1 Ordem do Mérito 2014 Em junho do ano passado, quando reconduzido à Chefia Institucional, disse, a folhas tantas, que precisávamos de figuras exemplares. Como a urgência só aumentou, de lá para cá, permitam iniciar recuperando o fio da meada. Falava, então, de Fábio Comparato e de seu grande livro sobre Ética. Para fugir de uma exposição abstrata de teorias e sistemas que naturalmente ocupavam centenas de páginas, Comparato ofereceu uma reflexão compreensiva sobre modelos pessoais de vida, São Francisco de Assis e Gandhi. Francisco (que em boa hora inspira o Papa), possuído pela paixão de viver integralmente a mensagem que pregava, sine glosa, como dizia – que o reino de Deus pertence aos pobres e a fraternidade universal. Gandhi, com a mesma vivência radical, a encarnar a verdade na vida e a firmeza na verdade. E concluía eu: “Cada um escolha o seu modelo, mas precisamos de figuras exemplares”. 2 Neste elã, nem preciso enfatizar o orgulho por estarmos, agora, agraciando figuras exemplares, entre oficiais, comendadores e grã-cruz: servidores, promotores e procurador de justiça que corporificam o Ministério Público; secretários de estado, empreendedores e gestores sociais; advogado e magistrado. Na ânsia de dirigir uma palavra a cada um e na celebração do mérito, gostaria de adicionar duas ou três considerações, hoje, sobre a honra. Vou seguir Kwame Anthony Appiah, que não faz muito esteve em Porto Alegre, e que pesquisou “O Código de honra: como ocorrem as revolução morais”. de filosofia de Princeton, filho de pai ganês, investigou três revoluções morais que culminaram em rápida transformação no comportamento moral: o fim do duelo na Inglaterra; o fim da escravidão atlântica, e a libertação dos pés das mulheres chinesas. E observou que, em todas, a honra teve um papel central. Honra e identidade, moldando nossos sentimentos e escolhas, estão no cerne das revoluções morais. Os seres humanos precisamos que os outros respondam apropriadamente ao que somos e ao que fazemos, necessitamos do que Hegel chamou de reconhecimento. 3 Appiah parte da ética no sentido aristotélico para refletir sobre o que é viver uma “boa vida” humana. Eudaimonia como “florescer”, no sentido de “viver bem”, e da qual “fazer o que devo aos outros” é parte, conjugada com o respeito próprio. Para ele, a honra cria uma conexão entre nossas vidas (por que outro motivo estamos aqui reunidos?), “nos ajuda a tratar os outros como devemos e a viver melhor nossa própria vida”. Pensando bem, as histórias “locais” de cada agraciado, não são trajetórias separadas, mas fios de uma mesma história de honra, digna de respeito e neste ato reconhecida pelo Ministério Público. No ideal da honra, podemos melhorar o mundo. Reparem que a psicologia da honra “tem uma ligação profunda com a autoconfiança e com olhar o mundo nos olhos”. As pessoas que “merecem respeito”, vocês, “andam literalmente com a cabeça erguida”! No outro extremo do mundo, a humilhação “encurva a coluna, abaixa os olhos”. Em axanti-twi, a língua do pai de Appiah, quando alguém faz algo desonroso, se diz: “seu rosto caiu” (os chineses falam em “ficar sem cara”). Nós lamentamos: “não tem vergonha na cara”. 4 O que as pessoas fazem deliberadamente com seu rosto, se preferem escondê-lo ou ostentá-lo, mobiliza nossas emoções morais – nossa indignação, nosso orgulho. Pode-se tecer uma “teoria da honra”, mas a melhor maneira de chegar lá é examinála “em ação na vida dos indivíduos e das comunidades”. A natureza da honra está diante dos nossos olhos, no rosto altivo dos agraciados, num contraste essencial com tantos semblantes encapuzados que se esgueiram pelas imagens midiáticas mais recentes. O que o Ministério Público quer anunciar, com a Ordem do Mérito, é que compartilhamos um código de honra com pessoas com certas identidades e que ganharam nosso respeito pelas condutas, por viverem uma vida boa. Compartilhamos e sinalamos, com medalhas, esse código de honra, que vai assim simbolicamente reforçado, entrelaçado no peito de vocês, figuras exemplares, com as urgências da vida pública, que nos angustiam e as quais os agraciados respondem de maneira moralmente valiosa. E, muitas vezes, fazendo além do que exige a moral. 5 Hoje concordamos que todo ser humano, só por isso, só por ser humano, já tem um direito fundamental ao respeito, que chamamos dignidade, também uma forma de honra, cujo código faz parte da moral. Mas, quando as pessoas agem bem, e nos identificamos com elas, vamos além, compartilhamos sua honra, sentindo orgulho. Não por acaso, foi a primeira sensação que externei, ao início desta breve saudação. Uma última idéia. A honra, expurgada de alguns símbolos aristocráticos e de preconceitos de casta, sexo e congêneres, “é especialmente adequada para converter os sentimentos morais privados em normas públicas”. Já disse, ela pode nos ajudar a fazer um Brasil melhor. Como? A honra torna pública a integridade, explica Appiah: “a honra não é um vestígio decadente de uma ordem pré-moderna; para nós, ela é o que sempre foi: um mecanismo movido pelo diálogo entre nossas autoconcepções e a consideração dos outros, que pode nos impelir a assumir seriamente nossas responsabilidades num mundo que compartilhamos. Uma pessoa com integridade se preocupará em viver de acordo com seus ideais. Se consegue, devemos respeito a ela.”. 6 E àqueles outros, que teimam em transgredir nossos códigos de honra, reservamos o desprezo social, numa reação natural, quase um instinto moral – eles sabem por que escondem o rosto... De modo que, valorizando a honra, dando espaço ao mérito, alcançamos um meio eficiente, programado atavicamente, de disperso reafirmar socialmente as e expectativas normativas, para além do custoso mecanismo formal da lei, com seus paradoxos (quem custodiará os guardiões?) e limites (inclusive financeiros). Os respectivos códigos de honra, pelo contrário, vivenciados, são muito menos dispendiosos e bem mais eficazes para a manutenção da paz social e, num degrau acima, para alcançar a vida boa. O que significa, em tantos momentos, repito, fazer mais do que exigem os deveres do ofício. Cada um dos agraciados pode creditar-se muitas façanhas... Mas dinheiro (se por acaso abundasse) seria a linguagem errada para recompensá-los, um bônus simbolicamente inapropriado. Os consolos do dinheiro não se equiparam, em termos de valor, à recompensa da estima. Portanto, damos medalhas; tradução da honra que reconhecemos em vocês. 7 Uma derradeira citação: “A honra, na forma de dignidade individual, alimenta o movimento mundial pelos direitos humanos; como estima individual merecida, permite que as comunidades, grandes e pequenas, recompensem e incentivem a excelência; como honra nacional, com suas possibilidades de orgulho e riscos de vergonha, pode motivar os cidadãos na luta interminável para disciplinar os atos de seus governantes”. Creio que mais não precisa ser dito. Apenas, para não terminar com abstrações, o meu muito obrigado, olhando nos olhos de cada um: Stael, Raphael, Gerson, Deniz, André Jacó, Vercilei, Charqueiro, João Victor, Pestana, Bárbara, Marcelo, Lamachia, Armínio, Lotti, Airton. Recebam o reconhecimento do Ministério Público. A vocês nossas melhores honras. Muito obrigado.