Entre diferentes culturas, entre diferentes tradições – o pensamento

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Entre diferentes culturas, entre diferentes tradições
– o pensamento constelar de Walter Benjamin1
Susana Kampff Lages
A obra de Walter Benjamin, intelectual alemão, judeu, que
viveu durante o politica e artisticamente fervilhante período
histórico do entre-guerrras, na assim-chamada República de
Weimar, manifesta permanentemente o conflito derivado da
consciência da duplicidade de sua origem pessoal e intelectual
(judeu e alemão), que se manifesta no caráter contraditório de
seus escritos e de sua carreira intelectual. Essa consciência, incapaz
de fixar uma origem unitária e segura para si mesma, mantém-se
num movimento de errância contínua entre diferentes momentos,
movimento do qual a idéia judaica do exílio é imagem exemplar e
tem seu correlato, na cultura grega, no périplo ulissiano em seu
retorno a Ítaca (embora, para a consciência moderna, Ítaca, no
sentido de uma luckacsiana pátria transcendental, tenha-se
perdido). Pois é precisamente ao instalar-se entre a tradição
clássica da cultura ocidental, sobretudo de sua matriz grega, e a
tradição judaica, no conjunto de suas múltiplas e contraditórias
manifestações, que o pensamento benjaminiano produz suas mais
instigantes reflexões.
Arnaldo Momigliano (1982) observa que a riqueza do
pensamento benjaminiano provém, paradoxalmente, de seu restrito
conhecimento de fontes primárias dos conceitos com que operava:
as informações de que dispunha sobre judaísmo e Cabala
provinham fundamentalmente da obra do pensador judeu-alemão
Franz Rosenzweig e daquilo que lhe comunicava o amigo Scholem,
Cadernos de Letras - n. 23 - p. 49-67 - jan./dez. 2007
50 .
por carta e em conversas,2 e seu conhecimento do marxismo não
se apoiava diretamente no estudo sistemático dos textos nem de
Marx (com exceção da análise marxiana da França do século XIX,
fundamental para a reflexão de Benjamin sobre Baudelaire), nem
de seus contemporâneos Lênin e Trotski, embora ele estivesse
familiarizado com a obra de Lukács e Ernst Bloch. Talvez se
origine daí a força interpretativa de seu texto, de sua corajosa
capacidade de ignorar a tradição para reinterpretá-la mais
verdadeiramente, mais fielmente. E, com ela, aflora a tonalidade
tristonha do comentário benjaminiamo, como afirma Momigliano:
“Benjamin encarna a tristeza do crítico que não pode mais ter fé
na tradição intelectual que comenta” (Cf. MOMIGLIANO, 1982, p.
211-4) - uma tradição cuja verdade - segundo o comentário de
Benjamin a Kafka - se perdeu e só pode ser recuperada em seu
elemento hagádico, isto é, em sua pura e simples capacidade de
ser mantida por meio da transmissão, da narração fiel não à
tradição, ou à verdade, mas à sua memória. Pois é também de fé,
de fidelidade [lat. fide] que se trata quando, em Benjamin, o
conceito de verdade é utilizado. Convém assinalar aqui que a
palavra hebraica que designa verdade - ’emet - possui conotações
diversas da palavra grega aletheia, que designava, na esteira da
interpretação heideggeriana,3 o processo de fazer aflorar a coisa,
liberta de determinações contingentes. Enquanto no pensamento
grego haveria uma tendência a separar o essencial do contingente,
o sujeito do objeto, relacionando a verdade com o processo do
conhecimento, ’emet, a palavra hebraica para verdade, contém
uma gama de conotações diversa, significando sobretudo
fidelidade, no sentido de adequação ética a preceitos dirigidos a
uma ação prática, historicamente situada. Como diz Quinzio:
A palavra hebraica que se traduz por ‘verdade’ é ’emet, mas a
constelação de significados que tal palavra designa está muito distante
daquela designada por ‘aletheia’. Na Grécia encontramos um
pensamento que separa o essencial do contingente, o sujeito do objeto,
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e encontramos de qualquer forma a verdade referida à consciência.
’Emet significa sobretudo ‘firmeza’, ‘estabilidade’, referindo-se a pessoa
ou coisa; em relação a palavras ditas ou escritas significa ‘verdade’,
mas no sentido de ‘credibilidade’, ‘certeza’. (...) Verdade pois, no
horizonte hebraico é sobretudo aquilo que se chamaria de ‘fidelidade’;
e , de fato, ’emet pode sempre ou quase sempre traduzir assim. (QUINZIO,
1984, p. 23)
De fato, esse significado de adequação, de fé, está
relativamente próximo do termo latino que acabou prevalecendo
enquanto designação para a verdade na cultura ocidental [em latim:
veritas, vero, significando adequação, adequado];4 entretanto, toda
a tradição da metafísica ocidental parece ter guardado,
secretamente, aquela antiga significação da palavra grega, que
define verdade enquanto atributo do conhecimento, desligado da
experiência, da ação prática - essa dimensão, cara não só ao
Benjamin marxista,5 como também ao Benjamin do ensaio sobre
o narrador, que parece lamentar nostalgicamente o
desaparecimento da dimensão da experiência vivida na narração
moderna. Nesse sentido, a nostalgia do narrador seria também a
nostalgia de uma verdade entendida não como valor absoluto, mas
como algo relativo, contingente e que se constrói a partir de uma
relação presente com o passado. Assim, ao desejar resgatar esse
aspecto da verdade, Benjamin atualiza também uma dimensão da
memória da própria palavra “verdade”, Wahrheit, pelo recurso ao
étimo comum latino.6
Ora, para a religião, a conexão entre verdade e fé é evidente
e fundadora, pois pressupõe a afirmação da existência de um Deus.
Entretanto, essa mesma existência de Deus é, em muitos casos,
posta em questão, sobretudo quando a experiência religiosa se
transmuta em experiência mística, ou se torna objeto de reflexão
teórica, ou seja, da teologia - saber que tem consciência da
intangibilidade fundamental do seu objeto. Particularmente no
judaísmo, as fronteiras entre a religião por assim dizer “oficial”
52 .
ou, de maneira mais precisa, entre judaísmo rabínico, reflexão
teológica e correntes místicas são muito pouco definidas, pois o
judaísmo, diferentemente do cristianismo, não só aceita, como
mesmo promove, atitudes francamente heréticas.7
Segundo o relato bíblico do Antigo Testamento, Deus
alternadamente revela-se e se oculta, é simultaneamente presença
e ausência, constituindo-se na dimensão processual de seu aparecer
num determinado momento histórico. À diferença da tradição
cristã, cuja interpretação medieval de Deus como essência
onipresente funda uma linhagem de exegese onto-teológica na qual
a fenomenalidade, a historicidade praticamente não tem lugar, no
contexto judaico não há jamais garantia de uma onipresença de
Deus. Ele se manifesta apenas nos encontros com seu povo, em
momentos históricos específicos. Essa dimensão histórica, presente
na experiência bíblica judaica, será reabilitada na modernidade
em um tipo de pensamento que irá questionar suas bases
ontológicas: nas assim chamadas teorias “irracionalistas”, cujos
principais representantes (Nietzsche, Schopenhauer, Bergson)
evocaram o avesso de uma tradição filosófica, baseada na crença
na autonomia da razão; esse movimento encontrará sua dimensão
mais radical no pensamento instaurado com a psicanálise e a
descoberta freudiana da dimensão do inconsciente, isto é, uma
dimensão que só se deixa apreender pelo negativo e cujas
categorias só podem ser definidas historicamente e não tomadas
como essências eternas, partícipes de uma estrutura categorial fixa.
O pensamento e a obra de Benjamin inscrevem-se, juntamente
com o conjunto dos pensadores da “Escola de Frankfurt”
(sobretudo Adorno e Horkheimer), numa vertente de pensamento
que efetua uma reabilitação, por meio de sua leitura da obra de
diferentes filósofos da tradição, dessa dimensão históricofenomenal do conhecimento, característica do contexto judaico,
para o qual a experiência em sua concretude histórica é elemento
fundador.
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Quando Benjamin refere-se à palavra verdade, à Wahrheit,
um duplo eco ressoa, pois, em seus textos: um é a resposta da
tradição grego-latina, cujo desenvolvimento encontra-se, na
filosofia, em uma linhagem de pensamento que se inicia com
Platão, passa pelos pais da Igreja e culmina no idealismo e no
romantismo alemães (nos quais ela começa a ser questionada);8 o
outro, a resposta da judaica, centrada menos num sistema de
pensamento do que na experiência transmitida por meio de
diferentes formas narrativas, desde aquela, de cunho mais
abertamente religioso, contida na Torá, passando pelos
comentários do Midrash e do Talmud até as infinitas formas de
anedotas, estórias transmitidas oralmente. Trata-se de respostas
de diferente natureza diante da existência e do mundo: a tradição
grega constitui, por sua específica visão, a matriz da metafísica e
do pensamento de caráter ontológico, calcada num tipo de
transmissão do conhecimento que tem como meio privilegiado a
escrita, que acabou tornando-se predominante no pensamento
ocidental; a tradição judaica, por sua vez, privilegia a experiência
historicamente determinada e a transmissão da verdade da tradição
também por meio da linguagem empregada na contingência da
comunicação oral, no diálogo com o outro: “uma verdade que se
faz no tempo, na concretude da vida e da história, bem diversa da
verdade eterna que metafisicamente se contempla.” (QUINZIO, 1984,
p. 24). José Faur caracteriza essas diferentes tradições, referindose à visão judaica como uma visão “semiológica” e à grega, como
“ontológica”, privilegiando o papel do signo, da linguagem, na
tradição judaica e declarando não existir uma visão mais correta
do que a outra. Tratar-se-ia, segundo Faur, de uma questão de
“opção”:
Não há fundamentos a priori para determinar se o universo deve ser
apreendido como um sistema metafísico ou semiológico; é uma questão
de “escolha” que irá determinar a validade de um sistema sobre o outro.
54 .
[...] A diferença mais importante entre uma entidade semiológica e uma
entidade metafísica é que a primeira significa, enquanto a segunda é.
[...] Para o povo do Livro [os hebreus], entretanto, os fenômenos
físicos são significativos: a “escrita” é intríseca à natureza. (FAUR, 1986,
p. 23)
Também o conhecido ensaio de Auerbach, “A cicatriz de
Ulisses”, demonstra haver uma diferença relevante na concepção
do tempo nas duas tradições, por meio de sua análise,
respectivamente, de episódios da Odisséia e do Antigo Testamento.
Essa diferença é marcada sobretudo por um uso de diferentes
recursos narrativos e de linguagem nos dois textos, representativos
- para não dizer fundadores - dessas duas linhagens
da cultura ocidental, as quais foram reelaboradas de forma singular
na obra de Walter Benjamin. (Cf. AUERBACH, 1976, p. 1-20)
Há uma estória, mundialmente famosa, no acervo da tradição
judaica, em que a palavra hebraica que designa verdade, ’emet,
tem um papel fundamental: trata-se da estória do Golem, o homem,
criado pelo próprio homem, por meio de magia, a partir do barro,
à semelhança de Adão criado por Deus, e cujos primeiros registros
remontam à Idade Média. Para dotá-lo de vida, o criador, em geral
algum rabino, tinha de aplicar sobre a fronte da criatura um nome,
que em algumas versões da história é identificado à palavra ’emet,
verdade, em outras, ao próprio nome de Deus. Ao receber um
nome, o boneco de barro ganha vida (mas não, linguagem, já que
segundo a lenda, o Golem é mudo). Uma vez vivo, o ser não pára
de crescer e acaba por se tornar perigoso, pelo tamanho que atinge.
Por isso, é necessário eliminá-lo: por uma alteração nas letras do
nome inscrito em sua fronte, à maneira das permutações mágicas,
ele é levado a morrer, a voltar à terra: a eliminação da primeira
letra, alef, resulta na palavra met que significa morte. Nesse ponto,
o caráter mágico presente na cultura judaica, em especial, na
tradição cabalística, remete-nos a um aspecto fundamental da
cultura grega, que é de suma importância não só para Benjamin,
. 55
como também para toda a reflexão sobre a linguagem,
empreeendida pela literatura moderna: o conflito entre uma visão
cratilista e uma visão que poderíamos chamar de hermogênea da
linguagem, assim como apresentada por Platão no Crátilo. O
problema da adequação entre nome e coisa conduzido por Sócrates
nesse diálogo constitui o fundamento de qualquer discussão
moderna sobre a linguagem e dá origem a duas vertentes, nomeadas
segundo os interlocutores de Sócrates no diálogo - Hermógenes e
Crátilo. A primeira, ligada ao que hoje chamamos, a partir de
Saussure, arbritariedade do signo ou da linguagem, ou depois de
Benveniste, de convencionalidade do signo, contraposta a uma
linhagem cratilista, cujo cerne é a idéia de algo que hoje se
convencionou chamar caráter não-arbitrário ou motivado do signo.
Toda a filosofia, e toda a literatura posterior a Platão, terá de lidar
de alguma forma com essa duplicidade, procurando superá-la,
assumindo uma atitude que Genette9 denomina “cratilismo ou
mimologismo secundário” e que busca corrigir o mallarmaico
“defeito das línguas”, recobrando um estado de adequação
“natural” entre a linguagem e as coisas. Caracterizando tal
movimento como secundário, Genette acentua assim o fato de
haver uma distância, um afastamento de um contexto de primeiro,
originário e o fato de que esse movimento procura, a partir dessa
distância, mimetizar, reproduzir um movimento anterior. Assim,
a duplicidade que tal “mimologismo secundário” postula tornase, por sua vez, igualmente dupla.
Se, pois, verdade implica duplicidade, enquanto movimento
que busca adequação entre as coisas e os nomes, natureza e
linguagem, para Benjamin, ela é também algo que se encontra
disperso nas coisas e na linguagem, enquanto unidade
potencialmente resgatável a partir de seus fragmentos.10 Para
sublinhar o aspecto não unitário da verdade, Benjamin usa
inúmeras vezes, ao longo de sua obra, imagens de luz: relâmpagos,
clarões, faíscas, centelhas, aura, lume, imagens que, como
56 .
instantâneos fotográficos, apreendem o movimento em sua
essencial fugacidade.11
A idéia de uma verdade fragmentada, dispersa liga-se, por
meio da imagem da quebra dos vasos, a uma imagem extraída da
cabala luriânica,12 a uma questão que é particularmente relevante
no contexto do judaísmo: a tensão entre origem e êxodo, exílio;
identidade e exterioridade ou “estrangeiridade”, na qual está
embutida a questão, eminentemente dialética, da identidade como
momento, que para ser alcançado, deve necessariamente passar
pela alteridade. Se em sua constituição, esse movimento deve se
definir por uma negatividade, no caso da tradição judaica, a tensão
que se institui a partir da necessidade, fundada miticamente na
experiência do exílio, de partir do solo natal e de errar pelo mundo,
parece ligada não tanto a uma exclusão absoluta que impede o
acesso à verdade, mas a um valor de positividade, a uma forma
mais autêntica de se relacionar com o “verdadeiro”, como destaca
Blanchot, em seu ensaio Être juif [“Ser judeu”]:
Se é preciso ir embora e errar, é porque, excluídos da verdade, somos
condenados à exlusão que proíbe toda e qualquer morada? Não será
sobretudo porque essa errância significa uma relação nova com o
“verdadeiro”? Não será também que esse movimento nômade (onde
se inscreve a idéia de partilha e separação) se afirma, não tanto como
eterna privação de um domicílio, mas como uma maneira autêntica de
residir, de uma residência que não nos liga à determinação de um
lugar, nem à fixação a uma realidade já fundada, segura, permanente?
[grifo meu] (BLANCHOT, 1969, p. 180)
O recurso a questões específicas do judaísmo, sobretudo, à
particular tradição narrativa judaica que com elas possui laços
estreitos, tem sua contraparte na apropriação peculiar de Benjamin
da concepção platônica da verdade como acessível apenas sob
determinada forma de exposição, ou apresentação (Darstellung).
De fato, a questão da verdade como inseparável da questão de sua
. 57
apresentação constitui o cerne das reflexões iniciais do prólogo
ao livro sobre a Origem do Drama Barroco Alemão. Concepções
tipicamente judaicas,13 que marcam fortemente a primeira versão
do prólogo, serão substituídas pelo recurso à teoria platônica das
idéias. Benjamin parte sobretudo de uma leitura do mito da caverna
e da relação entre verdade e beleza no Simpósio, procurando definir
a verdade ontologicamente pelo negativo, como algo que se subtrai
ao conhecimento e que só pode ser conhecido na medida em que
se desdobra na forma de sua apresentação (Darstellung), à qual
ela se encontra ligada numa relação indissolúvel. Sendo assim, a
verdade em Benjamim assume o estatuto de categoria estética,
como sublinhou Jeanne Marie Gagnebin.14 E a questão da
apresentação (Darstellung) em Benjamin encontra-se intimamente
ligada à questão da linguagem não como comunicação, nem como
elemento mediador, mas como algo que só adquire existência ao
ser exposto, apresentado. Como escreve Hans-Jost Frey, o que
se apresenta na apresentação (Darstellung) é algo ausente que só
adquire forma e, portanto, existência, na medida do seu apresentarse:
O que se apresenta na apresentação não é comunicável. Apresentação
não é mediação. Isso significa que o que é apresentado não é o que é
dito. No entanto, apresentar é sempre dizer, uma vez que não há
linguagem que não comunique. Apresentar, então, é um falar ou escrever
que nunca cessa de comunicar, mas que realiza além disso
algo diverso, de que a comunicação é excluída. (FREY, 1996, p. 13964).
A questão de uma linguagem que chega aos limites do
comunicável é particularmente relevante na reflexão sobre a
literatura moderna e sua relação com outros discursos, como a
filosofia, a história, sendo Benjamin um dos autores que mais
contribuiu para instaurar um diálogo simultaneamente inventivo
e rigoroso entre os vários campos das ciências humanas.
58 .
Walter Benjamin articulou sua reflexão sobre a história, em
sua dupla determinação (Geschichte, em alemão, significa tanto
história como processo e como ciência, disciplina, quanto história
como narrativa ficcional - “estória”, como diria Guimarães Rosa15),
construindo um discurso crítico que procurou tirar proveito de
sua sensibilidade para o literário e, por outro lado, atraindo uma
determinada concepção da história (uma concepção de história
simultaneamente derivada do historicismo que o precedeu e
abertamente oposta a ele) para o interior da reflexão sobre a
literatura. Para Walter Benjamin, a dimensão da história interessa
enquanto recurso hermenêutico, uma vez que a história enquanto
disciplina lhe serve prioritariamente para fornecer-lhe modelos
de interpretação dos fatos históricos, e não apenas, em primeira
linha, o relato desses fatos. Nesse sentido, Benjamin é
profundamente fiel à concepção de história que predomina na
tradição judaica, segundo a qual, diferentemente da tradição grega,
a história possui alguma verdade a oferecer e, portanto, tem o seu
lugar no interior da teologia e da filosofia.16
No ensaio sobre o narrador, Benjamin (1985, p. 197-221)
apropria-se de aspectos de ambas as tradições narrativas, a grega
e a judaica, delineando o perfil de uma figura que é protagonista
de uma arte, considerada por ele em vias de extinção: a arte de
contar histórias. As características que Benjamin depreende de
sua leitura, não apenas da obra do escritor russo, Nikolai Leskov,
mas dos vários autores europeus por ele citados, podem servir
perfeitamente para descrever o narrador típico da tradição judaica:
seu protótipo é o Baal Schem Tov, fundador do movimento
hassídico, na Polônia do século XVII, personagem que é um misto
de sábio e santo e de homem comum que sabe contar uma história
que serve para ajudar alguém, como um conselho. O narrador à
moda antiga, cujo progressivo desaparecimento é lamentado por
Benjamin, tem duas características básicas, que o aproximam do
típico narrador da tradição judaica: sábio e justo, sua sabedoria
. 59
provém de sua experiência prática de vida. Nessas histórias, o “...
personagem central é o justo, raramente um asceta, em geral um
homem simples e ativo, que se transforma em santo com a maior
naturalidade.” (p. 200)
Assim como praticada pelo narrador tradicional, que conta
suas histórias de cor, a arte da narrativa parte de um particular
estado de distensão, propício à conservação das histórias com o
intuito de recontá-las, contá-las novamente:17
Se o sono é o ponto mais alto da distensão física, o tédio é o ponto mais
alto da distensão psíquica. O tédio é o pássaro de sonho que choca os
ovos da experiência. O menor sussuro nas folhagens o assusta. Seus
ninhos - as atividades intimamente associadas ao tédio - já se
extinguiram na cidade e estão em vias de extinção no campo. Com
isso, desaparece a comunidade dos ouvintes. Contar histórias sempre
foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não
são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece
enquanto ouve a história. (BENJAMIN, 1987, p. 204-205)
Essa atenção simultaneamente concentrada e distesa de quem
ouve uma história18 é propiciada pelo tédio, que enquanto momento
simultaneamente atento e vazio é um estado afim ao que
acompanha toda criação poética: não será casual, pois, o uso por
parte de Benjamin de uma imagem estranhamente poética para
descrever o modo de atuação desse particular estado de espírito,
em que sono e vigília se alternam e se confundem como numa das
mais antigas fontes de poesia, o sonho: “O tédio é o pássaro de
sonho que choca os ovos da experiência”. Nesse espaço
intermediário, a história estabelece uma ligação, sempre provisória,
entre seu conteúdo e sua interpretação. Benjamin identifica nessa
força da narrativa que, por ser recontável, torna-se autônoma em
relação ao próprio narrador, um traço das antigas narrativas
históricas de Heródoto, o “pai da História”. Por outro lado, sua
reflexão está impregnada da particular ligação entre história e
narrativa presente na tradição judaica. Gerschom Scholem, ao final
60 .
de seu livro Grandes Correntes da Mística Judaica, conta uma
história hassídica, como ele a teria ouvido contar pelo escritor
Schmuel Iossef Agnon:
Quando o Baal Schem tinha uma tarefa difícil à sua frente, ia a um
certo lugar no bosque, fazia um fogo e meditava em prece - e o que
decidia realizar era feito. Quando, uma geração depois, o Maguid de
Mesritsch se deparava com a mesma tarefa, ia ao mesmo lugar no bosque
e dizia: Não sabemos mais acender o fogo, mas sabemos ainda proferir
as preces - e aquilo que pretendia tornava-se realidade. Passada mais
uma geração, o Rabi Mosché Leib de Sassov precisou executar a tarefa.
Também foi ao bosque e disse: Não sabemos mais acender o fogo, nem
sabemos mais as meditações secretas pertencentes à prece, mas
conhecemos o local no bosque a que tudo isso diz respeito - e deve ser
o suficiente; e era suficiente. Mas passada outra geração, quando Rabi
Israel de Rijn foi chamado a executar a tarefa, sentou-se em sua poltrona
dourada, no seu palácio, e disse: Não sabemos acender o fogo, não
sabemos dizer as preces, não conhecemos o local, mas podemos contar
a estória de como isto foi feito. E, o narrador acrescenta: A estória que
ele contou teve o mesmo efeito das ações dos outros três. (SCHOLEM,
1972, p. 350)
Aqui estamos diante da linguagem em sua dimensão
performativa: quando dizer é fazer, ou seja, quando a palavra tem
o poder de interferir efetivamente na realidade, a tonalidade
melancólica esmorece - mas não desaparece - e o que resta é a
felicidade de uma revelação consumada. Essa história da tradição
hassídica constitui o relato, conduzido com a necessária sobriedade
e sapiência, da origem da própria narrativa, como única alternativa
viável de acesso a uma dimensão passada da experiência. Ao contar
uma história, uma dimensão do passado é atualizada, passando a
poder fazer parte da experiência atual dos ouvintes e do narrador
e, com isso, operar uma alteração fundamental no presente. Não é
de todo inaudível o melancólico lamento que ressoa de maneira
tênue nessa história: a narrativa nada mais é do que um modo de
lidar com essa inevitável e grande perda de um objeto denominado
. 61
tempo passado, transportando-o, imaginariamente, pelo recurso à
narração, para o interior do presente.
Susana Kampff Lages
UFF
Notas
1
Em boa parte, o presente texto encontra-se anteriormente publicado
em meu livro Walter Benjamin. Tradução e Melancolia. São Paulo:
Edusp, 2002. p. 115-131.
2
Há certa dose de exagero na descrição que faz Momigliano, já que,
por um lado, sabemos pela correspondência com Scholem, que, nas
primeiras décadas deste século, ambos, Benjamin e Scholem
interessavam-se por questões de filosofia da linguagem, em associação
a temas ligados ao misticismo, à Cabala (naturalmente, o depoimento
de Scholem deve ser admitido com certa cautela, dada a sua notória
parcialidade na questão) e que, pelo menos a obra em quatro volumes
do cabalista cristão Raphael Molitor, a obra de Baader e o livro Der
Stern der Erlösung, de Franz Rosenzweig foram objeto da leitura atenta
de Benjamin naqueles anos; por outro lado, à época das reflexões
benjaminianas mais esotéricas sobre a linguagem, Scholem ainda não
era o grande especialista da mística judaica que viria a se tornar.
Justifica-se assim, inclusive, a aceitação, entre os estudos mais recentes,
de uma “influência” não tanto de Scholem sobre Benjamin, como ela
muitas vezes foi celebrada ou lamentada por diferentes comentadores,
mas, inversamente, de Benjamin sobre Scholem. Cf. HANDELMAN, S.
A. Fragments of redemption. Jewish thought and literary theory in
Benjamin, Scholem and Levinas, p. 6 n 5 e p. 17-18.
3
Cf. QUINZIO, S. (1984, p. 22-8). Estranhamente, em sua introdução a
Illuminations, volume de ensaios de Benjamin traduzidos para a língua
inglesa e publicados pela primeira vez em 1968, Hannah Arendt, que
dedica uma inteira seção do trabalho a comentar a condição judaica de
Benjamin como fator relevante para a sua figura de intelectual, ao referirse ao interesse de Benjamin por uma redefinição do conceito de verdade,
62 .
refere-se unicamente ao conceito filosófico grego aletheia, buscando,
uma aproximação do pensamento benjaminiano ao de Heidegger. Cf.
ARENDT, H. “Introduction. Walter Benjamin: 1892-1940.”In: BENJAMIN,
W. (1968, p. 1-55).
4
Cf. DEVOTO, G. Avviamento alla etimologia italiana. Dizionario
etimologico. 3. ed. Verbete verità e Cf. KLUGE, F. et ali. Etymologisches
Wörterbuch der deutschen Sprache. 22. ed. Verbete Wahrheit.
5
Não por acaso ocorre a Quinzio lembrar a assimilação dessa dimensão
judaica em uma das Teses sobre Feuerbach de Marx, possivelmente a
mais famosa e mais eloqüente: “Até hoje os filósofos não fizeram nada
além de interpretar o mundo de diferentes maneiras; trata-se agora de
transformá-lo.” (Cf. QUINZIO, S. 1984, p. 24).
6
Wahrheit aponta para a mesma ligação com a fé, pois possui a mesma
origem latina. Cf. KLUGE, F.. Etymologisches Wörterbuch der deutschen
Sprache. Verbete Wahrheit.
7
A totalidade da obra de Scholem apresenta a demonstração de como
opera essa criação e assimilação do herético dentro da própria doutrina.
Remeto especificamente, ao oitavo capítulo do livro de (SCHOLEM, 1972,
p. 291-325).
8
No presente contexto não é possível aprofundar o exame das afinidades
do pensamento de Benjamin com todas as múltiplas fontes de sua
reflexão. Destacamos apenas aquelas que nos parecem adequadas para
iluminar a articulação de nosso tema - tradução e melancolia - no interior
da reflexão de Benjamin. Para citar estudos qualificados, realizados no
Brasil: sobre a leitura que faz Benjamin da tradição filosófica anterior,
o livro de Olgária MATTOS: O iluminismo visionário. Benjamin, leitor
de Descartes e Kant.; sobre a relação dos escritos benjaminianos com o
romantismo alemão, há o livro de de Marcos SELIGMANN-SILVA: Ler o
livro do mundo. Walter Benjamin - romantismo e crítica poética.
; fora do Brasil, uma obra fundamental, em que a relação do pensamento
de Benjamin com autores da tradição alemã, em suas diversas vertentes,
é analisada, é o livro de MENNINGHAUS, W. Walter Benjamins Theorie
der Sprachmagie. (Cf. Bibliografia).
9
Gérard Genette analisa em detalhe o Crátilo de Platão, relacionandoo tanto com a moderna lingüística, quanto com questões levantadas
por autores da modernidade, sobretudo por Mallarmé. Apesar da
. 63
importância desse tema na obra benjaminiana, não há, entre os ensaios
de Genette, qualquer alusão consistente à teoria da linguagem de Walter
Benjamin. (Cf. GENETTE, G. 1976, p. 11-37). A condenação da concepção
“hermogênea”, promovida por Benjamin em seus estudos sobre a
linguagem é estudada por Irwing WOHLFARTH, sobretudo, no ensaio
“Die Willkür der Zeichen”[A arbitrariedade dos signos] (1988, p. 12472). Esse tema (sob o título de “tradicional alternativa physei-thesei“)
também é tratado no acurado exame que faz Menninghaus da teoria
lingüística de Benjamin. (Cf. MENNINGHAUS, W. 1980). Caberia aqui
ainda lembrar o escritor argentino Jorge Luis BORGES, que tinha grande
interesse pela cultura judaica, especialmente, pela Cabala, e realiza no
poema “El Golem” um comentário irônico à figura do Golem enquanto
representativa de um certo “cratilismo” presente na tradição judaica,
narrando a estória de um rabino de Praga, criador de um Golem,
supostamente citado por Schol em, cujo nome “casualmente” rima com
golem. Outro texto, muito familiar ao leitor brasileiro, e que reencena
o conflito do Crátilo, nomeando e identificando, justamente, o seu
adversário ao Mal, de forma (ironicamente) parecida à de Benjamin
nos ensaios sobre a liguagem, é o Grande Sertão: Veredas. Em Os
descaminhos do demo. Tradição e ruptura em Grande Sertão: Veredas,
Kathrin H. ROSENFIELD (1993) realiza uma interpretação da problemática
platônica, isto é, do conflito entre visão cratilista e hermogênea e sua
particular articulação no romance de Guimarães Rosa.
10
Michael W. Jennings demonstra como essa idéia de uma verdade
que se encontra dispersa, fragmentariamente, no mundo, encontra-se
sobretudo nos escritos iniciais de Benjamin, tendo sua expressão
mais acabada na tese sobre O conceito de crítica de arte no
romantismo alemão, cristalizando-se no ensaio de 1921,
“A tarefa do tradutor”. (Cf. JENNINGS, M. 1987, especialmente, p. 12831).
11
O fascinante estudo dessas imagens ultrapassa os propósitos do
presente trabalho. Entretanto, cabe destacar, à guisa de exemplos, alguns
momentos em que elas aparecem: Nos textos sobre a semelhança, há o
“relampejar” da percepção de similaridades no momento do
nascimento); na idéia da “aura” nos ensaios sobre a obra de arte e sobre
Baudelaire; a “rapidez do relâmpago” como imagem da dialética em
64 .
estado de repouso, no ensaio sobre Brecht; na observação registrada
em “Parque central”: “A imagem dialética é como um relâmpago”, o
passado como “imagem que relampeja irreversivelmente”e a
reminiscência “tal como ela relampeja no momento de um perigo”, nas
teses cinco e seis das teses Sobre o conceito da história - eis aí alguns
exemplos.
12
A quebra dos vasos (Shevirat Ha-Keilim, dispersão da luz divina,
cuja força faz com que se quebrem os fracos recipientes para os quais
emana) é o momento intermediário entre o Tzimtzum (contração,
retração de Deus) e o Tikkun, o movimento de reparação, imagem que
se encontra referida explicitamente no ensaio sobre o tradutor. (Sobre
a cabala luriânica, cf. “Isaac Luria e sua escola” em SCHOLEM, G., 1972,
p. p. 247-89).
13
Numa carta a Scholem, Benjamin refere-se ao substrato judaico da
seguinte forma: “Jamais fui capaz de pesquisar e pensar de outra forma
que não, se me for permitido expressar assim, em sentido teológico ou seja, de acordo com a doutrina talmúdica dos quarenta e nove graus
de sentido de cada passagem da Torá.” (Cf. ADORNO, Th. & SCHOLEM,
G., 1978, p. 524).
14
Para uma análise mais minuciosa da influência platoniana sobre
o texto do prólogo ao livro sobre o drama barroco ver GAGNEBIN, J. M.
1978, p. 3-11.
15
Cabe assinalar aqui que, em entrevista concedida pouco antes de
falecer, Guimarães Rosa teria citado o nome de Walter Benjamin
juntamente com vários nomes de escritores como influências em sua
obra, modelos de sua literatura, explicitando assim sua peculiar
antropofagia: “Sim, mas na mesma hora que eu leio tenho de fato paixão
por aquilo, gosto imenso, de maneira que entra, deve ter entrado muita
coisa. Mas ao mesmo tempo, pobre de mim, entra outra coisa, entra
tanta coisa, ficando tudo misturado. O que entra eu junto com ... Júlio
Dantas, Fernando Camacho, Walter Benjamin, Goethe, Rubem Braga,
Magalhães Júnior, Machado de Assis, Eça de Queirós. Nada é alto
demais. Nem baixo demais. Tudo é aproveitável. ...” (Cf. CAMACHO, F.,
1978, p. 52). [grifo meu]
16
Os gregos não percebiam qualquer significado transcendente na
história como um todo; para Heródoto a narrativa da história não tinha
. 65
outro sentido que garantir a preservação de fatos memoráveis em vista
da inexorável erosão causada pela passagem do tempo: “se Heródoto
foi o pai da história, os pais do significado na história foram os judeus.”
(Cf. YERUSHALMI, Y. H., 1992, p. 28). A propósito das origens gregas da
história, ver também: GAGNEBIN, J.M., 1997, p. 15-37.
17
A idéia de que contar é fundamentalmente “contar de novo” é
especialmente marcada na cultura judaica, sobretudo na tradição
hassídica. Veja-se, por exemplo, o comentário de Elie Wiesel às estórias
hassídicas, por ele recontadas: “Assim sendo, a história que procurei
contar aqui foi contada mais de uma vez, por mais de uma pessoa. Ela
é sempre a mesma e eu, por minha vez, não faço outra coisa senão
transmiti-la. Repetição inútil? Não. Repetição, no judaísmo, pode
assumir caráter criativo. (...) Transmitir é mais importante do que
inovar.” (Cf. WIESEL, E. 1979, p. 200-1).
18
Aliás, uma espécie de atenção que lembra a “atenção flutuante” do
psicanalista, que também é alguém que escuta histórias...
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