Os sentidos da Palavra e do discurso

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FUNDAÇÃO ESCOLA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA DE SÃO PAULO
II SEMINÁRIO DE PESQUISA DA FESPSP
Nome: Victor Augusto Sousa dos Santos Magalhães
Titulo: Os sentidos da Palavra e do discurso: Reflexões sobre a chefia indígena.
Resumo: O objetivo deste artigo é propor uma discussão sobre a Palavra, o discurso
político e a chefia indígena, tomando como ponto de partida os estudos de antropologia
política de Pierre Clastres e Helène Clastres. Assim como os trabalhos de Renato
Sztutman sobre os Clastres, que promovem uma leitura crítica e uma atualização dos
conceitos “clássicos” propostos pelos dois autores.
Tendo em vista uma melhor compreensão dos possíveis sentidos da chefia indígena na
contemporaneidade, propomos uma aproximação entre a “antropologia do político” e a
antropologia política clastreana. Procuramos, dentro dos limites de um artigo desta
natureza, fazer uma leitura dos trabalhos de Bruce Albert sobre os Yanomami, e em
especial sobre sua chefia mais conhecida, Davi Kopenawa, a partir do conceito de
mediação cultural.
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A Palavra
Procuramos, neste artigo, empreender uma reflexão sobre discurso político e a
chefia indígena ameríndia, tomando como base a reflexão de antropólogos sobre o tema.
Cabe ressaltar que este é um trabalho de natureza teórica Antes de iniciar a discussão
sobre esses temas, cabe justificar a utilização do termo “Palavra”, com p maiúsculo, no
título do artigo. A inspiração para esse texto surgiu durante a leitura de O dois e seu
múltiplo: reflexões sobre o perspectivismo em uma cosmologia Tupi, de Tânia Stolze
Lima (LIMA, 1996). Esse texto trata da caçada ao porco queixada entre os Juruna (etnia
do alto Xingu), mostrando como essa atividade está relacionado à noção de ponto de
vista, que por sua vez, evoca o conceito de perspectivismo, proposto por Viveiros de
Castro (2002). A caça aos porcos envolve uma batalha ontológica perigosa: os homens,
se cometerem algum descuido durante a perseguição aos porcos, podem acabar sendo
transformados em porcos. Durante a caçada, o caçador não pode estabelecer um diálogo
com a sua presa, não pode tratá-la como igual, “não se brinca com as palavras” (LIMA,
1996, p.58). E foi justamente esse aspecto, o do cuidado com as palavras, com o que se
enuncia e principalmente, com o que não se enuncia verbalmente que despertou nossa
atenção.
O respeito pela Palavra aparece em outros povos ameríndios, como entre os
Araweté, estudados por Viveiros de Castro (1986), nos quais existe um complexo ligado
aos cantos que um guerreiro detêm. Ao matar um inimigo, um guerreiro Araweté se
apropria dos cantos desse sujeito e os exprime em rituais destinados à “purificação”,
pois esse guerreiro Araweté está, literalmente, contaminado pela “Palavra” do Outro. Os
cantos que esse guerreiro exprime durante esses rituais, entrelaçam as palavras do
sujeito assassinado, sua versão do que ocorreu no encontro mortal e as palavras do
assassino, acerca do mesmo encontro. Ainda sobre os Araweté, segundo Viveiros de
Castro “O Imaginário Araweté prolifera na palavra e no canto” (CASTRO, 1986, p.59).
Quando usamos “Palavra”, nos referimos à potencialidade de poder contida na
linguagem humana no mundo ameríndio. A Palavra é envolta em uma série de regras e
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rituais. Não se fala qualquer coisa em qualquer situação, como podemos ver na caçada
aos porcos Juruna. Se exprimir oralmente envolve a utilização dessa potencialidade de
poder contida na linguagem. Um exemplo dessa potencialidade de poder descrita acima
pode ser encontrada nos Guaranis-Mbya, estudados por Clastres (1990), para os quais a
Palavra é o próprio fundamento da humanidade. A Palavra, cedida pelos Deuses contém
a essência do humano. Existe, entre os Guaranis-Mbya, uma linguagem destinada só aos
ouvidos dos Deuses, as Belas Palavras, que são o elo entre a humanidade e as
divindades guaranis.
Foi também por meio da obra de Clastres (2003) que confirmamos a
importância da Palavra, nesse caso materializada no discurso político dos chefes. O
chefe realiza seu poder por meio do uso da Palavra. Essa é a matriz das reflexões que
deram origem a este texto.
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Sobre a chefia indígena
Sociedades sem Estado mas com poder político. Tal axioma, retirado da obra de
Clastres (2003), é como uma síntese do projeto de antropologia política do antropólogo
francês. Ao demonstrar que o poder, nas sociedade ameríndias, desdobra-se sob o signo
da não violência, da não coerção – no nível do discurso, Clastres abriu um novo campo
de pesquisas para a antropologia. Em As crônicas dos índios Guayaki (1996), o autor
revela como observou em funcionamento a chefia indígena. Tal é o episódio: Os AchéGuayaki, tribo nômade, antes dividida em pequenos grupos errantes sob a proteção da
selva paraguaia, se encontravam, por conta da violência dos colonos brancos, sob a
proteção de um branco “benévolo” que recebia, do governo central paraguaio, verbas e
insumos para garantir a sobrevivência dos indígenas. Segundo Clastres, o “chefe”
branco, em ocasiões importantes, reunia todos os Guayaki e lhes fala numa estranha
mistura de Guarani e Guayaki, traduzidas ao grupo por alguns indígenas que
compreendiam essa estranha linguagem do paraguaio.
Após o informe, o chefe dos Guayaki, Jykugi, passava, de família em família,
repetindo a mensagem já conhecido por todos, pois, segundo Clastres, essa é a função
do chefe: falar. A chefia, como lugar político, implica ao ocupante do posto o privilégio
e o dever de ser o homem portador da palavra. Para ser um bom líder, o chefe indígena,
deve ter suas palavras apreciadas pelos seus. O bom chefe é acima de tudo, um bom
orador. Ao inquirir um Guayaki sobre o que o chefe faz, Clastres recebeu a seguinte
resposta: “Jyvukugi não ‘faz’, ele é aquele que tem o costume de falar” (CLASTRES,
1995, pp.68). A importância da palavra, do discurso, entre os ameríndios pode ser
encontrada nas mais diversas situações: desde o jogo complexo que envolve e entrelaça
o canto do matador e de sua vitima entre os Araweté, descrito por Viveiros de Castro
(2002), até as restrições que envolvem o pronunciamento de certas palavras em
determinadas ocasiões, como relata Stolze Lima (1996), sobre a caçada do porco
queixada entre os Juruna. A palavra, no mundo ameríndio, não é só linguagem. Aliás, é
antes um tipo de linguagem viva e vivida, um signo poderoso, dotado de materialidade
própria.
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Ainda seguindo Clastres (2003), podemos dizer que o discurso do chefe indígena
desdobra-se em dois planos da linguagem, que tem significações próprias: uma, a
camada inferior, que diz respeito ao quê se fala, qual é a notícia ou informação a ser
passada; a outra camada, que denominamos como superior, re-afirma, a condição do
chefe: ele é o chefe, ele deve falar. Um simples informe do chefe diz muito mais do que
transmite, tal ato é o próprio exercício da chefia. Quando Clastres observa a chefia
indígena, parte da seguinte questão: qual é o lugar de um “chefe” em uma sociedade que
recusa o poder coercitivo? Este é o ponto de partida da teoria da chefia sem poder. No
entanto, segundo Sztutman (2009), se Clastres soube abordar muito bem o papel e a
função do chefe, deixou de lado, porém, um aspecto essencial dessa instituição: como
um homem ascende ao papel de chefe? Quem pode ser chefe? Essa é uma das lacunas
que podem ser apontadas nos estudos de Clastres (SZTUTMAN, 2009). Mesmo nos
textos consagrados somente a chefia, como o mais famoso, Troca e poder: a filosofia da
chefia indígena (1962 {2003}) não existem indicações de como um sujeito ascende ao
papel de chefe.
Essa “falha” na teoria clastreana é o espaço em que se insere o estudo de
Sztutman (2009) sobre os Morubixabas (guerreiros) e Caraíbas (profetas-xamãs), os
chefes dos antigos Tupis da costa brasileira, que também aparecem na literatura
antropológica pelo livro de Heléne Clastres Terra sem Mal (1978), texto voltado ao
estudo do mito da terra sem mal guarani. Desta obra, demandamos uma atenção
especial ao capítulo “Os Caraís e o poder político” as disputas políticas entre os chefesprofetas e os chefes ‘comuns’. Os profetas, quando ocupavam a posição de chefe, a
despeito de suas capacidades xamânicas, eram tratados pelos outros chefes como mais
um adversário na disputa pelo poder político, como pode ser visto no episódio relatado
pela autora, que versa sobre as alianças que chefes Guaranis estabeleceram com
missionários jesuítas, visando abalar o prestigio de seus adversários, os Caraís, que
eram chefes de outras tribos.
Heléne Clastres (1978), porém, não descreve como um sujeito ascende à posição
de chefe. Seu interesse residia nas causas e efeitos da procura da terra sem mal, e os
principais personagens dessa procura, são notadamente, os Caraís. Esses Caraís,
detentores do que podemos chamar de um poder “divino, almejavam também o poder
“terreno”, o poder político. Busca infrutífera, segundo Heléne Clastres (1978). Os
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episódios descritos pela autora ilustram a paradoxal posição do Caraí, quando
transvestido de “chefe”, como descrevemos acima: O Caraí, quando é chefe, é tratada
apenas como mais um líder, que é, por sua condição de “profeta, um inimigo em
potencial aos outros chefes. Um Caraí, por suas capacidades especiais, é capaz de
arrebanhar um leva imensa de seguidores, ameaçando, dessa maneira, o domínio
político de outros chefes. Ser perigoso, que precisa ser questionado e combatido, como
em dois episódios relatados pela autora, no Paraguai, durante o tempo das missões, nos
quais a autoridade de Chefes-profetas foi combatida por outras lideranças.
Pelo motivo acima citado que Heléne Clastres (1978) volta sua atenção para a
atuação política dos Caraí: ser chefe era um caminho possível para esses personagens.
Tais exemplos, porém, não respondem a pergunta: como um chefe se torna chefe?
Vimos, quando recorremos ao livro de Heléne Clastres (1978), como é possível que um
Caraí se torna chefe, mas não como isso ocorre. Uma resposta a essa questão pode ser
encontrada em Sztutman (2009): um sujeito se torna chefe através da acumulação de
seguidores. Conseguir adeptos, no mundo ameríndio, é possível através de dois
caminhos: ou o da atividade xamânica, ou o da atividade guerreira. Em outras palavras,
só podem ser chefes, utilizando o exemplo dos antigos Tupi-Guaranis, grandes
guerreiros, os Morubixabas ou os Caraís, os grandes xamãs. Tal conquista está
diretamente relacionada com o prestígio conquistado por cada personagem em sua área
de atuação. O xamã, como nós diz Viveiros de Castro (2002), é um ser trans-específico.
Além dessa capacidade de transitar entre diferentes níveis cósmicos (o dos humanos,
dos Deuses e dos espíritos), o xamã é uma espécie de guerreiro (SZTUTMAN, 2009),
um combatente que trava sua guerra em outro plano, que não o terreno, como podemos
ver no relato xamânico de Davi Kopenawa em La Chute du Ciel (ALBERT;
KOPENAWA, 2010), quando Davi fala sobre a luta travada entre ele, um xamã
Yanomami, e as entidades malignas que causam doenças e mortes. O xamã é um
guerreiro especial. Retornando a questão da chefia, o guerreiro e o do xamã, acumulam,
por diferentes maneiras, o meio que lhes permite a ascender a posição de chefe: o
prestígio. O guerreiro ou o xamã-profeta só se tornam chefe por conta do prestígio
adquirido em suas respectivas atividades.
Essa “economia do prestígio” já tinha sido observada, no caso do guerreiro, por
Clastres, em seu texto O infortúnio do guerreiro selvagem (2003[1978]). Nesse texto,
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dedicado ao estudo da atividade guerreira entre os indígenas americanos, Clastres
encontra na procura por prestígio a causa da guerra no que chama de a sociedade
primitiva. É daí que vem sua tese de que a sociedade primitiva (o modo como Clastres
chama as sociedades ameríndias) são sociedades contra o Estado e para-a-guerra. A
guerra é vista como uma força centrífuga, de desterritorialização, que não permite uma
concentração de grupos em um mesmo local sob o comando de uma figura central. A
atividade guerreira, por sua vez, é entendida como uma busca suicida por prestígio. Isso
é o que Clastres denomina como “o infortúnio do guerreiro selvagem” (2004). Quanto
mais prestígio o guerreiro adquire, maior é a sua sede por conseguir mais prestígio
ainda, num ciclo vicioso que leva, quase sempre, à morte. A morte na guerra é o ápice
de sua honra e seu destino já traçado de antemão, no começo de sua jornada como
combatente. O caminho do guerreiro leva à morte.
O trabalho de Sztutman (2009) analisa de maneira pormenorizada como era a
política entre os antigos Tupi da Costa Brasileira. Por meio de um intenso diálogo com
o livro de Heléne Clastres, Terra sem mal (1978), Sztutman constrói sua tese sobre a
divisão concebida pela autora entre um suposto domínio do “político” e do “religioso”
entre os Tupis. Sztutman, por sua vez, mostra como essas fronteiras são fluidas, e que,
no limite, o “religioso” não pode ser separado do “político”. O que queremos apreender
da tese de Szutuman é que a chefia indígena é ocupada por sujeitos extraordinários, que
se destacam em seus campos de atuação. A chefia é o lugar de um personagem
magnificado (SZTUTMAN, 2009), o chefe, é um homem especial. O “especial” aqui
reside em sua excelência militar ou em sua alta qualidade xamânica. Tais características
fornecem ao sujeito sua áurea singular. No mundo contemporâneo, essa “áurea”
especial, essa condição de sujeito extraordinário, pode ser encontrada no líder indígena
mais bem sucedido de nosso tempo, Davi Kopenewa.
Davi Kopenawa, líder Yanomani, tem sua trajetória marcada pela condição de
sujeito “especial”. Seu principal atributo é a fluência em português e a capacidade de
mesclar em seu discurso, elementos xamanânicos (como a queda do Céu) e elementos
“ocidentais”, como referências ao direito, à constituição brasileira. Em resumo: Davi
consegue transitar com maestria entre o “mundo” Yanomani e o mundo dos “Brancos”.
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Os deslizes semânticos1 conferem uma beleza singular ao discurso político de
Kopenawa. A fala de Davi Kopenawa é única, justamente por combinar elementos que
aparentemente são contraditórios em um só discurso. Como já dissemos acima, Davi
Kopenawa é um sujeito singular, dotado de características que os distinguem dos
demais, tanto dentro, como fora de seu grupo.
Observar um pouco da trajetória de Davi Kopenawa nós permite demonstrar
porque ele é uma figura de destaque. Tomamos Kopenawa como um arquétipo da chefia
indigéna na contemporaneidade, nos fornecendo elementos para pensar quais foram as
alterações que essa instituição sofreu. Essas capacidades especiais de que falamos foram
percebidas por seu futuro sogro (Lourival). Colocamos “futuro” pois Lourival ofereceu
sua filha a Davi, já visando estabelecer uma aliança política entre os dois. Lourival
reconheceu o principal atributo desse à época, jovem Davi ( o de falar português ) e
soube estimular uma outra potencialidade inata ao jovem: sua capacidade xamânica. No
relato fornecido à Bruce Albert (ALBERT, 1995) podemos ver de maneira detalhada
como aconteceu esse processo de cooptação de Davi Kopenawa e a posição estratégica
que Davi ocupava sendo dirigente do posto indígena da FUNAI de sua aldeia,
ocupando, simultaneamente, postos políticos de relevância dentro e fora de seu grupo.
Essa papel de intermediador entre os interesses da FUNAI e dos indígenas forneceu a
experiência necessária para Davi desempenhar seu papel de líder bilíngue, que além de
ser versado em duas línguas, conhece duas linguagens políticas diferentes (a indígena e
a não-indígena), e tem um total domínio sobre elas. A legitimidade entre os nãoindígenas provem do prestígio adquirido entre os Yanomâmis.
A análise da trajetória e o status de Davi Kopenawa nos permitem aproximar a
figura de chefe indígena com o conceito de mediador cultural, de Paulo Montero
(MONTERO, 2010). Montero utiliza esse conceito pra discutir a figura do missionário
indígena, que tem como principal função a “tradução” e a mediação das relações entre
indígenas e o mundo dos brancos. Assim como Davi Kopenawa, o missionário transita
entre dois mundos, carregando, traduzindo e reelaborando sentidos de ambas as partes,
transformando-se em um elo necessário para a comunicação. É esse caráter de mediação
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Albert (1995) denomina de “deslizes semânticos, alterações semânticas que Davi Kopenawa opera em
seu discurso, por meio de sua interpretação xamânica de palavras e conceitos ocidentais.
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que queremos sublinhar quando aproximamos a figura do chefe indígena com a do
missionário. O trabalho do missionário, compreendido aqui como o de mediador
cultural e não emissário de tal ou qual religião, é o de falar, de convencer pelo discurso.
O missionário e o chefe: Duas faces da mediação
Quando realizamos essa aproximação entre a figura do chefe indígena
(especialmente, Davi Kopenawa) e a figura do missionário, analisada por Paula
Montero (2010), temos em vista os limites e as possibilidades dessa comparação, tanto
no campo teórico, tanto no campo metodológico. Realizamos essa aproximação tendo
em mente que as duas funções se realizam num campo de interação interétnico, por isso
lembramos que nosso foco de análise, quanto ao papel do chefe indígena, se localiza na
sua comunicação com não-indígenas ou dito de outra maneira: como ele faz política
com os “brancos”. Estamos interessados em “como agentes particulares, a partir de
repertórios disponíveis, produzem seus modos de representar suas diferenças na
interação com os outro” (MONTERO, 2010, p 27). Nossos agentes são o chefe indígena
e o missionário, como responsáveis por realizar a mediação entre dois universos
simbólicos distintos, através de códigos criados e compartilhados nessa relação com não
indígenas.
Nossa intenção ao realizar a aproximação entre essas duas figuras coaduna com
o conceito de mediação de Montero (2010): entender os atores nas redes de relações que
eles constroem, nas interações realizadas por eles no campo político. A noção de
“antropologia do Politico”, imersa no debate da antropologia do contato colonial
reformula o lugar do “político” na própria antropologia. Utilizando esse conceito de
“antropologia do político”, podemos investigar como se configura a atuação dos
agentes, quais são suas intenções ao estabelecerem essas relações e quais sentidos são
criados a partir dessas relações. A “antropologia do Político” se diferencia da
antropologia política clássica clastreana, na medida que seu objeto de estudo é
primordialmente a interação dos nativos com os “outros” (agentes estatais,
missionários), como se faz política para fora dos limites da tribo, ao passo que a
antropologia política clastreana está voltada para como se faz política “para dentro”,
qual é dinâmica do jogo político dentro dos limites da tribo. Dessa maneira, focando na
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interação entre o nativo e os “outros”, a antropologia do político abre um novo campo
de pesquisa para a antropologia.
Utilizar essa nova abordagem fornecida pela antropologia do político não exclui
as ideias da chamada antropologia política clássica clastrena, principalmente quando o
objeto de estudo em questão (como nesse texto) é a chefia indígena ameríndia. A
intenção nesse texto foi utilizar as duas perspectivas, lançando mão de cada uma no
momento que acreditamos ser apropriado. Assim, para explicar o papel “clássico” do
chefe indígena, utilizamos a argumentação de Clastres (2003). E para tentar apreender o
papel do chefe indígena no mundo contemporâneo, os conceitos de antropologia do
político e de mediação. Mediação, nesse caso, entendida como a capacidade de certos
agentes de representar seus interesses junto ao Estado (MONTERO, 2010). Num
exercício de livre reflexão, podemos fazer uma leitura diferente de obras de Clastres,
como a A crônica dos índios Guayaki (1995). Os chefes Guayaki já estão inseridos
nessa rede de relações, nas quais se encontram agentes estatais e não-estatais (no caso, o
“chefe” paraguaio), tendo que estabelecer relações com esses entes, os Guayaki criam
códigos e formas de atuação que garantam um funcionamento minimamente satisfatório
dessas relações (sedentarizam seus grupos, aceitam insumos ocidentais, toleram a
“liderança” do chefe branco”).
Outro traço em comum entre esses dois personagens é a capacidade de transitar
entre dois “mundos” diferentes, capacidade que merece um exame detalhado. Ao
realizar esse papel de mediador entre duas culturas diferentes, o chefe indígena não
apenas traduz palavras, termos e relações, também cria novos termos, novas palavras,
capazes de explicar relações que não são traduzíveis. Davi Kopenawa é um mestre nessa
arte de criar novos sentidos, a partir da confluência de palavras ocidentais e indígenas
(ALBERT, 1995). Sua leitura sobre o que é “meio-ambiente” (termo provenientes do
discurso ecológico), relacionando tal palavra com um termo yanomami que significa
“floresta – natureza divida” é brilhante. Para Davi, só existe “meio-ambiente” porque a
outra metade o homem branco destruiu (ALBERT, 1995). Os Yanomami, diz Davi, não
sabem preservar a floresta só pela metade. Justamente porque o termo corresponde à
“floresta” na língua yanomami não se reduz a um espaço, mas também é uma essência
vital.
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O que podemos sublinhar dessa confluência criativa é que ela só é possível na
interação entre atores de dois universos culturais diversos, e a idéia de mediação é muito
útil para pensar essas relações. Ao romper com a ideia de “nós - eles”, o conceito de
mediação nos permite pensar o “eles” como um ator dinâmico no jogo da política, que
tem interesses ao estabelecer relações com o “nós”. Seguindo esse raciocínio, as
relações entre indígenas e agentes estatais saem da lógica da colonização e entram no
terreno do político (MONTERO, 2010). Um chefe tem consciência de seu papel e
tentará extrair vantagens dessa relação com agentes estatais, por exemplo. Como ilustra
a trajetória de Davi Kopenawa, quando de sua ascensão ao posto de chefe indígena,
estão colocadas na posição de chefia duas linguagens políticas que não se excluem, mas
se completam. Lourival sabia muito bem o que está fazendo quando alçou Davi
Kopenawa ao papel de responsável pelo posto de chefe. Pois Lourival fez o jogo
político tradicional dos Yanomamis, e, ao mesmo tempo, conseguiu conquistar
vantagens no jogo político dos brancos.
Por fim, a ultima semelhança que podemos ressaltar entre o missionário e o
chefe indígena é que ambos são artistas da palavra. A comunicação é o principal
instrumento de trabalho dessas duas figuras. É só através do discurso que ambos podem
obter o êxito esperado em suas ocupações. O missionário diferencia-se aqui do chefe
por seus objetivos, porém, o meio de atingir as metas propostas na missão (catequizar,
converter) é o mesmo que o chefe utiliza para exercer sua liderança: o discurso. É só
através da oralidade, do bom discurso, que ambas as figuras podem conseguir sucesso.
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