sua força condutora capaz de orientar os homens diante de sua existência causal em um
mundo onde sua condição finita lhe mostra o quanto precária é sua condição. ―Sua força
normativa consiste no fato de que, ao ser origem da própria razão, pode inspirar o ser
humano a seguir em frente, (...) a superar o fato mais dramático de sua existência (...)‖
(DALBOSCO, 2011b, p. 70), sua finitude consciente.
A natureza, desde a tenra infância, coloca o sujeito diante de sua força. Há aspectos
regulares e leis físicas que servem de exemplos e lições para que, desde o início da sua
existência, o homem entenda que nem tudo está ao alcance de suas forças, que nem todos
os seus desejos podem ser realizados. Neste momento a natureza expõe a existência de
uma ordem e, consequentemente, de uma série de fenômenos que acontecem sem a
participação do homem. A criança desde muito cedo aprende a respeitas regras e leis,
primeiramente da natureza, respectivamente as leis sociais. Diante disso ele se percebe
como um ser pequeno diante de algo que lhe é muito maior.
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443
A dor é necessária para o aprendizado, pois é natural ao homem. ―Sofrer é a
primeira coisa que ele deverá aprender, e a que ele terá maior necessidade de saber‖
(ROUSSEAU, 2004, p. 70). O filósofo atesta para importância de educar o homem para as
intempéries da natureza. Isso significa dizer que a criança não deve ser poupada do
sofrimento, das angústias e das dores físicas. Ao vivenciar experiências, como pequenas
quedas, por exemplo, a criança estará aprendendo a usar corretamente sua força. Neste
ponto conseguirá medir seus passos para não mais cair. Deste modo estará se preparando
para a autonomia, pois não irá carecer do auxílio de mais ninguém a não ser de suas forças
para pular um obstáculo, ou apanhar uma fruta no pé, por exemplo. ―Junto com a força,
desenvolve-se o conhecimento, que as põe em condição de dirigi-la‖ (ROUSSEAU, 2004,
p.71). Quando o infante conseguir conciliar seus desejos com suas forças será realmente
livre. Não é preciso ensinar-lhes o que é a liberdade, eles aprenderão vivendo e
experimentando e assim realmente a entenderão.
Inicialmente a natureza deu ao homem apenas os desejos necessários à sua
sobrevivência e, consequentemente, as faculdades para tal. As demais pulsões ficaram no
fundo de sua alma para serem desenvolvidas de acordo com a necessidade. Quanto mais
permanecer perto da natureza, longe da falsidade mais feliz o homem será. ―Nunca ele é
menos miserável do que quando parece carente de tudo, pois a miséria não consiste na
privação das coisas, mas na necessidade que sentimos dela‖ (Rousseau, 2004, p.75).
Com esta frase o filósofo ressalta sua crítica a respeito da sociedade moderna. Segundo ele,
os homens se depravam ao se tornarem sociais em excesso, ou seja, desenvolvendo
necessidades que antes lhe eram estranhas e que se tornam senhoras das suas vontades e de
sua razão.
Nisso tudo consiste a liberdade. O homem verdadeiramente livre só quer o que
pode realizar com as suas próprias forças. A sociedade enfraqueceu este homem. Entendese por homem forte aquele que age de acordo com a força que possui. Na sociedade civil
os adultos trazem até as crianças suas primeiras necessidades falsas, estimulando seus
desejos por coisas que a criança sozinha, como veio ao mundo, jamais precisaria.
A felicidade é condição natural do homem e o acompanha desde o seu nascimento.
O homem livre é aquele que basta a si próprio, é o caso daquele que vive sob o estado de
natureza. A criança tem sua liberdade limitada pela sua condição ao nascer, de ser fraca,
essa condição lhe é muito importante. Os adultos não são livres quando suas necessidades
ultrapassam as suas forças e para satisfazê-las precisam aliar-se aos outros, tornando-se
duplamente dependentes, dos seus desejos e dos outros.
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444
Há dois tipos de dependência; a das coisas, que é da natureza, e a dos homens, que
é da sociedade. A dependência das coisas por não conter moralidade não gera vícios, a dos
homens é o seu contrário. O caminho para remediar este mal é substituir o homem pela lei,
ou seja, tornar as vontades particulares em vontades gerais, deste modo as leis das nações
seriam como as leis da natureza, invioláveis.
A natureza quer que as crianças sejam crianças antes de serem homens, por isso
nascem sensíveis e não racionais. ―Se quisermos perverter essa ordem, produziremos frutos
temporões (...)‖ (ROUSSEAU, 2004, p. 91). A criança deve receber lições de suas
experiências. Primeiramente sua educação deve ser negativa, ou seja, não convêm a ela
aprender sobre virtude, verdade ou moralidade, mas sua educação deve preveni - lá ―(...)
contra o vício e o espírito contra o erro‖ (ROUSSEAU, 2004, p. 97). É exercitando seu
corpo, seus sentidos, sua força que se estará educando e não estimulando seus julgamentos
que aprenderá o que é liberdade, moralidade. Ela precisa vivenciar livremente esses
conceitos no decorrer do seu desenvolvimento pois apenas assim os aprenderá
verdadeiramente.
A natureza dispõe de meios naturais para promover o desenvolvimento saudável
do infante. Rousseau é crítico da pedagogia tradicional, pois não entende a necessidade de
educar segundo os preceitos racionais. Para o filósofo a criança é antes um ser sensível que
precisa, primeiramente, desenvolver suas forças e emoções. A natureza é o ambiente
favorável para tal, a melhor maneira de educar é considerando o infante no infante, com
todas as suas particularidades para depois prepará-lo para viver em sociedade e,
consequentemente para o mundo.
2.1
O desenvolvimento da consciência moral
A concepção educativa descrita no ―Émile”, por Rousseau, demonstra que a ―(...)
educação moral também está baseada na idade e no desenvolvimento das faculdades do
educando‖ (CENCI, 2011, p.153).
A educação moral na infância tem como base o contexto da educação negativa, pois
busca prevenir os vícios, sem moldar as virtudes. Preparando o desenvolvimento das
faculdades humanas, ao seu devido tempo, buscando a preparação para a superação de
obstáculos que se apresentam no processo de amadurecimento individual do educando.
Sendo assim:
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445
A educação primeira deve, portanto ser puramente negativa. Ela
consiste, não em ensinar a virtude ou a verdade, mas em preservar o
coração do vício e o espírito do erro. Se pudésseis conduzir vosso aluno
são e robusto, até a idade de doze anos, sem que ele soubesse distinguir
sua mão direita de sua mão esquerda, logo às vossas primeiras lições os
olhos de seu entendimento se abririam para a razão. Sem preconceitos,
sem hábitos, nada teria ele em si que pudesse contrariar o resultado de
vossos cuidados. Logo, ele se tornaria em vossas mãos, o mais sensato
dos homens; e começando por nada fazer terei feito um prodígio de
educação (ROUSSEAU, p.80, 1995).
A educação natural propõe a preparação do educando para o convívio em uma
sociedade democrática, que não deve retirar do homem sua liberdade nem corrompê-lo.
Uma sociedade justa que se propõe a vontade geral dos homens. Sendo que a formação da
vontade geral ocorre através da educação. Portanto, a criança deve aprender a não ser
individualista, deve aprender a passar da vontade individual para a vontade coletiva. A
educação é o desenvolvimento das potencialidades naturais, assim é natural do humano
socializar-se e é a natureza que normatiza todas as potencialidades.
Para Rousseau, a entrada do educando na ordem moral e social ocorre
simultaneamente na adolescência com o aperfeiçoamento do espírito e do julgamento pelo
desenvolvimento da razão:
O educando ultrapassa a fase em que se conhecia pelo seu físico e era
estudado em suas relações com as coisas para se perceber pelo seu ser
moral, devendo ser estudado em suas relações com os outros. Sua
sensibilidade desenvolve-se de modo que ultrapasse os limites de si
próprio e estende-se aos seus semelhantes (CENCI, 2011, P. 147).
O novo nascimento, na fase da adolescência, proporcionará ao educando, no
relacionamento com os outros humanos, sentir sua moral, ou seja, perceber que as relações
não se constituem apenas pela utilidade. Nesta fase as relações humanas começam a
despontar como relações sociais. Ampliam-se os sentimentos e intensificam-se as paixões.
Deverá o educador empenhar-se em afastar o educando dos sentimentos de inveja e
vaidade, propiciando situação em que elas sejam experenciadas para que sintam seus efeitos
negativos aprendendo a superá-los.
Experenciar o mundo e a si próprio no mundo é a forma do educando conhecer o
mundo, experimentando-o aos poucos tanto de forma sensorial como espiritual. Essa
experiência demanda o envolvimento do educando, com vistas a evitar o risco ao
moralismo. Esta experimentação impede a imposição de verdes morais abstratas, isso
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446
considerado que o conhecimento e formação moral têm como fonte a própria experiência
e a experiência do educador. A passagem da liberdade natural para a moral exige do
educando a capacidade de autocontrole do sujeito, o domínio das emoções e paixões.
Segundo Rousseau, a educação moral deve ser amparada ao ensino de regras e ao
desenvolvimento do caráter. Deste modo se manifestará no comportamento expressivo de
virtudes tradicionalmente conhecidas e respeitadas, tais como a honestidade, a coragem, o
controle de si mesmo, a solidariedade e o respeito ao próximo. A maior parte dos
programas tem como objetivo realçar essas virtudes, de modo que se tornassem princípios
internos que orientem o comportamento e as decisões a serem tomadas. Os meios para a
realização de tal objetivo são fundamentalmente, como os de confrontação entre o
comportamento do adolescente e o exemplo dos adultos ou jovens maiores que possuem
virtudes específicas, ilustrando estas virtudes, recompensando a prática e punindo a
omissão das mesmas.
A educação proposta por Rousseau é a da liberdade ou da natureza. Por ela, o
homem adquire a possibilidade de penetrar na sua interioridade, alcançar a liberdade e dar
significado à sua existência, considerar a si e ao outro; perceber o outro como extensão de
si próprio. O principal objetivo da educação é formar o homem livre, capaz de se defender
contra todas as influências negativas advindas da sociedade.
No processo de formação cognitiva a criança tem de ser levada a desenvolver um
modo de decidir e agir de acordo com seus desejos, vontades e limites impostos pela
natureza. Ela deverá por si só reconhecer suas limitações. Ser livre é algo natural ao
homem, mas para o convívio social o respeito e o limite são necessários. A criança não
pode ter tudo o quer e isso gera sentimentos de frustração e raiva. Cabe ao processo de
formação cognitiva equilibrar os sentimentos existentes na consciência moral. Tomar a voz
da natureza como norma das paixões, sentimentos, dos afetos e das ações. Este deve ser o
caminho para que mais tarde haja o desenvolvimento da voz da consciência.
Neste contexto geral a tarefa mais elementar da educação natural em Rousseau
consiste na tensão entre os envolvidos no processo pedagógico, sabendo que ―A formação
humana, quer seja na direção cooperativa/solidária ou individualista/ egoísta, não é uma
determinação somente externa e estranha aos envolvidos, mas depende também das suas
decisões e opções‖ (DALBOSCO, 2011b, p.138).
O objetivo principal da educação moral é ―(...) assegurar a passagem da
dependência para a independência‖ (DALBOSCO, 201b, p.34).
Rousseau estabelece
tarefas específicas da passagem da educação natural para a educação moral ensinando ao
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447
jovem que o homem é ―naturalmente bom‖ e deve julgá-lo por si mesmo, também cabe ao
jovem compreender e analisar criticamente a sociedade. Desta forma a maioridade é
apresentada como condição da dignidade humana. Segundo Dalbosco, (p.36, 2011b) ―Tal
concepção remete-nos para a conclusão de que a meta da educação moral é formar um
homem capaz de julgar e agir coerente e autonomamente (...)‖.
A base da educação natural é a liberdade humana ligada à razão, a consciência e a
vontade de si. A natureza humana é à base do direito e da liberdade. A natureza deve ser o
guia da moral. A voz da consciência nos ajuda a decidir por conta própria, ou seja, nos
ajuda a desenvolver a autonomia. Voltar à natureza é ouvir a voz da consciência e controlar
o amor próprio desenvolvendo o amor de si. Somente assim atingimos uma subjetividade
autêntica.
Assim sendo, o papel da educação não se limita simplesmente ao aprimoramento
humano, mas faz com que o educando se compreenda enquanto ser social e reconheça seus
direitos e deveres, pois a moral constitui-se do resultado da sua relação com a sociedade,
tendo papel fundamental na educação social. Portanto, é função da pedagogia natural
desenvolver uma formação racional, autônoma e sensível.
4. Considerações Finais
Rousseau opõe-se à educação como transmissão de valores, de conhecimentos e
informações. Opõe-se à educação que procura moldar a natureza da criança com padrões
pré-estabelecidos, isto é, com maneiras de pensar, agir e sentir pré-determinados. Para ele a
educação é um processo natural da vida humana e não se constitui em uma preparação para
um futuro distante da infância. A educação se faz a todo o momento, em todo lugar.
Conferindo liberdade às forças naturais, o educador transforma o processo de
desenvolvimento na possibilidade de uma vida racional, produtiva e criativa. Com ele
instaura-se uma nova maneira de pensar o homem, reconhecendo-lhe a capacidade de
dirigir o seu próprio eu, firmar sua liberdade, sua identidade.
A visão pedagógica do Emílio ou da Educação, reside na compreensão do fenômeno
educacional como formação do sujeito e do processo de subjetivação, que se constrói no
tempo e na história, indo da infância à idade adulta. Sendo cada uma das etapas: a criança,
o adolescente e o homem adulto, devem ser vistas em suas inter-relações e em suas
especificidades.
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448
Referências Bibliográficas:
DALBOSCO, Cláudio. A. Educação Natural em Rousseau: das necessidades da criança e dos cuidados
do adulto. São Paulo: Cortez, 2011a.
CENCI, Ângelo.V. A Formação moral e o papel do educador no livro IV do Emílio. In:
DALBOSCO, C. A. (ORG.). Filosofia e Educação no Emílio de Rousseau: o papel do educador
como governante. São Paulo: Alínea, 2011b. p. 147-167.
KANT, Immanuel. Textos seletos. Rio de Janeiro: Vozes, 1985.
ROUSSEAU, Emílio ou da Educação. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995.
ROUSSEAU, Emílio ou da Educação. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
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449
REFLEXÕES SOBRE AS MANIFESTAÇÕES DE JUNHO DE 2013 E A TEORIA
DO RECONHECIMENTO DE AXEL HONNETH
Maurício Rebelo Martins
UNICAMP/Bolsista FAPESP
[email protected]
RESUMO: A presente comunicação tem o objetivo de analisar as manifestações de junho
de 2013 com a ajuda da Teoria do reconhecimento de Axel Honneth. Não é nosso objetivo
fazer uma análise detalhada desses eventos, pois julgamos que ainda é cedo para essa tarefa
e porque exigiria mais tempo para fazer um resgate histórico do desenvolvimento do
sistema político no Brasil. Nesse sentido, primeiro iremos expor em breves linhas a Teoria
do Reconhecimento de Axel Honneth. Depois, com o auxílio dessa teoria e da análise dos
eventos feita por Marcos Nobre, faremos uma análise das manifestações para tentar
entender o verdadeiro potencial que pode ser extraído desses acontecimentos.
Palavras-chave: Reconhecimento. Manifestações. Sistema. Política.
A Teoria do Reconhecimento de Honneth é a tentativa de formular uma teoria
crítica da sociedade preocupada em interpretar a sociedade a partir de uma única categoria,
isto é, do reconhecimento. Entendemos que as suas teses podem nos ajudar a refletir sobre
os acontecimentos de junho deste ano no Brasil. Não é nosso objetivo fazer uma análise
profunda desses acontecimentos, pois talvez seja cedo para tirar qualquer conclusão sobre
o que aconteceu e principalmente sobre as consequências dessas manifestações. O que
tentaremos nessa comunicação é suscitar o debate sobre essas manifestações e, a partir da
teoria do reconhecimento de Axel Honneth, tentar entender o que levou tantas pessoas as
ruas. Para os fins dessa comunicação, primeiro apresentaremos de forma sucinta as
principais teses de Honneth sobre o reconhecimento e, em seguida, iremos expor nossas
reflexões sobre essas manifestações a luz da teoria do reconhecimento de Honneth e da
análise do filósofo e sociólogo brasileiro Marcos Nobre.
1 A Teoria do Reconhecimento de Axel Honneth
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450
Axel Honneth, filósofo e sociólogo alemão, diretor desde 2001 do Instituto de
Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt, é hoje considerado um dos mais importantes
representantes da Teoria Crítica. Honneth, assim como fez Jürgen Habermas, apresenta a
sua própria posição teórica em confronto com seus antecessores. Nesse sentido, primeiro
ele busca mostrar os limites da ‗teoria da ação comunicativa‘ de Habermas para depois
formular a sua própria posição teórica que pode ser resumida como ‗teoria do
reconhecimento‘.
Sua tese de livre-docência, publicada sob o título de Luta por reconhecimento,
ampliou a notoriedade já alcançada com a sua tese de doutorado publicada com o título
Crítica do poder. No seu Luta por reconhecimento Honneth procura mostrar, a partir de
uma análise de alguns elementos da filosofia do Jovem Hegel, a necessidade de pensar o
processo de construção da identidade (pessoal ou coletiva) a partir dos conflitos sociais.
Temos visto inúmeras tentativas de lidar com os conflitos sociais. No entanto,
quase todas voltadas para a ideia da pacificação ou da acomodação. A novidade
apresentada por Honneth é que a base das interações é o conflito e que sua gramática é a
luta por reconhecimento. Honneth faz do conflito social o motor responsável pela
construção da identidade pessoal ou coletiva.
A teoria do reconhecimento de Honneth é a tentativa de construir uma teoria social
de caráter normativo. Ele parte da proposição de que o conflito é intrínseco tanto à
formação da intersubjetividade como dos próprios sujeitos. Tal conflito não é conduzido
apenas pela lógica da autoconservação dos indivíduos. Trata-se, sobretudo, de uma luta
moral, visto que a organização da sociedade é pautada por obrigações intersubjetivas.
Honneth fala de três formas de reconhecimento. A primeira forma ele chama de
amor ou dedicação emotiva, pois entende que nas relações primárias se expressam fortes
ligações emotivas pelas quais o indivíduo pode adquirir autoconfiança. A segunda forma é a
do direito ou respeito cognitivo, onde as relações jurídicas regulam-se pelos princípios
morais universalistas construídos na modernidade. O sistema jurídico deve expressar
interesses universalizáveis de todos os membros da sociedade, não admitindo privilégios e
gradações e permitindo os indivíduos a aquisição do autorespeito. E a terceira e última
forma de reconhecimento é a da solidariedade ou estima social, onde o indivíduo diante da
comunidade de valores pode adquirir uma estima social que lhe permita referir-se
positivamente a suas propriedades e capacidades concretas. Sobre isso fala Honneth:
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De acordo com isso, são as três formas de reconhecimento do amor, do
direito e da estima que criam primeiramente, tomadas em conjunto, as
condições sociais sob as quais os sujeitos humanos podem chegar a uma
atitude positiva para com eles mesmos; pois só graças à aquisição
cumulativa de autoconfiança, autorespeito e autoestima, como garante
sucessivamente a experiência das três formas de reconhecimento, uma
pessoa é capaz de se conceber de modo irrestrito como um ser
autônomo e individuado e de se identificar com seus objetivos e seus
desejos (HONNETH, 2003, p. 266).
Às três formas do reconhecimento, Honneth associa, respectivamente, três formas
de desrespeito. No caso do amor, o desrespeito aparece nos casos de maus tratos e violação
física. Nesse caso, o que está em jogo é a integridade física do indivíduo. No caso do
direito, o desrespeito se manifesta por meio da privação de direitos e exclusão. É a
integridade social que se desrespeita. E, por fim, no caso da solidariedade, o desrespeito
surge nos casos de degradação e ofensa. A ―honra‖ e a dignidade do indivíduo são
desrespeitadas.
Honneth entende que todas essas formas de desrespeito e degradação impedem a
realização do indivíduo em sua integridade, totalidade. Contudo se, por um lado, o
rebaixamento e a humilhação ameaçam identidades, por outro, eles estão na própria base
da constituição de lutas por reconhecimento. O desrespeito pode tornar-se impulso
motivacional para lutas sociais, à medida que torna evidente que outros atores sociais
impedem a realização daquilo que se entende por bem viver. Dessa forma, a luta por
reconhecimento é fundamental para o desenvolvimento moral da sociedade e dos
indivíduos.
2 As manifestações de junho de 2013 e a Teoria do Reconhecimento de Axel
Honneth
Talvez não seja possível ainda entender as manifestações que ocorreram em junho
deste ano no Brasil. Mas certamente é nosso dever ao menos se perguntar o que levou
tantas pessoas em tantos lugares diferentes saírem às ruas para lutar pelos seus interesses.
Afinal, quando muitos imaginavam e escreviam que o povo brasileiro se encontrava
adormecido e acomodado, presenciamos, pelo menos em números, uma das maiores
manifestações que esse país já viu.
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O que levou essas pessoas as ruas? Talvez esta seja a única pergunta que possamos
tentar responder nesse momento. Está muito claro que as manifestações de junho de 2013
vão além da revogação do aumento das tarifas de transporte e da insatisfação com a má
aplicação dos recursos em mega eventos como a copa do mundo. É uma revolta também
contra a falta de canais de expressão onde a população possa manifestar suas necessidades.
A sociedade não estava encontrando caminhos para expressar o seu protesto, a sua
insatisfação. É uma revolta pelo direito de se manifestar, pela abertura de canais entre a
sociedade e o sistema político.
Também é necessário dizer que a violenta repressão policial às primeiras
manifestações serviu para motivar ainda mais as pessoas a irem às ruas. Quando aconteceu
a repressão policial, os manifestantes indignados gritavam que além de não conseguir mais
influenciar esse sistema político que se fecha nele mesmo, funciona segundo suas próprias
regras e não presta conta à sociedade, o sistema também envia a polícia para desmobilizálos. As ruas ganharam mais manifestantes porque o sistema, além de ferir os indivíduos em
sua dignidade, também resolveu agredir fisicamente.
Não há uma unidade de reivindicações, de foco, a organização é diferente. As
pessoas estão expressando insatisfações de muitos tipos, de muitos níveis. Contudo, parece
inegável que há um traço comum nessas manifestações: existe uma revolta contra o
sistema. Se cada grupo saiu às ruas para lutar pelos seus interesses em particular, todos
também carregavam a bandeira de um movimento apartidário. Em inúmeros lugares no
país podíamos ouvir o grito ‗sem partido‘. Os manifestantes, independente da sua pauta,
sempre deixavam bem claro que se tratava de um movimento que gozava de autonomia em
relação ao governo e a partidos políticos.
Não foi a toa que as manifestações deixaram os nossos representantes políticos
estarrecidos. Não sabiam o que fazer. Em São Paulo foi possível ver o PT e o PSDB darem
as mãos para anunciar a revogação do aumento das passagens. De Brasília vimos a
presidente ir aos meios de comunicação para anunciar que iria ouvir a voz das ruas.
Deputados, vereadores e senadores sumiram dos noticiários, pois não queriam enfrentar as
ruas e se reuniam para entender tudo que estava acontecendo.
Essa revolta, e aqui seguimos os passos de Honneth para nossa análise, é a
manifestação de uma população que se sente desrespeitada e desprezada. Alguns grupos
são desrespeitados quando sofrem maus tratos e violação física, como é o caso dos
homossexuais. Com outros grupos o desrespeito se manifesta por meio da privação de
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direitos e exclusão. E, outros ainda, o desrespeito surge nos casos de degradação e ofensa,
onde a ―honra‖ e a dignidade são desrespeitadas.
De acordo com Honneth, o que motiva esses grupos a saírem e lutarem por
melhores condições é a necessidade de ser reconhecido e respeitado. O interessante é que
para esses grupos o desrespeito maior vem daqueles que deveriam representar seus
interesses. Os manifestantes que saíram as ruas com a bandeira ‗sem partido‘ estavam
externando seu sentimento de revolta contra o desprezo manifestado por aqueles que
foram eleitos para ouvi-los.
Na verdade, talvez esses grupos não tenham feito essa leitura ainda, mas a sua luta
é, também, contra um sistema político blindado. De acordo co Marcos Nobre, em nome de
um acordo de governabilidade, vivemos no Brasil um momento em que não há
verdadeiramente uma oposição. Os partidos políticos, através de várias ações, vêm
construindo um sistema político que tem por objetivo a permanência no poder. Um
exemplo clássico do que falamos é o PMDB. Partido que faz acordo com Deus e o Diabo
para permanecer no poder.
No entanto, se enganam aqueles que ainda procuram uma polarização entre
esquerda e direita. Se for possível falar de oposição, essa só pode ser vista entre aqueles que
estão no poder e aqueles que lá gostariam de estar. No Brasil, infelizmente não existe
opinião pública. Ela foi substituída pela opinião da mídia. E a mídia, através de leituras
superficiais e equivocadas, faz a população crer que existe oposição no Brasil.
Essa blindagem do sistema político transformou os partidos e seus representantes
em uma grande geleia. Não é possível identificar projetos políticos. Aquele que ontem era
seu inimigo amanha pode ser seu aliado. Novas regras são aprovadas apenas para proteger
os partidos políticos. Não é a toa que temos o pleito eleitoral mais avançado do planeta. A
população só é ouvida nos pleitos eleitorais e, ainda assim, parcialmente, pois com as regras
de legenda e coeficiente eleitoral não é possível saber se aquele que você escolheu será
eleito.
De acordo com Honneth, o que move uma sociedade é a luta por reconhecimento.
Quando somos feridos e desrespeitados nos organizamos para lutar pela nossa dignidade.
No caso das manifestações de junho de 2013, é muito claro que a população ao não
encontrar canais de expressão política recorreu às manifestações, algumas violentas, para
ver seu grito por reconhecimento ser atendido.
Nesse sentido, é inegável a força e importância que a internet e as redes tiveram
para organizar essas manifestações. Num país onde a imprensa é quem forma a opinião, as
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redes são um espaço verdadeiramente democrático. Se for verdade que encontramos muito
lixo na internet, também é verdade que as redes proporcionam um espaço aonde a opinião
vai sendo construída através do diálogo.
Infelizmente, nesse momento, encontramos muitas leituras que tentam neutralizar
essas manifestações. Algumas dizendo que é estratégia da oposição, e aqui se leia PSDB, e
outras que é estratégia da situação. Alguns, ignorando a força das manifestações, afirmam
pejorativamente se tratar do movimento de classe média. Outros ainda chegam a temer que
por se tratar de um movimento sem partido seja uma manobra de apoiadores de uma
ditadura militar. Enfim, leituras que se pretendem definitivas e quem não conseguem
enxergar o verdadeiro potencial dessas manifestações.
A crítica mais comum ouvida durante as manifestações é que não existe uma pauta
unificada por parte dos manifestantes. Isso é dito com o objetivo de neutralizar e
desmobilizar os manifestantes. Contudo, como Honneth nos ajudaria a compreender,
numa sociedade plural e complexa, não existe apenas ‗um‘ interesse. Cada indivíduo luta
para ser respeitado onde foi desprezado e ferido. Mesmo assim, com já dissemos, o traço
comum dessas manifestações é a luta contra esse sistema político blindado.
Nesse sentido, e aqui vamos concluído essa comunicação, o grande potencial dessas
manifestações é perceber que a população está cansada desse sistema político que privilegia
a perpetuação no poder. O grito das ruas é contra um sistema que se fecha cada vez mais e
que permite acordos absurdos, trocas de favores, corrupção e coligações que ignoram as
verdadeiras necessidades da população. Tal qual está, o sistema político e seus partidos se
constituem numa força despolitizadora da sociedade.
Este é o momento para aprofundarmos a democracia em nosso país. Talvez seja
necessário dar autonomia para os municípios e descentralizar os recursos, pois a
centralização dos recursos é um exemplo de um sistema político que se fecha em si mesmo
e que torna os estados e municípios dependentes do governo federal. Também não se pode
barganhar menos desigualdade social por uma cultura política de baixo teor democrático.
O Brasil precisa aprofundar a democracia. Talvez algumas leituras estejam corretas
quando afirmam que essas manifestações são perigosas. Afinal, aprofundar a democracia
sempre traz riscos. Mas não podemos fechar os olhos e ouvidos para o clamor das ruas.
Muitos desses jovens não são capazes de fazer uma leitura de tudo que está acontecendo,
mas esse é o momento de aproveitar para formar novas lideranças e ajudar esses jovens a
compreender que a democracia é uma forma de vida que penetra fundo no nosso
cotidiano.
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455
Enfim, as manifestações de junho de 2013 podem servir para um processo de
politização e aprofundamento da democracia no país. Nesse sentido, é necessário que toda
a sociedade seja capaz de se engajar nesse processo de destruição dessa blindagem do
sistema político. Afinal, como afirma Marcos Nobre,
Todas essas frentes de combate, todas as possíveis saídas e alternativas,
dependem de mobilizações sociais densas o suficiente para acuar o
sistema político e obrigá-lo a mudar, como se viu nas ruas em junho de
2013. Mobilizações como essas podem adquirir formas e caminhos
muito diversos. Na história brasileira – mas não só –, mobilizações de
largo espectro e alcance vieram acompanhadas de convergências mais
amplas, que não passavam apenas pela política. A aglutinação de forças
de transformação costuma vir acompanhada de efervescência e ebulição
cultural, com destaque para as manifestações artísticas. (NOBRE, 2013,
p. 31).
Referências Bibliográficas:
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais. São
Paulo: Editora 34, 2003.
NOBRE, M. Choque de democracia: Razões da revolta. São Paulo: Companhia das letras,
2013.
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A “PRESENÇA” NA FILOSOFIA CONCRETA DE GABRIEL MARCEL
Nadimir Silveira de Quadros
PIBID
[email protected]
Prof. Dr. Claudinei Aparecido de Freitas da Silva.
RESUMO: O conceito de presença na filosofia concreta de Gabriel Marcel aponta para a
direção em que o homem possa reencontrar além do idealismo clássico, uma filosofia do
ser. A existencialidade do homem se dá na sua participação com o outro, na medida em
que ela não é objetivável. Há uma reflexão primeira que deve ser superada pela reflexão
segunda, a participação no mistério do ser, visando superar a mentalidade subjetivista e
conferindo estatuto a uma ontologia da presença. A intersubjetividade se dá na presença do
tu, quando participo da presença do outro no ser-com. Ser é coexistir com o outro. A
intersubjetividade é a expressão máxima de abertura para o outro.
Palavras-chave: Intersubjetividade. Mistério. Presença. Problema.
O propósito do filósofo foi de demonstrar que o idealismo e também o
bergsonismo não permitiam o acesso ao ser concreto. Tratava-se de estabelecer que na
intuição o ser é dado, mas não dado por ela, donde a imanência do ser ao espírito e a
transcendência do pensamento em relação ao saber sempre foram regidos pelos processos
de objetivação. O autor aponta para esta ideia quando escreve, que:
Deve-se voltar a examinar de perto o que disse da intuição, porque ainda
não fica perfeitamente claro para mim. No fundo, trata-se de uma
intuição que seria, em certo modo, eficiente e puramente eficiente – da
qual em definitiva eu não poderia dispor de modo algum. Porém, cuja
presença se manifestaria na inquietude ontológica que se exerce na
reflexão. Para aclarar isto, haveria de partir de um exemplo, de uma
ilustração: talvez a exigência da pureza ou inclusive da verdade. Esta
intuição não está em mim. Há aqui algo para averiguar se não se quer
permanecer nas negações. No fundo, o que nos leva a admitir esta
intuição é o fato de refletir sobre o paradoxo de que eu mesmo não sei o que
creio (paradoxo que atraiu minha atenção desde muito tempo e que está
por aprofundar e precisar). Espontaneamente se admite o contrário: quer
dizer, que posso fazer uma espécie de inventário de meus objetos de
crença ou também uma ―separação‖ entre o que creio e o que não creio, o
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que implica que me é dado ou me é sensível uma diferença entre aquilo ao
qual me adiro e aquilo ao qual não adiro. (MARCEL, 1969, p.151).
Segundo o autor, a existencialidade é a participação na medida em que esta é nãoobjetivável:
(...) tendemos a considerar espontaneamente a existência de uma coisa
como o fato e que esteja aí, porém, ao mesmo tempo, de que possa
deixar de estar aí ou em alguma parte e, portanto, nesta ordem todas as
vicissitudes são possíveis, todos os deslocamentos, todas as destruições.
Porém, se concentro minha atenção sobre o simples fato de que eu
existo ou inclusive de que tal ser ao qual eu quero existe, troca a
perspectiva; existir já não quer dizer simplesmente estar aí ou estar em outra
parte, o que provavelmente significa em essência transcender a oposição
que existe entre o aqui e qualquer outro lugar. (MARCEL, 2002, p.219).
Marcel critica o que ele chama de ―reflexão primeira‖, denunciando as armadilhas e
as facilidades centradas no verificável, que se tornou impotente para chegar a intensidade
do existencial – corporeidade, relação com outrem. Agora, confrontado ao tema
bergsoniano de intuição, tema dificilmente contornável na França da época, Marcel sugere
a expressão ―intuição reflexiva‖, entendendo esta expressão como uma forma de
instrumento para o pensamento, mas ao mesmo tempo reconhecendo ser uma expressão
não muito feliz para explicar o modo como me coloco diante de mim mesmo, do ser.
Situado diante do ser, num sentido o percebo, mas em outro não, pois não posso me
perceber de modo que possa ver o ser (MARCEL, 1969, p. 121).
A intuição reflexiva é
uma intuição que, sem ser para si, não se possui ela mesma senão através dos modos de
experiência e dos pensamentos que ela ilumina ao transcendê-los. A ―reflexão segunda‖
será a atenção dada a essa antecedência, que não é outra coisa senão minha participação no
―mistério do ser‖, cuja expressão é o título da obra principal de estudo deste trabalho.
Marcel propõe a ideia de uma reflexão segunda que dê acesso ao
―metaproblemático‖, isto é, ao mistério em virtude de uma fidelidade criadora que ignora a
fragmentação do tempo. A originalidade da filosofia de Marcel consiste na análise da
existência, conferindo estatuto a uma ontologia da presença a partir da fidelidade, do amor
e da esperança, sem deixar de tematizar o vínculo da existência com o ser. Nesse contexto,
o filósofo parte da situação fundamental do homem como ser encarnado, vinculado à
realidade concreta, postulando a sua comunhão íntima e pessoal com o Ser, que exige
transcendência, do existente concreto chegando ao Tu. A experiência da presença, em
Marcel, não é espacial, objetiva, impessoal, mas metaempírica e relacional, que segundo o
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autor em seu ensaio ―Existência e objetividade‖, ―está presente a quem a considere, no
misterioso poder de sí que se levanta diante do espectador, (...) o poder de afetar de mil
maneiras o ser de quem o contempla e o experimenta‖ (MARCEL, 1927, p.110). O existir é
uma presença que me envolve, me afeta em todo o meu ser, como uma participação
imediata que chamamos de sujeito, uma participação que não compreende fronteiras.
Desse modo, Marcel visa superar a mentalidade objetivista, ou seja, o modo cientificista e
substancialista (MARCEL, 1927, p. 322). Marcel, ainda se pergunta, ―(...) se não é mediante
a presença, que se pode passar da existencia ao valor‖ (MARCEL, 1927, p. 308), pois quem
trata o homem como coisa, seguirá fechado para sempre ao mistério da pessoa, sendo este
homem não mais que outra coisa entre as coisas.
Há uma relação profunda entre mistério e presença, pois o mistério não é sinônimo
do desconhecido, mas é apenas um caso-limite do problemático. O sujeito está imerso no
ser e não dispõe sobre ele. Para Marcel, a expressão ―mistério do ser‖ é expressão
ontológica em oposição ao ―problema do ser‖. Nessa medida, Marcel chama a atenção para
o fato de se torna próprio do mistério ser reconhecido enquanto que, no nível do problema
é algo que obstaculiza, que se encontra diante do caminho, estando inteiramente diante de
mim. O mistério é algo em que me encontro comprometido, presença definida, um
reconhecimento que é de ordem ontológica. (MARCEL, 2003, p. 93-94).
Se o objeto está ligado a todo um conjunto de habilidades, que por sua vez lhe dá
condições de ensinar-se e transmitir-se, o mesmo não acontece com a presença, pois,
ninguém tem condições de expressar a sua presença sem que se mostre misteriosamente
diante de outrem, não sendo presença uma forma de transmissão, pois está além da
apreensão, podendo apenas invocar-se ou evocar-se, e não sendo, por outro lado,
percebida mais que de forma intermitente. (MARCEL, 2002, p. 188). Para o autor, todas as
realidades estão ligadas à existência humana, sem que se façam abstrações, pois estou
comprometido com elas e todas ocupam um lugar de mistério diante de mim.
A intersubjetividade como presença do tu
Dentro da filosofia concreta de Gabriel Marcel há uma atenção crítica ao mundo
técnico urbano, que provoca relações cada vez mais anônimas e vazias de participação,
relações vazias de amizade e cooperação. Tal cenário provoca o homem cada vez mais a
uma existência egoísta e solipsista, reduzindo-o a meras relações objetivas e impessoais.
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Como já mencionado, a Primeira Guerra Mundial fez com que o homem europeu
indagasse se o espírito humano poderia superar o que ele mesmo construiu, ou ainda, se
este espírito poderia reconstruir o que ele mesmo destruiu. Como nota ainda Zilles, na
guerra, o indivíduo faz a dura experiência de que não é segurança para si mesmo, mas que a
verdadeira segurança está no encontro com seres dotados de interioridade (ZILLES, 1995,
p.65-66). A segurança de si está no outro.
Com a experiência da guerra, Marcel descobre que, para além da objetividade, a
pessoa pode tornar-se presença. Tal realidade não se pode constatar de fora. A presença
não se deve pensar como objeto. O ato que me envolve com um ser sempre tem o caráter
correspondente à atividade do pensamento que deve ser concebido como criador. A
presença do tu emerge num contexto existencial quando participo da existência do outro
no ser-com, tornando-se uma presença intersubjetiva, não objetivável. Observa Marcel:
Quando trato o outro como ele, reduzo-o a uma natureza: um objeto
animado que funciona desta e não daquela outra maneira. Ao contrário,
tratando o outro como tu, trato-o e recebo-o como liberdade; apreendoo como liberdade, porque também é liberdade e não apenas natureza.
Ainda mais: ajudo-o de algum modo a ser libertado, colaboro para a sua
liberdade. (MARCEL, 1969, p. 131).
O autor trata do dado mais imediato e indubitável de sua metafísica concreta, que
se apresenta na intimidade mais radical e primária do que podemos chamar de existência,
sendo esse dado a própria encarnação desse homem. Indubitavelmente a encarnação é o
dado de mais alto grau da presença, sustentando todas as nossas afirmações. Ser é
coexistência com outrem, é projetar-se e conviver, é o ser-com. Agora, o princípio
metafísico fundamental não é mais o ―eu penso‖, mas o ―nós somos‖, ou seja, podemos
afirmar que eu existo na medida em que me relaciono com os outros. A intersubjetividade
torna-se participação amorosa como comenta Carmona (CARMONA, 2002, p.145). O eu
somente se pode afirmar eu caso exista um outro, pois para afirmar-se necessita referir-se a
um outro, diferente das teorias idealistas, que o eu é uma mera coincidência de si, ou um
não existente. Vejamos como Marcel ilustra essa referência acerca do outro:
Um desconhecido se dirige ao nosso jovem. Este começa por sentir a
seu interlocutor como um puro ele: por que me dirige a palavra? Que
quer de mim? Será por causalidade maligna? Deve ter cuidado. Não se
quer comprometer com nenhuma resposta. Precisamente porque está na
defensiva nosso jovem se encontra no menor grau possível com os
demais. Porque em geral pode dizer-se que a relação com é precisamente a
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intersubjetiva por excelência e que não tem e não pode ter relação no
mundo dos objetos, que é em seu conjunto um mundo de pura
justaposição. Retomemos o exemplo e suponhamos que a conversação
toma seu caráter mais íntimo. ―Estou encantado de conhecê-lo‖, disse ao
estranho: ―em outro tempo conheci seus pais‖; nesse momento cria-se
um laço e, sobretudo se relaxa a tensão. O jovem deixa de centrar a
atenção em si mesmo como se algo se distendesse em seu interior. Sentese transportado além desse aqui e agora ao que, se se me perdoa uma
comparação trivial, seu eu se encontrava pregado como um curativo a
uma ferida. Disse transportado e o curioso é que esse desconhecido o
acompanha nessa espécie de viagem mágica. Estão juntos em outro lugar
que, contudo, apresenta um caráter de misteriosa intimidade. (MARCEL,
2002, p.163)
A intersubjetividade guarda, segundo o autor, um segredo. Esta é uma característica
peculiar da intersubjetividade, que põe em relevo seu significado sempre positivo. A
intersubjetividade não pode ser pensada como um conhecimento abstrato, senão, mediante
um conhecimento concreto, vivenciado, existencial, como no caso do amor. Este amor se
encontra num determinado ponto da relação, que somente se poderá descobrir se o eu se
permitir lançar-se ao tu. Ao permitir que o outro, ser encarnado concreto, diante do eu, no
em mim, se aproxime, dois seres humanos se encontram como tais, como dois tu e não
como dois objetos ou dois seres em que a única coisa que fazem é trocar informações,
conforme nota Pérez (PÉREZ, 2002, p.178). A intersubjetividade é a expressão máxima do
homem para abrir-se aos outros e encontrar-se com todos, sem, no entanto, objetivá-los.
Quando isso acontece se descobrem os segredos, logo, o outro deixa de ser um estranho e
passa a fazer parte de minha existência. É o que o exemplo descrito por Marcel acerca do
jovem tímido ilustra, na medida em que é interpelado por um estranho, que na realidade
não é tão estranho assim, mas alguém que participa da sua história. O encaminhamento
reflexivo de Gabriel Marcel é um esforço para reencontrar, além do idealismo clássico, uma
filosofia do ser, um esforço para reencontrar a ingenuidade e a riqueza da experiência.
Trata-se de interrogar a intersubjetividade como experiência radical.
Considerações finais
A filosofia concreta que propõe Marcel se interessa pelo homem no sentido de
lavá-lo na direção do seu desejo de busca para a abertura ao outro. O outro está na
condição de mistério e não de problema, por isso não pode ser objetivável. A pessoa é mais
que conceitos abstratos, ela é resposta para um eu que se afirma como eu. O tu é a
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confirmação do eu, que pela presença e participação no tu se reconhece no mistério do ser
e se reconhece potencialmente ativo para consigo mesmo na relação com o outro. Se a
reflexão primeira obscureceu e objetivou o outro, buscando compreendê-lo pela verificação
e pela experiência, transformando-o em outro objeto de pesquisa igual a todos que a ciência
procura analisar, a reflexão segunda acessa o metaproblemático. Lança o homem no
mundo do mistério, provocando-o a participar da existência do outro no ser-com.
Há um segredo na relação intersubjetiva onde está subsumida a presença do outro.
O eu está compreendido no tu, que o reveste e o potencializa. A encarnação é o dado que
torna possível a presença no seu maior grau de existência, pois o homem se vê nela
mergulhado e chamado a confrontar-se existencialmente. O segredo da concretude do eu
está contido na concretude do tu. O ―eu penso‖ desaparece para que o ―nós somos‖
aconteça.
Referências Bibliográficas:
CARMONA, F.B. La filosofia de Gabriel Marcel. Madri: Encuentro. 1988.
MARCEL, G. Diario metafisico. Tradução de Felix Del Hoyo. Madri: Guadarrama, 1964.
___________ Obras seletas de Gabriel Marcel I: El mistério del ser. Madri: Biblioteca de
Autores Cristianos, 2002.
___________ Ser y tener. Trad. Ana Mará Sánchez. Madri: Caparrós, 2003.
PÉREZ, Julia. El pensamiento antropológico de Gabriel Marcel: um canto al ser humano. Navarra:
EUNSA, 2001.
ZILLES, U. Gabriel Marcel e o existencialismo. 2 ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995.
(Coleção: Filosofia)
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462
O PERSONAGEM ZARATUSTRA NA FILOSOFIA DE NIETZSCHE
Neomar Sandro Mignoni
UNIOESTE/CAPES
E-mail: [email protected]
Orientador Prof. Dr. Wilson Antônio Frezzatti Jr.
RESUMO: Trata-se de uma investigação acerca de Zaratustra enquanto personagem
nietzschiano para além da obra de próprio nome. De modo mais específico, investigar-se-á
o papel que tal personagem desempenha frente à filosofia madura de Nietzsche. Para isso,
explicitar-se-á as diferentes nuances que compõem o personagem, tanto na obra Assim
Falava Zaratustra, como nas demais obras publicadas e fragmentos póstumos. Nesse
sentido, buscar-se-á mostrar como tal personagem interage com os demais temas da
filosofia nietzschiana em relação ao que Nietzsche denomina como ―meio dia‖, sobretudo
no tocante ao ―grande meio dia‖.
Palavras-chave: Nietzsche, Zaratustra, Grande meio dia, Experimentalismo.
É no aforismo §342 de A Gaia Ciência que pela primeira vez nos deparamos com o
personagem de Zaratustra. Personagem este que permanecerá nas obras publicadas e em
fragmentos póstumos posteriores a esse aforismo. O título do fragmento parece-nos
bastante sugestivo - Incipit tragoedia (A tragédia começa) – uma vez que este mesmo texto
constituirá, ainda que com leves modificações156, o primeiro parágrafo do prólogo de Assim
Falava Zaratustra. A tragédia é iniciada e sem dúvida constitui, no conjunto da obra
nietzschiana, a obra capital do filósofo. Seja pela sua forma conceitual e figurativa, seja pela
importância dada aos principais temas de sua filosofia: além do homem, a morte de Deus, a
vontade de potência e o eterno retorno do mesmo.
Se por um lado, a obra inaugura um novo período na filosofia nietzschiana, – o da
maturidade – por outro seu personagem é o responsável por toda a proposta reconstrutiva
No prólogo de Assim Falava Zaratustra Nietzsche reproduz quase que literalmente o aforismo 342 da Gaia
Ciência. A diferença é que na Gaia Ciência, além do título Incipit tragoedia, ele traz o ―lago de Urmi‖ que em
Zaratustra será substituído por ―o lago de sua pátria‖, como sendo o local que junto com sua terra é
abandonado por Zaratustra, quanto este vai às montanhas.
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do filósofo desse período157. Assim, Zaratustra constitui o grande ícone da filosofia madura
de Nietzsche. Além disso, não é de mero acaso que no Ecce Homo (2007d, p.95) o filósofo
escreva: ―depois de resolvida a parte da minha tarefa que diz Sim (Assim Falava Zaratustra),
era a vez de sua metade que diz Não, que faz o Não: a tresvaloração mesma dos valores
existentes, a grande guerra – a conjuração do dia da decisão‖. É no entorno de Zaratustra
que tal tarefa é levada à cabo. É à sombra de Zaratustra que os principais temas pensados
pelo filósofo são desenvolvidos e experimentados. Ainda no prólogo do Ecce Homo, (2007d,
p. 19) numa referencia à obra (Assim Falava Zaratustra), Nietzsche a designa como sendo
não apenas um ―autêntico livro do ar das alturas‖, mas também o ―mais profundo‖. Nele
não fala nenhum ―profeta‖, nenhum fundador de religião, nenhum fanático, de modo ser
necessário ―ouvir corretamente o som que sai desta boca (...) para não se fazer deplorável
injustiça ao sentido de sua sabedoria‖.
Inserido na filosofia nietzschiana como o personagem encarregado de anunciar o
além-do-homem e ser o mestre do eterno retorno do mesmo, Zaratustra permanece para
além da obra de próprio nome conforma supra-afirmamos. Em algumas ocorrência o
filósofo refere-se à obra propriamente dita, entretanto, em várias outras passagens as
referências são direcionadas ao personagem. Nessas é possível compreender Zaratustra
como sendo o personagem escolhido por Nietzsche para levar a cabo sua filosofia. Não são
poucas as passagens que nos deixam entrever que as idas e vindas do personagem, sugerem
o modo nietzschiano de construir seu pensar.
Além disso, cabe levar em conta ainda o fato de que o personagem costuma
apresentar-se em íntima relação com os demais temas da filosofia nietzschiana. No
Crepúsculo dos Ídolos, em um texto chamado Como o “mundo verdadeiro” acabou por se tornar uma
fábula, Nietzsche (2000, p. 32) refere-se ao ―meio dia‖, ao instante da sombra mais curta
enquanto ponto culminante da humanidade e onde Incipit Zaratustra (começa Zaratustra). A
mesma associação entre Zaratustra e o ―grande meio dia‖ ocorre em diversas outras
passagens, sejam elas na própria obra Assim falava Zaratustra, seja nos fragmentos póstumos
e demais obras.
Em relação à periodização da obra nietzschiana entendemos que a mesma se dá apenas em ambitos
metodológicos e via de regra, seguimos as divisões estabelecidas por Scarlett Marton (1990, p. 19-25). Marton
reconhece três períodos na obra do filósofo. Do primeiro fazem parte os escritos de 1870-1876, dentre eles O
Nascimento da Tragédia e as Considerações Extemporâneas. No segundo de 1876-1882, reconhece-se dentre outras,
Humano Demasiado Humano, Aurora, Gaia Ciência. E por fim, do terceiro período participam Assim Falava
Zaratustra, Para Além de Bem e Mal, Crepúsculo dos Ídolos, Ecce Homo, Anticristo.
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Assim como Zaratustra, há ocorrências do ―grande meio dia‖ em um considerável
número de passagens que vão desde Assim falava Zaratustra ao Crepúsculo dos Ídolos e Ecce
Homo. De modo simplório o ―grande meio dia‖ constitui a ―hora em que o homem se
encontra na metade do caminho entre o animal e o além-do-homem‖ (Za, I). É o
momento que permite ao homem celebrar ―seu caminho até o entardecer como sua mais
alta esperança: pois é o caminho até uma nova manhã‖ (cf. NIETZSCHE, 2007a, p. 127).
O ―grande meio dia‖ constitui a ―transformação‖ em que muitas ―coisas serão postas em
manifesto‖ (p. 271). Em outras palavras, constitui este um evento impar e culminante em
que o filósofo parece elucidar a reviravolta a que se propõe toda sua filosofia.
Num fragmento póstumo intitulado O grande meio dia de julho-agosto de 1888, 18
(15), Nietzsche se questiona: ―Por que ‗Zaratustra‘?‖ e responde: ―A grande superação da
moral‖. O fragmento é minúsculo e vago, porém elucidativo se associado ao texto do
mesmo período ―Como o mundo verdadeiro se tornou uma fábula‖, de O Crepúsculo dos
Ídolos, em que Zaratustra aparece como o responsável de levar à cabo a tarefa do ―grande
meio dia‖ (cf. NIETZSCHE, 2000, p.32). A aparição da figura de Zaratustra na obra
nietzschiana não se dá ao acaso. De acordo com Nietzsche (cf. 2007d, p. 110 – 111)
―Zaratustra (histórico) foi o primeiro a ver na luta entre o bem e mal a verdadeira roda
motriz na engrenagem das coisas‖. Foi ele quem pela primeira vez transpôs a moral para o
metafísico como força, causa, fim em si. Uma vez que assim o mais fatal dos erros foi
criado, deve ser Zaratustra também o primeiro a reconhecê-lo. Desse modo, no entender
do filósofo, o Zaratustra (nietzschiano) torna-se agora o responsável por levar a cabo a tarefa
da ―auto-superação da moral pela veracidade, a auto-superação do moralista em seu
contrário‖. Em outras palavras, se o personagem histórico foi o responsável pela criação do
mais fatal dos erros, cabe ao personagem nietzschiano desfazer tamanho equívoco.
Nesse sentido o caminho trilhado pelo personagem na obra Assim Falava Zaratustra
é propositalmente direcionada para a auto-superação da moral e do moralista em seu
contrário. Não é por acaso que os principais temas nietzschianos encontram-se
profundamente imbricados nessa obra. Enquanto que o Além-do-homem é anunciado pelo
personagem, a todo o povo reunido no mercado, a Morte de Deus e a Vontade de Potência
são anunciadas a alguns poucos, seus amigos e discípulos. Por fim, de modo não menos
intrigante, o Eterno Retorno é anunciado de maneira exclusiva pelo personagem a si
mesmo. Tal pensamento o oprime e o sufoca tal forma que Zaratustra evita enfrentá-lo.
De certo modo, a fábula de Zaratustra é bastante simples. Aos trinta anos
Zaratustra se retira para a solidão na montanha onde vive com seus animais: a águia e a
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serpente. Ali aprende sua sabedoria e um dia farto dela decide levá-la aos homens. Na
descida se encontra com um eremita o qual ainda não havia ouvido que Deus morreu. Na
cidade encontra o povo reunido a quem anuncia o Além-do-homem. O anúncio torna-se
um fracasso. Depois de enterrar com suas próprias mãos, um malabarista que morrera ao
se apresentar em praça pública, descobre uma nova verdade: não se deve falar ao povo (cf.
NIETZSCHE, 2007a, p. 47). Ao meio dia, após concluir que não deve tornar-se um pastor
de rebanho nem andar com cadáveres, retira-se novamente à sua montanha e então começa
seu ocaso. É o fim do prólogo.
A primeira parte é dedicada aos discursos de Zaratustra. Nela o tema é a morte de
Deus. Aqui se encontram o discurso das três transmutações, os ataques contra as virtudes
que fazem dormir, contra os trasmundanos, contra os que depreciam o corpo e a alma. No
discurso Da árvore da montanha estão descritas as peregrinações e Zaratustra e diálogos com
que querem converter-se em seus discípulos. Após os capítulos dedicados à amizade, ao
matrimônio e às mulheres, Nietzsche/Zaratustra contrapõe a virtude dadivosa às falsas
virtudes. Por fim despede-se de seus discípulos ordenando para que o reneguem, pois só
assim poderá retornar a eles e então volta para a montanha.
A segunda parte inicia com Zaratustra na montanha esperando que sua semente
frutifique e se impacienta com sua superabundância de sabedoria. Numa manhã tem um
sonho de que sua doutrina está sendo desfigurada, e que precisa ir ao encontro de seus
amigos. O tema base dessa parte é a Vontade de Potência. É em virtude disso que nos
primeiros capítulos encontramos o ataque a quem se opõe a essa vontade: os virtuosos, os
sábios famosos, as tarântulas; a todos aqueles que sentem aversão à vida e encontram-se
dominados pelo espírito de vingança. No capítulo Dos grandes acontecimentos encontramos
mais informações acerca das andanças de Zaratustra. No último capítulo, o pensamento do
eterno retorno emerge como um monstro, Zaratustra grita de terror diante dele (cf.
NIETZSCHE, 2007a, p. 218).
O ponto culminante da obra é sem dúvida a terceira parte. Note-se que o plano
original a obra encerava-se com essas três partes158. Conforme o final da segunda parte já
indica o tema central deste capítulo é o pensamento do eterno retorno. É um saber secreto
Em relação à quarta parte da obra, cabe ressaltar que Nietzsche finalizara Assim Falava Zaratustra com a
terceira parte. Seu propósito era de que a que hoje constitui a quarta parte desta 
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