Uma análise do mito de Ícaro

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que corpo é aquele que imerge no mar?
que corpo é aquele que eimerge d
no mar?
Uma análise do mito de Ícaro em quatro instâncias
e além
Trabalho final de História Antiga II
Prof. Francisco Murari Pires
Felipe de Medeiros Guarnieri, No USP 5712278
Dept. de História, FFLCH, USP
Q. HORATI FLACCI CARMINVM
LIBER IV.II vv.1-4
trad. Pedro Braga Falcão (Cotovia, 2008)
PINDARVM·QVISQVIS·STVDET·AEMVLARI
IVLE·CERATIS·OPE·DAEDALEA
NITITVR·PENNIS·VITREO·DATVRVS
NOMINA·PONTO.
* Queda de Ícaro
Anônimo
Marfim?, s.XVII
Musée Antoine Vivenil, s.XVII
Fonte: Wikipedia
PÍNDARO QUEM QUER QUE DESEJA EMVLAR,
JULO, AO CÉU MUNIDO DE DEDÁLIAS
ASAS
Pindarum quisquis studet aemulari,
Iule, ceratis ope Daedalea
nititur pennis vitreo daturus
nomina ponto.
ALÇA DE CERA, CONDENADO À FAMA
EM NOVÍSSIMO MAR.
Quem com Píndaro se esforça por rivalizar,
Julo, fia-se em asas com cera unidas
pelo engenho de Dédalo, e o seu nome dará
a um limpído mar.
Apontamentos: significações.
humildemente ainda não ter capacidade para concluir, posto que
O texto não tem maiores pretensões que apontar significados
propôs-se o desafio de enfrentar esta quimera. O pano do texto,
– tem ele caráter pro(me)téico, inacabado, no que o autor confessa
todavia, cai a cabo da análise de James Joyce, no que os fragmentos
de uma conclusão são afterthoughts, a partir de Hannah Arendt e
antes, é um embate do histórico com o (pretensamente) ahistórico.
Walter Benjamin e outros autores, das implicações da balança entre
Formula-se como a herança do pecado original em Santo Agostinho,
fardo/fio da tradição rastreada partir das fontes no texto.
em dialética com o livre-arbítrio: a busca de redenção. Em Hegel, o
O rodapé aponta para trechos usados no corpo do texto, ao
particular e o geral no Espírito. No marxismo, a tradição é a dialética
passo que as obras referidas estão todas listadas na bibliografia.
entre os homens que fazem sua história e a história herdada de
Citações de autores e teorias não foram todas referenciadas, para não
gerações anteriores que lhes pesam como a corda da forca no
acumular discussões paralelas nas notas. Tomamos a liberdade de
pescoço: entre o trabalho humano e leis (quase) naturais também
revolver num mito a partir de diversas fontes diferentes, nem todas
feitas pelo homem. Aqui, tomaremos a tradição como o conjunto de
disponíveis no Heros, para assim estabelecer o diálogo entre antigos
símbolos revolvendo em círculos narrativos –μύθορ.
e moder(íssim)os e questionar, mesmo que minimamente, as
Interpretações, se múltiplas, estabelecidas em dois núcleos
modalidades da construção da tradição no corpo (textual?) da
distintos, entre positivo e negativo: há como fugir da dialética, e
história humana e as vicissitudes, sempre reinterpretadas, da
estabelecer núcleos hermenêuticos em constante movimento de
condição humana a partir de Ícaro, fundamentando-nos em Hannah
estilhaço e constante (re)construção do saber (histórico)? Quatro
Arendt. Tomamos a liberdade de perder-nos nel mezzo del cammin –
importantes autores apontaram esta possibilidade entre os séculos
convidamos o leitor para uma viagem, do labirinto de Knossos, ao
XIX e XX, em aspecto teórico; o terceiro, poético. Friedrich
suor da terra, para as profundezas do Oceano e, após, à Lua.
Nietzsche em Além do bem e do mal (1885), o eterno retorno e o
esforço em estabelecer um tempo não-linear, isento da ingenuidade
Questionamos a tradição: o que ela é? Sua função:
dos fatos e (in)sustentado em interpretações sempi-dependentes do
movimento. Certamente, não um museu onde os bustos empoeirados
observador. O Jetztzeit de Walter Benjamin emerge nos escombros
dos “grandes homens” são expostos como modelares; a tradição,
da dialética da experiência, não mais possível após ruírem as vigas –
físicas e intelectuais – do “Zeitgeist/mind of Europe”: o romance,
gênero trágico por excelência, vem no resgate da tradição ao elevar a
Hércules vintecentista cuja tentativa de construir um épico
experiência individual do sujeito à experiência comunal da narração
homérico, abarcando a multiplicidade das fraturas do tempo de
histórica (e ficcional). Hannah Arendt em A Condição Humana
indivíduos e massas, deu com a(s) história(s) n‟água. Pound
(1958) afirma que, no caminhar das coisas, a tradição aponta seu
demorou décadas para perceber que o século XX não abarcaria um
precipício – implicações estéticas, filosóficas, sociais e até mesmo
novo Homero, nem um novo Dante. A tradição – se ocidental,
físicas. Tomaremos aqui a figura de Ícaro como arquétipo do mito
europeia, inglesa-francesa-alemã; aqui não nos importa o viés
de/reconstruído: a condição humana, embate entre trabalho e
antropológico da história, e sim seu aspecto ontológico, o
natureza, mãos e molde, por excelência. Em terceiro lugar, afamada
maquinário da construção da tradição na supervivência de todos os
postulação de T. S. Eliot no ensaio Tradition and the individual
tempos. Isto é, o pensamento político e filosófico inventado por
talent
(e,
Platão, o histórico por Tucídides, o poético por Homero –
(sempi-novos)
despedaçou-se e precisa ser (re)construída por seu interlocutor: nas
interpretação
palavras de T. S. Eliot, permanentemente conquistada pelo talento
(1919),
a
consequentemente,
preconceitos do
constante
do
reinterpretação
presente)
presente:
segundo
na crítica
do
os
literária,
passado
potencializada já em Samuel Johnson e Samuel Taylor Coleridge. O
quarto registro, poético: Ezra Pound, il miglior fabbro, n‟Os Cantos:
individual de cada um.
Portanto, até que ponto não é esta tradição uma invenção e
interpretação ela-mesma? E existiu uma unidade de fato de
to “see again”
pensamento sobre a multiplicidade no mundo antigo, ou trata-se de
the verb is “to see,” not “walk on”
i.e., it all coheres all right
even if my notes do not cohere.1
1
Ezra Pound, Canto CXVI In The Cantos (New Directions, 1993), p.816.
uma idéia propagada pela coleção de ruínas elevadas pelos
Renascentistas? Um exemplo, que “Aristóteles” é o de Descartes, e o
de outros homens e tempos, cuja parte mais importante da obra –
seus diálogos – perdeu-se? E os ideais moldados pelas mãos dos
apoiam-se em Virgílio e Horácio conjugados por Dryden e Golding,
alexandrinos, dos renascentistas? Homero toma forma primeira
Petrarca e Shakespeare. Não queremos aqui afirmar uma construção
apenas no governo de Pisístrato, e o Homero de Platão é deveras
retilínia de uma tradição que se confunde muitas vezes com o
diferente do de Calímaco, e do Homero preservado nos códices
pensamento histórico: a história, a nosso ver, é constante movimento
medievais. O homem do século XX inventou ou descobriu que a
entre lembrar-se e esquecer-se: seu reduto mais secreto é a memória.
história está em constante movimento? Ambos? E até que ponto os
O triálogo entre antigos e modernos e moderníssimos. Santo
modernistas não se apoiam numa reconstrução da tradição, longe da
Agostinho aparecerá nos penhascos destas montanhas, cuja encosta
ideia futurista de construir à revelia do herdado? Foi o fio que ligava
ainda se encontra a nossa vista: nos sumus tempora: quales sumus,
Homero a Wilamowitz arrebentado? Existiu esse fio?
talia sunt tempora3.
E, no entanto, deve haver, no mais pequeno poema de um
poeta qualquer coisa por onde se note que existiu Homero 2.
dentro do, a partir do, no tempo: memória. Abaixo, o material da
A tradição: conjunto de símbolos revolventes em núcleos
narrativos, estabelece-se em mitos, arquétipos, alegorias, sendo todas
representações
de
verdades
idealizadas;
isto
é,
A tradição é (re)construção: trabalho humano fundamentado
forja modifica o conjunto das idéias; e vice-versa: há o movimento.
A história descasca-se em camadas de uma cebola.
sempre
Este texto terá quatro faces:
(re)interpretadas. Ícaro se nos apresenta como alegoria do embate
entre trabalho e natureza nas Metamorfoses de Ovídio; alegoria,
I.
MITO. Apresentação e a alegoria de Ícaro em Ovídio.
veremos, retomada por Peter Bruegel, William Carlos Williams e
II.
O ARTÍFICE. A representação do arquétipo no
diálogo dos antigos e modernos. A μίμηζιρ visual de
James Joyce. E, se os Renascentistas apoiaram-se na autoridade de
Cícero e Aristóteles, e na redescoberta do grego, os modernistas
3
2
Fernando Pessoa, Obra em prosa (Nova Aguilar, 1995), p.147.
Santo Agostinho, sermão 80,8. Encontramos a versão latina
http://www.augustinus.it/latino/discorsi/index2.htm. A sentença é proverbial.
em
I. Ikarus! Ikarus! Jammer genug.4
Ovídio na Paisagem com queda de Ícaro de Pieter
Bruegel, o Velho.
III.
Daedalus interea Creten longumque perosus
O OBSERVADOR. A representação da representação
exsilium tactusque loci natalis amore
no diálogo entre modernos e moderníssimos. A
IV.
clausus erat pelago. “terras licet” inquit “et undas
μίμηζιρ verbal de Bruegel em Williams Carlos
obstruat: at caelum certe patet; ibimus illac.
Williams.
omnia possideat, non possidet aera Minos.”
DÉDALO. A representação da representação da
dixit et ignotas animum dimittit in artes
naturamque novat. nam ponit in ordine pennas,
representação. O triálogo entre antigos e modernos e
a minima coeptas, longam breviore sequenti,
moderníssimos. Aqui, a geometria temporal não é
ut clivo crevisse putes. sic rustica quondam
linear, tampouco platônica. O cume em James Joyce.
fistula disparibus paulatim surgit avenis.
As implicações do diálogo entre antigos e modernos
tum lino medias et ceris adligat imas,
no modernismo.
atque ita compositas parvo curvamine flectit,
ut veras imitetur aves. puer Icarus una
stabat et, ignarus sua se tractare pericla,
Comecemos por Ovídio.
ore renidenti modo, quas vaga moverat aura,
captabat plumas, flavam modo pollice ceram
mollibat lusuque suo mirabile patris
impediebat opus. postquam manus ultima coepto
imposita est, geminas opifex libravit in alas
4
O coro espanta-se e ecoa Ovídio com o alçar de Euforião no Fausto II, ato III,
vv.9901-9902 de Goethe (editora 34, 2007); na trad. de Jenny Klabin Segall:
“Ícaro! Ícaro, ah! Mortal pesar!”, p.723.
ipse suum corpus motaque pependit in aura.
mollit odoratas, pennarum vincula, ceras.
Instruit et natum “medio” que “ut limite curras,
tabuerant cerae: nudos quatit ille lacertos,
Icare,” ait “moneo, ne, si demissior ibis,
remigioque carens non ullas percipit auras,
unda gravet pennas, si celsior, ignis adurat.
oraque caerulea patrium clamantia nomen
inter utrumque vola. Nec te spectare Booten
excipiuntur aqua: quae nomen traxit ab illo.
aut Helicen iubeo strictumque Orionis ensem:
at pater infelix, nec iam pater, “Icare,” dixit,
me duce carpe viam.” pariter praecepta volandi
“Icare,” dixit “ubi es? qua te regione requiram?”
tradit et ignotas umeris accommodat alas.
“Icare” dicebat: pennas adspexit in undis
Inter opus monitusque genae maduere seniles,
devovitque suas artes corpusque sepulcro
et patriae tremuere manus. dedit oscula nato
condidit, et tellus a nomine dicta sepulti.5
non iterum repetenda suo, pennisque levatus
ante volat comitique timet, velut ales, ab alto
quae teneram prolem produxit in aera nido,
hortaturque sequi damnosasque erudit artes
O testemunho poético mais contundente6 da história de Ícaro
e Dédalo na antiguidade é uma pequena seção no canto VIII das
et movet ipse suas et nati respicit alas.
Metamorfoses do poeta latino Públio Ovídio Nasão (43 a.C. – 17
hos aliquis tremula dum captat harundine pisces,
d.C.), as quais provavelmente vieram a tona no ano 8, sob o
aut pastor baculo stivave innixus arator
principado de Augusto, antes do poeta ser condenado ao exílio no
vidit et obstipuit, quique aethera carpere possent
Ponto. As Metamorfoses são uma coleção de mitos, transformações
credidit esse deos. et iam Iunonia laeva
parte Samos (fuerant Delosque Parosque relictae),
dextra Lebinthos erat fecundaque melle Calymne,
cum puer audaci coepit gaudere volatu
deseruitque ducem caelique cupidine tractus
altius egit iter. rapidi vicinia solis
5
P. Ovidi Nasonis Metamorphoses VIII, vv.183-235 (Oxford, 2004), p.222-224.
Referimos a tradução de Paulo Farmhouse Alberto em Ovídio, Metamorfoses,
pp.201-202 (Cotovia, 2007).
6
Não é, porém, o único. O evento é mencionado passim em poetas gregos
arcaicos, embora, no que constam as fontes conhecidas, o enfoque seja sempre em
Dédalo. Pseudo-Apolodoro narra o episódio na Biblioteca, Diodoro Sículo na
Biblioteca da História (4.64) e Higino nas Fábulas.
de homens/animas/plantas, histórias alegóricas e da tradição
veras imitetur aves? Voa, tentando atingir o Sol: tenta ser um deus.
mitológica Greco-romana que, na esteira da poesia alexandrina,
Transgride ao desafiar as leis (políticas) dos deuses (chefes)? Foi
(re)constrói-se ludicamente (com)funde deliberadamente realidade
esta precisamente a causa do exílio de Ovídio: questionar a
com ficção.
veracidade do mito – e o mito é, em Roma, arma política.
Ícaro e Dédalo tentam fugir do labirinto em Creta, construído
Lembremo-nos da dimensão política do mito.
a mando de rei Minos a fim de esconder o Minotauro. O Hades não
Encontramo-nos, nas Metamorfoses, em violento embate
comporta rotas de escape por terra: por mar, a fúria de Netuno os
entre a imitatio e a aemulatio da natureza: fas ou nefas? Até que
acabrunha, como a Odisseu. Resta fugir pelo céu – omnia possideat,
ponto os autores antigos poderiam entortar o mito, e, no caso da
non possidet aera Minos – e, assim, naturamque novat - (re)inventa
natureza, tomando as rédeas da (μεηά)θύζιρ, submetê-la à ηέχνη?
a natureza. Ícaro e Dédalo tentam vencer a força natural através da
Esta dimensão também seria (im)possível na historiografia,
arte humana: do trabalho. Falham miseravelmente.
submetendo as res gestae ao domínio da ars, nos termos latinos? Em
A queda de Ícaro é a glorificação de Apolo: do Sol que
derrete as ceras daquele que tenta alcançar os deuses. É a
que medida podemos confiar na veracidade postulada por Tito Lívio
na Ab urbe condita, a narrativa oficial do Império Romano?
insignificância do craft, da Kunst do homem frente ao poder
Bastante conhecida é a censura que Platão faz à μίμηζιρ no
incomensurável do natural. Empédocles afogando-se no Etna: Ícaro
livro X da República e no Íon: o poeta, representante de terceira
afoga-se na costa de Samos. Excesso de transgressão do homem:
instância, pois (re)representa a partir das representações materiais na
como Creso em Heródoto, como a Atenas de Tucídides, Ícaro é a
natureza, está demasiadamente longe da verdade cujo monopólio
acometido pela ὕϐπιρ – no mito, seu arquétipo – incorre-lhe, por isso
pertence ao filósofo, e assim não será admitido na vivência da πόλιρ.
mesmo, a νέμεζιρ. Ou é ele vítima da inexperiência, da atmosfera? O
Poetas são perigosos: (re)representam a realidade com mentiras e, no
artista é transgressor ao desafiar a natureza e tentar imitá-la – ut
aspecto construtivo, procuram emular o movimento da natureza: da
realidade fenomênica7: para Platão, um absurdo em termos. A
fardo narrativo, ficção que sustenta os detalhes, verdade construída
história, fria, não tem, a princípio, tais pretensões. Ela trata de
no e a partir do texto? O mesmo em Tucídides: a causalidade é o
particulares, não de gerais. A dimensão idealista da poesia em Platão
falseamento – verdadeirização – dos eventos reais. Nenhuma história
é complementada pela análise técnica da tragédia na Poética
é compreensível se não narrada – se não se constrói uma verdade
aristotélica; nela, o filósofo recupera a função social da poesia, e
unívoca para que a compreendamos.
releva a importância do provável frente ao possível e efetivo 8.
Longa digressão cujo ponto é unívoco: encontramo-nos, em
Importa a verossimilhança e unidade do enredo: para a tragédia ser
Ovídio, no berço da tradição ocidental. E, no que tange à História
verídica, ela deve ser falsa: tenhamos aqui qualquer tipo de texto.
que garante sua (pretensa) objetividade ao trabalhar cientificamente
Até que ponto o mito (não) é uma invenção do homem? Até que
com documentos, interessa-nos lembrar que tal método não foi
ponto os deuses (não) são invenções humanas? Até que ponto a
descoberto, e sim inventado por Tucídides. A tradição é uma
história dos particulares (não) se pauta por um geral, fio condutor do
invenção.
Estabeleçamos os núcleos em Ovídio: de um lado, a tradição
7
Platão, República, trad. Anna Lia Amaral de Almeida Prado (Martins Fontes,
2006) 396b-400e, seguindo a discussão acerca da elocução na poesia; “Então,
disse eu, se não for um orador como esse, quanto mais reles for, mais imitará tudo
e nada julgará indigno de si, a tal ponto que imitará com seriedade, e diante de
muitas pessoas, mesmo aquilo de que falávamos agora, trovões, rumor do vento e
do granizo, ruído dos eixos e das roldanas dos carros e som de trombetas, flautas,
siringes e de todos instrumentos e ainda a voz de cães, ovelhas e pássaros.”,
pp.102-103. Até que ponto o historiador, ao tentar aproximar-se do wie es
eingtlich gewesen, não é culpado da mesma transgressão em relação ao tempo?
8
Aristóteles sobre a Tragédia e a Epopéia em On Poetics, trad. Ingram Bywater
(University of Chicago, 1952), 1460a; “A likely impossibility is always preferable
to an unconvincing possibility. The story should never be made up of improbable
incidents; there should be nothing of the sort in it”, p.696. Ainda mais verdadeiro
para a escrita crítica historiográfica: verossimilhança: a construção da verdade
numa narrativa coesa e concisa, interpretar os indícios deixados pelo/no tempo.
literário-mitológica (a imitatio); de outro, o trabalho (o aemulatio); a
tradição e a possibilidade de transgredi-la: no mito de Ícaro, a
natureza e a ciência humana. Utilizando conceitos gregos,
construamos um tripé entre θύζιρ e νόμορ e ηέχνη.
Caelique cupidine tractus altius egit iter: voltamos a Ovídio;
saltemos para Bruegel.
II. né quando Icaro misero le reni9
da Antiguidade – e, no entanto, personagens já presentes em Ovídio,
espécie de ut poesis pictura10 de sua fonte.
Representação imagético-narrativa do mito de Ícaro e Dédalo é o
quadro Paisagem com queda de Ícaro, de Pieter Bruegel, o Velho.
hos aliquis tremula dum captat harundine pisces
Feito pelo pintor durante sua estadia em Bruxelas, na década de
aut pastor baculo stivave innixus arator
1560, a tela nos apresenta interpretação outra da queda de Ícaro.
vidit et opstipuit, quique aethera carpere possent
credidit esse deos.
Ovídio estranhado: Ícaro, mero detalhe no canto inferior
esquerdo do quadro. A representação aqui não é o puro mito, mas o
Acreditaram serem Dédalo e Ícaro deuses. Ícaro, do qual vemos
resultado alegórico que se encontra no trecho acima: a dialética entre
o homem que molda e batalha a natureza através do trabalho e a
inexorabilidade desta, uma vez que o homem dela depende para
sobreviver – e, segundo suas leis, condenado a morrer. Nos sumus
etiam tempora.
Primeiro, a superfície. Os trajes do agricultor e do pastor, os
instrumentos, a cidadela na encosta, as embarcações: elementos
apenas as pernas de um corpo que i/emerge n/do mar, dista das
idealizações e dramaticidade de um Rubens. O retrato de Bruegel é
bastante sóbrio e tácito, sem paixão. Encobre o quadro a perspectiva
comezinha de mais um dia de trabalho; o sofrimento de quem se
afoga é ignorado: about suffering they were never wrong, the Old
Masters11; de Ícaro não mais que uma mão o aponta. A
todos pintados como se do século de Bruegel, em nenhum momento
10
9
Dante Alighieri, Inferno, canto XVII, vv.109-111 – “né quando Icaro misero le
reni / senti spennar per la scaldata cera, / gridando il padre a lui: „Mala vita
tieni!‟”; Dante Alighieri, Commedia: Inferno (Mondadori Meridiani, 1991), p.529.
O expressão inversa é de Horácio, v.361 da Ars Poetica, In Opera (Oxford,
1901), p.264
11
Ver W. H. Auden, Collected poems (The Modern Library, 2007), p.179.
Preferimos não nos estender sobre o poema no texto, por acreditar que fugiria da
interpretação proposta; embora seja interessante compará-lo ao Landscape with
the fall of Icarus, de William Carlos Williams: ambos são registros poemáticos,
assaz diferentes, do mesmo quadro de Bruegel.
impessoalidade é conquistada pela perspectiva quase puramente
espacial do quadro: momento comedido de um movimento.
Aprofundemos. Um peregrino, trabalhador comum, desloca a
O mito descentralizado pelo trabalho cotidiano. A história do
passado a serviço da história do presente: Maquiavel reescreve Tito
Lívio 13. Os modernos dialogam com os antigos.
queda de Ícaro do centro do quadro: o agricultor no centro
A tradição é uma (re)construção e o passado é uma
conduzindo o arado. Quem é ele? É Adão, o homem após a queda,
(re)interpretação: “deslocamentos da pintura bruegeliana operados
que no suor do rosto comerás o pão, até que se torne a terra; porque
pela e contra a memorização ovidiana”14.
dela foi tomado; porquanto é pó e em pó se tornará12? Bruegel, ao
Ícaro afoga-se.
adaptar o trecho de Ovídio, realiza-o através de seu resultado
O fazendeiro continua a arar seu campo.
alegórico, adicionando o elemento cristão, e invertendo a
interpretação mito: o resultado da ὕϐπιρ humana não é a efetivação
da νέμεζιρ olímpica: a razão humana molda a matéria-bruta da
III. and the European mind stops15
natureza: o primado da ηέχνη, do trabalho. Hélio, Apolo, o Sol
abateram o homem e reduziram-lhe novamente a sua insignificância:
According to Brueghel
pouco importa. A morte de Ícaro é o negativo do trabalho dedáleo –
when Icarus fell
it was spring
lembremos, o mito continua. Dédalo consegue fugir do labirinto e
pousar no reino de Cocalo, onde se torna amigo íntimo do rei e
13
mecânico da corte, gozando de sua genialidade.
12
Gênesis, 3:19.
Maquiavel, nos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio (Martins
Fontes, 2007), pp.5-7, toma empreitada filosófica semelhante à recriação visual de
Bruegel em Paisagem com queda de Ícaro. O florentino esforça-se para
compreender seu tempo tomando os livros de Lívio como exemplares, longe de
tornar-se servo de seu mestre; imita-o, contudo adaptando-o ao presente; sua obra
ainda é, portanto, uma imitatio, de Tito Lívio.
14
Francisco Murari Pires, em “A morte do herói(co)”, cf. Bibliografia.
15
Ezra Pound, Canto CXV In The Cantos (New Directions,1993), p.814.
a farmer was ploughing his field
the whole pageantry
of the year was
awake tingling near
William Carlos Williams, poeta norte-americano, amigo de
infância de Ezra Pound e conhecido explorador do desconhecido no
verso.
Bruegel adapta Ovídio: Williams adapta Bruegel – according
the edge of the sea
to Brueghel. Terceira instância a partir do mito. Bruegel viu a queda
concerned
de Ícaro com os olhos de Ovídio: Williams vê a queda de Ícaro com
with itself
sweating in the sun
os olhos de Bruegel com os olhos de Ovídio.
A concisão e economia de meios em Williams poderiam,
that melted
numa primeira leitura, suscitar a mera descrição do quadro; o poema,
the wings‟ wax
entretanto, é narrativo, como o quadro. Versos que se aproximam da
inversão colocada por Bruegel – é, por assim dizer, uma adaptação
unsignificantly
off the coast
there was
verbal consumada do visual – representação da representação. A
disjunção da expectativa, no que Bruegel descentraliza o mito,
traduz-se na sintaxe quebrada, típica da obra de Williams. Os
a splash quite unnoticed
elementos relevados individualmente por Bruegel são transcriados
this was
entre as paredes do verso por Williams: it was spring, a farmer was
Icarus drowning16
ploughing his field, the edge of the sea <concerned with itself> (a
ação adjunta), a splash quite unnoticed. Ícaro aparece duas únicas
16
William Carlos Williams, “Landscape with the fall of Icarus”, orig. pub. o em
Pictures from Bruegel, 1943; In The collected poems of William Carlos Williams,
vol.2 (New Directions, 2001), p.385.
vezes: segundo verso, após o poeta tomar os olhos de Bruegel (com
os olhos de Ovídio), e no último, ação contínua e perene no passado
drowning. Um verbo contínuo inicia o poema, outro finaliza:
– presente – futuro.
according / drowning. Persiste o movimento e a tradição, em cacos
Ícaro afogando-se.
após duas grandes guerras, é (re)construída pelos modern(íssim)os.
O fazendeiro continua a arar seu campo.
O mito, no entanto, esvazia-se, para ser preenchido novamente.
O poema de Williams nos oferece narração fria e objetiva,
A tradição é uma (re)(re)construção e o passado é uma
minimamente construída, do quadro de Bruegel. Ausenta-se o mito
(re)(re)interpretação a encosta do mar absorta em si mesma suando
em completude; Ícaro, esvaziado da tradição que carrega, subsiste
no Sol que derreteu a cera das asas –
apenas como substantivo próprio, como subsistiu como duas
pequeninas pernas na tela. Williams, por sua vez, adiciona um
IV. et ignotas animum dimittit in artes17
elemento ao episódio a partir de Bruegel a partir de Ovídio: mesmo
se narrativo, o quadro é sempre um momento do movimento – a
perspectiva de Bruegel é quase puramente espacial – off the coast
Ícaro afogando-se na costa de Samos: seu nome no mar.
baliza qual ablativo anglicizado. A poesia, no entanto, é movimento,
Subimos as rochas da encosta cuja base é o mito nascente em
ao que se consuma no tempo – na fala. Ícaro cai entre um advérbio –
Ovídio. Meio do caminho, nossos olhos foram os do artífice de
unsignificantly – e um particípio adjetivado – unnoticed. Contra as
Bruegel, o trabalhador que observa a paisagem e nela a queda de
ondas de verbos narrativos no imperfeito batendo nas encostas da
Ícaro. Alguns metros acima, tomamos os olhos de Williams,
sintaxe rompendo-se, marés obrigam-nos a pausar atentivamente a
observador dos trabalhadores observando a paisagem e nela a queda
leitura de cada ofensiva súbita da cesura e de conjunções; analisa-se
o movimento. Vemos Ícaro cair – it was spring – of the year was –
there was – this was. E Ícaro realiza apenas duas ações – fell e
17
P. Ovidi Nasonis, Metamorphoses VIII, v.188; ou, a epígrafe de James Joyce, A
portrait of the artist as a young man (W. W. Norton, 2007).
de Ícaro. O observador do artífice é ele mesmo um artífice. Olhemos
capítulo central do livro, o terceiro. Segue o sermão de São
agora aos olhos do vento: aos olhos de Dédalo.
Francisco, a morte e o inferno divino, lar dos pecadores:
James Joyce, household name do modernismo angloamericano, elabora toda sua obra fundamentando-se no triálogo entre
A wasting breath of humiliation blew bleakly over his soul to
os antigos, modernos e modernistas. O Ulysses, dito inúmeras vezes,
think of how he had fallen, to feel that those souls were dearer to God
é a Odisséia do modernismo, e não só – é também sua Eneida, seu
than his. The wind blew over him and passed on to the myriads and
myriads of other souls, on whom God's favour shone now more and now
Fausto e sua Divina Comédia. Em A portrait of the artist as a young
less, stars now brighter and now dimmer, sustained and failing. And the
man, novamente Ícaro e Dédalo, Joyce elabora um bildungsroman a
glimmering souls passed away, sustained and failing, merged in a moving
partir das mudanças estético-sociais na Irlanda no entre-séculos,
breath. One soul was lost; a tiny soul: his. It flickered once and went out,
entremeio ao embate entre o protestantismo e catolicismo na tradição
forgotten, lost. The end: black cold void waste. (p.122)
cristã da Irlanda, entremeio ao material dos tumultos políticos à beira
da Guerra de Independência do país. Consumando uma comunhão
A queda, entre Ícaro e também Adão: a ὕϐπιρ é o pecado. A
entre as Metamorfoses de Ovídio – a reelaboração do mito em
Dedalus, diferente de Ícaro, é permitida absolvição através do
personagens arquetípicos – e Santo Agostinho – o Confiteor, centro
confessionário e da entrega da alma a Deus, dimensão agostiniana da
do romance, lembra-nos as Confissões do bispo de Hipona, Joyce
recuperará, na queda de Stephen Dedalus, a dimensão política do
mito – desnudar a forja onde se (re)produz a tradição.
O protagonista sofre duas quedas. A primeira queda, icária e
inconsciente, acontece devido à ὕϐπιρ na desobediência da lei divina
pelo pecado da impureza: o sexo com prostitutas. Estamos no
obra, consumando-se no capítulo quarto.
Há, no mesmo capítulo, uma segunda queda, mas é ela
Icária? É o mesmo mito, sem dúvidas. Agora, a queda não se dá
ocorre pela ὕϐπιρ, mas pela recusa consciente da lei divina, a
afirmação da lei humana, o alçar vôo do Dédalo:
Now, as never before, his name seemed to him a prophecy. So
além – existe no único presente, tempo de agoras, ao que Dedalus
timeless seemed the grey warm air, so fluid and impersonal his own
alça o vôo para além da adolescência – é a maturidade do
mood, that all ages were as one to him. [...] Now, at the name of the
fabulous artificer, he seemed to hear the noise of dim waves and to see a
pensamento, a afirmação do homem seguinte à recusa de Deus, o
winged form flying sunward above the sea, a prophecy climbing the air.
surgimento do indivíduo, o artífice consciente de si, o longtemps, je
What did it mean? Was it a quaint device opening a page of some
me suis couché de bonne heure de Proust, o romper final do fio da
medieval book of prophecies and symbols, a hawlike man flying sunward
tradição!
above the sea, a prophecy of the end he had been born to serve and had
been following through the mists of childhood and boyhood, a symbol of
the artist forging anew in his workshop out of the sluggish matter of the
earth a new soaring impalpable imperishable being?
Stephen Dedalus, o Ícaro-Adão joyceano, procura fugir do
labirinto do próprio subconsciente ao alçar vôo em direção às nuvens
– to live, to err, to fall, to triumph, to recreate life out of life! (p.150)
[...]
– se cair, que abracemos as ondas e vasculhemos o desconhecido no
His soul had arisen from the grave of boyhood, spurning her
fundo do mar! – tornando-se uma força natural ao modificar the
graveclothes. Yes! Yes! Yes! He would create proudly out of the freedom
sluggish matter of the earth em uma new soaring impalpable
and power of his soul, as the great artificer whose name he bore, a living
thing, new and soaring and beautiful, impalpable, imperishable. (pp.148149)
imperishable being. A queda de Ícaro não será mais a mesma como
interpretamos até então. Entretanto, no cume da montanha, voltamos
a sua encosta: Ovídio. Perfaz-se o trabalho humano frente às leis
Dois passos além de Bruegel, no qual o contraste entre o
artífice observador – Adão – e aquele que cai – Ícaro – ainda é tênue
divinas na natureza na afirmação da ποίηζιρ, a criação: o mito
reinterpretado.
e vaga; e, noutra direção, um passo além da frieza narrativa de
Joyce, igualmente, recupera a dimensão política do mito ao
Williams; em Joyce, as tradições Greco-romana e Cristã copulam:
tomar como pano-de-fundo as turbulências na Irlanda pré-Guerra de
Stephen Dedalus (con)funde-se com Ícaro e é o mesmo que Adão e é
Independência: estamos nas décadas finais do século XIX e iniciais
do XX, já após Marx, Kierkeegard e Nietzsche. Embora Dedalus
A tradição é uma (re)(des)(re)construção: movimento de
seja omisso à política em grande parte da obra, sendo exposto a ela
constante construção, reconstrução, desconstrução. O passado é uma
no início, e escondendo-se, quando adolescente, no manto jesuítico;
(re)(des)(re)interpretação: esquecer-se, lembrar-se. A tradição como
ao que, na universidade, esconde-se nas elucubrações filosóficas
batalha entre o histórico e o (pretensamente) ahistórico no que se
acerca de Tomás de Aquino e Platão e na busca do belo na poesia;
rompe o fio e o fardo da história – simultaneidade: o Erwige
acaba por sujar as mãos na argamassa política ao final da obra.
Wiederkunft de Nietzsche: a tradition de Eliot: a Jetztzeit em
Benjamin. Passado e futuro dissolvem-se no presente.
The soul is born [...] first in those moments I told you of. It has a
A tradição, longe de etérea, faz-se na forja do tempo e da
slow and dark birth, more mysterious than the birth of the body. When the
memória: emerge em dialética com o histórico, com o trabalho
soul of a man is born in this country there are nets flung at it to hold it
back from flight. You talk of me of nationality, language, religion. I shall
try to fly by those nets. (p.179)
material e intelectual. Na encosta, a manjedoura ovidiana: o mito
como arma política em Roma; o imitatio dos Renascentistas em
Bruegel;
Não se escapa da tradição: mesmo que seu fio, segundo
o
esvaziamento
do
mito
em
Williams;
a
re(des)interpretação do mito como arma política em Joyce.
Hannah Arendt, tenha-se rompido, sua força coercitiva permanece-
A voz que ecoa da garganta humana não é mais a da Musa,
se: we shall try to fly by those nets. Numa re(des)interpretação,
torna-se a do indivíduo. Ποίηζιρ: triálogo entre antigos, modernos e
devemos, pois, superá-la, e gritar a plenos pulmões: Welcome, O
moderníssimos; superação do trinônimo θύζιρ e νόμορ e ηέχνη.
life! I go to encounter for the millionth time the reality of experience
Subsiste o tempo e nunca é ele o mesmo e é sempre o
and to forge in the smithy of my soul the uncreated conscience of my
mesmo. Uma vez o dito o feito o sonho não perece. Há o
race (p.224).
movimento: vórtice da memória. Abraça-se o escuro do mar: se ao
O coming-of-age de Dedalus é o coming-of-age da tradição.
homem não é dado chegar ao Sol, o que o impede de explorar as
homem sobrehumano, a recuperação da dimensão heróica: a partir
profundezas do Oceano ou de conquistar a Lua?
do
homem
comum
humano?
Entre
antigos,
modernos,
moderníssimos.
There questions are very profound, Mr. Dedalus, Said the dean.
O fardo e o fio da tradição realmente se romperam?
It is like looking down from the cliffs of Mother into the depths. Many go
E que corpo que sempre e ainda e/imerge d/no mar?
down into the depths and never come uip. Only the trained diver can go
down into those depths and explore them and come to surface again.
ῥῆμα δ᾽ ἑπγμάηων χπονιώηεπον βιοηεύει,
(p.163)
ὅ ηι κε ζὺν Χαπίηων ηύχᾳ
γλῶζζα θπενὸρ ἐξέλοι βαθείαρ.18
Verte-se ao princípio inverso: Ovídio. O μύθορ persiste na
memória do mundo, constantemente (re)interpretado. A tragédia do
heróico de Ícaro será agora, em Dedalus, a tragédia do trabalho e da
política. et nos fuimus/sumus/erimus tempora.
Tomemos uma última fonte, visual: o Ícaro de Matisse,
gravura feita em pochoir no ano de 1947. É ainda Ícaro? O que
sugere? Ele se afigura – apresenta-se – em simples cores, simples
formas, simples linhas. A noite cobre azul o cosmo e o ser explode,
os astros cortam de amarelo, massa solta em todo breu; o mito que
em Ovídio aclara se dissolve: nem a narrativa de Bruegel, tampouco
a concisão de Williams. Um ponto rubro, entanto, aclara a negra
essência: oníricos recônditos em Joyce, o tempo em Agostinho, o
18
Píndaro, IV Neméia, vv.6-8; citado de Pindar, Nemean Odes, Isthimian Odes,
Fragments (Loeb Classical Library, 1997) – na trad. de William H. Race, “For the
words live longer than deeds, / which, with the Graces‟ blessing, / the tongue
draws from the depths of the mind.”
This lantern doth the hornèd moon present.
Myself the man i'th’ moon do seem to be.19
[fragmentos de uma conclusão]
A ruptura de nossa tradição é realmente um fato acabado?
Em Joyce, inverte-se o primado da razão/providência para dar vazão
à supremacia do trabalho/homem. [A condição humana só será
superada no momento em que o homem conquistar a morte, ou ao
menos saber o que está para além dela.]
A tradição aparece-nos como a encosta acidentada, montanha
de píncaros e cavernas perigosíssimas, onde nos metemos em
passagens obscuras, becos sem saída, corredores íngremes, caminhos
maravilhosos nunca percorridos. O homem, ao atravessá-los,
modifica-os, dando nova feição à montanha, cuja base, neste caso, é
Ovídio. Atravess(ar)am-na, mediante tortuosos dutos, Dante;
Bruegel; Goethe; Pound; Williams no mesmo caminho de Bruegel;
Joyce no caminho de Píndaro, Ovídio, Dante, Bruegel, Goethe,
* Ícaro
Santo Agostinho; viram-na Hannah Arendt e Nietzsche.
Henri Matisse, 1947
© The Metropolitan Museum of Art, NY
19
Starveling [como Moonshine] em A midsummer’s night dream V, ato 1, vv.235236; citado de The Norton Shakespeare (W. W. Norton, 2005), pp.891.
[Da tradição à história: as vicissitudes do mito na construção
Os soviéticos lançam o Sputnik no espaço. O mesmo
da memória em Tucídides. Elementos da tragédia, construção da
permanece durante algumas semanas e, depois, cai. Os deuses ainda
verdade.]
não admitem a presença de objetos humanos entre eles.
[Notre héritage n’est précedée d’aucun testament em René
Hannah Arendt, no prólogo à Condição Humana, declara as
Char. Kafka como a flor da estufa do horror, início e fim da
palavras de um repórter americano, cujo nome, omitido pela autora,
literatura moderna.]
destaca a mensagem na ausência de qualquer atribuição: “a
[Veracidade no trabalho histórico? Tucídides e os problemas
da causalidade e do tempo linear. Recuperar os antigos como
homens, seres humanos.]
[Joyce entre Dédalo e Jesus Cristo – Ovídio e Santo
Agostinho. Et tu cum Iesu Galilaeo eras – Matheus 26.69)]
humanidade não permanecerá para sempre presa a terra.”
[Joyce e Benjamin, no que resta ao homem, mediante sua
sensibilidade, elevar sua experiência individual (Erlebnis) aos
patamares da experiência comunal (Erfahrung) da narrativa, através
da reavaliação da tradição e da semelhança.]
[Romper com a natureza e conquistar por vez o espaço:
[Hannah Arendt: “A era moderna trouxe consigo a
tornar-se sobrehumano, segundo Hannah Arendt, é romper
glorificação do trabalho, e resultou na transformação efetiva de toda
(definitivamente?) com a tradição de idéias que se constrói desde os
a sociedade em uma sociedade operária. A sociedade que está para
antigos; ou, reinterpretá-la à luz de novos dados? Inclinamo-nos ao
ser libertada dos grilhões do trabalho é uma sociedade de
segundo; no entanto, a tradição assenta-se em uma idéia, mesmo que
trabalhadores...O que se nos depara, portanto, é a possibilidade de
vaga, do que é o homem... haverá rompimento. O tempo será outro.]
uma sociedade de trabalhadores sem trabalho, isto é, sem a única
O ano é 1957, uma década antes de 2001: Uma odisseia no
espaço e do Ubik de Philip K. Dick. E, todavia, a realidade torna-se
cada vez mais semelhante à ficção científica.
atividade que lhes resta. Certamente nada poderia ser pior.”]
Horácio, Ode segunda do livro IV:
Pindarum quisquis studet aemulari,
Iulle, ceratis ope Daedalea
nititur pinnis, uitreo daturus
nomina ponto.
[Ícaro, Prometeu, condição humana coloca – o homem entre
passado e futuro no eterno presente – o homem que desobedece a lei
divina: o primeiro tenta vencer as forças da natureza através da arte
monte decurrens uelut amnis, imbres
humana. Joyce no ápice da criação: Stephen Dedalus abandona a lei
quem super notas aluere ripas,
divina e afirma-se na ποίηζιρ, em todas suas conseqüências positivas
feruet inmensusque ruit profundo
e negativas – os antigos dialogam com os modern(íssim)os: a arte,
Pindarus ore,
ainda em Bruegel e Maquiavel, é imitatio de uma tradição, e imitatio
[...]
da natureza, natura naturata. A arte em Joyce e no modernismo
multa Dircaeum leuat aura cycnum,
recupera a latência em Píndaro: natura naturans. Dois núcleos a
tendit, Antoni, quotiens in altos
partir da epígrafe: entre o apis Matinae more modoque de Horácio e
nubium tractus; ego apis Matinae
o monte decurrens velut amnis de Píndaro: a natura naturans.
more modoque
Empédocles afogando-se no Etna para provar que é um Deus. O
grata carpentis thyma per laborem
homem pindárico. O Sputnik no espaço e o homem pisando na Lua
plurimum circa nemus uuidique
em 1969. Modernismos entre Píndaro, Prometeu e o Sputnik: o
Tiburis ripas operosa paruus
homem conquistando o espaço divino: natura naturans.]
carmina fingo.
[...]20
[Hannah Arendt: “Esse homem futuro, que segundo os
cientista será produzido em menos de um século, parece motivado
por uma rebelião contra a existência humana tal como nos foi dada -
20
Q. Horati Flacci, Carminum Liber IV.II, vv.1-8 & 25-32, In Opera (Oxford,
1901), pp.88-89; a trad. de Pedro Braga Falcão encontra-se em Horácio, Odes
(Cotovia, 2008), pp.262-265.
um dom gratuito vindo do nada (secularmente falando), que ele
deseja trocar, por assim dizer, por algo produzido por ele mesmo.
[Formulamos a pergunta não mais como o que somos, mas o
Não há razão para duvidar de que sejamos capazes de realizar essa
que seremos. Quase sabemos para onde vamos. Ícaro agora poderá
troca, tal como não há motivo para duvidar de nossa atual
alçar voo, tomar o coche apolíneo sem cair no mar? Verte-se ao
capacidade de destruir toda a vida orgânica da Terra. A questão é
princípio inverso: Ovídio. Júlio César já se transforma em um
apenas se desejamos usar nessa direção nosso novo conhecimento
cometa ao fim das Metamorfoses.
científico e técnico - e esta questão não pode ser resolvida por meios
científicos: é uma questão política de primeira grandeza, e, portanto,
hanc animam interea caeso de corpore raptam
não deve ser decidida por cientistas profissionais nem por políticos
fac iubar, ut semper Capitolia nostra forumque
profissionais.” Dedalus afirma-se como artífice: o Deus da criação
divus ab excelsa prospectet Iulius aede!”
poética – The artist, like the God of the creation, remains within or
vix ea fatus erat, medi cum sede senatus
behind or beyond or above his handiwork, invisible, refined out of
constitit alma Venus nulli cernenda suique
existence, indifferent, paring his fingernails – Flaubert, 1857.]
Caesaris eripuit membris nec in aera solvi
passa recentem animam caelestibus intulit astris
[Marx: “O trabalho criou o homem” – e vice-versa: a natura
dumque tulit, lumen capere atque ignescere sensit
naturans em Píndaro – homem como força da natureza.]
emisitque sinu: luna volat altius illa
flammiferumque trahens spatioso limite crinem
I have brought the great ball of crystal;
stella micat natique videns bene facta fatetur
21
esse suis maiora et vinci gaudet ab illo.22
who can lift it?
22
21
Ezra Pound, Canto CXVI In The Cantos (New Directions,1993), p.815.
P. Ovidi Nasonis Metamorphoses XV, vv.840-851, pp.479-480; na trad., p.388
(v. nota 5).
O trabalho da aemulatio Caminhamos para uma sociedade
sem trabalho? Onde o trabalho, finalmente consumado, dominará
homem sobreviverá. E talvez tais dúvidas alhures consumar-se-ão na
forja de novas Ilíadas, Odisséias.
por vez a natureza, desligando o homem de suas raízes, tornando-o
„αὐηὰπ ἐπεί ῥ᾽ ἐπὶ νῆα καηήλθομεν ἠδὲ θάλαζζαν,23
sobrehumano, desligando-o da necessidade de trabalhar? Torná-lo
independente da terra e das condições às quais, do primeiro homem
em milhões de anos a fio até hoje, foi submetido? Politicamente
viverá no ócio, como Hannah Arendt acreditava ter sido o caso na
πολιρ grega, retomando o primado da razão sobre o trabalho? Ou o
dualismo será finalmente superado? A condição humana deixa de ser
icária, tampouco prometéica. Tamborilar as asas em direção à Lua.
O homem está preparado para carregar o fardo do fio rompido?
[A condição humana só será superada no momento em que o
homem conquistar a morte, ou ao menos saber o que está para além
dela. Até então, o único meio encontrado pelo homem foi a memória
solidificada no verbo.]
E qual será o papel da (meta)história nesta nova ordem de
coisas? Após longa subida na escarpa da tradição, ainda foi/é/será
possível a história reter seu papel de magistra vitae na medida em
que (re)construiremos novas verdades? Voltamos a Ovídio na
23
dissolução dos tempos: mesmo além do homem, (a memória d)o
Odisséia, canto XI, v.1; no que ecoamos Ezra Pound no verso primo do Canto I
– “and then went down to the ship”. Trajano Vieira traduz como “quando nos
deparamos com a nave no mar”, cf. Odisséia (editora 34, 2011).
ΑΙΑΣ.
ἅπανθ᾽ ὁ μακρὸς κἀναρίθμηηος χρόνος
θύει η᾽ ἄδηλα καὶ θανένηα κρύπηεηαι:
κοὐκ ἔζη᾽ ἄελπηον οὐδέν,
AJAX.
O tempo, em sua sucessão de números,
revela e encobre o que trazia à luz,
inexiste o imprevisto.
ΑΙΑΣ ΣΟΘΟΚΛΗΣ vv.346-348
trad. Trajano Vieira
(São Paulo: Perspectiva, 1997)
* Cartão-postal comemorando o lançamento do
Sputnik
N. Shishlovsky, 1958
© Rykoff Collection
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