ter/haver + particípio passado: um caso de mudança no português

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Universidade Federal do Rio de Janeiro
TER/HAVER + PARTICÍPIO
PASSADO: UM CASO DE
MUDANÇA NO
PORTUGUÊS ARCAICO
Carolina Salgado Lacerda Medeiros
2014
Ter/haver + particípio passado: um caso de mudança no Português Arcaico
Carolina Salgado Lacerda Medeiros
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós- Graduação em Letras
Vernáculas da Universidade Federal do Rio de
Janeiro como quesito para obtenção do Título
de Mestre em Letras Vernáculas (Língua
Portuguesa).
Orientadora: Profª Drª Silvia Regina de Oliveira
Cavalcante
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2014
Ter/haver + particípio passado: um caso de mudança no Português Arcaico
Orientador: Profª Drª Silvia Regina de Oliveira Cavalcante
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas
da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa).
Rio de Janeiro, fevereiro de 2014.
Examinada por:
______________________________________________________________________
Presidente, Professora Doutora Silvia Regina de Oliveira Cavalcante (UFRJ)
_______________________________________________________________________
Professora Doutora Célia Regina dos Santos Lopes (UFRJ)
_______________________________________________________________________
Professor Doutor Leonardo Lennertz Marcotulio (UFRJ)
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2014
Medeiros, Carolina Salgado Lacerda Medeiros.
Ter/haver + particípio passado: um caso de mudança no Português Arcaico / Carolina
Salgado Lacerda Medeiros. – Rio de Janeiro: UFRJ / FL, 2014.
vi, 154f.:il.;
Orientador: Profª Drª Silvia Regina de Oliveira Cavalcante
Dissertaçao (Mestrado) – UFRJ / Faculdade de Letras / Programa de Pós-graduação em
Letras Vernáculas, 2014.
Referências bibliográficas: f. 131 – 138.
1. Verbos auxiliares. 2. Particípio Passado. 3. Tempos Compostos. 4. Gramaticalização.
I. Medeiros, Carolina Salgado Lacerda. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Faculdade de Letras, Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas. III. Título:
Ter/haver + particípio passado: um caso de mudança no Português Arcaico
RESUMO
O presente trabalho apresenta um estudo diacrônico acerca das estruturas
compostas formadas com ter e haver + particípio passado em Português. O estudo investiga
como e em que contextos tais estruturas passaram de construções transitivas-predicativas a
construções de tempo composto perfectivo, tratando a mudança de ter e haver de verbos
plenos a auxiliares como um caso de gramaticalização, com base no quadro de Roberts &
Roussou (2003).
O interesse pelo estudo se deve ao fato de existir, em Português Arcaico (PA), dois
tipos de construções com particípio: (1) construções transitivas-predicativas formadas por
ter e haver, que funcionam como verbos plenos, mais um PTP que se comporta como um
adjetivo, concordando em gênero e número com o complemento direto de ter/haver, que,
após um processo de mudança, dão origem à (2) construções de tempo composto
perfectivo formadas por ter e haver, que funcionam como auxiliares, mais um PTP verbal.
Com o intuito de investigar a formação deste segundo tipo de construção, neste trabalho
procuramos identificar os contextos que levaram à mudança de ter/haver de verbos plenos
à auxiliares, descrevendo o processo de gramaticalização pelo qual passaram, bem como
descrever os contextos linguísticos que atuaram na passagem do PTP de adjetivo a verbo.
A partir de textos portugueses dos séculos 13 ao 16 e de uma perspectiva teórica
formal sobre o processo de gramaticalização (ROBERTS & ROUSSOU 2003), esta Dissertação
mostra que o processo de mudança que culminou na emergência dos tempos compostos
em Português envolve um processo de simplificação estrutural. Trabalhamos com a
hipótese de que as construções de ter/haver + PTP sofrem a perda de uma operação de
movimento sintático, a partir do que são reanalisadas como construções de tempo
composto. A partir disto, ter e haver são gramaticalizados em auxiliares e o PTP é
reanalisado como um verbo. Os resultados sugerem, com base na análise de elementos
morfossintáticos tais como a presença ou ausência de marcas flexionais de concordância
entre o PTP e o complemento e a fixação da ordem, que tal mudança tenha ocorrido já no
século 13.
ABSTRACT
This paper presents a diachronic study of the composite structures formed with
ter/haver (have) + past participle in Old Portuguese. The study investigates how and in what
contexts such structures went from transitive-predicative constructions to periphrastic
constructions with perfective value. We deal with the change of ter and haver from full
verbs to auxiliary verbos as a case of grammaticalization, based on the framework of
Roberts & Roussou (2003).
The interest in this subject justifies itself in the fact that Old Portuguese presents
two types of participle constructions: (1) transitive-predicative constructions formed by ter
and haver, which are full lexical verbs with semantic value of ownership, plus an participle
that behaves as an adjective, agreeing in gender and number with the direct object of
ter/haver. After a process of change, this construction gives place to (2) a periphrastic
structure formed with ter and haver, which are auxiliary verbs, plus a past participle, which
was reinterpreted as a full verb. In order to investigate the formation of the second type of
construction, this study aims to identify the contexts that led to the change of ter and haver
from full to auxiliary verbs, describing the process of grammaticalization they went through
and the linguistic settings that worked on the passage of the past participle from adjective
to verb.
Using Portuguese texts from the 13th to 16th centuries and a formal theoretical
perspective on the process of grammaticalization (ROBERTS & ROUSSOU 2003), this
dissertation shows that the process of change that culminated in the emergence of
compound tenses in Portuguese involves a process of structural simplification. To do so, we
work with the hypothesis that the constructions with ter/haver + past participle have
suffered the loss of one syntactic movement operation. Due to it, ter and haver were
reanalyzed as auxiliaries, the past participle was reanalyzed as a verb and, as a consequence
of that, such constructions were reinterpreted as constructions of compound perfective
tense. The results suggest, based on the analysis of morphosyntactic elements such as
presence or absence of inflectional marks of agreement between the past participle and the
complement and the fixation of word order in Old Portuguese, that such change has already
occurred in the 13th century.
Esta pesquisa foi parcialmente financiada por uma bolsa CNPq.
“Enquanto eu tiver perguntas e não houver
resposta continuarei a escrever”.
A hora da estrela Clarice Lispector
À família, aos amigos.
Pelo apoio.
Agradecimentos
À Professora Silvia Cavalcante, minha orientadora querida, agradeço por todo o
trabalho e dedicação. Agradeço por ter acreditado em mim, por ter me apoiado e
incentivado desde a graduação, por ter confiança em nossas ideias, que sempre me
pareceram pouco convencionais. Agradeço pelo suporte com a pesquisa, pela constante
atenção e pela amizade.
Ao Professor Leonardo Marcotulio, agradeço pela preocupação, pelas tardes de
sexta-feira dedicadas a resolver os “pepinos” desta Dissertação, pelos comentários e
sugestões valiosas. À Professora Célia Lopes, gostaria de agradecer pelas aulas dentro e fora
da sala de aula, por toda a bibliografia recomendada, pelas ricas discussões sobre
gramaticalização.
A todos os amigos e colegas da F-316 e aos “agregados”, agradeço pela companhia,
pela troca, pelas manhãs e tardes de estudo juntos. Aos novos amigos que fiz na pósgraduação, agradeço pela companhia em congressos, nos processos seletivos, nos
corredores da faculdade; agradeço por tornarem este Mestrado menos solitário. À Urânia,
gostaria de agradecer por ser sempre tão simpática e presente, e por cuidar de mim e dos
outros alunos.
Aos meus amigos, que sempre acreditaram em mim, agradeço pelo apoio, mesmo
não sabendo exatamente o que eu pesquiso. Agradeço pela força quando eu me
desmotivava. Agradeço por tentarem entender o que é uma small clause ou uma reanálise
quando eu me motivava. Agradeço por vibrarem e partilharem comigo a felicidade de
terminar este trabalho. Agradeço pelo constante companheirismo e carinho.
À minha família, agradeço pelo apoio, sempre. À minha mãe Marcela, meu pai
Edson, meu irmão Gabriel. Agradeço por estarem sempre disponíveis para mim, por
acreditarem em mim, por me apoiarem. Agradeço aos meus pais por me incentivarem a ser
uma pessoa melhor, por me ensinarem a buscar o conhecimento, a buscar o que me faz
feliz. Todo o incentivo foi importante para estar onde estou hoje, para seguir meu caminho
e me dedicar. Obrigada. Gostaria de agradecer, ainda, à Tia Camila, pelo carinho, pelo
interesse e pelo incentivo.
Ao CNPq agradeço pelo apoio financeiro que viabilizou a realização desta pesquisa.
Sumário
Índice de Tabelas ............................................................................................................. iii
Índice de Gráficos ............................................................................................................ iv
Índice de Figuras.............................................................................................................. iv
Lista de Siglas e Abreviaturas ............................................................................................ v
Introdução ....................................................................................................................... 1
Capítulo 1 As construções de ter/haver + particípio passado em Português ....................... 5
1.1 Apresentação do tema ............................................................................................ 5
1.2 As construções em análise do Latim ao Português.................................................... 9
1.3 Resumo ................................................................................................................. 20
Capítulo 2: Base teórico-metodológica ........................................................................... 22
2.1 Quadro teórico ...................................................................................................... 22
2.1.2 A teoria dos Princípios e Parâmetros na versão do Programa Minimalista
(CHOMSKY 1995, 2000) ............................................................................................ 23
2.1.3. O fenômeno da gramaticalização.................................................................... 27
2.1.4. O modelo de gramaticalização de Roberts & Roussou (2003) .......................... 31
2.2. Metodologia......................................................................................................... 34
2.2.1. O corpus......................................................................................................... 34
2.2.3. Sobre a periodização do Português: o recorte temporal .................................. 40
2.2.4. Procedimentos metodológicos ....................................................................... 45
3. Capítulo 3: Análise dos dados ..................................................................................... 51
3.1 Apresentação do capítulo ...................................................................................... 51
3.2 Ter e haver de verbos plenos a verbos auxiliares .................................................... 52
3.3. Sobre os particípios passados do Latim ao Português ............................................ 69
ii
3.3.1. O estatuto do particípio passado em Português .............................................. 74
3.3.2. A formação do particípio passado em Português ............................................ 77
3.4. Evidências para a gramaticalização ....................................................................... 86
3.4.1. Ter e haver, por século ................................................................................... 87
3.4.2. Concordância do PTP com o complemento de ter/haver ................................. 90
3.4.3. Ordem dos constituintes na sentença ........................................................... 108
3.4.4. A relação concordância vs. ordem ................................................................ 118
3.5. A gramaticalização de ter e haver e a emergência dos tempos compostos ........... 122
3.6. Síntese ............................................................................................................... 127
Conclusão..................................................................................................................... 130
Bibliografia ................................................................................................................... 134
iii
Índice de Tabelas
Tabela 1: Tipos semânticos do complemento de ter/haver, segundo Mattos e Silva (1992,
2002).............................................................................................................................. 10
Tabela 2: Textos utilizados como corpus distribuídos por século ..................................... 38
Tabela 3: Número de palavras do corpus ........................................................................ 39
Tabela 4: Diferentes propostas para a periodização da Língua Portuguesa (MATTOS E
SILVA 2006) .................................................................................................................... 40
Tabela 5: Diferença entre verbos plenos e verbos auxiliares ............................................ 68
Tabela 6: Diferença entre particípios adjetivos e particípios verbais em construções com
ter e haver...................................................................................................................... 69
Tabela 7: Particípios regulares e irregulares no Português Brasileiro Contemporâneo e no
Português Arcaico .......................................................................................................... 78
Tabela 8: Ter e haver, por século .................................................................................... 87
Tabela 9: Marcação de concordância em construções com ter e com haver ..................... 94
Tabela 10: Marcação da concordância em relação ao gênero e número do complemento 95
Tabela 11: Realização da concordância, por século .......................................................... 96
Tabela 12: Realização da concordância, por século, em relação a ter e haver ................. 106
Tabela 13: Resultados percentuais em relação a ordem dos constituintes (ALMEIDA 2006)
.................................................................................................................................... 109
Tabela 14: Ordem dos constituintes (MATTOS E SILVA 1981, 1992) ............................... 110
Tabela 15: Ordem dos constituintes nas estruturas com ter/haver + PTP ....................... 113
Tabela 16: Ordem dos constituintes nas construções com ter + PTP .............................. 114
Tabela 17: Ordem dos constituintes nas estruturas com ter/haver + PTP, em relação ao
século........................................................................................................................... 115
Tabela 18: Ordem dos constituintes nas construções com ter/haver, por século, em
relação a ter e haver ..................................................................................................... 117
Tabela 19: Cruzamento dos grupos de fatores ordem e concordância ............................ 120
iv
Índice de Gráficos
Gráfico 1: Estruturas formadas por ter e haver, por século .............................................. 88
Gráfico 2: Realização da concordância nas construções de ter e haver + PTP ao longo do
tempo .......................................................................................................................... 103
Gráfico 3: Ordem dos constituintes, por século ............................................................. 116
Índice de Figuras
Figura 1: Modelo de gramática do Programa Minimalista (CHOMSKY 1995, 2000). .......... 24
Figura 2: Modelo de projeção sintagmática ..................................................................... 25
Figura 3: Processo de aquisição da linguagem no quadro da Teoria de Princípios e
Parâmetros (CHOMSKY 1981, 1995, 2000)....................................................................... 31
Figura 4: A gramaticalização no quadro de R&R (2003) (MARCOTULIO 2012:26) .............. 33
Figura 5: Estrutura das construções com ser/ter/haver + PTP em PA (RIBEIRO 1993:357) 57
Figura 6: Estrutura transitiva-predicativa, com movimento de V para I ............................ 66
Figura 7: Estrutura de tempo composto .......................................................................... 67
Figura 8: Processo de aquisição da linguagem segundo o quadro da Teoria de Princípios e
Parâmetros (CHOMSKY 1981, 1995, 2000)..................................................................... 122
Figura 9: Representação sintática de construção adjetiva de ter/haver + PTP ................ 125
Figura 10: Representação sintática de construção de tempo composto perfectivo ......... 125
v
Lista de Siglas e Abreviaturas
SG – singular
PL – plural
1P – primeira pessoa
2P – segunda pessoa
3P – terceira pessoa
1 SG – primeira pessoa do singular
2 SG – segunda pessoa do singular
3 SG – terceira pessoa do singular
1 PL – primeira pessoa do plural
2 PL – segunda pessoa do plural
3 PL – terceira pessoa do plural
NP – noun phrase (sintagma nominal)
AP – adjectival phrase (sintagma adjetival)
VP – verbal phrase (sintagma verbal)
PTP – particípio passado
SC – small clause
PA – Português Arcaico
CIPM – Corpus Informatizado do Português Medieval
GU – Gramática Universal (Universal Grammar)
Língua-I – Língua Interna
Língua-E – Língua Externa
FF – Forma Fonética
FL – Forma Lógica
C-I – Sistema Conceptual-Intencional
A-P – Sistema Articulatório-Perceptual
R&R – Roberts & Roussou (2006)
Testamento de Dom Afonso II (século 13) – TL13
vi
Costumes de Santarém (século 13) – CS13
Notícias do Torto (século 13) – NT13
Tempos dos Preitos (século 13) – TP13
Foros de Garvão (século 13) – FG13
Textos Notariais in História do Galego-Português (século 13) – TN13
Chancelaria de D. Afonso III – CA13
Foros Reais de D. Afonso X – FR13
Crónica de D. Afonso X (século 14) – CA14
Foros de Garvão (século 14) – FG14
Textos Notariais in Clíticos da História do Português (século 14) – CHP14
Textos Notariais in Documentos Notariais (século 14) – TN14
Castelo Perigoso (século 15) – CP15
História dos Reis de Portugal (século 15) – HRP15
Livro da Bem Ensinança do Bem Cavalgar Toda Sela (século 15) – LBE15
Textos Notariais in História do Galego-Português (século 15) – TN15
Crónica dos Reis de Bisnaga (século 16) – CRB16
Documentos Notariais (século 16) – DN16
Textos Notariais in História do Galego-Português (século 16) – HGP16
Textos Notariais in Clíticos da História do Português (século 16) – CHP16
Introdução
A transformação do sistema verbal latino e suas consequências nas línguas
românicas tem sido um tema constante nos estudos históricos da linguística. Na história do
Português, a emergência dos tempos compostos formados por ter/haver + particípio
passado (PTP), originadas de construções perifrásticas do Latim, vem sendo tratada como
um caso de mudança linguística geralmente associado ao fenômeno da gramaticalização (cf.
RIBEIRO, 1993, VIOTTI 1998, ALMEIDA 2006, MEDEIROS 2013).
O presente trabalho apresenta um estudo diacrônico acerca das perífrases
formadas com ter e haver + PTP em Português, com o intuito de investigar como e em que
contextos se deu a mudança a partir da qual emergem os tempos compostos perfectivos,
tratando a mudança de ter e haver de verbos plenos a auxiliares como um caso de
gramaticalização, com base no quadro de Roberts & Roussou (2003). O interesse pelo
estudo se deve ao fato de existir, em Português Arcaico (PA), dois tipos de construções
participiais, exemplificadas, abaixo, em (1) e (2).
(1)
(2)
a. E dhy partyo logo pera Bizcaya, que tiinha prometida ao iffante do~ Joha~, seu
primo. (CA14-048; Crónica de Afonso X; século 14)
b. "Tu a´s, disse elle, avid(os) muit(os) prazer[e]s e ha´s longo tempo husado de tua
voontade e e´s metida em tuas çujas forniguaço~oes. Mas torna-te a mim e eu te
rreceberei docem[en]t(e)". (CP15-013; Castelo Perigoso; século 15)
a. Este rey dom Afonso, en começo de seu reynado, firmou por tempo certo as
posturas e ave~eças que el rey dom Fernando, seu padre, avya posto con el rey de
Graada. (CA14-001; Crónica de Afonso X; século 14)
b. E despois d este rey ter acabado ysto, e ter alcamçado tanta vitorya de seus
ymmiguos, vemdo se ja homem de hidade desejamdo de descamsar em sua velhice, e
que hu~u filho que tinha ficasse rey por sua morte, detreminou de ho fazer rey em sua
vida. (CRB16-052; Crónica dos Reis de Bisnaga; século 16)
As primeiras construções, exibidas em (1), são estruturas transitivas-predicativas
formadas pelos verbos ter e haver, que funcionam como verbos plenos com conteúdo
semântico de posse e selecionavam como complemento uma small clause (SC), formada por
um NP mais um PTP que se comporta como um adjetivo, concordando em gênero e número
2
com o complemento direto de ter/haver. Após um processo de mudança, estas construções
darão origem àquelas exemplificadas em (2), estruturas de tempo composto perfectivo
formadas por ter e haver, que funcionam como verbos auxiliares, esvaziados de conteúdo
semântico, mais um PTP, de caráter verbal.
Para descrever o processo de gramaticalização que transformou as construções
como as exibidas em (1) em estruturas de tempo composto, foram levantadas, inicialmente,
as seguintes hipóteses: (i) a gramaticalização de ter/haver pode ter ocorrido como
consequência da reinterpretação do PTP como uma forma verbal; (ii) a perda das marcas de
concordância do PTP com o complemento de ter/haver pode ter ocorrido a partir de formas
ambíguas, isto é, com complementos no masculino-singular; (iii) o aumento da frequência
da ordem dos constituintes em [ter/haver PTP], associado à perda das marcas de
concordância do PTP com o complemento, é um indicador da emergência das estruturas de
tempo composto.
Com base nisto, supomos que houve um período em que as formas (1) e (2)
competem em Português, sendo (1) a forma conservadora e (2) a forma inovadora. Após
este período de competição a forma inovadora vem ganhado espaço na gramática do
Português. Uma vez que a reanálise não implica, necessariamente, a exclusão da estrutura
conservadora, a construção (1) permanece em Português, com uma função diferente da de
(2).
Deste modo, teria sido a partir das construções conservadoras, isto é, aquelas em
que ter/haver são verbos plenos e o PTP é de caráter adjetivo, que surgem as construções
em que ter e haver funcionam como verbos auxiliares, sofrendo, com isto, perdas
semânticas e de estrutura temática. Concomitantemente ao processo de gramaticalização
sofrido por ter e haver o PTP, antes com função de modificador, é reinterpretado como
verbo, passando a predicador das estruturas perifrásticas, capaz de selecionar o papel
temático do sujeito da construção. Perdem-se, neste processo, as marcas de concordância
do PTP com o complemento e a ordem dos constituintes frásicos é fixada em [ter/haver
PTP]. Deste modo, os objetivos deste trabalho são os seguintes: (i) descrever as construções
com ter e haver + PTP em PA; (ii) analisar e descrever a mudança que culminou na
emergência dos tempos compostos como um caso de gramaticalização; (iii) localizar
temporalmente o surgimento das construções de tempo composto em Português.
3
Para a realização deste estudo foi utilizado o modelo de gramaticalização de
Roberts & Roussou (2003), baseado na Teoria de Princípios e Parâmetros em sua versão
Minimalista (CHOMSKY 1995, 2000). A gramaticalização é entendida, neste quadro, como
um caso regular de mudança paramétrica por meio da qual novo material funcional é criado
a partir da reanálise de material lexical ou da reanálise de material funcional já existente.
Uma vez que a gramaticalização é um caso regular de mudança paramétrica, a reanálise se
daria no momento de aquisição da linguagem (cf. LIGHTFOOT 1979, 1991), sendo
desencadeada pelo gatilho oferecido por evidências linguísticas ambíguas aos falantes no
momento da aquisição de sua gramática. Sendo a redução estrutural um processo
frequente na gramática das línguas naturais (cf. ROBERTS & ROUSSOU 2003), neste trabalho
argumentamos que no PA houve uma mudança a partir da qual as construções com ter e
haver + PTP sofrem um processo de simplificação estrutural. No período anterior à
mudança, assumimos que as construções perifrásticas formadas por estes verbos + PTP, isto
é, as construções conservadoras, envolvem movimento de ter e haver, gerados em V, para I,
onde recebem marcas de flexão. Após o processo de gramaticalização destes verbos, estes
seriam gerados diretamente em I, perdendo-se o movimento de V para I que havia na
estrutura conservadora. Concomitantemente à gramaticalização de ter e haver o PTP é
reanalisado como um verbo, passando a ser o predicador verbal das construções em
questão. Deste modo, interpretamos a mudança de verbos plenos a auxiliares como um
caso de redução estrutural.
O estudo foi feito com uma base empírica de dados de textos medievais dos
séculos 13 ao 16, oriundos da plataforma online Corpus Informatizado do Português
Medieval (CIPM), disponível em http://cipm.fcsh.unl.pt/. Após a delimitação do corpus e
coleta dos dados, os mesmos foram codificados de acordo com os grupos de fatores
controlados e submetidos ao programa estatístico-computacional GoldVarb X (SANKOFF,
TAGLIAMONTE e SMITH 2012) para a obtenção dos valores percentuais das categorias
controladas. Além da análise percentual foi também realizada uma análise qualitativa e
descritiva dos dados levantados.
Esta Dissertação está organizada da seguinte maneira. No capítulo 1, será
brevemente apresentada uma revisão da literatura sobre as construções formadas por
ter/haver + PTP, em que serão discutidas a sua origem desde o Latim e as diferentes
abordagens para sua evolução em Português.
4
No capítulo 2 será abordado o referencial teórico utilizado, a perspectiva formal de
gramaticalização apresentada por Roberts & Roussou (2003), inserida no quadro
minimalista, assim como a metodologia utilizada para a seleção do corpus, a delimitação
temporal utilizada, recolha e tratamento dos dados levantados. Uma vez que a proposta de
Roberts & Roussou (2003) se fundamenta no quadro teórico de Chomsky (1995, 2000),
adotamos neste trabalho a concepção de língua como um objeto interno à mente dos
indivíduos (Língua-I). O conjunto de enunciados produzidos pela Língua-I é denominado
gramática externa, ou Língua-E, e é a partir de sua observação que se pode levantar
elementos que nos permitem observar e sistematizar o funcionamento da gramática.
O capítulo 3 tem por objetivo analisar a mudança linguística abordada neste
trabalho, mostrando as evidências empíricas (Língua-E) que apontam para o processo de
gramaticalização de ter e haver de verbos plenos a verbos auxiliares. Deste modo, neste
capítulo serão apresentados os resultados quantitativos e qualitativos da análise feita,
relacionados ao modelo de gramaticalização adotado. A esse capítulo seguem a conclusão e
as referências bibliográficas utilizadas.
5
Capítulo 1
As construções de ter/haver + particípio passado
em Português
Como apresentado na Introdução desta Dissertação, as construções formadas por
ter/haver + PTP têm sido assunto de interesse de diversos estudos no âmbito da linguística
histórica (cf. DIAS 1959; SAID ALI 1964; MATTOS E SILVA 1989, 1992, 2002, 2006; entre
outros). Diversos são os trabalhos que oferecem uma descrição detalhada dessas
construções, principalmente no âmbito da filologia e da linguística histórica clássicas. No
âmbito dos estudos gerativistas, percebemos um interesse não só na descrição dessas
construções, mas também na explicação para a mudança de ter/haver de verbos plenos a
auxiliares como um caso de gramaticalização (cf. RIBEIRO 1993; VIOTTI 1998; MEDEIROS
2013).
Este capítulo tem como objetivo apresentar um panorama geral dos trabalhos que
se dedicaram ao estudo das construções de ter/haver + PTP em Português e, para tanto, se
organiza da seguinte maneira: na seção 1.1, apresentamos o tema desta Dissertação,
descrevendo as construções de ter/haver + PTP; na seção 1.2 apresentamos brevemente a
literatura relevante sobre as construções em questão, procurando descrever as estruturas
de ter/haver + PTP desde o Latim até o Português, além das hipóteses e questões que
guiarão este trabalho; finalmente, a seção 1.3 traz uma síntese do que foi tratado neste
capítulo.
1.1 Apresentação do tema
A transformação do sistema verbal latino e suas consequências nas línguas
românicas tem sido um tema constante nos estudos históricos da linguística. Neste campo,
um assunto que chama à atenção é a emergência dos tempos compostos perfectivos
6
formados por ter/haver + PTP, formas compostas que substituíram, no Português Arcaico
(PA), as formas flexionadas do Latim.
Em PA havia um conjunto de estruturas formadas pelos verbos ter e haver + PTP,
que admitiam duas interpretações. Inicialmente, as perífrases eram formadas por ter e
haver, sendo estes verbos lexicais com conteúdo semântico pleno, com valor de posse; o
PTP que acompanha estas estruturas funciona como um adjetivo, com a função de
modificador do complemento direto de ter/haver. Observem-se, abaixo, exemplos deste
tipo de construção em (1) e (2).
(1)
E out(ro)ssi ma~do das dezimas das luctosas e das armas e dout(ra)s dezimas q(eu) eu
tenio apartadas en tesouros per meu reino, q(eu) eles as departia~ assi como uire~
por derecto. (TL13-001; Testamento de D. Afonso; século 13)
(2)
E se per uentura el rey for d(e)ta~ grande piedade que o queyra leyxar uiuo |e| nono
possa faz(er), ameos que lly saque os ollos q(ue) non ueia o mal que cobijçou a ffaz(er)
e que aya semp(re) uyda amargada e peada. (FR13-001; Foro Real de D. Afonso X;
século 13)
As estruturas formadas por ter/haver + PTP adjetivo, como as observadas acima,
eram, até o século 14 (ALMEIDA 2006; MEDEIROS 2013), construções transitivas em que ter
e haver se comportam como verbos plenos e apresentam conteúdo semântico de posse.
Nestas estruturas, ter e haver funcionavam como os predicadores da sentença,
selecionando semanticamente um sujeito e um complemento. Nas estruturas em questão, o
complemento selecionado por ter/haver é formado, categoricamente, por um NP e um AP,
sendo este um PTP de caráter adjetivo, que funciona como um modificador do NP
complemento.
Antes do processo de mudança pelo qual passam ter e haver e a partir do qual
estas estruturas se tornam construções de tempo composto, o PTP apresenta características
nominais, como a possibilidade de concordar com o complemento direto de ter/haver.
Como é possível observar, no exemplo (1) o PTP apartadas concorda com o complemento
feminino, plural as dizimas, evidenciando seu caráter adjetivo; o mesmo se observa em (3),
em que os PTPs amargada e peada concordam com o complemento, também feminino,
vida. Nos exemplos acima a interpretação que se dá a este tipo de estrutura é a de que [eu]
7
tenho/possuo dízimas e estas dízimas estão/são apartadas (divididas) em tesouros, para (1),
e que [alguém] haja/possua uma vida e que esta vida seja amarga e sofrida, para (2).
Além da questão da concordância entre o PTP e o complemento direto de
ter/haver, outro fator que evidencia o caráter adjetivo destas estruturas é a ordem dos
constituintes da sentença. No PA, ainda que a ordem típica dos elementos frásicos seja do
tipo V2 (cf. RIBEIRO 1995), nas construções com PTP esta ordem não era bem definida. Nas
construções em questão, eram possíveis ordens do tipo V1 NP PTP, NP V PTP ou PTP V NP2.
Nos exemplos (1) e (2) são observadas as ordens NP V PTP, para (1), sendo o complemento
relativizado neste caso, e V NP PTP, para (2). Somente após o processo de gramaticalização
pelo qual passam ter e haver que a ordem dos constituintes irá se fixar em V NP PTP, para as
construções adjetivas, e em V PTP NP, para as construções de tempo composto.
Após o processo de gramaticalização de ter e haver, a partir do qual estes verbos
tornam-se auxiliares, algumas mudanças tomam lugar nas construções com PTP. Como visto
acima, a ordem dos constituintes é fixada; além disso, perdem-se as marcas de
concordância do PTP com o complemento de ter/haver, sendo o PTP não mais um adjetivo,
mas um verbo. Na estrutura gramaticalizada, ter e haver perdem seu conteúdo semântico
de posse e deixam de ser os predicadores da sentença. Este papel é agora exercido pelo
PTP, que seleciona semanticamente os argumentos da perífrase. Observem-se, abaixo, os
exemplos (3) e (4), das construções com ter/haver + PTP, já gramaticalizadas.
(3)
(...) partindo se el rey pera seu reyno, por respeyto da nova que lhe hera vymda,
deixamdo o reyno de Bisnaga em poder de Meliquy niby, sabido por toda a terra como
era fora d ella, os que escapara~o pellas montanhas, e outros, que contra suas
vontades com temor lhe tinha~o dado as menage~es das villas e lugares. (CRB16-010;
Crónica dos Reis de Bisnaga; século 16)
(4)
Este rey dom Afonso, en começo de seu reynado, firmou por tempo certo as posturas
e ave~eças que el rey dom Fernando, seu padre, avya posto con el rey de Graada.
(CA14-001; Crónica de D. Afonso X; século 14)
Os exemplos acima mostram construções dos séculos 16 e 14, respectivamente, em
que ter e haver funcionam como verbos auxiliares, portanto, construções já
1
2
Ter/haver
Estas foram as ordens observadas no corpus utilizado nesta Dissertação.
8
gramaticalizadas. Nas estruturas acima observamos que o PTP não exibe marcas de
concordância com o complemento, evidenciando seu caráter verbal. Como é possível notar,
no exemplo (3) o PTP posto não concorda com o complemento feminino, plural as posturas
e ave~enças; o mesmo se observa em (4), em que o PTP dado não concorda com o
complemento, também no feminino, plural as menage~es das villas e lugares, o que seria
uma evidência para a interpretação destes PTPs como verbos, e não como adjetivos. Além
disso, nota-se a sequência V PTP na ordem dos constituintes frásicos, sequência típica dos
tempos compostos em Português, que exibem a ordem auxiliar-auxiliado. Por fim, o valor
semântico exibido pelas sequências ter/haver + PTP é, após a mudança, o de uma ação
concluída, permitindo a leitura [o rei] lhe deu as homenagens das vilas e lugares, para (3), e
o rei dom Fernando pôs [firmou] posturas e avenças com o rei de Granada, para (4).
As construções
inovadoras
de
tempo
composto geradas a partir da
gramaticalização de ter e haver e da reinterpretação do PTP como verbo convivem,
atualmente, com a forma antiga, formada com ter/haver plenos + PTP adjetivo, uma vez que
o processo de reanálise que subjaz a gramaticalização não pressupõe a exclusão da
estrutura conservadora da gramática da língua em questão. Observem-se as estruturas em
(5) e (6), abaixo.
(5)
Veja as celebridades que têm usado Givenchy no tapete vermelho.3
(6)
Globo já tem novela inteiramente escrita antes da estreia4.
As estruturas exemplificadas em (5) e (6) ilustram construções de tempo composto
e construções adjetivas no Português Brasileiro (PB) contemporâneo. Como se observa, em
(5) temos a sequência têm usado Givenchy (V PTP NP) e a noção de uma ação acabada e
durativa, aspecto que adquiriu em período posterior ao PA. Atualmente, as estruturas de
tempo composto são formadas majoritariamente com ter no PB falado; as construções com
haver são utilizadas mais comumente na escrita. Além disso, como visto, o valor semântico
expresso é, além da ação concluída, o de uma ação continuada. Em (6) observamos a
3
Exemplo do portal O Globo de notícias online, disponível em http://ela.oglobo.globo.com/moda/veja-ascelebridades-que-tem-usado-givenchy-nos-tapetes-vermelhos-8701149 (acesso em 11/12/2013).
4
Exemplo retirado do portal BOL de notícias online, disponível em http://noticias.bol.uol.com.br/ultimasnoticias/entretenimento/2013/11/11/globo-ja-tem-novela-inteiramente-escrita-antes-da-estreia.htm (acesso em
11/12/2013).
9
sequência tem novela escrita (V NP PTP), ordem típica das construções adjetivas, além das
marcas de concordância entre o PTP escrita e o NP novela. As construções adjetivas com
PTP são formadas exclusivamente com ter, uma vez que haver não expressa valor de posse
no Português contemporâneo.
Na subseção seguinte apresentaremos um panorama histórico das estruturas
formadas por ter/haver + PTP desde o Latim até o Português, fazendo uma breve revisão
bibliográfica e descrevendo mais detalhadamente o funcionamento das construções em
questão.
1.2 As construções em análise do Latim ao Português
Como visto acima, a estruturas de ter/haver + PTP apresentam dois estatutos em
Português, podendo ser construções adjetivas, formadas por um verbo pleno e um PTP de
caráter adjetivo, ou construções de tempo composto perfectivo, em que ter e haver
funcionam como verbos auxiliares e o PTP exerce a função de verbo principal da estrutura.
O surgimento do segundo tipo de construção teria tido origem a partir de um processo de
gramaticalização, em que ter e haver passam de verbos plenos, com conteúdo semântico de
posse, a verbos auxiliares. Após o processo de mudança surgem as perífrases de tempo
composto em Português, que ainda hoje convivem com a estrutura original.
Em relação à origem das estruturas formadas por ter e haver + PTP em Português,
Ribeiro (1993:343) afirma que estas tiveram origem na forma flexionada do presente
perfectivo de verbos transitivos do Latim, que foi substituída, nas línguas românicas, por
uma perífrase formada pelo verbo latino habere (haver) + PTP. Ao lado das construções de
origem latina com habere + PTP, surge, nas línguas românicas, uma estrutura composta
semelhante formada com o correspondente românico para o verbo tenere (ter). Contudo, as
duas perífrases diferiam quanto ao valor semântico que expressavam.
Em Latim, o verbo prototípico para a expressão da posse é habere. Segundo Gaffiot
(1934, cf. MATTOS E SILVA 1992), seu significado primário é ter em sua posse, guardar, e,
como acepção secundária, ter na mão. Tenere, por outro lado, tem como acepção básica ter
algo na mão, obter, apresentando também outros valores semânticos secundários, como
manter, reter (GAFFIOT 1934, cf. MATTOS E SILVA 1992). Já era presente no Latim, portanto,
10
a interseção semântica entre habere e tenere na expressão da posse de um objeto concreto:
ter na mão. Na história do Português, seus sucessores haver e ter já aparecem em variação
nesse sentido, desde época bastante recuada (cf. MATTOS E SILVA 1992).
O Dicionário Essencial de Latim5 (2001) traz, além dos valores expostos acima, os
significados conter, trazer, conhecer, tratar, experimentar, considerar, avaliar, executar,
habitar, morar, para habere, e reter, segurar, conter, ganhar, adquirir, possuir, conservar,
obrigar, compreender, afirmar, para tenere. Em PA, o verbo haver comportava,
majoritariamente, valores semânticos de posse tais como: ter, possuir, guardar, dever. Ter,
por outro lado, significava obter, ser senhor de, ocupar, guardar. Note-se que, na passagem
do Latim para o Português, alguns valores semânticos foram perdidos, mas, de modo geral,
o verbo haver é utilizado para designar qualquer tipo de posse enquanto ter é usado para
designar posse temporária ou a posse de bens materiais adquiríveis.
De acordo com Mattos e Silva (1992, 2002), a variação na seleção de haver ou de
ter nas construções adjetivas com PTP em Português estava condicionada à natureza
semântica do complemento do verbo, o objeto possuído. A autora define, então, três tipos
semânticos para o complemento destes verbos, relacionados na Tabela 1, a seguir.
Tipo de posse
(i) Qualidades/posses
transferíveis.
Exemplo
inerentes, não Características ou estados físicos do
possuidor, isto é, do sujeito da frase. Ex.:
barvas6, ceguidade, cinqüenta anos.
(ii)
Qualidades/posses
adquiríveis Posses morais, espirituais, intelectuais,
imateriais
afetivas, sociais. Ex.: fé, graça, poderio,
poder, ira
(iii) Objetos materiais adquiríveis
Objetos externos ao possuidor. Ex.: remédio,
mezinhas, carneiros, ovelhas
Tabela 1: Tipos semânticos do complemento de ter/haver, segundo Mattos e Silva (1992, 2002)
Inicialmente, as perífrases de ter/haver + PTP adjetivo em Português eram mais
produtivas com o verbo haver, que foi se revelando um verbo semanticamente mais fraco
que ter, segundo Costa (2010:61), que afirma que “à medida que a debilitação semântica de
habere se acentuava, tenere ia ganhando espaço e maior aceitação entre os falantes”, até se
5
6
Dicionário Essencial de Latim, Porto Editora, Porto, 2001.
Forma arcaica para ‘barbas’.
11
tornar o verbo mais produtivo em construções com PTP. Por outro lado, o verbo haver
adquire no PA outras acepções, como a significação existencial, contexto posteriormente
associado também a ter.
Os dados de Mattos e Silva (1989, 1992, 2002) mostram que no século 14 ocorre
variação entre haver e ter em estruturas do tipo (i) (posses inerentes), sendo haver o verbo
favorito. Em relação a (ii), havia variação entre os dois verbos, com predominância de haver
e, para (iii), também havia variação, mas com predominância de ter. Em relação a ter, no
século 14, sua difusão se inicia nas estruturas de posse do tipo (iii) – materiais adquiríveis –
se estendendo posteriormente para os contextos explicitados em (ii) e em (i),
respectivamente. Finalmente, na segunda metade do século 15, ter sobressai-se em
comparação a haver. Segundo Mattos e Silva (1992), a mudança semântica que se
processava no período arcaico do Português já vinha prefigurada da estrutura latina, em que
já se documentava a interseção semântica entre esses dois verbos, como visto acima.
O surgimento das perífrases perfectivas em Português foi motivado, segundo
Câmara Jr. (1969), por uma questão aspectual. No Latim, o verbo, além de receber flexão de
número e pessoa, apresentava marcas morfológicas que expressavam aspecto, tempo e
modo. Com o tempo, os traços que marcavam aspecto, por serem menos produtivos, foram
se perdendo, resultando em um rearranjo do sistema verbal latino que, posteriormente,
teria dado origem às construções de ter/haver + PTP, que dariam origem aos tempos
compostos em Português. Nas construções perifrásticas de tempo composto, o verbo
auxiliar se combina com uma forma verbal – neste caso, o PTP – não só para expressar
tempo e modo, mas também aspecto; por este motivo Câmara Jr. afirma que a perda da
marca morfológica de aspecto em Latim tenha originado as construções participiais com
valor perfectivo.
Segundo Said Ali (1964: 161-162), as formas de passado composto e simples são
dois aspectos do mesmo verbo. Assim, ver e ter/haver visto são dois aspectos do verbo ver.
No primeiro caso, a ação é expressa vagamente; no segundo, a ação é definida como
consumada. De acordo com o gramático, no pretérito perfeito, o verbo desta conjugação
composta significava a mesma coisa que na conjugação simples: teve visto e viu eram coisas
idênticas, mas o uso baniu a forma mais longa. Dias (1959:191), por outro lado, afirma que
as construções perifrásticas com ter e haver não apresentam diferença de sentido em
relação às formas de passado simples: “sobretudo em or. temporaes, o port. arch. medio
12
emprega um tempo, composto do pret. definido de ter ou haver e do part. passivo de um
verbo transitivo, para exprimir que em certo momento do passado, a acção estava
consummada. (É o pret. anterior das grammaticas francesas)”. Contudo, como já foi visto, a
interpretação das formas perifrásticas com ter e haver + PTP passivo (adjetivo) não
funcionam como tempo composto perfectivo; antes, funcionam como construções
possessivas atributivas e, após a gramaticalização de ter/haver, surge uma nova forma que
dará origem ao tempo composto propriamente dito. Esta forma inovadora é a que seria, nos
termos de Said Ali, um outro aspecto do passado simples.
Em geral, a literatura tradicional (cf. DIAS 1959; SAID ALI 1964; CÂMARA JR. 1969)
afirma que o chamado tempo composto do PA era exclusivamente formado por ser + o PTP
de uma subclasse dos verbos transitivos (cf. MATTOS E SILVA 2006)7. O tempo composto de
valor perfectivo formado por ter/haver + PTP só ocorre quando deixa de haver a
concordância do PTP de verbos transitivos com o seu complemento direto. Desta forma,
enquanto se documenta a flexão do PTP com o seu complemento direto, essa sequência
ainda não é considerada tempo composto, por ainda não ter ocorrido a fusão semântica e
sintática implícita nas estruturas de tempo composto. Deste modo, os tempos compostos
com haver e ter só se generalizam em Português quando o PTP deixa de ser flexionado.
Enquanto há a concordância entre o PTP e o complemento, há apenas uma construção que
evidencia um estado de posse, expresso por haver e ter, formada com um PTP de caráter
adjetivo, que modifica o complemento direto destes verbos.
Em geral, o critério utilizado para localizar temporalmente a emergência dos
tempos compostos em Português é a presença versus a ausência de marcas de concordância
do PTP com o complemento direto de ter/haver (MATTOS E SILVA 2002, 2006; ALMEIDA
2006; MEDEIROS 2013, entre outros), critério que, geralmente, situa a emergência destas
construções nos séculos 14/15. Deste modo, as perífrases que apresentam concordância do
PTP com seu complemento direto seriam formas antigas ou conservadoras e as que não
apresentavam concordância seriam formas inovadoras, portanto de tempo composto.
Em relação ao período histórico em que estas construções emergem, Mattos e Silva
(1989, 1992) encontra variação na concordância entre o PTP das construções perifrásticas
com ter e haver e o seu complemento direto no século 15, localizando a emergência dos
7
Tal subclasse seria composta pelos verbos ditos inacusativos.
13
tempos compostos perfectivos em Português, portanto, neste século; contudo, em artigo de
2002, a autora recua esta data para o século 13. Naro e Lemle, em artigo de 1977 (cf.
MATTOS E SILVA 2002, 2006), mostram que a difusão deste tipo de construções com PTP de
verbos não transitivos ocorre no século 15, mas propõem que é possível recuar a data do
surgimento dos tempos compostos com ter e haver para o século 14, como constata
também Medeiros (2012), com base na perda da concordância do PTP com o NP
complemento. No entanto, autores como Ribeiro (1993), Mattos e Silva (2002) e Almeida
(2006), observam que outros critérios, além da presença ou não de concordância são
relevantes no estudo da formação dos tempos compostos em Português.
Ribeiro (1993) e Mattos e Silva (2002) consideram que um fator importante no
estudo da formação dos tempos compostos perfectivos em Português é a perda do traço
+transitivo dos PTPs nas construções perifrásticas com ter e haver. Segundo as autoras a
ocorrência de construções perifrásticas com haver + PTP intransitivo são as que dão início à
mudança, isto é, a emergência dos tempos compostos perfectivos em Português se atribui
ao fato de haver passar a constituir construções não só com PTPs transitivos, mas também
com verbos inergativos e inacusativos, contextos antes ocupados apenas pelo verbo auxiliar
ser. Contudo, uma análise como esta pressupõe que, desde o início, os PTPs que formam as
perífrases em questão são de caráter verbal, e não adjetivo.
Outros estudos (cf. MATTOS E SILVA 1992 e ALMEIDA 2006) apontam também para
a fixação da ordem no PA como fator decisivo na formação dos tempos compostos
perfectivos. Como dito na seção anterior, no PA a ordem dos constituintes, ao menos no
que respeita as construções com PTP, não era muito bem fixada. Deste modo, nas
construções com ter e haver + PTP o complemento direto do PTP podia preceder, suceder,
estar entre ter/haver e o PTP, ou, ainda, ser nulo. Por sua vez, ter e haver podiam também
suceder ou preceder o particípio. Os dados de Mattos e Silva (1992) mostram que as ordens
mais comuns são (i) NP (complemento) + ter/haver + PTP, quando o complemento é
relativizado, e (ii) ter/haver + PTP + NP.
Almeida (2006), em análise de base variacionista, trata a passagem de ter e haver
de verbos plenos a verbos auxiliares de tempo composto como um caso de gramaticalização
funcional, observando que é no século 14 que ter passa a ser o verbo favorito destes tipos
de construção. Em sua análise, os contextos em que há presença de elemento anafórico,
retomando o complemento já mencionado, com a ordem [ter/haver + PTP], são os que
14
favorecem a interpretação das construções participiais como tempo composto. Em relação à
ordem e a concordância do PTP com o complemento, Almeida (2006) afirma que “é
categórica a presença de concordância quando o complemento se encontra à esquerda da
construção participial ou quando está localizado entre ter/haver e a forma participial”.
Deste modo, segundo Almeida (2006), à medida que a ordem vai se fixando em [V + PTP +
NP], as marcas de concordância vão também diminuindo, levando à interpretação de
ter/haver como verbos auxiliares e do PTP como um predicador.
O trajeto destes verbos de vocábulos com conteúdo semântico pleno a vocábulos
gramaticais teria sido permitido pela polissemia das formas em questão, que admitiam
diferentes valores semânticos. Inicialmente, verifica-se, no estudo de Almeida (2006), uma
distribuição complementar em que ter ocorre em contextos em que expressa posse
propriamente dita e haver fica restrito aos contextos de posse inalienável, com caráter
[+abstrato]; contudo, foram documentados também casos em que ter ocorre em contextos
de posse inalienável. No segundo caso, verifica-se ambiguidade nas construções, pois não é
possível precisar se ter e haver apresentam valor de posse, predicando a sentença, ou se
estão esvaziados semanticamente, como ocorre com os auxiliares e, ainda, se os particípios
apresentam caráter verbal ou adjetivo. Tais estruturas ambíguas seriam os estágios que
levaram à reanálise destas sentenças, resultando na gramaticalização de ter e haver. Em
resumo, segundo Almeida (2006), a passagem destes verbos a auxiliares ocorre quando
estes deixam de veicular valor semântico de posse, passando por uma fase de ambiguidade
semântica que levou à gramaticalização.
Ao tratar das construções perifrásticas com ter e haver + PTP no PA, Mattos e Silva
(1989, 1992, 2002) destaca que em estruturas do tipo exemplificado abaixo em (6), o PTP é
um modificador do complemento direto de ter e haver. As evidências para a interpretação
do PTP como um adjetivo estão nas marcas de concordância explícitas entre o PTP e o
complemento direto de ter/haver.
(6)
a. todos bees mh' á feitos (DSG 4.32.8 cf. Mattos e Silva 1992:92)
b. e, tanto que ele teve quisado todo, foi-se espedir del rei (LRR V. 106-107 cf. Mattos e
Silva 1992:92)
15
Segundo a autora, nesses e em outros exemplos (cf. MATTOS E SILVA 1992:92-93)
da segunda metade do século 14 e da primeira metade do século 15, haver e ter são verbos
plenos com valor semântico de posse, não podendo ser analisados como auxiliares, uma vez
que o adjetivo (PTP) é constituinte do NP complemento direto; o PTP, portanto, não é
constituinte do VP. Contudo, no mesmo corpus utilizado na análise de 1992, Mattos e Silva
encontra também ocorrências de perífrases interpretáveis como tempo composto, como se
observa em (7), abaixo, sugerindo que as duas construções encontravam-se em variação.
(7)
a. E a mollier do conde, que já havia sabido e não sabida de sua filha toda sua fazenda
(LRR VIII. 15-16 cf. Mattos e Silva 1992:93).
b. E non sabedes vós quanto afam e trabalho ayades tomado não tomados e quantas
espadadas e seetadas havedes levadas (LRR X. 13-14 cf. Mattos e Silva 1992:93).
Segundo Mattos e Silva (2002), exemplos da variação na concordância do PTP com
seu complemento direto são evidências de que já então conviviam as duas estruturas: a
inovadora, em que ter e haver são reanalisados como verbos auxiliares, constituindo com o
PTP o VP, e a forma antiga, de origem latina, em que haver e ter são verbos principais
transitivos e o PTP é de caráter adjetivo, não verbal, estrutura que ocorre ainda hoje:
(8)
a. Eu tinha as cartas escritas quando ele chegou. (cf. Mattos e Silva 1992:93)
b. Eu tinha escrito as cartas quando ele chegou. (idem)
Em relação às construções em questão, Said Ali (1964) chama atenção ao que
denomina verbos nocionais e verbos relacionais. De modo geral o autor chama verbos de
função nocional aqueles que não sofrem a influência de qualquer anexo predicativo e são
utilizados em seu sentido pleno. Verbos de função relacional, por outro lado, são aqueles
cuja acepção é modificada por virem combinados com outro termo – o anexo predicativo –
com o qual dividem o papel de predicado da oração. Segundo o gramático, como anexo
predicativo pode ser usado o particípio do pretérito em vez do adjetivo propriamente dito,
com a diferença de que o particípio, levando em conta sua origem verbal, exprime não uma
qualidade, mas o estado resultante de um ato anterior (SAID ALI 1964:159).
16
Segundo o autor, nas construções com ter e haver o PTP continua a exercer a
função de anexo predicativo referido ao objeto, isto é, exerce a função de adjetivo, até o
século 17, quando perdem-se as marcas de concordância entre o PTP e o complemento.
Seria desta construção de caráter adjetivo que surgem as formas verbais compostas,
formadas por ter e haver, que perdem conteúdo semântico: “passou-se assim da
justaposição de formas verbais simples, independentes e de igual valia, à subordinação de
um elemento ao outro, considerando-se como verbo principal o particípio e ter [e haver]
como simples auxiliar. Esta combinação naturalmente só era possível quando um e outro
ato procediam do mesmo autor, isto é, quando o agente da ação expressa pelo particípio
não diferia do sujeito do verbo ter” (SAID ALI 1964:160).
Ribeiro (1993), com base no quadro de gramaticalização de Roberts (1992),
baseado na Teoria de Princípios e Parâmetros (CHOMSKY 1981), analisa o fenômeno em
termos formais. Para a autora, a formação do tempo composto envolve a mudança de uma
categoria lexical para uma funcional, envolvendo perda de valor semântico e de estrutura
temática, tratando a passagem de haver e, posteriormente, de ter de verbo pleno a auxiliar
em termos de uma Reanálise Diacrônica (cf. ROBERTS 1992). Viotti (1998), também com
base no quadro de gramaticalização formal de Roberts (1992), mas se baseando nos
pressupostos do Programa Minimalista (CHOMSKY 1995, 2000), sugere que o verbo haver se
transformou em uma categoria funcional, e o verbo ter está também em processo de
reanálise diacrônica, pois a perda de conteúdo semântico que estes verbos sofreram e vêm
sofrendo ao longo de sua história é suficiente para que eles atinjam uma etapa em que
funcionem como uma categoria funcional. Os capítulos 2 e 3 tratarão em mais detalhes das
diferentes propostas para a gramaticalização de ter e haver em verbos auxiliares.
Acerca das perífrases formadas por habere + PTP em Latim, Roberts & Roussou
(2003) sugerem que a presença deste verbo em construções perfectivas com PTP não
implica que habere seja um auxiliar. Nestes contextos, habere é um verbo lexical que
seleciona um complemento participial, interpretado pelos autores como uma small clause.
Observe-se o exemplo (9) abaixo, retirado de Harris & Campbell (1995:182).
(9)
in ea provincia pecunias magnas collocatas habent. (Harris & Campbell 1995:182)
In this province capital great invested have-3pl
17
‘They have great capital invested in that province’8
A estrutura acima traz uma construção formada pelo verbo habere + um PTP,
collocatas, que concorda em gênero e número com o complemento pecunias magnas.
Devido justamente às marcas de concordância entre o PTP e o complemento, tal estrutura é
interpretada como uma construção adjetiva, em que habere se comporta como um verbo
pleno, com conteúdo semântico de posse, e o PTP collocatas é interpretado como um
adjetivo, com a função de modificador do complemento direto de habere.
Seguindo a mesma interpretação, Roberts & Roussou (2003), analisam a estrutura
(9) como sendo formada por um verbo principal (habent) que seleciona como complemento
uma SC formada por um NP e um adjetivo que, neste caso, é representado por um PTP.
Deste modo, a leitura que se faz da construção é a seguinte: they have [great capital
invested]. Para os autores, a presença de concordância do particípio com o complemento
em Latim (in ea provincia pecunias magnas collocatas habent) é uma evidência para a
interpretação do PTP como um adjetivo, portanto, do complemento de habere como uma
SC. Para os autores, “in perfect constructions at this early stage does not necessarily imply
that habeo is an auxiliary. Instead, we could assume that it is a lexical verb taking a
participial (small clause) complement” (Roberts & Roussou 2003:57)9.
Para Harris & Campbell (1995), construções como a apresentada acima são
estruturas biclausais nas quais o possuidor [they] é o sujeito da sentença matriz e o
elemento possuído [great capital invested] é o objeto direto do verbo. Dentro da cláusula
subordinada se encontram um sujeito, que pode ser diferente do sujeito da oração
principal, um objeto direto e um verbo, considerado pelas autoras como um particípio
passivo, de caráter adjetivo. A cláusula subordinada formava um constituinte com o objeto
direto da oração principal e a passivização se dava na oração subordinada, pois o objeto
direto da oração matriz funcionava como sujeito na oração subordinada.
Assim como R&R (2003), Harris & Campbell (1995) e também Ribeiro (1998)
propomos que o complemento selecionado por ter e haver nas construções com PTP
adjetivo, portanto as construções não gramaticalizadas, seja uma Small Clause. Deste modo,
8
9
‘Eles tem grande capital investido naquela província’ [minha tradução]
“Neste estágio inicial habeo não funcionava necessariamente como um auxiliar nas construções perfectivas.
Ao invés disso, podemos assumir que funciona como um verbo lexical que seleciona um complemento
participial (small clause)” [minha tradução].
18
ter e haver enquanto verbos plenos integram construções transitivas-predicativas em que o
complemento é categoricamente uma Small Clause formada por um objeto e um
predicativo deste objeto, neste caso, o PTP.
Em relação às construções participiais que deram origem às formas de tempo
composto nas línguas românicas, Dombrowski (2010) considera cinco estágios de mudança
dos PTPs desde o Latim, resumidas a seguir: (1) no primeiro estágio os PTPs têm significado
puramente participial, isto é, expressando qualidade ou estado; (2) no segundo estágio
coexistem duas formas: uma em que o PTP expressa conteúdo adjetivo e outro em que o
PTP sofreu esvaziamento semântico e é combinado com um auxiliar em construções
perifrásticas, funcionando como marcador perfectivo; (3) os PTPs são usados primariamente
como marcadores perfectivos, porém sem serem marcadores temporais; há desbotamento
semântico, ainda que o conteúdo adjetival permaneça em nível lexical; (4) os PTPs começam
a se desenvolver como formas verbais finitas, preservando, simultaneamente, funções nãofinitas; (5) no último estágio de mudança os PTPs evoluem completamente como formas
verbais finitas, ainda que certo conteúdo lexical tenha se preservado.
Os primeiros três estágios descritos por Dombrowski (2010) se aplicam à mudança
que ocorreu no Português. No primeiro estágio de mudança os PTPs apresentam o que o
autor chama de significado participial (participial meaning), funcionando como um adjetivo.
No segundo estágio, o PTP coexiste com uma forma participial semanticamente esvaziada e
utilizada em construções com auxiliar, em que exerce funções puramente verbais, não
apresentando, portanto, marcas flexionais de concordância com o complemento. No
terceiro estágio os PTPs são utilizados como marcadores temporais perfectivos não finitos,
na nomenclatura do autor, mas também conservam seu uso adjetivo. Deste modo há, em
uma língua que atingiu esta fase, um PTP de caráter verbal, que compõe construções de
tempo composto com valor perfectivo junto com os auxiliares ter/haver10; ao lado desta
forma ocorre outra constituída por um PTP de caráter adjetivo.
Como pôde ser observado nesta seção, a literatura aponta que as construções com
ter/haver + PTP têm origem em formas perifrásticas flexionadas do Latim. Em relação à
mudança pela qual passaram estas perífrases, em geral os estudos levam em consideração
10
Em línguas que possuem apenas um auxiliar para estes contextos, o mesmo verbo é usado, (cf. avoir, do
Francês) apresentando os valores semânticos de ter e de haver, simultaneamente, funcionando em
construções perifrásticas perfectivas, construções de posse e existenciais.
19
fatores semânticos e morfossintáticos como a presença ou ausência das marcas de
concordância e a ordem dos constituintes frásicos para localizar a emergência dos tempos
compostos perfectivos. Neste estudo serão também analisados estes aspectos da gramática
do Português, porém, procuraremos analisar e discutir quais seriam as motivações internas
à gramática que levaram os PTPs a serem reinterpretados como verbos e ter e haver a
serem reanalisados como verbos auxiliares.
Por ora assumimos algumas hipóteses, a começar por (i) o PTP das construções
perifrásticas com ter/haver era um adjetivo e é reinterpretado como verbo nas construções
de tempo composto. Tal hipótese se baseia em Dombrowski (2010), segundo o qual o PTP
das línguas românicas descende do particípio passivo perfeito latino. Segundo o autor, ao
passar para as línguas românicas esta forma participial do Latim passou a ser utilizada nas
construções perifrásticas com haver. Devido à sua origem nominal, muitos verbos em Latim
não apresentavam uma forma correspondente no PTP, de modo que aqueles que
sobreviveram nas línguas românicas adquiriram uma forma de PTP verbal à medida que o
PTP adjetivo começa a desempenhar um papel sintático de maior importância nas
construções de valor perfectivo. Deste modo, procuraremos investigar quais seriam as
motivações e como se deu a mudança por meio da qual os PTPs adjetivos são
reinterpretados como verbos em PA.
Relacionada
à
primeira
hipótese,
postulamos
(ii)
que
pressupõe
que,
simultaneamente à reinterpretação do PTP como verbo, ou mesmo devido à
reinterpretação do PTP como verbo, ter e haver perdem a função de predicadores das
construções perifrásticas, função agora exercida pelo PTP. Uma vez que o PTP passa a
predicador da sentença, selecionando semanticamente o sujeito da construção, ter e haver
perdem esta função, além do valor semântico de posse.
Como consequência da reinterpretação do PTP e da gramaticalização de ter e haver
em auxiliares estipulamos a hipótese (iii), segundo a qual a perda das marcas de
concordância do PTP com o complemento direto de ter e haver e a fixação da ordem na
sequência [V PTP] seriam indícios de que o processo de mudança estaria concluído. Segundo
Roberts & Roussou (2003), uma consequência do processo de reanálise é a perda das
marcas de concordância, quando presentes. Deste modo, esperamos que a fixação da
ordem, associada à perda destas marcas, sejam indícios de que o processo esteja em seu
estágio final. Espera-se que, ao longo do processo, a ordem [ter/haver PTP NP] seja fixada,
20
ao mesmo tempo que as ordens em que há interpolação do complemento decaiam. A
fixação da ordem típica dos tempos compostos seria favorável à não concordância.
Por fim, estipulamos a hipótese (iv), que pressupõe que o gatilho que levou à
mudança seriam as construções tidas como ambíguas, cujo complemento está no
masculino, singular, uma vez que, segundo Roberts & Roussou, são os dados obscuros e
ambíguos que levam à reanálise. Consideramos também ambíguas todas as construções em
que não é possível precisar se há ou não marcação de concordância, isto é, aquelas que
apresentam pronome substantivo ou interrogativo sem antecedente, bem como
complemento nulo sem antecedente.
Nos próximos capítulos procuraremos aprofundar estas questões, bem como
respondê-las, utilizando como aporte teórico o quadro de gramaticalização de Roberts &
Roussou (2003), baseado na Teoria de Princípios e Parâmetros em sua versão do Programa
Minimalista (CHOMSKY 1995, 2000), que será apresentado no capítulo 2, a seguir.
1.3 Resumo
O percurso apresentado pela literatura linguística que aborda a formação dos
tempos compostos em Português pode ser resumido da seguinte forma: em geral, assumese que as construções perifrásticas de ter/haver + PTP tiveram origem no presente
perfectivo de verbos transitivos ou nas formas de particípio passivo do Latim. Tais
construções deram origem, nas línguas românicas, a construções formadas primeiramente
por habere e, posteriormente, por tenere + PTP.
Inicialmente as construções perifrásticas de ter/haver + PTP eram construções
transitivas que expressavam valor de posse. Nestes contextos ter e haver selecionavam
como complemento uma SC formada por um NP e um PTP adjetivo, sendo, portanto,
construções transitivas-predicativas. Após um processo de mudança frequentemente
tratado como um caso de gramaticalização (cf. RIBEIRO 1993; VIOTTI 1998; ALMEIDA 2006;
MEDEIROS 2013) ter e haver sofrem um processo de perda de estrutura temática e de
conteúdo semântico, tornando-se verbos auxiliares. Paralelamente o PTP que compõe este
tipo de construção é reinterpretado como um verbo, passando a ser o predicador das
21
estruturas perifrásticas. A estas mudanças associa-se a emergência dos tempos compostos
em Português.
Em geral, a literatura considera a perda das marcas morfológicas de concordância
do PTP com o complemento de ter e haver como um indicador do surgimento dos tempos
compostos perfectivos. Associado a isto a fixação da ordem em [ter/haver PTP] também é
um marcador da emergência deste tempo verbal em Português.
Com base no que se expôs neste capítulo, foram estipuladas algumas questões, que
guiarão a análise que será feita no capítulo 3. Como hipóteses temos que (i) o PTP presente
nas construções perifrásticas com ter/haver era de caráter adjetivo e é reinterpretado como
verbo nas construções de tempo composto; (ii) simultaneamente à reinterpretação do PTP
como verbo, ou mesmo devido à reinterpretação do PTP como verbo, ter e haver perdem a
função de predicadores das construções perifrásticas, função agora exercida pelo PTP. Uma
vez que o PTP passa a predicador da sentença, selecionando semanticamente o sujeito da
construção, ter e haver perdem esta função, além de seu conteúdo semântico de posse; (iii)
a perda das marcas de concordância do PTP com o complemento direto de ter e haver,
associada à fixação da ordem na sequência [V PTP] seriam indícios de que o processo de
mudança estaria concluído; (iv) o gatilho que levou à mudança seriam as construções tidas
como ambíguas, cujo complemento está no masculino, singular. Para aprofundar e
responder as questões colocadas, passemos ao próximo capítulo, onde será apresentado o
quadro teórico que permitirá a análise proposta, assim como os procedimentos
metodológicos adotados para o tratamento dos dados.
22
Capítulo 2:
Base teórico-metodológica
2.1 Quadro teórico
O quadro teórico que apoia a análise proposta neste estudo é o modelo de
gramaticalização de Roberts & Roussou (2003), doravante R&R, desenvolvido com base na
teoria de Princípios e Parâmetros em sua versão do Programa Minimalista (CHOMSKY 1995,
2000).
A gramaticalização é entendida, neste modelo, como um caso regular de mudança
paramétrica (cf. LIGHTFOOT 1991, 1998) por meio da qual novo material funcional é criado a
partir da reanálise de material lexical ou da reanálise de material funcional já existente. Este
processo resulta em formas mais econômicas e com menos (ou nenhuma) operações de
movimento. A causa da reanálise que subjaz a gramaticalização de verbos plenos a auxiliares
é, justamente, a perda do movimento. Nos termos de Roberts (1992), a gramaticalização
deve ser analisada como a eliminação de uma operação de movimento sintático por meio
da reanálise diacrônica.
Na perspectiva de Roberts & Roussou (2003), para se afirmar que estamos diante
de um caso de gramaticalização, é necessário que se observem duas formas, ainda que
homófonas, que se comportem, sintaticamente, de forma distinta, levando à possibilidade
de duas interpretações diferentes. No caso das construções formadas por ter/haver + PTP,
observamos que a forma exemplificada abaixo em (1), de uma construção com haver + PTP,
apresenta duas possíveis interpretações, (a) e (b), o que lhe garante dois estatutos
categoriais diferentes:
(1)
“E se pella uentura o s(er)uo uendudo auya feyto alguu mal ou alguu dano, o que o
(con)parou, se o non sabia, torneo aaquel d(e) que o (con)parou e receba seu preço”.
(FR13-019; século 13)
23
No caso de (1) estamos diante de uma construção que apresenta, superficialmente,
uma única forma, mas que dá margem a duas interpretações distintas. Em (a), temos uma
leitura em que o verbo haver é um verbo pleno e seleciona uma SC [feyto alguu mal ou
alguu dano], composta por um complemento e um PTP de caráter modificador. Nesta
primeira interpretação, a leitura que se tem é a de que o sujeito da construção, [o seruo
uendudo], possui, ou há, algum mal ou dano e que este mal ou dano está feito. Em (b),
interpretamos haver como um verbo auxiliar e o PTP como um verbo, o que nos permite a
seguinte leitura: o servo vendido fez algum mal ou algum dano.
No modelo de mudança proposto por Roberts & Roussou (2003) seriam casos que
dão margem a mais de uma interpretação, como (1), o gatilho para o processo de
gramaticalização. Ao considerar a mudança como um caso comum de mudança
paramétrica, são as evidências ambíguas que irão desencadear o processo de
gramaticalização no período de aquisição da linguagem de uma geração para a outra.
Os objetivos deste capítulo são os que seguem. Primeiramente, será apresentada a
teoria dos Princípios e Parâmetros em sua versão do Programa Minimalista e os aspectos
teóricos sobre a gramaticalização. Na seção seguinte, serão descritos os procedimentos
metodológicos utilizados na pesquisa.
2.1.2 A teoria dos Princípios e Parâmetros na versão do Programa
Minimalista (CHOMSKY 1995, 2000)
A Teoria de Princípios e Parâmetros (cf. CHOMSKY 1981, 1995, 2000), pressupõe
que todo indivíduo é dotado de uma capacidade mental inata, a chamada Faculdade da
Linguagem, na qual está incluída uma Gramática Universal (doravante GU11). No primeiro
modelo proposto por Chomsky (1981), a GU é um mecanismo formado por uma série de
princípios rígidos e invariáveis, comuns a todas as línguas, e opções paramétricas abertas,
relacionadas a esses princípios, cujos valores devem ser fixados em cada língua. Em sua
versão do Programa Minimalista (cf. CHOMSKY 1995, 2000), a Teoria de Princípios e
Parâmetros sofre algumas modificações, a partir do que os parâmetros passam a ser vistos
como propriedades de núcleos gramaticais disponíveis no léxico de cada língua.
11
Em inglês UG, universal grammar.
24
No modelo de Chomsky (1995, 2000), a gramática de uma língua, isto é, a Língua- I,
é constituída de um léxico, um sistema computacional e dois níveis de representação –
Forma Lógica 12 (FL) e Forma Fonética 13 (FF) – que fazem interface com os sistemas
conceptual-intencional (C-I) e articulatório-perceptual (A-P). A arquitetura da gramática
proposta pelo Programa Minimalista é, portanto, a seguinte:
Figura 1: Modelo de gramática do Programa Minimalista (CHOMSKY 1995, 2000).
O léxico de uma língua é compreendido por um conjunto de traços fonológicos,
sintáticos e semânticos de itens lexicais e funcionais. Os traços que compõem categorias
como nome (N), adjetivo (A), verbo (V) e algumas preposições (P), que são capazes de
selecionar semanticamente (s-seleção) seus argumentos e atribuir-lhes papel temático, são
os elementos entendidos como material lexical. Os elementos que formam o que se
entende como material funcional são os traços de categorias que pertencem a uma classe
fechada de elementos e estabelecem uma relação com seu complemento diferente da
relação estabelecida pelos núcleos lexicais, uma vez que selecionam argumentos tendo em
vista apenas sua categoria (c-seleção). Outra distinção importante no que respeita à
caracterização desses elementos é a presença ou não de conteúdo descritivo. As categorias
funcionais, diferentemente das categorias lexicais, não apresentam conteúdo descritivo,
contendo apenas informações sobre as propriedades gramaticais de seus elementos (como,
por exemplo, número, gênero e caso), não apresentando, necessariamente, conteúdo
fonológico. Como categorias funcionais podem ser citadas, por exemplo, as categorias
Determinante (D), Tempo (T) e Complementizador (C). Do mesmo modo que as categorias
lexicais, os núcleos das categorias funcionais encabeçam os constituintes da estrutura, nos
12
13
Em inglês LF, logical form.
Em inglês PF, phonetic form.
25
moldes da Teoria X-barra14. Assim, da mesma forma que NP, VP, AP e PP são projeções
máximas dos núcleos N°, V°, A° e P°, respectivamente, DP, TP e CP são também as projeções
máximas dos núcleos D°, T° e C° respectivamente, apresentando, na representação
sintagmática, uma posição de complemento e uma de especificador, como se exemplifica
abaixo, na estrutura em que X é um núcleo lexical ou funcional.
Figura 2: Modelo de projeção sintagmática
O processo de derivação sintática tem início por uma operação chamada de
Numeração que prepara, a partir do léxico, os itens linguísticos que serão utilizados. A
segunda etapa é conhecida como sintaxe visível ou explícita (overt), isto é, a construção de
objetos sintáticos, realizada pelo sistema computacional, a partir dos itens do léxico
disponibilizados pela Numeração. A essa etapa segue o Spell-Out, momento em que os
traços fonológicos são enviados à FF para a interpretação fonética. Os traços semânticos,
por sua vez, podem ser encaminhados diretamente, depois de Spell-Out, para FL. Outra
possibilidade é que, após Spell-Out, ainda haja sintaxe, dessa vez não-visível, ou implícita
(covert), antes que o material seja enviado para FL para a interpretação semântica. Para
que a derivação sintática aconteça, atuam, sobre os itens lexicais, operações sintáticas como
Selecionar (select), Concatenar (merge) e AGREE/Mover (AGREE/move), responsáveis por
combinar recursivamente os elementos do léxico, de modo a formar uma estrutura
hierárquica. A operação Selecionar seleciona um item disponibilizado na Numeração que
entrará na derivação e pode ser aplicada quantas vezes forem necessárias de acordo com o
número de elementos disponibilizados pela Numeração. Para combinar os elementos
selecionados, a operação Concatenar entra em ação, concatenando dois elementos lexicais
ou um núcleo a algum objeto sintático já formado. Essas duas operações – Selecionar e
14
O quadro mais recente para as representações sintagmáticas (bare phrase structure, cf. Chomsky 1995,
2000) poderia ser aqui utilizado. No entanto, nesta Dissertação optamos por utilizar o modelo clássico da
Teoria X-Barra (CHOMSKY 1981).
26
Concatenar – são necessárias para que a derivação aconteça e não são custosas do ponto de
vista da economia gramatical. Por outro lado, as operações Agree/Mover implicam custos
ao sistema computacional, uma vez que, para que aconteçam, é necessário que antes tenha
operado uma operação de Concatenar, e são utilizadas para que determinados traços,
denominados não-interpretáveis, sejam valorados no decorrer da derivação.
Como se pode observar por meio das operações sintáticas apresentadas acima, a
noção de economia está presente no Programa Minimalista. Os Princípios de Economia são
aplicados tanto às representações quanto às derivações. A mesma noção é importante no
modelo de gramaticalização de R&R, como veremos mais adiante.
Em relação à aplicação dos Princípios de Economia às derivações, a operação
Concatenar é menos custosa que a operação Mover. Assim, existem alguns princípios que
regularam a atuação de operações de movimento mais custosas à gramática, como o menor
esforço (least effort strategy), o movimento mais curto15 e o último recurso (a aplicação da
operação de movimento só ocorre quando não há outra operação menos custosa
disponível). Outro princípio seria a procrastinação, em que o movimento ocorre somente
em FL. Esses princípios pertencem à gramática de qualquer língua natural.
No modelo Minimalista, assim como em versões anteriores da Teoria, a diferença
entre as línguas é explicada com base na noção de parâmetros. No modelo de Chomsky
(1981), em que se adota uma concepção binária ([+] ou [-]) para os parâmetros, estes
podem ser marcados para um ou outro valor, sendo positivamente ou negativamente
marcados. Por exemplo, o Princípio da Projeção Estendida16 se refere ao fato de todas as
sentenças apresentarem um sujeito. A este Princípio está relacionado um Parâmetro que
determina se o sujeito deve ser realizado foneticamente ou não, ao menos no que respeita
as sentenças finitas. Esse Parâmetro, denominado Parâmetro do Sujeito Nulo17, seria
marcado, por exemplo, negativamente para o inglês e positivamente para o italiano.
No quadro do Programa Minimalista, Chomsky propõe que o conceito de
parâmetro seja direcionado para as propriedades dos núcleos funcionais, sendo, por isso,
restrito ao léxico. O tratamento dado às categorias funcionais passa a ser o tratamento dado
15
Operações de movimento simples são preferíveis às complexas. Deste modo, movimentos de menor esforço
e mais curtos são preferíveis aos de maior esforço e mais longos.
16
EPP, do inglês Extended Projection Principle
17
Em inglês, pro-drop Parameter
27
aos traços gramaticais presentes nessas categorias. Esses itens estão disponíveis no léxico
assim como os itens lexicais plenos. Neste modelo, os núcleos funcionais estão associados a
traços morfológicos que devem ser checados e apresentam a propriedade de desencadear
movimentos. Considerando novamente o Parâmetro do Sujeito Nulo, nesta nova
abordagem o núcleo funcional AgrS (núcleo do sintagma de Concordância) responsável pela
concordância do sujeito passa a ser parametrizado. Se AgrS é suficientemente rico para
licenciar e identificar sujeitos nulos, têm-se línguas como o italiano; por outro lado, se AgrS
não possui essas propriedades, têm-se línguas como o inglês (cf. ROBERTS e ROUSSOU
2003).
A nova abordagem dos parâmetros permite reduzir a variação entre línguas em
termos das propriedades dos núcleos funcionais. Por exemplo, em relação às línguas que se
diferenciam em termos de morfologia flexional, em uma determinada língua, um núcleo
funcional F apresenta uma forma visível em FF ao passo que em outra língua não. No que
respeita às línguas que se diferenciam em relação a ordem de constituintes, em uma
determinada língua, um núcleo funcional F é capaz de atrair outros materiais e, assim,
desencadear movimentos, ao passo que em outras línguas esse processo não ocorre (cf.
CHOMSKY 1995, 2000).
As subseções seguintes tratarão do fenômeno da gramaticalização primeiramente
em uma perspectiva geral e, em seguida, no modelo de R&R, inserido no quadro da Teoria
de Princípios e Parâmetros em sua versão do Programa Minimalista (CHOMSKY 1995, 2000).
2.1.3. O fenômeno da gramaticalização
O termo gramaticalização foi introduzido primeiramente por Meillet (1912 cf.
ROBERTS & ROUSSOU 2003) para descrever o desenvolvimento de novo material funcional a
partir de material lexical já existente. Segundo Batllori et al. (2005), o termo se refere aos
processos de mudança categorial e desbotamento semântico pelo qual alguns itens lexicais
passam durante o processo de evolução e mudança linguística. Segundo os autores,
elementos que antes estabeleciam relações temáticas perdem parcialmente esta
característica, transformando-se em elementos funcionais como clíticos ou afixos flexionais.
O fenômeno da gramaticalização tem sido compreendido de maneiras diversas, a
depender da perspectiva de gramática e de língua levada em consideração. Na perspectiva
28
funcionalista, em que a língua é analisada levando em conta o seu uso, a gramaticalização é
considerada um processo motivado por questões semântico-pragmáticas (cf. HOPPER &
TRAUGOTT 1993). A mudança linguística é, pois, tratada como sendo impulsionada por
fatores cognitivos extra-linguísticos, levando-se em conta que as propriedades das
construções linguísticas podem ser influenciadas por fatores de ordem social. Na
perspectiva funcional, o termo gramaticalização pode ser usado tanto para descrever um
modelo que considera como novas formas gramaticais surgem quanto para um modelo que
investigue o processo a partir do qual itens linguísticos se tornam mais gramaticais ao passar
do tempo (cf. HOPPER & TRAUGOTT 1993), associado à fatores externos à linguagem.
Do ponto de vista da gramática gerativa, as propriedades gramaticais das
expressões linguísticas fornecidas pela documentação histórica (Língua-E) servem para
caracterizar o sistema linguístico internalizado pelo falante (Língua-I). A perspectiva que os
estudos gerativos oferecem para esta questão é assumir que os princípios da GU podem ser
expressos a partir de algumas opções limitadas que permitem a variação. A faculdade da
linguagem é então vista como um sistema relativamente autônomo, que pode ser
examinado independentemente de outras capacidades cognitivas. A natureza da capacidade
linguística cognitiva não se apoia em seu uso, apesar de a capacidade de linguagem ser,
naturalmente, o que suporta a comunicação e a expressão dos pensamentos. A maior crítica
do funcionalismo ao modelo formal de gramaticalização é que este só lida com o fenômeno
da reanálise (um aspecto particular da gramaticalização) e não explica a questão da
gradualidade, argumentando que a perspectiva gerativa só captura mudanças abruptas.
Contudo, alguns estudos gerativistas procuraram contrapor esta crítica. Por exemplo, os
trabalho de Whitman (2000 cf. BATLLORI ET AL. 2005) e R&R (2006) propõem uma análise
minimalista de mudança sintática em que a reanálise é tida como apenas um dos
mecanismos envolvidos na gramaticalização. A ênfase destes modelos está em como e por
que as gramáticas podem mudar no processo de aquisição de linguagem. Neste caso a
gramaticalização não é tratada como um fenômeno linguístico relacionado a fatores
extralinguísticos, mas como um caso regular de mudança paramétrica (cf. ROBERTS &
ROUSSOU 2003). No quadro gerativista a questão de a mudança ser gradual ou abrupta vem
sendo resolvido com base nos conceitos de Língua-I, em que a mudança só pode ser
abrupta, e de Língua-E, em que a mudança segue um caminho gradual.
29
Kroch (1989, 1994, 2000), em relação à questão da mudança abrupta e gradual,
oferece uma proposta (double-base hypothesis) que dá conta da variação sincrônica e
diacrônica, entre falantes individuais. A hipótese propõe que os falantes podem adquirir
mais de uma gramática, simultaneamente. Estas gramáticas, em competição, podem
resultar em casos de diglossia interna, o que explica a variação dentro de um mesmo
período de tempo e nos mesmos documentos escritos. Seguindo a mesma linha, Lightfoot
(2003) distingue mudança gramatical (gramatical change) de mudança de gramática
(gramar change). A primeira seria a consequência de um conjunto de fatores relativos ao
uso da linguagem, enquanto a segunda estaria diretamente relacionada à base da aquisição
da linguagem. Além disso, as mudanças gramaticais estão relacionadas a Língua-E, enquanto
as mudanças de gramática se relacionam à Língua-I.
Roberts (1992) define a gramaticalização em termos de uma mudança categorial,
isto é, a mudança de uma categoria lexical para uma categoria funcional, acompanhada de
um processo de desbotamento semântico (semantic bleaching). No que respeita aos dois
tipos de categorias, Roberts assume que as categorias funcionais são aquelas que não
assinam papel temático e, dentre as categorias lexicais, há uma distinção entre aquelas que
podem atribuir papel temático e as que não podem. Deste modo, existem verbos plenos,
gerados em V, que atribuem papel temático; verbos auxiliares, também gerados em V, que
não atribuem papel temático; e auxiliares funcionais, que são gerados em I.
Roberts explica a gramaticalização em termos de uma Reanálise Diacrônica,
processo em que uma categoria lexical, como, por exemplo, V, passa a uma categoria
funcional I, implicando uma simplificação estrutural: a estrutura em que antes V se movia
para I é reanalisada como uma estrutura operacionalmente menos custosa que a estrutura
anterior, em que V é concatenado diretamente em I.
O processo de Reanálise Diacrônica está relacionado à aquisição da linguagem, pois
pressupõe uma relação entre as gramáticas de gerações diferentes: numa gramática G, uma
sentença S tem a estrutura E; numa gramática G’, subsequente a G, a mesma sentença S
tem uma estrutura E’, que é diferente de E. Interpretada desta maneira, a gramaticalização
deve ser entendida como a eliminação de um passo da operação de movimento. A
eliminação de um movimento sintático é motivada pelo fato de que estruturas mais simples,
isto é, aquelas com menor número de posições na cadeia, são preferíveis a estruturas mais
complexas. Essa preferência se dá a uma estratégia de aquisição, a Lei do Menor Esforço
30
(Least Effort Strategy), segundo a qual crianças em processo de aquisição de linguagem dão
preferência às representações que contêm cadeias com menores quantidades de elos.
Em proposta alternativa à de Roberts (1992), Viotti (1998), propõe que a
gramaticalização ocorre quando um elemento lexical pleno passa por um processo de
esvaziamento semântico a partir do qual não é mais capaz de estabelecer uma relação
predicativa com seus argumentos; isto é, a relação entre esse elemento e seus argumentos
deixa de ser uma relação temática. Como consequência este elemento sofre uma mudança
de categoria, deixando de integrar uma categoria lexical, semanticamente plena e capaz de
estabelecer relações temáticas, e passando a uma categoria funcional, puramente
gramatical. Para Viotti, o desbotamento semântico é a causa da gramaticalização, e não
apenas um fenômeno que lhe acompanha, como ocorre no quadro de Roberts (1992). Na
proposta de Viotti, portanto, a mudança de categoria verificada nos casos de
gramaticalização é uma consequência direta da perda de conteúdo semântico e da aplicação
de princípios gerais que orientam a gramática para estruturas mais simples.
Em outros termos, Roberts sugere que a Least Effort Strategy é responsável por
desencadear a reanálise que provoca a mudança de uma categoria lexical para uma
categoria funcional. Alternativamente, Viotti propõe que um fenômeno semântico, o
semantic bleaching, esvazia uma categoria lexical de sua capacidade de estabelecer relações
temáticas, e, em consequência disso, essa categoria passa a ser reanalisada como uma
categoria funcional distinta.
No caso particular dos verbos ter e haver, Viotti sugere que o verbo haver se
transformou em uma categoria funcional, e o verbo ter está também em processo de
reanálise diacrônica, pois a perda de conteúdo semântico que esses verbos sofreram e vêm
sofrendo ao longo de sua história é suficiente para que eles atinjam uma etapa em que são
gerados diretamente em I, como uma categoria funcional. Isso ocorreria, pois, à medida que
uma categoria lexical perde a capacidade de atribuir papel temático a seus argumentos, a
necessidade de ela ser projetada na parte mais encaixada da estrutura é desfeita, uma vez
que esta é justamente a parte em que se estabelecem as relações temáticas. Assim sendo,
tais elementos poderão ser projetados diretamente nas posições mais altas da estrutura, e,
assim, satisfazer condições gerais de economia, evitando operações custosas de
movimento.
31
A subseção seguinte seguirá tratando do fenômeno da gramaticalização, mais
especificamente, do modelo de mudança sintática proposto por Roberts & Roussou (2003).
2.1.4. O modelo de gramaticalização de Roberts & Roussou (2003)
Como visto anteriormente, no quadro teórico de Princípios e Parâmetros (cf.
CHOMSKY 1981, 1995, 2000), todo indivíduo é dotado de uma capacidade inata de
aprendizagem de uma língua e de uma UG que contém uma série de princípios fixos. O
processo de aquisição da linguagem é tido como uma consequência da interação entre essa
capacidade mental e o input linguístico disponibilizado no período de aquisição, que se
refere à Língua-E da geração a qual os aprendizes serão expostos. A figura abaixo ilustra
como se dá o processo de aquisição, como base no modelo de Chomsky (1981, 1995, 2000).
Figura 3: Processo de aquisição da linguagem no quadro da Teoria de Princípios e Parâmetros (CHOMSKY
1981, 1995, 2000).
A Figura acima mostra que uma geração N compartilha elementos de uma mesma
Língua-I, capaz de gerar enunciados. As amostras de Língua-E da geração N servem de input
para que a geração seguinte, N+1, adquira sua Língua-I. O contato dos aprendizes com os
dados linguísticos da geração anterior fará com que estes falantes aprendam o léxico e,
consequentemente, fixem os valores dos parâmetros em questão. Deste modo, a mudança
linguística é entendida como uma mudança na fixação do valor de um determinado
parâmetro, e se dá durante o processo de aquisição da linguagem (cf. LIGHTFOOT 1979,
1991), ocorrendo quando a natureza dos dados linguísticos que servirão de base para a
“fixação” de um parâmetro se torna ambígua para a nova geração, permitindo mais de uma
interpretação. Neste caso, a seleção em favor de um ou outro parâmetro se se dará em
função das representações mais simples.
32
Neste quadro a mudança tem início quando uma população de falantes adquire
uma gramática (Língua-I) que difere em pelo menos um parâmetro da gramática da geração
anterior. Adotando a conceituação de parâmetros de Chomsky (1995, 2000), o modelo de
R&R (2006) propõe um quadro no qual a mudança linguística é correlacionada a alterações
nas propriedades dos núcleos funcionais, podendo ser definida como uma mudança na
realização de núcleos funcionais ou em suas propriedades de atração. Como os parâmetros
são propriedades dos núcleos funcionais e estes estão no léxico, o processo de remarcação
do parâmetro se dará no período de aquisição da linguagem por meio do aprendizado do
léxico.
Com base no quadro teórico da Teoria de Princípios e Parâmetros em sua versão
minimalista (CHOMSKY 1995, 2000), R&R (2003) argumentam que a gramaticalização pode
ser capturada em termos de mudanças nas propriedades dos núcleos funcionais, sendo,
portanto, um caso comum de mudança paramétrica e não uma mudança sintática especial.
Como visto, para os autores, a gramaticalização é entendida como um processo diacrônico
que envolve a criação de material funcional decorrente da reanálise de material lexical ou
criação de novo material funcional por meio da reanálise de material funcional já existente.
Por ser um caso comum de mudança paramétrica, a reanálise, que ocupa lugar central neste
quadro de gramaticalização, ocorre no período de aquisição da linguagem. A aprendizagem
de uma língua, segundo R&R (2003), pode ser descrita em termos de um sistema
computacionalmente conservador, uma vez que prefere representações estruturalmente
mais simples (cf. CLARK e ROBERTS 1993). Observem-se, como exemplo, as representações
abaixo, em que se nota que a estrutura (2) é mais simples que (3), uma vez que em (2) não
ocorrem operações de movimento nem de concatenação e em (3) a concatenação de F a G
resulta em uma estrutura mais complexa:
(2)
G
(3) Modelo de simplificação estrutural (R&R 2003:16)
Quando o gatilho utilizado na aquisição da linguagem for ambíguo, ou seja, quando
a expressão de certo parâmetro não for necessariamente clara e a estrutura gerada por esse
33
parâmetro der abertura para duas interpretações, o falante optará pela representação mais
simples (2), já que as representações com operações de movimento e concatenação são
mais complexas. Em um caso como este, a estrutura de (3) será reanalisada e, portanto,
reinterpretada no período de aquisição pela nova geração de falantes. Como resultado da
reanálise surge uma construção mais simples em termos estruturais, uma vez que a
operação de movimento é eliminada. Como apontam R&R (2003), a reanálise de (2) em (3)
também pode se dar das seguintes formas: (i) o aprendiz pode reanalisar a categoria movida
F como parte do sistema flexional de G. Esse tipo de reanálise gera uma recategorização de
F como elemento flexional; ou (ii) uma categoria XP pode ser reanalisada como núcleo X.
De modo geral a gramaticalização se dá em função do tipo de núcleo em questão,
que pode ser lexical ou funcional. Observe-se a figura abaixo, que ilustra o processo de
gramaticalização, de acordo com R&R (2003), adaptada de Marcotulio (2012:26).
Figura 4: A gramaticalização no quadro de R&R (2003) (MARCOTULIO 2012:26)
Na figura acima, um item lexical qualquer - Fo - é inicialmente gerado no núcleo
lexical X° cuja projeção máxima XP é complemento de um núcleo funcional F°. Este item
sobe, por meio de uma operação de movimento, do núcleo lexical X° para o núcleo
funcional F°. No processo de gramaticalização, essa estrutura é reanalisada e, como
resultado deste processo, o item em questão passa a ser concatenado diretamente no
núcleo funcional F°, eliminando uma operação de movimento e gerando uma estrutura
sintaticamente mais simples, uma vez que o processo de concatenação é operacionalmente
menos custoso que mover. Nesse sentido, a gramaticalização é um processo que elimina o
movimento sintático através de uma reanálise diacrônica, pois o item em questão passa a
ser gerado em uma posição funcional.
34
Perdas de ordem semântica e fonética são geralmente citadas como consequências
do processo de gramaticalização. Uma vez que, na perspectiva de R&R (2003) o resultado do
processo de gramaticalização é uma categoria funcional, a perda semântica e fonológica
como uma consequência da reanálise sintática, se justifica em função das propriedades dos
núcleos funcionais. Como veremos no capítulo seguinte, o processo de mudança que
envolveu os verbos ter e haver em Português resulta em perdas de ordem semântica,
especialmente, uma vez que estes verbos perdem seu conteúdo semântico pleno e
funcionam como verbos auxiliares.
2.2. Metodologia
A apresentação dos procedimentos metodológicos adotados neste trabalho será
feita em três momentos. Inicialmente será descrito o corpus utilizado no estudo, a
justificativa para a sua escolha e o recorte temporal utilizado. Na seção seguinte, 2.2.2, será
discutida a questão da periodização da Língua Portuguesa e definida a proposta de
periodização adotada na pesquisa. Finalmente, a seção 2.2.3 descreve os processos
metodológicos adotados para a recolha, tratamento e análise dos dados.
2.2.1. O corpus
O trabalho com Linguística Histórica demanda um cuidado, por parte do
investigador, com a escolha das fontes utilizadas na pesquisa. Quando trabalhamos com
manuscritos, é necessária a atenção com alguns detalhes como a datação e a autoria dos
textos, o estado de conservação dos documentos, as diferentes versões que se apresentam
para um mesmo documento, sua veracidade em relação ao original etc. Contudo, nem
sempre temos acesso às informações sobre os critérios utilizados para a elaboração da
edição filológica (cf. VAZQUEZ & MARQUES-AGUADO 2012, entre outros).
A alternativa ideal é que o pesquisador trabalhe com manuscritos originais e faça
sua própria edição crítica. Na maioria das vezes, porém, essa alternativa não é viável,
restando ao pesquisador a seleção de edições confiáveis do ponto de vista filológico.
Nesta dissertação optamos por utilizar textos já editados e digitalizados devido à
praticidade de que as ferramentas online dispõem. A vantagem de utilizar um corpus já
editado está na possibilidade de aumentar a gama de documentos para análise e, assim, foi
35
possível obter mais exemplos para respaldar as hipóteses deste estudo. Deste modo,
utilizamos nesta pesquisa o Corpus Informatizado do Português Medieval18(CIPM), um
corpus constituído por pesquisadores da Universidade Nova de Lisboa. A escolha do corpus
se justifica no período histórico e na variedade de textos literários e documentais que a
plataforma abarca, além da confiabilidade da edição dos documentos.
Os textos utilizados como corpus desta Dissertação constam na tabela abaixo, com
suas respectivas fontes originais19.
Texto
Século 13
Testamento de D. Afonso II (TL13)
Fonte: COSTA, Pe. Avelino Jesus da (1979),
Os mais Antigos Documentos Escritos em
Português, Revista Portuguesa de História,
17, pp. 307-321 (dois manuscritos: Lisboa e
Toledo).
Costumes de Santarém (CS13)
Fonte: RODRIGUES, Maria Celeste Matias
(1992). Dos Costumes de Santarém,
Dissertação de Mestrado, Lisboa, F.L.L., pp.
160-251.
Notícias do Torto (NT13)
Fonte: CINTRA, Luís Filipe Lindley (1990),
Boletim de Filologia, vol. xxxi, pp. 37-41
(texto crítico).
Tempos dos Preitos (TP13)
Fonte: FERREIRA, José de Azevedo (ed.) in
Roudil, Jean (1986) Summa de los Neuve
Tiempos de los Pleitos. Édition et étude dune
variation sur un thème, Paris, Klincksieck, pp.
151-169.
18
Ano
1214
1294
1214
1280
Disponível online em http://cipm.fcsh.unl.pt.
Além do CIPM, há um vasto número de corpora digitalizados na internet, entre eles o Corpus Histórico do
Português Tycho-Brahe, disponível em http://www.tycho.iel.unicamp.br/~tycho/corpus; o Corpus
Lexicográfico do Português, disponível em http://clp.dlc.ua.pt/inicio.aspx; o Corpus Eletrónico do CELGA –
Português do Período Clássico, disponível em http://www.uc.pt/uid/celga/recursosonline/cecppc; e o Corpus
do Português, disponível em http://www.cdp.ibilce.unesp.br/corpus.php.
19
As referências das fontes originais podem ser consultadas online na página do CIPM
(http://cipm.fcsh.unl.pt/gencontent.jsp?id=92)
36
Foros de Garvão (FG13)
Fonte: GARVÃO, Maria Helena (ed.) (1992)
Foros de Garvão. Edição e Estudo Linguístico.
Dissertação de Mestrado, Lisboa, f.l.u.l., pp.
65-99.
Textos Notariais (in História do GalegoPortuguês) (TN13)
Fonte: MAIA, Clarinda de Azevedo (1986)
História do Galego-Português, Coimbra, INIC,
pp. 19-295.
Chancelaria de D. Afonso III (CA13)
Fonte: DUARTE, Luiz Fagundes (1986) Os
Documentos em Português da Chancelaria
de D. Afonso III (Edição), Dissertação de
Mestrado, f.l.u.l., pp. 68-29
Foro Real de D. Afonso X (FR13)
Fonte: FERREIRA, José de Azevedo (ed.)
(1987) Afonso X, Foro Real, Lisboa, i.n.i.c.,
pp. 125-309.
Século 14
Crónica de Afonso X (CA14)
Fonte: CINTRA, Luís Filipe Lindley (ed.)
(1951) Crónica Geral de Espanha de 1344,
Lisboa, I.N.C.M.
Foros de Garvão (FG14)
1267-1280
1262-1300
1255
1280
1344
Data desconhecida
Fonte: Garvão, Maria Helena (ed.) (1992)
Foros de Garvão. Edição e Estudo
Linguístico. Dissertação de Mestrado, Lisboa,
f.l.u.l., pp. 65-99.
Textos Notariais (in Clíticos da História do
Português) (CHP14)
1304-1397
Fonte:
MARTINS,, Ana Maria (ed.) (1994)
Clíticos na História do Português - Apêndice
Documental, vol. 2, Dissertação de
Doutoramento, Lisboa.
Textos Notariais (in Documentos Notariais)
(TN14)
1304-1397
Fonte:
MARTINS, Ana Maria (ed.) (2000)
Documentos Notariais dos Séculos XII a XVI.
Edição digitalizada
37
Século 15
Castelo Perigoso (CP15)
Fonte: NETO, João António Santana (ed.)
(1997), Duas Leituras do Tratado Ascético
Místico Castelo Perigoso, Dissertação de
Doutoramento, São Paulo, Faculdade de
Filosofia, Letras eCiências Humanas, USP.
Edição revista por Irene Nunes.
História dos Reis de Portugal (HRP15)
Fonte: CINTRA, Luís Filipe Lindley (ed.)
(1951) Crónica Geral de Espanha de 1344,
Lisboa, I. N. C. M.
Livro da Bem Ensinança do Bem Cavalgar
Toda Sela (LBE15)
Fonte: PIEL, Joseph (ed. crit.) (1944) Livro da
Ensinança de Bem Cavalgar Toda Sela.
Lisboa, Bertrand. Edição digitalizada, revista
por João Dionísio.
Textos Notariais (in História do GalegoPortuguês) (TN15)
Fonte: MAIA, Clarinda de Azevedo (1986)
História do Galego-Português, Coimbra, INIC,
pp. 19-295
Século 16
Crónica dos Reis de Bisnaga (CRB16)
Fonte: LOPES, David (ed.) (1897) Chronica
dos Reis de Bisnaga, Lisboa, Imprensa
Nacional.
Textos Notariais (in Documentos Notariais)
(DN16)
Fonte: MARTINS, Ana Maria (ed.) (2000)
Documentos Notariais dos Séculos XII a XVI.
Edição digitalizada
Textos Notariais (in História do GalegoPortuguês) (HGP16)
Fonte: MAIA, Clarinda de Azevedo (1986)
História do Galego-Português, Coimbra, INIC,
pp. 19-295.
Textos Notariais (in Clíticos da História do
Português) (CHP16)
Fonte: MARTINS, Ana Maria (ed.) (1994)
Data desconhecida
Data desconhecida
1437-1438
1401-1500
Data desconhecida
1504-1548
1502-1516
1504-1548
38
Clíticos na História do Português - Apêndice
Documental, vol. 2, Dissertação de
Doutoramento, Lisboa
Tabela 2: Textos utilizados como corpus distribuídos por século
A divisão dos textos para cada século foi feita de maneira que para cada século
houvesse um número proporcional de palavras, de modo que a obtenção de dados não
fosse influenciada pelo tamanho do corpus. Desta forma, os textos foram selecionados
levando em consideração o número de palavras, a partir do que obtivemos a seguinte
divisão:
Texto
Século 13
Testamento de D. Afonso II (TL13)
Costumes de Santarém (CS13)
Notícias do Torto (NT13)
Tempos dos Preitos (TP13)
Foros de Garvão (FG13)
Textos Notariais (in História do GalegoPortuguês) (TN13)
Chancelaria de D. Afonso III (CA13)
Foro Real de D. Afonso X (FR13)
TOTAL
Século 14
Crónica de Afonso X (CA14)
Foros de Garvão (FG14)
Textos Notariais (in Clíticos da História do
Português) (CHP14)
Textos Notariais (in Documentos Notariais)
(TN14)
TOTAL
Século 15
Castelo Perigoso (CP15)
História dos Reis de Portugal (HRP15)
Livro da Bem Ensinança do Bem Cavalgar
Toda Sela (LBE15)
Textos Notariais (in História do GalegoPortuguês) (TN15)
Número de palavras
1.412
5.450
775
1.588
6.536
29.093
17.629
49.721
112.204
19.261
675
43.648
44.799
108.383
28.055
4.967
38.784
29.873
39
TOTAL
Século 16
Crónica dos Reis de Bisnaga (CRB16)
Textos Notariais (in Documentos Notariais)
(DN16)
Textos Notariais (in História do GalegoPortuguês) (HGP16)
Textos Notariais (in Clíticos da História do
Português) (CHP16)
TOTAL
101.679
43.833
29.136
3.078
29.287
105.334
Tabela 3: Número de palavras do corpus
No corpus montado para este trabalho foram encontradas 326 ocorrências de
construções formadas pelos verbos ter/haver seguidos de PTP. Destas ocorrências, 196
foram de ter + PTP e 130 de haver + PTP. No século 13, foram observadas 62 ocorrências da
construção, sendo 19 de ter e 43 de haver; no século 14, 68 ocorrências, sendo 21 de ter e
47 de haver; no século 15, 88 ocorrências, sendo 50 de ter e 38 de haver, e, finalmente, no
século 16, 108 ocorrências, sendo 106 de ter e 2 de haver.
Em relação ao recorte temporal utilizado para a delimitação do corpus, este se
justifica pelo fenômeno estudado. Os estudos sobre os tempos compostos em Português
levam em conta o período arcaico da língua que, na periodização tradicional, vai do século
13 ao 16. As informações disponíveis na literatura evidenciam que as primeiras construções
perifrásticas com valor perfectivo se encontram no século 13 (cf. MATTOS E SILVA 2002 e o
capítulo seguinte desta Dissertação). A partir de então as evidencias de construções de
tempo composto vão aumentando, até que, nos séculos 14, 15 e 16 suas ocorrências são
mais expressivas (cf. ALMEIDA 2006, MEDEIROS 2013).
A emergência dos tempos compostos em Português marca, ao lado de outros
fenômenos, um importante período de transição na língua. As diferentes propostas de
periodização do Português frequentemente levam em conta esta mudança, mas diferem no
que respeita às perspectivas teóricas utilizadas. De modo a esclarecer a escolha da
periodização utilizada, a seção seguinte trará uma breve discussão das diferentes propostas
de periodização do Português.
40
2.2.3. Sobre a periodização do Português: o recorte temporal
Em relação ao recorte temporal aqui utilizado, como dito anteriormente, serão
utilizados dados dos séculos 13 ao 16. A delimitação temporal se justifica no próprio
fenômeno linguístico estudado, uma vez que a emergência dos tempos compostos é
localizada no período arcaico do Português, na nomenclatura tradicional (cf., entre outros,
ALMEIDA 2006, MATTOS E SILVA 2006).
Entre os estudos tradicionais, com base na língua escrita, a periodização reconhece,
em termos gerais, quatro grandes períodos, contando com o período anterior ao que se
concebe normalmente como Língua Portuguesa: o Português pré-literário, o Português
Arcaico (ou Antigo ou Medieval, a depender do autor), delimitado tradicionalmente desde
os primeiros documentos escritos (que são atribuídos ao século 12 ou 13, cf. MATTOS E
SILVA 2004, 2006) até o século 16; o Português Clássico, uma fase intermediária entre a
língua medieval e a moderna, e o Português Moderno, datado, a depender do autor, do
século 18 ou 19 em diante. Independentemente dos critérios utilizados para tal divisão
(sejam internos ou externos e, dentre estes, de caráter fonológico, morfológico ou sintático)
e das pequenas flutuações na datação da língua decorrentes destes, o século 16 parece ser
a grande fronteira que separa a língua arcaica dos outros períodos. O quadro abaixo,
adaptado de Mattos e Silva (2006), resume as diferentes propostas de periodização para a
história da Língua Portuguesa:
Época
Leite
de Vasconcelos
Até o século 9 (882) Pré-histórico
Até 1.200 aprox. Proto-histórico
(1214-1216)
Até 1385/1420
Português arcaico
Silva Neto
Até 1536/1550
Português comum
Até século 18
Até século 19/20
Português modern
Pré-histórico
Proto-histórico
Trovadoresco
Português
moderno
Pilar Vazquez Lindley Cintra
Cuesta
Pré-literário
Pré-literário
GalegoPortuguês
português
antigo
Português pré- Português
clássico
médio
Português
Português
clássico
clássico
Português
Português
moderno
moderno
Tabela 4: Diferentes propostas para a periodização da Língua Portuguesa (MATTOS E SILVA 2006)
41
O período pré-literário, que precede o Português Arcaico, ou é tratado como um
bloco temporal que vai até o início 1.200 (como o fazem Pilar Vazquez Cuesta e Lindley
Cintra, segundo o quadro acima) ou é subdivido em pré-histórico, quando ainda não se
detectam traços da variante românica do latim vulgar que hoje chamamos Português, e
proto-histórico, situado, em geral, a partir do século 9, quando esses traços já são
detectados nos documentos remanescentes.
O período arcaico é geralmente situado entre os séculos 13 e 16 e, a depender do
autor, dividido em subperíodos. A tabela acima mostra que Silva Neto divide o período
entre Trovadoresco (de aproximadamente 1.200 até 1385/1420) e Português Comum (de
1385/1420 até meados de 1500); Vazquez Cuesta divide o mesmo período entre GalegoPortuguês e Português Pré-Clássico e Lindley Cintra entre Português Antigo e Português
Médio. Note-se que, com exceção de Leite de Vasconcelos, que trata todo o período entre o
século 13 e o 16 como Português Arcaico, os outros autores fazem um corte entre o período
que vai até o século 14 e início do 15 e do século 15 em diante.
A fronteira inicial do Português Arcaico é estabelecida no século 13 por uma razão
simples: é a este século que são atribuídos os primeiros documentos escritos em Português
(MATTOS E SILVA 2006). No entanto, a procedência histórica dos primeiros textos
portugueses é assunto de constante debate. Em sua Gramática Histórica, Said Ali
(1921[1964:18]) já afirma que os mais antigos documentos escritos em português datam do
século 12. Mattos e Silva (2006) debate a questão em artigo que revisita os limites do
Português Arcaico, mostrando que já há novas contribuições no sentido de atribuir os
primeiros textos ao século 12. Todavia, o debate quanto ao primeiro texto escrito em
português ainda continua e não é possível precisar aqui o momento histórico que inaugura
o período arcaico da língua.
Quanto aos limites finais do Português Arcaico, atribui-se o término ao século 16,
pois é neste século que há, nas palavras de Said Ali (1921[1964:19]) um rompimento da
tradição: “são notáveis, sobretudo os escritores quinhentistas por terem ousado romper
com a velha tradição, pondo a linguagem escrita mais de acordo com o falar corrente, que
nessa época se achava bastante diferenciado do falar de dous ou três séculos atrás”. Na
concepção de Mattos e Silva (2006), por outro lado, o limite final da fase arcaica é ainda
uma questão em aberto. Segundo a autora “um limite final para a fase arcaica da língua,
com base em fatos linguísticos, está à espera”, uma vez que a periodização tradicional faz
42
uso de acontecimentos de caráter extralinguístico para marcar o fim do período arcaico. Em
artigo do mesmo ano, entretanto, a autora cita alguns fatores linguísticos que parecem
contribuir para a delimitação final deste período no século 16, tais como a) o
comportamento dos dêiticos demonstrativos, locativos adverbiais e anafóricos, b)
conjunções típicas do português arcaico, c) verbos ser e estar, haver e ter, d) ausência e
emergência do tempo composto, e) alguns dados sobre a ordem sintática. Sobre o aspecto
b, que nos interessa especialmente, a autora afirma que em documentos dos séculos 14 e
15 sempre ocorria a concordância do particípio passado de verbos transitivos com o objeto
direto. Em relação aos outros aspectos Mattos e Silva afirma que poucas das características
analisadas se estendem até a segunda metade do século 16, outras não vão além da
primeira metade do século 15 e há ainda as que desaparecem no fim do século 14. Outros
dados como a colocação dos clíticos, os anafóricos “ende” e “hi” e o comportamento do
vocábulo “homem” oriundos dos trabalhos de Martins (2002), Machado Filho (2004) e
Lopes (2005) (cf. MATTOS E SILVA 2006:108-111), respectivamente, ocorrem em meados do
século 16, o que leva a autora a concluir que este momento, em termos intralinguísticos, é o
melhor para delinear o fim do período arcaico do Português. Todavia, chamamos atenção ao
fato de que, assim como nas propostas apresentadas na Tabela 1, o período entre os
séculos 14 e 15, na análise de Mattos e Silva, é também um momento de mudanças na
língua.
Os períodos que sucedem o Português Arcaico são, segundo os autores citados, ou
divididos em Português Clássico e Português Moderno (como o faz Cuesta e Lindley Cintra)
ou são agrupados em um único grande período chamado de Português Moderno. O período
clássico seria uma fase intermediária entre a língua medieval e a língua moderna, delimitado
pelos autores que utilizam tal nomenclatura entre o século 18 e o 19. O Português
Moderno caracteriza a língua usada a partir do século 19 em diante.
Em relação às diferentes propostas expostas na Tabela 4, Galves (2010:2) chama a
atenção para a questão da nomenclatura utilizada pelos autores mencionados:
“(...) olhemos agora para o termo escolhido por cada um para definir a
segunda parte da primeira fase. Serafim da Silva Neto a chama de
“português comum,” Pilar Vasquez‐Cuesta de “português pré‐clássico” e
Lindley Cintra de “português médio”. (...) É interessante ressaltar o termo
de “português pré‐clássico” proposto por Pilar Vasquez Cuesta. Nele,
temos a ideia inovadora de que se trata de um período que, em lugar de
43
terminar um ciclo, prenuncia o seguinte. É uma inversão de perspectiva,
que deixa de dar ao séc. 16 o valor de limite forte (...)”. Galves (2010:2)
Tal inversão de perspectiva, mencionada pela autora, lança mão da seguinte
discussão: para os estudos tradicionais, um período histórico da língua termina quando uma
dada mudança linguística é concluída. Galves (2010) chama atenção ao fato de Pilar
Vasquez-Cuesta inverter esta perspectiva, uma vez que trata do período pré-clássico como
um período precursor daquele que está por vir, ou seja, o período Clássico. Isto
possivelmente faz alusão ao fato de, já no período pré-clássico ocorrerem indícios de
mudanças que serão concluídas nos séculos seguintes.
Levando em conta uma abordagem que trata a emergência de um novo período da
língua com base no surgimento de novos fenômenos linguísticos, uma proposta distinta, à
luz da Teoria Gerativa, é sugerida por Galves, Namiuti e Paixão de Sousa (2005) e Galves
(2007, 2010), a partir da análise de distintos fenômenos sintáticos como a colocação
pronominal, a interpolação de constituintes na sentença e a ordem sujeito-verbo. Partindo
do conceito de Língua-I e de que um novo período seria aquele que apresenta uma
gramática diferente da do período anterior, ou seja, uma gramática que apresenta valores
diferentes para os parâmetros fixados na gramática da geração anterior (cf. LIGHTFOOT
1991, 1999), as autoras propõem que o Português seja dividido em quatro períodos:
Português Arcaico (dos primeiros documentos até meados do século 14), Português Médio
(até o início do 18), Português Europeu Moderno e Português Brasileiro (que constituem
duas gramáticas distintas a partir do começo do século 18). As evidências sintáticas
consideradas para esta proposta de periodização são resumidas como segue:
a) Português Arcaico: alternância ênclise/próclise, com tendência à ênclise;
possibilidade de não-contiguidade clítico-verbo em afirmativas (interpolação
arcaica); ordem básica VS, apresentando, portanto, sintaxe V2;
b) Português Médio: alternância ênclise/próclise, com tendência à próclise;
possibilidade de não-contiguidade clítico-verbo em afirmativas (interpolação média);
ordem básica VS (sintaxe V2);
c) Português Europeu Moderno: ênclise categórica; obrigatoriedade da contiguidade
clítico-verbo em afirmativas; ordem básica SV.
O critério utilizado por Galves, Namiuti e Paixão de Sousa (2005) e Galves (2007,
2010), baseado em dados linguísticos, isto é, em dados de Lingua-E, seria relevante para
44
esta Dissertação, uma vez que utiliza os mesmos pressupostos teóricos aqui adotados. Ao
trabalharem com o conceito de que a mudança linguística se instaura no processo de
aquisição da linguagem (cf. LIGHTFOOT 1991, 1999), a data de nascimento do autor é levada
em consideração em sua proposta de periodização e não, como as abordagens tradicionais,
a data de elaboração do texto. Contudo, ainda que consideremos esta proposta de
periodização, optamos, nesta Dissertação, por utilizar a proposta tradicional, que considera
os séculos 13 ao 16 como o período dito Arcaico do Português.
Tal opção foi feita em função do corpus utilizado, e da datação adotada no mesmo.
Diferente dos documentos utilizados pelas autoras para sua proposta de periodização, que
levam em conta a data de nascimento dos autores dos documentos, os textos utilizados
nesta pesquisa são datados com base no ano em que foram escritos. Galves, Namiuti e
Paixão de Sousa (2005) e Galves (2007, 2010) utilizam como aporte teórico um modelo de
mudança em que esta ocorre no período de aquisição da linguagem pelo falante. A
mudança ocorre, pois, quando o falante de uma dada geração adquire uma Língua-I
diferente da língua da geração anterior à sua, cuja fala lhe serviu de input. Contudo, quando
se trata de mudança linguística, é necessária a observação da Língua-E para chegar à LínguaI. Para tanto, necessita-se a utilização de corpora.
Uma mudança ocorrida na Língua-I de uma dada população de falantes será visível,
em algum período histórico, nos documentos escritos deixados por esta geração. Deste
modo, quando observamos um certo aspecto linguístico em um documento, que se
comporta de maneira diferente de um documento de data anterior, estamos fazendo uso de
dados da Língua-E – um documento escrito, neste caso – para capturar uma mudança na
Língua-I. Ao utilizar o ano de nascimento dos autores da documentação utilizada como
critério de datação para a periodização do Português, é possível localizar em que época uma
mudança linguística ocorreu. No que concerne esta pesquisa, ainda que que seja possível
sugerir a data de nascimento do autor com base no ano em que o texto foi escrito, optamos
por não fazê-lo, uma vez que alguns documentos não apresentavam o ano exato de sua
escritura. Porém, da mesma maneira que o fazem Galves, Namiuti e Paixão de Sousa (2005)
e Galves (2007, 2010), ainda que os objetivos da pesquisa de base gerativista seja
fundamentado em questões que levem à compreensão do funcionamento da Língua-I e de
sua aquisição, nos utilizamos, aqui, também, da Língua-E para alcançar mudanças ocorridas
na Língua-I.
45
2.2.4. Procedimentos metodológicos
A análise realizada neste estudo foi feita com base na observação e descrição dos
dados encontrados, de acordo com o comportamento das construções estudadas, isto é, se
trata-se de uma construção possessiva formada pelos verbos ter/haver seguidos de PTP ou
se trata-se da construção já gramaticalizada, a de tempo composto.
No que respeita os procedimentos metodológicos adotados na análise quantitativa
desta investigação, foi seguida a metodologia descrita abaixo:
(i)
Coleta dos dados;
(ii)
Codificação dos dados de acordo com os grupos de fatores controlados;
(iii)
Tratamento dos dados pelo programa estatístico-computacional GoldVarb X
(SANKOFF, TAGLIAMONTE e SMITH 2012) para a obtenção dos valores
percentuais das categorias controladas;
(iv)
Descrição dos dados.
A realização da coleta de dados foi feita de forma manual. Após a seleção dos
textos que seriam utilizados como corpus da pesquisa, os mesmos foram lidos
integralmente a fim de encontrar dados empíricos para o trabalho, isto é, construções
participiais com ter e haver tanto em suas formas plenas quanto na forma já gramaticalizada
como auxiliar. Como as construções podiam ocorrer com diversos tipos de verbos no
particípio, além de haver, frequentemente, variação na grafia destes verbos20, optou-se pela
leitura integral dos textos e busca manual dos dados, ao invés de utilizar qualquer tipo de
mecanismo de busca automática. Para garantir que todas as construções que interessassem
à pesquisa fossem encontradas, todos os textos foram lidos repetidas vezes.
Após a recolha, a codificação dos dados das perífrases formadas por ter/haver +
PTP foi realizada de acordo com os grupos de fatores controlados, descritos a seguir:
Tipo de verbo: se a estrutura é formada com o verbo ter ou haver.
a) Ter
20
Por exemplo, para a forma haver foram encontradas as seguintes grafias: aver, aaver, ouve, ouvera,
ouvera~, avia, avja, avya~, hej, ej etc. Para ter, encontraram-se formas como teer, tevessem, te~endo, teve,
tiinha, tinham, tiinha~, tem.Alem disso, não se podia prever com certeza com quais formas participais estes
verbos podiam ocorrer, portanto, optou-se pela busca manual.
46
(...) e d esta´ tomada na~o contente com a vitoria que ate ly tinha alcançada fez
muita gente prestes de pe e de cavalo. (CRB16-001 – Crónica dos Reis de Bisnaga;
século 16)
b) Haver
Este rey dom Afonso, en começo de seu reynado, firmou por tempo certo as
posturas e ave~eças que el rey dom Fernando, seu padre, avya posto con el rey de
Graada. (CA14-001 – Crónica de D. Afonso X; século 14)
Flexão de número do complemento com o qual o PTP concorda/concordaria
a) Singular
El rey do~ Enrryque se escusou, dize~do que el rey do~ Pedro avya perdido o reyno
por suas cruezas e maaos feytos, e que ele fora elegido por todollos prelados,
fidalgos e çidada~aos dos reynos de Castella. (CA14-031 – Crónica de Afonso X;
século 14)
b) Plural
E foy feita co~ condiça~ que el rey d' Arago~ lançasse fora de seu reyno o conde do~
Enrryque e do~ Tello e do Sancho, seus irma~aos, e que el rey de Castela entregasse
todollos castellos que tiinha tomados a el rey d' Arago~. (CA14-030 – Crónica de
Afonso X; século 14)
c) Pronome interrogativo ou substantivo sem antecedente; complemento nulo [Ø]
"Eu nom me guabo que aja cobrado o q(ue) desejo, mes vou semp(re) por acallçar o
gualardom". (CP15-029 – Castelo Perigoso; século 15)
(...) e depois de ter ysto feyto, tiramdo aos costumes de seu pay, e llamçamdo se as
molheres, na~o queremdo saber cousa de seu reynno mais que os viços em que se
delleitava, estava muito d asento nesta cidade. (CRB16-015 – Crónica dos Reis d
Bisnaga; século 16)
E dize~ que [Ø] ouvero~ começo quando se a terra guaanhou aos mouros, que os
home~es começava~ de povorar a terra e fazer algu~us lugares cha~aos, dos quaaes
el rey no~ curava seno~ da justiça. (CA14-041 – Crónica de Afonso X; século 14)
47
Gênero do complemento com o qual o PTP concorda/concordaria
a) Feminino
E os pees bem firmes, dobrados, assy que lhe pareça que tem as estrebeiras filhadas
com elles, baixando os calcanhares, teendo porem em todo hu~u~ geito igual como
ja disse, nom sse desemparando assy no seer da sella que afroxe as pernas e leixe de
firmar os pees. (LBE15-005 – Livro da Ensinança do Bem Cavalgar Toda Sela; século
15)
b) Masculino
costume he q(ue) sse algue~ ten o Mayordomo pegnorado por deuida d'algue~ &
ue~ ao Co~çelho o pegnorado & pede a entrega & q(ue)r ffazer dereyto sse for
reygado q(ue) o entregue~ & ffaça dereyto & sse no~ for areygado no~ lha
entregue~ & sse o algue~ areygar entregue~-no & responda & o q(ue) asy areyga~ o
q(ue) o areyga a´ tal dema~da asy co~me o deuidor. (CS13-002 – Dos Costumes de
Santarém; século 13)
c) Sem gênero (para os casos enumerados na letra c acima)
A est(e) estado viiria asinha quem tevesseesc(ri)pta [Ø] em seu coraçom e se
rrecordasseamehu´de da grande homildade e maravilhossasofrença e infiinda
pobreza de Jh(es)u (Christ)o que morreo em na cruz todo nuu por no´s. (CP15-007 –
Castelo Perigoso; século 15)
Concordância: se o complemento direto do particípio concorda ou não.
a) Com concordância
E se per uentura el rey for d(e)ta~ grande piedade que o queyra leyxar uiuo |e| nono
possa faz(er), ameos que lly saque os ollos q(ue) non ueia o mal que cobijçou a
ffaz(er) e que aya semp(re) uyda amargada e peada. (FR13-001 – Foro Real de
Afonso X; século 13)
b) Sem concordância
Se alguu d(e)mandar outro en iuyzo e o demandador lhy teu(er) forçado algu~a
cousa, ben se pod(e) deffender de lly no~ responder ata que o entrege daq(ui)llo
48
q(ue) lhy teu(er) forçado e non entre en iuyzo cono forçador ameos de seer
entregado. (FR13-004 – Foro Real de Afonso X; século 13)
c) Concordância não aplicável (para os casos enumerados em 3c)
Ora, avees ouvido [?] como ha´ paz com D(eu)s, que hehu~a das #IIII q(ue)
p(er)teenceant(e) q(ue) homem possa seguramente edeficar seu castello. (CP15-006
– Castelo Perigoso; século 15)
Tipo de concordância
a) Gênero
elrey faz muito gramde honrra ao que daa a beijar os pees, porque as ma~os na~o
daa a beijar a nenhu~a pesoa, e asy quoamdo quer contentar os capita~es, ou
pesoas de quem tem recebidos, ou quer receber serviço, da lhe pachari pera suas
pessoas, que he muita honrra (CRB16-061 – Crónica dos Rei de Bisnaga; século 16)
b) Número
(...) las g(r)andes gerras q(ue) ouuo ent(r)e os señor(e)s com(m)o esso meesmo
pl(ey)tos et letigios entre los abbades q(ue) ouuo em este m(osteyr)o moy longos
t(en)pos por lo q(u)al ouuo reçebidas g(r)andes p(er)das et danos (...) (TN15-014 –
Textos Notariais in HGP; século 15)
c) Gênero e número
"Tu a´s, disse elle, avid(os) muit(os) prazer[e]s e ha´s longo tempo husado de tua
voontade e e´s metida em tuas çujasforniguaço~oes. Mas torna-te a mim e eu te
rrecebereidocem[en]t(e)". (CP15-009 – Castelo Periogoso; século 15)
d) Não aplicável (para os casos em que não há concordância)
Hoovo´s, devotas c(re)aturas que avees cuidado da vossa sau´de, esguardaae a
desposiçom do co(r)po do vosso amigo! (CP15-019 – Castelo Perigoso; século 15)
e) Não identificável (para os casos enumerados em 3c)
49
E, veendo os mouros de Xarez que avyam tempo en que lhe el rey non podia fazer
estorvo pera o que elles tiinham pe~sado, cercaron no alcacer da villa Garçia Gomez
Carrilho co~ os que con el estavom. (CA14-016 – Crónica de Afonso X; século 14)
Realização do complemento - Ordem
a) N V PTP21
Que quem em D(eu)s met(e) seu coraçom, D(eu)s po~e o seu em elle e lhe da´ força
e tal coraçom, que ne~hu~a cousa o agrava, que faça por seu |seu| S(e)n(h)or e
Amigo, que a alma e o corpo e o coraçom ha´ dado polloaver em sua companhia.
(CP15-003 – Castelo Perigoso; século 15)
b) V N PTP
E el rey dom Afonsso outorgoulhe esto e deu aaquel rey mouro terra e que vivesse
en toda sa vida, a qual foy esta: o logar d'Algaba que he acerca de Sevilha, con
todollos dereitos que el rey hy avya e con o dizemo do azeite daly; e deulhe a orta de
Sevilha que chama~ a orta del rey; e rendas certas de maravidiis na judarya de
Sevilha e outras cousas en que este rey Abemafomad ouve ma~tiime~to honrrado
en toda sa vida (CA14-013 – Crónica de Afonso X; século 14)
c) V PTP N
E tem afastado outro mays de sy d esta maneyra [...] (CRB16-071 – Crónica dos Reis
de Bisnaga; século 16)
d) Complemento relativizado, pronome interrogativo ou substantivo, CP, InfP
E deulhe este logar de Telhada e outros que avya guaanhados por termo e partio
daly e veosse a Tolledo. (CA14-002 – Crónica de Afonso X; século 14)
e) N nulo
E o sobred(i)to oliual q(ue) out(ro)ssy A uya~ no sobred(i)to val de Roy ve´egas
co~mo p(ar)tem p(e)las sobred(i)tas dyuysoes de suso declaradas por as sobred(i)tas
21
N corresponde ao complemento; V ao verbo (ter ou haver).
50
vinha (e) oli´ual (e) ca~po (e) mato q(ue) lhys Assy os sobred(i)tos P(ri)or (e)
Raçoeyros e~ nom(e) da d(i)ta Eig(re)i´a de sam B(er)tholam(eu) escambhadas (e)
p(e)la g(ui)sa q(ue) suso d(i)to he (e) declarado e~ escambho dadas (e) outo(r)gadas
Auya~, (TN14-011 – Textos Notariais in DN; século 14)
Período: se século 13, 14, 15 ou 16.
a) Século 13
E por istes tortos que li fecer(u~) tem q(u)a a seu plazo quebra~tado e q(u)a li o
deue~ por sanar. (NT13-002 – Notícias do Torto; século 13)
b) Século 14
E leixou Joha~ Fernandez de Fenastrosa por fronteyro e~ Taraçona e outros
cavaleyros e ge~tes pelas vilas e castelos que em Arago~ tiinha tomados. (CA14-026
– Crónica dos Reis de Bisnaga; século 14)
c) Século 15
Ora tornem(os) a nossa mate´ria, que avemosleixada. (CP15-002 – Castelo Perigoso;
século 15)
d) Século 16
(...) e determinamdo a fazer guerra ao rey de Bisnaga, e metello debaixo do seu
senhorio, passou as terras que novamente tinha ganhadas entramdo per as d el rey
de Bisnaga (CRB16-002 – Crónica dos Reis de Bisnaga; século 16)
Uma vez codificados, os dados foram submetidos ao programa estatísticocomputacional GoldVarb X (SANKOFF, TAGLIAMONTE e SMITH 2012) para a obtenção dos
valores percentuais dos grupos de fatores controlados. Após a rodagem dos dados, seguiu a
descrição dos mesmos.
51
3. Capítulo 3:
Análise dos dados
3.1 Apresentação do capítulo
Como visto nos capítulos anteriores desta Dissertação, as perífrases formadas por
ter/haver + PTP eram, até os séculos 14/15 (RIBEIRO 1993; MATTOS E SILVA 2002; ALMEIDA
2006; MEDEIROS 2012) construções transitivas-predicativas em que ter e haver se
comportavam como verbos plenos com valor semântico de posse e selecionavam como
complemento um NP e um PTP de caráter adjetivo. Após uma mudança considerada,
geralmente, como um caso de gramaticalização (RIBEIRO 1993; VIOTTI 1996; ALMEIDA
2006; MEDEIROS 2012), ter e haver passam de verbos plenos a verbos auxiliares e o PTP que
integra este tipo de construções é reinterpretado como um verbo, sendo este o predicador
das estruturas em questão.
Neste capítulo apresentaremos a análise dos dados obtidos neste estudo. Deste
modo, consideraremos a mudança pela qual passaram as construções de ter/haver + PTP
em Português como um caso de gramaticalização, com base no modelo de Roberts &
Roussou (2003), exposto no capítulo anterior. Para tanto, descreveremos o processo de
gramaticalização pelo qual passaram as construções em questão, tratando (i) da passagem
de ter e haver de verbos plenos a verbos auxiliares e (ii) da reinterpretação dos PTPs de
adjetivos a verbos.
O capítulo está organizado como segue. Na seção 3.2, será apresentado o percurso
de ter e haver em direção à auxiliaridade, de acordo com a literatura revista e os dados
obtidos neste estudo; na seção seguinte, 3.3 será feita uma descrição dos PTPs em
Português, desde sua origem até sua integração nos tempos compostos perfectivos do
Português. A seção 3.4 traz evidências quantitativas e qualitativas para a gramaticalização
de ter e haver, discutindo o comportamento destes verbos nas construções em questão, de
acordo com o quadro de gramaticalização adotado, bem como os fatores morfossintáticos
relevantes para a implementação da mudança que resultou na emergência dos tempos
compostos em Português.
52
3.2 Ter e haver de verbos plenos a verbos auxiliares
Os estudos linguísticos frequentemente distinguem três tipos de verbos: (i) verbos
plenos ou principais, (ii) verbos de cópula ou verbos de ligação e (iii) verbos auxiliares.
Duarte (2003) define os três tipos de verbo com base nas relações que estabelecem na
sentença. Segundo a autora, o esquema relacional, isto é, os possíveis padrões de
organização sintática das sentenças de cada frase, depende das propriedades dos verbos
presentes na mesma. Deste modo é possível distinguir três grandes subclasses de verbos,
com base nas propriedades de seleção categorial e semântica de cada item lexical verbal.
Para o presente estudo interessam-nos a descrição dos verbos plenos e a dos verbos
auxiliares dada pela autora.
Os chamados verbos principais ou plenos formam o núcleo semântico de uma
oração. São núcleos lexicais plenos, caracterizados por determinadas propriedades de
seleção semântica (número de argumentos e papeis temáticos correspondentes) e sintática
(categoria de cada argumento e a relação gramatical que assumem dentro da oração). Com
base no número de argumentos que selecionam, os verbos principais podem ser divididos
em transitivos, ditransitivos, transitivos de dois lugares, transitivos de três lugares,
transitivos-predicativos, inergativos, inacusativos e verbos de zero lugares (cf. DUARTE
2003:296-302). Nas construções que interessam à este estudo, ter e haver, antes do
processo de gramaticalização, se comportam como verbos transitivos-predicativos,
selecionando como complemento, categoricamente, uma SC formada por um objeto direto
e um predicativo deste objeto.
Em relação aos verbos auxiliares, Duarte (2003:303) afirma que “as orações em que
ocorrem verbos auxiliares apresentam sequências verbais formadas pelo menos por dois
verbos: o verbo auxiliar e o verbo auxiliado. Uma vez que o português é uma língua núcleoinicial22, o verbo auxiliar precede o verbo auxiliado com que se combina”. Devido ao fato de
não possuírem conteúdo lexical, ao contrário dos verbos plenos, os verbos auxiliares não
apresentam propriedades de seleção semântica. Deste modo, o NP que ocorre com a
22
Dois parâmetros da ordem básica de palavras podem ser fixados no período de aquisição da linguagem pelas
crianças: o parâmetro do núcleo inicial e o parâmetro do núcleo final. Em uma língua de núcleo inicial o
núcleo, i.e., o elemento cujos traços semânticos e formais (como, por exemplo, traços de concordância) são
dominantes, ocorre no início do sintagma. Em línguas de núcleo final este ocorre no final do sintagma. O
Português é classificado como uma língua núcleo inicial, cuja ordem predominante é a sequência SVO.
53
relação gramatical de sujeito em frases com verbos auxiliares faz parte do predicado
organizado em torno do verbo auxiliado. Em construções com verbos auxiliares, o NP sujeito
é selecionado semanticamente pelo verbo auxiliado. Conclui a autora que esta subclasse
verbal se caracteriza por não possuir grade temática e por subcategorizar um complemento
de natureza verbal, um VP.
Castilho (2012) classifica os verbos em verbos plenos, verbos funcionais e verbos
auxiliares. Os verbos ditos plenos são aqueles que funcionam como núcleos da sentença,
selecionando argumentos e atribuindo-lhes papeis temáticos. Os verbos funcionais
representam a classe dos verbos que transferem o papel temático aos constituintes que se
posicionam à sua direita, “reduzindo-se a portadores de marcas morfológicas e
especializando-se na constituição de sentenças apresentacionais, atributivas e equativas”
(CASTILHO 2012:397). Por fim, os verbos auxiliares são os que desempenham papel
semelhante ao dos verbos funcionais, com a diferença de que à sua direita ocorrem verbos
plenos em sua forma nominal, aos quais os auxiliares atribuem categorias de pessoa e
número, funcionando meramente como indicadores de aspecto, tempo, voz e modo.
Segundo o autor, “o fenômeno mais interessante na gramaticalização é a sua
migração de verbo pleno para verbo funcional e deste para verbo auxiliar” (CASTILHO
2012:397). A passagem de verbos plenos a auxiliares pode ser resumida na seguinte escala:
verbo pleno > verbo funcional > verbo auxiliar23
Em relação à passagem de ter e haver de verbos plenos a auxiliares, Castilho (2012)
afirma que, enquanto estes funcionam como verbos plenos com conteúdo semântico de
posse, selecionam um sujeito possuidor e um objeto direto. Segundo o autor, em Latim
tenere (ter) significava “ter em suas mãos, possuir”, enquanto habere (haver) significava “ter
em sua posse, ser dono, guardar”. A gramaticalização de ter/haver em auxiliares de tempo
composto perfectivo ocorre a partir dos contextos em que estes verbos selecionam um
objeto direto seguido de um predicativo deste objeto, expresso por um PTP, isto é, uma SC.
Tal sintaxe tem origem no Latim Vulgar e, segundo o autor, foi atestada também no Latim
Medieval. Observem-se os exemplos abaixo em (1):
(1)
Formação do pretérito perfeito composto (CASTILHO 2012:405)
Habeo epistolam scriptam.
23
Considere-se que a escala proposta não indica uma sequência obrigatória no processo de gramaticalização.
54
No exemplo em (1), habeo exprime sentido de posse, como um verbo pleno. Neste
exemplo, a sentença tem o sentido de tenho uma carta escrita e não tenho escrito uma
carta, portanto uma perífrase de caráter adjetivo. Do ponto de vista sintático, habeo vem
seguido de dois complementos: o objeto direto epistolam e o PTP scriptam:
(1’)
Habeo
epistolam
scriptam. (CASTILHO 2012:406)
Haver (1PS)
carta (acusativo)
escrita (acusativo)
Segundo Castilho (2012), no contexto acima, o PTP scriptam é ambíguo do ponto
de vista sintático, uma vez que pode ser interpretado como verbo ou como adjetivo. Na
primeira interpretação, tem o sentido de uma passiva (a carta foi escrita); na segunda,
expressa um estado (a carta está em um estado de ser escrita). A primeira paráfrase indica
que o processo de escrita da carta se dá no momento presente; a segunda explicita o estado
resultante deste processo. Nos exemplos (1), (1’), o verbo habeo rege a SC com núcleo
adjetival. O sujeito do PTP, neste contexto, funciona como o objeto direto de habeo. De
acordo com o autor, como nos exemplos acima o predicativo concorda com o objeto direto,
eram frequentes no PA e no Português Clássico ocorrências como as do Latim.
Em relação à mudança que resultou nos tempos compostos de valor perfectivo em
Português, Castilho (2012) afirma que estas estruturas passaram a mudar no seguinte ritmo:
fase 1: [verbo + objeto direto + predicativo] > fase 2: [verbo + predicativo + objeto direto],
isto é, tenho uma carta escrita > tenho escrito uma carta.
Na fase 1, o PTP concordava com o objeto direto. Na fase 2, o PTP ocorre adjacente
a ter/haver e perde o traço de concordância com o objeto direto, ocorrendo uma reanálise
da fase 1. Nesta segunda fase, perde-se também o valor semântico de posse e a de “um
presente que se referia ao passado, ganhando-se a noção de um passado que se refere ao
presente” (CASTILHO 2012:406). Segundo o autor, a mudança do enfoque temporal pode
ter resultado na gramaticalização de ter/haver e do PTP: “o valor de tempo presente
procede de ter/haver, que passam a auxiliares; o valor de tempo passado procede do PTP,
que passa a ocupar o núcleo do predicado (...). O Português preservou a noção de passado
que se estende ao presente: tenho dito significa ‘disse’ e ‘continuo dizendo’” (CASTILHO
2012:406-407).
Ao tratar da mudança de ter e haver de verbos plenos a auxiliares, Ribeiro (1993),
com base no modelo de gramaticalização de Roberts (1992) e na tipologia de verbos
locativos de Clark (1976), também propõe que a estrutura básica de ter e haver nas
55
construções perifrásticas com PTP (estendendo sua análise também para as estruturas com
o verbo ser) é constituída por uma SC, formada por um objeto direto e o predicativo deste
objeto.
Em sua análise, Ribeiro (1993) aponta que o particípio latino teve origem em uma
forma puramente adjetival. Vincent (1982 cf. RIBEIRO 1993) destaca que já no Latim Clássico
(e também no Latim Vulgar), habere ocorria em construções participiais em que o PTP
expressava propriedades ou atributos dos nomes e objetos aos quais se associava. Na
concepção de Ribeiro (1993), as construções formadas por habere + PTP, apesar de
envolverem um sentido exclusivamente passivo, não definiam nenhum tipo de relação
temporal com o seu complemento. As perífrases deste tipo serviam para indicar uma
relação aspectual de um evento concluído ou durativo.
Para a autora, nestas construções, habere impunha um traço passivo ao PTP, mas o
agente da passiva estava, geralmente, omisso, o que permitia duas interpretações da
sentença (2), abaixo:
(2)
“in ea provincia pecunias magnas collocatas habent” (Cicero – cf. RIBEIRO 1993: 364)
Em (2) o sujeito de habere pode ou não ser o agente da passiva. Segundo a autora,
o fato de o sujeito de habere e o agente da passiva poderem ter referenciais distintos pode
implicar que habere era um atribuidor de papel temático ao NP sujeito, isto é, um possuidor.
Já o NP complemento pode receber papel temático de tema. Tais conclusões levam a autora
a analisar o verbo habere, nestes tipos de construção, como um verbo pleno que seleciona
um complemento IP contendo um PTP passivo. Em exemplos como (2), habere ainda não
teria sido gramaticalizado como verbo auxiliar aspectual nas construções com PTP do Latim.
Ribeiro (1993) trata a passagem de haver de verbo pleno a auxiliar em termos de
uma Reanálise Diacrônica (RD, cf. ROBERTS 1992). Sua análise se baseia em Lyons (1967,
1968 cf. RIBEIRO 1993) e em Clark (1978), que propõem que as construções existenciais,
locativas e possessivas estão relacionadas, por serem todas originalmente locativas. Tais
construções descrevem a localização de um objeto ou de um ser animado em algum espaço
físico ou na posse de alguém. Deste modo, todas estas construções apresentam um objeto
possuído e um possuidor, este último sendo analisado como um sintagma locativo que
contém o traço +animado. Com base nisto, a autora propõe que ser e haver, por um lado, e
56
ter, por outro, apresentam no PA propriedades distintas nas construções com PTP, sendo
ser e haver verbos auxiliares temporais e ter um verbo que seleciona um complemento
passivo/aspectual.
Como visto acima, Clark (1976) propõe que as construções existenciais, locativas e
possessivas estão relacionadas, pois todas têm como origem comum as construções
locativas. Tal relação se justifica no fato de todas essas construções descreverem a
localização de um objeto ou de um ser animado em um dado espaço físico ou na posse de
alguém. Segundo a autora, as construções exemplificadas abaixo possuem superficialmente
os mesmos constituintes:
(3)
Construções locativas (cf. CLARK 1976:87)
a.
Existencial:
b.
Locativa:
c.
Posse1:
d.
Posse2:
There is a book on the table.
Il y a un livre sur la table.
The book is on the table.
Le livre est sur la table.
Tom has a book.
Jean a un livre.
The book is Tom’s.
Le livre est à Jean.
Para Clark (1976) tanto a quanto b possuem um sintagma nominal (a book/um livre
e the book/le livre) e um sintagma locativo (on the table/sur la table), mas suas ordens de
palavras são diferentes. Do mesmo modo, tanto c quanto d contêm um sintagma nominal
que se refere ao objeto possuído (a book/um livre e the book/le livre) e um sintagma
locativo na forma de um possuidor (Tom). Cada um destes constituintes é usado para
descrever a localização de um objeto, seja em um espaço físico (a e b), seja na possessão de
um indivíduo (c e d).
A proposta de Clark (1976) se estende aos verbos que compõem as construções
locativas, que atuam também como auxiliares nas construções perifrásticas em geral.
Segundo Guéron (1986) e Kato & Nascimento (1990), ambos citados em Ribeiro (1993:356),
os verbos das construções locativas funcionam como verbos inacusativos que selecionam
uma SC, à qual não designam papel temático. Guéron, que estuda o emprego de avoir
(ter/haver) no Francês nas construções existenciais, possessivas e perifrásticas (de tempo
composto), propõe que estas apresentam a mesma estrutura sintática, em que avoir
seleciona como complemento uma SC, formada por dois NPs. Seguindo as proposta de
57
Guéron e Kato e Nascimento, Ribeiro assume que as construções com ser/ter/haver
apresentam a mesma estrutura, representada simplificadamente na Figura (3), abaixo.
Figura 5: Estrutura das construções com ser/ter/haver + PTP em PA (RIBEIRO 1993:357)
Segundo Ribeiro (1993), nas construções existenciais ser/haver selecionam uma SC
com valor semântico aspectual, denotando um estado. Nestas construções, NP1 é um
quantificador existencial e funciona como um operador locativo que licencia o predicado
estrutural, que é o NP2 indefinido que ocorre nestas estruturas, como se observa no
exemplo abaixo de uma construção existencial com haver, retirado de Ribeiro (1993:357):
(5)
E á hi aguas mui frias e mui fremosas
E
[á]
[hi]
[aguas mui frias e mui fremosas]
haver NP1 NP2
Segundo a autora, nas construções existenciais ser e haver podem ser vistos como
auxiliares verbais, por não estarem associados a um papel temático lexical. O traço
LOCATIVO, que é um papel temático secundário, preenchido, no exemplo (5), pelo NP1 hi ou
pelo PTP nas construções possessivas não conta como argumento lexical do verbo.
A diferença essencial entre as construções existenciais e possessivas está no fato de
o operador da estrutura possessiva ser um NP +animado e +afetado. Neste caso o papel
temático pode ser realizado como um clítico dativo, por um complemento preposicional ou
por um NP possuidor da posse. O papel temático BENEFACTIVO (do NP, que porta o traço
+afetado) não é lexicalmente determinado nem obrigatório e, portanto, não conta para o
58
Critério Temático24. Deste modo a atribuição de BENEFACTIVO não altera o estatuto
sintático do verbo nas construções possessivas.
A partir das generalizações de Clark (1976), vistas em (3), acima, Ribeiro (1993)
observa que haver (e também ser) é o verbo das estruturas de posse1 do PA (que seriam as
estruturas de posse com objetos/qualidades imateriais adquiridas vistas em Mattos e Silva
1992, 2002). A ocorrência deste verbo nestas estruturas indica que haver se comporta como
um auxiliar verbal. Neste caso o NP BENEFACTIVO que desempenha o papel de sujeito
nestas construções não é um argumento do verbo, mas um operador que liga o NP2
indefinido. Uma vez que o NP2 não ocupa uma posição temática, ele só pode apresentar
valor referencial se estiver sob domínio de um operador, BENEFACTIVO nas construções
possessivas, e LOCATIVO, nas existenciais.
De acordo com Ribeiro (1993) a única diferença entre ter e haver nas estruturas de
posse1 está no fato de haver ser o verbo prototípico das posses inerentes ou inalienáveis.
Os verbos que ocorrem nas construções de posse1 funcionam como auxiliares funcionais e
não selecionam papeis temáticos primários; deste modo, a autora considera que haver já
funcionava no PA como um auxiliar funcional, ao lado de construções com PTP em que
funcionava como um verbo pleno. Quando ter assume os contextos antes atribuídos à
haver, se gramaticaliza também como auxiliar funcional, passando a operar nos dois tipos
de construção.
Em relação à gramaticalização dos verbos em questão no PA, Ribeiro (1993) afirma
que a reanálise de haver como verbo auxiliar só ocorre quando há a perda da restrição do
traço +transitivo do PTP nas construções perifrásticas perfectivas, isto é, quando haver
passa a ocorrer também com PTP intransitivos e ergativos, o que teria ocorrido no século
15, não sendo a presença ou a ausência de concordância do PTP com o NP complemento um
elemento definidor da emergência dos tempos compostos25. Contudo, diferentemente da
autora, nesta Dissertação consideramos a concordância como um elemento essencial na
24
Resumidamente, o Critério Temático determina que cada NP referencial deve receber um papel temático (cf.
CHOMSKY 1981/1982 apud RIBEIRO 1993).
25
Ribeiro (1993) justifica o fato de a presença ou ausência de concordância não ser um elemento definidor da
emergência dos tempos compostos usando como exemplo o Francês: “os tempos compostos com être + PtP
do francês apresentam até hoje concordância sistemática entre esses dois elementos, assim como algumas das
construções com o auxiliar temporal avoir” (RIBEIRO1993:366).
59
reanálise das estruturas adjetivas como estruturas de tempos compostos. Observem-se os
exemplos em (16), abaixo, retirados de Ribeiro (1993:367):
(6)
a. jumtarsse em magotes a fallar na morte do Comde e cousas que aviam aconteçido
(CDJI, Cap. XIV)
b. omde o Prior com seus irmaãos aviam estomçe chegado (CDJI, Cap. XXXIX)
c. os trautos que antrelle e os de Portugal avia firmados (CDJI, Cap. LVII)
d. dizendo que vira a carta do Comçelho da obra muito de louvor que todos aviam
feita por serviço de Deos e homrra do rreino e de sua pessoa (CDJI, Cap. XLIV)
e. Acabado esto que avees ouvido (CDJI, Cap. XLII)
f. pollas menagees que lhe aviam feitas segumdo nos trautos era comtheudo (CDJI,
Cap. XXXVI)
g. Oo treedor! Vendido nos as! (CDJI, Cap. CII)
Como os exemplos acima mostram, segundo Ribeiro (1993), a RD de aver como
auxiliar temporal não implica que as estruturas com PTP passivo, i.e., aquelas em que o PTP
concorda com o NP complemento, não possam ocorrer na língua, pois a RD, apesar de levar
a uma simplificação estrutural, não necessariamente exclui as construções reanalisadas da
língua, tornando-as apenas menos frequentes. Desse modo, a autora mostra que as duas
construções podem coocorrer: a, b, e, g são construções com PTPs ativos, enquanto c, d, f
parecem ser passivos (adjetivos) ou são ambíguos, permitindo duas leituras. Por exemplo, a
construção em c pode ou ser interpretada como “(alguém) avia firmado tratos entre ele e os
de Portugal” ou como “(alguém) avia os tratos firmados (= os tratos foram firmados) entre
ele e os de Portugal”.
De acordo com Ribeiro (1993), a gramaticalização de haver como auxiliar no PA deu
origem a uma separação lexical em que este verbo sobrevive apenas nas construções de
posses inerentes26 e nas construções existenciais, as quais passa a integrar posteriormente.
Por outro lado ter sobrevive nas construções de posses materiais relacionadas antes a haver
e amplia seu campo de significados para as construções de posses inerentes, ocupando,
portanto, os contextos antes ocupados por haver também nas construções perifrásticas
26
Ribeiro (1993) utiliza a tipologia de Mattos e Silva (1992, 2002) para qualificar os tipos de posse
semanticamente selecionados por ter e haver.
60
perfectivas com PTP. Contudo, como visto acima, existe uma diferença entre as construções
com ter e as com haver + PTP.
Na análise de Ribeiro, ter seleciona um complemento nominal NP e, devido ao fato
de o PTP ser passivo, ter seria capaz de selecionar a voz do particípio. No entanto, nas
construções com ter + PTP, ter não define tempo em relação ao PTP, apesar de definir uma
relação de aspecto, o que a leva a propor que ter, assim como haver, ainda não é auxiliar
nas construções como as em (7), abaixo, retiradas de Ribeiro (1993: 369-170):
(7)
a. a hoste dos godos teve cercada aquela meesma cidade de Parusio per sete anos
continuadamente (DSG 3.14.05)
b. E parando el mentes ao manto que tiinha tendudo antr’os braços (DSG 1.19.13)
c. E a mha cabeça já a el ten metuda na sa boca (DSG 4.36.17)
d. e que lhi mostrasse quen era aquel San Beento que aqueles seus bees tiinha
guardados (DSG 2.31.7)
e. huu gram penedo que nascia hi naturalmente e tiinha todo o logar coberto (DSG
1.13.10)
Ribeiro (1993) propõe, então, que, uma vez que em todos os exemplos acima o NP
complemento de ter é +definido, ter é, nestes contextos, um verbo pleno que seleciona um
NP sujeito e atribui um papel temático ao seu complemento. Deste modo, tanto ter quanto
o PTP têm conteúdo lexical e selecionam os papeis temáticos de seus argumentos. Assim, a
autora propõe que ter seleciona como complemento um IP ou um CP, ao qual atribui papel
temático TEMA. O NP complemento deste tipo de construção seria um argumento
selecionado pelo PTP que, por ser passivo, leva esse NP a ser analisado como um argumento
interno do PTP, exercendo a função sintática de sujeito da cláusula passiva.
Do mesmo modo que ocorre com as construções de haver + PTP, a RD de ter como
auxiliar temporal não elimina da língua as construções em que ter é um verbo pleno e seu
PTP é interpretado como uma passiva. Como visto acima, a motivação da RD de ter como
auxiliar está, segundo Ribeiro (1993:373), no fato de este verbo ocorrer também nas
construções de posse inerente: “os verbos que ocorrem nessas construções funcionam
como auxiliares funcionais, possivelmente gerados em I0. (...) mesmo nas posses1 materiais,
61
geralmente indefinidas, o verbo ter seleciona papeis temáticos secundários. Lembramos que
a não-seleção de papeis temáticos primários é uma característica de auxiliaridade”.
O percurso de ter e haver de verbos plenos a verbos auxiliares envolveu, como
visto acima, perdas de ordem sintática e semântica. Após o processo de gramaticalização,
ter e haver perdem o conteúdo semântico de posse e deixam de funcionar como núcleos
sentenciais, não mais selecionando argumentos externo e interno, nem atribuindo-lhes
papeis temáticos. Esta função é agora exercida pelos verbos no PTP, que passam a funcionar
como os predicadores das sentenças em questão. Ao se gramaticalizarem, ter e haver
passam a ocorrer na ordem fixa auxiliar-auxiliado, isto é, precedendo o PTP e atribuindolhes categorias de pessoa e número, funcionando apenas como indicadores de aspecto,
tempo e modo.
Em relação à motivação da mudança pela qual passaram os verbos em questão,
assumimos, assim como Castilho (2012), que a gramaticalização de ter/haver em auxiliares
de tempo composto perfectivo ocorreu a partir dos contextos em que estes verbos
selecionam como complemento uma SC. A motivação para a gramaticalização
possivelmente se deu devido à reinterpretação do PTP como verbo. Uma vez que este
elemento é reanalisado como uma categoria verbal e, por conta disso, passa a ser o
predicador das construções perifrásticas em questão, ter e haver perdem esta função,
passando a funcionar apenas como verbos auxiliares de tempo composto.
A observação do corpus permitiu acompanhar a mudança de ter e haver em direção
à auxiliaridade. Em um primeiro estágio, ter/haver funcionam como verbos plenos ou
principais, e são o núcleo semântico da oração. Deste modo, nas construções com PTP,
ter/haver selecionam semanticamente o sujeito da oração, de caráter +animado; como
complemento, selecionam uma SC, formada por um objeto direto e um PTP de caráter
adjetivo. Note-se que foram encontradas também construções participiais em que haver
expressava conteúdo existencial, não selecionando, portanto, um argumento externo, como
veremos mais adiante. Observem-se os exemplos abaixo, de construções com ter e haver
plenos:
(8)
E alem de ter esta gente, la tem suas pemsso~is que paga~o a elrey em cada hu~u
anno, tambem elrey tem sua gente hordenada a quem daa soldo, e tem oyto centos
allyfantes de sua pessoa, e quynhemtos cavallos continuadamente na sua estrebarya,e
62
pera estes gastos dos alyfantes e cavallos tem dado as remdas que lhe remde a cidade
de Bisnaga. (CRB16-082; Crónica dos Reis de Bisnaga – século 16)
[el rey] SUJEITO [tem]v [sua gente] OD [hordenada] PREDICATIVO DO OD
(9)
Quem assi se humillda sem fingimento e sem buscar o prazer do mundo e que aja em
si esta dobrada homildadeprofundament(e) no coraçomrreiguadae que a mostre aa de
fora p(er) obras, elleha´ as cavas dobradas p(er)a guardar o castello do coraçom.
(CP15-013; Castelo Perigoso – século 15)
[elle] SUJEITO [há]v [as cavas] OD [dobradas] PREDICATIVO DO OD
Em (8) e (9) se observam construções transitivas-predicativas formadas por ter e
haver plenos. Em (8) ter seleciona como complemento a SC [sua gente hordenada], isto é,
um DP [sua gente] e um PTP que modifica este DP, [hordenada]. Neste caso, ter seleciona
um sujeito que deve ser +animado, [el rey], uma vez que, enquanto verbo pleno com
conteúdo semântico de posse, ter necessita de um argumento externo que seja +animado.
A interpretação dada à este tipo de construção é a de que “o rei possui/tem em seu poder
sua gente, e esta gente é/está ordenada”. Em (9) observamos o mesmo padrão. Na
construção elle há as cavas dobradas o verbo haver, com conteúdo semântico de posse,
seleciona como complemento uma SC formada pelo DP [as cavas] e um modificador
[dobradas]. A estrutura predicativa seleciona, por sua vez, um sujeito de caráter +animado,
[elle]. A interpretação que se dá à esta estrutura é “ele possui cavas e estas cavas são/estão
dobradas”.
Note-se que, em ambas as construções a ordem é SUJEITO – VERBO – N (DP) – PTP.
Contudo, diferentemente do que afirma Castilho (2012), a ordem [V NP PTP] não era a única
ordem do primeiro estágio de mudança, ou, na nomenclatura do autor, da fase 1, uma vez
que a ordem dos constituintes da sentença em PA não era muito fixa, ao menos no que
respeita as construções em análise. Eram possíveis ainda, neste estágio, as ordens [N V PTP]
e [V PTP N]. Por hipótese, temos que as ordens que apresentam a sequência [V PTP] teriam
sido aquelas que engatilharam o processo de reanálise, pois, uma vez que o Português é
uma língua núcleo-inicial, o verbo auxiliar deve preceder o verbo auxiliado com que se
combina nas estruturas de tempo composto. Observem-se os exemplos abaixo:
(10)
Ordem [N V PTP]
63
a) Quando sse cheguava a ora da sua p(re)ciosa mort(e), veo sua madre, que da
espada da ssua paixom a alma avia t(r)espassada. (CP15-021 – Castelo Perigoso;
século 15)
b) E estava na villa o dicto rey Abenmafomad que a tiinha bem basteçida de muytas
viandas e muy boas gentes. (CA14-009 – Crónica de D. Afonso X, século 14)
(11)
Ordem [V PTP N]
a) Isto n(os) he bem figurado no Segundo Liv(r)o dos Rreis, hondehe [e]sc(ri)pto que
Naas Amonites tiinha cerquad(os) os jebes, que erom dos judeus, e rrequererom-lhe
paz.
b) E sse el auia feytas algu~as gaanças, ambos os auoos erde~ ambosd(e) (con)suu
ygalmente as gaaças. (FR13-018 - Foro Real de D. Afonso X, século 13)
No segundo estágio, ou fase, da mudança, há uma construção formada por ter ou
haver, que, por sua vez, funcionam como verbos auxiliares. Nestas construções, os verbos
em questão não mais expressam conteúdo semântico de posse nem funcionam mais como
os predicadores da sentença, papel que passa a ser exercido pelo verbo auxiliado, isto é, o
verbo no PTP. Na construção gramaticalizada, o NP que ocorre com a relação gramatical de
sujeito faz parte do predicado organizado em torno do verbo auxiliado, sendo selecionado
semanticamente pelo PTP. No que respeita à ordem, está é então fixada em [V PTP NP]27;
além disso perdem-se as marcas de concordância do PTP com o complemento. Observem-se
os exemplos abaixo:
(12) E nos Auemos (e) p(ro)metemos a au(er) firme (e) outorgado todalas cousas (e)cada
hu~a ((L014)) delas q(ue) fore~ f(e)ctas pelo d(i)cto nosso p(ro)curador so obligaço~ de
todos nossos be~es (e) do d(i)cto Mon(steiro) (CHP14-005; Textos Notariais in Clíticos
da História de Portugal; século 14)
27
Note-se que, ainda que a ordem prototípica das estruturas de tempo composto perfectivo seja [V PTP],
foram encontrados no corpus ocorrências de estruturas em que não havia concordância entre o PTP e o
complemento, mas com outra ordem, como, por exemplo, a construção seguinte: Despois de ter elrey feito
suas ofertas e sacreficios a seus ydollos, partio da cidade de Bisnaga con toda a sua gente. (CRB16-032 –
Crónica dos Reis de Bisnaga, século 16)
64
[aver]v [firme e outorgado]PTP [todalas cousas]NP
(13) Comuem a saber que porquamto a dita s(enho)ra dona guyomar tem vemdido a Jorge
de sousa q(ue) hora he na India dous moyos (e) meio de trygo da dita fazemda Com
pacto de Retro vemdemdo //(e)// por preço (e) comthia de çemto (e) quaremta (e)
seis mill r(eae)s elle dito s(e)nn(h)or dom amRique ma~dara deposytar em Juizo os
ditos çemto (e) coRemta (e) seis mill r(eae)s pera os aver o dito Jorge de sousa (e)
fficar llyure a dita ffazemda (e) desta maneira os ha ella dita s(enho)ra dona guyomar
por Reçebidos em sy. (DN16-005; Documentos Notariais; século 16)
[tem]v [vendido] PTP [dous moyos e meio de trigo]PTP
Como se pode observar, no exemplo (12), temos o verbo haver seguido de dois
PTPs, sendo um irregular, firme (em oposição a firmado), e um regular, outorgado e um
complemento todas las cousas. Note-se que não é documentada a concordância entre o PTP
e o complemento, evidência de que o PTP não é mais interpretado como um adjetivo, e sim
como um verbo. Como veremos mais adiante, a perda das marcas flexionais de
concordância, quando presentes, é uma consequência do processo de reanálise diacrônica
(cf. Roberts & Roussou 2003). Deste modo, isto, associado à fixação da ordem em [V PTP],
seria uma evidência de que o processo de gramaticalização estivesse já concluído neste
estágio. No exemplo (13) é possível observar o mesmo padrão. Neste caso, o verbo ter vem
seguido do PTP vendido e do complemento masculino, plural dous moyos e meio de trigo.
Da mesma maneira, não há concordância entre o PTP e o complemento e a ordem é fixada
em [V PTP].
Nos dois exemplos apresentados, o verbo auxiliar funciona apenas como um
marcador de pessoa, número, tempo, modo e aspecto. O papel de predicador é agora
delegado aos verbos no PTP, sendo estes os responsáveis por selecionar semanticamente o
sujeito e complemento das estruturas.
Note-se, ainda, que há, entre os dois estágios dados ambíguos em não era possível
precisar se se tratava da construção original ou da estrutura já gramaticalizada. São as
construções em que o complemento é masculino, singular, portanto não é possível afirmar
se há a concordância entre o objeto direto e o PTP ou não, como se pode observar nos
exemplos abaixo.
65
(14) O iffante do~ Joha~, que se chamava rey de Lya~, veo aa obedie~cia del rey do~
Ferna~do e beyjoulhe a ma~ao dhy a pouco. El reyfoy çercar el rey d' Arago~ na vila de
Murça e teveo çercado seys somanas. (CA14-040 – Crónica de Afonso X, século 14)
(15) E el rey dom Afonsso outorgoulhe esto e deu aaquel rey mouro terra e que vivesse en
toda sa vida, a qual foy esta: o logar d'Algaba que he acerca de Sevilha, con todollos
dereitos que el rey hy avya e con o dizemo do azeite daly; e deulhe a orta de Sevilha
que chama~ a orta del rey; e rendas certas de maravidiis na judarya de Sevilha e
outras cousas en que este rey Abemafomad ouve ma~tiime~to honrrado en toda sa
vida. (CA14-013 – Crónica de Afonso X, século 14)
Nas construções exibidas em (14) e (15) não é possível saber se as estruturas se
comportam como estruturas transitivas-predicativas ou como estruturas de tempo
composto, uma vez que o complemento masculino, singular, não permite confirmar se há
marcação ou não de concordância com o PTP. Por hipótese, temos que as construções
ambíguas como as vistas acima tenham impulsionado a gramaticalização de ter e haver.
Assumimos, com base em Lightfoot (1979, 1990, 1998) e R&R (2006) que se o gatilho
utilizado na aquisição for ambíguo, isto é, se a expressão de um determinado parâmetro
não for clara o suficiente e a estrutura produzida por esse parâmetro permitir duas
interpretações estruturais, o falante irá adquirir a representação mais simples. No caso das
construções de ter/haver + PTP, a representação mais simples é a estrutura de tempo
composto, por não apresentar operações de movimento, em comparação com a estrutura
anterior, que apresenta movimento de ter e haver de V para I.
Em termos formais, R&R (2003) explicam a gramaticalização de verbos plenos a
verbos auxiliares como um processo que envolve perda semântica e estrutural. Deste modo,
a passagem de ter e haver de verbos plenos a verbos auxiliares pode ser capturada em dois
passos principais: (1) ter e haver constituíam construções complexas em que se moviam
para I e (2) ter e haver são concatenados diretamente em I, perdendo-se uma operação de
movimento. Observem-se as estruturas abaixo.
66
Figura 6: Estrutura transitiva-predicativa, com movimento de V para I
Na estrutura acima ter e haver são gerados em V e se movem para I para
receberem as marcas flexionais de tempo e modo. O PTP é analisado como um adjetivo que
constitui a SC, modificando o NP. Segundo Roberts (1992) e R&R (2003), a gramaticalização
é um processo que envolve perda de estrutura temática do elemento gramaticalizado com a
consequência de uma possível mudança de categoria de V para I, isto é, uma mudança
categorial de verbo pleno a auxiliar funcional. Nas estruturas como a exemplificada em (16),
ter e haver funcionam como verbos plenos com conteúdo semântico de posse, sendo
gerados, portanto, em V, posição em que são atribuidores de papel temático. Após o
processo de gramaticalização destes verbos, estes são gerados diretamente em I, onde
recebem marcas de flexão. Concomitantemente à gramaticalização de ter e haver o PTP é
reanalisado como um verbo, passando a ser o predicador das construções em questão.
Deste modo, ter e haver sofrem um enfraquecimento de sua grade temática, e passam a ser
gerados diretamente em I, posição dos auxiliares funcionais, como pode ser observado na
estrutura em (8), abaixo.
67
Figura 7: Estrutura de tempo composto
Como dito acima, a reestruturação das construções em questão envolve a perda de
estrutura temática, resultando, nos termos de Roberts (1992), em uma mudança de V para I.
Segundo Roberts (1992:225) a distinção entre auxiliares e verbos principais não pode ser
feita em termos categoriais, ainda que se distingam categorias lexicais de categorias
funcionais, sendo a primeira, geralmente associada aos verbos plenos e a segunda, aos
verbos ditos auxiliares.
Roberts (1992) explica o processo de gramaticalização como sendo a mudança de
um elemento de uma categoria lexical para uma categoria funcional, associada à perda de
conteúdo lexical. Deste modo, diferencia os verbos auxiliares dos verbos plenos em termos
da Teoria Temática, afirmando que a diferença fundamental entre estes verbos está no fato
de os auxiliares não estabelecerem relações temáticas como as de AGENTE, PACIENTE,
BENEFICIÁRIO etc., com seus argumentos, enquanto os verbos plenos o fazem.
Dentro da distinção categorias lexicais e categorias funcionais Roberts (1992) faz,
ainda, uma divisão, segundo a qual dentro da primeira categoria se distinguem verbos
lexicais que atribuem papel temático, por um lado, e verbos que não atribuem papel
temático, por outro. No âmbito das categorias funcionais, há apenas verbos que não
atribuem papel temático. Roberts (1992) faz ainda a distinção entre auxiliares lexicais e
auxiliares funcionais: auxiliares funcionais são membros de I e auxiliares lexicais são
membros de V. Em termos gerais, pode-se afirmar que a diferença entre auxiliares lexicais e
68
funcionais está no fato de auxiliares lexicais se moverem para I (isto é, são gerados em V e
movem-se para I) e os funcionais são gerados diretamente em I. Formalmente a distinção
entre os verbos é como segue:
V[+Ɵ]
- verbo lexical
V[- Ɵ]
- verbo auxiliar lexical
I
- verbo auxiliar funcional/afixo de tempo/agr.
Por hipótese, temos que nas construções com ter e haver + PTP adjetivo, isto é, nas
construções ditas conservadoras, em que o complemento de ter/haver é uma SC, estes
verbos funcionam como verbos plenos, gerados em V, sendo, pois, membros da categoria
de verbos lexicais que assinam papel temático. Quando há a reinterpretação do PTP como
verbo, isto é, quando as perífrases em questão são formadas por ter/haver + PTP de caráter
verbal, ter e haver passam por uma mudança a partir da qual deixam de atribuir papel
temático. Deste modo temos que a reinterpretação do PTP como verbo, associada à fixação
da ordem dos constituintes em Português, tenha sido um elemento importante na
emergência dos tempos compostos perfectivos, uma vez que, ao se tornar predicador da
estrutura, enfraquece a estrutura temática de ter e haver, resultando em sua
gramaticalização como auxiliares funcionais.
Em síntese, é possível resumir a descrição dos verbos ter e haver enquanto verbos
plenos e verbos auxiliares como na Tabela 5 abaixo.
Verbo pleno
Verbo auxiliar
- seleciona semanticamente o sujeito da - não seleciona semanticamente o sujeito da
construção
construção; o sujeito é selecionado pelo
- é gerado em V e se move para I
verbo auxiliado.
- é gerado em I
Tabela 5: Diferença entre verbos plenos e verbos auxiliares
Em síntese, a passagem de ter e haver de verbos plenos a auxiliares envolveu uma
série de mudanças na Gramática do Português. Estes verbos, que antes funcionavam
exclusivamente como verbos plenos com conteúdo semântico de posse, possuíam uma
grade temática, sendo, portanto, predicadores das construções das quais faziam parte. Nas
69
construções perifrásticas vinham, inicialmente, acompanhados de um NP e um PTP de
caráter adjetivo que, ao longo do tempo, foi adquirindo traços verbais. Possivelmente, a
reinterpretação do PTP como verbo, que passa, portanto, a ser o predicador destas
construções, resulta na perda de estrutura temática de ter e haver; concomitantemente
estes verbos perdem conteúdo semântico. As subseções seguintes tratarão da origem e do
comportamento dos PTPs em Português, relacionando sua reinterpretação de adjetivo a
verbo à mudança de ter e haver de verbos plenos a auxiliares.
3.3. Sobre os particípios passados do Latim ao Português
Como visto acima, os PTPs das construções perifrásticas com ter e haver podiam
funcionar como adjetivos nas construções predicativas e como verbos nas construções de
tempo composto perfectivo. Nas primeiras construções, o PTP funcionava como o
predicador do sujeito da SC selecionada por ter e haver, apresentando marcas de flexão de
gênero e número, concordando com o complemento dos verbos principais da sentença. Nas
construções de tempo composto, o PTP funciona como o predicador de toda a sentença,
selecionando os argumentos externo e interno da estrutura e atribuindo-lhes papeis
temáticos. A Tabela 6 abaixo elenca as principais características dos dois tipos de PTP em
questão.
PTP adjetivo
- funciona como um modificador do
complemento do verbo pleno (ter ou
haver);
- apresenta marcas de flexão de gênero e
número;
- concorda com o complemento do verbo
pleno (ter/haver)
- apresenta mobilidade estrutural, não
tendo ordem fixa na sentença.
PTP verbo
- apresenta o resultado de um processo
verbal;
- não apresenta marcas de flexão em pessoa
tempo, número e modo;
- não concorda com o complemento do
verbo pleno (ter/haver);
- não apresenta mobilidade estrutural, tendo
como ordem fixa a sequência [Aux PTP N].
Tabela 6: Diferença entre particípios adjetivos e particípios verbais em construções com ter e haver
Com base nos critérios acima, analisamos o PTP das construções perifrásticas com
ter e haver ora como verbo, ora como adjetivo. Quando analisado como verbo, classificamos
70
a perífrase como sendo de tempo composto perfectivo, ou seja, uma perífrase verbal em
que ter e haver se comportam como verbos auxiliares. Quando o PTP é analisado como
adjetivo, trata-se de uma perífrase em que ter e haver funcionam como verbos plenos,
portanto, não gramaticalizados, selecionando um complemento que é modificado pelo PTP.
Destaque-se que, ainda que ter e haver tenham passado por um processo de mudança por
meio do qual se tornam verbos auxiliares, isto não significa que a estrutura não
gramaticalizada (formada por ter e haver plenos + PTP adjetivo) tenha sido eliminada da
gramática. Esta, mesmo após a gramaticalização, passa a conviver com a estrutura
inovadora, sem, contudo, competir com ela.
A literatura que aborda a origem dos particípios passados desde o Latim até o
Português (assim como as outras línguas românicas)28 destaca que os PTPs em Latim têm
origem em um adjetivo verbal do Indo-Europeu. Segundo Dombrowski (2010), o PTP das
línguas romance descendem do particípio passivo perfeito do Latim, terminado em atus, -a,
-um (amatus, amata, amatum). Segundo o autor, ao passar para as línguas românicas esta
forma de PTP passou a ser usada nas construções de tempo composto perfectivo com
haver, assim como em outras formas verbais perifrásticas.
O PTP representa, geralmente, o resultado de um processo verbal. No entanto,
quando não apresenta categorias verbais de tempo, modo, número e pessoa, e sim as
categorias nominais de gênero e número, o PTP se afasta da classe dos verbos,
aproximando-se dos adjetivos. Devido à sua origem nominal, muitos verbos em Latim não
apresentavam uma forma correspondente no PTP, de modo que “os verbos que
sobreviveram adquiriram um à medida que o particípio passado começou a desempenhar
um papel sintáctico mais importante em construções perfectivas e passivas” (BARREIRO
1998:52).
Segundo Barreiro (1998), os PTPs presentes no Latim Vulgar e os presentes nas
línguas românicas não são os mesmos encontrados no Latim Clássico, a partir do que se
conclui que nem todos os PTPs latinos sobreviveram nas línguas a que deu origem. Nas
línguas românicas, alguns PTPs irregulares desaparecem, ao passo que outros se tornam
mais comuns; concomitantemente, novos PTPs são criados. De acordo com Barreiro
(1998:52) a expansão e a criação de novas formas participiais tem motivos subjacentes:
28
Cf. Barreiro (1998) e Laurent (1995 apud BARREIRO 1998)
71
“(...) os particípios passados acentuados no final de reflexos de -ATUM
(sempre), -ITUM (quase sempre) e -UTUM (normalmente) expandiram-se.
Excepto na Sardenha e no sul de Itália, os reflexos das formas de -u ITUM
como COGNITUM (conhecido) quase que desapareceram. Reflexos de
formas em -TUM depois de uma raíz de consoante final, como FACTUM
(feito), permaneceram populares em italiano e também um pouco em
francês mas sobreviveram apenas em verbos de alta frequência em
romeno, catalão, espanhol e português. Em espanhol e português os tipos
-UTUM já não terminam particípios passados mas proliferam em
adjectivos (muitos deles com sentido pejorativo) como ‘cabeludo,
orelhudo, cabeçudo, narigudo, etc’. Em romeno, reflexos de -UTUM são
quase restritos à marcação de particípio passado. Reflexos do tipo em (s),
como MISSUM (mandado) tornaram-se mais comuns em romeno do que
em latim; alguns gozam de grande popularidade também em italiano. Este
tipo tornou-se menos comum em francês e desapareceu em espanhol e
em português. A principal função do sufixo -IARE do latim oral mais tardio
era derivar verbos factivos a partir de adjectivos e de particípios
passados”. (BARREIRO 1998:52)
Apesar de ser sabido que os PTPs têm origem no Latim e que sua origem provêm de
formas adjetivas, sua evolução desde o Latim até as línguas românicas não é muito clara.
Algumas formas apresentam uma evolução visível ao longo dos séculos, ao passo que outras
têm sua origem desconhecida. Em relação à mudança que estas formas sofreram, sabe-se
que os PTPs passaram por processos em que novas formas emergem, outras formas
desaparecem e, ainda, determinadas formas são recategorizadas. No caso dos PTPs do PA,
que compõem construções perifrásticas ao lado dos verbos ter e haver, assume-se que,
enquanto ter e haver são verbos plenos, ocorrem em construções com PTPs de caráter
adjetivo. Quando ter e haver passam pelo processo de gramaticalização por meio do qual se
tornam verbos auxiliares dos tempos compostos perfectivos, também o PTP é reanalisado e
recategorizado, passando de adjetivo a verbo.
Dombrowski (2010), levando em conta línguas românicas e eslavas, considera cinco
estágios de mudança dos PTPs desde o Latim: (1) no primeiro estágio os PTPs têm
significado puramente participial, isto é, expressando qualidade ou estado; (2) no segundo
estágio coexistem duas formas: uma em que o PTP expressa conteúdo adjetivo e outro em
que o PTP sofreu esvaziamento semântico e é combinado com um auxiliar em construções
perifrásticas, funcionando como marcador perfectivo; (3) os PTPs são usados primariamente
72
como marcadores perfectivos, porém sem serem marcadores temporais; há desbotamento
semântico, ainda que o conteúdo adjetival permaneça em nível lexical; (4) os PTPs começam
a se desenvolver como formas verbais finitas, preservando, simultaneamente, funções nãofinitas; (5) no último estágio de mudança os PTPs evoluem completamente como formas
verbais finitas, ainda que certo conteúdo lexical tenha se preservado. Os primeiros três
estágios de mudança propostos por Dombrowski (2010) interessam à presente pesquisa; os
dois últimos se aplicam às línguas eslavas também analisadas por ele.
No primeiro estágio os PTPs apresentam, exclusivamente, o que o autor chama de
significado participial (participial meaning), funcionando como um adjetivo. Contudo, como
destaca o autor, isto não significa que construções com o PTP já reanalisado como verbo
não possam ocorrer. Deve-se levar em conta que os PTPs das diferentes conjugações podem
ter tido evoluções em tempos diferentes; note-se que isto ocorre em PA: já no século 13 é
possível documentar construções de PTP verbal que convivem com as construções
conservadoras, formadas por um PTP adjetivo. A justificativa para a análise do PTP como um
adjetivo está principalmente no fato de, no Latim, o PTP concordar com o complemento
direto do verbo, como se observa abaixo, em exemplo retirado de Posner (1996:153, cf.
DOMBROWSKI 2010:28):
(18)
habeo litteras
scriptas
have-PRES -1SG letter-ACC .PL write-PPP -ACC .PL
‘I have the letters written.’
‘Eu tenho as cartas escritas’
Segundo o autor é essencial para a análise das construções com PTP considerar os
padrões de concordância. Como é possível observar, o PTP scriptas concorda em número e
caso com litteras, o que seria um indicador de que a gramaticalização da forma participial
scriptas ainda não havia acontecido em Latim.
No segundo estágio de mudança, o PTP adjetivo coexiste com uma forma participial
semanticamente esvaziada e utilizada em construções com auxiliar, em que exerce funções
puramente verbais, não apresentando, portanto, marcas flexionais de concordância com o
complemento. Exatamente por este processo passa o PA, em que inicialmente havia uma
construção formada por ter/haver + PTP cujo sentido era puramente adjetivo, herdado do
73
Latim. Posteriormente, surge uma nova forma em que o PTP se comporta como verbo e é
utilizado com ter e haver já gramaticalizados em auxiliares. Segundo Dombrowski (2010:29),
“this is the best description of modern Romance languages such as Italian, French, and
Spanish. In these languages the use of forms derived from the Latin past passive participle as
participles can be contrasted to their use in periphrastic tense forms29”.
No terceiro estágio, no qual, em nossa interpretação, o Português atualmente se
encontra, os PTPs são utilizados como marcadores temporais perfectivos não finitos, na
nomenclatura do autor, mas também conservam seu uso adjetivo. Deste modo há, em uma
língua que atingiu esta fase, um PTP de caráter verbal, que compõe construções de tempo
composto com valor perfectivo junto com os auxiliares ter/haver30; ao lado desta forma
ocorre outra constituída por um PTP de caráter adjetivo. O quarto e quinto estágios de
mudança (cf. DOMBROWSKI 2010) não se aplicam ao Português e serão, por isso, deixados
de fora desta descrição.
Em relação às construções perifrásticas formadas por ter/haver + PTP em
Português, como visto anteriormente, sabe-se que estas têm origem em uma construção
latina. A forma flexionada do presente perfectivo de verbos transitivos do Latim foi
substituída, em Português e nas línguas românicas em geral, por uma estrutura formada
pelo verbo latino habere (haver) + PTP; posteriormente, ao lado desta construção surge em
Português uma construção semelhante formada com o verbo ter. À formação dos tempos
compostos com valor perfectivo se associam a fixação da ordem dos constituintes
sentenciais e a perda das marcas de concordância do PTP com o complemento antes
selecionado por ter e haver. Mas como se deu a perda das marcas de concordância do PTP
com o complemento?
R&R (2003), assim como Dombrowski (2010), afirmam que um fator crucial, no que
respeita a reanálise, é a perda das marcas flexionais de concordância. Neste caso é possível
afirmar que a reinterpretação do PTP como verbo e a consequente perda das marcas de
concordância estão relacionadas à reanálise de ter e haver são reanalisados como auxiliares.
29
“Esta é a melhor descrição de línguas românicas modernas, tais como o Italiano, o Francês e o Espanhol.
Nessas línguas o uso de formas derivadas do particípio passado passivo latino como particípios pode ser
contrastado ao seu uso em estruturas perifrásticas” [minha tradução]
30
Em línguas que possuem apenas um auxiliar para estes contextos, o mesmo verbo é usado, (cf. avoir, do
Francês) apresentando simultaneamente os valores semânticos de ter e de haver e funcionando em
construções perifrásticas perfectivas, construções de posse e existenciais.
74
Entende-se, pois, que uma análise que leve em conta o caráter do PTP em Português é
necessária para a compreensão da gramaticalização de ter e haver. A seguir vejamos como
se comportam os PTPs no período arcaico do Português e como sua evolução pode se
relacionar à reanálise dos verbos em questão.
3.3.1. O estatuto do particípio passado em Português
O estatuto dos particípios é assunto recorrente em grande parte das gramáticas do
Português. Os PTPs de caráter adjetivo e os de caráter verbal são morfologicamente
idênticos em Português e a distinção semântica entre eles, ainda hoje, é bastante sutil. A
análise do corpus utilizado para esta Dissertação levantou muitas questões em relação à
natureza dos PTPs presentes em construções com ter e haver, uma vez que,
frequentemente, a similaridade semântica das formas participiais dificultou sua
identificação. Observem-se as construções abaixo, formadas pelo verbo ter + PTP e por
haver + PTP, respectivamente.
(19) Lei 73 - costume e´ q(ue) sse eu tenho meu vinho aberto e chega o Relego & mj~
filha~ as medidas ento~ sarrarey a porta da adega & colerey a rama & des alj adea~te
no'-no uenderey sse me no~ au(e)er con os relegueyros & sse o eu no~ q(u)is(er)
uender como q(ue)r q(ue) mi~a cuba fiq(ue) encetada no~-no uenderej se mj~ no~
q(ui)s(er). (CS13-001, Costumes de Santarém, século 13)
(20) El rey do~ Enrryque se escusou, dize~do que el rey do~ Pedro avya perdido o reyno
por suas cruezas e maaos feytos, e que ele fora elegido por todollos prelados, fidalgos
e çidada~aos dos reynos de Castella. (CA14-031, Crónica de Afonso X, século 14)
Em (19) é possível observar uma construção formada por sujeito + verbo (ter) +
PTP, que permite duas interpretações distintas: (i) eu tenho um vinho e este vinho está
aberto, portanto uma construção na qual o PTP exerce uma função de adjetivo, modificando
o complemento de ter, vinho, e (ii) eu abri meu vinho, portanto, uma interpretação em que
ter é um verbo auxiliar e o PTP aberto é um verbo, se caracterizando, pois, como uma
construção de tempo composto.
75
Em (20), na construção formada com haver + PTP, a mesma ambiguidade é
observada, permitindo duas interpretações. Na primeira acepção, haver é um verbo pleno
que seleciona como complemento uma SC (o rei dom Pedro possuía um reino e este reino
está perdido); na segunda interpretação, haver é um verbo auxiliar, sendo o PTP uma forma
verbal, portanto uma construção de tempo composto (o rei dom Pedro perdeu o reino).
As diferentes interpretações para as mesmas construções, como ocorre em (19) e
(20), são permitidas, pois não há marcas flexionais de concordância no PTP que o permitem
ser identificado, com certeza, como um adjetivo ou como um verbo. Uma vez que o
complemento de ambas as construções está no singular, masculino, não se sabe se há
concordância do PTP com os nomes (vinho, reino¸ respectivamente) ou não. Contudo, como
veremos em detalhes mais adiante, a ordem dos constituintes da sentença pode nos dar
evidências do estatuto das sentenças acima.
Em contrapartida, exemplos como (21) e (22), abaixo, deixam claro o caráter
adjetivo do PTP que acompanha ter e haver nas estruturas perifrásticas:
(21) Isto n(os) he bem figurado no Segundo Liv(r)o dos Rreis, honde he [e]sc(ri)pto que
Naas Amonites tiinha cerquad(os) os jebes, que erom dos judeus, e rrequererom-lhe
paz. (CP15-027, Castelo Perigoso, século 15)
(22) E estava na villa o dicto rey Abenmafomad que a tiinha bem basteçida de muytas
viandas e muy boas gentes. (CA14-037, Crónica de D. Afonso X, século 14).
Diferentemente dos exemplos apresentados em (19) e (20), nos exemplos em (21)
e (22) os PTP cerquados e bastecida apresentam marcas explícitas de concordância com os
complementos diretos de ter e haver. Em (21) a concordância em gênero e número de
cerquados com jebes evidencia o caráter adjetivo do PTP, que modifica o complemento
direto de ter, não permitindo uma leitura em que este PTP seja verbo e ter seja um auxiliar.
A única leitura permitida para (21) é a seguinte: Naas Amonites possuía jebes e estes jebes
foram cercados. A construção exibida em (22) dá margem à mesma interpretação, uma vez
que o particípio basteçida concorda com o complemento a (a villa), evidenciando o caráter
modificador do PTP. Do mesmo modo, a leitura que se faz para (22) é a de que o rei
Abenmafomad possuía uma vila e esta vila estava bem abastecida de carnes e gentes.
76
Finalmente, exemplos como (23) e (24), abaixo, evidenciam o caráter verbal do
PTP, permitindo somente uma interpretação. Nos casos exemplificados abaixo, a ausência
de concordância do PTP com o complemento permite identificar estas estruturas como de
tempo composto, isto é, em que ter/haver são verbos auxiliares e o PTP é de caráter verbal.
(23) E fallando da honrra e proveito, longo seria de contar quantos em as guerras d’elrrey,
meu senhor e padre, cuja alma deos aja, e em nas outras ham percalçado grandes
famas, estados e boas gaanças por seerem muyto ajudados desta manha. (LBE15-001,
Livro da Ensinanca do Bem Cavalgar Toda Sela, século 15)
(24) (...) e os lutadores va~o se por junto com a escada, que no meyo d aquella casa estaa,
e tem feyto hu~a eyra gramde de terra solta omde luta~o as molheres solteyras e
baylhadores; (...) (CRB16-081, Crónica dos Reis de Bisnaga, século 16)
Os exemplos acima evidenciam o caráter verbal do PTP uma vez que este não
apresenta marcas flexionais de concordância com o complemento. Em (23), a ausência de
marcas flexionais de gênero e número no PTP com o complemento no plural grandes famas,
estados e gaanças, é uma forte evidência para a conclusão de que o PTP é um verbo,
afastando-se de suas características nominais, e de que ter é um verbo auxiliar, tratando-se,
portanto, de uma construção de tempo composto, cuja única interpretação possível é a de
uma ação concluída: quantos alcançaram grandes famas, estados e bons ganhos. Em (24) a
mesma interpretação – da sequência haver + PTP como tempo composto – é possível, uma
vez que não há marcas explícitas de concordância entre o PTP e o complemento que
justifiquem a interpretação do PTP como adjetivo. Portanto, neste caso, a única
interpretação possível é a seguinte: os lutadores fizeram uma eira grande de terra solta.
Compreender os diferentes estatutos do PTP e, no que respeita esta pesquisa,
identificar em que contextos o PTP é verbo ou adjetivo, se mostrou necessário para o
estudo da emergência dos tempos compostos em Português. Com base em um critério
morfológico – a presença ou a ausência de marcas flexionais de concordância do PTP com o
complemento direto do verbo – é possível identificar a natureza do PTP, em certos
contextos31 ; contudo, somente a observação da ausência ou presença de marcas de
31
Em certos contextos, pois há casos ambíguos como quando o complemento está no singular, masculino.
77
concordância não é suficiente para compreender a mudança pela qual passou o Português
quando da emergência dos tempos compostos perfectivos. Outros critérios foram utilizados
na presente análise, a saber, a formação e a fixação das formas participiais em Português e a
ordem dos constituintes na sentença, que serão assunto dos parágrafos seguintes.
3.3.2. A formação do particípio passado em Português
Em geral as gramáticas classificam o PTP como uma forma verbal que pode ser
usada também como um adjetivo. Rocha Lima (1972:122) o define como uma categoria que
tem “valor e forma de adjetivo: modifica substantivos com os quais concorda em gênero e
número, apresenta o feminino em –a e o plural em –s”. Ao tratar o PTP como uma forma
verbal, as gramáticas, em geral, referem-se ao fato de o PTP poder expressar uma ação
(concluída, no PA e concluída e durativa, no Português Brasileiro Contemporâneo); ao tratalo como adjetivo, referem-se ao fato de o PTP predicar nomes e pronomes, modificando-os.
Em termos morfológicos, o processo de formação dos PTP pode ser descrito,
simplificadamente, como a extração das terminações do infinitivo: -ar, -er e -ir e o acréscimo
das formas -ado (para os verbos terminados em -ar) e -ido (para os verbos terminados em er e -ir), com exceção dos verbos que apresentam um PTP irregular, isto é, formas que
fogem às generalizações acima (aberto, dito, escrito, posto etc).
Alguns verbos apresentam somente a forma regular do PTP, ao passo que outros
apresentam somente a forma irregular; há, ainda, verbos que apresentam duas formas
participiais, uma regular e outra irregular. Em relação aos verbos que apresentam duplo
particípio, chamados também de verbos abundantes (ROCHA LIMA, 1972:169; CUNA &
CINTRAa 1984:441), há, segundo Barreiro (1998:17), “uma certa unanimidade em
reconhecer as formas irregulares como particípios passados adjectivais ou adjectivos
verbais”. Portanto, verbos que possuem duplo particípio, apresentam uma forma regular,
de natureza verbal, e uma forma irregular, de valor adjetivo.
No corpus analisado nesta Dissertação, observou-se que, de modo geral, os PTPs
em PA apresentavam somente uma forma, a regular. Os verbos que hoje apresentam dois
particípios, um verbal e um adjetivo, apresentavam, no PA32, apenas uma forma, a adjetiva,
32
Destaque-se que esta é uma generalização feita com base nos exemplos extraídos do corpus utilizado nesta
pesquisa.
78
ao menos no que respeita às construções com ter e haver no corpus utilizado, como se
observa nos exemplos a seguir. A Tabela 7 compara os verbos com duplo PTP no Português
atual e em PA.
Entregar
Matar/Morrer33
Prender
Português Brasileiro Contemporâneo
Entregado/entregue
Matado/morto
Morrido/morto
Prendido/preso
Português Arcaico
Entregue (~ entrega)
Morto
Preso
Tabela 7: Particípios regulares e irregulares no Português Brasileiro Contemporâneo e no Português Arcaico
Como é possível notar, verbos como entregar, matar, morrer e prender que
apresentam, no Português Contemporâneo, duplo particípio, não o apresentavam em PA,
possuindo, neste período, somente a forma adjetiva, isto é, a do PTP irregular, como se
observam nos exemplos abaixo:
(25)
Entregar
E se teendo a carta entrega morrer, e na uida ou na morte no~ mudar nada
ne~desfaz(er) nenhu~a cousa daquello q(ue) e´ scripto ena carta (...). (FR13-024,
Foros de Garvão, século 13)
(26)
Matar/morrer
Capitullo do que el rey fez despois de ter el rey de Bisnaga morto, e desbaratado.
(CRB16-007 – Crónica dos Reis de Bisnaga; século 16)
(27)
Prender
(...) elles todos era~o mamdados por Narsenayque seu vassallo, ho quoall se fazya
muyto forte e gramde no reyno, e o tinha~o preso, (...). (CRB16-021, Crónica dos
Reis de Bisnaga, século 16)
Wlodek (2003), em relação aos PTPs duplos do Português, afirma que existe uma
diferença mais ou menos nítida quanto à distribuição das formas regulares e irregulares.
Segundo o autor, com exceção de alguns poucos verbos que possuem apenas um PTP forte
33
Os exemplos com o PTP morto são de difícil interpretação, pois dão margem à interpretação tanto como
morrer quanto como matar. Por este motivo foram agrupados em uma única categoria.
79
(irregular), como aberto, feito, dito, vindo, usados em todos os contextos em que podem
aparecer particípios, seja com a função de adjetivo ou como parte das formas verbais
compostas ativas e passivas, as formas irregulares dos PTP duplos geralmente não podem
fazer parte das formas compostas ativas (não sendo admitidas junto com o verbo ter). Como
consequência disso, as seguintes formas compostas são consideradas agramaticais:
(27)
A polícia tinha *preso os assassinos. (WLODEK 2003:52)
(28)
O João tinha *roto as calças. (idem)
Em PA, os verbos que apresentam somente a forma de PTP irregular, como os
apresentados na Tabela 7, evidenciam seu caráter adjetivo ao permitirem construções
formadas por ter ou haver mais o PTP destes verbos com marcas explícitas de concordância:
(29) (...) elle tinha destroydo os primcypaes home~es de seus reyno e mortos seus filhos e
tomadas suas fazemdas, tudo por comselho de seus cunhados por quem elle hera
mamdado. (CRB16-059, Crónica dos Reis de Bisnaga, século 16)
(30) (...) e depois de os ter presos o pay e filhos, estevera~o tres anos em prisa~o, e fez
regedor hu~u filho Codemerade. (CRB16-054, Crónica dos Reis de Bisnaga, século 16).
Ao aplicar o teste de gramaticalidade como o feito por Wlodek (2003), fica evidente
o caráter adjetivo destes PTPs, uma vez que o uso de sua forma verbal gera sentenças
agramaticais:
(31) (...) elle tinha (...) *morto seus filhos (...)
(32) (...) e depois de os ter *preso o pay e filhos (...)
Com base no que foi visto acima e na afirmativa de Barreiro (1998:53), de que os
verbos que sobreviveram a passagem do Latim ao Português, mas não apresentavam uma
forma de PTP, adquiriram uma à medida que o PTP começou a desempenhar um papel
sintático mais importante em construções perfectivas e passivas, sugerimos que os verbos
que possuíam apenas um PTP irregular passam a apresentar um PTP regular após a
gramaticalização de ter/haver ou simultaneamente a esse processo. Deste modo, os verbos
que já apresentavam uma forma de PTP regular, mas ainda assim eram interpretados como
adjetivos, devido à sua origem, foram reanalisados como verbos, alguns apresentando uma
forma homófona para as duas funções. Já os verbos que apresentam formas de PTP
irregular teriam sofrido duas mudanças: (i) aqueles que hoje apresentam duplo PTP
adquirem uma forma nova (de PTP regular), talvez por analogia aos outros verbos, passando
80
a ser, pois, verbos de duplo PTP e (ii) aqueles que no PA e no Português atual apresentam
somente uma forma de PTP (a saber, o PTP irregular), são reinterpretados, passando a ter
duas funções para uma única forma.
Diferentemente dos verbos apresentados acima na Tabela 6, o único verbo que
hoje apresenta duplo particípio e o apresenta também no PA, é pagar, que possui a forma
regular pagado e a irregular, pago. Observem-se os exemplos abaixo em (33) para as formas
participiais de pagar.
(33)
formas participiais de pagar
a) Mes quando homem tem paguado o que deve, entom pode faz(er) e diz(er) o
que q(ui)s(er). (CP15-033 – Castelo Perigoso, século 15)
b) It(em) me deue Afon(so) Yan(e)s, arçip(re)ste de Goyos, d'agora ha tr(e)s an(n)os
q(u)atro ca(r)gas de pan; et deste an(n)o pasado me deue todo o pan do
arçip(re)stado fora ende aq(ue)lo q(ue) mostrar p(er) meus aluaraes q(ue) me ha
pago. (TN15-004 – Textos Notariais, século 15)
c) (...) muytos dos capitae~es d elrey fora~o contar este repouso que elle fez,
[...]aos quoaes respomdeo que muytos hera~o mortos que na~o tinha~o culpa,
que se ho ydallca~olhe tinha feyto allgu~u desprazer que jaa lho tinha pago.
(CRB16-037 – Crónica dos Reis de Bisnaga, século 16.
As poucas ocorrências de pagar no corpus não permitem muitas conclusões. As três
ocorrências de pagar, sejam de formas irregulares ou regulares, ocorrem com
complementos masculino, singular ou com pronome interrogativo, não dando margem,
portanto, para conclusões a esse respeito. Contudo, a maior frequência do PTP irregular em
relação ao PTP regular, permite sugerir que a primeira forma era preferida à segunda.
Com base no fato de que verbos que possuem duplo particípio possuem uma forma
verbal (PTP regular) e uma forma adjetiva (PTP irregular), é possível postular que os
particípios que possuem apenas uma forma irregular, como é o caso dos verbos abrir, dizer,
escrever, fazer, pôr, ver, funcionavam, no PA, como PTPs adjetivos, e não como PTPs
verbais, sendo reanalisados como verbos somente após ou simultaneamente à
gramaticalização de ter/haver como auxiliares, como dito acima. De fato, verbos como dizer
e fazer eram muito frequentes no PA em construções com ter/haver. O verbo fazer, cujo
particípio feito/feita é o mais abundante do corpus, apresenta, de um total de 49 exemplos,
81
28 com concordância. Das ocorrências restantes, 17 são de formas ambíguas, em que não é
possível documentar a concordância, e apenas 4 são de casos em que não há concordância,
a partir do século 14. Observem-se os exemplos abaixo, de ocorrências de verbos de um
único PTP irregular:
Fazer – feito (a, os, as)
Para o verbo fazer foram encontradas 49 ocorrências do PTP deste verbo em
construções perifrásticas com ter/haver. Dentre os 49 dados, 28 são de estruturas em que o
PTP concorda com o complemento, como em (35.a); 17 dados são de estruturas em que a
concordância não pode ser analisada, como em casos em que o complemento está no
masculino, singular (35.b) ou é um pronome substantivo (35.c); por fim, os 4 dados
restantes são de construções em que não há concordância entre o complemento e o PTP,
como em (35.d).
(35)
formas participiais de fazer
a) et no~ nas agoardando, q(ue) o moestei(r)o posa tomar suas casas et cortinas
co~ q(u)antas boas paranças nos y fezeremos et teueremos f(ei)tas et
dema~dar as maas paranças q(ue) y foren f(ei)tas. (TN15-011, Textos Notariais,
século 15)
b) [...] e mete se em hu~u quyntal omde dizem que tem feyto hu~u foguo pequeno
[...] (CRB16-080, Crónica dos Reis de Bisnaga, século 16)
c) Depois de Crisnarao ser alevantado por rey, obedecido em todo seu reyno,
semdo seu regedor Salvatine que tambem o fora de sseu yrma~o Busballrrao,
mamdou llogo a seu sobrinho, filho de Busballrrao, seu yrma~o, e tres yrmaos
seus, a hu~a fortalleza que se chama Cha~o degary, e nella esteve atee que
morreo, e depois de ter ysto feyto pera ssua seguramça. (CRB16-024, Crónica
dos Reis de Bisnaga)
d) E dhy se tornou pera el rey seu padre. E no trezeno a~no do reynado del rey
Enrryque, foy feyta paz antre Castella e Navarraco~ estas co~diço~oes: que el
rey de Navarra lançasse fora os capita~aes ingreses que avya~ feito guerra e
danoe~ Castella e que el rey de Navarra posesse em fieldade vi~ite castellos e~
ma~ao dos castella~aos. (CA14-035, Crónica de Afonso X, século 14)
82
A não concordância do PTP com o complemento foi documentada primeiramente,
no que respeita ao verbo fazer, no século 14, podendo-se localizar, neste período,
construções em que haver é verbo auxiliar e o PTP é de caráter adjetivo. A forma em que há
concordância continua a ser bastante frequente no corpus; quando há a gramaticalização de
ter/haver a estrutura antiga (com PTP adjetivo) permanece na gramática, por se tratar de
uma estrutura diferente (com outra função linguística) da inovadora.
Dizer – dito (a, os, as)
Os exemplos com dito são os com a segunda maior frequência do corpus, somando
18 ocorrências, ficando atrás somente dos PTP de fazer. Dentre as ocorrências de ter/haver
+ PTP de dizer só houve dados com complementos no singular, masculino, portanto, não há
exemplos de concordância explícita com o complemento direto. Todos os exemplos são com
pronomes interrogativos, substantivos e complementos nulos sem antecedente. No século
16, principalmente nas Crónicas dos Reis de Bisnaga, há muitas ocorrências de ter + dito.
Abaixo, alguns exemplos de ocorrências com o PTP de dizer.
(36)
formas participiais de dizer
a) E, por tyrar el rey esta co~tenda, disse, segundo ja seu padre ouvera dito e~
outras cortes: - Os de Toledo fara~ o que lhes eu ma~dar e assy o digo por eles.
(CA14-020, Crónica de D. Afonso X, século 14)
b) Deveis de ssaber que este reyno de Narsymga tem treentos graos, que he de
legoa cada grao de costa, ao lomgo d esta serra que dito tenho (CRB16-063,
Crónica dos Reis de Bisnaga, século 16.
Pôr – posto (a, os, as)
Em relação ao verbo pôr, foram coletados 3 dados de estruturas de ter/haver + o
PTP deste verbo. Das 3 ocorrências, 1 apresenta concordância do PTP com o complemento
(37.a) e 2 não apresentam (37.b), (37.c), sendo que, dentre os exemplos de nãoconcordância, o complemento é masculino, singular, sendo, portanto, ambíguos.
(37)
formas participiais de por
a) Ora, avem(os) postos aas po(r)tas do castello port(eir)os e guardas diligent(e)s,
do que hi ha´: tre^s de vertudes cardeaaes, s(cilicet), forteleza, tenperança e
justiça (CP15-024, Castelo Perigoso, século 15)
83
b) E vemdo el rey de Bisnaga a vontade dos d el rey de Delly, que era na~o partir d
ally sem dar fim aos que demtro na fortalleza comsygo tinha, fez hu~a falla a
todos, pomdo lhe diante a destroyça~o que el rey dos de Dely em seus reynos
feito tinha e que na~o contente com isso ho tinha posto em cerco naquella
fortaleza e logo todos fora~o armados (CRB16-004, Crónica dos Reis de Bisnaga,
século 16)
c) Este rey dom Afonso, en começo de seu reynado, firmou por tempo certo as
posturas e ave~eças que el rey dom Fernando, seu padre, avya posto com el
rey de Graada. (CA14-001, Crónica de Afonso X, século 14)
Escrever – escrito (a, os, as)
Os dados encontrados com o PTP de escrever somam 3 dados sem concordância,
porém dados que apresentam como complemento pronome interrogativo (38.a), (38.b) e
(38.c), e 1 dado com concordância explícita (38.d), totalizando 4 ocorrências:
(38)
formas participiais de escrever
a) A partiço~ que fezere~ os yrmaos ou os parentes daquel q(ue) h(er)dam, no~
seya depoys desfeyta p(er) nenhua maneyra, p(er)o q(ue) no~ aya y escripto, se
poder seer prouado p(er) testimo~has e esto deue seer dos que son d(e) ydade
(con)prida. (FR13-012, Foros Reais, século 13)
b) E os pees devem seer bem firmes nas strebeiras, segundo meu custume, como
tenho scripto onde falley no desvairado cavalgar que as sellas requeriom
segundo suas feiço~o~es. (LBE15-020, Livro da Ensinança do Bem Cavalgar Toda
Sela, século 15)
c)
Ao terceiro, o assessego e a ssoltura se gaanha per saber da manha e husança
della, como ja tenho scripto. (LBE15-026, Livro da Ensinança do Bem Cavalgar
Toda Sela, século 15)
d) Esta pobreza de [e]sp(ri)tohamaquell[e]s a que abasta o que lhes he min[i]strado
de ssuarrellegiom, e todo o que lhe dizem e fazem tomam em pacie^ncia por
amo(r) de D(eu)s.A est(e) estado viiria asinha quem tevesse esc(ri)pta em seu
coraçom
e
se
rrecordasseamehu´de
da
grande
homildade
e
maravilhossasofrença e infiinda pobreza de Jh(es)u (Christ)o que morreo em na
cruz todo nuu por no´s. (CP15-007, Castelo Perigoso, século 15)
84
Abrir – aberto (a, os, as)
Das construções formadas com o PTP do verbo abrir foi encontrada 1 ocorrência
sem concordância (39.a), no século 13, cujo complemento é masculino, singular, portanto,
ambígua, e 2 com concordância (39.b) (39.c), no século 15.
(39)
formas participiais de abrir
(a) Lei 73 - costume e´ q(ue) sse eu tenho meu vinho aberto e chega o Relego &
mj~ filha~ as medidas ento~ sarrarey a porta da adega & colerey a rama & des
alj adea~te no'-no uenderey sse me no~ au(e)er con os relegueyros & sse o eu
no~ q(u)is(er) uender como q(ue)r q(ue) mi~a cuba fiq(ue) encetada no~-no
uenderej se mj~ no~ q(ui)s(er). (CS13-001, Costumes de Santarém, século 13).
b) E outros, ainda que o entendam, assy som forçados de sua condiçom que lhe
nom conssente|m| em aquel ponto que o encontro topa de os teerem abertos.
(LBE15-022, Livro da Ensinança do Bem Cavalgar Toda Sela, século 15)
c) E tanto que errar duas ou tres vezes, por buscar tarde, digam-lhe que se avyse
de buscar cedo, por tal que, nom encontrando per boa vista, encontre per esmo,
e se ventuira ouver d’aver algu~a boa squeença, o acrecentamento do prazer e
da voontade lhe dara´ esforço de teer os olhos abertos aos encontros. (LBE15023, Livro da Ensinança do Bem Cavalgar Toda Sela, século 15)
Ver – visto (a, os, as)
Em relação ao PTP irregular de ver, visto, houve apenas uma ocorrência, sendo esta
no singular, masculino, portanto, não havendo marcas de concordância explícitas.
(40)
formas participiais de ver
a) Estando dom frey Ar(ia)s, abbade do mosteyro de S(an)ta M(ari)a d'Oseyra, et
frey P(edr)o de Lueda, p(r)ior, et o sup(r)ior et çelareyro et esmoleyro et os
out(r)os oficiaas & mo~jes do d(i)to m(osteyr)o, todos juntos en(n)o cap(itu)lo
do d(i)to mosteyro, depoys de avido seu acordo & co~selo et avendo
co~siderado et visto com(m)o este d(i)to mos[t]eyro avia avido moy g(r)andes
p(er)das (...) (TN15-012, Textos Notariais, século 15)
Em relação aos PTP irregulares, estes foram os que ocorreram com maior
frequência entre todos os PTP do corpus, sendo o mais frequente feito e suas flexões,
85
seguido por dito e suas flexões. Em seguida, os que ocorrem com mais frequência são PTP
regulares com terminação em –ado, como ganhado, tomado, cercado e suas flexões.
As formas com e sem concordância dos PTP regulares e irregulares ocorrem em
variação em todo o corpus ao longo dos séculos. Isto se dá, pois a reanálise não pressupõe a
eliminação da forma conservadora da gramática de uma dada língua. Quando tem início a
mudança que gerou os tempos compostos do Português, ter e haver são, inicialmente,
verbos plenos que selecionam como complemento um NP + PTP modificador, sendo esta a
forma conservadora. Após a gramaticalização destes verbos, que passam a auxiliares, e da
reinterpretação dos PTP adjetivos como verbos, surge a forma inovadora, diferente da
anterior. Ao ser reanalisada como outra construção, a primeira, conservadora, não é
eliminada, pois agora consiste em uma estrutura diferente da anterior. A questão da
mudança e da interação das formas inovadoras e conservadoras serão exploradas mais
adiante.
Uma vez diferenciadas as duas formas de PTP, adjetivo e verbal, ficam as questões:
por que o PTP adjetivo é reanalisado como verbo no PA; quais seriam as motivações? Por
que ter/haver são reanalisados como verbos auxiliares?
Por hipótese, assumimos que a mudança por meio da qual surgem os tempos
compostos perfectivos em Português envolvem alguns fatores, a saber, a reinterpretação
dos PTPs como verbos, resultando na perda das marcas flexionais de concordância e na
fixação da ordem dos constituintes. Nas construções em que o PTP funciona como adjetivo
exercendo, portanto, a função de modificador do complemento de ter e de haver, tais
verbos funcionavam como verbos plenos, predicadores e com valor semântico de posse.
Quando o PTP é reinterpretado, nos contextos que darão origem aos tempos compostos,
como verbo, este passa a exercer a função de predicador da sentença, podendo, também
selecionar o papel temático do sujeito da construção. Ao passarem a predicadores da
perífrase verbal, ter e haver perdem esta função, sendo reanalisados como verbos
auxiliares, incapazes de atribuir papel temático ao seu complemento. Tais questões serão
discutidas com mais detalhe na próxima seção.
86
3.4. Evidências para a gramaticalização
Nesta seção procuraremos mostrar evidências em favor da gramaticalização de ter
e haver como auxiliares no PA. Como visto acima, alguns fatores como a reinterpretação do
PTP como verbo, bem como critérios morfossintáticos como a concordância do PTP com o
complemento direto de ter e haver e a ordem dos constituintes na sentença podem ter
favorecido este processo.
A análise do corpus montado para este estudo trouxe resultados interessantes no
que respeita a relação ordem vs concordância. Como será exibido abaixo, certas ordens
favorecem a concordância do PTP com o complemento, ao passo que outras a
desfavorecem. Como foi visto, a ordem dos constituintes da sentença era, no PA,
relativamente livre, no que respeita as construções em questão. Nas construções analisadas,
antes da gramaticalização de ter/haver, o complemento direto do verbo podia preceder,
suceder, estar entre ter/haver e o PTP ou, ainda, ser nulo. Da mesma forma, ter e haver
também podiam suceder ou preceder o particípio.
A ordem mais recorrente no corpus, no que respeita às construções com ter/haver
+ PTP, era, com exceção das construções relativizadas, [V PTP N]. Esta ordem de
constituintes é aquela que irá favorecer a mudança que resultará na emergência dos
tempos compostos, sendo esta a ordem prototípica deste tipo de construção em Português.
Em relação à concordância, esta ordem também se mostrou como aquela que favorece os
contextos em que não há concordância do PTP com o complemento de ter/haver, isto é, tal
ordem de constituintes favorece os contextos de tempo composto perfectivo. Como
veremos em detalhes abaixo, a relação ordem-concordância, concomitante à observação do
estatuto do PTP em Português traz evidências para a formação dos tempos compostos
perfectivos nesta língua.
Esta seção será dividida como segue: primeiramente, descreveremos o
comportamento das construções de ter/haver + PTP em relação ao século; em seguida, será
descrito o comportamento das construções com ter e haver + PTP em relação à ordem, após
o que será descrito seu comportamento em relação à marcação ou não de concordância
entre o PTP e o complemento direto de ter e haver. Posteriormente descreveremos os
resultados relativos ao cruzamento dos dados relativos à concordância e à ordem. Na
subseção seguinte, será descrito o processo de gramaticalização com base em Roberts
87
(1992) e Roberts & Roussou (2003), levando em consideração os pontos exibidos nesta
subseção.
3.4.1. Ter e haver, por século
Os estudos históricos que trataram da emergência e evolução dos tempos
compostos perfectivos em Português em geral afirmam que as construções com ter e haver
+ PTP ocorriam em variação em PA até aproximadamente os séculos 14 e 15. A partir deste
período ter passa a ocorrer com maior frequência que haver, tornando-se, posteriormente,
o verbo prototípico das construções de passado composto em Português.
Ao analisar o percentual de ocorrências de construções perifrásticas com ter e com
haver ao longo dos séculos no corpus montado para este estudo, observamos que os
resultados são semelhantes aos encontrados por Mattos e Silva (1981, 1989, 1992, 2002) no
que respeita à frequência de ter e de haver nas perífrases com PTP ao longo dos séculos.
Assim como nos dados da autora, a análise do corpus desta Dissertação mostrou que as
construções com os dois tipos de verbo ocorrem em variação até o século 14; a partir de
então observa-se uma considerável queda no uso de perífrases com haver e um gradativo
aumento daquelas formadas com ter. Tal resultado corrobora, em parte, a assertiva inicial
de que as construções com haver eram preferidas às com ter, uma vez que, em Latim, o
verbo prototípico para a expressão da posse é habere.
Dos 326 exemplos levantados no corpus, 196 foram de construções com ter + PTP e
130 foram de construções com haver + PTP. Ao observar a mudança cronologicamente,
percebemos observar que as ocorrências com haver decaem ao passo que as com ter
aumentam de forma gradativa, como se observa na Tabela 8 abaixo.
SÉCULO
13
14
15
16
TOTAL
TER
Ocorrências
19
21
50
106
196
Tabela 8: Ter e haver, por século
Percentual
30%
31%
57%
98%
60%
HAVER
Ocorrências
43
47
38
2
130
Percentual
70%
69%
43%
2%
40%
88
No século 13, as ocorrências com ter somavam 30% dos exemplos deste período,
ao passo que 70% destes eram de construções com haver. No século seguinte, os
percentuais são semelhantes, sendo 31% para ter e 69% para haver. No século 15, contudo,
as ocorrências de construções com ter crescem consideravelmente, somando 57% dos
dados para este período, enquanto as construções com haver somam 43%. Finalmente, no
século 16, as ocorrências com ter somam 98% das ocorrências para este século, ao passo
que as estruturas com haver somam apenas 2%. A queda das ocorrências de haver e o
aumento nas construções de ter com PTP podem ser melhor visualizadas no Gráfico 1
abaixo.
Estruturas formadas por ter e haver + PTP, por século
120
100
98
80
70
69
60
57
43
40
30
31
Século 13
Século 14
20
0
TER
Século 15
2
Século 16
HAVER
Gráfico 1: Estruturas formadas por ter e haver, por século
Como se pode observar, no período entre os séculos 13 e 14 os dados de
construções com ter e com haver ocorrem de forma constante, sendo as com haver em
maior proporção, como mostram as linhas paralelas do gráfico. A partir do século 14 as
construções com haver caem consideravelmente, dando espaço para as formadas por ter.
No século 16 as construções com ter são maioria, ao passo que as com haver são raras no
corpus.
Este trabalho não se propôs a fazer uma análise semântica dos complementos das
construções com ter/haver + PTP no corpus. Contudo, o aumento de construções com ter +
PTP no PA é frequentemente relacionado ao fato de ter se associar aos complementos antes
selecionados por haver (cf. RIBEIRO 1993; MATTOS E SILVA 2002; ALMEIDA 2006; COSTA
89
2010). Segundo Costa (2010), as perífrases perfectivas em Português eram, inicialmente,
mais produtivas com o verbo haver, que foi se revelando um verbo semanticamente mais
fraco que ter. A autora afirma que “à medida que a debilitação semântica de habere se
acentuava, tenere ia ganhando espaço e maior aceitação entre os falantes” (COSTA
2010:61), até se tornar o verbo mais produtivo em construções com PTP. Observe-se como
exemplo o trecho abaixo, retirado da Crónica de Afonso X, texto do século 14, em que o
mesmo tipo de complemento menaje~es ocorre primeiramente com ter e, logo após, com
haver, o que sugere que neste período já não havia uma delimitação semântica muito clara
entre os dois verbos.
(41)
El rey dom Afonso, conheçidas as maneiras dos alema~aes e desasperado de cobrar
o inperio, tornousse pera Castela desfazer as menaje~es que tiinha~ feitas a seu
neto do~ Afonso e ma~douas fazer ao iffante do~ Sancho, seu filho. A raynha sua
molher, que era filha del rey do~ James d' Arago~, tomou os filhos do iffante do~
Ferna~do, seus netos, do~ Afonso de Laçerda e do~ Fernando e foysse co~ eles pera
Arago~, dize~do que se temia de os matare~. Dhy e~vyou dizer a el rey do~ Afonso
que desse o reyno de Murcia a seu neto do~ Afonso, e que lhe quytarya a menaje~
que lhe avya~ feita. (CA14-017; CA14-018 – Crónica de Afonso X; século 14)
Por outro lado, ainda que haver perca seu espaço semântico para o verbo ter, que
se torna o verbo prototípico dos tempos compostos, adquire, no PA, outras acepções, como
a significação existencial, contexto posteriormente associado também a ter. Observe-se o
exemplo abaixo, também retirado da Crónica de Afonso X, século 14, em que haver ocorre
em uma construção com PTP, que pode ser interpretada ou como estrutura de posse ou
como estrutura existencial.
(42)
E, nas villas das estremaduras, avya outros foros apartados. (CA14-039 – Crónica de
Afonso X; século 14)
Em (42) as leituras possíveis são (i) Ø havia outros foros apartados e (ii) X havia
outros foros apartados. No caso de (42) classificamos a estrutura como de posse, baseandonos em Avelar & Callou (2007), segundo os quais não há, necessariamente, valor existencial
em sentenças como “tem várias maçãs na geladeira” ou “tem várias calças dentro do
armário” no Português Europeu.
90
As subseções seguintes trarão os resultados obtidos no que respeita a concordância
entre o PTP e o complemento das construções com ter e haver e a ordem dos constituintes
na sentença. Em seguida, descreveremos o processo de gramaticalização de ter e haver com
base nos resultados obtidos e na análise do corpus.
3.4.2. Concordância do PTP com o complemento de ter/haver
As construções formadas com ter/haver + PTP, como visto anteriormente, podiam
exibir ou não marcas de concordância entre o PTP e o complemento direto de ter e haver.
Quando são documentadas marcas flexionais de concordância, interpretamos a perífrase
como uma construção adjetiva, isto é, nestes casos, o PTP é de caráter adjetivo e funciona
como um modificador do complemento de ter e haver. Nestes contextos, ter e haver são
analisados como verbos plenos, com conteúdo semântico de posse, não tendo ainda sofrido
o processo de gramaticalização que os transformam, posteriormente, em verbos auxiliares.
Quando as marcas de concordância não são documentadas, interpretamos a estrutura como
sendo de tempo composto perfectivo, isto é, ter e haver funcionam como verbos auxiliares,
não atribuidores de papel temático, e o PTP é reinterpretado como um verbo, não exibindo
os traços nominais típicos dos adjetivos. Contudo, foram documentados casos considerados
ambíguos, em que o complemento direto de ter e haver é masculino, singular, não sendo
possível, pois, saber se o PTP concorda, de fato, com o complemento dos verbos em
questão.
A análise do corpus, no que respeita à concordância, foi feita da seguinte maneira.
Analisamos os complementos das perífrases com ter/haver + PTP em gênero e número,
podendo este ser masculino, feminino, singular e plural. Deste modo, o complemento podia
concordar em (i) número, (ii) gênero e (iii) gênero e número. Foram controlados ainda os
casos em que a concordância não se aplica, uma vez que o complemento era um pronome
interrogativo ou substantivo ou nulo sem antecedente e, ainda, os casos em que o
complemento estava relativizado. Observem-se abaixo exemplos dos tipos de concordância
analisados no corpus.
91
- Concordância de número
a. Singular
(42)
(...) e saymdo do reyno de Cambaya começou a entrar e fazer guerra ao Ballagate,
cujas terras agora sa~o do Idalca~o, tomamdo e destroymdo muitas cidades e
lugares, de maneira que despois de ter feyto muyto dapno, deixamdo aos naturaes
da terra as armas por lhas na~o poderem defemder, lhe entregara~o os corpos e
fazemdas. (CRB16-003 – Crónica dos Reis de Bisnaga; século 16)
(43)
(...) mas antes jaa d este tempo en todo ho reyno de Bisnaga, na~o avya lugar
tomado, salvo a cidade de Nagumdym. (CRB16-091 – Crónica dos Reis de Bisnaga;
século 16)
b. Plural
(44)
E tanto que errar duas ou tres vezes, por buscar tarde, digam-lhe que se avyse de
buscar cedo, por tal que, nom encontrando per boa vista, encontre per esmo, e se
ventuira ouver d’aver algu~a boa squeença, o acrecentamento do prazer e da
voontade lhe dara´ esforço de teer os olhos abertos aos encontros. (LBE15-023 –
Livro da Ensinança do Bem Cavalgar Toda Sela; século 15)
(45)
Et eu o d(i)to frey M(arti)no outorgo q(ue) sejan f(ey)ct(a)s de paz aaq(ue)l q(ue) as
teuer p(er) los be~es do d(i)to Afon(so) Yan(e)s Veloso q(ue) p(ar)a elo obligo et
outorgo & co~firmo sobr(e) elo o aluala p(er) q(ue) vos las dant(e) tjña dadas &
outorgadas. (TN15-009 – Textos Notariais; século 15)
- Concordância de gênero
a. Feminino
(46)
Outrosy mandamos que se omen sen memoria ou sen syso ou que no~ aya ydade
ou q(ue) aya feyta t(ra)yçon a al rey ou (contra) senhor ou (contra) qualquer
senhorio ou monge ou freyre q(ue) aya feyta promisso~ ouq(ue) esteue p(er) huu
ano en ordi~ en prouo, der algu~a cousa d(e) seu, no~ ualha. (FR13-022 – Foro Real
de D. Afonso X; século 13)
(47)
Enquanto el rey dom Afonso teve cercada esta villa, mandou o iffante do~
Henrrique, seu yrma~ao, que fosse cercar a villa d'Arcos e outrossi Librixa, que era
dhu~a moura. (CA14-005 – Crónica de D. Afonso X; século 14)
b. Masculino
92
(48)
El reyfoy çercar el rey d' Arago~ na vila de Murça e teveo çercado seys somanas.
(CA14-040 – Crónica de D. Afonso X; século 14)
(49)
Ora, avemosbuscado o lugar p(er)a edeficar nosso castello, (...). (CP15-011 –
Castelo Perigoso; século 15)
- Concordância de gênero e número
a. Singular, feminino
(50)
E se per uentura el rey for d(e)ta~ grande piedade que o queyra leyxar uiuo |e|
nono possa faz(er), ameos que lly saque os ollos q(ue) non ueia o mal que cobijçou
a ffaz(er) e que aya semp(re) uyda amargada e peada. (FR13-001 – Foro Real de D.
Afonso X, século 13)
(51)
El rey de Castela teve çercada Lixboa per mar e per terra algu~us dias. (HRP15-003
– História dos Reis de Portugal; século 15)
b. Singular, masculino
(52)
E aquella parte da redea que aa ma~a~o deve tornar, tenha seu noo assy acertado
que, ainda que o justador desfaça a volta, que sempre a torne dar certa, ficando a
rredea em tal longura como se requere trazer. (LBE15-027 – Livro da Ensinança do
Bem Cavalgar Toda Sela; século 15)
(53)
E daqueste, que se pode dizer senom que deos por seus pecados o desemparou
specialmente do grande bem que lhe avya outorgado? (LBE15-017 – Livro da
Ensinança do Bem Cavalgar Toda Sela; século 15)
c. Plural, feminino
(54)
Saluo ende q(ue) dessem os sesmeyros ((L041)) q(ue) meteu o co~celho. a cada
hu~u~ daq(ue)les q(ue) ti´j´a~ ((L042)) as p(re)surias filhadas aq(ue)lo q(ue) uissem
por be~ e como ualia ((L043)) eno~ mellor logo q(ue) ouuesse e~na p(re)suria q(ue)
ti´j´a~. (CA13-003 – Chancelaria de D. Afonso III; século 13)
(55)
Sabham todos q(ue) em p(re)sença de mj~ Thom(e) affonso pu(blico) Tabelio~ de
Guimara~es (e) das t(estemunha)s adea~te sc(ri)ptas Sobre conte~da (e) dema~da
q(ue) era (e) sp(er)aua a sseer ant(re) don M(ar)tin vila noua Priol (e) o Conue~to
do Moestei´ro de vilari~o do Arçab(is)pado de Braga´a, da hu~a p(ar)te. (e) Joham
rro(drigu)iz fferraz scudei´ro da outra por rrazo~ das herdades q(ue) o d(i)to
Mon(steiro) aui´a gaanhadas na Qui~ta~a da Ramada [...] (TN14-002 – Textos
Notariais; século 14)
93
d. Plural, masculino
(56)
Como se alçaron todollos mouros dos logares que el rey dom Afonso avia
guaanhados e se perdeo Exarez e muytos outros logares e do que el rey sobr'elo
fez Antre as cousas que aco~teceron en tempo del rei dom Fernando, seu padre
deste rey dom Afo~so, diz a estoria que, seendo este dom Afonso iffante,
guaanhou: o reyno de Murça, en que regnava naquel tempo Abenhuxel, como quer
que en outros logares se acha scripto que este Abenhuxel non reynava en Murça.
(CA14-014 – Crónica de Afonso X; século 14)
(57)
E leixou Joha~ Fernandez de Fenastrosa por fronteyro e~ Taraçona e outros
cavaleyros e ge~tes pelas vilas e castelos que em Arago~ tiinha tomados. (CA14-06
– Crónica de Afonso X; século 14)
Sobre a expressão das marcas de concordância do PTP com o complemento das
construções perifrásticas em questão em Português, Câmara Jr (1973) atribui sua origem ao
Latim. Em Latim, o verbo recebia, além da flexão número-pessoal, marcações morfológicas
para expressar tempo, modo e aspecto. Com o tempo, houve a perda das marcas
morfológicas aspectuais, que seriam expressas pelas marcas de concordância entre o PTP e
o complemento, ao que se associa o surgimento das construções perifrásticas e ao próprio
rearranjo do sistema verbal latino. Segundo o autor, a perda destas marcas aspectuais foi o
que motivou a entrada das conjugações perifrásticas em uso pleno na língua, uma vez que,
nestas construções o verbo auxiliar se combinava a uma forma verbal para expressar não só
tempo e modo, mas também aspecto, isto é, a expressão verbal como um todo subordinava
a si o complemento, fazendo com que se preservassem as marcas de concordância do PTP
com o complemento.
Mattos e Silva (2002), acerca da concordância do PTP com o complemento,
considera que este é um dos fatores para não considerar as construções com ter e haver +
PTP como de tempo composto. Segundo a autora, a presença de marcas flexionais de
concordância indica que ainda não havia ocorrido a fusão semântica e sintática típica do
tempo composto, sendo o PTP, portanto, ainda um adjetivo e ter e haver verbos plenos.
Em relação à concordância entre o PTP e complemento em dados de ter e haver
nas construções participiais do século 17, Eleutério (2003) verificou que, quando o
complemento se encontrava à esquerda do predicador, o PTP apresenta um número maior
de formas com concordância. Para a autora, a difusão da mudança teria ocorrido a partir de
94
formas ambíguas, com complemento no masculino, singular, forma esta considerada menos
evidente, uma vez que é morfologicamente [-marcada].
Assim como Eleutério (2003) e Almeida (2006), neste trabalho consideramos que as
construções com complemento masculino, singular são responsáveis pela difusão da
mudança. Segundo as autoras, isto ocorre, pois nesta forma de complemento, por ser
morfologicamente [-marcado], não é evidente a marcação da concordância.
Para verificar a relaçãoa da aplicação da concordância relativamente ao verbo, isto
é, em que medida a concordância se aplica, relacionada às construções com ter e com
haver, foi feito o seguinte levantamento, que se observa na tabela abaixo.
TER
84 – 43%
15 – 7%
43 – 22%
+ Concordância
- Concordância
Casos ambíguos: masculino singular
Casos ambíguos: pronome relativo, interrogativo
ou substantivo sem antecedente/nulo sem 54 – 28%
antecedente)
TOTAL
196 – 100%
HAVER
57 – 44%
17 – 13%
33 – 25%
23 – 17%
130 – 100%
Tabela 9: Marcação de concordância em construções com ter e com haver
Como visto anteriormente, dos 326 dados levantados no corpus, 196 foram de
estruturas formadas por ter + PTP e 130 foram de estruturas formadas por haver + PTP.
Destes dados, foram documentadas 84 construções com marcação de concordância e 15
construções sem marcação de concordância, para ter, contra 57 ocorrências de estruturas
sem marcação de concordância e 17 estruturas sem marcas de concordância para haver.
Percentualmente os dados de ter e de haver com concordância são semelhantes, somando
43% e 44% para cada verbo, respectivamente. Em relação à ausência de concordância, os
pontos percentuais somam 7% para ter e 13% para haver.
Em relação aos casos ditos ambíguos, devido a impossibilidade de precisar se há ou
não marcação de concordância, estes foram divididos em duas categorias: casos em que o
complemento está no masculino, singular, e casos em que houve presença de pronome
relativo, interrogativo ou substantivo sem antecedente ou complemento nulo sem
antecedente. No que concerne o primeiro grupo, estes dados somam percentuais
semelhantes, sendo 22% dentre as construções com haver, e 25% dentre as construções
95
com ter. No que respeita o segundo grupo de dados ambíguos, estes somam 28% para as
estruturas com ter e 17% para as estruturas com haver.
Observem-se exemplos deste tipo de construção abaixo.
(58)
"Eu nom me guabo que aja cobrado o q(ue) desejo, mes vou semp(re) por acallçar
o gualardom". (CP15-029 – Castelo Perigoso; século 15)
(59)
Mes quando homem tem paguado o que deve, entom pode faz(er) e diz(er) o que
q(ui)s(er). (CP15-033 – Castelo Perigoso; século 15)
O cruzamento dos grupos de fatores gênero, número e concordância corrobora a
hipótese proposta de que os dados com complemento singular, masculino possam ter sido o
gatilho da mudança. Como se observa na tabela abaixo, que mostra o número de
ocorrências dos dados com complemento feminino, plural; feminino, singular; masculino,
plural e masculino, singular, relacionados a concordância entre o PTP e o complemento, o
número de ocorrências de complementos masculino, singular é o maior dentre todas as
combinações possíveis.
Plural
Singular
+ concordância
- concordância
+ concordância
- concordância
Feminino
Número de ocorrências
46
8
57
15
Masculino
Número de ocorrências
38
9
76
-
Tabela 10: Marcação da concordância em relação ao gênero e número do complemento
Como se observa na Tabela 10, acima, as maiores ocorrências no corpus são de
dados masculino, singular, somando 76 em um total de 326 dados levantados. A frequente
ocorrência de estruturas com complementos deste tipo pode ser um indício de que estas
construções foram as que levaram à gramaticalização de ter e haver como verbos auxiliares.
De acordo com o modelo de mudança de R&R (2003), são os dados ambíguos e obscuros
que levam o aprendiz à reanálise das estruturas em questão. Segundo os autores, “(…) if the
trigger is ambiguous, the learner will choose the option that yields the simpler
representation34” (R&R 2003:27). Como visto anteriormente, as construções de tempo
34
“Se o gatilho linguístico é ambíguo o aprendiz irá escolher a opção que apresenta a representação mais
simples” [minha tradução]
96
composto são estruturalmente mais simples do que as estruturas adjetivas, uma vez que
não exigem movimento do verbo de V para I. Desta forma, uma vez que o gatilho no
momento da aquisição da linguagem é ambíguo, o falante opta pela construção mais
simples, interpretando as construções de ter/haver + PTP com complemento masculino,
singular, como de tempo composto.
Além disso, a questão da maior frequência deste tipo de construção no corpus
pode ser entendida como uma evidência de que este era o gatilho mais frequente no
período de aquisição da linguagem. Em um modelo em que a mudança é vista em termos de
mudanças paramétricas, isto é, uma mudança na fixação de um dado parâmetro no período
de aquisição da língua, a frequência é uma evidência importante. Isto se dá uma vez que,
quanto maior a frequência de um dado fenômeno, mais este estará servindo de input para
as gerações seguintes de falantes. Sendo as construções com complemento masculino,
singular, estruturas ambíguas e, também, as mais frequentes, sugerimos que no momento
da aquisição da linguagem uma dada população de falantes teve como input mais frequente
este tipo de construção, o que os levou a internalizá-la. Sendo a interpretação das
construções com este tipo de complemento como tempo composto a mais econômica, seria
esta a forma que os falantes da geração seguinte adquiriram.
Em relação ao período histórico, houve dados interessantes no que respeita a
concordância. Observe-se a tabela abaixo, que traz a distribuição dos exemplos com e sem
marcas de concordância do PTP com o complemento, por século.
Século + Concordância
13
14
15
16
Total
Oco. – %
30 – 48%
38 – 56%
39 – 44%
34 – 32%
141 – 43%
– Concordância
Oco. – %
2 – 3%
10 – 14%
7 – 8%
13 – 12%
32 – 10%
Ambíguos
(masc. Sing)
Oco. – %
21 – 34%
14 – 21%
18 – 20%
23 – 21%
76 – 23%
Pron. +qu
TOTAL
Oco. – %
9 – 15%
6 – 9%
24 – 27%
38 – 35%
77 – 24%
62
68
88
108
326
Tabela 11: Realização da concordância, por século
Na tabela acima observa-se que já no século 13 foram documentados dados de
construções sem marcas de concordância do PTP com o complemento. Neste século, dos 62
97
dados levantados 48% foram de construções em que havia marcação de concordância e 3%
foram de construções sem marcas de concordância, como se observa em (60) e (61), abaixo,
sendo uma ocorrência com ter e uma com haver. Os dados restantes foram de dados
ambíguos com complemento masculino, singular, somando 34% das ocorrências, e de dados
ambíguos, formados por construções em que a concordância não se aplica, como ocorre em
construções com pronome interrogativo ou substantivo sem antecedente, ou complemento
nulo sem antecedente, somando um total de 15% Observem-se abaixo os dados de tempo
composto perfectivo encontrados no corpus do século 13.
(60)
E plus li a custado uosa aiuda q(u)ali ind(e) ca(e) derdad(e). (NT13-001 – Notícias
do Torto; século 13)
(61)
Se alguu d(e)mandar outro en iuyzo e o demandador lhy teu(er) forçado algu~a
cousa, ben se pod(e) deffender de lly no~ responder ata que o entrege daq(ui)llo
q(ue) lhy teu(er) forçado e non entre en iuyzo cono forçador ameos de seer
entregado. (FR13-004 - Foro Real de D. Afonso X; século 13)
Os dados do século 14 mostram que neste período cresce a porcentagem das
construções sem marcas explícitas de concordância, somando 14% dos dados deste período.
Os dados com marcas explícitas de concordância somam 56% do total. Em relação aos
dados ditos ambíguos, os com complemento masculino, singular somam 21% das estruturas
deste século, enquanto as estruturas que apresentam pronome interrogativo ou substantivo
sem antecedente, ou complemento nulo sem antecedente somam 9% do total. Observemse abaixo os dados de construções sem concordância levantados no século 14.
(62)
Este rey dom Afonso, en começo de seu reynado, firmou por tempo certo as
posturas e ave~eças que el rey dom Fernando, seu padre, avya posto con el rey de
Graada. (CA14-001 – Crónica de Afonso X; século 14)
(63)
Os mouros destes logares, desque souberom que el rey avya cobrado Exarez,
entregaron estes logares ao iffante dom Anrrique, con condiçon que ficassem en
elles en suas herdades35. (CA14-006 – Crónica de Afonso X; século 14)
(64)
No quinto a~no do reynado deste rey dom Afonso, depois que ouve feitas as
cousas que a estoria ha contado, pensou maneira como fezesse serviço a Deus por
35
Neste exemplo, consideramos o NP [Exarez] como feminino, uma vez que se trata de “a vila de Exarez”.
98
exalçamento de sua fe e acrece~tamento de seus regnos. (CA14-008 – Crónica de
Afonso X; século 14)
(65)
E, depoys que la foy, sabendo como do~ Telo, senhor de Bizcaya, seu irma~ao, era
ferido e requerendo-lhe o iffante Bizcaya36, segundo lhe tiinha prometido e~
Bilbaao, foy morto pelos porteyros per mandado del rey. (CA14-028 – Crónica de
Afonso X; século 14)
(66)
E rey do~ Pedro foy logo apoderado de todolos reynos de Castellae, usando de seus
primeyros custumes, no~ pagou ao prinçipe o soldo que era devido a suas gentes,
ne~ lhe manteve as juras e promesas que lhe avya jurado de lhe entregar a Bizcaya
e a Castro d' Ordyales, e de dar a çidade de Sorya a Mosse~ Joha~, co~destabre de
Guyana, das quaes cousas o prinçipe mal co~tento se partyo de Castela. (CA14-032
– Crónica de Afonso X; século 14)
(67)
E dhy se tornou pera el rey seu padre. E no trezeno a~no do reynado del rey
Enrryque, foy feyta paz antre Castella e Navarraco~ estas co~diço~oes: que el rey
de Navarra lançasse fora os capita~aes ingreses que avya~ feito guerra e danoe~
Castella e que el rey de Navarra posesse em fieldade vi~ite castellos e~ ma~ao dos
castella~aos. (CA14-035 – Crónica de Afonso X; século 14)
(68)
Estas beatryas sam algu~as vilas asy chamadas, por que pode tomar senhor qual
lhe mays bem fezer e partyrsse dele quando quysesse~. E dize~ que ouvero~
começo quando se a terra guaanhou aos mouros, que os home~es começava~ de
povorar a terra e fazer algu~us lugares cha~aos, dos quaaes el rey no~ curava
seno~ da justiça. (CA14-041 – Crónica de Afonso X; século 14)
(69)
Ao Senn(or) da t(e)rra saluo en facere~ foro co~ se(us) ueçi~os en p(ro)l do co~çelo
((L017)) e se pela uent(ur)a acaeçe q(ue) eses menjos orfaos mora~ todos en #j
cassa e q(ue) an p(ar)tido ((L018)) ffacam todos #j fforo. e sse an o p(ar)tido e
mora~ todos cada hu´u´ en sa cassa fac[er] cada ((L019)) hu´u´ p(er) ssi en p(ro)l do
conçelho e dos solteyrosq(ue) nos ma~dastes dicer se lis dero~ ((L020))
herdam(en)tos na p(re)soria da t(e)rra façam foro ta~ be~ coma os cassados se
ouuerem ((L021)) na ualia. (FG14-001 – Foros de Garvão; século 14)
36
Neste exemplo, consideramos o NP [Bizcaya] como feminino, uma vez que se trata de “a cidade de Bizcaya”.
99
(70)
Ao Senn(or) da t(e)rra saluo en facere~ foro co~ se(us) ueçi~os en p(ro)l do co~çelo
((L017)) e se pela uent(ur)a acaeçe q(ue) eses menjos orfaos mora~ todos en #j
cassa e q(ue) an p(ar)tido ((L018)) ffacam todos #j fforo. e sse an o p(ar)tido e
mora~ todos cada hu´u´ en sa cassa fac[er] cada ((L019)) hu´u´ p(er) ssi en p(ro)l do
conçelho e dos solteyrosq(ue) nos ma~dastes dicer se lis dero~ ((L020))
herdam(en)tos na p(re)soria da t(e)rra façam foro ta~ be~ coma os cassados se
ouuerem ((L021)) na ualia. (FG14-002 – Foros de Garvão; século 14)
(71)
E nos Auemos (e) p(ro)metemos a au(er) firme (e) outorgado todalas cousas
(e)cada hu~a ((L014)) delas q(ue) fore~ f(e)ctas pelo d(i)cto nosso p(ro)curador so
obligaço~ de todos nossos be~es (e) do d(i)cto Mon(steiro)q(ue) p(er)a esto
obligamos ((L015)) f(e)cta a p(ro)curaço~ no d(i)cto Mon(steiro) #xij dias de
ffeu(er)ei´ro Era de Mil (e) t(re)ze~tos (e)Nouee~ta (e) quat(ro) Anos. (CHP14-005 –
Textos Notariais in Clíticos da História de Portugal; século 14)
O corpus do século 15 apresenta menos exemplos de dados sem marcas de
concordância, somando 8% do total. Em contrapartida, sobe a proporção de dados em que
não é possível documentar a concordância, sendo, pois, considerados ambíguos. Dentre os
dados ambíguos, os com complemento masculino, singular, somam 20% do total, enquanto
os dados ambíguos representados na tabela por Pron. +qu somam 27%. Possivelmente a
queda do percentual dos dados sem marcas de concordância esteja relacionada ao aumento
dos dados ambíguos. Como visto anteriormente, esperamos que sejam os dados ambíguos,
em que não é possível precisar se há ou não marcação de concordância, o gatilho para a
gramaticalização que levou à emergência dos tempos compostos em Português. Finalmente,
em relação aos dados com concordância, estes somam 44% das ocorrências. Observem-se
abaixo os exemplos sem marcas de concordância encontrados no corpus do século 15. Notese que entre estes dados encontram-se ocorrências de complementos preposicionados,
como em (72), (73) e (74), e de PTP Inergativo, como em (75), ao que se associa a não
marcação da concordância.
(72)
"Tu a´s, disse elle, avid(os) muit(os) prazer[e]s e ha´s longo tempo husado de tua
voontade e e´s metida em tuas çujasforniguaço~oes. Mas torna-te a mim e eu te
rrecebereidocem[en]t(e)". (CP15-010 – Castelo Perigoso; século 15)
100
(73)
(74)
(75)
(76)
(77)
(78)
D(eu)s v(os) rrogo e conjuro todas devotas pessoas que avees cuidado de vossa
salvaçom, honrrae e amaae e s(er)vii de coraçom e de boca e de feito esta gloriosa
senhora; (CP15-015 – Castelo Perigoso; século 15)
Hoovo´s, devotas c(re)aturas que avees cuidado da vossa sau´de, esguardaae a
desposiçom do co(r)po do vosso amigo! (CP15-019 – Castelo Perigoso; século 15)
Isto acontece q(ua)ndo a pessoa a que D(eu)s fez tantas g(ra)çasensob(re)vece e
parece-lhe que tem asaz trabalhado e que he bem tenpo de folguar. (CP15-032 –
Castelo Perigoso; século 15)
E fallando da honrra e proveito, longo seria de contar quantos em as guerras
d’elrrey, meu senhor e padre, cuja alma deos aja, e em nas outras ham percalçado
grandes famas, estados e boas gaanças por seerem muyto ajudados desta manha.
(LBE15-001 – Livro da Bem Ensinança do Cavalgar Toda Sela; século 15)
[...]sabendo bem q(ue) vos, Ares Gonçalues, contador do señor don Pedro, ob(is)po
de Mondoñedo, q(ue) presente estades, auedes tragido & persuydo & tragedes &
persuydes libre & paçificamente ha herdade da Liñeira q(ue) jaz et he sita en
Masma. (TN15-005 – Textos Notariais in Clíticos da História de Portugal; século 15)
Estando dom frey Ar(ia)s, abbade do mosteyro de S(an)ta M(ari)a d'Oseyra, et frey
P(edr)o de Lueda, p(r)ior, et o sup(r)ior et çelareyro et esmoleyro et os out(r)os
oficiaas & mo~jes do d(i)to m(osteyr)o, todos juntos en(n)o cap(itu)lo do d(i)to
mosteyro, depoys de avido seu acordo & co~selo et avendo co~siderado et visto
com(m)o este d(i)to mos[t]eyro avia avido moy g(r)andes p(er)das & rreçebidos
moy g(r)andes danos por las g(r)andes gerras q(ue) ouuo ent(r)e os señor(e)s
com(m)o esso meesmo pl(ey)tos et letigios entre los abbades q(ue) ouuo em este
m(osteyr)o moy longos t(en)pos por lo q(u)al ouuo reçebidas g(r)andes p(er)das et
danos asy en(n)as possiso~os et be~es, gra~jas, coutos, casares et herdad(e)s et
jurdiço~os et senorio q(ue) sobre elo avia o d(i)to mos[t]eyro por p(r)iuilegos, usos
et custumes; o q(u)al por lo q(ue) d(i)to he & por la mj~goa de justiçia real q(ue) en
este Reyno de Galiza foy et he faliçida & cariçida, ouuero~ cabsa os señores
t(en)poraas entrar et tomar a jurdiço~ et senorio dos d(i)tos coutos, g(r)anjas &
lugar(e)s q(ue) ao d(i)to m(osteyr)o p(er)tiçiam. (TN15-013 – Textos Notariais in
Clíticos da História de Portugal; século 15)
No século 16, os dados de construções de tempo composto, isto é, de estruturas
sem marcas de concordância, somam 12% do total contra 32% de construções com marcas
de concordância. Em relação às construções ambíguas, aquelas que apresentam
complemento masculino, singular somam 21% dos dados, ao passo que as com pronome
+qu somam 35%. Observem-se abaixo as ocorrências de estruturas de tempo composto no
século 16.
101
(79)
(80)
(81)
(82)
(83)
(84)
(85)
(86)
(87)
37
(...) partindo se el rey pera seu reyno, por respeyto da nova que lhe hera vymda,
deixamdo o reyno de Bisnaga em poder de Meliquy niby, sabido por toda a terra
como era fora d ella, os que escapara~o pellas montanhas, e outros, que contra
suas vontades com temor lhe tinha~o dado as menage~es das villas e lugares.
(CRB16-010 – Crónica dos Reis de Bisnaga; século 16)
(...) e passados allgu~us dias, cuydamdo Narsenaque na treyça~o em que lhe
fallavao, (...) chamou hu~u dia aquelles capita~es, que lhe per muytas vezes
tinha~o cometido, e preguntou lhe que maneyra terya pera matar elrey, sem ser
sabido que ho mamdava elle matar. (CRB16-020 – Crónica dos Reis de Bisnaga;
século 16).
Despois de chegado Salvatinia, e muyto bem recebido d elrey, despois de ssua
chegada allgu~us dias, lhe disse elrey que elle desejava de comprir em todo ho
testamento d elrey Narsynga, que era tomar lhe Rachol37, que era hu~a cidade
muito forte, e das primcipaes do ydallca~o, que elle tinha tomado aos reys d
antepassados. (CRB16-030 – Crónica dos Reis de Bisnaga; século 16).
Despois de ter elrey feito suas ofertas e sacreficios a seus ydollos, partio da cidade
de Bisnaga con toda a sua gente. (CRB16-032 – Crónica dos Reis de Bisnaga; século
16)
[...] e os que se quisesem hir que se fosem na boa ora con todo o seu, alevantados
todos as ma~os pera ho ceo se deitara~o no cha~o por averem recebido tamanha
mercê. (CRB16-039 – Crónica dos Reis de Bisnaga; século 16)
e per todos os reys con tanta verdade mantida, que na~o sabe por que te
demoveste a lhe fazer tamanha guerra, que sem sospeyta estava, quoamdo lhe
dera~o novas em como tinhas cercado a cidade de Rachol, e a comarca roubada e
destroyda, as quoaes novas fora~o causa de se mover e vir a socorrella, omde por
ty, foy toda sua corte morta, e o seu arayall todo roubado e destruydo, como tu es
boa testemunha do que asyr he feyto, e que te pede que do tal faças emmemda, e
mamdes tornar a sua artelharya e temdas, cavallos e allyfantes, com o mays que
lhe he tomado (CRB16-046 – Crónica dos Reis de Bisnaga; século 16)
E despois d este rey ter acabado ysto, e ter alcamçado tanta vitorya de seus
ymmiguos, vemdo se ja homem de hidade desejamdo de descamsar em sua
velhice, e que hu~u filho que tinha ficasse rey por sua morte, detreminou de ho
fazer rey em sua vida. (CRB16-052 – Crónica dos Reis de Bisnaga; século 16).
elle tinha destroydo os primcypaes home~es de seu reynoe mortos seus filhos, e
tomadas suas fazemdas, tudo por comselho de seus cunhados por quem elle hera
mamdado; (CRB16-058 – Crónica dos Reis de Bisnaga; século 16)
Depois tomamdo as portas da primeira serra, diguo que a entrada da porta omde
vem os que va~o de Goa, que he a mays principal entrada da bamda d aloeste,
Neste exemplo consideramos o NP [Rachol] como feminino, singular, uma vez que se trata “da cidade de
Rachol”.
102
(88)
(89)
(90)
(91)
dentro tem feito este rey hu~a cidade muy forte de muros e torres, e as portas
com hu~as entradas muy fortes com torres nas portas; (CRB16-069 – Crónica dos
Reis de Bisnaga; século 16)
e os lutadores va~o se por junto com a escada, que no meyo d aquella casa estaa, e
tem feyto hu~a eyra gramde de terra solta omde luta~o as molheres solteyras e
baylhadores; (CRB16-081 – Crónica dos Reis de Bisnaga; século 16)
E alem de ter esta gente, la tem suas pemsso~is que paga~o a elrey em cada hu~u
anno, tambem elrey tem sua gente hordenada a quem daa soldo, e tem oyto
centos allyfantes de sua pessoa, e quynhemtos cavallos continuadamente na sua
estrebarya, e pera estes gastos dos alyfantes e cavallos tem dado as remdas que
lhe remde a cidade de Bisnaga. (CRB16-083 – Crónica dos Reis de Bisnaga; século
16)
Comuem a saber que porquamto a dita s(enho)ra dona guyomar tem vemdido a
Jorge de sousa q(ue) hora he na India dous moyos (e) meio de trygo da dita
fazemda Com pacto de Retro vemdemdo //(e)// por preço (e) comthia de çemto (e)
quaremta (e) seis mill r(eae)s elle dito s(e)nn(h)or dom amRique ma~dara
deposytar em Juizo os ditos çemto (e) coRemta (e) seis mill r(eae)s pera os aver o
dito Jorge de sousa (e) fficar llyure a dita ffazemda (e) desta maneira os ha ella dita
s(enho)ra dona guyomar por Reçebidos em sy (DN16-005 – Documentos Notariais;
século 16)
E com as comdiço~es em elle comtheudas (e) ella catarjna p(er)iz disse que ella
((L069)) que ella/sic/ o outorga (e) açeitava asy (e) da maneJra q(ue) em elle se
comte~ (e) dava sua ((L070)) outorga ao di(c)to p(ra)zo (e) obrigou a ello seu(s)
be~es (e) se obrigou a elle assy (e) da man(eira) ((L071)) q(ue) ho di(c)to seu
marjdo tem fe(i)to (e) outorgado. (CHP16-003 – Textos Notariais in Clíticos da
História de Portugal; século 16)
De modo geral observamos que, em relação aos séculos, os dados de construções
sem marcas de concordância aumentam desde o século 13. Os dados de estruturas
adjetivas, com marcas explícitas de concordância se mantêm ao longo dos séculos, uma vez
que a reanálise não pressupõe que a estrutura original desapareça da gramática; portanto,
as construções transitivas-predicativas se mantêm até hoje em Português. As estruturas
ambíguas, de maneira geral, aumentam ao longo dos séculos, assim como as sem marcas de
concordância. O gráfico abaixo ilustra mais claramente o comportamento das construções
com ter/haver + PTP com e sem concordância ao longo dos séculos.
103
56%
60%
49%
50%
40%
56%
47%
48%
44%
30%
30%
32%
20%
10%
14%
12%
8%
3%
0%
13
CONCORDÂNCIA
14
15
NÃO-CONCORDÂNCIA
16
AMBÍGUOS
Gráfico 2: Realização da concordância nas construções de ter e haver + PTP ao longo do tempo
O gráfico 2, acima, traz os percentuais dos dados com marcas de concordância, sem
marcas de concordância e dos dados considerados ambíguos, que foram amalgamados em
uma única categoria, ao longo dos séculos. Como é possível observar, as ocorrências de
estruturas de ter/haver + PTP sem marcação de concordância aumenta ao longo dos
séculos, mas se mantém relativamente estável. No século 13 o percentual das ocorrências
de construções de tempo composto somam 3% do total, valor que aumenta para 14% no
século seguinte. No século 15 há uma pequena queda, passando a 8% das ocorrências.
Finalmente, no século 16, o percentual de estruturas de tempo composto sobre para 12%.
Em relação às construções com marcas explícitas de concordância, nota-se uma
queda percentual a partir do século 15. As construções ambíguas (pronome +qu), por outro
lado, sofrem um aumento a partir deste período. As curvas relativas às estruturas com
concordância e aos dados ambíguos sugerem que no período estudado ocorre uma
competição entre estas duas estruturas, e não entre as primeiras e as sem marcação de
concordância. Dito isto, é possível sugerir que, ao passo que as estruturas de tempo
composto vão ganhando espaço na gramática do Português, as estruturas ambíguas
competem com as estruturas adjetivas. Neste período de competição vencem as estruturas
ambíguas que recebem a interpretação de tempo composto e não aquelas interpretadas
como estruturas adjetivas. Deste modo, é possível afirmar, com base nisto e em outras
104
evidências que serão vistas mais adiante, que as estruturas ambíguas compõem o gatilho da
gramaticalização que levou à emergência dos tempos compostos perfectivos em Português.
Em relação à localização temporal da emergência das estruturas em questão,
observamos o seguinte. Levando em consideração a perda das marcas de concordância, a
concepção de mudança de Lightfoot (1979, 1991, 1998) e o modelo de mudança por
gramaticalização de R&R (2003), é possível afirmar que a mudança que resulta na
emergência dos tempos compostos começa já no século 13, uma vez que neste século são
documentadas estruturas sem marcas de concordância e com a ordem típica dos tempos
compostos, [V PTP N], assunto que será debatido em mais detalhes na subseção seguinte.
Como visto, a mudança diacrônica é interpretada, nos termos de Lightfoot (1998) não como
uma mudança na língua, mas como mudanças nas gramáticas particulares de cada falante.
Sendo assim, a mudança se dá quando há uma mudança no ambiente linguístico no qual a
criança cresce: se o ambiente é minimamente distinto, a criança irá desenvolver uma
gramática diferente da gramática de seus pais. A mudança linguística é, pois, a mudança de
gramáticas individuais se espalhando em uma população.
No que respeita o espraiamento da mudança que levou as construções com
ter/haver + PTP adjetivo a serem reinterpretadas como estruturas de tempo composto
perfectivo em Português, observamos que sua implementação se dá no século 13, mas seu
espraiamento ocorre alguns séculos depois. Isto fica claro com o aumento das construções
sem concordância e das construções ambíguas em relação às construções com concordância
ao longo dos séculos. Como os dados da Tabela 11 mostram, as primeiras ocorrências de
dados sem marcas morfológicas de concordância surgem inicialmente no século 13 e seu
percentual aumenta ao longo dos séculos. Os dados ambíguos com complemento
masculino, singular, somam 34% das construções no século 13, passando a somar em média
20% nos séculos seguintes. O restante dos dados ambíguos segue aumentando ao longo dos
séculos. As construções com marcas de concordância, por outro lado, sofre uma queda
percentual a partir do século 14.
Da mesma forma, R&R (2003) assumem que a mudança linguística é um caso
regular de mudança paramétrica, sendo esta um aspecto do processo de fixação
paramétrica. A mudança tem início quando uma população de aprendizes adquire uma
gramática que difere em pelo menos um parâmetro da gramática dos falantes cujo
comportamento serviu de base para estes aprendizes. À medida que a geração mais nova
105
substitui a geração mais velha, a mudança também é levada adiante. A mudança
paramétrica se dá, então, da seguinte forma:
“(…) if the parameter expression is robust enough, it will lead to the
correct parameter setting. If, however, the parameter setting is
ambiguous, then there must be some ‘safety mechanism’ in the learning
device which leads to the assigment of a value – weak determinism
requires this. This value will still be compatible with the input, but – again
due to weak determinism – may differ from that of the target grammar,
thus yielding a change38” (R&R 2003:15).
Ainda segundo R&R, “(…) if the trigger is ambiguous, the learner will choose the
option that yields the simpler representation39” (R&R 2003:27). Deste modo, de acordo com
R&R (2003), a aquisição da linguagem é vista como um processo de fixação paramétrica,
enquanto a mudança sintática é vista como o resultado da mudança ou resetting dos valores
paramétricos.
Sendo a gramaticalização um caso regular de mudança paramétrica, a reanálise de
ter e haver como auxiliares de tempo composto se daria no momento de aquisição da
linguagem (cf. LIGHTFOOT 1979, 1991), sendo desencadeada pelo gatilho oferecido por
evidências linguísticas ambíguas aos aprendizes que adquirem sua gramática (cf. R&R 2003).
Deste modo, com base no que foi exposto acima, assumimos que a reanálise de ter e haver
tenha tido início com base em dois parâmetros: (1) construções com ter e haver + PTP, com
complemento masculino, singular, ou construções do tipo +qu, cuja interpretação é a de
uma perífrase adjetiva e (2) construções com ter e haver + PTP, com complemento
masculino, singular, ou construções do tipo +qu, cuja interpretação é de tempo composto
perfectivo. Como o processo de aquisição da linguagem é orientado para a aquisição de
estruturais mais simples (cf. LIGHTFOOT 1979, 1991, 1998; R&R 2003), a construção que
recebe a interpretação de tempo composto, que não apresenta movimento de ter e haver
de V para I, é preferível.
38
“(…) se a expressão de um parâmetro é suficientemente robusta, levará a uma fixação paramétrica correta.
Se, no entanto, a expressão do parâmetro é ambígua, então é provável que haja um ‘mecanismo de segurança’
no dispositivo de aprendizagem que leva à fixação de um certo valor – o determinismo fraco requer que isto
aconteça. Este valor continuará sendo compatível ao do input recebido, mas – novamente devido ao fraco
determinismo – poderá ser diferente do valor atribuído à gramática alvo e é isto que causa a mudança” [minha
tradução]
39
“(...) se o gatilho linguístico é ambiuo, então o falante optará pela opção que apresenta a representação
mais simples” [minha tradução]
106
Deste modo, assumimos que as construções com complemento masculino,
singular, vão sendo reanalisadas como estruturas de tempo composto e esta interpretação
é, posteriormente, estendida às construções com outros tipos de complemento. À medida
que as estruturas com complemento masculino, singular, são reanalisadas como tempo
composto, a ordem vai se fixando em [V PTP N], tornando-se a sequência [V N PTP]
exclusiva das construções adjetivas. A perda das marcas flexionais de concordância
ocorreria como uma consequência do processo de reanálise, de acordo com o que postulam
R&R (2003).
Em relação ao verbo que deu início ao processo de mudança, isto é, se o gatilho
teve início com as estruturas de ter + PTP ou de haver + PTP, em geral, afirma-se que este
ocorreu a partir das construções com o verbo haver (ALMEIDA 2006). Contudo, ainda que as
estruturas com haver sejam mais frequentes nos séculos iniciais do PA, tanto as estruturas
com haver quanto as contruções com ter apresentam casos de não concordância desde o
século 13. As estruturas formadas por ter + PTP sem concordância aumentam somente no
século 16, mas, ainda que em baixa proporção, estas não deixam de existir no corpus.
Observe-se a tabela abaixo, que traz os percentuais de construções de ter e haver + PTP com
e sem concordância no corpus.
+
Concordância
–
Concordância
Ambíguos
(m.s.)
Ambíguos
(+qu)
TOTAL
TER
HAVER
TER
HAVER
TER
HAVER
TER
HAVER
TER
Século 13
Oco. – %
10 – 53%
20 – 47%
1 – 5%
1 – 2%
6 – 31%
15 – 35%
2 – 10%
7 – 16%
19 – 100%
HAVER
43 – 100%
Século 14
Oco. – %
16 – 76%
22 – 47%
1 – 5%
9 – 19%
3 – 14%
11 – 23%
1 – 5%
5 – 11%
21 – 100%
Século 15
Oco. – %
24 – 48%
15 – 39%
1 – 2%
6 – 16%
12 – 24%
6 – 16%
13 – 36%
11 – 29%
50 – 100%
Século 16
Oco. – %
34 – 32%
0 – 0%
12 – 11%
1 – 50%
22 – 21%
1 – 50%
38 – 36%
0 – 0%
106
–
100%
47 – 100% 38 – 100% 2 – 100%
TOTAL
84
57
15
17
41
33
54
23
196
130
Tabela 12: Realização da concordância, por século, em relação a ter e haver
Como é possível observar na Tabela 12, há mais dados como verbo ter do que com
haver, somando as construções com o primeiro verbo 196 ocorrências contra 130
107
ocorrências de estruturas com haver. No que respeita a marcação de concordância
relativamente aos séculos, é possível notar que o número de ocorrências com ter aumenta
consideravelmente do século 13 ao 16, passando de 19 a 106 dados. Em relação a haver
observamos o contrário: há uma considerável queda nas ocorrências de construções com
esse verbo, que somam 43 no século 13 e passam a apenas 2 no século 16.
Em relação ao percentual de ocorrências de estruturas com marcas de concordância, notase que, para as construções com ter há um aumento na proporção das construções em
questão no século 14 e, a partir de então, uma queda, chegando a 32% no século 16. As
construções com haver se mantêm estáveis, no que concerne a marcação de concordância,
ao longo dos séculos 13 e 14, sofrendo uma queda nos séculos seguintes, chegando a 0% no
século 16.
Com relação às construções sem marcas morfológicas de concordância, as
construções com ter ultrapassam o 1% de dados apenas no século 16, chegando a 11% do
total. As construções com haver, por outro lado, aumentam consideravelmente nos séculos
14 e 15. Note-se que, como foi dito anteriormente, ainda que a mudança tenha tido início
no século 13, momento em que já se observam ocorrências de estruturas de tempo
composto perfectivo, o espraiamento da mudança só se dá nos séculos seguintes.
Os dados ambíguos com complemento masculino, singular se comportam de forma
variável ao longo dos séculos. Os dados com ter somam no século 13 31% do total, sofrendo
uma queda para 14% no século seguinte e voltando a aumentar para 24% e 21% nos séculos
15 e 16, respectivamente. Em relação a haver as construções com complemento masculino,
singular somam 35% no século 13, sofrendo uma queda para 23% e 16% nos séculos 14 e
15, respectivamente, aumentando consideravelmente no século 16, quando somam 50%
dos dados. Note-se que no século 16 há apenas duas ocorrências de construções com haver,
sendo que uma delas não apresenta marcas de concordância e a outra é considerada
ambígua.
Finalmente, dentre os dados ambíguos com pronomes interrogativos ou
substantivos ou com complemento nulo sem antecedente, os dados se comportam da
seguinte maneira. As construções com ter somam no século 13 10% dos dados, caindo para
5% no século seguinte. Nos séculos 15 e 16 há um aumento percentual, somando 36% em
ambos os períodos. As construções com haver somam 16% no século 13 e 11% no século 14.
108
No século seguinte há um aumento considerável, somando 29%; no século 16 observou-se
uma queda considerável, baixando para 0%.
A seção seguinte discutirá os resultados obtidos com relação à ordem dos
constituintes nas estruturas com ter/haver + PTP. A seguir, analisaremos em que medida a
relação da concordância e da ordem dos constituintes influenciou no processo de mudança
em questão.
3.4.3. Ordem dos constituintes na sentença
Estudos que analisam a ordenação de palavras nas sentenças do PA discutem sobre
o fato de esta ser uma língua do tipo V2 ou não. Ribeiro (1995) argumenta que, no caso de
sentenças finitas raízes e encaixadas, o PA seria caracterizado como um sistema V2, isto é,
um sistema em que este tipo de construções se aloja no núcleo funcional C. Seriam, ainda,
características de uma língua V2 a possibilidade de haver uma posição alta para verbos na
estrutura oracional (cf. ANTONELLI 2011), de o sistema não ter a posição pré-verbal
reservada ao sujeito, permitir movimento formal para [Spec, CP] (cf. LIGHT 2012) e, ainda,
ter uma posição alta reservada para o sujeito pós-verbal. Contudo, muitos autores
argumentam que o PA não constitui uma gramática V2 (cf., para uma discussão mais
completa, FIÉIS 2002; RINKE 2009).
Este estudo não se propõe a analisar a gramática do PA em relação à ordenação
dos constituintes na sentença. Contudo, nos propomos a analisar a ordem de palavras no
que respeita as construções com ter/haver + PTP. Independentemente da discussão sobre o
tipo de sintaxe do PA – se V2 ou não – observamos que, nas construções em questão, a
ordem dos constituintes é relativamente livre. Deste modo, nas construções com PTP, antes
da gramaticalização de ter e haver, o complemento direto destes verbos podia preceder (N
V PTP) ou suceder (V PTP N) ter e haver, estar entre estes verbos e o PTP (V N PTP) ou,
ainda, ser nulo. Da mesma forma, ter e haver também podiam suceder (PTP V) ou preceder
o particípio (V PTP).
Almeida (2006), em estudo que trata da gramaticalização de ter e haver em uma
perspectiva variacionista e funcionalista, observa que a ordem é um fator fundamental para
categorizar o PTP como verbo ou adjetivo: à medida que a ordem ter/haver + PTP foi se
109
tornando mais fixa, estes verbos passam a auxiliares e o PTP passa a predicar a sentença,
adquirindo o traço [+verbal]. Segundo a autora, a posição mais resistente à formação do
tempo composto seria aquela em que o complemento está à esquerda do predicador, pois
nesta ordem constatam-se formas mais marcadas com concordância.
Os dados de Almeida (2006) mostram que a ordem destas construções no PA era
extremamente livre, porém, ao longo dos séculos, a ordem ter/haver + PTP vai
gradualmente se fixando. Observem-se abaixo os resultados percentuais obtidos por
Almeida, em relação à ordem dos constituintes na sentença:
V + PTP + N
V + N + PTP
N + V + PTP
N + PTP + V
PTP + V + N
V + PTP + Ø
Século 13
11%
22%
67%
Século 14
12%
25%
50%
12%
Século 15
6%
8%
38%
3%
44%
Século 16
21%
1%
27%
50%
Século 17
46%
37%
8%
9%
Tabela 13: Resultados percentuais em relação a ordem dos constituintes (ALMEIDA 2006)
Como se pode observar, os resultados de Almeida (2006) sugerem que os seis tipos
de distribuição do complemento do PTP na sentença revelam sua liberdade de estruturação.
No século 13 a distribuição mais frequente é a com particípios intransitivos, isto é, em que
não há complemento, (V + PTP + Ø), seguida da ordem N +V + PTP. No século 14, a ordem
mais comum é V + N + PTP. No século 15 há um significativo aumento das sequências com
particípios intransitivos, somando 44% das ocorrências, ao mesmo tempo que a ordem N +
V + PTP decai de 50% dos dados para 38% destes. No século 16 são igualmente significativas
as ocorrências em que o particípio é intransitivo, somando 50%; há também um aumento
das sequências V + PTP + N, somando 21%, estrutura que possui a configuração típica do
tempo composto. Finalmente, no século 17, são maioria as sequências do tipo V + PTP + N
(46%), o que, segundo Almeida (2006) já é um indicador da cristalização da estrutura. Em
seus dados nota-se também uma gradual diminuição da flexão ao longo dos séculos, o que,
associada à fixação da ordem V + PTP, comprova sua hipótese de que ter e haver não eram
verbos auxiliares no PA.
110
Os dados de Mattos e Silva (1992)40 mostram que a ordem mais comum nas
perífrases com ter e haver é N + ter/haver + PTP, quando o complemento é relativizado, e
ter/haver + PTP + N, quando o complemento não é relativizado. Em sua perspectiva, seus
dados permitem supor que, no que se refere à difusão da mudança nas estruturas
sintagmáticas, a perda da concordância do PTP e, consequentemente, sua análise como PTP
verbal e não como adjetivo, partiu dos contextos em que a concordância não é saliente,
sendo considerados mais salientes os contextos em que o complemento direto do PTP
precede ter/haver e o PTP, com base em Naro e Lemle (1977:266, cf. MATTOS E SILVA
1992). A autora propõe ainda que a difusão da mudança foi favorecida pela estrutura na
distribuição sintagmática, já existente na língua, em que o PTP perde as marcas de
concordância, já que o complemento pode ser masculino e singular (casos ambíguos), bem
como pela estrutura em que o complemento é nulo, recuperável como pronome neutro
como isto, tudo.
Em artigo de 1992, Mattos e Silva atribui a difusão da mudança de ter e haver de
verbos plenos a auxiliares à ordem dos constituintes no Português. Segundo a autora, na
estrutura mais antiga o complemento do verbo não tem posição fixa, podendo preceder,
suceder ou estar entre ter/haver e o PTP, ou, ainda, ser zero, quando o PTP é -transitivo. Ter
e haver também podiam preceder ou suceder o PTP. Nos corpora analisados por Mattos e
Silva (1981:101), ocorrem as distribuições abaixo, com suas respectivas frequências:
ORDEM
1. V + PTP + Compl. Direto
2. V + Compl. Direto + PTP
3. Compl. Direto + V + PTP
4. PTP + V + Compl. Direto
5. Compl. Direto + PTP + V
6. V + PTP
FREQUÊNCIA
21%
15%
94%
2%
4%
17%
Tabela 14: Ordem dos constituintes (MATTOS E SILVA 1981, 1992)
Nos dados da autora, nota-se que as distribuições com maior frequência são a 3,
em que o complemento direto do verbo é um relativo, sem marcas de gênero e número; a
1, em que o complemento sucede ter/haver e o PTP e a 6, em que o complemento é 0. Naro
e Lemle (1977:266 cf. MATTOS E SILVA 1992) analisam e quantificam as distribuições do tipo
40
O corpus de Mattos e Silva (1981, 1992) é oriundo dos quatro livros dos Diálogos de São Gregório (DSG).
111
1, 2 e 3 do quadro acima e observam que a não-concordância do PTP ocorre mais
frequentemente em 3, seguida por 1; 2 não é afetado pela mudança, já que essa estrutura
se mantém até hoje, com valor adjetivo.
Os resultados da tabela de Mattos e Silva (1992) permitem supor que, no que diz
respeito à difusão da mudança na ordem dos constituintes da sentença, a perda da
concordância do PTP e sua reinterpretação como verbo partiu dos contextos em que a
concordância não é saliente, sendo considerados mais salientes aqueles contextos em que o
complemento do verbo precede ter/haver e o PTP, como também afirma Almeida (2006).
Mattos e Silva (1992), ao combinar seus resultados com os de Naro e Lemle (1977
cf. MATTOS E SILVA 1992), propõe que a difusão da mudança foi favorecida pela ordem, já
existente em Português, em que o PTP não recebe marcas de concordância, já que seu
complemento pode ser masculino e singular, bem como pela estrutura em que o
complemento direto é nulo, recuperável por pronomes como, por exemplo, isto.
Nos contextos em que o PTP pode ser flexionado pela concordância com o
complemento direto do verbo, a autora supõe que a difusão percorria o seguinte curso no
século 15:
“a. Contextos em que CD está preenchido pelo relativo, não marcado em
gênero e número: nos dados de Naro e Lemle há 31.6% de casos nessa
distribuição sem marca de concordância no séc. XV, mas 0 no XIV. Os meus
resultados reforçam a significação desse contexto, que é o mais freqüente;
b. contextos em que CD sucede haver/ter, distribuição própria ao tempo
composto: os dados de Naro e Lemle indicam, para o século XV, 17.7% de
casos em que a perda da concordância está documentada e 0 para o XIV.
Nos meus dados essa estrutura é a segunda em frequência” (MATTOS E
SILVA 1992:94).
Ao analisar o comportamento da ordem dos constituintes nas estruturas com
ter/haver + PTP no corpus observamos que algumas ordens eram possíveis, como visto
anteriormente. Em relação a este tipo de construção, é possível afirmar que, no PA, a ordem
dos constituintes das construções participiais ainda não estava muito bem fixada. Hoje,
sabe-se que a ordem prototípica dos tempos compostos é V PTP N (eu tenho lido muitos
livros) e a das construções adjetivas se configura em torno da ordem V N PTP (eu tenho os
trabalhos feitos), contudo, no PA, ao menos no que respeita a ordem das construções que
vieram a se tornar estruturas de tempo composto, esta ordem não era bem definida.
112
Observem-se os exemplos abaixo, das possíveis ordenações de constituintes encontradas no
corpus analisado.
V PTP N
(92)
Enquanto el rey dom Afonso teve cercada esta villa, mandou o iffante do~
Henrrique, seu yrma~ao, que fosse cercar a villa d'Arcos e outrossi Librixa, que era
dhu~a moura. (CA14-005 – Crónica de D. Afonso X; século 14)
N V PTP
(93)
Quando ssecheguava a ora da sua p(re)ciosa mort(e), veo sua madre, que da
espada da ssua paixom a alma avia t(r)espassada. (CP15-021 – Castelo Perigoso;
século 15)
V N PTP
(94)
Quem assi se humillda sem fingimento e sem buscar o prazer do mundo e que aja
em si esta dobrada homildadeprofundament(e) no coraçomrreiguadae que a
mostre aa de fora p(er) obras, elleha´ as cavas dobradas p(er)a guardar o castello
do coraçom. (CP15-013 – Castelo Perigoso; século 15)
N nulo
(95)
E dize~ que ouvero~ começo quando se a terra guaanhou aos mouros, que os
home~es começava~ de povorar a terra e fazer algu~us lugares cha~aos, dos
quaaes el rey no~ curava seno~ da justiça. (CA14-041 – Crónica de Afonso X; século
14)
Relativizado
(96)
Depois que el rey dom Afonso cobrou esta villa de Telhada, foi a outros logares que
os mouros tiinham hy acerca e tomouhos. E foisse pera Sevilha. E deulhe este logar
de Telhada e outros queavya guaanhados por termo e partio daly e veosse a
Tolledo. (CA14-002 – Crónica de Afonso X; século 14)
A análise dos tipos de ordem encontrados no corpus permitem algumas
generalizações. Primeiramente observou-se que a ordem V N PTP é a ordem típica das
construções adjetivas no PA. Como veremos mais adiante, os dados relativos a esta
ordenação
de
constituintes
apresentam
marcação
de
concordância
categórica,
evidenciando o caráter adjetivo destas construções. As ordens que apresentam as
sequências V PTP, isto é ter/haver seguido de PTP, dão margem a duas interpretações: a
113
construção pode ser ou adjetiva ou de tempo composto. Contudo, ainda que as duas ordens
que apresentam esta sequência, isto é, V PTP N e N V PTP, permitam a interpretação de
tempo composto, somente a primeira se fixará como a ordem prototípica dos tempos
compostos perfectivos, ao passo que a segunda é gradualmente eliminada da gramática do
Português.
No que refere ao que foi dito anteriormente, a análise dos dados selecionados para
esta Dissertação trouxe resultados semelhantes aos de Mattos e Silva (1992) em relação à
ordem (Tabela 13). Observem-se abaixo os dados na Tabela 14, em que são apresentados os
valores percentuais de acordo com a ordem ocorrida:
ORDEM
Relativizado
V PTP N
N V PTP
V N PTP
N nulo
TOTAL
OCORRÊNCIAS
143
74
51
43
15
326
PERCENTUAIS
44%
23%
15%
13%
5%
326
Tabela 15: Ordem dos constituintes nas estruturas com ter/haver + PTP
Como nos dados de Mattos e Silva (1992), a ordem favorita nas construções com
perifrásticas com ter e haver é a em que o complemento ocorre relativizado, com 44 pontos
percentuais. Deve-se destacar, contudo, que as estruturas relativizadas não competem, em
termos de ordem, com as outras ordenações levantadas no PA para as construções com
ter/haver + PTP, uma vez que tratam-se de construções estruturalmente distintas. No
entanto, estas construções foram agrupadas como uma ordem à parte de modo que fosse
possível observar em que medida a relativização do complemento influenciava na marcação
da concordância.
Após as estruturas relativas, a ordem [V + PTP + N] é a que mais ocorre, somando
23% dos dados. Diferentemente dos dados de Mattos e Silva (1992), a terceira ordem de
constituintes mais comum no corpus deste trabalho é a [N + V + PTP], seguida de [V + N +
PTP] (13%) e, por fim, quando o complemento é nulo (5%). Note-se que as ordens em que
ter/haver precedem o PTP são as mais comuns.
Ao separar os dados entre as construções com ter, por um lado, e as de haver, por
outro, os resultados mostram algumas diferenças. Observem-se os dados de ter e haver em
relação à ordem na Tabela 16 abaixo.
114
ORDEM
Relativizado
V PTP N
V N PTP
N V PTP
SN nulo
TOTAL
TER
Oco. - %
90 – 46%
39 – 20%
31 – 16%
30 – 15%
6 – 3%
196 – 100%
HAVER
Oco. - %
53 – 41%
35 – 27%
12/130 – 9%
21/130 – 16%
9/130 – 7%
130 – 100%
Tabela 16: Ordem dos constituintes nas construções com ter + PTP
Como é possível observar, ao isolar os dados de construções com ter + PTP, nota-se
que a ordem é a com o complemento relativizadosomando quase metade dos dados.
Contudo, se observarmos em termos de estruturas, as relativas somam 46% do total,
percentual mais baixo do que o das estruturas simples (i.e., todas as que não são relativas).
Em seguida, tem-se a ordem [V PTP N], somando 20% dos dados, considerada favorável à
gramaticalização de ter como auxiliar, formando tempos compostos perfectivos, uma vez
que esta é a ordem fixa deste tipo de construção (auxiliar + PTP). Em seguida, a ordem que
mais ocorre é [V N PTP], em que o complemento está entre ter e o PTP, portanto uma
ordem não favorável à gramaticalização. A quarta ordem mais frequente é [N V PTP],
também favorável à gramaticalização, uma vez que ter precede o auxiliar. Por fim, há 6
ocorrências de complemento nulo, somando 3% dos dados com ter.
Ao isolar os dados com haver foram observadas algumas diferenças em relação aos
dados de ter + PTP. Como ocorre com os dados com ter + PTP, os exemplos mais frequentes
são aqueles em que o complemento está relativizado, somando 41% das construções
coletadas. Em seguida, também como ocorre com os dados com ter, a ordem favorita é [V
PTP N], contexto favorável à gramaticalização. A diferença está nos percentuais seguintes:
as próximas ordens mais frequentes são [N V PTP] (16%) e [V N PTP] (9%), que são contextos
favoráveis e não favoráveis à gramaticalização, respectivamente. Por fim, como nos dados
com ter, ocorrem as construções com complemento nulo, somando 7%.
A diferença entre ter e haver no que respeita a ordem está no fato de, nos dados
de haver + PTP serem mais frequentes os contextos que favorecem a fixação da ordem em
[V (haver) + PTP], ordem prototípica dos tempos compostos perfectivos do Português. Tal
resultado sugere que as construções com haver + PTP tenham se gramaticalizado antes das
115
construções com ter + PTP. Contudo, como visto na seção anterior, dados relativos à
concordância sugerem que a mudança já teria ocorrido no século 13, com ambos os verbos.
Para que se observasse em que medida as ordens favoráveis à gramaticalização
ocorriam ao longo dos séculos, foram cruzados os grupos de fatores século e ordem, a partir
do que se obteve a Tabela 17 abaixo:
SÉCULO
Relat.
Oco. %
V PTP N
Oco. %
V N PTP
Oco. %
N V PTP
Oco. %
13
14
15
16
28
25
29
61
12
13
22
27
10
5
18
10
12
18
13
8
45%
37%
43%
57%
19%
19%
25%
25%
16%
7%
21%
9%
19%
26%
15%
7%
N nulo
Oco %
.
0
0%
7
10%
6
6%
2
2%
TOTAL
Oco.
62
68
88
108
Tabela 17: Ordem dos constituintes nas estruturas com ter/haver + PTP, em relação ao século
No corpus do século 13, dentre as ordens controladas, ocorrem em maior
percentagem as construções relativizadas, somando 45% dos dados deste período. Em
relação às outras possíveis ordens, estas ocorriam em variação livre, sem haver clara
preferência por uma ou por outra. No corpus analisado observou-se que neste período as
ordens [V N PTP] (19%) e [N V PTP] (19%) ocorriam em igual proporção, sendo estas as com
maiores ocorrências, e a ordem [V PTP N] ocorre em 16% dos dados deste século. No século
13 não há nenhuma ocorrência de construções com complemento nulo.
No século 14, com exceção das construções relativizadas, que somam 37% dos
dados, são favoritas as ordens [N V PTP], que soma 26% das estruturas, e [V PTP N], que
soma 19% dos dados controlados. Neste período caem as estruturas com a ordem [V N
PTP], que somam 7%, e sobem as ocorrências de construções com complemento nulo, que
somam 10% das ocorrências.
No século 15 as construções com complemento nulo sofrem uma queda, somando
6% dos dados. As construções relativizadas aumentam em relação ao século anterior,
passando a 43%, não sofrendo, portanto, grandes alterações na frequência desde o século
13. As construções com a ordem [V PTP N] aumentam desde o século 13, passando a 25%,
assim como as com a ordem [V N PTP], que passam a 21% das estruturas. Finalmente, a
frequência da ordem [N V PTP] cai para 15% dos dados.
No século 16 a proporção de construções relativizadas sobe para 57%. As
construções com a ordem [V PTP N] mantêm o mesmo percentual que o século anterior,
116
somando 25% dos dados. Em contrapartida, as ordens [V N PTP] e [N V PTP] caem para 9% e
7%, respectivamente. O mesmo ocorre com as construções com complemento nulo, que
passam a 2% das ocorrências.
Os dados expostos na tabela acima podem ser melhor visualizados no gráfico
abaixo.
56%
60%
45%
50%
37%
40%
30%
20%
26%
19%
19%
16%
25%
20%
19%
25%
15%
10%
10%
0%
33%
0%
Século 13
7%
Século 14
Relativizado
V PTP N
9%
7%
7%
2%
Século 15
Século 16
V N PTP
N V PTP
N nulo
Gráfico 3: Ordem dos constituintes, por século
O Gráfico 3 permite observar de forma mais clara as curvas dos percentuais
relativos à ordem ao longo dos séculos. Primeiramente, chama a atenção o considerável
aumento das estruturas relativizadas, que chegam a 56% dos dados no século 16. De modo
geral, é interessante observar que a ordem [V PTP N] aumenta ao longo dos séculos, como
era esperado, uma vez que esta é a sequência que se fixa nas construções de tempo
composto. A ordem [N V PTP] favorece a interpretação do PTP como verbo, uma vez que
apresenta a sequência [V PTP], mas cai ao longo dos séculos, sendo gradualmente extinta da
gramática do Português. Já a ordem [V N PTP], típica das construções adjetivas, segue em
variação ao longo dos séculos.
No que respeita a ordem foram analisadas ainda as sequências levantadas, em
relação a ter e haver. Deste modo, isolamos somente os dados com haver para que os
percentuais fossem fornecidos separadamente pelo programa de análise computacional
GoldVarbX. A partir disso foi montada a Tabela 18, a seguir, em que se observam os
percentuais de ocorrências das ordens controladas.
117
Século
13
14
15
16
TOTAL
Ter
Haver
Total
Ter
Haver
Total
Ter
Haver
Total
Ter
Haver
Total
Ter
Haver
Total
Relat.
7
21
28
7
18
25
15
14
29
61
0
61
90
53
143
37%
49%
45%
33%
38%
37%
30%
37%
33%
58%
0%
56%
46%
41%
44%
V PTP N
3
16%
9
21%
12 19%
3
14%
10 21%
13 19%
7
14%
15 39%
22 25%
26 25%
1
50%
27 25%
39 20%
35 27%
74 23%
V N PTP
6
32%
4
9%
10 16%
3
14%
2
4%
5
7%
13 26%
5
13%
18 20%
9
8%
1
50%
10 9%
31 16%
12 9%
43 13%
N V PTP
3
16%
9
21%
12
19%
8
38%
10
21%
18
26%
11
22%
2
5%
13
15%
8
8%
0
0
8
7%
30
15%
21
16%
51
16%
N nulo
0
0%
0
0%
0
0%
0
0%
7
15%
7
10%
4
8%
2
5%
6
7%
2
2%
0
0%
2
2%
6
3%
9
7%
15
5%
TOTAL
19
43
62
21
47
68
50
38
88
106
2
108
196
130
326
Tabela 18: Ordem dos constituintes nas construções com ter/haver, por século, em relação a ter e haver
Com base nos resultados obtidos, observou-se que a ordem [V N PTP] ocorria mais
com o verbo ter do que com haver, a partir do que se pode sugerir que este era o verbo
preferido das construções adjetivas, em todos os séculos, principalmente nos séculos 13, 14
e 15. Em relação às ordens que impulsionaram a mudança, isto é, aquelas que apresentam a
sequência [V PTP], observou-se o seguinte. A ordem [V PTP N] é mais utilizada com haver
em todos os séculos, enquanto a sequência [N V PTP] é preferida com este verbo apenas no
século 13, sendo ter o mais utilizado com esta ordem nos séculos 14, 15 e 16. Em relação às
construções relativas, estas são mais produtivas com haver até o século 15; no século 16
todas as construções relativizadas são utilizadas com ter. As construções com complemento
nulo apresentam comportamento pouco estável, não havendo ocorrências no século 13,
ocorrendo categoricamente com haver no século 14, apresentando variação em favor de ter
no século 15 e ocorrendo categoricamente com ter no século 16. Por fim, todas as ordens
ocorrem mais frequentemente com ter no século 16, uma vez que a maioria dos dados
deste século é de construções com este ter + PTP.
A subseção seguinte tratará do cruzamento dos grupos de fatores ordem e
concordância. Discutiremos como os dois fatores estão interligados e como sua análise
contribui para o estudo da gramaticalização de ter e haver e, consequentemente, da
emergência dos tempos compostos perfectivos em Português.
118
3.4.4. A relação concordância vs. ordem
Como foi visto nas seções anteriores, fatores como a marcação da concordância
entre o PTP e o complemento e a ordenação dos constituintes nas estruturas de ter e haver
+ PTP trazem evidências para a gramaticalização destes verbos como auxiliares. A mudança
sintática, isto é, a fixação de um novo parâmetro a partir de um gatilho ambíguo – que,
neste caso, julgamos serem as construções cujo complemento está no masculino, singular –
fica visível quando perdem-se as marcas de concordância em questão e quando a ordem da
construção estudada é fixada em [V PTP N].
Com base no modelo de mudança linguística e no modelo de gramática utilizado,
supomos que a gramaticalização de ter e haver tenha resultado, superficialmente, na
fixação da ordem e na perda das marcas de concordância. Deste modo, a mudança no
parâmetro do movimento do núcleo, isto é, a perda do movimento V para I, causou tais
rearranjos na gramática do PA, no que respeita às construções de ter/haver + PTP. Tal
suposição se baseia em Lightfoot (1998:95), que afirma “because parameters are abstract
and structural, changing one parameter setting may entail a range of new surface
phenomena”41. Do mesmo modo, Lightfoot (1998:105) argumenta, ainda, que “not only is a
new gramatical property typically manifested by a cluster of new phenomena; it also
sometimes sets off a chain reaction (...) such chain reactions can be understood through the
acquisition process”42.
Desta forma, a mudança de ter e haver pode ser vista como uma mudança em
cadeia, ou chain reaction: a partir de um gatilho ambíguo – construções de ter/haver + PTP
com complemento masculino, singular – o aprendiz adquire a estrutura com interpretação
de tempo composto, por esta ser a menos custosa, uma vez que, nesta estrutura, não há
movimento de ter/haver de V para I; estes verbos são concatenados diretamente em I.
Como consequência deste processo de reanálise, o PTP é reinterpretado como verbo, uma
41
“Devido ao fato de os parâmetros serem abstratos e estruturais, a mudança na fixação de um único
parâmetro pode desencadear uma série de novos fenômenos superficiais” [minha tradução].
42
“Novas propriedades gramaticais são não só manifestadas por uma série de novos fenômenos como
também podem desencadear uma reação em cadeia (...) tais reações em cadeia podem ser compreendidas por
meio do processo de aquisição” [minha tradução].
119
vez que ter e haver, ao serem concatenados diretamente em I, perdem estrutura temática;
o PTP passa, então, a ser o predicador da sentença. Outra consequência da concatenação de
ter/haver diretamente em I é a fixação da ordem, que se cristaliza em V PTP N. Por fim
perdem-se as marcas flexionais de concordância do PTP com o complemento. A observação
do comportamento das estruturas em questão relacionado à ordem e à concordância é,
pois, necessária, uma vez que estes são os únicos passos da gramaticalização
superficialmente visíveis.
No que respeita a relação entre ordem dos constituintes e concordância, Almeida
(2006:91), afirma que “é categórica a presença de concordância quando o complemento se
encontra à esquerda da construção participial ou quando está localizado entre ter/haver e a
forma participial no corpus”.
Ao analisar o comportamento da ordem relativamente à concordância ao longo dos
séculos, Almeida (2006:93) observa que “ainda no século XIV, quando o complemento está
localizado entre ter/haver e a forma participial, há uma maior probabilidade de a forma
participial estar indicando um estado do SN, impondo uma interpretação passiva ao
complemento dos verbos ter e haver. Contudo, nos casos em que o complemento se
encontra à esquerda do particípio, recuperado por um anafórico, há uma tendência de
interpretar o PTP como [+verbo]”.
No século 15, a autora nota que nos contextos em que há dois ou mais elementos
entre ter e haver e o PTP a marcação da concordância é também categórica. Sua hipótese é
a de que a intercalação de elementos na construção participial evidencie que a estrutura
não configura ainda uma forma composta. Contudo, ela percebe que neste período,
estruturas em que, mesmo havendo a intercalação de apenas um elemento entre ter/haver
e a forma participial, não há a flexão entre o PTP e o complemento.
Finalmente, nos séculos 16 e 17 Almeida (2006) observa que a flexão do particípio
com o complemento cai consideravelmente. Conclui a autora que até o século 15, a
concordância se dava prioritariamente quando o complemento se localizava mais à
esquerda; contudo, no século 16, esse aspecto passa a não ser mais definidor. Seus dados
confirmam que, quando o complemento sucede o PTP, a concordância entre o PTP e o
complemento é ainda mais restrita. Mesmo nos contextos em que o complemento precede
a construção, há, neste século, o predomínio de estruturas sem marcação de concordância.
120
De modo a observar a relação ordem-concordância no corpus utilizado nesta
Dissertação, cruzamos estes grupos de fatores, a partir do que foram obtidos os seguintes
percetuais, expostos na Tabela 19, a seguir.
+ concordância
- concordância
Total
Relativizado
Oco. - %
67 - 89%
8 - 11%
75 – 100%
V PTP N
Oco. - %
49 - 71%
20 - 29%
69 – 100%
V N PTP
Oco. - %
44 - 100%
0 – 0%
44 – 100%
N V PTP
Oco. - %
48 - 96%
2 - 4%
50 – 100%
N nulo
Oco. - %
9 - 82%
11 - 18%
20 – 100%
Tabela 19: Cruzamento dos grupos de fatores ordem e concordância
Como se observa na Tabela 19, a ordem [V N PTP] é categórica quanto à marcação
de concordância, o que nos leva a concluir que esta era a ordem típica das construções
adjetivas desde o PA, perpetuando-se até o Português atual. (ex. eu tenho os trabalhos
feitos; eu tenho os livros rasgados etc). Nestas estruturas o verbo (ter ou haver) recebe
sempre a interpretação de verbo pleno, com conteúdo semântico de posse, e o PTP é de
caráter exclusivamente adjetivo, funcionando como um modificador do complemento
direto de ter/haver.
A ordem [V PTP N] foi a que apresentou os maiores índices de não concordância do
PTP com o complemento, somando 29%. Ainda que este percentual seja baixo em relação
ao de marcação de concordância (71%), este foi o mais alto dentre todas as ordens
encontradas no corpus. Com base no que viemos argumentando ao longo deste trabalho e
nos resultados obtidos, supomos que a formação dos tempos compostos se deve à fixação
desta ordem, uma vez que esta é a ordem prototípica do passado composto do Português
atual (ex. eu tenho feito os trabalhos; eu tenho rasgado livros etc).
A ordem [N V PTP], que apresenta 96% de marcação de concordância e 4% de não
marcação de concordância, apresenta a sequência [V PTP]. Supomos que por este motivo,
esta ordenação, junto com a ordem [V PTP N] teria favorecido também a interpretação das
construções como de tempo composto. Contudo, tal ordem apresenta níveis altos de
marcação de concordância, permitindo a interpretação da estrutura como sendo adjetiva.
Finalmente, os dados relativos às estruturas cujo complemento é nulo, mas
recuperável pelo antecedente, mostraram que 82% das estruturas apresentam marcas de
concordância e 18% não apresentam tais marcas.
121
Com base nos resultados é possível argumentar que no PA havia três ordens para
as construções de ter/haver + PTP: [V N PTP], [N V PTP] e [V PTP N], sendo a porcentagem
de suas ocorrências variável ao longo dos séculos. As ordens [V PTP N] e [V N PTP] irão se
perpetuar até o Português atual, sendo a primeira a ordem de construções de tempo
composto e a segunda, a ordem de construções adjetivas. As construções que têm a
sequência [V PTP] teriam sido aquelas que engatilharam a mudança em direção à formação
dos tempos compostos. A ordem [V PTP N], com complemento posposto, é a que se
concretiza como a ordem prototípica dos tempos compostos; a ordem [N V PTP], com
complemento anteposto, permitia mais frequentemente dupla interpretação, podendo ser
considerada como uma estrutura adjetiva ou uma perífrase perfectiva. Após a
gramaticalização de ter e haver tal ordem é gradualmente excluída da gramática da língua.
Com base no que vimos ao longo deste capítulo e nos resultados da Tabela 19e nos
Gráficos 2 e 3 podemos fazer algumas observações. Primeiramente o que se observa é que
os séculos 14 e 15 marcam um importante período de transição. A partir do século 14
aumentam os percentuais de estruturas sem marcas de concordância. Neste século crescem
os números das ordens [N V PTP] e N nulo. No século 15 crescem os números das ordens [V
N PTP] e [V PTP N], ordem que segue aumentando até o século 16, ao passo que as outras
ordens diminuem.
O considerável aumento das construções com complemento nulo no século 14,
período em que também aumentam consideravelmente os níveis de não aplicação da
concordância, pode ser interpretado como uma estratégia das gramáticas particulares de
cada falante para evitar a marcação ou não de concordância. De modo geral, todas as
estruturas com complemento nulo aumentam neste período, sejam elas com concordância
observável ou não. Desta forma, interpretamos que as gramáticas dos falantes optam pelas
construções com N nulo neste período de transição, evitando a escolha de uma estrutura
com marcas claras de concordância ou não.
O aumento das ordens [V N PTP] e [V PTP N] no século 15 nos leva a interpretar
que neste século houve um período de variação no que respeita estas estruturas. Como
veremos na seção seguinte, analisamos esta variação em termos de gramáticas em
competição, nos moldes de Kroch (1989).
Deste modo, os séculos 14 e, mais
expressivamente, 15, são vistos como um período em que competem duas gramáticas, G1 e
G2. G1 seria uma gramática em que só há a construção de ter/haver + PTP com valor
122
adjetivo e G2, uma gramática em que se observam duas estruturas: a construção de
ter/haver + PTP adjetivo e a construção de ter/haver + PTP interpretada como tempo
composto.
Na seção seguinte veremos o caminho da mudança pela qual passaram ter e haver
ao longo dos séculos no PA. Procuraremos descrever a gramaticalização destes verbos com
base em de R&R (2003) e explicar como esta mudança resultou na formação dos tempos
compostos em Português.
3.5. A gramaticalização de ter e haver e a emergência dos tempos
compostos
No quadro teórico de Princípios e Parâmetros (cf. CHOMSKY 1995, 2000), cada
indivíduo é dotado de uma capacidade inata de aprendizagem de uma língua e de uma GU
que contém uma série de princípios fixos. O processo de aquisição da linguagem é visto
neste quadro como uma consequência da interação entre esta capacidade mental inata e o
input linguístico disponível como amostra para a aquisição, isto é, a Língua-E da geração a
qual os aprendizes serão expostos. Este processo será responsável para que os aprendizes
fixem os valores dos parâmetros positiva ou negativamente (entendendo-se por parâmetros
as propriedades dos núcleos funcionais, como no modelo de 1995, 2000). Observe-se a
Figura 6 abaixo, que ilustra o processo de aquisição paramétrica, de acordo com o modelo
de Chomsky (1995, 2000):
Figura 8: Processo de aquisição da linguagem segundo o quadro da Teoria de Princípios e Parâmetros
(CHOMSKY 1981, 1995, 2000).
A Figura 9 mostra que uma geração N compartilha elementos de uma mesma
Língua-I, capaz de gerar enunciados. As amostras de Língua-E da geração N servem de input
123
para que a geração seguinte, N+1, adquira sua Língua-I. O contato dos aprendizes com os
dados linguísticos da geração anterior fará com que estes falantes aprendam o léxico e,
consequentemente, fixem os valores dos parâmetros em questão. Deste modo, como vimos
no capítulo anterior, a mudança linguística é entendida como uma mudança na fixação do
valor de um determinado parâmetro, e se dá durante o processo de aquisição da linguagem
(cf. LIGHTFOOT 1979, 1991).
Neste processo, a mudança linguística ocorre quando a natureza dos dados
linguísticos que servirão de input para a fixação de um parâmetro é obscura ou ambígua
para a nova geração, permitindo interpretações distintas. Neste caso, a seleção se dá em
função das representações mais simples. Como visto anteriormente, na modelo de
gramaticalização de R&R (2003), são justamente os dados linguísticos ambíguos que irão
impulsionar o processo de gramaticalização. Para os autores, o processo de
gramaticalização só ocorre quando se observam duas formas, ainda que homófonas, que se
comportam, sintaticamente, de forma distinta, levando à possibilidade de duas
interpretações distintas. No caso das construções formadas por ter/haver + PTP, assumimos
que o gatilho para a renálise que levará à gramaticalização sejam, como vimos, as
construções com complemento masculino, singular, uma vez que, nestes casos, são
possíveis duas interpretações: (i) a de uma construção adjetiva e (2) a de uma construção já
gramaticalizada, de tempo composto.
Nestes moldes, a mudança se inicia quando uma população de aprendizes converge
em um sistema gramatical – Língua-I – que difere em pelo menos um valor paramétrico do
sistema internalizado por falantes cujas produções linguísticas serviram de input para os
aprendizes.
Adotando o conceito de parâmetros de Chomsky (1995, 2000), a mudança
linguística passa a ser relacionada a alterações nas propriedades dos núcleos funcionais.
Como os parâmetros são propriedades dos núcleos funcionais e estes estão no léxico, o
processo de remarcação do parâmetro se dará no período de aquisição da linguagem por
meio do aprendizado do léxico. A gramaticalização é capturada, pois, como um caso de
mudanças nas propriedades dos núcleos funcionais, sendo, portanto, um caso regular de
mudança paramétrica.
Sendo a gramaticalização um caso regular de mudança paramétrica, a reanálise de
ter e haver como auxiliares de tempo composto se daria no momento de aquisição da
linguagem, sendo desencadeada pelo gatilho oferecido por evidências linguísticas ambíguas
124
aos aprendizes que adquirem sua gramática. Deste modo, assumimos que a reanálise de ter
e haver tenha tido início com base em dois parâmetros: (1) construções com ter e haver +
PTP, com complemento masculino, singular, e com pronome qu-, cuja interpretação é a de
uma perífrase adjetiva e (2) construções com ter e haver + PTP, com complemento
masculino, singular, e com pronome qu-, cuja interpretação é a de tempo composto
perfectivo. Como o processo de aquisição da linguagem é orientado para a aquisição de
estruturas mais simples (cf. LIGHTFOOT 1979, 1991, 1998; ROBERTS & ROUSSOU 2003), a
construção que recebe a interpretação de tempo composto é preferível.
Tal preferência se deve ao fato de as construções com interpretação de tempo
composto serem sintaticamente mais simples, ou menos custosas, no que respeita às
propriedades de movimento de núcleo. Como vimos anteriormente, a gramaticalização
envolve a criação de novo material funcional, seja a partir da reanálise de material lexical ou
da reanálise de material funcional já existente. No caso das construções de ter e haver +
PTP, ocorre a reanálise da categoria lexical V, isto é, ter e haver, enquanto verbos plenos,
que é reinterpretada como uma categoria funcional I (ou, na nomenclatura de R&R 2003, T,
tense) nas construções de tempo composto perfectivo. A reanálise de verbo pleno como
verbo auxiliar resulta na perda de uma operação de movimento: enquanto categorias
lexicais, ter e haver eram concatenados em V e se moviam para I para receber marcas
flexionais e, após a mudança, são concatenados diretamente em I, não sendo mais
necessária a operação de movimento de V para I. Como consequência, surge uma
construção monoclausal formada pela sequência auxiliar-auxiliado. Neste sentido, nos
moldes de R&R, a perda da operação de movimento leva à gramaticalização: ter/haver são
reanalisados de V para I e a gramaticalização resulta na reanálise da estrutura biclausal V
(pleno) + PTP para uma estrutura perifrástica V (auxiliar) + PTP.
Deste modo, assumimos que as estruturas com interpretação adjetiva apresentam
movimento de ter/haver de V para I, ao passo que as estruturas com interpretação de
tempo composto não o fazem, sendo ter/haver concatenados diretamente em I. Observemse as Figura 9 e Figura 10 abaixo.
125
Figura 9: Representação sintática de construção adjetiva de ter/haver + PTP
Figura 10: Representação sintática de construção de tempo composto perfectivo
Como é possível observar a Figura 10 ilustra uma estrutura adjetiva formada por
ter/haver + PTP, em que as setas indicam as operações de movimento ocorridas (V para I e
movimento do sujeito de [spec, VP] para [spec, IP]). Nesta configuração, ter e haver
funcionam como verbos plenos e são concatenados na posição de V, após o que se movem
para a posição de núcleo de IP, onde recebem marcas flexionais. Nesta construção, a
posição de complemento de V é preenchida por uma SC formada por um NP e um PTP de
caráter adjetivo. A segunda estrutura, apresentada na Figura 11, representa a configuração
126
genérica de uma estrutura de tempo composto perfectivo, formada por ter/haver + PTP.
Nesta construção, observamos uma perífrase em que ter/haver são concatenados
diretamente no núcleo de IP, posição prototípica dos verbos auxiliares. O PTP,
reinterepretado como verbo, é concatenado em núcleo de V e a posição de complemento
de V pode ser preenchida por um NP complemento ou estar vazia.
Em suma, o processo de mudança de ter e haver que resultou na emergência dos
tempos compostos pode ser capturado nos seguintes termos. O input ambíguo – estruturas
de ter/haver com complemento masculino, singular – é adquirido pelo falante com duas
possibilidades de interpretação: (i) construção adjetiva, em que há operação de movimento
de núcleo de V para I e (ii) construção de tempo composto, estrutura mais simples em que
não há operação de movimento de V para I.
Em relação aos dois tipos e construção e a aquisição de uma ou de outra,
assumimos a existência de duas gramáticas no PA: G1, uma gramática conservadora na qual
existe apenas a construção do tipo (i), adjetiva, e G2, uma gramática inovadora, na qual
existem as duas construções: (i) e (ii). A depender do input que o aprendiz terá no período
de aquisição da linguagem, ele adquire uma ou outra gramática. À medida que os dados
linguísticos das construções do tipo (ii) vão aumentando no corpus, isto é, a medida que a
presença de G2 é visível na Língua-E, é possível afirmar que a mudança está se
implementando. Assumimos, portanto, que, após um período de competição entre as duas
gramáticas (cf. KROCH 1989), vence G2, e ambas as estruturas passam a ser produtivas em
Português, cada uma exercendo sua função na língua.
O processo de mudança em questão é visto, ainda, como uma reação em cadeia,
uma vez que a mudança em um único parâmetro pode desencadear uma gama de novos
fenômenos visíveis superficialmente (LIGHTFOOT 1998). Deste modo, assumimos que, a
partir dos dados ambíguos que servem de input no período de aquisição da linguagem, o
aprendiz adquire a estrutura mais simples, isto é, a que recebe a interpretação de tempo
composto. Contudo, a aquisição deste novo parâmetro gera uma série de outras mudança
visíveis na Língua-E, tais como a fixação da ordem e a perda das marcas de concordância do
PTP com o complemento.
127
3.6. Síntese
O presente capítulo teve como objetivo descrever e trazer evidências empíricas
para a análise da gramaticalização de ter e haver em auxiliares, mudança que culminou na
formação dos tempos compostos perfectivos em Português.
Primeiramente analisamos o comportamento de ter e de haver enquanto verbos
plenos e enquanto verbos auxiliares nas construções com PTP; simultaneamente foi feita
uma revisão da literatura relevante sobre o assunto. Observamos que, enquanto verbos
lexicais, funcionam como predicadores da estrutura participial, sendo o PTP, neste caso,
interpretado como um adjetivo. Enquanto verbos auxiliares, ter e haver sofrem perda de
estrutura argumental e temática, bem como o conteúdo semântico de posse. Neste caso, o
PTP atua como o predicador da sentença, selecionando semanticamente o sujeito da
construção.
Em relação a reinterpretação do PTP, assumimos que até a emergência dos tempos
compostos, este funcionava apenas como um adjetivo. Após a mudança, passa a exercer
dupla função, podendo funcionar como adjetivo nas construções transitivas-predicativas e
como verbo nas estruturas de tempo composto.
Acerca das evidências empíricas obtidas a partir da análise do corpus observamos,
primeiramente, que as construções com haver eram mais produtivas no corpus até o século
14, a partir do que crescem as construções com ter. No que respeita à concordância,
observamos que as estruturas que apresentam concordância do PTP com o complemento
ocorrem de maneira constante ao longo dos séculos, sofrendo uma pequena queda a partir
do século 14. As estruturas sem marcas de concordância se mantêm igualmente estáveis,
mas apresentam crescimento a partir do século 14. Os dados ambíguos se mostraram
relevantes para o processo de gramaticalização das construções em questão. Primeiramente
observou-se que estas competem não com as estruturas sem marcas de concordância, mas
com as estruturas transitivas-predicativas. Deste modo, os dados ambíguos ocorrem em
competição com as estruturas adjetivas até que estas diminuem consideravelmente ao
passo que as estruturas ambíguas aumentam. Além disso, observamos que os dados com
complemento masculino, singular são os mais frequentes no corpus. Como visto, a maior
frequência deste tipo de construção pode ser entendida como uma evidência de que este
era o gatilho mais frequente no período de aquisição da linguagem. Em um modelo em que
128
a mudança é vista em termos de mudanças paramétricas, isto é, uma mudança na fixação
de um dado parâmetro no período de aquisição da língua, a frequência é uma evidência
importante. Isto se dá uma vez que, quanto maior a frequência de um dado fenômeno, mais
este estará servindo de input para as gerações seguintes de falantes.
Em relação à ordem, observamos que certas ordens favorecem a concordância do
PTP com o complemento, ao passo que outras a desfavorecem. A ordem prototípica das
construções adjetivas, [V N PTP] apresentam concordância categórica. As ordens que irão
servir de gatilho junto com as construções em que o complemento é masculino, singular,
que apresentam a sequência [V PTP] apresentam variação na marcação da concordância. A
ordem [N V PTP] diminui gradativamente da gramática do Português, dando espaço à ordem
que irá se fixar nas construções de tempo composto, [V PTP N].
Finalmente, na última seção descrevemos o processo de gramaticalização de ter e
haver, analisando os passos da mudança de acordo com o quadro de R&R (2003). Com base
neste quadro interpretamos a mudança da seguinte maneira. O input ambíguo é adquirido
pelo falante com duas possibilidades de interpretação: (i) construção adjetiva, em que há
operação de movimento de núcleo de V para I e (ii) construção de tempo composto,
estrutura mais simples em que não há operação de movimento de V para I. Neste quadro a
mudança sintática é vista como um caso regular de mudança paramétrica.
Em relação aos dois tipos e construção e a aquisição de uma ou de outra,
assumimos, ainda, a existência de duas gramáticas no PA: G1, uma gramática conservadora
na qual existe apenas a construção do tipo (i), adjetiva, e G2, uma gramática inovadora, na
qual existem as duas construções: (i) e (ii). A depender do input que o aprendiz terá no
período de aquisição da linguagem, ele adquire uma ou outra gramática. Após um período
de competição entre as duas gramáticas (cf. KROCH 1989), vence G2, e ambas as estruturas
passam a ser produtivas em Português, cada uma exercendo sua função na gramática da
língua.
O processo de mudança em questão foi interpretado, com base em Lightfoot
(1998) como uma reação em cadeia, uma vez que a mudança em um único parâmetro pode
desencadear uma gama de novos fenômenos visíveis superficialmente. Deste modo,
assumimos que, a partir dos dados ambíguos – construções de ter/haver + PTP com
complemento masculino, singular – que servem de input no período de aquisição da
linguagem, o aprendiz adquire a estrutura mais simples, isto é, a que recebe a interpretação
129
de tempo composto. Contudo, a aquisição deste novo parâmetro gera uma série de outras
mudança visíveis na Língua-E, tais como a fixação da ordem e a perda das marcas de
concordância do PTP com o complemento.
Como foi visto, do ponto de vista da gramática gerativa, as propriedades
gramaticais das expressões linguísticas fornecidas pela documentação histórica (Língua-E)
servem para caracterizar o sistema linguístico internalizado pelo falante (Língua-I). No que
respeita ao objeto de estudo desta Dissertação, evidências de construções com ter e haver +
PTP já gramaticalizados no corpus do século 13 (portanto, evidências da Língua-I expressas
pela Língua-E) permitem concluir que a mudança havia ocorrido já neste período, ainda que
com um número restrito de falantes.
130
Conclusão
Os estudos que tratam da emergência dos tempos compostos perfectivos em
Português frequentemente analisam o surgimento destas construções como uma
consequência do processo de mudança por meio do qual ter e haver passam de verbos
plenos, com conteúdo semântico de posse, a verbos auxiliares (MATTOS E SILVA 1989, 1992,
1996, 2002; RIBEIRO 1993; VIOTTI 1998; ALMEIDA 2006, MEDEIROS 2013). Construções
antes formadas por ter/haver + um PTP adjetivo que apresenta marcas de concordância
com o complemento de ter ou de haver passam a estruturas perifrásticas formadas por um
verbo auxiliar + um PTP verbal. As gramáticas tradicionais (DIAS 1959; SAID ALI 1964;
CÂMARA JR. 1969) afirmam que enquanto se computam as marcas flexionais de
concordância do PTP com o complemento direto selecionado por ter e por haver, não é
possível afirmar que estamos diante de estruturas de tempo composto.
Por uma abordagem que considera uma concepção de língua como uma gramática
interna (cf. CHOMSKY 1995) e uma concepção de mudança linguística como mudanças nas
gramáticas particulares de uma população de falantes, procuramos descrever nesta
Dissertação a passagem de ter e haver de verbos plenos a auxiliares, o que culminou na
emergência dos tempos compostos perfectivos em Português, como um caso de
gramaticalização (R&R 2003). Com base no quadro utilizado, a gramaticalização é capturada
em termos de mudanças nas propriedades dos núcleos funcionais e considerada como um
caso regular de mudança paramétrica. Deste modo, interpretamos a mudança como sendo
um caso de simplificação estrutural, no qual há a perda de uma operação de movimento
sintático. No caso das construções de ter/haver + PTP, a estrutura original, com valor
adjetivo, é reanalisada como uma estrutura de tempo composto, sintaticamente mais
simples que a anterior.
A análise qualitativa dos dados mostrou que as estruturas analisadas podem ser
interpretadas de duas maneiras distintas: quando ter e haver expressam valor de posse
estamos diante de construções transitivas em que estes verbos selecionam um
complemento direto composto por um NP e um PTP adjetivo, que o modifica. O
complemento selecionado por ter ou haver é interpretado como uma SC, a partir do que
analisamos estas construções como sendo estruturas transitivas-predicativas. Quando ter e
131
haver deixam de expressar qualquer valor semântico e integram estruturas com um PTP de
caráter verbal com valor perfectivo, as interpretamos como sendo de tempo composto. Nas
perífrases perfectivas não são documentadas marcas de concordância entre o PTP e o
complemento.
A partir da análise do comportamento de ter e de haver enquanto verbos plenos e
enquanto verbos auxiliares nas construções com PTP foi possível observar que, enquanto
verbos lexicais, funcionam como predicadores da estrutura participial, sendo o PTP, como
visto, interpretado como um adjetivo. Enquanto verbos auxiliares, ter e haver sofrem perda
de estrutura argumental e temática, bem como o conteúdo semântico de posse. Neste caso,
o PTP passa a atuar como o predicador da sentença, selecionando semanticamente o sujeito
da construção. Em relação a mudança a partir da qual o PTP é reinterpretado como um
verbo, assumimos que até a emergência dos tempos compostos, este funcionava apenas
como um adjetivo. Após a mudança, passa a exercer dupla função, podendo funcionar como
adjetivo nas construções transitivas-predicativas e como verbo nas estruturas de tempo
composto.
A análise quantitativa dos dados trouxe resultados que permitiram algumas
conclusões acerca da descrição do fenômeno estudado e corroboram as hipóteses
formuladas no início desta Dissertação. Primeiramente, observamos que as construções
com haver eram mais produtivas no corpus até o século 14. A partir deste século aumentam
as construções com ter, até que estas se tornam maioria no corpus. Com base nisto foi
possível afirmar que as construções com ter vão gradualmente aumentando ao longo dos
séculos, paralelamente à diminuição das estruturas com haver. Atualmente sabe-se que as
estruturas de tempo composto perfectivo em PB são predominantemente com o verbo ter.
No que respeita à concordância, em geral, a literatura considera a perda destas
marcas morfológicas do PTP com o complemento de ter e haver como um indicador do
surgimento dos tempos compostos perfectivos. Associado a isto a fixação da ordem em
[ter/haver PTP] também é um marcador da emergência deste tempo verbal em Português.
Os dados obtidos com a análise do corpus permitiram observar que é a partir do século 13
que surgem as primeiras estruturas sem marcas de concordância, tanto com ter quanto com
haver. Isto sugere que a implementação da mudança se dá já neste século; contudo, seu
espraiamento ocorre ao longo dos séculos seguintes, quando aumentam as ocorrências
deste tipo de estrutura no corpus.
132
Em relação à concordância observou-se também que as estruturas consideradas
ambíguas exerceram importante papel na gramaticalização das construções em questão.
Primeiramente observou-se que estas competem não com as estruturas sem marcas de
concordância, mas com as estruturas transitivas-predicativas. Deste modo, os dados
ambíguos ocorrem em competição com as estruturas adjetivas até que estas diminuem
consideravelmente ao passo que as estruturas ambíguas aumentam. Além disso,
observamos que os dados com complemento masculino, singular são os mais frequentes no
corpus. Como visto, a maior frequência deste tipo de construção pode ser entendida como
uma evidência de que este era o gatilho mais frequente no período de aquisição da
linguagem. Em um modelo em que a mudança é vista em termos de mudanças
paramétricas, isto é, uma mudança na fixação de um dado parâmetro no período de
aquisição da língua, a frequência é uma evidência importante, uma vez que, quanto maior a
frequência de um dado fenômeno, mais este estará servindo de input para as gerações
seguintes de falantes.
Em relação à ordem, observamos que certas sequências favorecem a concordância
do PTP com o complemento, ao passo que outras a desfavorecem. A ordem prototípica das
construções adjetivas, [V N PTP] apresentam concordância categórica. As ordens que irão
servir de gatilho junto com as construções em que o complemento é masculino, singular,
que apresentam a sequência [V PTP], apresentam variação na marcação da concordância. A
ordem [N V PTP] diminui gradativamente na gramática do Português, dando espaço à ordem
que irá se fixar nas construções de tempo composto, [V PTP N].
Com base nos resultados obtidos para a ordem e a concordância assumimos que a
fixação da ordem em [V PTP N] e, posteriormente, a perda das marcas da concordância são
consequências da gramaticalização de ter e haver, emergindo, assim, os tempos compostos
perfectivos em Português. Com base nestes fatores, localizamos temporalmente o
surgimento destas estruturas no século 13, quando já aparecem construções com ter e com
haver com a ordem [V PTP N] e sem marcas de concordância entre o PTP e o complemento,
ainda que o espraiamento da mudança ocorra em um período posterior.
Com base nas análises qualitativa e quantitativa descrevemos o processo de
gramaticalização de ter e haver, analisando os passos da mudança de acordo com o quadro
de R&R (2003), como sendo um caso regular de mudança paramétrica. Tal mudança teve
como consequência a perda de uma operação de movimento sintático da construção
133
original, resultando em uma estrutura inovadora, estruturalmente mais simples. Com base
nisto, assumimos que o input ambíguo – estruturas de ter/haver com complemento
masculino, singular e estruturas com pronomes interrogativos ou substantivos sem
antecedente e, ainda, com complementos nulos sem antecedente – é adquirido pelo falante
com duas possibilidades de interpretação: (i) construção adjetiva, em que há operação de
movimento de núcleo de V para I e (ii) construção de tempo composto, estrutura mais
simples em que não há operação de movimento de V para I. Em relação aos dois tipos e
construção – a construção original, adjetiva, e a construção inovadora, de tempo composto
– e a aquisição de uma ou de outra, assumimos, ainda, a existência de duas gramáticas no
PA: G1, uma gramática conservadora na qual existe apenas a construção do tipo (i), adjetiva,
e G2, uma gramática inovadora, na qual existem as duas construções: (i) e (ii). A depender
do input que o aprendiz terá no período de aquisição da linguagem, ele adquire uma ou
outra gramática. Após um período de competição entre as duas gramáticas (cf. KROCH
1989), vence G2, e ambas as estruturas passam a ser produtivas em Português, cada uma
exercendo sua função na gramática da língua. Ambas as estruturas convivem, ainda hoje, na
gramática do Português Brasileiro.
Em suma, o processo de mudança de ter e haver que resultou na emergência dos
tempos compostos pode ser capturado nos seguintes termos. O input ambíguo é adquirido
pelo falante com duas possibilidades de interpretação: (i) construção adjetiva, em que há
operação de movimento de núcleo de V para I e (ii) construção de tempo composto,
estrutura mais simples em que ter e haver são concatenados diretamente em I. Uma vez
que a gramaticalização é vista em termos de mudanças nas propriedades dos núcleos
funcionais, assumimos que a primeira interpretação é marcada negativamente para o
parâmetro do movimento do núcleo e a segunda, marcada positivamente para este
parâmetro.
134
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