entrevista com ubirajara rancan de azevedo marques

Propaganda
ENTREVISTA COM
UBIRAJARA RANCAN DE AZEVEDO MARQUES
A revista FILOGENESE inaugura neste volume a seção Entrevista, que visa
publicar entrevistas com grandes filósofos do cenário nacional. Tal seção se faz
relevante, pois remete ao diálogo filosófico, porém destacado com o aspecto de uma
conversa. Neste número publicamos a entrevista com o professor doutor Ubirajara
Rancan de Azevedo Marques.
Nascido em São Vicente, litoral de São Paulo, Ubirajara Rancan de Azevedo
Marques graduou-se em Filosofia pela USP em 1984. Obteve o mestrado e o doutorado
nesta mesma instituição, respectivamente em 1996 e 1990. Realizou estágios pósdoutorais na Itália, França e Portugal, tendo participado de congressos internacionais no
Canadá e na Itália. Publicou 1 livro, 11 artigos em periódicos especializados (quatro dos
quais no exterior), 5 trabalhos em anais de eventos e um capítulo de livro em obra de
autoria coletiva publicada no exterior. Participou ainda de diversos eventos no exterior e
no Brasil. Orientou trabalhos de iniciação científica, trabalhos de conclusão de curso e
dissertações de mestrado, todos na área de história da filosofia moderna. Obteve o título
de livre-docente em História da Filosofia Moderna na Universidade Estadual Paulista
em outubro de 2007. Atualmente é membro da Diretoria (gestão 2006-2010) da
Sociedade Kant Brasileira, na qual ocupa o cargo de Tesoureiro. Primeiro Presidente da
Diretoria (gestão 2008-2010) da Seção Regional Marília - São Carlos - São Paulo da
Sociedade Kant Brasileira. Membro, desde 2007, da "Société d'études kantiennes de
langue française".
A entrevista apresenta o percurso de formação do autor e os interesses que o
direcionaram. Ela foi realizada via email em junho de 2009 por meio do entrevistador
Marcio Tadeu Girotti.
Nos fale um pouco sobre sua formação e os motivos que o levaram a cursar o
Curso de Filosofia.
Tendo-me dedicado ao estudo do piano clássico desde os quatro anos de idade, em São
Vicente, parecia natural continuar por essa via. Assim eu próprio pensava até por volta
de meus 17 anos. Sem nunca ter tido nenhum contato formal (e mesmo informal) com o
estudo de Filosofia, comecei a interessar-me por leituras (livros, periódicos e artigos em
jornais e revistas) que direta ou indiretamente tocavam em questões e debates
filosóficos. Achando-me demasiado preso à música (e, no mesmo passo, distante de
tantas outras coisas), comecei a considerar, e, logo - no ritmo pouco equilibrado da
adolescência -, a concluir que o melhor seria optar pelo estudo da Filosofia! Após o
término do então 2o. Grau (em 1977), fiquei ainda um ano e meio com dedicação
exclusiva à música (piano e regência, coral e orquestral, e música de câmera). Em
agosto de 1979, enfim, passei a freqüentar o cursinho preparatório para o vestibular, e,
em março de 1980, começava a estudar Filosofia na USP. Completei a Graduação em
quatro anos (ou quatro anos e meio, pois tranquei matrícula por um semestre, em 1981),
tendo-me tornado Bacharel em Filosofia ao final do primeiro semestre de 1984. Em
março de 1985 comecei o Mestrado em Filosofia, na mesma USP, tornando-me o
Vol. 2, nº 1, 2009.
www.marilia.unesp.br/filogenese
1
primeiro orientando formal de Gérard Lebrun. Sem muita certeza sobre o que estudar,
começara com Heidegger, passara rapidamente por Platão, terminando (já não havia
mais tempo para tergiversações!) com Kant... Concluí essa primeira pesquisa em nível
de pós-graduação em 1989, tendo defendido a Dissertação de Mestrado em agosto desse
ano, já professor da Unesp, para a qual ingressara em março desse mesmo ano. Em 1990
começava o Doutorado, também na USP, agora sob a orientação de Paulo Eduardo
Arantes, em pesquisa cujo tema era a escola francesa de história e historiografia da
filosofia, tentativa de compreensão mais aprofundada do modus operandi filosófico
local, ou seja, uspiano. A Tese foi defendida em novembro de 1996. Durante o
Mestrado (por seis meses, entre 88 e 89), depois também no Doutorado (por quatro
meses, entre 93 e 94), estive em Paris, especialmente na então Bibliothèque Nationale
de Paris (depois Bibliothèque Nationale de France), que eu frequentava diariamente,
não raro também aos sábados de manhã, encantadíssimo com tanto tesouro à vista, à
disposição! Minha próxima experiência de formação no exterior viria somente em 1999,
quando realizei uma primeira pesquisa de pós-doutorado em Padova, lá tendo
permanecido por dez meses. Esse precioso contato - do ponto de vista pessoal e
científico - levaria-me diversas outras vezes à Itália, sempre em função de
compromissos e pesquisas acadêmicos: em 2003, 2004, 2005, 2006 e 2008. Tendo
voltado à França em 2004, estive também, com grande proveito científico-acadêmico,
em Lisboa, por três meses, em 2006.
Conte-nos um pouco sobre sua experiência na Europa. Fale-nos das pesquisas e
das pessoas que fizeram parte desse período no exterior.
Minha experiência européia tem dois momentos distintos: o primeiro, abrangendo os
períodos de mestrado-sandwich e de doutorado-sandwich (ambos financiados pela
CAPES) desenvolvidos em Paris; o segundo, abrangendo os pós-doutorados realizados
em Padova e em Lisboa. No primeiro, meu contato era menos com pessoas, mais com
as bibliotecas e seus acervos; no segundo, além das bibliotecas e seus acervos, meu
contato pessoal com colegas italianos e portugueses foi muito grande e significativo.
Primeiro, Paris. Embora eu estivesse oficialmente vinculado à Université d’AixMarseille II, em Aix-en-Provence, sob a orientação de uma colega de departamento de
Lebrun, meu orientador no Brasil, que lecionava tanto lá como na USP, o fato é que,
após uma rápida passagem por Aix (bela nas suas paisagens, pintadas por Cézanne, e
nas suas tantas fontes romanas), fixei-me em Paris, no 185 da rue Saint-Maur, no
11ème., perto da avenue Parmentier, não muito longe da Place de la République e do
Père Lachaise. Fascinado pela paisagem urbana parisiense, menos pelas largas avenidas
(resultado da reurbanização da cidade por Haussmann, ao final do século XIX), muito
mais pela arquitetura dos prédios e pelas ruelas bem conservadas, caminhava à pé,
mesmo sob o frio do inverno, até a Bibliothèque Nationale e, ao início da noite, de lá ao
studio. Flanava pelas margens frias do Canal de Saint Martin, lá perto de casa, e que, no
verão, é navegável em toda a sua extensão. Comprava o Monde, o Nouvel Obs, e, claro!,
o Pariscope, fonte preciosa das notícias mais interessantes: concertos de música clássica
e filmes antigos. Nas suas mais de trezentas salas de cinema, Paris proporcionou-me um
verdadeiro aprendizado em torno da sétima arte. Obras nunca vistas, então dificilmente
exibidas nos cinemas nacionais, aguçaram minha percepção, fazendo-me percorrer
novos canais de reflexão e sensibilidade. "Crepúsculo dos Deuses" (Billy Wilder), "O
Terceiro Homem" (Carol Reed), "A Dama de Xangai" (Orson Welles), "Gata em Teto
Vol. 2, nº 1, 2009.
www.marilia.unesp.br/filogenese
2
de Zinco Quente" (Richard Brooks), "Johnny Guitar" (Nicholas Ray), "Sindicato de
Ladrões" (Elia Kazan), "Alemanha, Ano Zero" e "Roma, Cidade Aberta" (Rosselini),
"Glória Feita de Sangue" (Stanley Kubrick), ciclos dedicados ao western, ao cinema
noir, a Almodóvar, a Bergman, a Garbo (foi quando vi "Mata Hari")... E ainda pude
rever (nesse caso, em plena Cinémathèque), o delicioso "Hatari" (Howard Hawks), um
dos grandes filmes da minha infância, além de "Rastros de Ódio" (John Ford) e "Sem
Lei e Sem Alma" (John Sturges)... Action Écoles, Gitanes, Christine... No plano dos
museus, o que mais me impressionava, por ser possível conhecê-lo por inteiro (tarefa
que não pude cumprir, no caso do Louvre), pela especificidade das obras ali expostas,
mas também pelo estupendo trabalho de recriação arquitetônica, era o Musée d’Orsay.
Também em razão do acervo de obras impressionistas, fiquei encantado com a coleção
do Marmottan-Claude Monet, deliciosamente pequeno e charmoso, no qual adquiri
(perdendo-a para minha ex-mulher, na partilha de bens... ) bonita reprodução em tela de
um quadro de Monet. Caminhar por Paris era ser deliciosamente instigado, fosse em
razão das inúmeras referências histórico-culturais, fosse pelo sistemático cuidado na
preservação de monumentos, edifícios e amplas áreas naturais, verdadeiro contraponto
com a experiência vivida até então no Brasil. Sentia-me privilegiado por ser obrigado a
percorrer os jardins do Palais Royal, quer à entrada, quer à saída da Bibliothèque
Nationale, para onde me deslocava, diariamente, em 88-89 (e, depois, em 93-94).
Frequentava, como os demais brasileiros da BN e alguns agregados seus, o café do
Jacques, que, profissional, falava meia dúzia de palavras simpáticas em várias línguas,
dentre as quais, é claro, o português. Levado pelo amigo José Leonardo (que preparava
o seu doutorado sobre Comte e habitava a Maison d’Italie, na Cité), havia vários anos
(mais) um-brasileiro-em-Paris, a ele voltaria em 93, quando era então somente um bar,
sem Jacques, Leonardo ou Newton Bignotto (que, hoje e há muito professor na Fafich
da UFMG, concluía à época seu doutorado com Claude Léfort). A ida ao Collège de
France causou-me um inevitável frisson. Se eu pensara não poder adentrar sem-mais o
prédio, que dizer então de frequentar um curso!? E logo ministrado por Jules
Vuillemin!? À saída das aulas, por volta das 19h00, eu percorria o trecho da rue Saint
Jacques até o Boulevard Saint Michel, passando pela frente da Sorbonne. Mal sabia eu
que, em alguns anos, aquele nome de rua, nas imediações, tornar-se-ia um dos
principais objetos de minha nova pesquisa... "Victor Cousin", com efeito, era então
somente um logradouro público ou pouco mais do que uma vetusta imagem na cour da
Sorbonne. Também por ali estava a Jean Vrin, a PUF, siglas e nomes que pertenciam às
capas e lombadas das obras que eu adquiria na Francesa, em São Paulo, os vários sebos
das redondezas, a rue Monsieur le Prince e as suas salas de cinema, "aquele" restaurant
thais e a livraria erótica Le scarabée d’or. Um pouco mais abaixo, já perto do Sena,
uma das lojas "Gibert Jeune", na qual, feliz, comprei, como livre d’occasion, um
exemplar do Études sur le rôle de la pensée médiévale dans la formation du système
cartésien, de Gilson. Os bouquinistes, a Île de la Cité, a Sainte-Chapelle, a Notre-Dame
(na qual, ingenuamente, eu esperava sentir os ecos de Beata Viscera Marie Virginis, de
Pérotin, o maior dentre os grandes da École de Notre-Dame de Paris, sem me dar conta
de que só ouviria o clique do obturador das câmeras fotográficas)... Bem mais tarde, já
perto de voltar ao Brasil, agora em 94, Ruy Fausto indicou-me La Tour du Monde,
verdadeira boutique do livro raro (e caro... ) e antigo, na rue de la Pompe, na qual
adquiri, entre poucos mais, os dois volumes da primeira edição (1829) do Manuel de
l’histoire de la philosophie, de Tennemann, com tradução e prefácio de Cousin (e que
faço hoje com isso?... ). Na segunda temporada em Paris, por quatro meses, residi o
Vol. 2, nº 1, 2009.
www.marilia.unesp.br/filogenese
3
tempo todo na Maison du Brésil, na Cité, no 7L do Boulevard Jourdan, chambre 314.
Ao meu lado, um simpático e talentoso pianista italiano, amigo próximo de um filósofo
também italiano, colega de Departamento de Ruy, na Université de Paris VIII –
Vincennes-Saint Denis, na qual ambos lecionavam. Pela vontade de Paolo, eu teria
apresentado-me em bares parisienses, tocando bossa-nova e ganhando francos
franceses... Apavorado com a idéia, que me faria retornar de madrugada à Maison e me
impediria de estar às 9h00 no saguão da BN, recusei a proposta, sem nem sequer
pestanejar... Do lado oposto, e por algum tempo, o colega e amigo Chammé, também
pianista, às voltas com seu pós-doutorado, as saudades da família e as dificuldades de
locação de imóvel em Paris. Tocávamos os dois quase todas as noites no belo piano de
cauda do Teatro da Maison, entre taças de vinho nacional, queijos locais e cervejas
cuidadosamente selecionadas por Rogério Hafez (que já há muito leciona na Unicamp),
helenista em fase de doutorado-sandwich e um autêntico connaisseur, com quem
aprendi a degustar as maravilhosas cervejas belgas! Não bastasse o imenso parque no
qual estávamos, havia ainda o Montsouris, bem diante de nós. As folhas caídas do
outono, a neve precoce em novembro, as árvores nuas do inverno... A Bibliothèque
Nationale era bem mais do que eu poderia supor. Em todos os aspectos, ela era
assustadoramente imensa! O pé direito da Salle des Imprimés, a Salle des Catalogues, e
tudo o mais que, até então (refiro-me à primeira vez em que lá estive, em 88), eu só
conhecera por meio do filme-documentário de Alain Resnais, lançado em 56, Toute la
mémoire du monde. Do filme, eu guardara a (estranha) imagem dos abajures nas mesas,
sem jamais pensar que viria um dia a utilizá-los... Cadeiras rangentes, a recordaçãomoleque de flirts e carícias insuspeitas, os vários funcionários de origem hindu, a
atraente funcionária italiana a perguntar-me na cour: vous êtes italien?... A sensação de
estar ali, contudo, juntando-me a pesquisadores de toda a parte, a tipos verdadeiramente
bizarros, seria logo substituída pelo pavor de não dar conta de todo o material
encontrado. Obras e autores, que, clássicos, só conhecia das notas de rodapé, estavam lá
à disposição, e outros mais também, todos interpeláveis por uma simples solicitação e
algum tempo de espera. O Dictionnaire de Bayle, as Philosophische Versuche de Tetens
(os dois volumes que depois eu compraria numa loja de livros alemães em Paris,
próxima do Beaubourg), o livro de Theodor Häring sobre o sentido interno e os
Duisburgische Nachlass de Kant (que eu começara a traduzir nas mesas da Bibliothèque
Sainte-Geneviève), o Kantbuch de Paton (que a Biblioteca da Faculdade de Filosofia da
USP estranhamente não possuía, à época), um exemplar intocado (o que obrigava a
couper les pages) do Erläuternder Auszug aus den critischen Schriften des Herrn Prof.
Kant, auf Anrathen desselben, de Jakob Sigismund Beck, outro igualmente intocado dos
seis volumes do Encyclopädisches Wörterbuch der kritischen Philosophie, de Georg
Samuel Albert Mellin, obras de Erich Adickes, Karl Vorländer, Hermann Cohen etc.
Para quem, como eu, defrontava-se com a razão pura, com a crítica de Kant ao inato,
com a multiplicidade a priori e com o esquematismo transcendental, a bibliografia
encontrada era todo o tesouro querido, do qual, presumivelmente, eu jamais usufruiria
por completo. Afora o gigantismo da empresa, meu conhecimento da língua alemã, após
somente um ano e meio de estudo e muita prática direta através do texto original
kantiano, não me permitia maior destreza. Mesmo assim, lembro-me da enorme
satisfação sentida ao ler as primeiras páginas do famoso Kants Theorie der Erfahrung,
de Cohen, e perceber que a obra principiava pela distinção entre a priori e inato, justo o
que me parecera digno de atenção e que se tornaria o primeiro capítulo de minha
dissertação de mestrado. Afora a BN e a Sainte-Geneviève, fui por algumas vezes
Vol. 2, nº 1, 2009.
www.marilia.unesp.br/filogenese
4
também à Bibliothèque de la Sorbonne (poucas em 88-89, muitas em 93-94, em razão
de a "Bibliothèque Victor Cousin" estar no mesmo conjunto), outras tantas na bela
Bibliothèque de l'Institut, de cuja sala de leitura se avistava o Sena, que naquele ponto é
cruzado pela Pont des Arts, pela qual também se chega ao Louvre. A primeira viagem
acadêmica à Itália (a terceira ao país), realizada em janeiro de 99, abrangia duas
palestras no Dipartimento di Filosofia da Università di Padova e uma terceira no
Dipartimento di Filosofia da Università di Roma – La Sapienza. A quarta viagem ao bel
paese, a mais longa delas, por exatos dez meses, foi também a mais gratificante, do
ponto de vista acadêmico, seja pelo contato sempre próximo e fecundo com Gregorio
Piaia (mas também com Enrico Rambaldi e Stefano Poggi) e alguns de seus amigos e
colegas de departamento (Giuseppe Micheli, em particular, especialista em Kant e
estudioso da recepção da filosofia crítica na Inglaterra, como também Mario Longo, da
Università di Verona), seja, em particular, pelo excelente acervo das bibliotecas
consultadas em Padova (onde a Biblioteca Universitaria, pública, possui verdadeiros
tesouros), Firenze e Bologna. Além de toda a pesquisa desenvolvida naquele período,
duas palestras (uma em Padova, outra em Milano) e um artigo publicado (o terceiro em
periódicos italianos, o segundo na Rivista di Storia della Filosofia, fundada por Mario
Dal Pra, um dos historiadores da filosofia, que, na segunda metade do século XX, mais
se dedicou à questão da historiografia da filosofia). A propósito de meu contato com
Giuseppe Micheli há uma passagem relativamente curiosa. Em janeiro de 2002, por
conta dos estudos que fiz (e apresentei parcialmente em Padova) sobre Théodore
Jouffroy, Michelli escreve-me, interessado em confirmar a veracidade de uma afirmação
de Francis Haywood. O primeiro tradutor da Crítica da Razão Pura para o inglês afirma
no prefácio à obra que seus comentários inspiram-se fortemente numa tradução, feita
por Jouffroy, de uma análise da Crítica publicada na Alemanha: "(...) from Jouffroy's
translation of a German Analysis (of Kant's Critique of Pure Reason), much that is in
the following work will be found to have been taken". Não havendo, dentre as poucas
obras e anotações de Jouffroy publicadas, em vida ou postumamente, nenhuma outra
tradução conhecida, além das que ele realizara sobre textos de Dugald Stewart e
Thomas Reid, consultei a correspondência publicada e um longo estudo a seu respeito,
pois a questão era mesmo interessante, possibilitando – e era o que a mim mais me
interessava, além de dirimir a dúvida de Michelli – a melhor identificação do perfil de
Jouffroy face à presença dominadora de Cousin, seu mestre. Ademais, a atenção de
Jouffroy para com a psicologia fora sempre muito mais autêntica, ao passo que a de
Cousin, ao contrário, sempre a reboque do espiritualismo. Exatamente nesse ponto,
então, poderia residir uma eventual proximidade (ao menos temática, e, na melhor das
hipóteses, conceitual, se a tradução a ele atribuida por Haywood fosse confirmada) entre
Jouffroy e os pós-kantianos, para os quais o criticismo resultava em psicologia.
Todavia, por mais que procurasse, nada encontrei. Escrevi então a Patrice Vermeren,
estudioso do século XIX francês e professor e pesquisador junto à Université de Paris
VIII, de quem já lera algumas obras e artigos e com quem já me correspondera antes.
Tampouco ele pôde resolver a dúvida, embora afirmasse não lhe parecer provável
Jouffroy ter feito tal tradução. Recomendou-me aguardasse correspondência de seu
amigo Renzo Ragghianti, da Scuola Normale Superiore di Pisa, especialista que
eventualmente diria algo além. E assim, de Padova a Marília, daí a Paris, siamo tornati
in Italia!... Em 9 de março, dois meses após a indagação inicial de Micheli, recebo uma
longa e muito simpática mensagem de Ragghianti, escrita em francês (pois escrevera a
Patrice em sua própria língua), sem que, novamente, a solução enfim se apresentasse. À
Vol. 2, nº 1, 2009.
www.marilia.unesp.br/filogenese
5
essa altura, preferi aproveitar a oportunidade, perguntando a Ragghianti se eu poderia
encaminhar-lhe um texto meu sobre Cousin e Jouffroy, publicado em 2000, na Itália. A
surpresa não poderia ter sido mais gratificante. Embora o singelo trabalho tivesse sido
bem recebido por Piaia e por seus colegas de Padova e Verona, não esperava que
Ragghianti o conhecesse, menos ainda que dele houvesse feito uma citação em sua
reedição da Nouvelle théodicée, de Cousin. Por fim, Lisboa. Apresentei-me a Leonel
Ribeiro dos Santos, professor catedrático do Departamento de Filosofia da Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa, logo após a comunicação feita por ele no X
Congresso Kant, em setembro de 2005, em São Paulo. A partir de então, trocamos
várias mensagens por correio eletrônico (embora a Leonel não lhe agradasse ler o que
fosse no écran... ), eu o tendo recebido em Marília, em junho de 2006, para uma
conferência sobre Kant. Minha estada em Lisboa, por três meses, entre setembro e
outubro de 2006, afora a preocupação com a gravidez de Adriana e a saudade
insatisfatoriamente abrandada pelos telefonemas diários ao início da noite, correu às mil
maravilhas. A oportunidade de dedicar-me outra vez em tempo integral à pesquisa marcada por um pessoal retorno a Kant - redundou no avanço do trabalho e ainda em
quatro palestras em Lisboa, Coimbra, Verona e Padova, além do privilégio de estar
quase que diariamente com Leonel, que ia amavelmente ao meu encontro na Biblioteca,
quando não raro tinha a satisfação de ouvi-lo discorrer sobre Kant. Não bastasse essa
atenção acadêmica, Leonel e Emília, sua esposa (historiadora especializada no século
XVI português) desdobraram-se em gentileza e amizade, levando-me a conhecer muitas
das belas atrações no entorno de Lisboa e mesmo no Alentejo. Tive ainda a sorte de
viver ou presenciar situações em princípio inusitadas, sobre as quais escrevia aos
amigos, que, retribuindo-me com incentivos, levaram-me a compor as Crónicas do
Lumiar. Ainda durante esse estágio lisboeta, fui a Verona e Padova, nas quais proferi
duas palestras - sempre sobre Kant e o inato, o inato e as metáforas biológicas - e onde
pude dar curso à idéia de um colóquio trinacional com italianos, portugueses e
brasileiros. Contando para tanto com a simpatia e colaboração de Leonel e Piaia,
também de Riccardo Pozzo, que acabara de conhecer pessoalmente, Piaia, Micheli e eu
fizemos um croqui do futuro encontro, não muito distante do programa que
efetivamente teria lugar entre 22 e 25 de janeiro de 2008, em Verona e Padova. O
segundo encontro, fruto daquelas primeiras conversas com Leonel em meados de
setembro de 2006, ocorrerá entre 15 e 18 de setembro próximo, em Lisboa. O terceiro,
em BH, no primeiro semestre de 2011. Embora eu não tenha cumprido nenhum estágio
de pesquisa na Alemanha (fui ao país em duas viagens pessoais, em fevereiro de 89 e
em abril de 98), meus contatos profissionais com a pátria de Kant têm se ampliado
consideravelmente nos últimos anos, sobretudo de 2006 para cá, graças aos ColóquiosKant de Marília e aos congressos da Société d'Études Kantiennes de Langue Française.
Foi assim que conheci Heiner Klemme e Margit Ruffing. O primeiro, por intermédio de
Clélia Martins; a segunda em Québec, por ocasião do último congresso da Société. Por
conta do contato com Margit (que, tendo estado em Marília por ocasião do último
colóquio-Kant, em 2008 (ao qual compareceu também Klemme), virá também ao
próximo, em novembro de 2009), fui convidado por ela e por Bernd Dörflinger (atual
presidente da Kant-Gesellschaft) para escrever um relato sobre a Kant-Forschung no
Brasil, o qual, tendo sido composto, deverá aparecer no próximo número da KantStudien, em setembro.
Vol. 2, nº 1, 2009.
www.marilia.unesp.br/filogenese
6
Considerando sua experiência no exterior e todo o contato com grandes obras e
ilustres pessoas, nos fale um pouco sobre como o Sr. chegou à filosofia de
Immanuel Kant, uma vez passado, talvez de modo mitigado, por Platão e
Heidegger. Sua opção por Kant parece curioso, pois, o mesmo foi mote de sua tese
de mestrado, mas não foi o mote de sua tese de doutorado sobre a Historiografia
Francesa; isso ocorreu pela mudança de Orientador? (Mudança de Michel Lebrun
para Paulo Arantes).
Meu mestrado foi orientado por Gérard Lebrun, tendo transcorrido entre 85 e 90.
Heidegger foi um interesse em grande parte motivado por uma disciplina ministrada por
Viktor Knoll, no segundo semestre de 1984. Já o interesse por Platão decorreu de um
grupo de estudos (formado por estudantes de Graduação, de Pós-Graduação e por
Professores do Departamento de Filosofia da USP) montado também no segundo
semestre de 84, cujas primeiras reuniões deram-se no início de 85. Nesse grupo, fui
responsável por um seminário sobre o diálogo Parmênides, de Platão, tendo sido
fortemente atraído pela temática sobre a chamada teoria da participação, mais ainda do
que pela questão do uno e do múltiplo. Já durante o primeiro semestre letivo de 2005,
Ricardo Terra programou uma disciplina sob a forma de seminários ministrados por
estudantes, vários deles membros desse mesmo grupo formado ainda em 84. Um pouco
em busca de desafios (e de temas), conversei certa vez com Luís Henrique Lopes dos
Santos, dizendo-lhe estar à cata de um tema em Kant. Por brincadeira ou não, ele
sugeriu-me trabalhasse sobre o "esquematismo". Daí a topar a briga com o texto
kantiano foi um pulo... A mudança temática no doutorado não foi devida à mudança de
Orientador. Procurei Paulo Arantes logo depois de concluído o Mestrado (no segundo
semestre de 90, portanto), pois já me interessava pela questão da historiografia
filosófica, algo (outra vez) polêmica naqueles tempos, talvez em parte motivada pela
volta de Porchat ao Departamento de Filosofia da USP. Além do interesse por ela, o
Mestrado em Kant requeria, agora, uma certa distância da filosofia crítica... Mas nunca
pretendi afastar-me do estudo da filosofia transcendental, tendo voltado como que
espontaneamente a ele em 2004/2005, por meio da revisitação de algumas questões já
tratadas no meu Mestrado, cujo tratamento, porém, não me parecera ter sido suficiente.
Certa vez, em uma de suas aulas na Graduação, o Sr. mencionou um 'grupo' de
alunos que queriam estudar a Crítica da razão pura de Kant. Nesse grupo, vocês
decidiram separar a obra em seminários e dar conta dela em um período curto de
tempo. Lembro-me de o Sr. dizer que o grupo não passou das primeiras reuniões.
Conte-nos sobre esse grupo formado e também de alguns dos participantes.
De fato, houve esse grupo, mais adiante um outro. O primeiro, se não me engano, foi
formado no primeiro semestre de 1981. Já não me lembro quem terá sugerido autor e
obra, nem por quê o terá feito. O fato é que éramos José Veríssimo Teixeira da Mata,
Paulo Roberto Butti de Lima, Márcio Suzuki e eu, não me lembrando se havia mais
alguém além de nós quatro. José Veríssimo lecionou depois na Unicamp, tendo também
traduzido as Categorias. Hoje, creio, permanece como Assessor na Câmara Federal.
Paulo leciona atualmente na Università degli Studi di Bari. Márcio é já há vários anos
docente e pesquisador no Departamento de Filosofia da USP, além de reconhecido
tradutor de obras filosóficas em alemão. A tentativa de adentrar o labirinto da Crítica
em alguns poucos encontros, a partir de uma divisão puramente quantitativa do texto foi
Vol. 2, nº 1, 2009.
www.marilia.unesp.br/filogenese
7
um total fiasco... Recorremos então a Franklin Leopoldo e Silva, que fora professor de
todos nós em nosso primeiro ano de Graduação, em 1980, que não só apoiou a iniciativa
como reunia-se periodicamente conosco (creio mesmo que semanalmente, às quartasfeiras à noite). Já não me lembro de por quanto tempo as reuniões perduraram, tendo a
impressão de que alguma greve prolongada frustrou essa segunda tentativa de
aproximação... Mais à frente, agora (não estou bem certo) em 84, formou-se um outro
grupo, dessa feita com Márcia Valéria Martinez de Aguiar, Márcio Suzuki, Roberto
Bolzani Filho (já há muitos anos docente e pesquisador no Departamento de Filosofia
da USP, especialista em ceticismo grego) e eu próprio. Reuniamo-nos - já não me
lembro se sempre ou só de vez em quando - em casa de Márcia, no bairro de Santa
Cecília. Márcia é professora de francês e de filosofia, além de reconhecida tradutora de
obras em francês.
Adentrando um pouco no seu lado mais artístico, fale-nos sobre sua vida de
músico, o piano, a regência e também, se for o caso, fale-nos das Crônicas que você
escreve diante de certas situações que, às vezes, são fatos jocosos. Ainda nisso, o Sr.
pretende lançar um livro só de crônicas? Ou vai continuar publicando elas em seu
BLOG?
Comecei com o estudo do piano clássico aos 4 anos, em São Vicente, tendo prosseguido
com ele até os 19. A partir dos 9, passei a ter aulas com o Maestro Souza Lima,
primeiro em Santos, depois em São Paulo, semanalmente. Meu interesse por regência decerto devido ao fato de que meu pai, músico, dirigia corais na Baixada Santista e
também uma orquestra, em São Vicente - aumentou na segunda metade dos anos 70.
Em 78, frequentei um curso de regência em Teresópolis, RJ, quando tive aulas com o
Maestro Roberto Ricardo Duarte. Em maio e junho desse mesmo ano, fui selecionado
para o curso de regência ministrado pelo Maestro Eleazar de Carvalho no antigo
Instituto de Artes do Planalto, em São Bernardo do Campo (que viria a ser o Instituto de
Artes da Unesp, em São Paulo). Na sequência, frequentei o curso de regência ministrado
pelo mesmo Eleazar, naquele mesmo ano, no Festival de Inverno de Campos do Jordão.
Depois, já na Graduação em Filosofia, frequentei, no segundo semestre de 1981, um
curso de regência ministrado pelo Maestro Ronaldo Bologna, na USP. Participei de
alguns corais - em particular do Madrigal Ars Viva, de Santos -, tendo fundado outros
dois (em São Vicente e Santos), mas em especial o Boca santa, na Faculdade de
Filosofia e Ciências da Unesp, campus de Marília, à frente do qual estive entre 1999 e
2007. Afora essas atividades, frequentei muitos concertos de música erudita em Santos
e São Paulo, nos anos 60 e 70, principalmente ao final dos anos 70, quando viajava
semanalmente a São Paulo - duas vezes por semana, às vezes - para acompanhar
concertos, principalmente os da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, então
dirigida por Eleazar de Carvalho. Minha carreira como músico registra recitais de piano
(como solista e membro de grupos de câmara) em cidades da Baixada Santista, São
Paulo, Teresópolis, Curitiba, Buenos Aires. Como regente de corais, apresentei-me
inúmeras vezes na Baixada Santista e em Marília e região, além de em São Paulo,
Piracicaba, Vacaria, Goiânia, Tiradentes. O capítulo das crônicas começou por absoluto
acaso, em Lisboa, durante minha estada de três meses na capital portuguesa, em 2006. A
fim de ludibriar a saudade, escrevia com alguma frequência mensagens eletrônicas,
narrando os fatos que presenciava diariamente. Estimulado pela família e pelos amigos,
levei a coisa adiante, mesmo depois de retornar de Portugal. Continuo ainda um pouco,
Vol. 2, nº 1, 2009.
www.marilia.unesp.br/filogenese
8
agora em casa, sem nunca ter pensado ou pensar em publicar algum dia um livro que as
reúna... Por falta de tempo, o blog está desatualizado (as duas últimas crônicas não estão
lá...).
Com relação à sua docência na Unesp. O Sr. começou a ministrar aulas na FFC
ainda por concluir e defender sua tese de mestrado. Fale um pouco sobre sua
experiência como professor iniciante, passando pelo modo como foi sua graduação,
como era o ensino na década de 80, e como o Sr. vê hoje a graduação em filosofia
(na Unesp ou de modo geral). Mostre sua opinião acerca do tempo que hoje é
disposto para os alunos, para cumprir uma grande carga horária na graduação
conjugada com pesquisa e vida acadêmica, bem como o Mestrado que baixou de
cinco para dois anos e meio ou três.
Quando comecei a lecionar na Unesp, em abril de 89, eu já tinha alguma experiência
docente no ensino superior de Filosofia (nunca lecionei no ensino fundamental ou
médio), tendo lecionado por dois anos no curso de filosofia das Faculdades Associadas
do Ipiranga, bem como por aproximadamente um ano no curso de Biblioteconomia da
Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, ambas na Capital do Estado,
onde morava e moraria até o início de 1991, quando me fixei em Marília. Àquela época,
o Departamento era outro (maior e constituído por colegas que já não mais estão aqui),
também outro o Curso, ao menos em parte, pois a clientela era ainda em boa parte
formada por seminaristas. Muitas das dificuldades da época persistem ainda hoje, ou
mesmo se agigantaram, como, por exemplo, o despreparo da grande maioria dos
estudantes com respeito ao conhecimento - ao menos "instrumental" - de línguas
estrangeiras, além do próprio português, dele em primeiro lugar. Mas o mais grave, fato
responsável pela ausência - mesmo hoje - de identidade intelectual de nosso
Departamento, era o vai-e-vem, o bate-e-volta da maioria de nós, a visão de que Marília
era - e devia ser - um simples trampolim para algo melhor - ou efetivamente bom.
Acertada ou erradamente, considero um despropósito um Curso de Filosofia exigir
presença diária dos estudantes em sala de aula, de 2a. a 6a. feiras. Penso seja
absolutamente imprescindível rever e mesmo revolucionar o ensino de Filosofia, tal
qual praticado hoje, sob pena de perpetuar-se - sabe Deus até quando - um modelo
completamente falido, quer do ponto de vista didático-pedagógico, quer do ponto de
vista intelectual. Já sobre o Mestrado ser hoje concluído em menos tempo do que antes,
afora as eventuais razões "mercadológicas" para tal, deve-se observar, também, que a
Iniciação Científica é agora um fato consagrado, coisa que, quando Mestrado e
Doutorado duravam bem mais tempo, era inexistente ou praticamente inexistente. Nesse
sentido, creio que uma coisa termine por compensar a outra.
Com relação a Iniciação Científica, ela não é prejudicial ao aluno que começa de
modo precoce a pesquisar algo logo nos primeiros anos da Graduação? Será que a
IC não seria algo a ser iniciada nos últimos anos da graduação? Essa é uma
questão que começa a perturbar alguns alunos, uma vez que muitos começam a
desenvolver IC e deixam outros conteúdos de aulas de lado para se dedicar à
pesquisa.
A Iniciação Científica deve significar um primeiro direcionamento do estudo para a
pesquisa, não podendo - sob pena de incorrer em sério contrassenso - concorrer com o
Vol. 2, nº 1, 2009.
www.marilia.unesp.br/filogenese
9
próprio estudo. Tampouco ela deverá implicar - como, porém, ocorre - uma seleção de
disciplinas a partir da qual algumas são consideradas mais, outras menos importantes,
justo em função da pesquisa iniciada. Mas a Iniciação Científica, sobretudo, não deve
jamais significar uma subserviência às diretrizes de pesquisa do Orientador, como,
porém, ocorre em algumas áreas e algumas circunstâncias. Como em tantos outros
aspectos da vida acadêmica - para não dizer da própria vida... -, a Iniciação Científica
tem seus prós e contras, não devendo ser tomada nem tão positiva nem tão
negativamente. Quanto ao início da IC, sou contrário a que ela se dê no primeiro ano,
devendo ter a sua largada somente no segundo semestre do 2o. ano, quando não no
primeiro do 3o. ano. O perigo maior de ela começar nesses dois primeiros anos é o de o
estudante não ter praticamente nenhuma familiaridade com o mundo filosófico, fazendo
a sua pseudo-opção a partir de critérios subjetivos ou por meio de atrativos nem um
pouco intelectuais.
Fale-nos um pouco sobre o seu livro: "A escola francesa de historiografia da
filosofia" lançado pela Editora Unesp em 2007.
Esse é, por ora, meu único livro. Tenho planos de publicar um outro, dentro de dois ou
três anos, reunindo artigos já publicados e também algo inédito, mas, então, sempre
relacionado a Kant. Esse livro é em boa parte resultante da Tese de Doutorado,
defendida em novembro de 1996, na USP. As alterações, algumas substanciosas, ficam
por conta das investigações levadas a cabo em Padova, no pós-doutorado que lá fiz
entre 99 e 2000. O livro, disposto em três capítulos e precedido por uma "Introdução" a
respeito da relevância "local" (ou seja, para nós brasileiros, em particular para os
paulistas) do tema, trata da concepção francesa de história e historiografia da filosofia,
primeiro a reboque da psicologia metafísica da escola espiritualista, depois a serviço de
uma análise criteriosa, metodologicamente definida. Por conta de sua decisiva
importância (não só para o mal), o primeiro capítulo é dedicado ao cousinismo, ou seja,
à disseminação sistemática e ao controle do ensino oficial na França de então por parte
de Victor Cousin. Em seguida, e pelo fato de o espiritualismo não se resumir à figura
central de Cousin, o segundo capítulo analisa, em particular, alguns textos de Théodore
Jouffroy, que, em certa medida, ultrapassa o mestre, seja pelo maior pendor analítico,
seja por não se prender tão-só à análise histórica. O terceiro capítulo, por fim, considera
os vários textos, que, a partir dos anos 1870, dão conta do estabelecimento dos
parâmetros metodológicos da futura "escola francesa". Nesse caso, a importância de
Émile Boutroux é decisiva, embora sejam fortemente relevantes os textos de Victor
Delbos, Léon Robin, Émile Bréhier. Numa palavra, o que se pretendeu fazer nesse
estudo foi recuperar parte da história de formação da escola francesa, com a lembrança
de personagens e textos, que, tão envolvidos com seu tempo, pertencem mais à história,
menos à filosofia. Essa devantagem apresenta um risco, pois esses filósofos não têm
lugar marcado na "grande História da Filosofia". Mas ela é também especialmente
irônica, porque a modéstia que os distingue vai sendo aos poucos superada,
desembocando em ironia maior, que explica e dissolve a dificuldade anterior, herdando
seu avesso, agora direito.
Há uma anedota que diz: “Não somos estruturalistas, não somos historiadores,
somos blá” (retirada de uma comunidade do ORKUT). Ela diz respeito ao ensino
de filosofia na USP, Unicamp e Unesp. Com relação a isso, como o Sr. vê o modo
Vol. 2, nº 1, 2009.
www.marilia.unesp.br/filogenese
10
como é ensinado a filosofia na Unesp e qual método o Sr. prefere? Além disso,
comente o adágio kantiano: “Até então não é possível aprender qualquer filosofia;
pois onde esta se encontra, quem a possui e segundo quais características se pode
reconhecê-la? Só é possível aprender a filosofar...” (CRP, II, 866).
A frase poderia até ser pitoresca, mas não é. Quanto ao ensino de filosofia, ao menos na
Unesp, ele não vem sendo focalizado com a devida atenção, ao menos por parte de todo
o corpo docente, ao menos por parte dos órgãos que por ele devem zelar, o Conselho de
Curso e o Conselho Departamental. Mas esse fato, em si mesmo, não significará
desinteresse dos atuais docentes pela questão, embora indique, a meu ver, preocupante
ausência de planificação, excesso de rapsódia, pouquidão de arquitetônica... O único
fato verdadeiramente digno de nota no tocante ao ensino de filosofia na Unesp é já
idoso de vinte anos... Trata-se da tutoria, modelo didático-pedagógico-filosófico de
ensino de filosofia introduzido no currículo pela firme ação de Trajano [Prof. Dr.
Antônio Trajano Menezes Arruda - Unesp]. Creio, porém, que essa mesma idéia - não
bem ela, mas a sua efetivação - terá sido engolfada pelo modus operandi tradicional,
seja ela de matiz estruturalista ou não. Temos ainda grande dificuldade em falar sobre o
ensino de filosofia, pois fomos ensinados e ensinamos, mas via de regra não paramos
para refletir sobre o ensino como tal. Isto é: filósofos e historiadores da filosofia, não
damos a devida atenção à formação, à Bildung, ocupando-nos, no mais das vezes, com
os próprios botões. Um "método perfeito" será coisa demasiado metafísica... Algo
como, em música, o "ouvido absoluto"... O mais provável é que, além de não haver algo
assim, haja boas razões para em muitos casos conjuminarem-se dois ou mesmo mais
métodos. Essa via eventualmente eclética pode não agradar aos puristas - mas, por outro
lado, quem estará radicalmente assim com eles? Quanto à frase kantiana - tão
literariamente compacta em sua procedência interna, tão infeliz em sua incompreensão
reiterada (por parte de filósofos, também, mas em particular de outros profissionais das
Humanidades, que se arrogam o direito de citá-la sem nem sequer minimamente a
compreender) -, deixo-a para uma ocasião mais oportuna, pois ela merece o devido
cuidado e o devido tempo.
Estamos chegando ao final da entrevista. O Sr. tem algo em especial que gostaria
de dizer?
Nada que me ocorra, a não ser agradecer-lhes pela gentileza e lembrança,
parabenizando-os todos pela excelente iniciativa de criação da revista.
Vol. 2, nº 1, 2009.
www.marilia.unesp.br/filogenese
11
Download