O Conceito de Trauma e a Clínica dos Casos “Difíceis”: Reflexões a

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O Conceito de Trauma e a Clínica dos Casos “Difíceis”: Reflexões a Partir das
Contribuições de Ferenczi e Winnicott
Oliveira, Nadja; Tafuri, Maria Izabel
Descritores: Trauma; Clinica; Encuadre psicoanalitico; Tecnica psicoanalitica.
Os sofrimentos que recebemos cotidianamente nos consultórios nos impõem
diversas reflexões sobre as falhas iniciais no processo de constituição psíquica e a
técnica psicanalítica. Afinal, já faz cerca de um século que a psicanálise endereça
não apenas os “bons neuróticos”, mas também os casos “difíceis”, que dizem
respeito a sofrimentos que antecedem o Complexo de Édipo e que fazem referência
a falhas ambientais muito precoces, experimentadas como da ordem do excesso às
capacidades psíquicas do indivíduo. São casos em que a palavra nem sempre
funciona como continente, pois envolvem sofrimentos não alicerçados pela
linguagem: eles remetem a algo precedente à capacidade representacional.
Ferenczi foi um dos primeiros analistas a se debruçar sobre os casos
“difíceis” – que não conseguiam associar livremente e não se ajustavam à rigidez do
enquadre tradicional. Estes pacientes apresentavam dificuldades nos processos de
simbolização e pobreza em seu fantasiar. A dedicação clínica e teórica de Ferenczi
a estes casos o levou a resgatar o trauma como paradigma teórico ao se pensar o
processo de constituição psíquica e a prática psicanalítica (Kupermann, 2008).
De fato, o conceito de trauma comparece na clínica com casos “difíceis” e
promove abertura importante para a compreensão e o manejo destes pacientes.
Este conceito envolve alguns aspectos importantes e comuns entre autores como
Freud, Ferenczi e Winnicott, tais como: a implicação do ambiente externo, a
precocidade do evento traumático, a experiência de excesso frente à imaturidade do
psiquismo, e a invocação de “afetos aflitivos” (Oliveira, 2011).
Enquanto Freud fundou a psicanálise a partir de reflexões sobre a sedução
traumática como etiologia da histeria e teorizou este conceito tendo em vista seu
papel nos sofrimentos de natureza neurótica, Ferenczi e Winnicott destacaram a
associação entre trauma e aspectos psicóticos da personalidade, incorrendo em
defesas que envolvem clivagens egóicas, experiências dissociativas, desintegração,
despersonalização, dentre outras. É com base nas reflexões destes dois autores que
o conceito de trauma traz uma abertura que subverte a rigidez do setting analítico
tradicional a fim de abarcar sofrimentos de natureza mais precoce, o que percebo
como pertinente a partir da minha própria experiência clínica.
Endereçar este tipo de sofrimento, em contrapartida à psicanálise de adultos,
esteve na psicanálise de crianças desde o início deste campo, em especial a partir
de Melanie Klein. Por meio de suas reflexões sobre a vida psíquica do bebê, Klein
abriu espaço para se pensar de forma mais aprofundada sobre o sofrimento psíquico
precoce, envolvendo crianças pequenas e sofrimentos de natureza psicótica. Além
disso, a psicanálise de crianças envolve particularidades técnicas que diferem da
psicanálise com adultos, apesar de não diferir em termos da escuta do analista.
É inspirado na psicanálise de crianças que Ferenczi traçou adaptações da
técnica analítica a fim de viabilizar o atendimento de “casos difíceis”. Segundo
Ferenczi (1931/1992), às fundadoras da psicanálise de crianças foi necessário
“introduzir modificações substanciais na técnica de análise de adultos, quase
sempre no sentido de uma atenuação do rigor técnico habitual” (p. 70). Da mesma
forma, para tratar pacientes cujos traumas sobrecarregaram seu desenvolvimento no
sentido da psicopatologia (Winnicott, 1967/2007), Ferenczi (1928/1992) preconizou a
necessidade de elasticidade da técnica psicanalítica.
Segundo Ferenczi, é essencial que o analista funcione como um elástico e se
permita ceder às tendências do paciente (Ferenczi, 1928/1992), se adequando ao
ritmo do analisando ao invés de enquadrá-lo na rigidez da técnica clássica. Por meio
deste princípio de laissez-faire, Ferenczi percebeu que foi possível alcançar avanços
significativos nas análises destes pacientes, inclusive promovendo a capacidade de
virem
a
associar
livremente.
Contudo,
antes
destas
conquistas,
muitos
experimentaram vivências que Ferenczi chamou de “neocatárticas”. Estas envolviam
sintomas corporais, explosões emocionais, estados de transe, vozes infantis, etc.
Desta maneira, se a palavra foi ganhando lugar central na clínica psicanalítica
ao
longo
do
seu
desenvolvimento
(Kupermann,
2008),
Ferenczi
trouxe
questionamentos sobre sua centralidade e seus limites nos casos de pacientes cujo
processo de constituição psíquica se revelava frágil e marcado pelo conceito de
trauma. A partir da clínica, o autor percebeu a necessidade de ampliar o foco no
trabalho com pacientes graves, voltando a atenção primeiramente para dimensões
pré-verbais, em especial para o corpo.
Winnicott também se destacou como autor que preconizou a necessidade de
um olhar ampliado junto a pacientes que experimentaram rupturas significativas em
seu continuar a ser precocemente, de forma a destacar a importância do ambiente
externo tanto na origem das experiências traumáticas quanto na clínica com estes
indivíduos (Winnicott, 1967/2007). Para o autor, o conceito de trauma se encontra
relacionado às falhas da mãe-ambiente em tempos precoces que implicam em
rupturas no continuar a ser do bebê, posto que consistem em intrusões ambientais
às quais o indivíduo reage. Quando isto ocorre com frequência, o padrão do bebê
consiste mais em reagir do que em ter suas necessidades atendidas, de forma a
incorrer em certo grau de distorção do seu processo de desenvolvimento emocional.
Para Winnicott (1963/2007), a promoção de um ambiente analítico
suficientemente bom, caracterizado pela confiabilidade, propicia ao indivíduo um tipo
positivo de vivência que não se apresentou, ou foi distorcida, em sua vida precoce.
Experimentar a confiança no cenário analítico promove contraste entre a experiência
atual e a precocemente vivida, o que viabiliza a reavivação do passado, de forma
que o indivíduo pode passar a experimentá-lo não mais no registro da reprodução
alucinatória, mas sim da lembrança objetiva (Ferenczi, 1933/1992).
Contudo, antes de consolidar uma lembrança objetiva, faz-se necessário
experimentar o trauma, talvez pela primeira vez. Segundo os autores, é necessário
repetir o traumatismo em condições mais favoráveis, promovendo que o indivíduo
leve os eventos traumáticos à percepção e descarga motora (Ferenczi, 1934/1992).
Para Winnicott, o estabelecimento de um ambiente seguro e confiável promove a
regressão à dependência (Winnicott, 1967/2007) e o colapso (Winnicott, 1963/2007)
necessários à integração da experiência traumática e à retomada de aspectos do
processo de amadurecimento pessoal que se encontravam congelados.
Percebe-se assim que o ambiente analítico de holding promove ao indivíduo a
possibilidade de retomar e vivenciar pela primeira vez aspectos primitivos do seu
desenvolvimento, assim como experiências de caráter precoce diferentes das
originais. Isto envolve enfoque maior na função do ambiente do que nas
interpretações verbais, as quais tendem a ser sentidas como intrusivas, tendo em
vista as dificuldades do paciente em brincar (Winnicott, 1971/1975).
Assim, o modelo da análise clássica é intrusivo e, em última instância,
traumático, tendo em vista a qualidade das agonias dos analisandos nestes casos. A
manutenção da rigidez do setting e da técnica consiste em falhas do analista em se
adaptar às necessidades do paciente, o que “não difere essencialmente do estado
de coisas que outrora (...) o fez adoecer” (Ferenczi, 1933/1992, p. 100).
Desta maneira, tanto Ferenczi quanto Winnicott destacaram a necessidade de
“elasticidade” na técnica analítica junto a pacientes que experimentaram falhas
ambientais precoces, incorrendo em traumas no processo de desenvolvimento
emocional. Frente às agonias e ao nonsense relativos ao trauma (Winnicott,
1971/1975), é necessário não se ater aos princípios psicanalíticos clássicos, cujo
foco são as associações livres do analisando e as interpretações do analista.
Percebe-se em ambos os autores uma mudança do enfoque e um
alargamento da situação de análise nestes casos, conferindo importância à
promoção de experiências junto a um ambiente suficientemente bom, de forma a
invocar um contraste com a experiência traumatogênica do passado. A promoção
deste tipo de experiência implica na necessidade de o analista agir como uma “mãe
carinhosa” (Ferenczi, 1931/1992, p. 78), o que evidencia as aproximações entre
Winnicott e Ferenczi sobre o lugar do analista nestes casos, assim como sobre a
importância da regressão (Ferenczi, 1931/1992; Winnicott, 1967/2007).
Ao falarmos de trauma, notamos que a questão da precocidade comparece
tanto na teoria quanto na clínica. Ao enfocar o ambiente, ao comparar as funções do
analista às da mãe-ambiente, ao destacar a necessidade do colapso das defesas e
da passagem do trauma à percepção e descarga motora, os autores não só
destacam a precocidade a que o trauma remete na clínica como também os
registros precoces nele envolvidos no cenário analítico, como o corpo, as dimensões
pré-verbais da comunicação, as angústias e defesas primitivas, etc. Refletir sobre
estes aspectos e seu manejo é essencial no trabalho analítico, pois eles requerem
do analista um papel diferenciado, sendo necessário sustentar a regressão do
analisando a uma dependência infantil e dar apoio a seu ego (Winnicott, 1960/2008).
Nesta clínica, o enquadre tradicional não tem espaço – pelo menos num
primeiro momento – porque não há espaço ainda para o a posteriori. O trauma
envolve o rompimento do indivíduo, de forma a não haver um self integrado ao ponto
de experimentar o evento traumático no contexto de sua ocorrência. O colapso no
ambiente da análise, ao promover esta experiência, favorece os processos de
percepção do trauma e representação dos excessos originalmente envolvidos,
abrindo espaço para a possibilidade do indivíduo vir a construir significações sobre
esta vivência. A experiência do colapso junto a um ambiente suficientemente bom
configura pré-requisito à possibilidade de significar a posteriori a vivência traumática.
Tendo em vista as reflexões levantadas a partir de Ferenczi e Winnicott,
percebemos que os autores propõem inovações relativas ao trabalho psicanalítico
em comparação com a tradição freudiana, não rompendo com esta, mas sim
desenvolvendo construções a partir dela, seus limites e suas potencialidades. Posto
que a psicanálise é movida pela clínica, enquanto metapsicologia e terapêutica, as
inovações são necessárias e inevitáveis. A tradição é frutífera na medida em que
sustenta a possibilidade de inovação.
Resumo
Discute-se neste trabalho as contribuições de Ferenczi e Winnicott para a
clínica dos casos “difíceis” a partir do conceito de trauma. As reflexões dos autores
são trazidas a partir de suas inovações frente o enquadre e a técnica tradicionais no
contexto do tratamento de pacientes cujo sofrimento precede a capacidade
representacional e o processo de constituição psíquica se caracteriza como frágil,
marcado por rupturas no continuar a ser. São pontos de reflexão: a rigidez e a
flexibilidade do enquadre; o lugar e a postura do analista; as vias de intervenção – o
lugar da interpretação e da função do analista-ambiente; o lugar das dimensões préverbais na análise; dentre outros. Por fim, pontua-se as relações entre tradiçãoinovação em psicanálise a partir das contribuições dos autores para a clínica com
pacientes “difíceis”. Este trabalho se baseia na dissertação de mestrado da autora,
intitulada “Costurando rupturas: o trauma na clínica psicanalítica com uma criança”,
defendida em agosto de 2011 na Universidade de Brasília.
Referências
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Sándor Ferenczi (Vol. IV, pp. 25-36). São Paulo: Martins Fontes. (Obra original
publicada em 1928)
Ferenczi, S. (1992). Análises de crianças com adultos. Em Obras completas de
Sándor Ferenczi (Vol. IV, pp. 69-83). São Paulo: Martins Fontes. (Obra original
publicada em 1931)
Ferenczi, S. (1992). Confusão de língua entre os adultos e a criança. Em Obras
completas de Sándor Ferenczi (Vol. IV, pp. 97-106). São Paulo: Martins Fontes.
(Obra original publicada em 1933)
Ferenczi, S. (1992). Reflexões sobre o Trauma. Em Obras completas de Sándor
Ferenczi (Vol. IV, pp. 109-117). São Paulo: Martins Fontes. (Obra original publicada
em 1934)
Kupermann, D. (2008). Presença sensível – cuidado e criação na clínica
psicanalítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
Oliveira, N.R. (2011). Costurando rupturas: o trauma na clínica psicanalítica com
uma criança. Dissertação de mestrado. Programa de Pós-graduação em Psicologia
Clínica e Cultura. Universidade de Brasília, Brasília.
Winnicott, D. (2008). Contratransferência. Em O ambiente e os processos de
maturação (pp. 145-151). Porto Alegre: Artmed. (Obra original publicada em 1960)
Winnicott, D.W. (2007). O medo do colapso. Em Winnicott, C., Shepherd, R. & Davis,
M. (Orgs.), Explorações psicanalíticas (pp. 70-76). Porto Alegre: Artmed. (Obra
original publicada em 1963)
Winnicott, D.W. (2007). O conceito de regressão clínica comparado com o de
organização defensiva. Em Explorações psicanalíticas (pp. 151-156). Porto Alegre:
Artmed. (Obra original publicada em 1967)
Winnicott, D.W. (1975). O brincar – a atividade criativa e a busca do eu (self). Em O
brincar e a realidade (pp. 79-93). Rio de Janeiro: Imago. (Obra original publicada em
1971)
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