A esperança cristã e as questões atuais da escatologia - PUC-Rio

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A esperança cristã e as questões atuais da escatologia: novas
leituras e novas abordagens
Aluno: Lucíola Paiva Tisi
Orientador: Cesar Augusto Kuzma
INTRODUÇÃO
A sociedade hodierna é sociedade da produção e da técnica. As pesquisas
científicas vieram trazer inovações em todas as áreas das ciências tecnológicas às
humanas, trazendo mais longevidade conforto e qualidade de vida. Ao menos é assim
que vive grande parte da população mundial enquanto ainda há áreas no planeta onde a
fome e a desolação são a realidade cotidiana.
O slogan tempo é dinheiro rege o mercado de trabalho, conduzindo o cidadão a
um equívoco. Dinheiro e conforto são importantes, mas não geram felicidade, podem no
máximo ser uma complementaridade.
Tempo é vida só é vida quando fundamentada em relações. Para a vida humana
ter sentido, ser frutuosa e gerar felicidade, quatro relações são então necessárias. O ser
humano não vive só, nunca está só, precisa se relacionar com sua realidade vivida no
seu cotidiano, com seu cosmos, do micro ao máximo – hoje muito alargado devido ao
desenvolvimento das telecomunicações que nos garantem informações dos fatos
ocorridos do outro lado do planeta em tempo real. Precisa ser vigilante e atento aos
pequenos eventos tanto humanos – inter-relações – como os da natureza que se
manifestam a nossa volta provocando e construindo sua história. Dessa forma, o ser
humano precisa se relacionar com os outros, com todos aqueles que o interpelam na sua
realidade do dia a dia. Mesmo em silêncio nos comunicamos, por gestos e olhares,
sinais faciais e corporais expressam uma linguagem, expressam nosso humor, nossas
vontades, alegrias e desprazeres. Precisamos também nos relacionar com nós mesmos,
com o nosso ego, com nossos desejos e aspirações e procurar dar conta de nos
realizarmos de maneira justa e coerente. Mas o que seria para o ser humano essa
possível realização? Desenvolvimento tecnológico? Conforto? Sucesso profissional?
Todas essas perguntas se encontram sem resposta nos momentos de tribulação, nos
momentos de crise profunda, onde olhamos o futuro e não vemos o desenvolvimento
que gostaríamos, uma grande frustração nos invade e pode inclusive nos levar ao
desânimo, desgosto pela vida, depressão ou até mesmo ao desespero e a morte.
Encontramos então sentido na quarta e fundamental relação de nossa existência, que é
1
geradora de vida, que traz a novidade, que tem o poder de tudo transformar com uma
inversão da lógica racional humana. É a nossa relação com o Deus Criador e Salvador,
que nos promete vida e vida em abundância (cf. Jo 10,10), o Deus de amor que tanto
amou a humanidade que não quis deixa-la órfã, adotando a todos como filhos (cf. Jo
17,21), e para tal se esvazia encarnando -se na história como homem (cf. Jo 11,14;
Fl2,6-11), para poder elevar a todos à sua imagem e semelhança dando a eles o domínio
sobre tudo, e a liberdade para agir e amar.
É Deus da esperança por ser a própria esperança, esperança que não se encontra
em algo que podemos alcançar com nossos esforços, com nossas ações. É o Deus que
nos eleva, que se faz presente em silêncio, que manso e humilde opera e age nos
detalhes de nossa existência gerando transformações, nos transformando também em
criadores, geradores e promotores de vida.
É Deus a própria esperança na sua
encarnação em Jesus Cristo, Deus do inesperado, do inovador, do surpreendente. Deus
que vencendo a morte, venceu o mundo, nos transformando também em viventes. É o
Deus que nos convoca e invoca a ação nos potencializando para agir em seu nome,
como sua extensão, como sacramento – manifestação visível do Deus invisível – para
nos tornar agentes transformadores de justiça e paz, nos levando a construção da história
em direção ao seu Reino (cf. Is 35).
METODOLOGIA
Nossa pesquisa se desenvolve através da leitura e estudo de autores na área da
teologia cristã que produzam uma reflexão teológica na área da esperança e escatologia
cristã com o objetivo de poder identificar a visão própria de cada autor estudando suas
diferentes perspectivas e pontos de contato – levando em consideração expressões e
movimentos
teológicos
atuais
que
tenham
em seu
conteúdo epistemológico a
compreensão do Reino de Deus como esperança, justiça força vital, e plenitude – como
potencial ponto de transformação da sociedade atual.
Partindo da seleção desses dois autores, pertencentes a Igrejas cristãs de
confissões diferentes, pretendemos identificar suas perspectivas teológicas, verificar
suas
semelhanças
e
diferenças,
para
isso
foram
realizados
recortes
dos
textos selecionados para obtenção de uma melhor compreensão do pensamento de cada
um deles no que diz respeito à esperança e à escatologia cristã. Nesses textos, procurouse
averiguar
e
compreender
o
verdadeiro
significado
do
que
seria
a
2
esperança escatológica, no ponto de vista de cada um desses autores e sua visão
do porvir, o futuro escatológico que nos aguarda.
Esta esperança em que as Sagradas Escrituras fundamentam a escatologia está
no Cristo ressuscitado, que como sinal escatológico desperta em nós a expectativa para
a sua vinda futura, possibilitando-nos, na confiança de sua promessa, antever o futuro e
a nossa plena realização.
A escolha dos autores teve a intenção de verificar e demonstrar similaridades de
pensamento, mesmo em culturas e posicionamentos diferentes, estabelecendo um
diálogo entre eles, ressaltando os pontos comuns. Dando continuidade a essa pesquisa
escolhemos dessa vez dois autores de Igrejas cristãs diferentes da Igreja Católica.
Jürgen Moltmann é teólogo alemão, de tradição cristã, reformado, um
exponencial pensador europeu do século XX, estabeleceu com o Brasil um contato
diferenciado nos meios acadêmico e eclesiais. Tem desfrutado de amplo trânsito dentro
dos mais diversos segmentos da tradição cristã, do catolicismo pós concílio do Vaticano
II ao Pentecostalismo. Jürgen Moltmann nos mostra o sentido reverso da lógica de
Deus, um Deus que é amor e que a todos quer acolher, se revelando na obscuridade da
existência, na dor do oprimido, na angústia do erro. Deus que é amor e comunga com a
humanidade em sua maior vulnerabilidade e fragilidade de maneira ainda mais especial.
Onde achamos que há silêncio, ali ele se encontra e faz o surpreendente acontecer.
Paul Evdokimov nasceu em São Petersburgo, na Rússia, em 1901. Imigrou para
Paris em 1923, onde viveu até sua morte em 1970. Foi professor de teologia ortodoxa
no Instituto Saint Serge em Paris e observador convidado no Concílio Vaticano II. Entre
suas diversas obras encontramos: O Cristo Dentro do Pensamento Russo e O Espírito
Santo Dentro da Tradição Ortodoxa. Foi personalidade do ecumenismo e uma das
grandes figuras da Igreja ortodoxa Russa. A escolha desse autor se dá pelo fato de ser
sua teologia e espiritualidade intimamente vinculada à vida prática, as obras,
fomentadas e alimentadas pelo culto da liturgia. Sua obra por nós apresentada, fomenta
a percepção do ser humano, estimulando a perceber no livro da natureza e da vida a
poesia da ação de Deus no cotidiano, geradora de esperança e sentido, valorizando a
liturgia e os atos de louvor como diálogo privilegiado entre o ser humano e Deus.
Procuraremos com essas leituras fazer uma aproximação entre as concepções
desses autores a uma diretriz convergente de suas opiniões, atingindo o tema da
3
esperança cristã e as questões atuais da escatologia, com novas leituras e novas
abordagens.
OBJETIVO
Observar e apontar as questões atuais da esperança cristã e da escatologia
aprofundando o estudo diante de novas leituras e abordagens que possam fomentar e
estimular a abertura do ser humano a um sentido gerador de novas perspectivas e
possibilidades de futuro. Procuramos buscar em teólogos cristãos de nossa
contemporaneidade novas chaves de leitura e interpretação que possam contribuir para a
compreensão atualizada da esperança cristã e as questões da escatologia.
RESULTADOS E DISCUSSÕES
Autor: Jürgen Moltmann
Livro: O Deus Crucificado – A cruz de Cristo como base crítica da
teologia cristã
A ESPERANÇA NO INEXPLICÁVEL
A esperança cristã vai surgir no inexplicável, no profundo da experiência da dor. Do
lugar onde não se acredita haver saída. Torna-se assim difícil a compreensão para os
que não creem acreditar que onde o fim parece ser lógico à razão humana, a Graça de
Deus vai agir transformando a realidade de maneira surpreendente e nova.
Nossa fé começa aqui, onde os ateus dizem que ela acabou. Nossa fé começa naquela
dureza e poder; onde a noite da cruz, da solidão da tentação e da dúvida está por toda
parte! Nossa fé precisa nascer onde os fatos a abandonam; precisa nascer do nada.
Precisa experimentar o nada de tal forma que nenhuma filosofia niilista consiga
imaginar1.
O nosso mal-estar, depressão, desesperança, sentimento de vazio que nos penetra
o fundo do nosso ser, trazendo-nos não só a escuridão, mas também as sensações de
impotência completa, na maioria das vezes, provêm das realidades externas, do
sofrimento do outro que presenciamos, daqueles que nos são próximos, mas que nada
ou quase nada podemos fazer para modificar sua situação. Não nos damos conta que
quando a questão é conosco, nos sentimos provocados a uma reação, seja ela qual for,
1
MOLTMANN, Jürgen. O Deus Crucificado: A cruz de Cristo como base crítica da teologia cristã
(tradução: Juliano Borges de Melo) – Santo André (S.P.): Academia Cristã, 2014, p. 57.
4
mas vamos reagir mesmo que não seja em direção a melhor solução. No entanto,
quando se trata do outro a coisa muda de figura, nossa impassividade gera em nós a
sensação de impotência, que muitas vezes por não reconhecê-la desviamos nossa
atenção para satisfações vãs, distrações, que na ilusão de nos tirar daquele contexto nos
leva a um enorme e escuro caminho. No livro do Apocalipse, na carta a Laudiceia,
podemos ler:
15
Conheço tua conduta: não es frio nem quente. Oxalá fosses frio ou quente.16 Assim
porque es morno, nem frio nem quente, estou para te vomitar de minha boca.17Pois
dizes: sou rico, enriqueci-me e de nada mais preciso. Não sabes, porém, que és tu o
infeliz: miserável, pobre, cego e nu!18 aconselho-te a comprares de mim ouro purificado
no fogo para que enriqueças, vestes brancas para que te cubras e não apareça a vergonha
de tua nudez, e colírio para que unjas os olhos e possa enxergar.19 Quanto a mim,
repreendo e corrijo todos os que amo. Recobra, pois, o fervor e converte-te!20Eis que
estou a porta e bato: se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e
cearei com ele, e ele comigo.21ao vencedor concederei sentar-se comigo em meu trono,
assim como eu também venci e estou sentado com meu Pai em seu trono.22Quem tem
ouvidos ouça o que o Espírito diz às Igrejas (Ap 3, 14-22).
Não podemos ler esse texto como ameaça, algo de castigo ou punição, mas como
exortação e alerta para a nossa vida, para a nossa felicidade e para um interagir no meio
social, procurando nele o melhor, fazendo movimentar a vida e encontrar no substrato
dos fatos ocorridos–situação vivenciada – um novo começo. Aí jaz a esperança cristã,
onde a misericórdia de Deus que é o próprio Cristo surge do inesperado, do escondido,
da camuflagem criada por nós mesmos e nos aponta a direção da ação.
O momento muitas vezes é difícil, paralisante, mas ao deixarmos de lado as
nossas impressões, nossas perspectivas de soluções, nossas culpas ou julgamentos, nós
conseguimos abertura para ver além da neblina causada por nós mesmos. Por medo,
entrando em desespero, obstruímos a condição de enxergar e acolher o amor de Deus.
Já no Antigo testamento vemos a interpelação do profeta Elias que vem em
socorro a viúva de Sarepta (1Rs 17, 7-15) não vem facilitar-lhe a situação, ela
deprimida, angustiada em profunda pobreza e carência está pronta a preparar para si e
seu filho ainda menino, a última refeição, para depois esperar a morte. Ao interpelá-la,
aparentemente, Elias pede, não dá. Pede que dívida com ele aquele último pão como se
pedisse que dividisse com ele a sua angústia, sua solidão, sua desesperança. Comem
juntos, vem a promessa de que não lhe faltará mais o alimento enquanto a seca não
acabar. A viúva não estará mais só, na realidade nunca esteve, mas foi necessário seu
completo esvaziamento – talvez de seu orgulho, medo, acomodação, etc... – Para que
5
pudesse ver a realidade de maneira criativa e proativa. O milagre ocorreu, sua fome foi
saciada.
No Evangelho de Lucas, na narrativa dos discípulos de Emaús (Lc 24,13-35),
isso é colocado com muita clareza; a impotência é total; o fracasso, uma realidade. Não
há mais o que esperar. Na escuridão provocada pela cruz, podemos ver a luz do Cristo
brilhar em nós como semente, como gérmen a ser cultivado, que traz possibilidades
inimagináveis e que exige de nós parceria. É assim que Deus age, é através do ser
humano, em parceria com sua criatura, que por misericórdia e amor o eleva à sua
imagem, pois, é pelo ser humano que percebemos sua presença, semelhança, por tornálo também criativo. É na cruz que se realiza esse encontro, porque é na cruz que surge a
grande interpelação à nossa fé: Quem é esse homem? Homem que por sua confiança e
obediência nos revela a face do próprio Deus. É Jesus de Nazaré, o Cristo de Deus que
se entregou por todos nós e nos deu a salvação.
O crucificado foi compreendido à luz de sua ressureição, à luz de seu futuro com Deus
que vem em sua glória. Por isso, sua crucificação histórica foi entendida como evento
de julgamento escatológico e sua ressureição como antecipação oculta do reino
escatológico da gloria, no qual os mortos serão ressuscitados2.
O futuro que é aqui referido, sinal da ressureição do Cristo não pode ser
compreendido como história futura parte de uma transitoriedade que se supera com o
decorrer do tempo, mas como futuro último, escatológico. Como futuro da própria
história, antecipação da nova criação – novo céu e nova terra
Vi então um céu novo e uma nova terra – pois o primeiro céu e a primeira terra se
foram, e o mar já não existe, 2Vi também descer do céu, de junto de Deus, a Cidade
santa, uma Jerusalém nova, pronta como uma esposa que se enfeitou para o marido.
3
Nisto ouvi uma voz forte que, do trono dizia: “Eis a tenda de Deus com os homens. Ele
habitará com eles: eles serão o seu povo, e ele será Deus -com -eles, será seu Deus (Ap
21,1-3).
1
A Páscoa do Cristo é antecipação real do futuro qualitativo de Deus e da nossa
criação no meio da história de sofrimento do mundo. Isto é, a esperança trazida a nós
pelo Cristo, é promessa, que não apenas ilumina adiante o nosso caminhar histórico
gerando perspectivas e possibilidades, mas alimenta também um povo. Também não se
refere a uma realidade “extra-mundi” onde perdemos nossa referência e identidade. O
novo desconhecido da história que se abre a cada dia por tal esperança, ilumina também
2
Ibidem, p.203
6
o passado, a estrada percorrida, os caminhos traçados por toda uma Igreja que se fez
presente na comunhão com sua origem, o Cristo crucificado.
A ressureição dos mortos que é constitutiva da fé do cristão, professada no
símbolo apostólico, ligou o próprio futuro de Deus com o passado de toda essa Igreja
padecente expressando esperança, não apenas a sua configuração atual ou futura, mas
em comunhão com todos aqueles que já passavam em Deus. A esperança na ressureição
é iluminada pelas aparições do Jesus depois de sua morte na cruz. O ressuscitado acende
a esperança dando animo, aquecendo os corações, sinalizando e comunicando o
caminho a ser transposto (cf. Lc 24,13-35). É esperança que se propaga apenas do
Cristo sobre vivos e mortos. “9 Com efeito, Cristo morreu e reviveu para ser o senhor
dos mortos e dos vivos” (Rm 14,9).
Ao falarmos de Jesus de Nazaré, falamos no sentido histórico, temporal, sua
origem, que vai iluminar seu futuro. No entanto, a fé escatológica fala do mesmo Jesus,
ressuscitado citado por Deus, Jesus como o Cristo de Deus. O que prepara o lugar para a
Vinda do Reino de Deus. O título cristológico ilumina sua origem e seu fim. (cf.
Ap22,13-14)
Vinculando Jesus de Nazaré ao seu passado em sua existência histórica,
percebemos por sua vida, paixão morte e ressureição o surgimento do Cristo
escatológico que vincula o seu futuro. Nesse sentido Jesus só é entendido como
fenômeno histórico na sua relação com seu futuro. A fé presente tem aí sua participação
com seu futuro, é responsabilidade – sua própria historicidade surge apenas da relação
escatológica com o futuro que ele descobre. Fala-nos do Reino, já iniciado, mas não
acabado, da experiência iniciada, mas não plenificada, não vivemos o fim da história e
sim no seu decorrer ligamos mesmo que de maneira inconsciente a lembrança do
passado as esperanças ou apreensões do futuro procurando explicar o passado com um
olhar no futuro situado no presente – “com a lembrança histórica, vinculamos um
esboço de toda história ao fim da história”3.
Como se sabe, radical relaciona-se as raízes de alguma coisa. Fé cristã radical só pode
significar ter a mais profunda relação com o Deus Crucificado. Isso e perigoso, ela não
assegura a aprovação de ideias, esperanças e boas intensões. Ela assegura em primeiro
lugar, a dor da conversão e da mudança total. (....) A Religião da Cruz, se e que a fé
pode ser chamada assim, a partir das razoes dadas, não é solene nem motivante no
sentido mais comum, mas traz escândalo, e na maioria das vezes aos companheiros de
3
Ibidem, p. 205
7
fé dentro do próprio círculo. Mas ele traz, por meio desse escândalo, libertação em um
mundo criativo.4
Culturas que estão alicerçadas na produtividade e no prazer afastam a morte e a
dor do âmbito social do público deslocando para a vida privada a angustia, para que o
mundo não seja visto de forma negativa, como obstáculo.
Nesse contexto o Deus crucificado não e apenas estranho, mas impopular.
Provoca a saída da alienação, da mecanização da vida, das respostas fáceis, do
consumismo e no depositar no conforto e no prazer a felicidade. Causa estranhamento
nos alienados, habituados a alienação. A Fé na Cruz de Jesus Cristo e adequada a
libertar as pessoas de suas ilusões culturais, convidando-as a ultrapassar seus contextos
ofuscantes para o confrontamento com a verdade de sua existência e de sua sociedade
que pode ser atestada pela dor.
É na dor que experimentamos a realidade a nossa volta, realidade que não é por
nos criada nem imaginada, e através dessa dor que desperta em nos um amor que não
consegue ser indiferente a tudo, mas que se compadece com o feio, com o indigno de
amor para amá-lo. E dor que questiona o mais profundo de nós mesmos que no fundo
do nosso poço interior quer receber na penumbra o formato das pedras e a qualidade da
água que jaz em seu interior, e ao encontramos a nos mesmos deixando a apatia de lado
somos impelidos a sair, a ir ao encontro do outro para a novidade do encontro, para
celebrar as novas descobertas, que já estavam em nos, mas encobertas com a poeira da
negligencia, da falta de vigilância (cf. Fil 2,12-18).
12
Portanto meus amados, como sempre tendes obedecido, não só na minha presença,
mas também particularmente na minha ausência, operai com temor e tremor, 13pois é
Deus quem opera em vós o querer e o operar, segundo a sua vontade.14 Fazei tudo sem
murmurações nem reclamações, 15para vos tornardes irreprováveis e puros, filhos de
Deus sem defeito, no meio de uma geração má e pervertida, no seio da qual brilhais
como astros no mundo,16mensageiros da Palavra de vida. Assim no Dia de Cristo eu
terei a glória de não ter corrido nem ter-me esforçado em vão.17Mas se o meu sangue for
derramado em libação, em sacrifício e serviço da vossa fé., alegro-me e me regozijo
com todos vós; 18e vós também alegrai-vos e regojizai-vos comigo (Fl 2,12-18).
A Cruz de Deus na comunidade, na Igreja simboliza então uma contradição, que
conduz ao seu interior pela parte de Deus, que foi crucificado fora dela.
O símbolo da cruz visto sobre o altar nos remete então para o próprio Jesus
crucificado no Calvário entre dois ladrões há cerca de2000 anos fora dos muros de
4
Ibidem, p. 61
8
Jerusalém, e por nos remeter ao Cristo nos leva a olhar nossa realidade com compaixão,
nos leva a perceber o sofrimento camuflado ou exposto dos homens e mulheres que
interagem na nossa vida, que participam da nossa história mesmo por um momento, mas
que comunga conosco vida. Ao refletir a cruz, começamos a nos dar conta da
responsabilidade de nossos pequenos e não tão pequenos atos e somos impelidos a
colocar em cada um deles uma dose de amos, de solidariedade, de compaixão.
A cruz, então, não é símbolo religioso, de cumprimento de ritos e preceitos, mas
símbolo de vida, e orientação de direção, de caminho, de lugar de culto que não é físico,
mas que e o próprio Cristo que se faz presente na pessoa do necessitado. E no amor–
serviço que encontramos o Cristo.
Todo símbolo aponta para outro que está além de si. Todo símbolo aponta para a
reflexão. O símbolo da Cruz remete a Deus, não aquele que está entre dois castiçais
sobre um altar, mas ao que crucificado entre dois ladrões no Calvário dos perdidos,
diante dos portões da Cidade (...) A Cruz e um símbolo que conduz para afora da Igreja
e anelo religioso para dentro da comunhão com os oprimidos e perdidos. E no sentido
reverso, ela e símbolo que chama os oprimidos e os ímpios para a Igreja e, por meio
dela, para a comunhão do Deus crucificado. Esquecida a contradição da cruz e sua
inversão de valores religiosos, ela deixa de ser símbolo e se torna um ídolo que não
convida mais a reflexão, mas que fomenta o fim da reflexão em um auto aprovação5.
Recentemente ouvi jovens afirmarem ser Cristo uma fantasia, e ainda um que
afirmava ser o amor uma fantasia dolorosa. Nas conversas foram lembradas a questão
da esperança, e tudo o que foi dito se referia a esperança em algo, em conquistas
humanas algumas muito éticas, politicamente corretas e de solidariedade, todas utopias
que seriam realizadas em um futuro que não seria o nosso.
No entanto, no reverso disso, ao olharmos para a cruz no símbolo que nos
remete a memória de alguém, que historicamente encarnado, trazia em si o próprio
Deus.6
6
Ele, estando na forma de Deus
não usou de seu direito de ser tratado como um deus
7
mas se despojou,
tornando-se semelhante aos homens
e reconhecido em seu aspecto como um homem
5
Ibidem, p. 62
O interessante, o que me faz trazer aqui esta experiência e que essa esperança colocada por esses
jovens também no final da conversa foi considerada fantasia. Saíram tristes do encontro. Saíram com
uma tristeza conformada como se fosse parte da realidade da vida não poder ter esperança em nada
além das conquistas materiais que trazem o conforto e o bem-estar a uma vida de dor que não e nada
além de um caminho para a morte.
6
9
8
abaixou-se
tornando-se obediente até a morte ,
à morte de cruz
9
Por isso Deus soberanamente o elevou
e lhe conferiu o nome que está acima de todo nome
10
a fim de que ao nome de Jesus todo joelho se dobre
nos céus, sobre a terra e debaixo da terra,
11
e que toda língua proclame que o Senhor é Jesus Cristo
para a glória de Deus Pai (Fil 2,6-11).
Vemos que Ele penetra na nossa história para trazer esperança não só aqueles
que são bons e se consideram éticos, constituídos de um saber privilegiado, mas para os
oprimidos e desesperados, aos desajustados e marginalizados. É a esperança que
extrapola ritos litúrgicos e doutrinas, e é esperança que vai fazer movimentar os
privilegiados, gerando neles a vontade de agir e de andar na contramão, que vai suscitar
o movimento de amor, pela consciência de que a beleza de atitudes éticas e solidárias
não é para ser apenas planejada e discutida, pintada como num quadro para ser
admirado pendurado em alguma parede de museu para entrar assim na história. Será
preciso ação diferente, ação viva, laboriosa que envolve e se deixa envolver, ação que
move montanhas, daquelas que não se pode realizar sozinho e que por isso mesmo não
tem um único autor, precisam ser de todos para todos.
O Deus crucificado então não é ídolo ou símbolo de fantasia social, mas
exemplo de um mundo possível, convite a uma conversão histórica vivida pelo homem
simples de Nazaré, que há mais de dois milênios nos mostrou que o Reino de Deus era
possível já naquela época. É reino que nasce pequeno no coração de cada um
individualmente, no verdadeiro encontro com o Ressucitado, mas que pequeno como
um grão de mostarda, (Cf. Mc 4,30-32) pode germinar, brotar e frutificar gerando frutos
a trinta, sessenta ou cem por um. (Mt 13,1-9.19-23)
A mensagem a nós deixada por esse homem simples que é o próprio Deus é que
no encontro com ele, de forma madura, relacional, baseada na entrega e na confiança
fundamentada, não em preceitos ou legalidades, mas no amor que gera vida e que
constrói, nasce a esperança que floresce e extrapola através da relação na alteridade. Na
relação com o outro, meu próximo, com a realidade onde consigo agir, meu cosmo, na
relação comigo mesmo, gerando em mim uma nova consciência e que junto com Deus
em relação de amor posso transformar a realidade a minha volta ajudando a gerar um
mundo novo.
10
Autor: Paul Evdokimov
Livro: O silêncio amoroso de Deus
ESPERANÇA E LOUVOR
Deus está sempre a nossa procura, a provocar o encontro, toda a natureza
proclama sua beleza e bondade, sua poesia, usa do livro da natureza, para podermos
compreender sua grandiosidade, para nós é necessário apenas a abertura, a observação e
o acolhimento de sua ação, de seu amor.
Como imensa parábola, o mundo oferece uma leitura da “poesia” divina inscrita em sua
carne. As imagens das parábolas evangélicas ou a matéria cósmica dos sacramentos não
são fortuitas. As coisas mais simples são conformes a seu destino mais preciso. Tudo é
imagem e semelhança, participação na economia da salvação. Tudo é cântico e
doxologia.7
Ao ser humano é impossível falar ou mesmo compreender o inefável, a
grandiosidade de Deus. No entanto podemos perceber suas manifestações, sua presença,
sua comunicação e seu amor através da criação. No dia a dia, no cotidiano da vida, nos
detalhes com que somos interpelados a todo momento, visualizamos a sua ação. Todo
ser humano tem em si a semente do criador, a semente do Verbo, a semente do Espírito
Santo. Assim como o artista ao concluir sua obra imprime nela sua assinatura, Deus
pelo batismo imprime em nós seu selo, garantindo nossa proveniência e nosso fim. Por
ele fomos criados e para ele retornaremos. Somos criaturas dotadas de dons e carismas
que determinam não só essa nossa vocação comum – ser em Deus – mas também nossa
missão – a sua imagem e semelhança – criadora, criativa e transformadora da realidade.
Devemos cultivar o imenso campo do mundo, é nosso papel gerar também coisas novas,
desenvolver as artes e a ciência, construindo uma sociedade mais humana de forma que
sua existência seja querida por Deus. A nossa missão, de todo ser humano, deve estar
alicerçada no serviço, que vai além do serviço social. No sentido bíblico, serviço
significa ato de curar e restaurar o equilíbrio e a justiça. É comunhão entre todos
inserida no absolutamente novo – Reino de Deus – projeto do Pai e o absolutamente
desejável. Para aprofundar esse nosso raciocínio podemos ler nas sagradas escrituras:
7
EVDOKIMOV, Paul – O Silêncio Amoroso de Deus – Tradução Ivo Storniolo – Aparecida; S.P.
Editora Santuário,2007, p. 114
11
Vi então um céu novo e uma nova terra – pois o primeiro céu e a primeira terra se
foram, e o mar já não existe. 2Vi também descer do céu, de junto de Deus, a Cidade
santa, uma Jerusalém nova, pronta como uma esposa que se enfeitou para seu marido.
3
Nisto ouvi uma voz forte que, do trono, dizia:
“Eis a tenda de Deus com os homens.
Ele habitará com eles;
Eles serão o seu povo,
E ele, Deus-com -eles, será o seu Deus (Ap 21,1-3).
1
O pensamento da tradição patrística, já descreve a grandiosa filosofia da
criação, é muito mais ampla do que uma justificação da cultura, ao se tornar ministério
de serviço do Reino de Deus, é a cultura que justifica a história, o homem e seu
sacerdócio – serviço e louvor – no mundo.
Complementando nosso pensamento,
usamos a citação da carta aos Hebreus:
20
Nele temos um caminho novo e vivo que ele mesmo inaugurou através do véu, quer
dizer: através da sua humanidade.21 Temos um sacerdote eminente construído sobre a
casa de Deus.22aproximemo-nos então de coração reto e cheios de fé, tendo o coração
purificado de toda má consciência e o corpo lavado com agua pura. 23Sem esmorecer,
continuemos a afirmar nossa esperança, porque é fiel quem fez a promessa. 24Velemos
uns pelos outros para nos estimularmos à caridade e as boas obras .25Não deixemos
nossas assembleias, como alguns costumam fazer. Procuremos, antes, animar-nos
sempre mais, à medida que vedes o Dia se aproximar (Hb 10, 20-25).
Preexistência ideal em Deus, chega a atribuir um valor especial à ação desses
“operários de Deus”, pessoas que se colocam a serviço da construção do Reino de deus,
lutando pela justiça e caridade, com o intuito de preparar sua secreta germinação. Tratase de construções – “partos”, o irromper da demostração do amor fraterno que manifesta
a grandeza e o amor de Deus, pela ação daquele que responde ao Pai – que pela fé nos
são próprios, revelando, ordenando a marcha coerente da história, chamando o mundo à
maturidade e a preparação para a vinda do Senhor. (cf. 2Pd 3,9-12)
O sentido de nossa existência não pode se limitar a sobrevivência, o ser humano
é dotado de dons e carismas que determinam sua vocação. Vocação esta que cabe a ele
cultivar, desenvolvendo suas potencialidades, inaugurando as novidades, das artes e das
ciências, construindo e contribuindo para a história da salvação, e dessa forma, uma
existência querida por Deus.
É a própria abundância da Igreja, não a autoridade, mas a fonte da superabundância, a
graça sobre graça, a liberdade sobre liberdade e que suprime toda “objetivação”, todo
conflito, todo tremor de escravo. 8
8
Ibidem, Pág. 143.
12
O autor evidencia a importância de ser Igreja, como principal depósito da
esperança cristã. Procura realçar a atenção à opção de ser cristão, como adesão a Cristo
pensada como vivência eclesial, como Igreja de Cristo, notamos aqui uma ressonância
com a Igreja católica apostólica Romana, que atribui a Igreja o conceito de povo de
Deus, assim definida pelo concílio Vaticano II9. A autoridade então é dada à Igreja, que
paradoxalmente vai negar ser autoridade no sentido de poder de restrição, mas sim
como portadora da verdade com quem se identifica. Nesse sentido, não é autoridade
assim como Deus não é autoridade e nem Cristo não o foi, vemos isso nos evangelhos;
porque autoridade é sempre algo exterior a nós. Não é, portanto, autoridade que
aprisiona, mas a autoridade da verdade que liberta (cf. Gl 5,1).
Toda a sociedade, a imagem dos blocos políticos, coloca a liberdade como uma
escolha entre realidades. O ser humano é livre para escolher, mas uma vez que a escolha
é feita deixa de sê-lo –
o ser humano já não é mais livre, se torna integrante,
aprisionado a realidade que escolheu. A boa nova do evangelho vem trazer uma
perspectiva inteiramente diferente: chama a conhecer, à relação com a verdade que
liberta de maneira radical. Isso significa que toda a oposição entre liberdade e
autoridade se coloca em um plano extra eclesial, em que a vitória de uma sobre a outra
não liberta mais. No entanto, no sentido da revelação cristã, onde nos é dito: “O espírito
sopra onde quer” (cf. Jo3,8) quem pode medi-lo? Conhecemos sua presença, mas
ignoramos sua ausência, talvez até inexistente.
Um dos mais antigos símbolos da fé cristã confessa: “e no Espírito Santo, a
Igreja” identificação mistérica, que tem por significado o crer na Igreja, em sua
superabundância, de “graça sobre graça” sem limites e medidas. “Porque a lei foi dada
por meio de Moisés; A graça e a verdade Vieram por Jesus Cristo” (Jo1,17).
A sede da verdadeira liberdade é a sede do Espírito Santo que liberta sem
medida (cf. Jo 3,34). São Paulo vai dizer: “ tudo me é permitido, mas nem tudo
convém” (cf. 1 Co 6,12). Deus não é lei ou proibição, no livro do Genesis:
E Iahweh Deus deu ao homem esse mandamento: “Podes comer de todas as árvores do
jardim. Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, porque no dia
em que dela comeres terás de morrer”. (Gn 2,16-17)
9
Constituição Dogmática Lumen Gentium capítulo II.
13
Não é uma ordem que é dada, mas um conselho, uma advertência de destino
livremente escolhido. Não se trata então de uma simples desobediência, mas de falta de
atenção para com a comunhão viva com o Senhor da vida. Em sua atitude – o pecado –
o ser humano o discernimento da verdade, reivindicando uma autonomia moral pela
qual o ser humano nega sua condição de criatura.
A gravidade do pecado original é justamente transformar Deus em autoridade
exterior, em Lei que logicamente vai conduzir a transgressão Lei- Deus. Era preciso
então que Jesus – Filho – revelasse
o verdadeiro rosto do Pai, rosto de autoridade -
justiça. O ser humano objetivou Deus e o colocou à distância, em espaço exterior. A
partir daí, procura a obscuridade e fabrica para si mesmo uma existência de prisioneiro.
Esconde-se. Vemos então em Jesus a proclamação da esperança e de libertação:
“Replicou-lhe Jesus: “ Está escrito: Adorarás ao senhor teu Deus, e só a ele prestarás culto” (Lc
4, 8).
Que tua vontade não seja feita”, e até Deus nada pode fazer contra essa palavra. Por
causa das razões de nosso coração sentimos que nossa visão de Deus se torna
inquietante, caso Deus não ame sua criatura até renunciar a puní-la por meio de uma
cruel separação; ela também é inquietante se Deus não salvar o amado sem tocar nem
destruir sua liberdade(...). O Pai envia seu Filho sabe sempre que até o inferno é seu
domínio e que a “porta da morte” é transformada em “porta da vida”. O homem nunca
deve cair no desespero; ele pode cair apenas em Deus e é Deus quem jamais se
desespera.10
O autor argumenta a questão da esperança falando do extremo da desesperança,
o desespero, o inferno pessoal causado pela própria pessoa, por negar sua vocação
inicial de criatura, filho de Deus. Mas há a misericórdia, e a de Deus é infinita, tão
imensa que envia seu filho para salvar da morte a humanidade (cf.Jo 13,2-30).
Deus nos escuta e está sempre ao nosso lado, mas respeita as nossas escolhas,
quer ser amado em retorno, no entanto, nada pode fazer contra a nossa vontade, sua
fidelidade amorosa o impede a ação. Daí o perigo de nossa onipotência, porque quando
usamos e acreditamos em nossas próprias forças, ele nada pode fazer além de subtrair as
suas e esperar que novamente encontremos o caminho na sua direção, nossa conversão.
Aí ele pode agir, e com sua misericórdia, nos elevar com seu abraço de Pai
misericordioso.
10
EVDOKIMOV, Paul. O Silêncio Amoroso de Deus (Tradução Ivo Storniolo): Aparecida/SP:
Editora Santuário, 2007, p. 98-99.
14
Eis meu irmão um sacramento que lhe dou: que a misericórdia sempre pese mais em sua
balança, até o momento em que você sentir em si mesmo a misericórdia que Deus tem
pelo mundo.11
Nos momentos de grande crise e aflição, muitas vezes nos desesperamos e
buscamos soluções imanentes, não admitindo não estar no controle, no comando da
situação. Dessa forma não permitimos a leitura das possibilidades que suscitam nosso
ser criativo não conseguindo ver a realidade diante de nós com maior clareza, não
conseguindo enxergar a “luz no final do túnel”. Vale a pena então pensar na viúva de
Sarepta (cf. 1Rs 17, 1-16) que como vimos anteriormente, não tendo mais condições de
sobreviver a seca, prepara-se para fazer sua última refeição e aguardar a morte. Aparece
então um forasteiro, Elias, que não traz presentes nem recursos materiais, muito ao
contrário, a interpela a partilhar com ele ainda o pouco que lhe resta e ainda pede a
prioridade de convidado. Traz, no entanto, consigo, a benção da esperança, da vida para
ela e seu filho ainda menino.
Quantas mães e mulheres de hoje que quando não abandonadas pelos maridos,
sofrem o abuso ou o descaso de toda a sociedade? São essas as viúvas de Sarepta, que
muitas vezes fazem o papel do próprio Elias, agindo em suas comunidades de forma
proativa, testemunhando a ação do Espírito Santo de Deus não apenas em suas vidas,
mas fazendo-o também presente em toda a comunidade. Mulheres que não se
aprisionaram nos seus problemas pessoais, mas que lutam para a melhorar sua realidade
mais ampla. Promovendo a vida, com movimentos de solidariedade e amor. São mães
de família que as vezes sem dizer uma palavra, mas com o testemunho da condução da
própria vida, de forma livre, coerente e responsável, encontram forças para não se
abater, testemunhando a alegria da esperança em sua comunidade com seu exemplo.
Mulheres que se esvaziam de seus sonhos e desejos e se colocam na luta para promover
a vida, para ir em socorro daquele que sofre, do caído, que se esquecem muitas vezes da
própria condição de dificuldade e conseguem olhar para baixo, para a dor de quem se
encontra em um abismo maior. Por que creem, acreditam na ressureição, acreditam no
Cristo esperança que ao ressuscitar dos mortos abriu a porta da felicidade, não há mais o
medo da morte, não há mais o que temer, o túmulo se encontra vazio, porém cheio de
sentido e esperança.
11
o
Santo Isaac, o Sírio – Sentenças, n 48. Apud: EVDOKIMOV, Paul. O Silêncio Amoroso de Deus (Tradução
Ivo Storniolo): Aparecida/SP: Editora Santuário, 2007, p.99.
15
Foi primeiramente em Jerusalém onde se encontraram os primeiros relatos sobre o
túmulo vazio; algo que eles tomaram como confirmação para a fé escatológica de Jesus,
que eles traziam. Conforme a análise da visão e aparição pascal, o sentido original da fé
pascal faz no fato das testemunhas oculares terem visto o Jesus terreno, crucificado e
morto, na glória do Deus que vem e tiraram as conclusões das experiências de chamado
e envio. Então é preciso dizer que Jesus ressuscitou para o futuro de Deus e que ele foi
visto e crido como representante presente desse futuro de Deus, do novo homem livre e
da nova criação(...) Ele ressuscitou no “Juízo final de Deus”, do qual fé e querigma
testemunham.12
A esperança cristã envolve o Cristo como um todo, em toda a sua integralidade:
nascimento – encarnação – sua vida e missão, paixão, com todo o sofrimento que a
envolve, morte e ressurreição – glorificação por Deus Pai. É a reflexão de todo o evento
do Cristo que fundamenta o sentido e a esperança que é o próprio Cristo.
Na visão pós-pascal do Cristo ressuscitado e que se percebe, se fecha toda a
compreensão de sua pessoa, de sua missão, não é, portanto, em um aspecto ou outro
isolado. O Cristo precisa ser lido e compreendido em sua integralidade para se poder
perceber a redenção e salvação do ser humano trazida por ele por meio de seu amor
obediente. Ele venceu a morte! O túmulo está vazio! Nele a morte perde seu sentido!
1
Cesse de perturbar -se vosso coração!
Credes em Deus, credes também em mim.
2
na casa de meu Pai há muitas moradas.
Se não fosse assim, eu vos teria dito,
Pois vou preparar-vos um lugar,
3
e quando eu for, e vos tiver preparado o lugar,
Virei novamente e vos levarei comigo,
afim de que, onde eu estiver, estejais também.
4
E para onde vou, conheceis o caminho. (Jo 14,1-4)
Nessa compreensão faz-se necessário o movimento de quem crê, não se admite
mais a esterilidade da semente, é preciso enxergar com os olhos da fé, é através desse
olhar que se faz possível vislumbrar o futuro em Deus, um futuro com ele e nele, é
necessário penetrar em sua realidade e viver já a promessa.
24
Em verdade, em verdade, vos digo:
Se o grão de trigo que cai na terra não morrer,
Permanecerá só;
Mas se morrer
Produzirá muito fruto. ( Jo 12,24)
O vazio do túmulo não é ausência e sim presença que transborda barreiras,
presença sem limites que invade o coração de todo que a ele busca, e que confia. É grito
EVDOKIMOV, Paul. O Silêncio Amoroso de Deus (Tradução Ivo Storniolo): Aparecida/SP:
Editora Santuário, 2007, p. 209/210.
16
de júbilo e de esperança. É experiência que faz esquecer protocolos e preceitos, que nos
faz agir como Pedro em (cf. Jo 21,7) que ao perceber a presença do Senhor, atirou-se ao
mar, mergulhando, para ir ao seu encontro em contraponto do mesmo Pedro que
amando não compreendia e por isso afunda ao tentar caminhar em sua direção (cf. Mt
14,25-33). Agora, já não há mais o medo de se afogar, de se envergonhar, de morrer. O
Cristo é referência, opção fundamental, caminho único a se seguir porque se percebeu
que nele está a verdade e a vida! Não há então barreiras para o amor.
Optar pelo Cristo é optar pelo Reino de Deus, é fazer dele também a nossa
missão, é se converter em igreja que orienta e anuncia a esperança, o Cristo esperança
que no vazio de uma sepultura abre a porta para a felicidade do encontro, fundamento
de toda a criação, o encontro e o abraço com o próprio Deus.
CONCLUSÃO
“Andai como filhos da luz. Pois o fruto da luz consiste em toda bondade e
justiça e verdade” (Ef 5,8b-9). A esperança cristã está diretamente ligada a proposta
cristã de salvação. Não apenas na perspectiva da salvação em plenitude, quando Deus
será tudo em todos (cf. 1Cor 15,28), mas salvação no cotidiano do dia a dia, em
pequenas doses que revelam essa perspectiva. Uma salvação em forma de semente, que
precisa ser plantada, semeada e cuidada para que seja frutuosa. É salvação iniciada,
germinando como se uma árvore, que inicia sua existência na semente escondida na
terra, mas que contém o potencial da árvore inteira contida em si. Assim como podemos
pensar em todo o esforço da semente para chegar a luz do sol e se fazer broto, podemos
pensar em desenvolver nossas potencialidades, nossos dons, nossos talentos, para
também cumprirmos nossa verdadeira vocação. Vocação de filhos e amados, a imagem
e semelhança do criador, que tem capacidade criativa e criadora.
O Cristo, nossa esperança, rosto humano do Pai veio trazer, se tornar essa
esperança anunciando e concretizando o Reino de Deus que é nossa responsabilidade
fomentar e construir. Pela Cruz, nos liberta do medo, da morte, dos condicionamentos
que aprisionam. Foi para a liberdade, que Cristo nos libertou (Gl 5,1) Paulo ainda nos
exorta, a permanecer firmes sem nos deixarmos nos submeter ao jugo da escravidão. A
escravidão dos condicionamentos e valores culturais destorcidos, de tradições
17
opressoras, do poder que subjuga e quer dominar, condicionados e acomodados a
realidade do consolo material e do conforto, nos colocamos em situação de uma
sobrevivência sem sentido, deixando a vida passar nos satisfazendo por prazeres
passageiros e relações fugazes. No entanto, libertos, com o coração cheio da esperança
que é o próprio Cristo, somos chamados a vida, nos tornamos viventes e agentes na
história, trabalhando e respondendo por sua construção caminhando para o Reino. No
Cristo encontramos o caminho, a verdade e a vida (cf. Jo 14,6) caminho que leva a
comunhão com o Pai e a unidade com ele. Vida que será plenificada, não substituída,
onde teremos preservada nossa essência, aquilo que verdadeiramente somos, nossa
identidade mais profunda, nossa perseidade. O que somos, acreditamos e fazemos não
será descartado, esquecido ou abandonado em uma vida anterior, ao contrário, a
responsabilidade de nossas atitudes nos constitui, nos modela e nos transforma. Daí a
necessidade da opção fundamental pelo Cristo, e a necessidade de colocá-lo no centro
de nossa existência.
Para o cristão a vida é essa que se plenificará. É uma só e precisa ser vivida com
responsabilidade e coerência, vida que será perpetuada e estendida à uma realidade que
por ora não compreendemos por fugir a nossa capacidade. Encontramos aí caminhando
juntos a esperança e o louvor, a fé na promessa, o reconhecimento e a gratidão de nossa
criaturidade que nos permite a abertura e o diálogo silencioso com o criador, permitindo
que ele se manifeste em nós, nos potencializando e conduzindo para a realização de seu
projeto que é também o sonho e a felicidade de todo ser humano, a vida em plenitude,
onde não há medo, não há morte, pois essa também foi vencida pela cruz e ressurreição
do Cristo que pelo Pai foi assim glorificado.
Esperança e louvor se encontram também unidos de maneira intrínseca na
liturgia, oração pública e comunitária, lugar onde a Igreja reunida em ação de graças se
abre ao diálogo e ao encontro com o Deus uno e trino da fé cristã. É lugar privilegiado
onde pela ação ritual fazemos memória do Mistério Pascal, celebrando a encarnação,
vida paixão morte e ressurreição do Cristo que é o próprio Deus. Nos colocando então
em postura de escuta e resposta, em diálogo com Deus Criador e Salvador que ama seu
povo e quer permanecer no meio dele se manifestando pelo seu Espírito como alimento,
em comunhão, dividindo com ele suas dificuldades, angústias, desafetos e aflições,
trazendo consolo e sinalizando novas possibilidades, perspectivas de esperança de um
18
mundo novo (cf. Jo1,51) fundamentado na promessa do Antigo testamento renovada
pela cruz de Cristo.
8
Lembra-te de Jesus Cristo,
Ressuscitado dentre os mortos, da descendência de Davi. (...)
11
Fiel é esta palavra: Se com ele morremos,Com ele viveremos.
12
Se com Ele sofremos, com ele reinaremos.
Se nós o renegamos, também ele nos renegará.
13
Se lhes somos infiéis,Ele permanecerá fiel, pois não pode renegar-se a si mesmo.
(2Tm 2,8.11-13)
A maioria das religiões e culturas por mais diferentes que sejam uma das outras
têm em comum a crença na vida após a morte ou em um porvir ou uma continuidade,
vida eterna. No cristianismo, no entanto, há a crença em uma vida em continuidade com
essa que já vivemos, que vai se constituindo, se desenvolvendo em processo crescente, a
caminho da plenitude que já é iniciado em nossa existência terrena, que no porvir, será
alcançada com a completude de nossas realizações como seres humanos que somos. Em
comunhão com o Criador.
Ajudar construir um mundo melhor e mais justo, trabalhar para isso, é então
necessidade, é obrigação de todos, procurar realizar mudanças mesmo que pequenas no
momento, mas que germinam como a erva que se espalha sobre a terra, reverbera e
aquece os corações trazendo vida. Pequenas ações e atitudes irradiam e podem alcançar
distâncias inimagináveis, devido ao tamanho e ao poder da graça e do amor de Deus. A
semente de mostarda, a menor de todas as sementes se transforma na maior das
hortaliças, grande o suficiente para abrigar os ninhos dos pássaros (Mt 13,31-32).
As leituras dos dois autores por nós escolhidos, nos trazem a luz para o sentido
da esperança ligada ao louvor, louvamos o que amamos, amamos o que conhecemos. É
somente no amor que podemos esperar no que não conseguimos explicar, somente no
amor encontramos a fé que nos anima e nos dá coragem de traçar nossa história
rompendo barreiras, vencendo obstáculos, como o objetivo de encontrar o amado.
Somente assim temos a coragem amorosa de seguir adiante na fé rumo a promessa com
a fidelidade que se torna identidade.
REFERÊNCIAS:
MOLTMANN, Jürgen – O Deus Crucificado – A cruz de Cristo como base crítica
da teologia cristã – tradução: Juliano Borges de Melo – Santo André (S.P.), Academia
Cristã; 2014
19
EVDOKIMOV, Paul – O Silêncio Amoroso de Deus – Tradução Ivo Storniolo –
Aparecida; S.P. Editora Santuário; 2007.
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