IV Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental X Congresso brasileiro de Psicopatologia Fundamental Proposta de trabalho a ser apresentado na modalidade mesa redonda Título: A transferência e o trabalho dos analistas nos últimos tempos. Fernanda Ferreira Montes End. Residencial: Rua Pio Correia, 92/103 – bloco 2. Rio de Janeiro, RJ. Cep: 22461-240 End. da universidade: Rua Recife, s/n, Jardim Bela Vista, Rio das Ostras-RJ, cep 28890-000 Professora adjunto I do curso de psicologia da UFF/PURO (Polo Universitário de Rio das Ostras). Graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2002), mestrado em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2004) e doutorado no Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2008). A TRANSFERÊNCIA E O TRABALHO DOS ANALISTAS NOS ÚLTIMOS TEMPOS. A narrativa daqueles que padecem hoje muitas vezes se restringe à descrição de imagens pontuais; quando os momentos da vida parecem não ter ligação. Isso leva alguns autores da psicanálise a relacionar sintomas como a síndrome do pânico e as somatizações a uma falta de capacidade de simbolização e, conseqüentemente, de associação livre por parte do sujeito contemporâneo. Esses sintomas estariam remetidos ao tempo presentificado da compulsão e à narrativa literal. No entanto, encontramos, tanto em Freud a partir de 1920, quanto em Ferenczi (conhecido como o analista dos casos difíceis), um esforço no sentido de lidar com essa narrativa literal, construída num tempo presentificado e que pode se apresentar como uma imagem fixa. Portanto, nossa propos- 1 ta é a de fazer uma releitura da prática psicanalítica a partir de Freud e Ferenczi, abordando as implicações com que nos deparamos acerca da noção de transferência na teoria e na clínica. Transferência, repetição e interpretação Para pensar a clínica devemos nos voltar para o tema da transferência. Talvez possamos dizer que a transferência é o tema principal da psicanálise, na medida em que a teoria se faz a partir da clínica. Além disso, a transferência nos remete a questões cruciais tais como: o papel do analista, a função da análise, a repetição e a resistência. Começaremos por analisar o próprio termo “transferência”. Um dos primeiros textos em que Freud utiliza este termo é “A Interpretação dos sonhos” (1900/1996). Nele, a transferência é relativa aos afetos. Estes são transferidos de uma representação a outra; de uma instância a outra. A transferência como um mecanismo que permite a análise aparece no posfácio do caso Dora (FREUD, 1905/1996). Freud define a transferência como reedições, reproduções das moções e fantasias que despertam com o decorrer da análise. Experiências psíquicas passadas são revividas como atuais, a partir do vínculo com o analista. Algumas transferências são substituições apenas. São simples reimpressões ou reedições inalteradas. Outras, no entanto, têm caráter de edições revistas. Ocorreria uma moderação de conteúdo ou uma sublimação. Neste momento, a partir do fracasso no caso, Freud se convence de que a transferência é uma exigência indispensável. Somente com a transferência surge no paciente “o sentimento de convicção sobre o acerto das ligações construídas durante a análise” (FREUD, 1905/1996, p.112). Mas Freud também apresenta a transferência em seu caráter paradoxal, como uma resistência. Ela é utilizada para produzir empecilhos que tornam o material recalcado inacessível ao tratamento. Em “Recordar, repetir e elaborar” (1914/1996), compreendemos que o manejo da análise consiste em substituir a neurose comum por uma neurose de transferência e a 2 cura está relacionada à elaboração das resistências, não mais à recordação do material recalcado. Freud propõe que o analista abandone a tentativa de colocar em foco um momento específico. Ele deve escutar tudo o que paciente associa e usar a interpretação para identificar as resistências e torná-las conscientes. A finalidade é fazer com que o paciente supere as resistências devidas ao recalcamento. No entanto, Freud admite que, com extraordinária freqüência, o paciente recorda algo que nunca foi esquecido; nunca foi consciente. E, surpreendentemente, para o tratamento isso parece um simples detalhe, pois não faz diferença para o paciente se determinado pensamento foi consciente e depois esquecido ou se nunca foi consciente. “A convicção que o paciente alcança no decurso de sua análise é inteiramente independente deste tipo de lembrança” (FREUD, 1914, p.164). Assim, o tratamento terá início a partir dessa repetição do sintoma, das inibições e dos “traços patológicos de caráter” (FREUD, 1914/1996, p.167). Porém, a repetição não acontece apenas na análise, mas a todo momento, na vida. Porque o que se repete é a forma de estar no mundo, a maneira de interpretar, as impressões sensíveis, o jogo de forças pulsionais da neurose, enfim, tudo o que compõe a subjetividade. Sobre a relação desta compulsão à repetição com a transferência e com a resistência, Freud é categórico: “(...) a transferência é, ela própria, apenas um fragmento da repetição (...). Quanto maior a resistência, mais extensivamente a atuação (acting out) (repetição) substituirá o recordar (...)” (FREUD, 1914/1996, p.166). E aqui acrescentamos: quanto maior a resistência e quanto mais se repete no setting, maior o poder da transferência. Pois a repetição é dirigida ao analista. A especificidade da transferência na análise é o fato dela ser manejada para que o tratamento aconteça. A transferência só tem lugar sob as condições da resistência. É necessário que o analista saiba aguardar a elaboração da resistência. A dificuldade reside no fato da transferência se expressar de diferentes formas. Através de atos, palavras e 3 até de impressões sensíveis. É nesta direção que Reis (2004) se refere ao termo “perlaboração” para designar o tempo da transferência capaz de promover a elaboração das resistências ou, simplesmente, a introjeção: “A idéia de perlaboração supõe um trabalho feito por meio de registros mnêmicos não-representacionais, ou seja, desde sempre inconscientes. Ela atua no nível mnêmico dos signos de percepção, ativada pela ‘poeira das pequenas percepções’ de que se compõe a transferência. Com ela, constroem-se novos sentidos, que são percebidos não pela tomada de consciência de conteúdos recalcados, e sim pelas metamorfoses vividas durante o processo. Em outros termos, a perlaboração trabalha com a matéria formada por vivências muito primárias, que permanecem inacessíveis à lembrança e se apresentam pela repetição de pequenos gestos, hábitos, posturas corporais, sensibilidades somáticas específicas, todas componentes do que chamamos caráter” (REIS, 2004, p.113). Atualmente, quando a narrativa literal se impõe na clínica psicanalítica, pretendemos resgatar de Ferenczi a idéia de que a escuta analítica envolve mais do que palavras; envolve uma dimensão não-representacional. A literalidade, em seu tempo parado, também comporta a repetição na descrição de cenas e acontecimentos. E, muitas vezes, o que importa não são as palavras repetidas, mas o afeto que elas despertam. Afeto que não tem um contorno, não adquiriu sentido. Com isso, passaremos a delinear a técnica da psicanálise segundo Ferenczi, que inclui esta “alguma coisa” que não pode ser posta em palavras. Ferenczi, a técnica e dimensão não-representacional Vamos encontrar no pensamento de Ferenczi uma concepção de constituição subjetiva traumática. O psiquismo se organizaria através de catástrofes: rupturas nas formas de organização do Eu e do mundo. De acordo com o autor, a inserção do sujeito no mundo é traumática por excelência. A própria introjeção é, a princípio, da ordem do excesso pulsional. O encontro da criança com o adulto provoca uma catástrofe no mundo infantil, já que estes personagens têm necessariamente o acesso à linguagem de formas bastante distintas: a criança através da “linguagem da ternura” e o adulto pela “linguagem da paixão” (FERENCZI,1933/1992). Mas o trauma não é, em si, nem 4 estrutrante, nem desestruturante ou patológico. Se o trauma receber um contorno e for introjetado (destacando aqui o papel do outro), ele será constitutivo. Se o trauma não entrar no campo da possibilidade narrativa e vir a “desmontar” o sujeito narcisicamente, ele será desestruturante. Ademais, sabemos que o trauma está relacionado ao irrepresentável, mas nem tudo o que se encontra fora do campo da possibilidade narrativa é traumático. Os signos de percepção (FREUD, 1896/1996) não estão no registro da representação, mas já se apresentam como uma primeira ligação (Bindung), no sentido de captura da excitação. As impressões sensíveis permanecem neste registro ao longo da vida. Nesta perspectiva, os gestos, uma forma de andar, uma certa disposição corporal, a tonalidade da voz, enfim, as impressões sensíveis podem ser conservados como pura intensidade ou como um registro corporal. Na concepção ferencziana, o corpo tem função de memória e tem o estatuto de um lugar psíquico. Desta forma, a repetição pode não aparecer em palavras, mas em atos através do corpo. E Ferenczi se importa com a qualidade do conteúdo que é repetido, tanto nos sonhos, quanto no setting analítico. De qualquer forma, é uma memória referida à história do sujeito, mesmo que ela produza uma narrativa literal: literalmente marcada no corpo, engendrando os sonhos traumáticos ou paralisando as associações na análise. Com essa compreensão acerca da memória corporal, Ferenczi propõe a noção de tato (FERENCZI, 1928/1992). É o tato que permite ao analista saber o momento de interpretar, de aguardar e calar. Através do tato, o analista pode se pôr atento às forças da resistência. Ter tato é poder “sentir com”. É se colocar no lugar do outro a partir da lógica de funcionamento desse outro, e não a partir de sua própria subjetividade. O “sentir com” é estar em sintonia afetiva e nos remete ao que Maia (2004) denomina “campo de afetação”, apontando “para a existência de um atravessamento entre domínios psíquicos” (MAIA, 2004, p.235). Trabalhar a partir da noção de “sentir com” 5 é admitir que as impressões sensíveis são imprescindíveis no circuito da transferência. A análise proporciona um reequilíbrio no edifício egóico e nas forças pulsionais. O analista precisa ter tato (FERENCZI, 1928/1992) para descobrir o limite de cada paciente em relação a esse movimento que comporta desconstruções e novas construções. No artigo “As fantasias provocadas” (1924/1993), Ferenczi propõe o uso de um artifício para lidar com pacientes empobrecidos de atividade fantasística, quando a análise se encontra paralisada: o empréstimo de fantasia por parte do analista. Ele aproxima este artifício da técnica da interpretação, pois esta direciona as associações do paciente em análise. No texto “Construções em análise” (1937/1996) Freud admite, inclusive, que a interpretação envolve a construção. O autor apresenta a análise enquanto uma reinvenção de si. Considerações finais No intuito de positivar a narrativa literal, propomos uma releitura da clínica psicanalítica através das questões da transferência e da técnica. Afinal, a psicanálise não se propõe a normalizar o sujeito e, desta forma, não deve trabalhar no sentido de enquadrálo numa única forma narrativa. É preciso saber escutar a literalidade da palavra e do corpo. Nesta direção, um dos pontos que consideramos mais importantes nesse trabalho diz respeito aos limites do analisável. Vimos ser necessário levar em conta que o psiquismo está para além do campo representacional. Ele abarca os signos de percepção, as impressões sensíveis e a memória corporal. Nesse sentido, a transferência suscita a repetição de impressões. Voltando o olhar para a clínica, nos perguntamos o que leva alguns sujeitos ao encontro do analista, já que, através da narrativa literal parecem fazer apenas relatórios durante a análise. No entanto, a transferência está presente propiciando a repetição das impressões traumáticas. Se a escuta no analista estiver pautada no dispositivo que privilegia o conflito psíquico e o recalque, não será possível perceber o que se repe- 6 te. É preciso estar aberto para um outro tipo de escuta, que comporta o corpo, o gesto, o tom de voz, além da palavra. Essa escuta funcionaria como um testemunho para que o sujeito consiga introjetar as imagens, palavras, sensações e afetos que circulam em seu mundo, produzindo uma narrativa de vida. Bibliografia FERENCZI, S. Transferência e introjeção. In: Psicanálise I. São Paulo:Martins Fontes, 1909/1992, p.77-108. FERENCZI, S. Prolongamentos da técnica ativa em psicanálise. In: Psicanálise III. São Paulo: Martins Fontes, 1921/1993, p.109-125. FERENCZI, S. As fantasias provocadas. In: Psicanálise III. São Paulo: Martins Fontes, 1924/1993, p.241-248. FERENCZI, S. Elasticidade da técnica psicanalítica. In: Psicanálise IV. São Paulo: Martins Fontes, 1928/1992, p.25-36. FERENCZI, S. Confusão de língua entre os adultos e a criança In: Psicanálise IV.São Paulo: Martins Fontes, 1933/1992, p.97-106. FERENCZI, S. Reflexões sobre o trauma In: Psicanálise IV. São Paulo: Martins Fontes,1934/1992, p.109-117. FREUD, S. (1996) - Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. (1896) .A etiologia da histeria., vol. III, p.187-215. (1900) .A interpretação dos sonhos., vol IV e V, p.15-652. (1905) .Fragmento da Análise de um Caso de Histeria., vol. VII, p.15-116. (1914) .Recordar, repetir e elaborar (novas recomendações sobre a técnica da psicanálise II), vol. XII, p.161-171. (1920) .Além do princípio de prazer., vol XIX, p.13-75. (1937) .Construções em Análise., vol XXIII, p.275-287. 7 MAIA, M Extremos da alma: dor e trauma na atualidade e clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Garamond, 2003. REIS, E De corpos e afetos: transferências e clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Contra capa, 2004. SELIGMANN-SILVA, M. A história como trauma, in SELIGMANN-SILVA, M. & NESTROVSKI, A. (orgs) Catástrofe e representação: ensaios. São Paulo: Escuta, 2000. 8