APRENDER Caderno de Filosofia e Psicologia da Educação Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia REITOR Prof. Abel Rebouças São José VICE-REITOR Prof. Rui Macêdo PRÓ-REITOR DE EXTENSÃO E ASSUNTOS COMUNITÁRIOS Prof. Paulo Sérgio Cavalcanti Costa DIRETORA DO DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS João Diógenes Ferreira dos Santos DIRETOR – EDIÇÕES UESB Jacinto Braz David Filho COMITÊ EDITORIAL: Profª Ms. Andréa Braz da Costa, Prof. Ms. Braulino Pereira de Santana, Prof. Esp. Hugo Andrade Costa, Prof. Ms. Marcos Lopes de Souza, Profª Ms. Marilza Ferreira do Nascimento, Prof. Ms. Rosalve Lucas Marcelino, Prof. Ms. Paulo Sérgio Cavalcanti Costa, Profª Drª Tânia Cristina R. Silva Gusmão e Profª Drª Zenilda Nogueira Sales. A revista Aprender é indexada nas seguintes bases de dados: 1. Index Psi Periódicos (BVS-Psi) - http://www.bvs-psi.org.br 2. Clase, Citas Latinoamericanas en Ciencias Sociales y Humanidades, Universidad Nacional Autónoma de México - http://www.dgb.unam.mx/ 3. Sumários de Revistas Brasileiras-Funpec/RP - http://sumarios.org/ 4. Latindex - http://www.latindex.unam.mx/ 5. EDUBASE/Faculdade de Educação/UNICAMP - http://www.bibli.fae.unicamp.br/catal.html Catalogação na publicação: Biblioteca Central da Uesb 100 A661a Aprender – Caderno de Filosofia e Psicologia da Educação. Ano 5, n. 9, jul./dez. 2007. Vitória da Conquista: Edições Uesb, 2007. Início da publicação: dezembro de 2003. Periodicidade: semestral. ISSN 1678-7846 1. Filosofia – Periódicos. 2. Psicologia. I. Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. II. Título. Pede-se permuta We ask for exchange On demande 1’ échange Se pide intercambio Campus Universitário – Caixa Postal 95 Estrada do Bem-Querer, Km 4 – 45083-900 – Vitória da Conquista – BA Fone: 77 3424-8716 – E-mail: [email protected] ou [email protected] Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia APRENDER Caderno de Filosofia e Psicologia da Educação NÚMERO ESPECIAL: Dificuldades de Aprendizagem ISSN 1678-7846 APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano V n. 9 p. 1-280 2007 Copyright © 2007 by Edições Uesb APRENDER – Caderno de Filosofia e Psicologia da Educação Departamento de Filosofia e Ciências Humanas Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia Ano V - n. 9, jul./dez. 2007 EDITORES RESPONSÁVEIS Prof. Ms. Leonardo Maia Bastos Machado - UESB Profª Ms. Zamara Araújo dos Santos - UESB EDITORIA CIENTÍFICA Profª Ms. Ana Lucia Castilhano de Araújo - UESB Profª Ms. Caroline Vasconcellos Ribeiro - UESB Prof. Ms. Gilson Teixeira - UESB Prof. Ms. José Luís Caetano - UESB Prof. Ms. Ruben de Oliveira Nascimento - UFU CONSELHO EDITORIAL Profª Drª Ana Elizabeth Santos Alves - UESB Prof. Dr. Dante Galeffi - UFBA Prof. Dr. Danilo Streck - UNISINOS Profª Drª Delba Teixeira Rodrigues Barros - UFMG Prof. Dr. Diógenes Cândido de Lima - UESB Profª Drª Eliane Giachetto Saravali - UNESP Prof. Dr. Filipe Ceppas - UGF/PUC-Rio Prof. Dr. João Carlos Salles - UFBA Prof. Dr. José Carlos Araújo - UNITRI Prof. Dr. José Carlos Libâneo - UCG Prof. Dr. Marcelo Ricardo Pereira - UFMG Profª Drª Maria Iza Pinto Amorim Leite - UESB Profª Drª Maria Luiza Camargos Torres - UNIVALE Profª Drª Milenna Brun - UEFS Profª Drª Marilena Ristum - UFBA Profª Drª Norma Vídero - UESC Prof. Dr. Paulo Cezar Borges Martins - UESB Prof. Dr. Paulo Gurgel - UFBA Profª Ms. Rosane Lopes Araújo Magalhães - UESC Prof. Dr. Silvio Gallo - UNICAMP Profª Drª Tania Beatriz Iwasko Marques - UFRGS Prof. Dr. Walter Matias Lima - UFAL NÚMERO ESPECIAL: Dificuldades de Aprendizagem Sumário Apresentação – Por que falar em dificuldades de aprendizagem? Eliane Giachetto Saravali e Leonardo Maia Bastos Machado ..................... 7 ARTIGOS Aprendizagem e desenvolvimento – superando dificuldades Lia Leme Zaia ............................................................................................. 17 Caracterização do desempenho fonológico, da leitura e da escrita em escolares com dislexia e distúrbio de aprendizagem Simone Aparecida Capellini, Percília Toyota, Lara Cristina Antunes dos Santos, Maria Dalva Lourencetti, Niura Aparecida de Moura Ribeiro Padula .... 37 Análise do desenvolvimento de conceitos científicos sobre a Teoria da Evolução das Espécies: uma perspectiva Vygotskiana Douglas Verrangia Correa da Silva ........................................................... 71 Dificuldades de aprendizagem ou de ensino? Uma breve revisão de literatura em Psicologia Letícia Fonseca Reis Ferreira de Castro e Débora Cristina Piotto ........... 101 Dificuldades de aprendizagem em adultos: a teoria das defasagens cognitivas Tania Scuro Mendes ...................................................................................127 O sentido do saber à expansão da vida: um estudo fenomenológico do processo de aquisição da leitura Divaneide Lira Lima Paixão e Ondina Pena Pereira ............................. 143 Dificuldades de aprendizagem e educação inclusiva Rosimar Bortolini Poker ........................................................................... 169 Estilos de aprendizagem e rendimento de estudantes adultos em língua inglesa Renata Maria Moschen Nascente ............................................................. 181 Aprendizagens sem dificuldades: a perspectiva histórico-cultural Maria Aparecida Mello ............................................................................ 203 Avaliação cognitiva: contribuições para um melhor desempenho escolar Roberta Rocha Borges e Orly Zucatto Mantovani de Assis ..................... 219 Formação psicopedagógica e dificuldades de aprendizagem Karina Perez Guimarães e Eliane Giachetto Saravali ................................ 247 RESENHA Afetividade e dificuldades de aprendizagem: uma abordagem psicopedagógica Elaine Cristina Cabral Tassinari............................................................. 269 Periódicos permutados ......................................................................... 275 Normas para publicação de trabalhos ............................................... 276 Apresentação Por que falar em dificuldades de aprendizagem? Responder a essa pergunta parece-nos tarefa simples: é absolutamente necessário falar de dificuldades de aprendizagem em razão do que vem ocorrendo em nossas escolas atualmente. Necessário para quem? Para os alunos e os professores, sobretudo e em princípio. Sobretudo porque quem mais sofre são os alunos, são nossas crianças que, por inúmeras razões, estão, paradoxalmente, passando pela escola sem viver plenamente o maior sentido de estar ali: APRENDER. Em princípio porque não deveríamos pensar em aprendizagem sem pensar em ensino e, portanto, na ação docente. A pedagogia moderna nasce a partir de uma alteração fundamental na economia (da idéia e da ação) pedagógica que consiste, em especial, em um deslocamento de papéis educacionais. Assim, rompendo-se com a imobilidade da configuração anterior, modernamente, por princípio, aquele que aprende também tem algo a ensinar àquele que ensina. E como não seria aquele que mais profundamente experimenta a dificuldade da aprendizagem quem mais teria a ensinar sobre o ato e a atividade do aprender? Nesse sentido, cabem-nos outras perguntas: será que ao falarmos de dificuldades de aprendizagem devemos pensar somente em alunos? Quem, efetivamente, aprende ou não? Docentes não 8 Eliane Giachetto Saravali e Leonardo Maia aprendem? Esse é o cerne do que gostaríamos de trazer para a discussão e que pretendemos ser a contribuição desse número especial. Atualmente, vivemos um “apogeu diagnóstico” caracterizado pela multiplicação das terminologias e das inúmeras avaliações e definições para múltiplas doenças e distúrbios relacionados às nossas ações, reações e comportamentos. Quem não sofre no mundo de hoje de algum tipo de problema facilmente nomeado, tratável ou remediável? Como ou quanto isso realmente interfere em nossas capacidades vitais e porque não dizer cognitivas, afetivas e sociais? Mas, em especial, no que nos concerne mais especificamente, como essa aparente tendência a uma crescente medicalização de nosso quotidiano, ou de nosso discurso quotidiano, se transfere até nossas escolas? Pois também uma determinada medicalização da relação professor-aluno parece hoje tomar as salas de aula, toda uma nova semântica paulatinamente tem se incorporado e se disseminado no discurso dos professores, generalizando situações, processos, casos, alunos e ... alunos que não aprendem, e suas implicações, nos diversos níveis em que ela interfere, está ainda longe de ser inteiramente compreendida. Em outras palavras, e pensando na realidade escolar, deveríamos atentar para uma questão ora recorrente, – “o que vem acontecendo com nossos alunos?” – e refletir sobre a resposta que ela realmente mereceria. Que justificativas e razões são essas que encontram explicações em distúrbios, atrasos, desordens, incapacidades? Em que medida somos (docentes, pesquisadores, pais) responsáveis por isso? Que estratégias temos utilizado para compreender estas questões e em que elas se mostram bem sucedidas? O que de fato nós docentes temos aprendido com a não aprendizagem dos discentes? E essa seria uma primeira questão a cingir o universo das dificuldades de aprendizagem. Pois seria interessante, de início, considerar até que ponto esse quadro “convém” ao ambiente da sala de aula, ou mesmo em que ele convém ao próprio docente, seja em relação às Apresentação 9 suas atribuições fundamentais, seja em relação à sua própria capacitação. Por outro lado, com isso, nossa concepção do que é, efetivamente, “dificuldade de aprendizagem”, reveste-se de uma importância fundamental e nosso maior cuidado deveria ser, inicialmente, o de que essa concepção não se transforme ela mesma em uma dificuldade a mais: pois seria preciso avaliar até que ponto é ou não invasiva, é ou não benéfica essa contaminação da pedagogia por um discurso médico e, mais ainda, até que ponto o acompanhamento das dificuldades de aprendizagem não interfere ou altera substancialmente a relação professor-aluno. Ou seja, inicialmente, tratar-se-ia, em especial, de evitar a simples assimilação de um discurso medicalizado dentro da pedagogia, discurso este que, de certa maneira, reinveste, a seu modo, a própria relação pedagógica. Um primeiro desafio pedagógico ao lidar com as dificuldades de aprendizagem estaria então em se compreender a natureza mesma do funcionamento ou do exercício pedagógico que estas requerem. Pois, uma vez que a condição de aprendizagem se encontra suspensa, se encontra, num certo sentido, “negada”, qual, efetivamente, seria ainda a natureza pedagógica da relação professor-aluno? Isto é, qual a relação pedagógica, estritamente falando, entre um professor que não pode ensinar e um aluno que não consegue aprender? Desse modo, a partir da especificidade da situação gerada, e para se vencer a dificuldade constatada, seria preciso, que a própria relação de ensinoaprendizagem se transfigurasse ou em parte se obliterasse? De toda sorte se trata, muitas vezes, de uma certa redefinição da relação professor-aluno que nem sempre é acompanhada, confirmada, ou que não tem todos os seus desdobramentos avaliados junto aos profissionais da área da saúde. E, com isso, se a tarefa de acompanhamento de uma dificuldade de aprendizagem recai, então, em especial sobre os docentes, não deveríamos inicialmente considerar como e em que ela transformaria nossos mestres ou suas funções? O professor, para além de sua responsabilidade ou prerrogativa de 10 Eliane Giachetto Saravali e Leonardo Maia ensinar, deveria também poder diagnosticar ou pré-diagnosticar? Em que consiste ou em que deve consistir, afinal, sua capacidade de intervenção? Como se vê, o estudo das dificuldades de aprendizagem não pode se apoiar na unidade de um discurso único de fundo, pois elas emergem nessa zona mista, nesse lugar de interseção entre várias áreas, e entre múltiplos discursos. Sua conceituação depende dessa configuração plural que liga, que corta e recorta, umas pelas outras, a Educação, a Psicologia e mesmo a Medicina. Em que momento esses discursos são convergentes, e em que hora divergem? Em que lugar exatamente todos esses discursos, práticas e procedimentos de teorização e de intervenção fazem síntese? E essa síntese, possível mas talvez por demais fugaz, aponta ainda para dentro da pedagogia, ou acaba inevitavelmente por ultrapassá-la? Em suma, o que, e a partir de que campo se define uma dificuldade de aprendizagem, mas ainda, o que ela mesma define, que região uma dificuldade de aprendizagem demarca? E seria uma região ainda dentro da pedagogia, ou já “fora” dela? Em primeiro lugar, vale a pena aqui considerar que o aprendizado na verdade jamais precedeu a dificuldade, e sim foi fruto dela, impondo-se a ela. Pois aprender não foi jamais algo fácil, mas, ao contrário, foi a dificuldade que o tornou possível. Aprender é sempre difícil... Fato é que temos uma compreensão distorcida do significado da aprendizagem enquanto consideramos que as dificuldades são obstáculos que apenas lhe sobrevêm de fato, “na prática”. Nesse caso, é somente no contato ou no encontro inesperado com uma barreira que aprender revela-se difícil ou que, de fato, se torna uma experiência impossível, quando então se verifica e se mede a sua dificuldade. No entanto, a dificuldade é anterior a isso, ela se inscreve de direito no aprendizado, é intrínseca ao exercício de aprender, e não simplesmente eventual, ou “exterior” a ele, algo que pode ou não se verificar. Quem aprende deve sempre enfrentar sua dificuldade, dificuldade que, em realidade, permanece após o “aprendizado”: o Apresentação 11 que afinal terei realmente “aprendido”?... E por quê, para quê? É na verdade, em relação a essa dificuldade, lutando contra ela, que se produz, a cada vez, o verdadeiro aprendizado. Com isso, considerando que todos aprendemos, é então importante considerar também quais as ferramentas de que os docentes se valem nessa luta, em relação à própria aprendizagem e às dificuldades apresentadas por seus alunos. Podemos, por que não, passar a pensar então em dificuldades dos professores em relação à compreensão sobre seus alunos, suas diferenças, suas peculiaridades, seus processos de desenvolvimento e aprendizagem, suas questões pessoais e singulares. Há dificuldades em aprender e apreender tais questões e há uma grande dificuldade e resistência institucional, curricular e pedagógica em se adaptar às diferenças individuais dos alunos, o que se busca é uma homogeneização inexistente, principalmente quando falamos de aprendizagem. Dessa forma, ressaltar a dificuldade do outro pode ser muitas vezes apenas uma forma de negar a própria dificuldade. Qual seria então a aprendizagem necessária para aqueles que lidam com os que, teoricamente, (também) não aprendem? Antes de buscarmos uma resposta consideremos o quadro existente em nossas escolas. Buscar e criar encaminhamentos, laudos, nomes, rótulos tem se constituído uma prática recorrente, mas para aqueles que já se aperceberam isso não tem contribuído de fato para a melhoria da situação vivida por nossas crianças, nem para a reflexão e discussão das ações docentes ou mesmo para mudanças nas condições institucionais. Não podemos permitir, portanto, que as dificuldades de aprendizagem se desvinculem ou se esvaziem dentro do campo pedagógico. Mas, nesse caso, retomando a pergunta colocada anteriormente, afinal qual a aprendizagem necessária aos professores? Ou melhor dizendo, qual o horizonte pedagógico daquele que lida com as 12 Eliane Giachetto Saravali e Leonardo Maia dificuldades de aprendizagem? Não a superação da dificuldade, mas mais propriamente poder aprender em meio à dificuldade... Permanecer nela para dela fazer, de início, um primeiro aprendizado. Da dificuldade, criar uma aprendizagem. Esse deveria ser, talvez, o horizonte pedagógico daquele que lida com as dificuldades de aprendizagem. Quando o pedagogo se depara com uma situação de dificuldade de aprendizagem, ou seja, uma circunstância em que a possibilidade de formação ou de aprendizado encontra-se interrompida ou barrada, é preciso que ele redefina sua própria função pedagógica. Neste momento, sem que seja preciso, evidentemente, abandonar a pedagogia ou as atribuições pedagógicas, é esta que se apresenta e deve se reinventar segundo uma nova função, uma nova práxis. Isso implicaria, necessariamente, poder rever nossas próprias concepções de ensino, de desenvolvimento, de aprendizagem, de didática, de metodologia e à luz dessa avaliação poder acompanhar e compreender plenamente uma dificuldade de aprendizagem. Pois as dificuldades de aprendizagem, em último caso, não dizem respeito jamais apenas a um caso particular, mas à própria pedagogia. É a pedagogia mesma que se altera e se transforma no seu encontro com as dificuldades que, a rigor, são sempre dela mesma (do contrário, deveríamos considerar a estranha situação em que o aluno seria um corpo estranho ao universo educacional...). As dificuldades de aprendizagem têm sempre muito a dizer, então, sobre o estado atual da pedagogia, sobre as nossas próprias concepções pedagógicas correntes. Pois a dificuldade de aprendizagem revela não apenas o momento, particular, em que um aluno se encontra impossibilitado de prosseguir, mas também o momento mais geral e mais significativo em que a pedagogia mesma se vê suspensa, em que o circuito e a circulação pedagógica se encontram interrompidos. E é isso o que nos deveria levar à reflexão quando nos vemos diante de cada caso de dificuldade no aprendizado. Mas com isso, deve-se entender que a dificuldade de aprendizagem não é um obstáculo que se coloca entre aquele que Apresentação 13 ensina e o que aprende, ou mesmo entre aquele que quer aprender e a possibilidade do aprendizado. Ela não é uma distância que se interpõe e que abre uma radical separação entre esses dois sujeitos que se reúnem em torno da experiência educacional, mas algo que pertence ao ato mesmo de ensino-aprendizagem. Essa condição permitiria ao menos superar de imediato uma “culpabilização”, do professor que não ensina ou do aluno que não aprende. Mesmo porque, insistamos, em si mesmo, por sua própria dificuldade, o ato de ensinar conspira para sua própria frustração: ele teria como resultado esperado, como seu resultado “natural”, precisamente por essa dificuldade intrínseca, o não ensinar, o não aprender, e não se deveria jamais descartar que seja sempre esse, com efeito, o resultado de nossas aulas (e, seja na condição de aluno ou de professor, quantas vezes não se sai de uma sala de aula com essa certeza, precisamente?)... Uma dificuldade, então, não representa um retrocesso, nem mesmo uma “parada” no ato pedagógico, mas, ao contrário, esse ato complexifica-se a partir da dificuldade experimentada. E, com isso, como se fora uma jurisprudência no seio da pedagogia, ele estende também a própria pedagogia nesse momento em que aprender se revela difícil. Pois é a dificuldade que obriga um exercício padronizado a redefinir-se, que exige novos parâmetros, que estende a pedagogia, enfim, para novos territórios. A ausência de dificuldade cria todo um habitus, um uso regular, e uma habituação a este uso, ou seja, uma simples continuidade de reprodução (quanto aos conteúdos escolhidos, aos objetivos pressupostos, aos métodos utilizados, etc...). A pedagogia, como aliás toda atividade, só se pode medir, então, pelas dificuldades que encontra, e vai adiante no enfrentamento destas. Uma nova teoria se impõe, portanto, como uma teoria do acompanhamento e da intervenção, ampliando e desenvolvendo a própria pedagogia. A cada aluno que não aprende corresponde um aspecto de ordem familiar, um aspecto social, a possibilidade de uma questão orgânica, enfim, uma rede complexa a ser avaliada e compreendida, e SEMPRE uma ação pedagógica. Essa última é de 14 Eliane Giachetto Saravali e Leonardo Maia domínio do docente; significa estar apto para atuar, interferir, solicitar e favorecer os processos de desenvolvimento e aprendizagem. Não se pode esperar que ninguém faça isso melhor do que o próprio professor. Isso corresponderia ao fazer autônomo da pedagogia em relação às dificuldades de aprendizagem. Nesse sentido, diante de um aluno que não aprende, vale a pena perguntar: quais as chances meu aluno já teve para superação real desse quadro? Quando a resposta é nenhuma ou poucas, é preciso rever as próprias ações, o planejamento, os objetivos, as atividades. Fica, portanto, a idéia de que do problema é preciso gerar ação, ação fundamentada consciente, deliberada e interventiva. A ação pedagógica deve ser subsidiada por pesquisas e estudos e nós, docentes universitários, necessitamos urgentemente fazer com que nossos estudos e pesquisas contribuam de fato para a prática pedagógica. Precisamos auxiliar nossos docentes que encontram-se, muitas vezes, tão despreparados e desamparados. Sabemos que essa ação também requer formação e conhecimento, o papel da universidade também é o de fazer chegar esse conhecimento até a sala de aula, auxiliar na instrumentalização do docente. Longe queremos estar do fogo cruzado das atribuições de culpas pelos fracassos de nossos alunos. Evidentemente, não pretendemos romantizar uma situação que para muitos docentes e discentes é, sem dúvida, extremamente desconfortável, mas sim evidenciar que a nossa percepção sobre essa questão deve ser redimensionada, não só sobre o real alcance e a verdadeira posição das dificuldades de aprendizagem na situação de ensino, mas sobre a própria aprendizagem enquanto tal. Em outras palavras, não será somente o aprendizado que atestará o bem sucedido de uma atuação pedagógica, mas, ao contrário, uma intervenção adequada deverá capacitar o aluno a experimentar amplamente uma nova dificuldade: a dificuldade de seu próprio aprender... Apresentação 15 É nesse sentido que a organização desse número especial pretende contribuir. Há uma grande diversidade institucional dos autores que nos auxiliaram na realização desse trabalho, demonstrando que tratar das dificuldades de aprendizagem é algo que vem ocorrendo em todo território nacional. Não podemos fechar os olhos para o problema e realmente não estamos fechando. Os artigos aqui publicados são compostos por trabalhos realizados em diferentes âmbitos: pesquisas, reflexões teóricas, atividades de extensão, diagnósticos e intervenções. Cada um a seu modo, enfocando uma ou outra perspectiva, traz significativa contribuição para a temática. Agradecemos a todos que contribuíram e desejamos uma boa leitura, pois dela certamente novas questões surgirão, novas ações, outras transformações e das dificuldades, novas aprendizagens... Eliane Giachetto Saravali Conselho Editorial (UNESP-Marília, SP) Leonardo Maia Bastos Machado Editor Responsável (UESB) Aprendizagem e Desenvolvimento – superando dificuldades Lia Leme Zaia * Resumo: Compreendendo o papel da ação educativa como o de propiciar o desenvolvimento e a aprendizagem, o texto explora os fatores e as condições necessárias para que ambos os processos ocorram. Descreve as causas das dificuldades para aprender, agrupando-as em fatores próprios do sujeito e fatores circunstanciais, analisando a influência recíproca entre eles. Destaca o atraso na construção das estruturas cognitivas ou do real como um dos fatores do sujeito e que sofre influência do ambiente familiar, escolar ou da comunidade. Descreve os processos de intervenção para criar as condições necessárias à manutenção e à recuperação das possibilidades de aprender. Palavras-chave: Desenvolvimento. Equilibração. Aprendizagem. Dificuldades. Intervenção. Learning and development – overcoming difficulties Abstract: Understanding the role of educative action as to provide the development and learning, the text explores the factors and conditions necessary for both processes. Describes the causes of learning difficulties, and grouping * Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Docente e coordenadora do curso de Psicopedagogia da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de São José do Rio Pardo-SP. E-mail: [email protected] APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano V n. 9 p. 17-36 2007 18 Lia Leme Zaia then in subject self factors and circumstantial factors, analyzing the reciprocal influence between then. Emphasizes the delay to build structures or reality as one of the subject’s factors that is influenced by family environment, school or community, and describes the processes of intervention to create necessary conditions of maintaining and recover the possibilities of learning. Key words: Development. Equilibrium. Learning. Difficulties. Intervention. A ação educativa desempenha o importante papel de solicitar o pensamento e a atividade da criança, organizando situações estimulantes que propiciam o desenvolvimento e a aprendizagem. Nesse contexto, além das aquisições em função da experiência, o processo de aprender abrange a construção das estruturas cognitivas e a reorganização dos conhecimentos, nas interações do sujeito com o objeto. Referimo-nos, pois, à aprendizagem em sentido amplo. Nesse processo, os desafios, as situações-problema a serem solucionadas, os questionamentos e os trabalhos em pequenos grupos, as trocas de pontos de vista entre parceiros, podem propiciar o aparecimento de perturbações que provocam o desequilíbrio cognitivo, desencadeando o processo de equilibração. Piaget denominou processo de equilibração às reações ativas do sujeito diante das perturbações do meio; à busca de um novo equilíbrio quando é perturbado o equilíbrio entre os processos de assimilação e acomodação. Assimilação e acomodação são os dois pólos do processo de adaptação. O primeiro constitui a aplicação do esquema ou estrutura ao objeto, conferindo-lhe significado e o segundo refere-se à modificação do esquema ou estrutura para poder assimilar. Explicando melhor, se nenhum esquema ou estrutura já existente consegue assimilar um novo objeto e o processo de acomodação é insuficiente para atender às características daquele, ocorre um desequilíbrio entre esses dois processos, desencadeando a equilibração. A equilibração provoca a reestruturação cognitiva individual, transformando os esquemas e estruturas até ser possível assimilar o objeto novo e integrar os novos instrumentos à estrutura Aprendizagem e desenvolvimento – superando dificuldades 19 total. A superação das perturbações pela equilibração tem, por conseqüência, a abertura de novas possibilidades, o aperfeiçoamento e a construção de esquemas e estruturas mais complexos e com maiores possibilidades de adaptação. A perturbação também pode surgir da constatação de que uma determinada ação provoca, no objeto, reações diferentes daquela que o sujeito imaginava anteriormente. Assim, verificamos a importância de provocar antecipações na criança, principalmente em relação ao conhecimento físico, tornado possível a situação em que a reação do objeto venha a contrariá-las. Outras fontes de perturbação podem ser a resistência à assimilação recíproca por parte de dois esquemas aplicados aos mesmos objetos e a resistência à assimilação recíproca entre a estrutura total e uma subestrutura a ser integrada a ela. Desta forma, tanto o incentivo à experimentação ativa, aplicando vários instrumentos de pensamento a um objeto ou a um mesmo conjunto de objetos, como a aplicação de um esquema, estrutura, ou conhecimento recém adquirido, a uma diversidade de situações, além de facilitar a consolidação, extensão e generalização daqueles, ainda pode provocar o desequilíbrio, desencadeando o processo de equilibração. Consideramos ainda como fonte de perturbação as lacunas no sentido piagetiano (a ausência de conhecimentos ou objetos necessários para que uma ação já desencadeada se complete). Por este motivo, não é necessário levar o aluno, rapidamente, à resposta ou às noções consideradas certas. É muito mais importante deixá-lo errar por não poder ainda considerar alguns aspectos importantes da situação, sem corrigi-lo diretamente. Em outro momento oportuno, a partir da análise de seus procedimentos e explicações, podem ser propostas outras situações-problema que solicitem a aplicação dos mesmos conhecimentos. Se estes permanecem inalterados, a situação não será resolvida, provocando a tomada de consciência da lacuna pelo aluno, desencadeando o processo de reestruturação dos conhecimentos anteriores ou a busca de novos conhecimentos para solucioná-la. 20 Lia Leme Zaia Falta considerar a tomada de consciência de opiniões e pontos de vista diferentes do próprio, provocando o conflito cognitivo e desencadeando o processo de equilibração. Esta fonte de perturbação nos faz considerar a necessidade do trabalho em pequenos grupos, especialmente com propostas de atividades que exijam discussão, argumentação e contra-argumentação na tentativa de convencer o outro, para realizar um trabalho comum. Principalmente porque exige a consideração e a análise das idéias dos parceiros, para poder aceitá-las ou refutá-las e para poder construir uma contra-argumentação pertinente. É importante lembrar que o desequilíbrio provoca sempre a busca de um novo equilíbrio mais estável, complexo e duradouro, por um mecanismo auto-regulador de compensações ativas às perturbações; que os estados de equilíbrio são sempre ultrapassados porque novos problemas que vão sendo levantados à medida que se soluciona os precedentes e que uma estrutura acabada dá lugar à exigência de nova diferenciação ou nova integração em estruturas mais amplas. Esses melhoramentos podem alargar, em extensão, o campo do sistema, isto é, ampliar o número de situações ou objetos a que o esquema ou estrutura se aplicam; podem relativizar as noções por diferenciação em sub-esquemas que passam a assimilar os elementos anteriormente não assimiláveis. Com o rompimento do ciclo, o próprio sub-esquema torna-se um novo tipo de perturbação e a diferenciação é, necessariamente, compensada pela integração do sub-esquema ao novo esquema total. Em outras palavras, a equilibração cognitiva, enquanto marcha para um equilíbrio mais estável, implica na construção e reorganização das estruturas cognitivas e deve ser levada em conta para propiciar o desenvolvimento de crianças e adolescentes. Entretanto, na maioria das escolas, aprender se limita às aquisições externas em função da experiência e das transmissões educativas. Consideramos restrita essa concepção de aprendizagem Aprendizagem e desenvolvimento – superando dificuldades 21 que não satisfaz as necessidades da criança em desenvolvimento, razão pela qual muitas parecem não aprender os conteúdos escolares, apesar de aprenderem outras tantas coisas em suas casas, na rua, no trabalho. Compreendemos como dificuldades para aprender tudo o que dificulta, emperra, desvia, defor ma a reorganização dos conhecimentos. Esta reorganização relaciona-se com a construção das estruturas no interior do sujeito e com as características do objeto e suas relações. Assim, os fatores que prejudicam a reorganização dos conhecimentos podem ser agrupados em dificuldades próprias do sujeito que aprende e dificuldades provocadas pelas circunstâncias familiares, escolares, sociais, que o envolvem. É preciso, entretanto, compreender que os fatores do sujeito e os fatores circunstanciais não atuam separadamente, pois encontraremos no meio em que a criança vive diversos motivos para se instalarem dificuldades que, a primeira vista, parecem próprias do sujeito e encontraremos no sujeito diversas características que propiciam a influência desta ou daquela circunstância de seu meio. Assim, se as condições físicas, neurológicas, cognitivas ou afetivas podem dificultar a aprendizagem, não podemos esquecer que elas também podem ser provocadas ou acentuadas pelo ambiente da criança. E o meio não compreende apenas a família, mas também a escola, a comunidade, os costumes, as características culturais que lhe propiciam, ou não, pensar e agir por si mesma, experimentar, arriscar-se a errar, corrigir, voltar a errar, sem medos e sem culpas. Entre os fatores próprios do sujeito, mas que sofrem grande influência do meio em que se encontra, colocaríamos o atraso geral no desenvolvimento cognitivo, isto é, um atraso na construção de sua estrutura de conjunto, o que provocaria atraso na construção de todas as estruturas. A falta das estruturas necessárias à compreensão e ao estabelecimento de relações dificulta a aprendizagem em sentido amplo. Outro fator de dificuldades, ligado ao processo de desenvolvimento cognitivo, pode ser encontrado em crianças com 22 Lia Leme Zaia bom nível geral de desenvolvimento, mas com defasagem na construção de uma determinada estrutura, de uma operação específica, ou na construção do real. Ora, o atraso na construção de uma estrutura ou de uma operação, enquanto as outras se desenvolvem normalmente, pode dificultar a aprendizagem nas áreas de conhecimento mais relacionadas a ela; enquanto o atraso na construção do real, dificultando o estabelecimento de relações espaçotemporais e causais, nos casos mais graves prejudica a aquisição da fala, em outros, a organização do discurso, a localização no espaço e no tempo, o estabelecimento de relações de causa e efeito. O processo de construção do real inicia-se precocemente, prolongando-se em fases distintas que passam pela organização do real, sua representação e, finalmente, pela estruturação dessas representações. Segundo Ramozzi-Chiarottino (1984), quanto mais cedo se instala a falha, maiores serão os comprometimentos para a aprendizagem. Para organizar o real é necessário que as crianças apliquem seus esquemas de ação aos objetos do ambiente físico. Assim, se forem impedidas de agir, não chegarão a construir todos os seus esquemas motores, prejudicando o estabelecimento de relações espaço-temporais e causais. Desconhecendo as regularidades da natureza e sem possuírem noção de tempo, espaço e causalidade, não conhecem os limites de suas ações. Em conseqüência, constroem uma representação caótica do mundo, o que retarda a aquisição da linguagem. A falha na compreensão e produção da língua materna, por sua vez, impede a comunicação, agravando o problema. Para superar este ciclo crescente de dificuldades e para a criança construir e coordenar seus esquemas motores, algumas condições se tornam necessárias, como a organização do ambiente, a diversidade de materiais disponíveis e a criação de situações interessantes para provocar a sua ação efetiva. É preciso provocar a interação da criança com o meio, propiciando a compreensão dos limites de suas próprias ações, diferenciando as propriedades dos objetos e percebendo as Aprendizagem e desenvolvimento – superando dificuldades 23 regularidades da natureza. Deste modo, ela poderia organizar a experiência em termos de espaço, tempo e causalidade, preenchendo uma importante condição para aprender a falar. Algumas crianças organizam o real, tornando-se capazes de falar, representar e estabelecer relações. Mas, sendo muito estimuladas para o conhecimento figurativo1, constroem uma representação do mundo sem apoio em suas próprias ações, confundindo significado e significante, realidade e fantasia. Para superar este problema, seria importante criar situações em que possam observar e agir sobre a natureza para entender as relações repetitivas que nela ocorrem; agir sobre os objetos, experimentar, observar o resultado de suas ações, relatar o que fizeram e o que aconteceu. Assim, poderiam organizar a experiência vivida, representá-la adequadamente e perceber as relações entre suas ações e o que acontece no mundo físico. Após a conquista do real, quando distinguirem significado e significante, poderão dedicar-se ao jogo simbólico e à fantasia, sem confundi-los com a realidade. Ainda, outras crianças, tendo organizado e representado o real, não estruturaram suas representações em relação ao espaço, ao tempo e a causalidade, utilizando apenas imagens para representar a situação atual. Sem poder evocar o passado, seu discurso fica restrito ao presente, não tomando consciência de suas realizações. Por não organizarem adequadamente suas representações, não chegam a construir a identidade e, assim, não estabelecem classes e séries que propiciariam a construção dos conceitos. Por falta de conceitos, não estruturam o discurso e apenas emitem raciocínios transdutivos, isto é, vão do particular para o particular, sem possibilidade de generalizar, confundindo o indivíduo com a classe e vice-versa. Para Dolle (1996), as crianças que não organizam adequadamente suas representações centram-se nos estados em Os aspectos figurativos se baseiam nas constatações perceptivas, isto é, na simples leitura da experiência, percepção e a imagem mental; enquanto os aspectos operativos, se relacionam às transformações produzidas pelas ações físicas e mentais (DOLLE; BELLANO, 1989, 1996, p. 74) 1 24 Lia Leme Zaia detrimento das transformações, presas às particularidades e à singularidade de cada configuração. Por não haverem construído convenientemente a representação, sem retroagir e antecipar, não dominam o passado nem o futuro. A superação destas dificuldades, segundo o pesquisador, exige que seja solicitada a evocação de suas ações passadas para trazê-las ao presente, onde possam ser estruturadas pelo estabelecimento de relações. A reconstituição possibilita a tomada de consciência daquilo que foi realizado, condição para operar, adquirir um conceito e expressar-se verbalmente. Para a criança passar do nível da ação ao da compreensão, ainda é necessário que estruture o real no nível das representações, propiciando-se a organização de objetos para chegar às operações de classificação e seriação e à busca de explicações para o mundo físico, sendo necessário voltar ao real e dar-lhe significado. Neste processo, a criança supera a comunicação atual e concreta e chega à outra forma de comunicação, que implica a distinção entre significante e significado, passando do mundo real ao possível. Durante o período operatório, encontramos outras causas para o estabelecimento de dificuldades para aprender, dentre as quais podemos destacar a predominância da figuratividade. Para Dolle e Bellano (1989), tanto os aspectos figurativos como os operativos estão sempre presentes em todos os níveis do desenvolvimento, mas as suas predominâncias se alternam durante o processo. Assim, se no início do período operatório a figuratividade predomina sobre a operatividade, aos poucos a operatividade supera a figuratividade até tornar-se dominante. Entretanto, esta inversão de predominâncias pode não ocorrer e o processo de construção das estruturas pode ter continuidade sob a dominância da modalidade funcional figurativa do pensamento, em detrimento da modalidade operativa e, consequentemente, de suas possibilidades de aprender. É possível reconhecer estas crianças por sua centração nos estados sem levarem em conta as transformações. Ficam presas às particularidades e à singularidade de cada configuração sem possibilidade de retroagir e antecipar, não dominando o passado nem o futuro e não construindo a reversibilidade do pensamento. Aprendizagem e desenvolvimento – superando dificuldades 25 Na mesma obra, Dolle e Bellano propõem uma adaptação do método clínico-crítico de Piaget às especificidades da elaboração de um diagnóstico, denominando-o “exame operatório”. Este exame permitiria buscar, no sujeito psicológico concretizado no paciente, tanto o nível de construção das estruturas operatórias e de elaboração de espaço, tempo, acaso e causalidade, como o próprio funcionamento dos processos de pensamento, como veremos a seguir em suas próprias palavras: Se agora nos preocupamos em proceder ao diagnóstico do sujeito concreto, em relação àquilo que sabemos do sujeito epistêmico, procedemos metodologicamente da mesma forma que em situação experimental. Mas as observações que recolhemos sobre as modalidades estruturais e funcionais da criança, servem tanto para compreendê-la e para revelar setores de sua atividade onde se manifestam alguns retardos, ausências estruturais ou déficits, etc., [...] quanto para recolher indicações indispensáveis para proceder às terapias posteriores [...] (DOLLE; BELLANO, 1989, p. 115-116). Para superar as dificuldades, Dolle e Bellano propuseram diversos exercícios terapêuticos, cujo objetivo seria ajudar as crianças ancoradas na figuratividade a buscarem a superação de suas dificuldades, pelo confronto com as insuficiências dos procedimentos que utilizam. Os primeiros exercícios terapêuticos seriam escolhidos em função das lacunas encontradas no funcionamento das estruturas cognitivas da criança. Os seguintes, em função dos progressos, da estagnação ou das incertezas, observados ao longo da própria terapia. Os autores propõem a criação de situações-problema que propiciem o conhecimento físico dos objetos, mostrando a importância de colocar questões que orientem indiretamente a atenção da criança para aspectos mais delimitados dessa situação. Assim, as questões podem levá-la a tomar consciência do próprio desafio, de sua dificuldade para resolvê-lo, do que lhe falta, das características do objeto que impedem a sua ação e do que pode fazer. Lia Leme Zaia 26 Explicam que essas questões e a possibilidade de experimentar permitem a descentração do pensamento, o estabelecimento do conflito cognitivo, a tomada de consciência da pertinência ou da incoerência das suas próprias idéias, provocando a busca de novas maneiras de resolver a situação-problema. Penetrando mais na análise das circunstâncias escolares, embora sem desconsiderar o sujeito, Vinh-Bang (1990) analisou as insuficiências, indicadas pelos erros nas produções de muitas crianças. Propondo a utilização de um processo de intervenção psicopedagógica adaptado às dificuldades e às suas possíveis causas, enfatizou a necessidade de analisar cuidadosamente os erros para conhecê-los melhor, determinando as circunstâncias que possam tê-los produzido. Desta forma, seria possível não apenas compreender o insucesso como propiciar a sua superação. Para tanto, propôs um quadro de dupla entrada, a partir das diferentes possibilidades das insuficiências observadas em classe (individuais ou coletivas, relacionadas a um conteúdo específico ou a vários conteúdos) e, cruzando-as, levantou as suas possíveis causas, como veremos a seguir: CONTEÚDO A. ESPECÍFICOS POPULAÇÃO A. Individual B. Coletivo A.A B.A B. CONJUNTO DE VÁRIOS CONTEÚDOS A.B B.B Considerou que as insuficiências individuais nas produções escolares relacionadas a um conteúdo específico (A.A) poderiam ser provocadas tanto por lacunas2 nos conhecimentos anteriores, como por dificuldades do professor no que diz respeito à disciplina em questão; enquanto as dificuldades individuais relacionadas a vários conteúdos (A.B) poderiam ser resultantes da acumulação de erros 2 Segundo Vinh-Bang (1990), lacuna “não deve ser interpretada como uma falha, um defeito, um elo ausente: é ao contrário presença perturbadora, trata-se de uma falsa aquisição” (p. 133). Aprendizagem e desenvolvimento – superando dificuldades 27 que provocam lacunas na aquisição desses conhecimentos, ou de atraso no desenvolvimento cognitivo. Quanto às insuficiências coletivas relacionadas a um conhecimento específico (B.A) poderiam estar relacionadas tanto ao lugar em que o conteúdo é tratado no programa, como à didática do docente, sendo necessário analisar a ordem das noções no programa desenvolvido. Explicando melhor, é preciso verificar se foram propiciadas as construções anteriores necessárias, além de considerar o objetivo das atividades propostas e a própria formulação do problema. Finalmente, as insuficiências coletivas relacionadas a vários conteúdos provavelmente seriam resultantes de uma conjunção de falhas relacionadas ao sistema escolar, ao método de ensino, ao programa de estudos e à formação do professor. Entre estes casos, é preciso considerar a inadaptação escolar em geral, cujas causas, a serem pesquisadas, estariam tanto no aluno que se adapta mal às exigências escolares, como na escola e no ensino que não se adaptam ao estudante. Vinh Bang (1990) propõe o preenchimento das lacunas nos conhecimentos anteriores ou a recuperação do atraso no desenvolvimento cognitivo do aluno, quando as insuficiências forem individuais. No caso de erro coletivo, de uma classe, por exemplo, seria necessário apreender o sentido e o alcance dos insucessos para o professor poder reajustar sua prática pedagógica e adaptar o conteúdo aos seus alunos. A intervenção deveria propiciar o desenvolvimento dos instrumentos de pensamento, para superar um atraso geral no desenvolvimento do sujeito, ou um atraso restrito a um aspecto do conhecimento. Propõe, ainda, a construção dos conhecimentos lacunares3 que dificultam ou impedem outras aquisições. Assim, a intervenção psicopedagógica na instituição e a orientação ao professor teriam como objetivo propiciar a reflexão, a tomada de consciência das circunstâncias que dificultam a Conhecimentos lacunares são aqueles “cuja estruturação é incompleta e parcial, e que não podem, por isso, servir para a construção de aquisições de nível superior”. 3 28 Lia Leme Zaia aprendizagem, a transformação do ambiente escolar e da prática pedagógica, além da adaptação dos conteúdos às necessidades e possibilidades dos alunos. Uma forma interessante de atendimento às necessidades do aluno e do professor é desenvolvida pelo Laboratório de Psicopedagogia (LAPp), do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), que atende tanto aos alunos do ensino fundamental, como aos professores e psicopedagogos, desenvolvendo atividades e utilizando jogos de regras como material de trabalho e instrumento desencadeador de tematizações e análises em duas áreas: psicopedagogia e aprendizagem escolar.4 Nesse trabalho, o jogo e as intervenções adequadas convidam a criança e o adolescente a refletir sobre o material, suas próprias estratégias, as possibilidades abertas por elas, os erros e suas conseqüências. No que diz respeito ao professor e ao psicopedagogo, propiciam a reflexão, a análise, a reavaliação da postura profissional, abrindo-lhe a possibilidade de utilizar jogos como instrumento de trabalho. Para Petty (1995, p. 124) o jogo de regras assume seu lugar na pedagogia e na psicopedagogia, com a vantagem de atuar “no âmbito das atitudes (organização, atenção, auto-estima, disciplina, etc.,) e do desenvolvimento do raciocínio (interpretação de informações, busca de soluções, levantamento de hipóteses, análise e superação de erros etc.)”. Macedo (1996, p. 180), referindo-se ao trabalho desenvolvido no LaPp, descreve as mudanças de atitude decorrentes do desenvolvimento do trabalho com jogos. Inicialmente, as crianças apresentam condutas inadequadas em relação à atividade proposta “[...] um comportamento duvidoso, errático, desesperançado, sem projeto, o qual indica um presente que apenas conhece a atenção 4 Para elaboração desta síntese, utilizamos os dados fornecidos por Petty, em sua dissertação de mestrado (1995), que relata o trabalho desenvolvido no LaPp, sob orientação e coordenação do Prof. Dr. Lino de Macedo. Aprendizagem e desenvolvimento – superando dificuldades 29 fugidia e o gozo imediato, sem muito trabalho ou empenho”. Quando jogam, tomam decisões precipitadas, sem articular as jogadas, sem obedecer as regras, sem considerar as possibilidades do adversário. Aos poucos, vão apresentando maior concentração, diminuem as conversas sobre assuntos alheios ao jogo, as brigas, as saídas da sala etc., conseguindo maior concentração, possibilidade de antecipar situações e planejar estratégias. Atribuindo aos jogos o papel de desencadear os mecanismos de regulações compensatórias, que propiciam a construção de novas estruturas e novos procedimentos, Brenelli (1993) desenvolveu uma pesquisa para verificar a influência de atividades realizadas com os jogos Quilles e Cilada, sobre o desenvolvimento operatório e sobre a compreensão de noções aritméticas por crianças, de 8 a 10 anos, com dificuldades de aprendizagem. Segundo a autora, as modificações das ações nos jogos de regras dependem da compreensão. Assim, o papel da intervenção seria propiciar a passagem do fazer para o compreender, possibilitando lidar operatoriamente com as transformações, retroações e antecipações, auxiliando a criança a superar suas limitações nos aspectos figurativos do julgamento. Introduzindo perturbações que desencadeavam o processo de equilibração e a abstração reflexiva, o trabalho por ela realizado propiciou a tomada de consciência das estratégias utilizadas pelos sujeitos, tanto no decorrer das partidas, como nas atividades lúdicas desenvolvidas a partir dos mesmos jogos. Analisando os processos de reflexão, generalização, contradição e tomada de consciência, subjacentes ao ato de aprender, bem como a construção das relações de possibilidade e necessidade, Brenelli (1993) demonstrou que a causa dos progressos não foi o jogo, mas a ação de jogar em interação com a própria pesquisadora. Além do jogo, foram propiciadas outras atividades relacionadas ao contexto lúdico do mesmo, solicitando a descrição, a antecipação, a explicação e a representação das estratégias e do resultado de determinadas jogadas. 30 Lia Leme Zaia Nesta mesma direção, Macedo, Petty e Passos (2000, p. 21) além de analisar as situações-problema colocadas pela própria situação de jogar, sugerem a proposta de outras situações-problema relacionadas, explicando: As situações-problema permeiam todo o trabalho na medida em que o sujeito é constantemente desafiado a observar e analisar aspectos considerados importantes pelo profissional. Existem muitas maneiras de elaborá-las; podem ser uma intervenção oral, questionamentos ou pedidos de justificativas de uma jogada que está acontecendo; uma remontagem de um momento do jogo; ou ainda, uma situação gráfica. Os autores ainda propõem a diferenciação das possibilidades de análise com a apresentação de novos obstáculos e questionamentos e explicam que as situações-problema são criadas a partir das situações significativas vividas durante a atividade de jogar. Trata-se de retomar situações de impasse ou que tenham exigido a tomada de decisões, favorecendo assim a análise dos procedimentos do sujeito e o levantamento de outras possibilidades. Zaia (1996) trabalhou com oito crianças de 11 a 13 anos que freqüentavam o Prodecad5 pela manhã e classes de 2ª a 4ª séries na escola regular, no outro período. Em seu cotidiano escolar e fora dele, estas crianças apresentavam procedimentos próprios dos níveis préoperatórios ou do início da transição para o período operatório concreto e, a maioria, não havia estruturado convenientemente suas representações em ter mos de espaço, tempo e causalidade, prejudicando a organização do discurso e a aprendizagem escolar. Tais crianças haviam também desenvolvido sentimentos negativos em relação à escola que não atendia suas necessidades, colocando 5 O Programa de Integração e Desenvolvimento da Criança e do Adolescente (PRODECAD), da Pró-Reitoria de Extensão da U NICAMP , atende aos filhos de funcionários da Instituição, especialmente os de baixa renda, com dois programas distintos: Pré-Escola e Apoio à Escolaridade. O Serviço de Apoio à Escolaridade, destinado aos alunos de 1ª a 4ª séries do Ensino Fundamental, oferece, em salas de aula, uma diversidade de atividades, além de Teatro, Educação Artística, Educação Física em outros locais. As crianças são distribuídas por idade e gozam de relativa liberdade dentro do programa. Aprendizagem e desenvolvimento – superando dificuldades 31 exigências muito acima de suas possibilidades e sem lhes proporcionar as condições necessárias para satisfazê-las. Essa situação era agravada por serem alvo constante de caçoadas e discriminação. Um forte sentimento de fracasso e inadequação às exigências institucionais parecia influenciar negativamente o conceito que possuíam de si mesmos e de suas próprias possibilidades. Para superar esta situação, foi preciso trabalhar a qualidade das interações estabelecidas entre os parceiros e com o adulto, incentivando-se o respeito mútuo para que as crianças se sentissem seguras e pudessem expor suas idéias, realizar ações, fazer tentativas, errar – importantes condições para aprender. Para propiciar o desenvolvimento cognitivo, a estruturação do real e resgatar as possibilidades de aprender, desenvolveu-se um processo de intervenção em grupo, adaptando-se o Processo de Solicitação do Meio6 às possibilidades, necessidades e interesses das crianças de onze a treze anos, bem como às dificuldades que podíamos observar durante as sessões de intervenção. Dentre as características que diferenciam este processo de intervenção psicopedagógica, podemos apontar a predominância do trabalho em pequenos grupos, com atividades diversificadas; mantendo a possibilidade de a criança freqüentar ou não as sessões, escolher entre o trabalho individual e o trabalho em grupo e realizar escolhas entre as atividades e os jogos disponíveis em cada sessão. Inicialmente predominavam as atividades, mas no decorrer das sessões o jogo foi ganhando terreno, começaram a ser mais escolhidos e as próprias crianças transformavam em jogo algumas situações apresentadas inicialmente como atividades. Entretanto, também O Processo de Solicitação do Meio, desenvolvido por Assis (1976) para favorecer a construção das estruturas operatórias concretas em alunos pré-escolares, “foi orientado no sentido de despertar a curiosidade e a atividade espontânea da criança, a partir da qual a inteligência se desenvolve”. Colocando à disposição das crianças uma grande variedade de materiais, este processo, introduzindo questionamentos, problemas e desafios, cria “oportunidades para a criança explorar e manipular objetos ou idéias [...] observar e, depois, tentar explicar o que estava fazendo” (ASSIS, 1977, p. 26). 6 32 Lia Leme Zaia ocorreu a transformação inversa como, por exemplo, o jogo “torre de papel” assumiu as características desafiadoras de uma atividade de conhecimento físico, quando crianças deixaram de competir e se preocupar com os pontos ganhos para coordenar suas ações e cooperar, procurando manter a torre equilibrada. Ao longo do processo de intervenção, foi possível acompanhar o desenvolvimento cognitivo e social das crianças e as transformações na relação estabelecida com a instituição, com as professoras e os colegas no Prodecad. Conforme relato das professoras, estas crianças começaram a estabelecer relações menos agressivas com as outras, a ser respeitadas pelos colegas, integrando-se um pouco melhor ao grupo-classe. No final do ano letivo, além de serem promovidas na escola regular, as crianças ou se tornaram operatórias ou atingiram níveis mais avançados no processo de transição. A partir desta pesquisa, foi possível aprimorar o processo de solicitação em intervenções clínicas posteriores, com outras crianças e adolescentes que apresentavam dificuldades para aprender. O contato com escolas e professores das crianças atendidas possibilitou a compreensão de algumas das circunstâncias escolares que dificultavam a superação de suas dificuldades. Na medida em que novas escolas solicitavam assessoria, ampliamos nossas constatações, além de transformá-las em orientações sobre como atender às necessidades cognitivas das crianças e sobre as formas de prevenir ou superar as dificuldades para aprender. Dentre as circunstâncias escolares que provocam a instalação das dificuldades ou impedem sua superação, podemos lembrar a forma de tratamento dada pela escola a todos os conhecimentos, a transmissão social desvinculada da experiência da criança; a ênfase nos exercícios repetitivos para a fixação de procedimentos, trocando a compreensão e a construção de operações pela formação de hábitos, evitando o erro e, ainda, para evitar as conversas paralelas e os conflitos, o fato das carteiras serem mantidas enfileiradas impedindo a interação social entre as crianças, a troca de idéias, a argumentação. Aprendizagem e desenvolvimento – superando dificuldades 33 Saravali (2005, p. 140-141) relata suas observações neste mesmo sentido, afirmando que as dificuldades da criança podem estar relacionadas “a uma série de fatores combinados, inclusive referentes ao trabalho docente, que acabam por ampliar e agravar o quadro” e descreve as conseqüências decorrentes do sentimento de incapacidade: As inúmeras experiências de fracasso podem levar o aluno a formar uma imagem negativa de si mesmo, a ter medo do desafio, a se desinteressar pelas atividades escolares, entre outros aspectos indesejáveis. Diante deste quadro, suas relações com os colegas podem vir a ser prejudicadas, acentuando-se ainda mais o problema (SARAVALI, 2005, p.141). Tendo aplicado o teste sociométrico em uma classe de quarta série da rede pública de uma cidade do interior de São Paulo, Saravali pode observar que as crianças com dificuldades para aprender eram, em geral, rejeitadas pelo grupo, o que mantinha ou aumentava as dificuldades, formando-se o ciclo vicioso descrito a seguir Assim, as crianças têm dificuldades, o professor lança sobre elas um olhar diferente, tal olhar influencia os colegas que acabam por excluí-las, tal exclusão impede trocas e melhores relações sociais, que por sua vez acabam agravando o desempenho acadêmico reforçando o olhar do professor, o professor continua tendo um olhar negativo sobre a criança, este olhar continua influenciando a turma e assim por diante [...] (SARAVALI, 2005, p. 141). Considerando que a influência do olhar do professor não se restringe apenas a sala de aula, mas pode prejudicar todas as relações sociais da criança e, em decorrência, a própria formação de sua personalidade, torna-se urgente modificar o quadro. Nesse sentido, é importante que os profissionais da educação sejam preparados para aceitar as diferenças e para criar as condições para todos serem igualmente aceitos por seus pares. 34 Lia Leme Zaia Concordamos com Saravali (2005) sobre a necessidade dessa preparação ter início nos anos de formação do professor, ou, para aqueles que não tiveram essa sorte, nos cursos e encontros de formação continuada ou nas especializações. Entretanto, para criar e manter um ambiente de aceitação, respeito mútuo e cooperação, em que sejam valorizados os sentimentos de cada um, é necessário mais que o acesso ao conhecimento pedagógico, psicológico e psicopedagógico. Mais do que modificar a própria fundamentação teórica, trata-se de transformar atitudes e valores muito arraigados na vida da escola e de cada um; assim, é importante serem acompanhados de perto, receberem orientações, apoio e feed back constante sobre sua forma de atuar. Daí considerarmos premente a necessidade de se implantar a assessoria psicopedagógica ou, melhor, das escolas poderem contar com as contribuições da psicopedagogia e, especialmente, com a supervisão de um bom psicopedagogo institucional. Referências bibliográficas ASSIS, O. Z. Mantovani de. A solicitação do meio e a construção das estruturas lógicas elementares da criança. 1976. Tese (Doutorado em Educação) -– Universidade Estadual de Campinas/ FE, Campinas, 1976. ______. Estudo sobre a Relação entre a Solicitação do Meio e a Formação da Estrutura Lógica no Comportamento da Criança. Relatório Final apresentado ao INEP, 1977. BRENELLI, R. 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Archives de Psychologie, v. 58, p. 123-135, 1990. 36 Lia Leme Zaia ZAIA, L. L. A solicitação do meio e a construção das estruturas operatórias em crianças com dificuldades de aprendizagem. 1995. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1995. Recebido em: 07 agosto de 2007 Aprovado em: 31 de agosto de 2007 Caracterização do desempenho fonológico, da leitura e da escrita em escolares com dislexia e distúrbio de aprendizagem Simone Aparecida Capellini 1 Percília Toyota 2 Lara Cristina Antunes dos Santos 3 Maria Dalva Lourencetti 4 Niura Aparecida de Moura Ribeiro Padula 5 Resumo: Este estudo teve por objetivo caracterizar e comparar o desempenho fonológico, da leitura e da escrita em escolares com dislexia, distúrbio de aprendizagem e escolares que lêem conforme o esperado para idade e escolaridade. O diagnóstico da dislexia e distúrbio de aprendizagem foi realizado 1 Doutora e Pós-Doutora em Ciências Médicas pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Docente do Departamento de Fonoaudiologia da FFC/Unesp – Marília-SP. Email: [email protected]. 2 Bolsista de Treinamento Técnico da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Departamento de Fonoaudiologia da FFC/U NESP – Marília-SP. E-mail: [email protected] 3 Mestranda em Patologia – FM/UNESP – Botucatu – SP. Responsável pelo Ambulatório de Desvios da Aprendizagem do Hospital das Clínicas da FM/UNESP – Botucatu – SP. E-mail: [email protected] 4 Neuropsicóloga do Ambulatório de Desvios da Aprendizagem do Hospital das Clínicas da FM/UNESP – Botucatu – SP. E-mail: [email protected] 5 Doutora em Ciências Médicas – FCM/UNICAMP – Campinas – SP. Docente do Departamento de Neurologia e Psiquiatria da FM/UNESP – Botucatu – SP. E-mail: [email protected] Pesquisa realizada com auxílio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano V n. 9 p. 37-70 2007 38 Simone Aparecida Capellini et al. por equipe interdisciplinar do Ambulatório de Desvios da Aprendizagem da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Campus de Botucatu - SP em escolares com queixas de dificuldades de aprendizagem encaminhados pelos professores. Os resultados revelaram a necessidade de continuidade de estudo nesta temática para podermos compreender seu impacto na problemática da aprendizagem escolar desta população no contexto de sala de aula. Palavras-chave: Dislexia. Distúrbio de aprendizagem. Aprendizagem. Characterization of phonological, reading and writing performance in students with dyslexia and learning disabilities Abstract: This study aimed to characterize and compare the phonological, reading and writing performance in students with dyslexia, learning disabilities, and good readers. The dyslexia and learning disability diagnoses were realized by the interdisciplinary team of the Ambulatory of Learning Difficulties of Unesp of Botucatu - SP in students with learning difficulties sent by teachers. The results revealed the necessity of other studies in this subject to allow the understanding of the impact of this problematic situation in school learning of this population in classroom context. Key-words: Dyslexia. Learning disabilities. Learning. Introdução Em nossa realidade educacional, há grande número de crianças que apresentam dificuldades de aprendizagem e que não conseguem acompanhar as atividades de leitura e escrita em contexto escolar. No âmbito das dificuldades de aprendizagem é comum a ocorrência de confusão terminológica devido ao grande número de nomenclaturas que as designam. Em relação a isto, Capellini e Ciasca (2000) e Capellini e Salgado (2003) afirmaram que a falta de consenso entre as terminologias e definições diagnósticas dos problemas escolares está relacionada à dificuldade de se diferenciar os indivíduos que apresentam dificuldades escolares de origem cognitiva, sócioeconômica-cultural e afetiva daqueles que apresentam alterações nas habilidades cognitivo-lingüísticas de origem genético-neurológica, como a dislexia do desenvolvimento e o distúrbio de aprendizagem. Caracterização do desempenho fonológico, da leitura e da escrita em escolares... 39 A World Federation of Neurology em 1968 definiu dislexia como sendo [...] transtorno de aprendizagem da leitura que ocorre apesar de inteligência normal, de ausência de problemas sensoriais ou neurológicos, de instrução escolar adequada, de oportunidades sócio-culturais suficientes, além disso, depende da existência de perturbação de aptidões cognitivas fundamentais, freqüentemente de origem constitucional (CRITCHLEY, 1975). O distúrbio de aprendizagem é uma expressão genérica que se refere a um grupo heterogêneo de alterações manifestadas por dificuldades significativas na aquisição e no uso da audição, fala, leitura, escrita, raciocínio ou habilidades matemáticas. Essas alterações são intrínsecas ao indivíduo e presumivelmente devidas à disfunção do SNC. Apesar de um distúrbio de aprendizagem poder ocorrer concomitantemente com outras situações desfavoráveis (alteração sensorial, retardo mental, distúrbio emocional, distúrbio emocional ou social) ou influências ambientais (diferenças culturais, instrução insuficiente ou inadequada, fatores psicogênicos), não é resultado direto destas condições ou influências (HAMMILL et al., 1987). A definição descrita acima aborda o distúrbio de aprendizagem de forma ampla, tornando necessária uma reflexão sobre o fato de não ser possível inserirmos todas as crianças com distúrbio de aprendizagem num mesmo grupo. Para melhor distinção entre os distúrbios de aprendizagem, devemos tomar como base as manifestações mais evidentes que produzem impacto no desempenho da criança. Assim, crianças que apresentam deficiência mental, sensorial (visual, auditiva) ou motora revelam distúrbio de aprendizagem como um quadro resultante de retardo mental, afecções neurológicas e sensoriais. Entretanto, existe, ainda, um grupo de crianças que apresentam como manifestação os problemas escolares decorrentes de alterações de linguagem e cuja inteligência, audição, visão e capacidade motora estão adequadas, sendo, então, o quadro 40 Simone Aparecida Capellini et al. de distúrbio de aprendizagem decorrente de disfunções neuropsicológicas que acometem o processamento da informação, resultando em problemas de percepção, processamento, recepção, organização e execução da linguagem oral e escrita (CAPELLINI, 2004). Desta forma, a dislexia é um termo que se refere à defasagem entre o desempenho esperado de uma criança nas habilidades de leitura e escrita e o desempenho efetivamente observado, ou seja, o processo de desenvolvimento e aprendizagem da criança aparece comprometido somente em fase escolar, enquanto que o distúrbio de aprendizagem é caracterizado quando o processo de desenvolvimento e aprendizagem da criança está comprometido desde os primeiros anos de vida (CAPELLINI; CIASCA, 2000). Existe um consenso entre os pesquisadores de que a habilidade fonológica seja importante para a aquisição da leitura, sendo que a maioria dos indivíduos com atraso em leitura ou dislexia apresentam alterações nessa habilidade. A hipótese do déficit fonológico tem sido sustentada por inúmeros trabalhos que têm identificado atrasos quanto à sensibilidade à rima, aliteração e segmentação fonêmica durante o desenvolvimento da leitura (WOLF et al., 2002; BOWERS, NEWBY-CLARK, 2002; VUCKOVIC, WILSON, NASH, 2004; SAVAGE et al., 2005; SWANSON, HOWARD, SAEZ, 2006). No Brasil, os estudos com dislexia e distúrbio de aprendizagem têm apontado atrasos quanto à rima, aliteração, manipulação e segmentação fonêmica (CAPELLINI; CIASCA, 2000; CAPELLINI, 2001; BARROS; CAPELLINI, 2003; CAPELLINI; PADULA; CIASCA, 2004). Capellini (2004) descreveu as manifestações do distúrbio de aprendizagem e da dislexia, com o objetivo de diferenciar os dois quadros diagnósticos. Desta forma, foi relatado que, no distúrbio de aprendizagem, o indivíduo apresenta inteligência normal ou alterada, distúrbio fonológico, falha nas habilidades sintáticas, semânticas e pragmáticas, histórico/quadro de distúrbio de linguagem anterior, habilidade narrativa comprometida para contagem e recontagem de estórias, déficits nas funções receptivas, expressiva e de processamento e alteração no processamento de informações auditivas e visuais. Por Caracterização do desempenho fonológico, da leitura e da escrita em escolares... 41 outro lado, na dislexia, o indivíduo apresenta inteligência normal, distúrbio fonológico, falha nas habilidades sintáticas, semânticas e pragmáticas, dificuldade na linguagem em sua modalidade escrita no período escolar, habilidade narrativa comprometida para recontagem de estórias, déficits na função expressiva e alteração no processamento de informações auditivas e visuais. Com base no exposto acima este estudo tem por objetivo caracterizar e comparar o desempenho fonológico, da leitura e da escrita em escolares com dislexia, distúrbio de aprendizagem e escolares que lêem conforme o esperado para idade e escolaridade. Material e método Este estudo foi realizado após aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista (FFC/Unesp) sob o protocolo número 0332/2004. Participaram deste estudo 85 escolares de 2ª a 4ª série do ensino básico do município de Marília-SP, distribuídos em 3 grupos, sendo: - Grupo I (GI): composto por 45 escolares, sendo 74% do gênero feminino e 26% do gênero masculino, com média etária de 09 anos de idade, sem queixa de dificuldades de aprendizagem. - Grupo II (GII) – composto por 20 escolares, sendo 30% do gênero feminino e 70% do gênero masculino, com média etária de 09 anos de idade, com diagnóstico de dislexia; - Grupo III (GIII) – composto por 20 escolares, sendo 30% do gênero feminino e 70% do gênero masculino, com média etária de 10 anos de idade, com diagnóstico de distúrbio de aprendizagem. Os gr upos de escolares com dislexia e distúrbio de aprendizagem foi composto por crianças com queixa de dificuldades de aprendizagem previamente avaliadas no Centro de Estudos da Educação e da Saúde (CEES/Unesp-Marília - SP) para levantamento dos sinais dos transtornos de aprendizagem e encaminhadas ao Ambulatório de Desvios da Aprendizagem no Hospital das Clínicas 42 Simone Aparecida Capellini et al. da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual Paulista – HC/ FM/Unesp – Botucatu – SP. Após a realização das avaliações neurológica, neuropsicológica, pedagógica e fonoaudiológica os diagnósticos de dislexia e distúrbio de aprendizagem foram confirmados. Os escolares do grupo controle deste estudo foram indicados pelos professores de escola pública municipal. Os professores selecionaram os escolares que apresentaram conceito suficiente em pelo menos 2 bimestres consecutivos. Esses escolares não apresentaram histórico de queixa auditiva ou visual. Os escolares, após assinatura do Termo de Consentimento pelos pais ou responsáveis autorizando a realização da pesquisa, foram submetidos à aplicação dos seguintes procedimentos de avaliação: a) Aplicação Lista de Verificação de Sintomas para Deficiência no Processamento da Linguagem (SMITH; STRICK, 2001): Este procedimento tem como objetivo realizar levantamento de informações sobre a compreensão da fala e da linguagem, leitura, escrita, matemática e problemas relacionados à linguagem que ocorrem em situação de sala de aula. b) Prova de Nível de Leitura: Realizada conforme protocolo elaborado por Capellini (2001). O protocolo é composto por 19 itens referentes à decodificação de grafemas e palavras; erros ortográficos (substituição, omissão, transposição de grafemas, erros de pontuação e acentuação), tipo de leitura, velocidade de leitura, tempo e nível de leitura e fluência. c) Redação Temática: Realizada para coleta de amostra de escrita, a partir do tema “O passeio no Parque”. A análise da redação temática foi baseada nos critérios de análise de produção da escrita propostos por Abaurre (1987), que inclui a análise e interpretação dos aspectos formais e convencionais da escrita e os aspectos referentes à elaboração do texto. Caracterização do desempenho fonológico, da leitura e da escrita em escolares... 43 d) Avaliação Fonológica da Criança (ACF): O instrumento tem por objetivo elicitar a amostra representativa da fala da criança por meio da nomeação espontânea (YAVAS, HERNANDORENA, LAMPRECHT, 1992). É composto por 5 desenhos temáticos (veículos, sala, banheiro, cozinha e zoológico) para estimulação de 125 itens que formam a lista de palavras. e) Prova de Leitura e Escrita: O procedimento consistiu na leitura oral e escrita sob ditado de 2 sublistas de 48 palavras reais (PR) e 48 palavras inventadas (PIN), totalizando 96 palavras em cada categoria (PINHEIRO, 1994). As listas foram as mesmas para a tarefa de leitura oral e escrita sob ditado. f) Prova de Consciência Fonológica: O procedimento utilizado foi a Prova de Consciência Fonológica desenvolvida por (CAPOVILLA, A. G. S.; CAPOVILLA, F. C., 1998). A prova de Consciência Fonológica (PCF) é composta de 10 subtestes, cada um deles composto de 4 itens. g) Avaliação da Velocidade de Leitura Oral e Silenciosa: o procedimento utilizado para avaliação da velocidade de leitura oral e silenciosa foi baseado em Capellini e Cavalheiro (2000). A avaliação consistiu na medição do número de palavras lidas por minuto e tempo total de leitura. h) Avaliação de desempenho escolar quanto à aritmética: Realizada a partir da aplicação do subteste de aritmética do Teste de Desempenho Escolar (TDE) – (S TEIN, 1994) com o objetivo de verificar o desempenho aritmético dos escolares conforme o esperado para idade e escolaridade. Os resultados foram analisados estatisticamente por meio de análise de variância – ANOVA (com valor de p < 0,001) para 44 Simone Aparecida Capellini et al. comparação das médias entre os GI, GII, GIII quanto aos resultados referentes à prova de leitura e escrita, prova de consciência fonológica, subteste de aritmética do teste de desempenho escolar. Os resultados estatisticamente significantes estão assinalados por asterisco (*). Resultados Por meio da lista de verificação preenchida pelos professores quanto aos aspectos referentes ao comportamento e à identificação das dificuldades relacionadas ao desempenho acadêmico dos grupos, verificamos que os professores referiram que de 10% a 20% dos escolares do GI apresentavam alguma alteração quanto ao desempenho em leitura e escrita, enquanto que de 20% a 60% dos escolares do GII e de 10% a 90% dos escolares do GIII apresentavam problemas referentes à compreensão da fala e linguagem, leitura, escrita e problemas relacionados à aprendizagem, evidenciando que os professores observaram maior porcentagem de alterações referentes ao processamento da linguagem nos escolares do GIII se comparados ao GII e ao GI (Quadro 1). GII 10% 60% 60% 20% 60% 60% 60% GI - 70% 80% 80% 60% 30% 20% 40% 40% 60% 60% 60% 10% 40% 40% 60% GIII Quadro 1 – Distribuição em porcentagem do desempenho dos escolares do GI, GII e GIII em relação ao levantamento de informações referentes à Lista de Verificação de Sintomas para Deficiência de Processamento da Linguagem. COMPREENSÃO DA FALA E DA LINGUAGEM Atraso para aprender a falar Não modula o tom de voz apropriadamente; fala em tom monótono ou muito alto Tem problemas para citar nomes de objetos ou de pessoas Utiliza uma linguagem vaga e imprecisa, possui vocabulário pequeno A fala é lenta ou sofre interrupções, usa mecanismos de “adiamento” verbal (ah, hum, né..) Usa uma gramática pobre Com freqüência pronuncia mal as palavras Confunde palavras com sons similares (troca de sons) Com freqüência usa gestos com as mãos ou a linguagem corporal para ajudar a transmitir a mensagem Evita falar (especialmente na frente de estranhos, grupos ou figuras representativas de autoridade) É sensível a rimas Demonstra pouco interesse por livros ou histórias Não responde apropriadamente a questões Com freqüência não compreende ou não recorda instruções LEITURA Atraso significativo para aprender a ler Dificuldade na citação de nomes de letras Problemas para associar letras aos sons, discriminar os sons nas palavras, misturar sons para formar palavras (continua) Caracterização do desempenho fonológico, da leitura e da escrita em escolares... 45 80% 40% 60% 80% 80% 30% 80% 80% 70% 80% 90% 70% 10% 80% 80% 60% 40% 60% 60% 60% 10% 70% 60% 60% 60% 60% 10% 20% 10% - - (continuação) 60% 50% 20% 60% 20% 10% Quadro 1 – Distribuição em porcentagem do desempenho dos escolares do GI, GII e GIII em relação ao levantamento de informações referentes à Lista de Verificação de Sintomas para Deficiência de Processamento da Linguagem. Dificuldade para analisar seqüência de sons, erros freqüentes de seqüência (ler “sabe” como “base”) Tenta “adivinhar” palavras estranhas, ao invés de usar habilidades de análise da palavra Lê muito lentamente. A leitura oral deteriora-se após algumas sentenças A compreensão para o que está sendo lido é consistentemente fraca ou deteriora-se, quando as sentenças se tornam mais longas e mais complexas Fraca retenção de novas palavras no vocabulário Antipatiza com a leitura, evitando-a ESCRITA As tarefas são curtas ou incompletas, freqüentemente, caracterizadas por sentenças breves, vocabulário limitado Persistem problemas com a gramática Erros de ortografia, não consegue decifrar sua própria escrita Idéias nas tarefas escritas são mal-organizadas, não-logicamente apresentadas Pouco desenvolvimento do tema Escrita em forma de lista e não encadeamento de idéias Em testes é mais bem sucedido em questões de múltipla escolha do que em ensaios ou preenchimento de espaços em branco MATEMÁTICA Resposta lenta durante exercícios de matemática devido a problemas com recuperação de números da memória Dificuldade com problemas por extenso devido à fraca compreensão da linguagem 46 Simone Aparecida Capellini et al. 90% 80% 80% 80% 80% 80% 80% 20% 60% - - Quadro 1 – Distribuição em porcentagem do desempenho dos escolares do GI, GII e GIII em relação ao levantamento de informações referentes à Lista de Verificação de Sintomas para Deficiência de Processamento da Linguagem. Problemas com matemática de nível superior, devido a dificuldades com análises e raciocínio lógico PROBLEMAS RELACIONADOS Entende mal o que é ouvido no rádio e na televisão Dificuldade com raciocínio verbal, pode entender palavras em provérbios, mas tem dificuldade em explicar o que significa, considera difícil extrair conclusões lógicas Problemas para entender trocadilhos e piadas Dificuldade para estabelecer compreensões e classificar objetos ou idéias Dificuldade para recordar informações ou produzir fatos ou idéias quando solicitado Dificuldade para apresentar uma história ou instruções em uma ordem lógica Tipos de problemas encontrados na aprendizagem da língua materna tendem a ser repetidos ao estudar uma língua estrangeira Dificuldade para iniciar ou manter uma conversa. (conclusão) Caracterização do desempenho fonológico, da leitura e da escrita em escolares... 47 48 Simone Aparecida Capellini et al. Quanto à comparação do desempenho dos grupos nas avaliações realizadas verificamos que na prova de nível de leitura, 100% dos escolares do GI apresentaram nível de leitura ortográfico, enquanto que os 100% dos escolares do GII apresentaram nível de leitura alfabético e 100% dos escolares do GIII apresentaram nível de leitura logográfico. Conforme descrito no quadro 2, os escolares do GI apresentaram tanto na leitura oral como silenciosa menor média de leitura de palavras por minuto se comparado ao GII e GIII, isto porque os escolares do GIII apresentaram maior média de palavras lidas por minuto se comparado aos escolares do GII e GI, o mesmo sendo evidenciado quanto ao tempo de leitura. Entretanto, ressaltamos que para todos os grupos a média de palavras lidas por minuto foi menor para leitura silenciosa do que para leitura oral. Grupos GI GII GIII Nº de palavras por minuto Silenciosa Oral 40,20 44,58 70,10 71,06 100,10 114,10 Tempo (minutos) Oral Silenciosa 10,8 10,8 20,10 20,10 30,8 30,10 Quadro 2 – Distribuição das médias das palavras lidas por minuto e do tempo de leitura dos escolares do GI, GII e GIII em relação à prova de velocidade de leitura oral e silenciosa. Quanto aos aspectos formais e convencionais do texto verificamos que tanto os escolares do GI e do GII apresentaram uso diferenciado de letra de forma e cursiva e maiúscula e minúscula, traçado de letra cursiva, o uso de sinais de pontuação, a ocorrência de hiposegmentação/hipersegmentação e o uso da ortografia correta. Quanto aos aspectos referentes à elaboração do texto, observamos presença de transposição da oralidade para a escrita nos escolares do GII, a manutenção do tema para os escolares do GI e GII. Entretanto, como os escolares do GIII apresentaram uma escrita baseada no uso de léxico de “input” visual, ou seja, apenas 49 Caracterização do desempenho fonológico, da leitura e da escrita em escolares... escrita de palavras pertencentes ao seu vocabulário visual, foi evidenciado apenas alguns aspectos formais e convencionais e de elaboração de texto, naqueles escolares que construíram um texto (Quadro 3). Aspectos referentes à elaboração do texto Aspectos formais e convencionais Critérios de Análise Uso diferenciado de letra de forma/letra cursiva Traçado da cursiva sem alteração Disgrafia funcional Uso de maiúsculas e minúsculas Uso de sinais de pontuação Hiposegmentação (junção de palavras) Hipersegmentação (separação de partes da palavra) Ortografia correta Transposição direta de estruturas da linguagem oral para a linguagem escrita Tema Tipo de texto descritivo Tipo de texto narrativo Coerência Coesão textual* Estilo GI GII GIII 100% 100% 100% 75% 20% 10% 25% 65% 90% 100% 100% 100% 100% 30% 10% 10% 40% 70% 20% 80% 10% 80% 100% 100% 100% 100% 90% 10% 05% 100% 100% 100% 10% 100% 10% Quadro 3 – Distribuição das porcentagens do desempenho de escolares do GI, GII e GIII quanto aos aspectos formais e convencionais e aspectos referentes à elaboração do texto. * Presença de coesão da oralidade. Na avaliação do subteste de aritmética do Teste de Desempenho Escolar, verificamos diferença estatisticamente significante entre os grupos, com melhor desempenho entre os escolares do GI em relação ao GII e GIII e melhor desempenho do GII em relação ao GIII (Tabela 1). 50 Simone Aparecida Capellini et al. Tabela 1 – Distribuição das médias (X) dos escolares do GI, GII e GIII referente ao desempenho no subteste de aritmética do Teste de Desempenho Escolar (TDE) GRUPOS GI GII GIII ARITMÉTICA 13,73* 9,95* 4,20* Quanto ao desempenho dos escolares na prova de leitura oral, verificamos que os escolares do GI apresentaram menor média de erros para a leitura de palavras reais regras de alta freqüência (PRRg AF) e a maior média de erros na leitura de palavras inventadas irregulares (PIIr). Entre os escolares do GII e GIII, a menor média de erros ocorreu para a leitura de palavras reais regulares de alta freqüência (PRRAF) e a maior média de erros para leitura de palavras inventadas irregulares (PIIr). Os resultados analisados estatisticamente (p < 0,001) evidenciaram diferença significante para o desempenho dos escolares do GI, GII e GIII na leitura oral de todas as categorias de palavras (Tabela 2). 0,82* 10,80* 14,25* 0,93* 10,6* 14,15* GI GII GIII 15,05* 12,45* 1,71* PRIr AF 15,55* 12,70* 2,08* PRR BF 15,80* 12,30* 1,97* PRg BF 16,00* 13,65* 1,64* PRIr BF PIRg 2,66* 22,15* 30,85* PIR 2,40* 20,90* 31,20* 31,90* 25,85* 3,42* PIIr Legenda: PRR AF: Palavras reais regulares de alta freqüência; PRg AF : Palavras reais regra de alta freqüência; PRIr AF: Palavras reais irregulares de alta freqüência; PRR BF: Palavras reais regulares de baixa freqüência; PRg BF : Palavras reais regra de baixa freqüência; PRIr BF: Palavras reais irregulares de baixa freqüência; PIR: Palavras inventadas regulares; PIRg: Palavras inventadas regra; PIIr: Palavras inventadas irregulares. PRg AF PRR AF Tabela 2 – Distribuição das médias (X) do desempenho dos escolares do GI, GII e GIII quanto a leitura de palavras reais e inventadas de baixa e alta freqüência na Prova de Leitura Oral. Caracterização do desempenho fonológico, da leitura e da escrita em escolares... 51 52 Simone Aparecida Capellini et al. Na prova de escrita sob ditado verificamos que os escolares do GI, GII e GIII apresentaram menor média de erros para escrita de palavras reais regras de alta freqüência (PRRg AF) e a maior média de erros para a escrita de palavras inventadas irregulares (PIIr). Os resultados analisados estatisticamente (p < 0,001) evidenciaram diferença significante para o desempenho dos escolares do GI, GII e GIII na escrita sob ditado de todas as categorias de palavras (Tabela 3). 1,35* 10,80* 14,25* 1,82* 11,20* 15,05* GI GII GIII 15,05* 12,35* 1,73* PRIr AF 15,55* 12,70* 2,02* PRR BF 15,80* 12,00* 1,77* PRg BF 16,00* 13,60* 2,02* PRIr BF PIRg 2,33* 21,95* 30,85* PIR 2,53* 20,80* 31,20* 31,90* 25,85* 2,55* PIIr Legenda: PRR AF: Palavras reais regulares de alta freqüência; PRg AF : Palavras reais regra de alta freqüência; PRIr AF: Palavras reais irregulares de alta freqüência; PRR BF: Palavras reais regulares de baixa freqüência; PRg BF : Palavras reais regra de baixa freqüência; PRIr BF: Palavras reais irregulares de baixa freqüência; PIR : Palavras inventadas regulares; PIRg: Palavras inventadas regra; PIIr: Palavras inventadas irregulares. PRg AF PRR AF Tabela 3 – Distribuição das médias (X) do desempenho dos escolares do GI, GII e GIII quanto a escrita de palavras reais e inventadas de alta e baixa freqüência na Prova de Escrita sob Ditado. Caracterização do desempenho fonológico, da leitura e da escrita em escolares... 53 54 Simone Aparecida Capellini et al. Foi realizada a comparação intra-grupo das médias referente ao desempenho dos escolares do GI, GII e GIII quanto à leitura oral e escrita sob ditado para a mesma categoria de palavras, ou seja, quanto a categoria de palavras reais e inventadas em relação à freqüência de ocorrência alta e baixa. Com a realização de análise de variância verificamos que o GI apresentou diferença estatisticamente significante para leitura oral e escrita sob ditado de palavras regra de alta freqüência e palavras inventadas irregulares, enquanto que para o GI e o GII foi evidenciado diferença estatisticamente significante para palavras reais regulares de alta freqüência (Tabela 4). Tabela 4 – Distribuição das médias (X) e desvio padrão (DP) do desempenho dos escolares do GI, GII e GIII quanto a leitura e escrita de palavras reais e inventadas de alta e baixa freqüência na Prova de Leitura Oral e Escrita sob ditado. (continua) Variáveis EPRR AF X L PRR AF EPRRg AF X LPRRg AF EPRIr AF X L PRIr AF EPRR BF X LPRR BF EPRRg BF X L PRRg BF X DP X DP X DP X DP X DP X DP X DP X DP X DP X GI GII GIII 1,82* 1,13 0,93* 1,09 1,35* 1,22 0,82* 1,11 1,73 1,33 1,71 1,17 2,02 1,35 2,08 1,04 1,77 1,55 1,97 11,20* 2,16 10,60* 2,75 10,80 2,33 10,80 2,33 12,35 2,81 12,45 2,87 12,70 1,75 12,70 1,75 12,00 2,10 12,30 15,05 1,50 14,15 1,87 14,25 2,26 14,25 2,26 15,05 1,66 15,05 1,66 15,55 0,99 15,55 0,99 15,80 0,69 15,80 Caracterização do desempenho fonológico, da leitura e da escrita em escolares... 55 Tabela 4 – Distribuição das médias (X) e desvio padrão (DP) do desempenho dos escolares do GI, GII e GIII quanto a leitura e escrita de palavras reais e inventadas de alta e baixa freqüência na Prova de Leitura Oral e Escrita sob ditado. (conclusão) EPRIr BF X LPRIr BF EPIR X LPIR EPIRg X LPIRg EPIIr X LPIIr DP X DP X DP X DP X DP X DP X DP X DP X DP 1,15 2,02 1,71 1,64 1,38 2,53 1,82 2,40 1,73 2,33 1,56 2,66 1,52 2,55* 1,80 3,42* 2,01 2,22 13,60 3,96 13,65 3,97 20,80 3,76 20,90 3,62 21,95 4,88 22,15 4,65 25,85 4,84 25,85 4,84 0,69 16,00 0 16,00 0 31,20 1,28 31,20 1,28 30,85 2,30 30,85 2,30 31,90 0,44 31,90 0,44 Legenda: EPRR AF: Escrita palavras reais regulares de alta freqüência; EPRg AF: Escrita palavras reais regra de alta freqüência; EPRIr AF: Escrita palavras reais irregulares de alta freqüência; EPRR BF: Escrita palavras reais regulares de baixa freqüência; EPRg BF: Escrita palavras reais regra de baixa freqüência; EPRIr BF: Escrita palavras reais irregulares de baixa freqüência; EPIR: Escrita palavras inventadas regulares; EPIRg: Escrita palavras inventadas regra; EPIIr: Escrita Palavras inventadas irregulares. LPRR AF: Leitura palavras reais regulares de alta freqüência; LPRg AF: Leitura palavras reais regra de alta freqüência; LPRIr AF: Leitura palavras reais irregulares de alta freqüência; LPRR BF: Leitura palavras reais regulares de baixa freqüência; LPRg BF : Leitura palavras reais regra de baixa freqüência; LPRIr BF: Leitura palavras reais irregulares de baixa freqüência; LPIR : Leitura palavras inventadas regulares; LPIRg: Leitura palavras inventadas regra; LPIIr: Leitura Palavras inventadas irregulares. Quanto à avaliação fonológica não verificamos, na população deste estudo, alterações no processo de estruturação silábica, porém quanto aos processos de substituição, evidenciamos que 80% dos escolares do GII e 40% dos escolares do GIII apresentaram dessonorização de obstruintes para sons plosivos, fricativos ou africados (Quadro 4). Processos de estrutura silábica Redução de encontro Consonantal Apagamento de sílaba átona Apagamento fricativa FSDP Apagamento líquida não lateral (FSDP) Apagamento líquida não lateral Apagamento líquida intervocálica lateral Apagamento líquida intervocálica não lateral Apagamento líquida inicial lateral Metátese Epêntese Dessonorização de obstruintes (plosiva, fricativa ou africada) Anteriorização Substituição líquida lateral Semivocalização líquida lateral Plosivação Posteriorização fricativa Assimilação GI Incidência < 25% > 25% GII Incidência > 25% < 25% 80% 20 - GIII Incidência > 25% < 25% 40% 60 - Quadro 4 – Distribuição em porcentagem do desempenho dos escolares do GI, GII e GIII quanto à incidência de alterações nos processos fonológicos de estrutura silábica e substituição na Avaliação Fonológica da Criança (AFC). Processos de substituição 56 Simone Aparecida Capellini et al. Caracterização do desempenho fonológico, da leitura e da escrita em escolares... 57 Na tabela 5 descrevemos o desempenho dos escolares do GI, GII e GIII na prova de consciência fonológica – PCF, e verificamos que os escolares do GI apresentaram menor média (1.20) no subteste de transposição fonêmica (TrF) e maior média (4.00 ) no subtestes de síntese silábica (SiS) e segmentação silábica (SeS). Entre os escolares do GII, observamos que os escolares apresentaram menor média (0) no subteste de transposição fonêmica (TrF) e maior média (3,80) no subteste de síntese silábica (SiS). Nos escolares do GIII verificamos que os escolares apresentaram menor média (0) no subteste de transposição fonêmica (TrF), Segmentação fonêmica (SeF), Manipulação fonêmica (ManF) e maior média (2,60 ) no subtestes de segmentação silábica (SeS). Com a realização da análise de variância (p < 0,001) para comparação das médias entre os grupos verificamos que não ocorreu diferença estatisticamente significante apenas no subteste de síntese silábica (SiS). 3,64* 1,75* 0,85* 1,62* 1,00* 0,60* 4,00 3,80 3,65 3,40* 1,90* 0,65* Alit 4,00* 2,80* 2,60* SeS 0,71* 0,30* 0* SeF 3,80* 0,95* 0,15* ManS 2,37* 0,35* 0* ManF 3,42* 1,15* 0,65* TrS 1,20* 0* 0* TrF 27,88* 14,15* 9,35* ET Legenda: SiS: Síntese Silábica; SiF: Síntese Fonêmica; Rim: Rima ; Alit: Aliteração; SeS: Segmentação Silábica; SeF: Segmentação Fonêmica; ManS: Manipulação Silábica; ManF: Manipulação Fonêmica; TrS: Transposição Silábica; TrF: Transposição Fonêmica; ET: Escore Total. GI GII GIII Rim SiF SiS Tabela 5 – Distribuição das médias (X) do desempenho dos escolares dos GI e GII nos subtestes da Prova de Consciência Fonológica (PCF). 58 Simone Aparecida Capellini et al. Caracterização do desempenho fonológico, da leitura e da escrita em escolares... 59 Discussão A dislexia e o distúrbio de aprendizagem são condições genético-neurológicas que freqüentemente acometem mais o sexo masculino do que feminino, conforme descrito por Berger, Yule e Rutter (1975), Selikowitz (2001), Fisher et al. (2002) e Kovel et al. (2004) e evidenciado neste estudo. Estes autores afirmaram que os meninos têm probabilidade de serem afetados por qualquer forma de dificuldade específica de leitura aproximadamente três vezes mais do que as meninas. Os problemas de aprendizagem relacionados às alterações de linguagem acometem crianças com dificuldade de leitura e escrita e geralmente apresentam como manifestações déficits fonológicos, que estão relacionados com a dificuldade em acessar e reter informações fonológicas necessárias para o ato de ler e escrever, como descrito por Catts e Kamhi (1986) e Gerber (1996). Entretanto, devemos considerar que esses déficits na habilidade fonológica podem ser de origem genética conforme proposto por estudos realizados por Samples e Lane (1985) Gallager, Frith, Snowling (2000), NopolaHemmi et al. (2002), Lyytinen, P., Eklund, Lyytinen, H. (2005) e Capellini et al. (2006). A alta porcentagem da presença do déficit fonológico na população de escolares com dificuldade na aprendizagem da leitura e escrita, evidenciada nos achados deste estudo, em parte pode ser explicada pelo fato do transtorno fonológico presente na oralidade influenciar de forma direta a aquisição da leitura em um sistema de escrita com base alfabética, conforme descrito por Snowling (1995), Navas e Santos (2002), Salgado e Capellini (2004) e Ávila e Capellini (2007). As alterações de fala juntamente com as alterações da linguagem, leitura, escrita, matemática e problemas comportamentais foram descritas pelos professores dos escolares do GII e GIII. Este achado corrobora com estudo realizado por Capellini, Tonelotto, 60 Simone Aparecida Capellini et al. Ciasca (2004) que referiram que entre as dificuldades apresentadas por crianças em fase de escolarização, encontram-se os problemas de decodificação de letras, leitura e compreensão da leitura, entre aqueles mais identificados pelos professores da sala de aula. As crianças com problemas de aprendizagem apresentam dificuldade em leitura que são detectadas primeiramente pelos professores em situação de sala de aula e se manifestam quanto à capacidade das mesmas em perceber os mecanismos gerativos implícitos na leitura, o que dificulta a leitura e a escrita de novas palavras e a compreensão textual (CAPELLINI; SALGADO, 2003). Neste estudo observamos que, de acordo com as respostas dos professores, a maioria dos escolares do GII e GIII apresentou troca ou omissão de letras na leitura e escrita, além da disgrafia, corroborando a afirmação de Ellis (1995) e Capellini (2004) que atribuem estas alterações ao fracasso no domínio da habilidade alfabética das crianças com alterações de leitura, resultando em disfunção básica do sistema fonológico, que acarreta sérias implicações para escrita e para qualquer tipo de leitura que requeira decodificação e análise e síntese de letras. Outro sinal presente nos escolares com dislexia e com distúrbio de aprendizagem deste estudo e evidenciado pelos professores foi à dificuldade quanto ao aprendizado do cálculo aritmético. A resolução de cálculo matemático está diretamente relacionada com a emissão e o entendimento da linguagem. Assim, indivíduos com problemas de linguagem podem apresentar dificuldade para associar noções básicas de números com as situações vivenciadas no dia-a-dia ou no contexto de um problema com enunciado. Conforme descrito por Espin et al. (2001) e Geary (2004), indivíduos com dificuldade de leitura apresentam alterações no processamento da informação e, como esse processamento é baseado em aspectos cognitivos e lingüísticos, a compreensão de problemas com enunciados e cálculos matemáticos, os quais necessitam de correspondência léxico-mental e representação numérica, comprometem a realização da atividade matemática. Caracterização do desempenho fonológico, da leitura e da escrita em escolares... 61 Além da descrição do comportamento dos escolares quanto à fala, linguagem e comportamento realizados pelos professores, neste estudo, os dados referentes ao nível e à velocidade de leitura oral baseados no desempenho dos escolares do GI, GII, GIII, auxiliaram a caracterizar os quadros de dislexia e distúrbio de aprendizagem. Desta forma, percebemos que, nos escolares com dislexia, o princípio alfabético da leitura encontrou-se comprometido e a velocidade de leitura apresentou tendência a lentificação, enquanto que nos escolares com distúrbio de aprendizagem verificamos que o princípio logográfico é o que predomina com velocidade de leitura também lentificada. Além disto, os escolares do GII apresentaram manifestações como substituições de grafemas consonantais surdos por sonoros, falta de entonação e fluência durante a leitura e tiveram compreensão parcial do texto lido, enquanto que os escolares do GIII apresentaram além destas características ausência de compreensão textual na leitura de texto. Os dados deste estudo referente às manifestações de nível e velocidade de leitura oral reforçam os achados de Capellini e Ciasca (1999), Capellini e Cavalheiro (2000), Capellini (2001) que evidenciaram que o tipo, a velocidade e o nível de leitura em escolares com dificuldade na leitura decorrentes de alterações de linguagem, como a dislexia e o distúrbio de aprendizagem, encontram-se abaixo do esperado para idade e escolarização. No presente estudo, verificamos que os escolares do GII e GIII apresentaram maior dificuldade na compreensão da leitura silenciosa e oral do que os escolares sem dificuldade (GI), e de acordo com as pesquisas realizadas por Rubbo, Capp e Ramos (1998), o conhecimento do vocabulário, a taxa de velocidade articulatória e o uso diferenciado entre as séries das estratégias logográfica, alfabética e ortográfica, influenciam quantitativamente a velocidade de leitura. Quanto à avaliação fonológica dos escolares verificamos que os resultados foram ao encontro com os achados de Bergamo, Scrochio e Avila (1999), Joanisse et al. (2000), Capellini (2001) e Barros e 62 Simone Aparecida Capellini et al. Capellini (2003), que evidenciaram que crianças com dislexia e distúrbio de aprendizagem apresentam alterações na produção da fala, além de habilidade de leitura e linguagem rebaixada se comparada aos bons leitores, sugerindo alterações no processo fonológico. Quanto ao desempenho dos escolares em consciência fonológica, verificamos que os alunos, independentemente dos grupos, apresentaram melhor desempenho nas habilidades silábicas se comparadas às fonêmicas. Os achados referentes ao desempenho silábico e fonêmico dos escolares deste estudo corroboraram os resultados descritos por Capellini e Ciasca (1999), Capellini et al. (2004). As crianças com transtornos da aprendizagem, conforme descrito por Catts e Kamhi (1986) e Barros e Capellini (2003) freqüentemente apresentam dificuldades em consciência fonológica, tendo problemas para representar estímulos verbais fonologicamente e dificuldades para recordar informação fonológica armazenada na memória de trabalho. No que concerne às habilidades de síntese fonêmica, segmentação e transposição fonêmica, verificamos neste estudo que tanto os escolares do GI como os escolares do GII e GIII apresentaram dificuldades quanto à percepção dos sons que compõem as palavras e sua ordem, demonstrando haver alteração na habilidade fonológica. As dificuldades de rima e alteração presentes no GII e GIII em fase de aquisição da linguagem escrita corroborou conclusão de Morais (1997), que identificou que o grupo de leitores não proficientes teve pior desempenho em relação ao grupo de leitores proficientes, tanto nas atividades de aliteração como na rima. Bradley e Bryant (1983) referiram que a experiência das crianças com jogos seria responsável pelos resultados nos testes de rima e na leitura e, desta forma, a habilidade para categorizar sons seria decorrente de experiências anteriores ao aprendizado da leitura. Assim, atribuímos à metodologia de alfabetização da língua materna em nosso país, o fato dos escolares não vivenciarem jogos de categorização de palavras na oralidade, ocasionando problemas Caracterização do desempenho fonológico, da leitura e da escrita em escolares... 63 de percepção ou processamento fonológico, que dificulta a rapidez no acesso ao léxico mental, à análise fonológica das partes constituintes da palavra ou da palavra inserida no texto, dificultando a identificação das partes da palavra conhecida em outra palavra não presente no léxico de input visual ou vocabulário do escolar. Isto pode explicar o alto índice de crianças com dificuldades de aprendizagem existentes no contexto escolar que não apresentam nenhuma alteração neuropsicológica significativa, como foi possível evidenciar nos 54,5% de escolares deste estudo. Quanto às atividades que envolveram a leitura oral e escrita sob ditado de palavras reais e inventadas, verificamos neste estudo que, independentemente dos grupos, os escolares apresentaram, em grande maioria, melhor desempenho em leitura oral e escrita sob ditado de palavras reais e inventadas de alta freqüência do que de baixa freqüência e palavras inventadas, corroborando o citado por Frith (1985), de que os escolares lêem mais rápida e corretamente palavras familiares do que palavras inventadas, lêem melhor palavras de alta freqüência do que de baixa freqüência. Os resultados deste estudo quanto à leitura oral e sob ditado de palavras reais e inventadas foram ao encontro dos achados de Pinheiro (1995), que relatou que tanto as crianças do grupo competente como as do grupo com dificuldade em leitura lêem as palavras de alta freqüência com maior rapidez e com índice de acertos maior do que as de baixa freqüência. Entretanto, essa diferença - efeito de freqüência - foi maior para os GII e GIII, o que mostra que essas crianças têm dificuldades com as palavras de baixa freqüência em comparação ao grupo competente. O fato dos escolares do GII e GIII apresentarem maior dificuldade para realizar leitura de palavras inventadas sugere a hipótese de que esses escolares possuam maior clareza na percepção da estrutura fonológica das palavras quando as ouvem ou falam, o que favorece que os escolares possuem melhor reconhecimento de palavras reais familiares pertencentes ao seu léxico de “input” visual, 64 Simone Aparecida Capellini et al. favorecendo o reconhecimento global da palavra e apresentando dificuldade de analisar a palavra durante a leitura ou escrita (NUNES, 1992; ELLIS, 1995). Conforme descrito por Mann (1984) e Share (1995), como a leitura ocorre a partir de um processo indireto, envolvendo mediação fonológica (processos fonológicos) e um processo direto, envolvendo mediação lexical (visual), alterações que envolvem a mediação fonológica da leitura geram dissociação no modelo de duplo processo, acarretando dificuldades no reconhecimento e leitura de palavras inventadas, o que poderia justificar a dificuldade dos escolares com distúrbio específico de leitura, que apresentam desvios fonológicos, referentes à leitura de palavras inventadas. Neste estudo, evidenciamos que os escolares do GIII apresentaram desempenho inferior quanto à leitura, escrita e raciocínio lógico-matemático se comparado ao desempenho dos escolares do GII, isto devido ao fato dos escolares com distúrbio de aprendizagem apresentarem maior comprometimento no uso de habilidades cognitivo-linguísticas (atenção, percepção, memória, aspectos fonológicos, lexicais e semânticos de linguagem) que comprometem o desenvolvimento da leitura e escrita no contexto escolar. Estas características foram evidenciadas anteriormente por Ciasca (2003) e Barros e Capellini (2003). Os achados deste estudo evidenciaram que no contexto escolar há crianças que apresentam dificuldades intrínsecas decorrentes de disfunções neuropsicológicas que prejudicam o desenvolvimento da linguagem oral e escrita, conforme descrito por Castaño (2002) e Ciasca (2000) e que são agravadas pelo contexto da sala de aula que não enfatizam o uso de funções gnósicasinterpretativas, conforme proposto por Rotta (1988). As evidências deste estudo nos leva a refletir sobre como os déficits cognitivoslingüísticos presentes nos escolares com distúrbio específico de leitura e distúrbio de aprendizagem prejudicam a compreensão e uso das regras de conversão fonografêmicas e grafofonêmicas Caracterização do desempenho fonológico, da leitura e da escrita em escolares... 65 necessárias para aprendizagem da leitura e escrita e conseqüente acompanhamento das atividades escolares. Conclusão Os achados deste estudo nos permitiram concluir que o desempenho fonológico, de leitura e escrita de escolares com distúrbio de aprendizagem foi inferior ao desempenho de escolares com dislexia e este foi inferior ao desempenho de escolares que lêem conforme o esperado para idade e escolaridade, o que pode ser explicado devido ao fato dos escolares com distúrbio de aprendizagem apresentarem dificuldades relacionadas a um maior número de habilidades de linguagem comprometidas, ou seja, além da dificuldade na percepção e produção da habilidade fonológica, dificuldade quanto ao uso das habilidades sintática e semântica da linguagem. Os dados deste estudo nos fazem refletir sobre as características fonológicas de leitura e escrita nos transtornos de aprendizagem, evidenciando a necessidade de continuidade de estudo nesta temática para podermos compreender melhor o impacto desta problemática na aprendizagem da leitura, escrita e cálculo-matemático desta população no contexto de sala de aula. Referências bibliográficas ABAURRE, M. B. M. Lingüística e psicopedagogia. In: SCOZ, R. M. (Org.). Psicopedagogia, o caráter interdisciplinar na formação e atuação profissional. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987. p. 25-40. ÁVILA, C. R. B.; CAPELLINI, S. A. Relation between Oral and Written Language. In: CAPELLINI, S. A. (Org.). Neuropsycholinguistic Perspectives on Dyslexia and other Learning Disabilities. New York: Nova Science Publisher, 2007. p. 15-21. BARROS, A. F. F., CAPELLINI, S. A. Avaliação fonológica, de leitura e escrita em crianças com distúrbio específico de leitura. 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Baseando-nos na perspectiva de Vygotski sobre o desenvolvimento dos conceitos científicos e cotidianos pelo indivíduo, pudemos caracterizar o desenvolvimento conceitual dos participantes durante a intervenção. Foi possível concluir que a aprendizagem de conceitos científicos pode ser analisada do ponto de vista do desenvolvimento conceitual, com contribuições importantes para a prática docente relacionada ao ensino de Ciências, no sentido de favorecer de forma significativa a aprendizagem dos estudantes. Essa análise também fornece subsídios para a compreensão das dificuldades de aprendizagem de conceitos científicos apresentadas por estudantes. Palavras-chave: Ensino de Ciências. Vygotski. Conceitos científicos. Evolução das espécies. Esta pesquisa de mestrado foi desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Carlos, sob orientação das professoras Dra. Itacy Salgado Basso e Dra. Ana Luiza R. V. Perdigão, defendida em março de 2004 e disponível para download em: <http://www.bdtd.ufscar.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=297>. * Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação, área de Metodologia de Ensino, Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). E-mail: [email protected] 1 APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano V n. 9 p. 71-100 2007 72 Douglas Verrangia Correa da Silva Analysis of the development of scientific concepts related to the evolution of species theory: A vygotskian perspective Abstract: In this article is described a finished investigation, a Master in Education, in which it was analyzed the development of scientific concepts of students engaged in a teaching intervention about the “Evolution of the species”. The activity had as main characteristics its structure, formulated in a way that aimed on stimulating students reasoning and interfering in one’s conception and it was also supported by a teaching instrument. In agree with the of Vygotski’s theory, we characterized the student’s conceptual development. We were able to conclude that the consideration of Vygotski’s theory on the teaching practice related to science concepts can offer a huge advancement, offering teaching procedures favorable to a significant learning. This analysis also supplies subsidies to understand the difficulties on scientific concepts learning presented by students. Key words: Science teaching. Vygotski. Scientific concepts. Evolution of the species. Introdução O estudo aqui descrito teve como objetivo analisar o desenvolvimento conceitual de alunos/as, relacionado à temática “evolução das espécies”, a partir da interação com condições de ensino especialmente planejadas para esta finalidade e com as variáveis surgidas na dinâmica do processo, relacionadas às compreensões do professor sobre o mesmo e às suas conseqüentes intervenções. Desta for ma, dedicamo-nos a pesquisar o ensino e a aprendizagem da teoria da evolução das espécies no contexto de uma intervenção, preocupados com um aspecto muito relevante da problemática relacionada a este conjunto de conhecimentos: as dificuldades, apresentadas por estudantes, de aprendizagem dos conceitos centrais dessa temática e formas de superação destas dificuldades. Trabalhos de pesquisa, como os de Ault Jr. et al. (1984), Brumby (1984), Lawson e Thompson (1988), Bishop e Anderson (1985, 1990), Lawson e Weser (1990), Demastes et al. (1995, 1996), Bizzo (1996), Ferrari e Chi (1998), entre outros, têm demonstrado Análise do desenvolvimento de conceitos científicos sobre a teoria da evolução... 73 que estudantes, mesmo tendo se submetido por vários meses (e anos) ao ensino formal desse conteúdo, mantêm ou desenvolvem idéias divergentes do conhecimento científico. Bishop e Anderson (1990) desenvolveram uma extensa pesquisa que se tornou referência (como afirmam Ferrari e Chi, 1998) para muitos trabalhos dedicados ao estudo da aprendizagem de estudantes sobre a teoria da evolução das espécies. Os autores tiveram como objetivos: a) descrever as concepções de estudantes de nível superior sobre o mecanismo da seleção natural e os fatores responsáveis pela mudança evolutiva; b) avaliar os efeitos da instrução nas concepções dos estudantes (instrução desenvolvida no curso secundário e em aulas de biologia cursadas na faculdade); e c) determinar se as concepções sobre a seleção natural estão associadas com o fato de esses estudantes acreditarem na teoria da evolução como um fato histórico (BISHOP; ANDERSON, 1990, p. 416). Após uma análise que envolveu a relação entre procedimentos qualitativos e quantitativos, os autores chegaram à conclusão de que a maioria dos estudantes que iniciava o curso acreditava possuir um entendimento básico (p. 420) sobre o processo evolutivo por meio da seleção natural. Mas, este entendimento mostrou-se significativamente diferente do conhecimento aceito como científico. Após uma identificação inicial das idéias dos/as estudantes, foram desenvolvidos materiais específicos, palestras, atividades de laboratório e conjuntos de situações-problema que os estudantes resolviam em discussões em pequenos grupos. Após o curso, os autores chegaram às seguintes conclusões: a) os conceitos envolvidos no processo de evolução são muito mais difíceis de compreender do que a maioria dos biólogos imagina; b) é possível alterar as concepções dos estudantes, contanto que elas sejam levadas em consideração no planejamento do trabalho pedagógico (p. 431). Mesmo os métodos e materiais utilizados, revistos e aprimorados especificamente para o grupo de estudantes considerados, não foram 74 Douglas Verrangia Correa da Silva suficientes para ajudar um número considerável de estudantes (50 a 60%) a modificar suas idéias. No Brasil, Bizzo (1996) desenvolveu uma pesquisa também extensa na qual analisa o ensino e a aprendizagem da teoria da evolução das espécies. Foram estudadas as propostas curriculares de 18 estados brasileiros e do Distrito Federal, livros didáticos utilizados pelas escolas participantes da pesquisa e recomendados por professores destas, entrevistas e questionários que visaram levantar as concepções de estudantes sobre o processo evolutivo e sobre a figura de Charles Darwin. Foram entrevistados e responderam um questionário alunos de “uma escola particular de elite e duas escolas públicas” (p. 195) que já haviam se submetido ao ensino formal da teoria da evolução das espécies. Após as entrevistas, o pesquisador constata que “apesar de sua diversidade de formação, perfil socioeconômico, cultural, religioso, etc. [os alunos] apresentaram algumas concepções muito parecidas” (p. 195) e “O que há de surpreendente é a eqüidistância que guardam das concepções consideradas válidas no contexto científico da atualidade” (p. 195). Analisando as respostas ao questionário, que foi respondido por 192 estudantes, foi constatado em “um conjunto ampliado de estudantes” (p. 216), que as conclusões a que tinham chegado a partir das entrevistas se mantinham válidas. Os resultados da pesquisa citada, apresentados aqui de forma muito sucinta, são convergentes com os encontrados por Bishop e Anderson (1990) no que concerne às idéias dos estudantes, majoritariamente divergentes do conhecimento científico. Bizzo (1996) aponta para falhas nos materiais didáticos e nos parâmetros curriculares, que, segundo o autor, podem favorecer a manutenção das divergências entre o conhecimento dos alunos e o científico. Há outros trabalhos dedicados à mesma temática dos citados anteriormente, dos quais gostaríamos de destacar: Demastes et al. (1996) e Lawson e Thompson (1988). É importante apontar, então, que este estudo encontra-se inserido na temática da aprendizagem de conceitos científicos e que a análise desenvolvida está baseada em concepções teóricas, ligadas Análise do desenvolvimento de conceitos científicos sobre a teoria da evolução... 75 basicamente à teoria do desenvolvimento dos conceitos de Vygotski, abordagem na qual poucos trabalhos sobre o ensino de ciências têm se amparado. Referências teóricas Apresentamos aqui parte das referencias teóricas em que nos pautamos, a fim de possibilitar uma melhor compreensão da reflexão exposta. A partir dos resultados de uma série de pesquisas, Vygotski (1993) categoriza os conceitos como cotidianos e científicos. Segundo o autor, a formação de conceitos pelas crianças está relacionada diretamente à natureza destes, sendo o processo de formação diferente em função da natureza do conceito. Com relação aos conceitos cotidianos (“espontâneos”), o autor explica que: A aparição inicial do conceito espontâneo está ligada ao enfrentamento da criança com uma ou outras coisas, em verdade, com coisas que explicam ao mesmo tempo os adultos, mas que, entretanto, são coisas vivas e reais. E somente através de um prolongado desenvolvimento a criança chega a tomar consciência do objeto, a tomar consciência do conceito e das operações abstratas que realiza com ele (p. 252-253). Vemos, então, que Vygotski relaciona os conceitos cotidianos às coisas “vivas” e “reais”, às quais a criança se relaciona e com as quais tem experiências empíricas, sensoriais. Essas experiências empíricas proporcionam uma visão sobre os fenômenos, que, segundo o autor, pode se desenvolver, pois: O desenvolvimento dos conceitos espontâneos começa na esfera do concreto e do empírico e se move em direção às propriedades superiores dos conceitos: o caráter consciente e a voluntariedade (p. 254). Os conceitos cotidianos podem se desenvolver e passar a ter um caráter mais voluntário e consciente, deixando de estar 76 Douglas Verrangia Correa da Silva relacionados tão estreitamente “à coisa”, “ao objeto” e passando a um conhecimento mais abstrato, mais geral. Esses conceitos desenvolvem-se por meio de um processo indutivo, pela generalização a partir do conhecimento sensorial de objetos particulares. Com relação aos conceitos científicos, o autor afirma que “o nascimento do conceito científico não se inicia com o enfrentamento direto com as coisas, senão com a atitude mediatizada até o objeto” (p. 253). Desta maneira, os conceitos científicos têm desenvolvimento diferente dos cotidianos. Eles nascem de um plano abstrato, mediatizado por outros conceitos, até o objeto do conhecimento. Os conceitos científicos apresentam um desenvolvimento no sentido inverso dos espontâneos: Podemos dizer que a força dos conceitos científicos se manifesta em uma esfera que está por completo determinada pelas propriedades superiores dos conceitos: o carácter consciente e a voluntariedade (p. 254). Segundo Vygotski (1993, p. 259), o desenvolvimento dos conceitos científicos está mediado por outros conceitos, formados com anterioridade e, diferentemente dos cotidianos, não vinculados ao seu objeto diretamente. Para o autor: “o problema do sistema é o ponto central de toda a história do desenvolvimento dos conceitos genuínos na infância” (p. 259). Um sistema de significados surge junto com o desenvolvimento dos conceitos científicos e exerce uma ação transformadora nos conceitos cotidianos. O sistema de significados formado por conceitos científicos genuínos – de elevado grau de consciência e voluntariedade – é a estrutura cognitiva que permite aplicabilidade destes conceitos científicos e elevação a um nível superior daqueles conceitos cotidianos já existentes. Referindo-se à questão do “sistema”, o autor apresenta o que denominou “tecido conceitual”. Este “tecido conceitual” seria uma rede de conceitos que estão em conexão e que, graças a isto, em fases superiores do desenvolvimento “[...] qualquer conceito pode ser designado com ajuda de outros conceitos mediante uma quantidade Análise do desenvolvimento de conceitos científicos sobre a teoria da evolução... 77 inumerável de procedimentos” (p. 262). A rede descrita pelo autor poderia ser explicada por uma analogia com a esfera terrestre. Cada intersecção entre meridianos e paralelos, cada ponto, representaria um conceito. Podemos compreender a longitude do conceito como “[...] o lugar que ocupa entre os pólos extremos do pensamento visual e abstrato” (p. 264). Já a latitude do conceito caracterizará “o lugar ocupado por este entre outros conceitos de igual longitude, mas que se referem a outros pontos da realidade”. Neste contexto teórico, entende-se que as relações estabelecidas entre conceitos – formados, por sua vez, por outros conceitos subordinados – estão intimamente vinculadas com o desenvolvimento desses. Se admitirmos que o sujeito encontra-se, segundo a caracterização de Vygotski, na fase conceitual, parte das relações será refletida no que o autor denominou “medida de comunalidade”. A medida de comunalidade seria o “[...] lugar do conceito dentro do sistema de todos os conceitos, determinado pela sua longitude e latitude, [...] este núcleo contido na interpretação de suas relações com outros conceitos”. Então, entendemos que a aprendizagem de conceitos, à qual aqui nos referimos somente como aprendizagem, como o estabelecimento de relações entre novas informações e aquele conjunto de noções, idéias e conceitos já estabelecidos. Também o estabelecimento de novas relações entre informações já disponíveis no tecido conceitual, formando novas possibilidades de pensamento (PETROVSKI, 1980). Esse autor, cujas bases teórico-metodológicas dialogam com as de Vygotski, considera o pensamento como o produto superior do cérebro, conceituado como: El pensamiento es el proceso psíquico socialmente condicionado de búsqueda y descubrimientos de lo esencialmente nuevo y está indisolublemente ligado al lenguaje. El pensamiento surge del conocimiento sensorial sobre la base de la actividad práctica y lo excede ampliamente (p. 292). Petrovski (1980) afirma também que o pensamento é um processo ativo de reflexão do mundo objetivo em conceitos, juízos, 78 Douglas Verrangia Correa da Silva teorias etc. Para o autor o processo de pensamento “es ante todo análisis, síntesis y generalización” (p. 302), conceitos que não aprofundaremos neste referencial, mas que discutimos detidamente em Silva (2004). Em consonância com o referencial adotado, entendemos que as aprendizagens possibilitam o processo ativo de reflexão sobre o mundo. Referindo-nos especificamente à aprendizagem de conceitos na teoria de Vygotski, cada nova aprendizagem: pode reforçar o sentido de um conjunto de relações já estabelecidas; pode não interferir em um conjunto significativo de relações que formam um sentido; e, por fim, pode transformar totalmente o sentido de relações já estabelecidas. Desta forma, a aprendizagem refere-se, em muitos casos, a transformações na “medida de comunalidade” de conceitos já estabelecidos, assim como a criação de novas relações e, portanto, uma nova medida de comunalidade. Desta forma, a aprendizagem de novos conceitos requer reorganização do tecido conceitual. Isto é, a aprendizagem concreta de determinado conceito é gerada no estabelecimento de relações entre este e outros conceitos ou idéias pré-existentes, transformando-os. Sendo assim, o processo de desenvolvimento conceitual supõe transformações nas relações estabelecidas entre conceitos e idéias novos e pré-existentes. O estágio deste processo pode ser identificado pela análise da interação entre a estrutura de generalização do conceito (consciência sobre sua definição) e a conexão com a realidade, o grau de aplicabilidade do conceito. Procuramos, de forma mais sintética possível, apresentar elementos centrais das referências teórico-metodológicas adotadas no estudo, e, a seguir, apresentamos os procedimentos metodológicos da pesquisa e os resultados e discussões a que chegamos com ela. Procedimentos metodológicos De forma geral, a metodologia adotada nesta pesquisa foi pautada no objetivo de analisar o desenvolvimento conceitual de alunos a partir da interação com condições de ensino especialmente planejadas para esta finalidade e com as variáveis surgidas na dinâmica Análise do desenvolvimento de conceitos científicos sobre a teoria da evolução... 79 do processo. Para tanto, optamos por desenvolver a pesquisa sobre uma intervenção de ensino, na qual foram obtidos os dados analisados. Descrevemos essa intervenção de forma sucinta a seguir. A intervenção Participaram da intervenção de ensino analisada neste estudo, além do pesquisador, que atuou como professor, 16 estudantes que ou cursavam o 3º ano do ensino médio ou haviam completado o mesmo, sendo todos/as alunos/as de um curso pré-vestibular popular, o projeto de extensão Curso Pré-Vestibular da UFSCar.2 O curso teve um total de 15 aulas, distribuídas em três etapas, nas quais tentamos garantir a realização de uma variedade de atividades, por meio da combinação entre diferentes conteúdos conceituais e tipos de atividades que procuraram propiciar operações de pensamento (R ATHS et al., 1977). Os conteúdos conceituais abordados foram variação intra-específica; hereditariedade de certas características; taxa diferencial de sobrevivência (adaptação local); taxa diferencial de reprodução; acumulação de variações através das gerações. Já as atividades, relacionadas às operações de pensamento, envolveram: observação/descrição; comparação; classificação; codificação; realização de resumo; aplicação de fatos e princípios a novas situações; interpretação; formulação de suposições; criação de hipóteses; conceituação/definição e planejamento de pequenos projetos ou pesquisas. Na etapa Avaliação Diagnóstica, objetivamos conhecer as idéias dos participantes sobre a temática abordada no curso. Portanto, foram realizadas atividades nas quais os alunos tiveram de explicitar suas idéias e realizar operações de pensamento, de forma articulada. Já na etapa Desenvolvimento realizaram-se atividades nas quais, de forma integrada, foram efetivamente abordados os conteúdos conceituais O Curso Pré-Vestibular da UFSCar (CPV UFSCar) é um projeto de extensão da Universidade Federal de São Carlos do qual participam um grande número de membros da comunidade acadêmica e da comunidade da cidade de São Carlos - SP e região, incluindo o pesquisador que, a época da pesquisa, atuava como professor do mesmo. 2 80 Douglas Verrangia Correa da Silva mencionados anteriormente por meio de atividades que visavam propiciar operações de pensamento. As atividades desenvolvidas foram diversificadas e envolveram aulas expositivo-participativas, assistir vídeo, visitar um museu de paleontologia, resolução de questões em grupo e individualmente, e, principalmente, atividades com um instrumento de ensino, detalhadamente descrito em Silva (2004) e Silva e Ribeiro (2001). A sistemática de elaboração das atividades pode ser descrita, de forma geral, da seguinte maneira: consideração da análise prévia (realizada na Avaliação Diagnóstica) sobre as idéias dos alunos a respeito de cada um dos conteúdos conceituais mencionados; articulação das atividades envolvendo operações de pensamento pré-definidas e dos conteúdos sobre a temática abordada na proposição de procedimentos a serem realizados pelos alunos; utilização do instrumento como um dos elementos centrais das atividades propostas. Na etapa final, Avaliação da Aprendizagem, procuramos conhecer a aprendizagem conceitual dos participantes ao final da intervenção, o estágio de desenvolvimento dos conceitos. Para tanto, foram desenvolvidas, como na etapa inicial, atividades dirigidas a explicitar tais conceitos, por meio de situações que solicitavam estabelecimento de relações entre conceitos em uma série de contextos, envolvendo o instrumento de ensino, respostas a um questionário, discussões e outros trabalhos em grupo. A Pesquisa Foram considerados participantes da pesquisa dois estudantes que participaram da intervenção de ensino mencionada, Fábio e Vanessa.3 A decisão de analisar os dados destes dois estudantes Os nomes dos/as participantes são fictícios. Ambos os participantes da pesquisa apresentavam características socioeconômicas muito parecidas com a média dos alunos ingressantes no CPV UFSCar no ano de 2002, classe média baixa (D). Os dois realizaram toda sua escolarização em escolas públicas da cidade de São Carlos. Fábio, 22 anos, havia completado o ensino médio três anos antes e auto declarou-se branco em questionário socioeconômico e Vanessa, 16 anos, cursava o ensino médio juntamente às atividades do CPV UFSCar, e declarou-se parda. 3 Análise do desenvolvimento de conceitos científicos sobre a teoria da evolução... 81 baseou-se no critério de freqüência ao curso, ambos foram os que tiveram maior freqüência, o que possibilitou uma análise processual mais completa, com poucas lacunas de registros. A pesquisa foi realizada na perspectiva de compreender os processos e produtos da aprendizagem desses participantes ao longo das três etapas da intervenção. Para tanto, foram definidas categorias de análise relativas ao desenvolvimento conceitual dos participantes da pesquisa sobre um aspecto central da teoria evolutiva: a variabilidade intra-específica. A essas categorias de análise procuramos relacionar dados sobre as condições oferecidas pelas intervenções do professor/pesquisador e a participação de um instrumento de ensino no processo de aprendizagem.4 A coleta de dados foi distribuída durante as três etapas da intervenção: início do curso, antes do desenvolvimento de atividades de ensino (etapa de Avaliação Diagnóstica), durante o curso (etapa de Desenvolvimento) e ao seu final (etapa de Avaliação de Aprendizagem). Foram utilizados os seguintes instrumentos de coleta: anotações de observações durante as aulas (e após o término das mesmas); produtos escritos pelos/as alunos/as, gerados em atividades realizadas em aula; gravações em vídeo de aulas. Os dados sofreram uma sistematização inicial após o final da intervenção, que consistiu em uma organização geral por etapa do processo de ensino a que estavam relacionados (Diagnóstico Inicial, Desenvolvimento e Diagnóstico Final) e reunião/agrupamento dos registros escritos pelos alunos e gravações de aula, realizados em cada uma destas etapas. Após esta primeira organização, realizamos a efetiva sistematização dos dados, em categorias relacionadas aos conceitos Trabalhos como Ferreira et al. (2000) e França e Martins (2000) apontam para a importância da utilização de jogos no ensino de conceitos das Ciências Biológicas e, inclusive, na formação de professores, principalmente por sua relação com o estabelecimento e cumprimento de regras. Em nossa pesquisa essa importância se concretizou, mas, devido às limitações de espaço, decidimos sintetizar as relações entre desenvolvimento conceitual e o instrumento de ensino em outro texto, em produção 4 82 Douglas Verrangia Correa da Silva analisados. Assim, para os dados obtidos em cada uma das etapas, foram destacados e agrupados todos os registros que continham elementos considerados como indicadores da categoria principal de análise: as idéias dos/as participantes sobre a variabilidade intraespecífica e seu papel no processo evolutivo, cujas categorias encontradas foram: presença de diferenças entre indivíduos de um mesmo grupo (espécie); conceito de espécie; geração da variação é aleatória; relação entre variação e mutação; princípio da herança dos caracteres; relação entre variação e adaptação; relação entre variação e ambiente e relação entre variação e processo evolutivo. Também foram destacados dados sobre as condições criadas pelas intervenções do professor e sobre a participação do instrumento de ensino no desenvolvimento da estratégia. Finalmente, estabelecemos relações entre as análises realizadas em cada etapa para cada uma das categorias citadas para cada participante, procurando apontar possíveis indicadores de desenvolvimento conceitual ocorrido e relacioná-los às condições de ensino propiciadas, em base ao referencial teórico adotado. Para facilitar a compreensão dos resultados e discussões a que chegamos, apresentamos um quadro com exemplos de análises empreendidas durante a pesquisa. São excertos relativos a algumas das categorias estudadas, de dois dos participantes da intervenção e pesquisa. Apresentamos exemplos de análises sobre três tipos distintos de desenvolvimento estudados: de idéias ou noções (ex.: diferenças entre indivíduos de um grupo); de conceitos (ex.: espécie) e de relações entre conceitos (ex.: variação e adaptação), que foram analisados também de forma independente. A análise minuciosa de todos os aspectos considerados na pesquisa, aqui apenas mencionados, pode ser encontrada em Silva (2004). “Espécie é um grupo de indivíduos cujas características são semelhantes entre eles e que quando se cruzam na natureza produzem descendentes férteis”. “Mesmo tendo características diferentes o Tupec e o Iscam Nam não deixam de serem o que é, pois somente algumas ‘coisas’ são mudadas para que suas sobrevivência possam ser garantidas e eles consigam adaptar-se ao meio em que vivem, conseguindo assim algumas melhorias”. Possível desenvolvimento de idéias convergentes com o conhecimento científico a partir da idéia de diferenças entre indivíduos e sua natureza para o conceito de variabilidade intra-específica e seu papel no processo evolutivo. Etapa Final – Avaliação da aprendizagem Quadro 1 – Exemplo de dados e análises sobre o desenvolvimento das idéias da participante Vanessa sobre as diferenças entre indivíduos de um grupo e do conceito de espécie. Exemplo de dados Análise Identificava a existência de diferenças físicas entre os indivíduos de um grupo, entretanto, apresenta diferenças com relação à etapa anterior, em relação ao surgimento das características, sua determinação e transmissão. Início da utilização do conceito de espécie e variação intra-específica. Etapa 2 - Desenvolvimento Identificava a existência de diferenças físicas entre indivíduos de um mesmo grupo, como tamanho, cor de olhos, diferenças com relação à pelagem, etc. IDÉIA: Diferenças entre indivíduos de um grupo Etapa 1 - Avaliação Diagnóstica (continua) Análise do desenvolvimento de conceitos científicos sobre a teoria da evolução... 83 “Espécie é um grupo de indivíduos cujas características são semelhantes entre eles e que quando se cruzam na natureza produzem descendentes férteis”. “A grande variedade de espécies foi importante porque cada espécie possuía características específicas para a sua sobrevivência”. “[...] as mutações ocorridas em cada uma das populações acabam dando origem a organismos tão diferentes, que surgem novas espécies. Isso ocorre devido ao fato dessas populações não se cruzarem e logicamente não originarem descendentes”. “Como o fato de seguirem em direção a cidades iluminadas ao invés do mar é algo prejudicial à espécie, pois vários indivíduos acabam morrendo, talvez daqui a alguns anos elas desenvolvam uma outra maneira de orientação”. “A seleção natural é o processo pelo qual a espécie se adapta ao ambiente garantindo assim sua sobrevivência”. “No instrumento isto é mostrado através da diminuição ou desaparecimento de uma espécie anterior a uma outra, cuja a adaptação tornou-se difícil devido as mudanças ambientais”. Em que as chamadas espécies são subpopulação utilizadas no instru-mento de ensino. “Mesmo que essas plantas mudem de ambiente com muitos parasitas elas não evoluíram, pois todas elas são idênticas. Não há diversidade de espécies [...]” Aumento do uso da palavra espécie de forma convergente ao conceito científico, mas ainda com estreita relação ao conceito de subpopulação. Quadro 1 – Exemplo de dados e análises sobre o desenvolvimento das idéias da participante Vanessa sobre as diferenças entre indivíduos de um grupo e do conceito de espécie. Exemplo de dados Análise Utilização mais freqüente da palavra espécie, algumas vezes de forma convergente com o conceito científico e em outras não, relacionando-o a indivíduos de uma espécie que se diferenciam por algumas características (subpopulações). A palavra “espécie” foi utilizada em apenas uma situação, estimulada, de forma não convergente ao conceito científico, o que corroborou a análise de que esta não tinha um conceito científico de espécie desenvolvido. CONCEITO: Espécie (conclusão) 84 Douglas Verrangia Correa da Silva Etapa 2 - Desenvolvimento “Quanto mais diferenças [entre os indivíduos de uma população] melhor para sobreviverem, para alguns poderem se adaptar”. “[...] Aleatoriamente foram surgindo mutações que favoreceram sua adaptação e sobrevivência ao ambi-ente”. “Com a diversidade da espécie, as características são diversas, o que possibilita a adaptação de alguns indivíduos que possam sobreviver às mudanças ambientais”. “Quando a população era +++++ as chances de sobreviventes foram maiores, já que a população também é grande houve uma maior adaptação no ambiente”. “Antes dos mamíferos, o domínio terrestre pertencia aos dinossauros. Após sua extinção houve um aumento populacional dos mamíferos que se adaptaram e conseguiram seu domínio”. “[...] os espinhos tornaram-se pêlos e para Exemplo conseguir mais alimento as patas desenvolveram nadadeiras”. “[...] elas então serão ‘obrigadas’ a de dados tornarem-se adaptadas ao meio para garantir sua sobrevivência”. Quadro 2 - Exemplo de dados e análises sobre o desenvolvimento das relações estabelecidas pela participante Vanessa entre os conceitos de variação e adaptação. Análise Estabelecimento de relação direta entre a diversidade de características e adaptação, em que a diversidade indica possibilidade de adaptação. Forte convergência entre as idéias da participante e o conhecimento científico. Diminuição no uso da palavra adaptação e estabelecimento de relação entre adaptação e tamanho populacional, além de identificação de que em grandes populações há maior possibilidade de surgimento de características, isto é, de variação, que possibilitariam adaptação. Etapa Final – Avaliação da aprendizagem Relacionava diferenças entre indivíduos de determinado grupo e sua adaptação, relação permeada pela idéia de que as diferentes características são adquiridas para possibilitar sobrevivência e adaptação. Caráter de intencionalidade no surgimento das características, convergente com uma visão lamarckista do processo. Entendimento de adaptação como uma transformação, de características já existentes em outras “melhores” para o ambiente. RELAÇÕES entre os conceitos de Variação e Adaptação Etapa 1 - Avaliação Diagnóstica Análise do desenvolvimento de conceitos científicos sobre a teoria da evolução... 85 “Através da reprodução, surgiam indivíduos com características diferentes, selecionados pelo ambiente resultando em várias e diferentes espécies”. “Provavelmente porque eles descenderam de um mesmo indivíduo e com o passar do tempo foram adquirindo características diferentes. Elas podem surgir para uma melhor adaptação em diferentes ambientes ou por acaso”. Identificava a existência de diferenças entre indivíduos de uma espécie e foi possível confirmar suas idéias a respeito da importância das diferenças na formação de novas espécies e na sobrevivência e adaptação em determinado ambiente. Etapa Final – Avaliação da aprendizagem Quadro 3 - Exemplo de dados e análises sobre o desenvolvimento das idéias do participante Fábio sobre as diferenças entre indivíduos de um grupo e do conceito de espécie. Exemplo de dados Análise Identificava a presença de diferenças entre indivíduos de uma espécie, como tamanho, cor dos olhos, da pelagem etc., passando a relacionar estas diferenças ao conceito de espécie, entre outros. Etapa 2 - Desenvolvimento Identificava diferenças entre indivíduos de um mesmo grupo e relacionava características comuns à ancestralidade e diferentes à aquisição ao longo do tempo. IDÉIA: Diferenças entre indivíduos de um grupo Etapa 1 - Avaliação Diagnóstica (continua) 86 Douglas Verrangia Correa da Silva “Seleção natural são as características novas que surgem em uma determinada espécie fazendo com que ela se adapte ou não ao ambiente e, sendo assim, selecionado.” “surgirem características novas na espécie e depois de um longo período poderão surgir espécies diferentes”. “Espécie: é um grupo de indivíduos com características e hábitos semelhantes capazes de produzirem descendentes férteis e que interagem em um determinado ambiente”. “Especiação é a divisão de uma população em duas ou mais que, vivendo em ambientes diferentes, darão origem a indivíduos com características novas até um momento em que se tornarão espécies totalmente diferentes que não cruzarão ou cruzarão dando origem a descendentes estéreis”. “As chitas evoluíram cada vez mais com o passar do tempo para se adaptar ao ambiente, para se alimentar e perpetuar a espécie”. “Sim, pois ao longo de milhares de anos as tartarugas poderão nascer sem o gene desta doença, constituindo uma evolução na espécie”. Quadro 3 - Exemplo de dados e análises sobre o desenvolvimento das idéias do participante Fábio sobre as diferenças entre indivíduos de um grupo e do conceito de espécie. Exemplo de dados Análise Espécie é um grupo de indivíduos com características semelhantes e que, adquirindo características diferentes, pode dar origem a outro grupo, uma nova espécie. Nesse grupo podem surgir diferentes características e isto modifica a possibilidade de sobrevivência dos indivíduos. Utilizou a palavra “espécie” em três situações requeridas pelas atividades, sendo que todas as utilizações foram convergentes com o conceito científico. Mas, com ênfase às grandes diferenças, que possibilitariam formação de novas espécies. Utilizou a palavra “espécie” em duas situações, com sentido de grupos e relacionada à produção de descendentes férteis. CONCEITO: Espécie (conclusão) Análise do desenvolvimento de conceitos científicos sobre a teoria da evolução... 87 Etapa 2 - Desenvolvimento “Adquirindo características em sua evolução cujo seus antepassados não possuíam, que os ajudam a se adaptar ao ambiente, viver por um tempo maior e produzir descendentes férteis. Ex.: Chita, o Bagre-cego”. “Essa capacidade de manter-se sem subir para pegar ar aumentará até chegar um momento em que a tartaruga não precise de oxigênio, por adaptação ao ambiente marinho”. A diversidade (variação) possibilita adaptação e também pode dar origem a novas espécies. Relaciona o papel da variação intra-específica no processo evolutivo, sendo que diferentes características possibilitam adaptação em dado ambiente. Sobre a importância da variabilidade intra-específica, afirmou: “Uma maior chance de adaptação em um ambiente, se reproduzir e a cada reprodução a probabilidade de surgirem características novas na espécie e depois de um longo período poderão surgir espécies diferentes”. “Quanto mais características novas mais chance de se adaptar ao ambiente”. Presença de certas características possibilita chance de adaptação dos indivíduos em dado ambiente. A diversidade de características é vista como possibilidade de adaptação e não como mudanças para a adaptação, visão expressa pelo participante no início da intervenção. “Sucesso: Os indivíduos nasceram com características que permitiram sua adaptação ao ambiente aquático. Fracasso: Devido a mudança do ambiente terrestre para o aquático, os indivíduos que possuíam características terrestres acabaram se extinguindo por não conseguirem se adaptar”.Sobre a importância da variedade de espécies de dinossauros expressou: “Uma maior chance de adaptação e reprodução no ambiente”..E sobre a relação entre a variedade de mamíferos e o domínio, atual, por estes de quase todos os ambientes escreveu: “A propícia adaptação dos mamíferos nos respectivos ambientes”. Etapa Final – Avaliação da aprendizagem Quadro 4 - Exemplos de dados e análises sobre o desenvolvimento das relações estabelecidas pelo participante Fábio entre os conceitos de variação e adaptação. Exemplo de dados Análise Expressou muitas vezes, de forma espontânea, a palavra “adaptação”, relacionando-a a diversidade de características. Surgimento das características que favoreceriam a adaptação está ligado a um certo direcionamento pelo ambiente, para possibilitar adaptação. Convivência de idéias lamarckistas e outras mais convergentes com conceitos científicos, em desenvolvimento iniciado anteriormente à intervenção. RELAÇÕES entre os conceitos de Variação e Adaptação Etapa 1 - Avaliação Diagnóstica 88 Douglas Verrangia Correa da Silva Análise do desenvolvimento de conceitos científicos sobre a teoria da evolução... 89 Resultados e discussão A partir das análises empreendidas, foi possível identificar que, durante a intervenção de ensino, houve desenvolvimento conceitual tanto de Vanessa quanto de Fábio. É necessário destacar, entretanto, que em algumas situações apenas pudemos formular hipóteses sobre as relações estabelecidas pelos estudantes, devido ao fato de que os dados coletados eram insuficientes para um esclarecimento pleno das idéias dos participantes. Mesmo assim, foi possível estabelecer muitas relações entre os dados coletados e as referências teóricometodológicas adotadas, relações que apresentamos a seguir. Vygotski (1993) escreveu que os conceitos científicos, em oposição aos cotidianos, manifestam sua força em uma esfera determinada pelas propriedades superiores dos conceitos: voluntariedade e consciência. Segundo o autor, conceitos científicos se desenvolvem, então, a partir dessas propriedades superiores até as outras, como a aplicabilidade e conexão com a realidade. A aplicabilidade de um conceito científico decorre, então, do desenvolvimento de um sistema de significados5, no qual encontramos a medida de comunalidade do conceito científico desenvolvido. Nesse sistema, as relações que formam o tecido conceitual (rede de relações estabelecidas) estão conectadas e, de forma coerente, permitem diferentes possibilidades de relações entre conceitos conectados e de formulação de idéias e explicações. Foi possível, no caso dos dois participantes, encontrar dados que indicam, em momentos distintos do processo de ensino, desenvolvimento conceitual. Identificamos mudanças na Estamos utilizando os termos sistema de significados e comunalidade, baseados em Vygotski (1993, p. 259) segundo o qual “el problema del sistema es el punto central de toda historia del desarrollo de los conceitos genuínos en la infância [...]”. Um sistema de significados surge junto com o desenvolvimento dos conceitos científicos e exerce uma ação transformadora nos conceitos cotidianos. Este sistema, formado por conceitos, científicos genuínos – de elevado grau de consciência e voluntariedade – é a estrutura cognitiva que permite aplicabilidade dos conceitos científicos e elevação do nível de consciência sobre aqueles conceitos cotidianos existentes. Assim, quando utilizamos o termo “sistema completo”, estamos nos referindo a um sistema de relações entre conceitos científicos genuínos, convergentes com o conhecimento científico. 5 90 Douglas Verrangia Correa da Silva voluntariedade e na consciência com que os participantes utilizaram conceitos científicos abordados na intervenção. Também foi possível perceber alterações relativas à aplicabilidade e conexão destes conceitos com a realidade. Neste sentido, procuramos identificar e analisar as relações estabelecidas pelos participantes ao longo de toda a intervenção, a fim de lograr conhecer os sistemas de significados desenvolvidos pelos mesmos. O participante Fábio parecia demonstrar, ao fim da intervenção, desenvolvimento conceitual convergente ao conhecimento científico (como pode ser observado nos Quadros 3 e 4) em relação a alguns conceitos abordados na intervenção, como adaptação. Mas, em relação a outros, como mutação, em várias situações ele, consciente e voluntariamente, refere-se ao conceito, mas não consegue aplicá-lo ao contexto requisitado, conectá-lo à realidade, indicando desenvolvimento a ser trilhado. É muito interessante que Fábio – como outros participantes – desde o início da intervenção desaprovava a idéia de simular a geração de variações em indivíduos de um grupo hipotético, em um instrumento de ensino, por meio de uma roleta (que simulava a aleatoriedade do processo). Em uma ocasião, no início do curso, o participante disse que aceitava aquela simulação, mas que “[...] no jogo é assim, mas na vida é diferente”, revelando que, naquele momento, não relacionava aleatoriedade e surgimento da variação intra-específica. Ao final do curso, em uma discussão elaborada para explicitar as idéias dos participantes sobre a origem da variação intra-específica, Fábio deu-se conta de que fez uma afirmação em que relacionava “necessidade ambiental” e surgimento de novas características. Após refletir e fazer perguntas sobre o processo de mutação, ele afirmou “Hoje foram apagados os resquícios de que o ambiente causa a mutação”. Mas, analisando todas as suas respostas a questionários e discussões em grupo, percebemos que ele era capaz de identificar, entre alternativas fornecidas, a mais convergente ao conceito científico de mutação. Mas, suas justificativas e falas demonstravam Análise do desenvolvimento de conceitos científicos sobre a teoria da evolução... 91 que ele mantinha idéias divergentes convivendo (o caráter aleatório da mutação, sua determinação genética e a possibilidade de necessidades ambientais favorecerem a geração de variação). Como ele utilizou várias vezes o conceito, o que demonstra voluntariedade, foi possível identificar que um sistema de significados completo, convergente ao conhecimento científico, ainda não havia sido desenvolvido. Os dados de Vanessa também corroboram a análise anteriormente realizada. Percebemos que ela, com relação ao mesmo conceito – mutação – passa a identificar, em questionários com alternativas, elementos estudados (determinação e herança genética das características e aleatoriedade) durante a etapa de Desenvolvimento do curso. Mas, quando era solicitado que aplicasse o conceito em situações de contexto, não explícitas, ela não era capaz de fazê-lo. No início do curso, Vanessa compreendia o surgimento de novas características relacionando-as à aquisição de “melhorias” e mudanças em características “prejudiciais” em grupos biológicos (como pode ser analisado no Quadro 1). Ao longo da intervenção, identificamos que ela era capaz não só de identificar as idéias de determinação e herança genética das características e aleatoriedade, mas aplicar o conceito de mutação em situações concretas em que este era requisitado. Em nosso entendimento, essa capacidade de aplicação está relacionada, principalmente, ao grau de desenvolvimento conceitual atingido, que possibilitava aplicabilidade em determinadas situações. Ao fim da intervenção, Vanessa relacionava variação intraespecífica e o ambiente de forma convergente ao conhecimento científico. Expressava a idéia de que a diversidade indica a possibilidade de que alguns indivíduos possam sobreviver às transformações ambientais (como pode ser visto no Quadro 2). Estas idéias parecem estar conectadas de forma estruturada, formando uma visão mais aplicável, de forma convergente ao conhecimento científico, em determinados contextos. Mas, quando analisamos outros conceitos centrais da teoria evolutiva, como o de espécie, verificamos 92 Douglas Verrangia Correa da Silva (ver Quadro 1) que a participante não diferenciava de forma clara espécie de subpopulações, ou de alguns indivíduos de uma determinada população que compartilham característica diferenciada. Desta forma, a participante também mantinha idéias divergentes ao conhecimento científico, no que se refere ao gradualismo do processo evolutivo e na geração da variação intra-específica. Nesse contexto, é possível inferir que o desenvolvimento conceitual desenvolvido por ambos participantes permitiu a ampliação e estruturação do chamado “tecido conceitual”, referente à teoria da evolução. Essa estruturação não pode ser considerada completa, no sentido de uma convergência total ao conhecimento científico, mas demonstra um caminho trilhado neste sentido. O desenvolvimento apresentado pelos participantes não foi igual, nem pode ser considerado totalmente convergente ao conhecimento científico, pois percebemos diferenças em relação ao conteúdo de conceitos desenvolvidos e ao grau desse desenvolvimento. O desenvolvimento parcial apresentado pelos participantes, indicado, por exemplo, pela presença de idéias divergentes e convergentes ao conhecimento científico – às vezes, contrárias a este – relaciona-se, ao nosso entender, ao caráter processual do desenvolvimento conceitual. Esse processo, implementado mas não terminado no curso, está relacionado à formação de um sistema de significados incompleto do ponto de vista da interação entre conceitos científicos. Esta incompletude pode estar relacionada à formação de estruturas parciais de organização conceitual, formando idéias convergentes ao conhecimento científico que, por não estarem de fato conectadas a outras relações do tecido conceitual, convivem com idéias antagônicas mantidas ou desenvolvidas ao longo do processo de ensino. As dificuldades de aprendizagem – e, consequentemente, do ensino proporcionado – não parecem estar relacionadas a diferenças significativas na visão dos participantes sobre o processo evolutivo antes da intervenção. Ambos apresentavam idéias fortemente Análise do desenvolvimento de conceitos científicos sobre a teoria da evolução... 93 divergentes do conhecimento científico sobre o processo evolutivo e que encontram caracterização na literatura, por exemplo no trabalho de Bizzo (1996). Ao início da intervenção, as respostas indicavam claramente que Fábio tinha idéias convergentes às que Bizzo (1996) caracteriza como lamarckismo, principalmente pelas de uso e desuso. Vanessa também apresenta dados que corroboram essa análise. Ela compreendia o surgimento de novas características como aquisição de “melhorias” e transformação de características “prejudiciais”. Assim, os estudantes demonstraram idéias semelhantes às que o pesquisador encontrou em seu estudo com alunos já submetidos ao ensino formal desse conhecimento. Essas idéias estavam caracterizadas: pela possibilidade de herança dos caracteres adquiridos – “Os principais mecanismos hereditários admitidos nas entrevistas restringiram-se quase que somente à herança das características adquiridas” (p. 205); pelo surgimento de mudanças (variação) através do uso e desuso: Existe a crença geral de que certas modificações provocadas pelos próprios indivíduos sejam, de alguma forma, hereditárias. O exemplo principal é, sem dúvida, a questão do uso e desuso dos órgãos (p. 207); e, pelo aparente desconhecimento de conceitos de genética relacionados ao processo evolutivo: A transmissão das características hereditárias – independente de como elas tenham surgido – é outro aspecto absolutamente nebuloso nas concepções dos alunos. Apesar de terem estudado Genética regularmente e, em alguns casos isso ficou claro, possuírem vocabulário bastante razoável, não existem evidências seguras de que o aprendizado tenha contribuído para a compreensão dos processos evolutivos (p. 214, grifo nosso). Em relação, principalmente, à afirmação final de Bizzo (1996), acreditamos que o aprendizado não tenha ocorrido de fato ou tenha 94 Douglas Verrangia Correa da Silva sido apenas parcial – como parece mostrar os dados que analisamos nesta pesquisa. Desta forma, esse desenvolvimento conceitual incompleto pode explicar parte significativa da não compreensão dos processos evolutivos pelos estudantes. A formação de estruturas parciais, em que não há conexão efetiva e coerente entre todos os elementos (científicos e não) que formam a visão do sujeito sobre o processo evolutivo, pode ser uma das explicações para a convivência de noções aparentemente contrárias. Algumas destas noções seriam aplicadas em determinados contextos e outras em outros, em função das relações requisitadas nestes. Isto é, alguns contextos favorecem a utilização de estruturas conceituais menos sólidas (parciais ou em desenvolvimento), pois requerem menor grau de conectividade (como, em alguns casos, responder a questões com alternativas). Por outro lado, alguns contextos – por exemplo, a aplicação de conceitos em situações concretas e totalmente novas – requerem a utilização de relações mais consistentes, mais coerentes, o que pode ter papel importante na recorrência de idéias prévias, divergentes do conhecimento científico que está sendo aprendido. Quanto à formação de vocabulários desprovidos de significado, Vygotski teoriza que se o desenvolvimento de conceitos científicos percorresse o mesmo caminho dos conceitos cotidianos, isso resultaria apenas em aumento do vocabulário dos sujeitos, pela falta de desenvolvimento de um sistema, no sentido já apresentado. Acreditamos que a não aprendizagem significativa pelos estudantes, referente a desenvolvimento conceitual e formação de um sistema de significados mais estruturado e formado por conceitos genuínos, pode estar na base de produção de vocabulários desprovidos de significados. Esse vocabulário, cujas palavras carecem do significado científico, é identificado em outros trabalhos, como em Bishop e Anderson (1990), por exemplo. Finalmente, nossos dados parecem indicar que houve, durante a intervenção, o início da estruturação – ou reestruturação – de um sistema de significados convergente ao conhecimento científico sobre Análise do desenvolvimento de conceitos científicos sobre a teoria da evolução... 95 a teoria da evolução das espécies, mas que não foi totalmente desenvolvido. Neste sentido, procuramos relacionar as dificuldades de aprendizagem dos estudantes às condições de ensino proporcionadas na intervenção. Nas considerações finais procuramos discutir os principais aspectos dessa interação entre aprendizagem e ensino. Considerações finais Com a realização desta investigação e seus resultados, juntamonos a outros trabalhos que afirmam ser a teoria de Vygotski uma ferramenta importante para a compreensão da aprendizagem de conceitos científicos e problemas de aprendizagem. Da mesma forma, pode contribuir para a análise de procedimentos de ensino a fim de superar essas dificuldades (por exemplo, TUDGE, 1996). Por meio da análise em base a aspectos da teoria vygotskiana, foi possível compreender dificuldades de aprendizagem sobre conceitos relativos à teoria evolutiva, dentro do contexto da intervenção realizada. Os principais entendimentos utilizados como referências teóricas foram: desenvolvimento conceitual e sistemas de significados. Eles foram o foco da análise sobre a aprendizagem e sobre as dificuldades apresentadas pelos participantes na intervenção realizada, assim como o papel desta no desenvolvimento conceitual. Por meio das análises empreendidas, percebemos que houve desenvolvimento conceitual dos estudantes dentro da referida intervenção de ensino, assim como a formação de sistemas de significados convergentes ao conhecimento científico. Mas, como mencionamos anteriormente, não foi possível, dentro das condições de ensino proporcionadas na intervenção, que os participantes formassem sistemas de significados completos, totalmente convergentes ao conhecimento científico abordado. Isto é, houve aspectos dos procedimentos de ensino que, em nossa análise, foram centrais na não superação de algumas das dificuldades de 96 Douglas Verrangia Correa da Silva aprendizagem, amplamente apontadas pela bibliografia, sobre a teoria da evolução das espécies. Nesse sentido, os aspectos que consideramos mais relevantes são: - Necessidade de realizar muitas atividades de diagnóstico das idéias dos estudantes sobre os conceitos científicos abordados. Essa identificação é central para a elaboração de atividades a fim de abordar conceitos ou idéias, de novas maneiras e dando ênfase a aspectos didáticos que pareceram falhos. Nesse sentido, houve momentos em que a identificação do desenvolvimento parcial de determinados conceitos foi realizada muito ao fim do processo de ensino. Um diagnóstico mais precoce poderia ter colaborado para o direcionamento da atuação docente a fim de elaborar novas possibilidades de sistematização e aplicação desses conceitos e mais informações, desconhecidas pelos participantes, o que poderia gerar novas relações e favorecer o desenvolvimento conceitual e, concomitantemente, um sistema de significados mais convergente com o conhecimento científico. - Necessidade de sistematizar de forma clara e ampla os conceitos abordados no curso. Durante a intervenção, priorizamos atividades nas quais os participantes realizaram trabalhos de aplicação de suas idéias, e de conceitos abordados, com o instrumento de ensino. Ao fim da análise percebemos que um fator potencializador da aprendizagem dos participantes poderia ser o maior equilíbrio entre atividades de aplicação e de sistematização (generalização, conceituação). Nestas atividades seria importante enfatizar tanto a conexão dos conceitos e idéias à realidade quanto à consciência dos estudantes sobre esses conceitos, procurando estimular sua generalização e abstração. - Necessidade de avaliar de forma muito cuidadosa o papel de instrumentos de ensino na aprendizagem de conceitos científicos. Como analisamos em Silva (2004), algumas características do instrumento de ensino foram muito importantes para o desenvolvimento conceitual dos estudantes. Mas, também foi possível Análise do desenvolvimento de conceitos científicos sobre a teoria da evolução... 97 perceber que outras podem ter favorecido a formação de visões reducionistas e simplificadas do processo evolutivo, principalmente a respeito do surgimento da variação intra-específica. No instrumento utilizado não era possível simular o caráter gradual e cumulativo das mutações, noções que não foram aprendidas pelos participantes, mesmo com a realização de explicações sobre esse aspecto da teoria da evolução. Assim, ressaltamos a importância de identificar previamente, ou mesmo durante o processo de ensino, as potencialidades e limitações dos instrumentos de ensino que utilizamos, a fim de compensar estas limitações com outras atividades. - Avaliação constante sobre a duração da intervenção de ensino. Analisamos que as nove aulas de duas horas que caracterizaram o processo de ensino não foram suficientes para abordar os conhecimentos objetivados da forma necessária para sua aprendizagem pelos estudantes. Em certas ocasiões a aplicação de atividades dirigidas a novas informações foram priorizadas em relação à realização de outras atividades sobre conceitos já abordados e que identificamos não apropriadamente compreendidos. Esse dilema não é exclusivo da intervenção realizada nesta pesquisa e está intimamente ligado ao fato de que a aprendizagem significativa de uma temática complexa como a teoria da evolução das espécies demanda grande quantidade de tempo. Essa é uma questão central para o planejamento de ensino e para a seleção de conteúdos, problemáticas importantíssimas para pensar mos sobre as dificuldades de aprendizagem e sua superação. Por fim, destacamos que análises do desenvolvimento conceitual – e da formação de sistema de significados – em pesquisas que visem compreender as idéias de estudantes de Ciências podem contribuir muito para a ampliação do conhecimento sobre aprendizagem de conceitos científicos. No caso daqueles relacionados à teoria da evolução das espécies, central dentro das Ciências Naturais, essa análise parece ser particularmente relevante. Principalmente, pela 98 Douglas Verrangia Correa da Silva constatação em tantos trabalhos, inclusive neste, da complexidade da elaboração de procedimentos de ensino capazes de superar dificuldades de aprendizagem apresentadas por estudantes sobre essa teoria. Referências bibliográficas AULT JÚNIOR., C.; NOVAK, J. D.; GOWIN, B. Constructing vee mapsfor clinical interviews on molecular concepts. Science Education, v. 68, n. 4, p. 441-462, 1984. BISHOP, B. A.; ANDERSON, C. W. Evolution by natural selection: A teaching module. Ocasional paper. East Lansing, MI: Institute for Research on Teaching, n. 91, Michigan State University, 1985. ______. Studentes conceptions of natural selection and its role in evolution. Journal of Research in Science Teaching, v. 27, n. 5, p. 415-427, 1990. BIZZO, Nélio. O ensino de evolução. 1996. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1996. BRUMBY, M. N. 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Recebido em: 04 de junho de 2007 (1ª versão) Aprovado em: 13 de setembro de 2007 (2ª versão) Dificuldades de aprendizagem ou de ensino? Uma breve revisão de literatura em psicologia Letícia Fonseca Reis Ferreira de Castro * Débora Cristina Piotto ** Resumo: Partindo de pesquisas que mostram como muitas das dificuldades atribuídas às crianças pobres são produtos do sistema de ensino, buscou-se verificar quais as concepções de dificuldades de aprendizagem presentes em pesquisas sobre o tema, discutindo suas implicações para a área educacional. Selecionamos e analisamos dezesseis artigos, publicados entre os anos 2000 e 2004 por um programa de pós-graduação em Psicologia, organizando-os em cinco categorias. Doze artigos mostraram conceber as dificuldades de aprendizagem como um problema individual, propondo para seu enfrentamento programas de assistência psicológica. Apenas uma categoria apresentou uma visão de dificuldades de aprendizagem focalizada no contexto de aprendizagem. Palavras-chave: Dificuldades de aprendizagem. Aluno. Escola. * Graduação em Pedagogia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto/Universidade de São Paulo (USP). E-mail: [email protected] ** Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pelo Instituto de Psicologia da USP. Educadora do curso de Pedagogia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto/Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected] APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano V n. 9 p. 101-126 2007 102 Letícia Fonseca Reis Ferreira de Castro e Débora Cristina Piotto Learning or teaching difficulties? A brief review of psychology studies Abstract: Starting of researches that showed how many of difficulties lays for the poor children are products of education system, this research looked to check what the conceptions of difficulties of learning present in researches that deal with the subject, discussing their implications for the area of the education. We selected sixteen articles about the subject publicized between 2000 and 2004 in one program of pos-graduation in Psychology and organized them in five categories. Twelve articles think the difficulties of learning as one individual problem, suggesting programs of psychology assistance for the diagnosis and the facing of theses difficulties. Only one category has one view about difficulties of learning focused in context of learning. Key-words: Difficulties of learning. Student. School. Introdução Várias pesquisas em Psicologia e em Educação vêm estudando as chamadas dificuldades de aprendizagem, como, na verdade, problemas de escolarização. Esses estudos discutem os chamados problemas de aprendizagem e as questões relacionadas ao tema, contextualizando o papel do sistema escolar na produção de tais problemas, questionando concepções e teorias que atribuem à criança pobre e à sua família a responsabilidade por dificuldades enfrentadas no processo de ensino-aprendizagem. No início do século XX, nas décadas de vinte e trinta, o pensamento predominante em relação aos chamados problemas de aprendizagem era baseado em um discurso preconceituoso, sobretudo em relação aos negros e aos pobres, ao afirmar que esses não aprendiam devido a fatores como raça e classe social (PATTO, 1990). Essas idéias, presentes ainda hoje em discursos de alguns profissionais tanto dentro da escola quanto em consultórios psicológicos, tiveram origem em meio a teorias de grande prestígio na Europa no século XIX, como o darwinismo social, o evolucionismo e o positivismo. Dificuldades de aprendizagem ou de ensino? Uma breve revisão de literatura... 103 As idéias de ordem social e neutralidade científica provenientes dessas teorias foram transpostas para a Psicologia, surgindo, assim, a Psicologia Científica, e mais especificamente a Psicometria, que buscava analisar as “aptidões naturais” dos indivíduos e seus padrões de normalidade. Pretendia-se conhecer a natureza humana, medindo, diagnosticando e rotulando para identificar e controlar os indivíduos que fugiriam à “normalidade” psíquica. Em outro momento, no Brasil, após os anos cinqüenta do século XX, as explicações para as dificuldades de aprendizagem, baseadas nas teorias de raça e de hereditariedade, perderam espaço, surgindo teorias que passaram a focalizar a origem de tais dificuldades nos fatores ambientais, de acordo com o meio em que a criança vivia. Nesse sentido, a criança com dificuldades de aprendizagem deixou de ser vista, através das teorias raciais, como possuidora de deficiências em sua condição natural, passando a ser compreendida a partir de influências ambientais que repercutiriam não só em seu desenvolvimento, mas também em sua personalidade. Surge, assim, uma tendência à psicologização das dificuldades de aprendizagem e os testes psicométricos foram apresentando-se com mais peso, à medida que diagnosticavam as crianças com dificuldades a partir de características pessoais, psicológicas e do ambiente familiar (PATTO, 2000). Essas idéias, que explicavam as chamadas dificuldades de aprendizagem em virtude de deficiências culturais, atingiram seu ápice na Psicologia a partir da elaboração, nos anos sessenta do século XX, da “Teoria da Carência Cultural”, que chegou ao Brasil um pouco depois, em meados dos anos setenta. Essa teoria, baseada em princípios ambientalistas de desenvolvimento humano, explica as dificuldades das crianças pobres em função de uma carência ou uma deficiência de cultura. Sendo assim, as crianças teriam mais dificuldades em seu desenvolvimento físico, psicológico e cognitivo, devido a uma “falta” de cultura. A partir dos anos de 1980, começam a surgir várias pesquisas que propõem mudar o eixo da discussão, e que, partindo de uma visão 104 Letícia Fonseca Reis Ferreira de Castro e Débora Cristina Piotto crítica de sociedade, passam a questionar essas explicações e a apontar e discutir a participação da escola na produção das chamadas dificuldades de aprendizagem, nomeadas, mais genericamente, de fracasso escolar. Pesquisas como as de Patto (1990, 1997, 2005), Souza (1997, 2002), Collares e Moysés (1992, 1996) são alguns exemplos de estudos que discutem a influência das instituições escolares na produção do fracasso escolar, e ao discutirem tal influência, mostram, partindo das reais condições das escolas públicas brasileiras, como muitas das dificuldades atribuídas às crianças são, na verdade, produto do sistema de ensino. Objetivos Partindo desses estudos, das questões anteriormente expostas e do entendimento de que muitas das dificuldades atribuídas às crianças são produzidas no interior do sistema de ensino, o presente artigo tem como objetivo discutir as concepções de dificuldades de aprendizagem presentes em pesquisas realizadas por profissionais da área de Psicologia. Mais especificamente, o objetivo da pesquisa é analisar tais concepções e discutir suas implicações para a área educacional. Metodologia A realização do presente trabalho baseou-se em uma análise documental. Foi feito levantamento bibliográfico de artigos que tratassem do tema das dificuldades de aprendizagem publicados em anais de um programa de pós-graduação em Psicologia de uma universidade pública, entre os anos de 2000 e 2004. Escolhemos analisar pesquisas publicadas por mestrandos e doutorandos na área da Psicologia para termos exemplos de como os psicólogos têm produzido conhecimento na sua interface com a Educação. Dificuldades de aprendizagem ou de ensino? Uma breve revisão de literatura... 105 A escolha dos artigos ocorreu através da seleção de palavraschaves relacionadas ao assunto em questão. A partir disso, foram lidos os resumos dos artigos disponíveis e selecionados os que tratavam, de alguma forma, do tema dificuldades de aprendizagem. Foram encontrados dezesseis artigos. Posteriormente, realizamos leituras e re-leituras dos artigos, bem como a análise de cada um deles. Feito isso, organizamos os dezesseis artigos em cinco categorias, agrupandoos de acordo com assuntos específicos abordados em cada um deles. As categorias organizadas foram: Avaliação Assistida, Auto-conceito e Aspectos Motivacionais, Aspectos Emocionais e Comportamentais, Comportamento e Ambiente Familiar e Família. A divisão dos artigos analisados nessas categorias pretendeu facilitar ao leitor o acompanhamento da discussão empreendida. A seguir, apresentaremos resumidamente cada pesquisa bem como algumas reflexões para cada categoria. RESULTADOS A avaliação das dificuldades de aprendizagem Na primeira categoria – Avaliação Assistida – temos três artigos que trataram desse tipo de avaliação. O primeiro artigo teve como objetivo a verificação da relação dos aspectos do funcionamento cognitivo (que foi avaliado com a combinação da avaliação psicométrica tradicional e da avaliação cognitiva assistida) com o desempenho escolar em leitura e escrita de crianças na 1ª série. Os sujeitos da pesquisa foram 56 crianças (29 meninas e 27 meninos) ingressantes na 1ª série do ensino fundamental, com idade média de sete anos, de uma escola pública estadual de uma cidade do interior de São Paulo. O artigo não mencionou se as crianças possuíam ou não dificuldades de aprendizagem. A pesquisa buscou a compreensão do desempenho acadêmico dos alunos através da aplicação das avaliações assistida e psicométrica. 106 Letícia Fonseca Reis Ferreira de Castro e Débora Cristina Piotto A pesquisa concluiu que a avaliação assistida pareceu não ter poder de predição na amostra de escolares com bom desempenho acadêmico, mas se mostrou sensível em detectar as crianças que apresentam desempenho acadêmico insatisfatório. Tentou-se estabelecer no artigo uma causalidade para o fato das crianças irem mal na escola em função de possuírem problemas cognitivos, detectados através da avaliação assistida. O segundo artigo da mesma categoria apresentou uma pesquisa que objetivou, através de procedimentos de avaliações combinados, identificar indicadores de potencial cognitivo em um grupo de crianças que foram encaminhadas para atendimento psicológico, devido a queixas de dificuldades de aprendizagem escolar. As crianças participantes da pesquisa foram 20 alunos de 1ª a 4ª série de uma escola pública de uma cidade no interior de São Paulo, com idade entre oito e onze anos, sendo a maioria meninos (doze meninos e oito meninas). A pesquisa concluiu que a avaliação assistida melhora o desempenho das crianças devido à assistência presente nesse tipo de procedimento. Além disso, a pesquisa afirmou também que, mesmo depois da suspensão da assistência, muitas crianças continuaram com o mesmo bom desempenho de antes da suspensão da ajuda. O terceiro e último artigo da categoria Avaliação Assistida teve como objetivo avaliar os aspectos do funcionamento cognitivo de crianças que foram encaminhadas para atendimento psicológico a unidades de saúde, apresentando queixas de dificuldades de aprendizagem. Da amostra participaram 34 crianças entre oito e onze anos, encaminhadas para atendimento psicológico a um ambulatório de saúde mental, com queixa de dificuldades de aprendizagem, e sem problemas neurológico, psiquiátrico ou genético. Essas crianças cursavam de 1ª a 4ª série e 82% eram alunos de escolas públicas. A avaliação assistida se mostrou, segundo os autores, um procedimento de avaliação cognitiva bastante eficiente, dinâmico e interativo, pois ao “otimizar” a situação de avaliação, acredita-se que Dificuldades de aprendizagem ou de ensino? Uma breve revisão de literatura... 107 as crianças possam evoluir em suas estratégias de resolução de problemas. Nesse sentido, concluiu-se que a presença de assistência pode auxiliar a revelar recursos potenciais de aprendizagem da criança. Os resultados apontaram que o grupo de crianças pesquisado era bastante heterogêneo do ponto de vista cognitivo. Na categoria Avaliação Assistida, os artigos, ao discutirem sobre as dificuldades de aprendizagem, a definiram como um problema individual, quando afirmaram, por exemplo, que a partir da avaliação assistida pode-se detectar o nível intelectual das crianças. Em contrapartida à localização das dificuldades no âmbito individual, as pesquisas analisadas, ao proporem um meio de avaliar as crianças com tais queixas, ressaltam a importância da avaliação assistida – que conta com a assistência do examinador. Analisando os artigos dessa categoria, percebemos que a concepção de dificuldades de aprendizagem tem como foco a criança. De um modo geral, as pesquisas apresentadas procuraram estabelecer uma relação entre desempenho escolar ruim e problemas cognitivos. Consideramos importante refletir sobre o significado da centralidade que a assistência assumiu nas pesquisas apresentadas, sobretudo quando se trata de pensar a relação da psicologia com a área educacional. A necessidade de ajuda para realizar os testes e a melhora no desempenho, por parte das crianças quando auxiliadas, problematizam o entendimento das dificuldades de aprendizagem como algo individual, sem levar em conta o contexto do processo ensino-aprendizagem, no caso, sem considerar o que se passa na escola e que poderia, pelo menos, estar contribuindo para essas dificuldades. Auto-Conceituação e Dificuldades de Aprendizagem A segunda categoria definida para análise dos artigos foi AutoConceito e Aspectos Motivacionais, com quatro artigos. O primeiro artigo dessa categoria objetivou avaliar o autoconceito de crianças que possuíam e que não possuíam dificuldades 108 Letícia Fonseca Reis Ferreira de Castro e Débora Cristina Piotto escolares no momento em que estavam cursando as séries iniciais da escolarização formal. Os participantes da pesquisa foram 60 crianças (30 meninas e 30 meninos), dos sete aos dez anos, alunos de 1ª a 4ª série de uma escola pública do interior de Minas Gerais. As crianças foram divididas em três grupos: G1 – 20 crianças com dificuldades escolares que freqüentavam, além do ensino regular, o programa de Ensino Alternativo1; G2 – 20 crianças com dificuldades escolares que freqüentavam apenas o ensino regular e G3 – 20 crianças sem dificuldades escolares que freqüentavam o ensino regular com bom rendimento. Como resultados observou-se que as crianças com dificuldades escolares que freqüentavam, além do ensino regular, o programa de Ensino Alternativo, não apresentaram escore de auto-conceito diferente das crianças com dificuldades de aprendizagem que não freqüentavam esse programa. O segundo artigo que integra essa mesma categoria teve como objetivo investigar as atribuições de causalidade de alunos do ensino fundamental para situações de fracasso escolar. Os participantes dessa pesquisa foram 40 crianças entre oito e treze anos, alunos da 3ª série de escolas públicas de uma cidade no interior de São Paulo, de ambos os sexos. Metade desses alunos foi classificada, segundo avaliação dos professores, como apresentando alto desempenho acadêmico e a outra metade com baixo desempenho acadêmico. Foi realizada uma Entrevista de Atribuição de Causalidade com cada criança. Nessa entrevista foram apresentadas três histórias cotidianas da escola sobre fracasso em atividades acadêmicas e os alunos deveriam imaginar que essas histórias eram referentes a si mesmos, analisando as possíveis causas responsáveis pelo mau desempenho. 1 Programa implantado na cidade de Uberaba-MG para alunos com problemas de aprendizagem já constatados e selecionados através de um diagnóstico psicopedagógico, cujos resultados determinam a prioridade com que as vagas disponíveis serão preenchidas. Dificuldades de aprendizagem ou de ensino? Uma breve revisão de literatura... 109 Foi apontada nos resultados a predominância da explicação “falta de esforço” para o fracasso escolar; as atribuições “não sei” e “não prestar atenção” ficaram em segundo lugar. Os resultados apontaram uma tendência à internalização do sucesso e do fracasso, visto que as crianças atribuíram a si mesmas a responsabilidade pelo desempenho acadêmico. O terceiro artigo da categoria Auto-conceito e Aspectos Motivacionais teve como objetivo caracterizar a maneira como as crianças com dificuldades de aprendizagem se comportam em relação à produtividade, recursos, manifestações afetivas e comportamento, diante de uma situação de observação orientada para aprendizagem. Para tanto, comparou-se dois grupos de crianças – com e sem dificuldades de aprendizagem – analisando se com o auxílio de um programa de suporte psicopedagógico as crianças com dificuldades escolares alteravam seu perfil de produção e comportamento. Os participantes foram 50 crianças, de ambos os sexos, de oito a doze anos, alunos de 1ª a 4ª série de 20 escolas da rede pública de uma cidade no interior de São Paulo, com nível intelectual médio inferior, distribuídas em dois grupos: G1 – 24 crianças encaminhadas a um ambulatório de saúde mental com queixa de dificuldades de aprendizagem e atendidas em programa de suporte psicopedagógico de curta duração; G2 – 26 crianças com bom desempenho acadêmico que freqüentavam um Centro de Atendimento Integral a crianças e adolescentes. Foram realizadas avaliações de diversas categorias e testes de desempenho escolar. Como resultados, o artigo apontou que as crianças com queixa de dificuldades de aprendizagem apresentaram desempenho menos favorável do que as crianças com bom rendimento escolar, em todas as categorias, com exceção da categoria Produtividade, na qual as crianças do G1 (com queixas de dificuldades de aprendizagem) apresentaram rendimento equivalente às crianças com bom rendimento. Esse dado, apesar de contrário às expectativas dos pesquisadores, demonstrou que mesmo com menos disponibilidade de recursos, e estando mais suscetíveis a influências emocionais 110 Letícia Fonseca Reis Ferreira de Castro e Débora Cristina Piotto negativas, as crianças com queixa de dificuldades de aprendizagem produziram e se comportaram de forma equivalente às outras crianças, demonstrando esforço para realizar as atividades. Com relação ao suporte psicopedagógico, os resultados apontaram que ele não produziu mudanças no padrão de produção e comportamento das crianças que compunham o G1; no entanto, auxiliou como um “catalisador” da possibilidade de aprendizagem, mantendo a motivação e favorecendo a produtividade escolar futura para as crianças com dificuldades de aprendizagem. O quarto e último artigo da categoria Auto-Conceito e Aspectos Motivacionais buscou investigar em crianças atendidas em uma clínica psicológica, em razão de dificuldades escolares, associações entre os recursos de sociabilidade, averiguados a partir de relatos das mães na época do atendimento, e características de comportamento, desempenho escolar e auto-percepções, avaliadas pelo menos um ano após a alta clínica, dados esses obtidos a partir de um estudo de seguimento. Os participantes da pesquisa foram 48 crianças, todas encaminhadas a um ambulatório de saúde mental por queixa de dificuldades de aprendizagem, com idade entre dez e quinze anos (o estudo foi realizado um a dois anos após a alta). Foram realizadas também entrevistas com a mãe ou responsável, avaliações de autoconceito e testes de desempenho escolar. Analisou-se os resultados de acordo com os indicadores de recursos (obediência a regras e normas, fácil relacionamento com adultos, fácil relacionamento com crianças) e dificuldades (desobediência a regras e normas, dificuldade para relacionamento, tendência a agressividade) relativos à sociabilidade. Foram formados três grupos, a partir de relatos das mães das crianças: G1 – 17 crianças com recursos de sociabilidade (apresentaram todos os indicadores de recursos e nenhum de dificuldade); G2 – 15 crianças com dificuldades nas relações interpessoais (apresentaram todos os indicadores de dificuldade e nenhum de recurso) e G3 – 16 crianças que não alcançaram os critérios de inclusão nos grupos 1 e 2. Dificuldades de aprendizagem ou de ensino? Uma breve revisão de literatura... 111 O trabalho mostrou que as crianças do G1 demonstraram melhor adaptação psicossocial nos aspectos comportamentais e nas auto-percepções em comparação com as crianças com dificuldades nas relações interpessoais. Concluiu-se, a partir disso, que a percepção das mães em relação aos filhos (sobre ter dificuldades ou recursos para sociabilidade) interferia em como a criança se percebia posteriormente. Desse modo, quanto mais positivos eram os sentimentos ou as crenças dos pais em relação aos filhos, melhores as auto-percepções desses. A concepção de dificuldades de aprendizagem presente na categoria Auto-Conceito e Aspectos Motivacionais esteve ligada ao auto-conceito, ou seja, as crianças com auto-conceito positivo foram apontadas como tendo melhor motivação, o que, por sua vez, favoreceu o desempenho acadêmico, enquanto as crianças com autoestima baixa foram descritas como podendo desenvolver dificuldades na aprendizagem, principalmente no início do ensino fundamental. O primeiro artigo dessa categoria afirmou que a família e a escola contribuem para a formação das auto-percepções, no entanto não há referências a quais seriam tais influências nem como elas se dariam. A pesquisa também ressaltou a importância de programas especiais de ensino, como “classes especiais” (Programa de Ensino Alternativo), que algumas crianças com dificuldades de aprendizagem freqüentavam paralelamente ao ensino regular. No entanto, essa afirmação não encontra respaldo nos resultados do artigo, visto que as crianças que não freqüentavam essas classes, obtiveram escores de auto-percepções parecidos com as crianças que estavam inseridas naquele programa. Partindo dessas considerações, parece-nos possível afirmar que nos artigos que compõem a categoria Auto-Conceito e Aspectos Motivacionais as dificuldades de aprendizagem são concebidas como um problema individual da criança, já que tais dificuldades são entendidas como relacionadas com o auto-conceito que as crianças possuem. 112 Letícia Fonseca Reis Ferreira de Castro e Débora Cristina Piotto Aspectos emocionais e comportamentais das dificuldades de aprendizagem Na categoria 3 – Aspectos Emocionais e Comportamentais – foram analisados três artigos que relacionaram problemas comportamentais e emocionais ao rendimento escolar. O primeiro artigo teve como objetivo o estabelecimento de comparações quanto à existência de problemas de comportamento e emocionais, entre dois grupos de crianças: um com alto rendimento acadêmico e outro com baixo rendimento. Os alunos foram avaliados pelos seus professores quanto ao rendimento acadêmico, em uma escala de 1 (baixo rendimento) a 10 (alto rendimento). A partir dessa escala foram sorteadas 20 crianças classificadas entre um e dois, para comporem o grupo com baixo rendimento, e 20 crianças classificadas entre nove e dez para o grupo de alto rendimento. Além dessa avaliação realizada pelo professor, foram aplicados testes e avaliações com os alunos referentes a rendimento escolar e comportamento. A pesquisa concluiu que as crianças com baixo rendimento escolar têm grande tendência a problemas emocionais/ comportamentais (como problemas de externalização, de atenção, concentração e dificuldades de fala) em comparação com as crianças com alto rendimento escolar. A partir disso, afirmou-se que as dificuldades de aprendizagem estão relacionadas a problemas emocionais/comportamentais. Os autores apontaram, ainda, que o professor é uma importante fonte de informação sobre o comportamento e o desempenho escolar das crianças, mas enfatizaram também que existe uma grande necessidade de implementações de programas de assistência externas/ extra-escolares às crianças com dificuldades de aprendizagem. O segundo artigo da mesma categoria teve como objetivo caracterizar crianças com baixo rendimento escolar quanto ao nível intelectual, desempenho em leitura e escrita e problemas sócioemocionais. Dificuldades de aprendizagem ou de ensino? Uma breve revisão de literatura... 113 Para isso, foi realizado um estudo do qual participaram 91 crianças (73 meninos e 18 meninas) de 1ª a 4ª série, entre sete e onze anos, de escolas públicas, que foram encaminhadas para o serviço de psicopedagogia de um ambulatório de saúde mental. Foram realizadas duas sessões individuais de testes com as crianças para avaliar o nível intelectual e os problemas comportamentais. Os resultados indicaram que: 72% das crianças avaliadas apresentaram capacidade intelectual média ou acima da média, 84% apresentaram desempenho no teste de desempenho escolar classificado como inferior em relação à série, 75% apresentaram dificuldades relacionadas a não tomar iniciativa e a não conseguir realizar tarefa sem ajuda e 68% apresentaram problemas de comportamento que foram julgados como problemas comportamentais clínicos. Esses resultados levaram os autores a concluírem que a capacidade cognitiva pareceu não predispor a um desempenho escolar adequado e que o desempenho acadêmico não satisfatório esteve mais associado a dificuldades comportamentais. O terceiro e último artigo da categoria Aspectos Emocionais e Comportamentais objetivou comparar o desempenho escolar e o comportamento de crianças com diferentes níveis intelectuais, que estavam cursando as três primeiras séries do ensino fundamental. A pesquisa contou com 40 crianças entre seis e sete anos, de uma escola da rede estadual de uma cidade no interior de São Paulo. Foram formados dois grupos, um com baixo e outro com alto percentil nos Testes de Matrizes Progressivas Coloridas de Raven. Foram utilizados como procedimentos de coleta de dados, avaliações individuais com as crianças e questionários com professores e pais. Os resultados apontaram que, em todas as modalidades de testes aplicados, as crianças que faziam parte do grupo com baixo percentil no Raven, ou seja, com menor nível intelectual, demonstraram menor rendimento e também mais problemas comportamentais. Para os autores, o desempenho escolar ruim é um fator de risco para o desenvolvimento da criança. 114 Letícia Fonseca Reis Ferreira de Castro e Débora Cristina Piotto Tanto os pais quanto os professores relataram poucos problemas de comportamento em relação a ambos os grupos; todavia o grupo de crianças com baixo rendimento escolar apresentou mais problemas desse tipo. Um ponto a ser destacado na categoria Aspectos Emocionais e Comportamentais é a afirmação de que crianças com baixo rendimento escolar possuem tendência a desenvolverem problemas comportamentais, associando dificuldades de aprendizagem a esses problemas. Assim, novamente, as dificuldades de aprendizagem são consideradas como dificuldades individuais, na medida em que se consideram essas dificuldades associadas a problemas comportamentais e emocionais apresentados pelo aluno. Os problemas comportamentais são concebidos, nas pesquisas que integram essa categoria, como possíveis conseqüências do baixo rendimento escolar, já que a maior parte delas compartilha o entendimento de que as dificuldades de aprendizagem são produtoras de comportamentos não adequados. A relação entre comportamento e dificuldades de aprendizagem A categoria 4 – Comportamento e Ambiente Familiar – é composta por três artigos. O primeiro teve como objetivo a investigação da associação entre problemas comportamentais e ambiente familiar, em crianças com queixas de baixo desempenho escolar. Participaram da pesquisa 67 crianças entre oito e doze anos que freqüentavam a 1ª, a 2ª e a 3ª séries do ensino fundamental e que foram encaminhadas por escolas públicas a um ambulatório de saúde mental, em virtude de dificuldades de aprendizagem. Foram utilizados procedimentos de avaliações e entrevistas sobre o ambiente familiar e o comportamento das crianças e, a partir dos resultados, foram formados dois grupos, um composto por 30 crianças (19 meninos e 11 meninas) com dificuldades de aprendizagem e sem problemas comportamentais e outro grupo com 37 crianças Dificuldades de aprendizagem ou de ensino? Uma breve revisão de literatura... 115 (29 meninos e 8 meninas) com dificuldades de aprendizagem e com problemas de comportamento. Os problemas comportamentais foram apontados no artigo como fatores de risco pessoal e as características do ambiente familiar, como possíveis recursos, fatores de proteção ou de risco para o desenvolvimento da criança. As dificuldades de aprendizagem foram apresentadas como condição de vulnerabilidade psicossocial da criança ao longo de seu desenvolvimento, ocorrendo em decorrência de características individuais da criança, fatores familiares, escolares ou sociais. De acordo com os resultados da pesquisa, as crianças do primeiro grupo (com dificuldades de aprendizagem e sem problemas comportamentais) dispunham em seus ambientes familiares de maior variedade de materiais educacionais e de pais mais presentes nos momentos das brincadeiras e estudos, do que o outro grupo. Os autores concluíram, assim, que as crianças do primeiro grupo viviam em um lar mais “coeso e harmonioso”, o que constituiu, segundo eles, um fator de proteção que favoreceu a adaptação das crianças. O segundo artigo da mesma categoria objetivou comparar as habilidades sociais e educativas de diferentes grupos de pais. Foram comparados dois grupos: um com pais e mães de crianças com problemas de comportamento e outro com pais e mães de crianças com indicativos escolares de comportamento socialmente habilidosos. Com isso, pretendeu-se melhor compreender as relações entre as práticas educativas dos pais e o comportamento dos filhos. Participaram da pesquisa 96 pais de crianças com idade entre cinco e sete anos, que freqüentavam 13 escolas de educação infantil da rede municipal de uma cidade no interior de São Paulo. Os professores das crianças também participaram da pesquisa ao indicarem as crianças com problemas de comportamento e as com comportamento socialmente adequado. Os dados foram coletados nas residências das famílias, e as variáveis consideradas foram habilidades sociais educativas parentais, variáveis de contexto e repertório comportamental de crianças. 116 Letícia Fonseca Reis Ferreira de Castro e Débora Cristina Piotto O artigo apontou que os pais de crianças sem problemas comportamentais possuíam habilidades sociais, educativas, parentais e conjugais em maior proporção que o grupo de pais de filhos com problemas de comportamento. Nesse sentido, a pesquisa afirmou que as crianças com indicativos de problemas comportamentais (apontados pelas avaliações realizadas) corresponderam às indicações escolares no que diz respeito à existência de maiores indicativos de problemas de comportamento, problemas esses relacionados com as habilidades parentais. O terceiro e último artigo da categoria Comportamento e Ambiente Familiar teve como objetivo investigar influências de características pessoais das crianças e do ambiente familiar no momento de transição (início da 1ª série) da criança para o ensino fundamental. A pesquisa foi realizada em duas escolas municipais de ensino fundamental de uma cidade no interior de São Paulo e participaram 70 crianças com idade entre seis e oito anos. Essas crianças estavam freqüentando pela primeira vez a 1ª série do ensino fundamental. As crianças avaliadas pelas professoras como competentes socialmente obtiveram melhores resultados na prova de desempenho escolar e menos índices de stress. De acordo com o artigo, esses resultados apontaram para o fato de que crianças vistas como competentes possuem melhores condições de enfrentamento dos desafios durante o período de transição para o ensino fundamental. Os resultados indicaram que as características de vulnerabilidade pessoal e as adversidades do ambiente familiar influenciaram no desenvolvimento da criança, assim como no momento de enfrentamento de desafios, como a entrada no ensino fundamental. Assim, tais características e adversidades estão, de acordo com a pesquisa, diretamente relacionadas com problemas comportamentais e acadêmicos e com a competência social da criança. Nesse sentido, as crianças que tinham, em seu ambiente familiar e em suas características pessoais, recursos para o ajustamento escolar, Dificuldades de aprendizagem ou de ensino? Uma breve revisão de literatura... 117 competência social e consciência fonológica ao ingressarem na 1ª série, apresentaram melhores resultados no período da transição. Os artigos da categoria Comportamento e Ambiente Familiar destacaram o desempenho escolar e os problemas comportamentais/ emocionais como dependentes das características do ambiente familiar, argumentando que as dificuldades de aprendizagem podem ser evitadas ou amenizadas a partir de recursos do ambiente familiar, escolar e social. Foi consenso nos artigos a afirmação de que o ambiente familiar, além das características individuais, influencia o desenvolvimento infantil, assim como seu desempenho acadêmico e comportamento. Dessa forma, pode-se afirmar, de forma geral, que os artigos integrantes dessa categoria associaram as dificuldades de aprendizagem às influências que o ambiente familiar exerce na criança. As dificuldades de aprendizagem e a família Na última categoria, de número 5 – Família – foram analisados três artigos que trataram da influência da família no desenvolvimento da criança, relacionando-o com o contexto escolar. O primeiro artigo teve como objetivo a compreensão da dinâmica das práticas educativas desenvolvidas nas famílias de camadas populares e na escola, buscando perceber a influência dessas práticas no desempenho escolar de crianças do ensino fundamental. Os participantes foram alunos de três quarta séries. A pesquisa ressaltou que essas classes foram formadas pela escola, de acordo com o desempenho dos alunos. Na 4ª série S estavam os melhores alunos (27), na 4ª série I estavam os alunos com dificuldades de aprendizagem e problemas de disciplina (20) e na 4ª série F os alunos “fracassados”, que tinham histórico de reprovação escolar (18). O artigo destacou o grande número de pesquisas que culpabiliza as famílias e os alunos pelos resultados escolares negativos, com argumentos deterministas que atribuem o fracasso escolar às famílias 118 Letícia Fonseca Reis Ferreira de Castro e Débora Cristina Piotto e às crianças de camadas populares. Em contrapartida, os autores argumentaram que existem vários fatores que interferem no processo de ensino aprendizagem, não sendo a família um fator central, como muitas vezes é indicada. A pesquisa realizada conclui que as práticas educativas desenvolvidas na família e na escola influenciam o desempenho do educando. Portanto, acreditam os autores que a família, a escola e o educando devem investir no processo de escolarização para que existam maiores chances de sucesso escolar. O segundo artigo da categoria Família teve como objetivo conhecer como pais percebem a escola e o desempenho escolar dos filhos, investigando as diferenças nas representações de dois grupos de pais de alunos, sendo um grupo de filhos com bom rendimento e outro com rendimento ruim. A partir disso, pretendeu-se também investigar até que ponto o sucesso e o insucesso escolares são fatores que influenciam as representações dos pais sobre a escola, buscando entender como a condição de fracasso contribui para a percepção geral da escola e do filho. Os participantes da pesquisa foram pais de “classe média baixa” residentes em um bairro de periferia de um município no interior de São Paulo com nível escolar diversificado (a maioria possuía o ensino fundamental incompleto). Os critérios utilizados para a escolha dos pais foram análises do histórico escolar dos alunos de cada série do ano anterior ao do início da pesquisa, do 1º bimestre do referido ano e classificação dos alunos pelo professor de cada série. Foram selecionados 32 pais, sendo 16 pais de alunos com desempenho escolar classificado como sucesso e 16 pais de alunos com insucesso escolar. Os pais de alunos com sucesso escolar relataram que os filhos tiveram uma trajetória de escolarização bem sucedida e se disseram presentes com relação ao auxílio nas tarefas. No caso dos alunos com insucesso escolar, seus pais relataram situações insatisfatórias na história escolar dos filhos, como, por exemplo, um início de experiência escolar marcado por dificuldades acadêmicas. As queixas desses pais Dificuldades de aprendizagem ou de ensino? Uma breve revisão de literatura... 119 foram desde problemas com a adaptação dos filhos até o fato de eles não conseguirem aprender. Apesar do interesse dos pais pela vida escolar dos filhos, foi apontado pelos autores que isso não garante que os filhos apresentem bom rendimento acadêmico. Dessa forma, os pais de alunos com insucesso sabiam que o filho não possuía bom rendimento escolar e gostariam de mudar algo na instituição; todavia, esses mesmos pais afirmaram que a causa dos problemas enfrentados está na criança e não na escola. Foi observado pelos autores que esses pais pareciam se sentir discriminados pela escola pelo fato de seus filhos apresentarem insucesso acadêmico. A partir desses resultados, os autores concluíram que a percepção da escola para os pais de alunos com sucesso e insucesso difere em função do desempenho escolar dos filhos. O terceiro e último artigo da categoria Família buscou investigar a relação família-escola a partir das representações e vivências de pais de alunos, tentando conhecer o contexto escolar, os agentes escolares, além de compreender o contexto social e histórico das famílias participantes, para assim compreender como se dava a relação família-escola para esses pais. Os participantes foram agentes escolares de uma escola pública estadual de uma cidade no interior de São Paulo e pais de alunos de 3ª e 4ª séries, selecionados a partir de um questionário respondido pelos professores (que indicava quais pais cumprem ou não o que deles é esperado pela escola). O artigo relatou que existe por parte da escola uma grande responsabilização das famílias pelas dificuldades do aluno, e que os discursos escolares sobre a família são embutidos de pensamentos estereotipados e preconceituosos, o que gera certa exclusão dessa pela escola, contribuindo para uma comunicação ineficaz entre ambas. A partir da análise dos documentos da escola, os autores perceberam que a relação com a família está baseada nos deveres dos pais e nos discursos de famílias deficitárias, com ênfase nos pais que não cumprem o que lhes é designado. Já em relação aos pais, a pesquisa apontou que a maioria deles acredita que os professores e a escola são os responsáveis pelas dificuldades escolares apresentadas pelos filhos. 120 Letícia Fonseca Reis Ferreira de Castro e Débora Cristina Piotto De forma geral, os autores concluíram que uma parcela significativa de pais teve uma postura crítica perante a escola, enquanto outros se mostraram acríticos ou defensivos. Na última categoria – Família – estão reunidos artigos que, embora tenham focalizado suas análises na família, contextualizaram além do papel delas também o da escola no processo educativo, a partir de uma visão mais crítica sobre as dificuldades de aprendizagem. O primeiro artigo ressaltou que na instituição escolar onde ocorreu a pesquisa são utilizados meios de classificação e divisão de salas de acordo com o desempenho dos alunos, ou seja, formação de classes “fortes” e “fracas”, o que para os autores não é positivo, visto que provoca uma determinação das representações dos alunos, das posturas das professoras, do conteúdo das aulas e também das expectativas em relação à aprendizagem das crianças, possibilitando que a escola deixe de assumir eventuais falhas em suas práticas pedagógicas, culpabilizando o aluno pelo fracasso escolar. Essa pesquisa, assim como a apresentada no segundo artigo dessa mesma categoria, destacou que as práticas educativas desenvolvidas na família e na escola influenciam no desempenho do educando, devendo a escola e a família colaborar para um equilíbrio no desempenho escolar da criança. Foi consenso entre os três artigos integrantes da categoria Família a idéia de que a participação e o interesse da família pela vida escolar dos filhos favorece o aprendizado, mas não garante bom rendimento escolar. Essa categoria, diferentemente das categorias anteriores, está composta por artigos que possuem uma visão de dificuldade de aprendizagem focalizada no contexto da aprendizagem, retirando do âmbito individual e contextualizando a família e a escola como possuindo influências no desempenho escolar. Dificuldades de aprendizagem ou de ensino? Uma breve revisão de literatura... 121 Considerações finais Os artigos das quatro primeiras categorias analisadas concebem as dificuldades de aprendizagem como um problema individual, propondo para seu diagnóstico e enfrentamento, programas de assistência psicológica ou outra forma de apoio extra-escolar, não considerando as condições de produção das referidas dificuldades. Souza et al., (1993, p. 27) colocam uma pergunta bastante pertinente em relação a essa questão: “[...] que problemas a criança apresenta na escola que o simples fato de estar num espaço de uma hora uma vez por semana com um psicólogo, duas ou três vezes, traga tamanha mudança em sua atuação escolar ou em seu comportamento?” Relacionado a essa concepção, está o fato de as pesquisas apresentadas apoiarem-se, grandemente, em metodologias que têm como principais instrumentos os testes psicológicos, que avaliam características individuais da criança. Os testes de inteligência (conhecidos como testes de QI), através de um suposto conceito de normalidade psíquica, definem parâmetros aos quais os avaliados, que nos casos das pesquisas aqui analisadas são crianças, devem se adequar, avaliando a partir disso o desempenho intelectual delas e definindo o nível de sua inteligência, de forma a classificá-las com base nos resultados obtidos. Como salienta Patto (2000, p. 71): “Este é o ponto da crítica às técnicas de exame psicológico: elas não erram quando buscam tipos psíquicos; erram quando consideram alguns deles [...] como paradigmáticos da saúde mental”. Tais testes, baseados em uma concepção inatista que afirma ser a inteligência um potencial herdado e imutável perante o ambiente, são utilizados para investigar se a criança está dentro dos parâmetros que são definidos de acordo com a idade que ela possui. Assim, como se sabe, esses instrumentos medem se uma criança possui “inteligência” compatível com o que é esperado em sua faixa etária, e caso o resultado seja negativo, isso poderá afetar grandemente sua vida escolar, na medida em que ao se detectar um “déficit de inteligência”, aquela criança estará sujeita a 122 Letícia Fonseca Reis Ferreira de Castro e Débora Cristina Piotto receber um rótulo de “incapaz” ou “incompetente”. Nesse sentido, Davis e Oliveira (1994, p. 65) afirmam que: Na escola equiparar a inteligência a uma propriedade inata significa rotular algumas crianças de “incompetentes” sem nenhuma base para tal. As conseqüências [...] são desastrosas, na medida em que se supõe que pouco resta para a escola fazer, pois, quando se supõe que o desempenho insatisfatório é culpa das próprias crianças, não se avalia – por não se considerar ser o foco do problema – a atuação dos professores. A partir dessas reflexões, pode-se dizer que os testes psicológicos, muitas vezes, “selam” o destino educacional de crianças e, ao invés de promoverem melhoras, “rotulam”, de forma preconceituosa e imprecisa, alunos que não estão obtendo êxito na aprendizagem (PATTO, 1990). Esse tipo de avaliação deixa de lado um ponto imprescindível para a compreensão das dificuldades de aprendizagem, que é a escola, pois ao acreditar que a inteligência é uma capacidade inata que acompanha os indivíduos desde o nascimento, exclui-se a contribuição da escola para o desenvolvimento (ou não) dessa capacidade. Além da concepção de inteligência em que os testes estão baseados, é importante refletir também acerca dos procedimentos e das situações de testagem a que as crianças são submetidas quando avaliadas, assim como os conteúdos desses instrumentos. Diversos são os fatores que podem favorecer resultados negativos nas avaliações que foram utilizadas em grande parte dos artigos aqui analisados, pois o próprio procedimento de avaliação pode inibir ou atrapalhar o desempenho da criança avaliada. A “avaliação científica da atividade intelectual”, como Patto (2000) chama os testes de inteligência, tem suas bases na concepção positivista de ciência. Tal concepção, apoiada nos princípios de neutralidade, objetividade, generalização, racionalidade, fidedignidade e replicabilidade, defende um modelo único de metodologia de pesquisa para todos os campos da ciência, incluindo as ciências Dificuldades de aprendizagem ou de ensino? Uma breve revisão de literatura... 123 humanas. No entanto, em áreas de pesquisas humanas, como a Sociologia, a História e a Psicologia, o objeto de análise é o homem, o que traz certa especificidade para área. Pesquisas na área das ciências humanas, ao se adequarem aos moldes positivistas, acabam, segundo (SILVA, 2000) por negar o sujeito da pesquisa enquanto sujeito que é, fazendo dele um objeto. As pesquisas realizadas e relatadas nos artigos analisados aqui, ao estudarem as dificuldades de aprendizagem, cumprem exatamente aos objetivos aos quais se propuseram. A discussão empreendida no presente trabalho buscou refletir acerca das repercussões de pesquisas como essas para a área da Educação em sua interface com a Psicologia. Assim, por exemplo, ao focalizarem as dificuldades escolares em questões individuais e familiares da criança, as pesquisas contribuem para a crença de que a escola pouco pode fazer para lidar com as dificuldades apresentadas pelas crianças dentro do ambiente escolar. É certo que a escola ao encaminhar alunos para avaliações psicológicas compartilha, muitas vezes, de tais concepções, visto que ao encaminhar alunos para exames de ordem psicológica a escola está legitimando tais atitudes e contribuindo para que os encaminhamentos continuem a ocorrer. Esses encaminhamentos a consultórios psicológicos e/ou unidades de saúde, por parte da escola, estão relacionados às fragilidades institucionais do sistema educacional como um todo, pois muitas vezes buscando saídas para as diversas dificuldades encontradas no dia-dia da instituição, professores e demais profissionais escolares buscam nos encaminhamentos “bodes expiatórios” para a má qualidade do ensino e para as condições de trabalho que possuem. A última categoria, diferentemente das quatro demais, está composta por artigos que possuem uma visão de dificuldade de aprendizagem focalizada no contexto da aprendizagem, retirando do âmbito individual e contextualizando a família e a escola como possuindo influências no desempenho escolar. Diferentemente do que foi analisado nas anteriores, as pesquisas analisadas nessa categoria 124 Letícia Fonseca Reis Ferreira de Castro e Débora Cristina Piotto expõem uma concepção crítica de escola e de sociedade. A metodologia utilizada nelas constitui-se de procedimentos que propiciaram uma análise mais ampla de todo o contexto escolar e familiar nos quais a criança está inserida. Notou-se que os artigos que compuseram a categoria Família trataram as dificuldades de aprendizagem a partir do processo de escolarização, ou seja, a partir das relações que se estabelecem dentro do contexto escolar, considerando que a família possui grande influência, no entanto não determina, sozinha, o desempenho escolar de um aluno. Nesse sentido, concordamos com Souza (2002, p. 192) quando essa autora afirma que: A concepção teórica que nos permite analisar o processo de escolarização e não os problemas de aprendizagem desloca o eixo das análises do indivíduo para a escola e o conjunto de relações institucionais, históricas, psicológicas, pedagógicas que se fazem presentes e constituem o dia-dia escolar. Ou seja, os aspectos psicológicos são parte do complexo universo da escola, encontrando-se imbricados nas múltiplas relações que se estabelecem no processo pedagógico e institucional nele presentes. Tal concepção rompe com as explicações tradicionais sobre o fracasso escolar, mudando o foco do olhar de aspectos apenas psicológicos para a análise do indivíduo e suas relações institucionais. No entanto, diferentemente dessa visão e do que os artigos da categoria Família trouxeram, a maioria das pesquisas analisadas aqui localizam a causa das chamadas dificuldades de aprendizagem em características individuais, deixando de lado diversas questões que são de fundamental importância para a análise dessas dificuldades. Entres essas questões encontra-se o fato de que existe, e praticamente sempre existiu, uma política educacional marcada por descasos que proporciona grandes dificuldades em se garantir qualidade para as escolas da rede pública, assim como a política salarial que desestimula os professores. Partindo disso, não se pode deixar de dizer, ao se tratar de dificuldades de aprendizagem, que na vida diária escolar as Dificuldades de aprendizagem ou de ensino? Uma breve revisão de literatura... 125 dificuldades encontradas estão relacionadas a práticas e processos pedagógicos e administrativos que acabam por produzir maiores dificuldades e que terão reflexos diretos na aprendizagem e no ensino dos bens culturais que cabe à escola transmitir. Não obstante, o presente estudo, ao analisar pesquisas recentes realizadas por psicólogos, indica que tais questões parecem ainda distantes de serem consideradas por esse profissional na sua prática investigativa junto à área educacional. 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SILVA, F. L. Conhecimento e razão instrumental. Psicologia USP, São Paulo, v. 8, n. 1, 1997. 126 Letícia Fonseca Reis Ferreira de Castro e Débora Cristina Piotto SOUZA, M. P. R. Problemas de aprendizagem ou problemas de escolarização? Repensando o cotidiano escolar à luz da perspectiva histórico-crítica em Psicologia. In: OLIVEIRA, M. K.; SOUZA, D. T. R.; REGO, T. C. (Org.). Psicologia, educação e as temáticas da vida contemporânea. São Paulo: Moderna, 2002. ______. A queixa escolar e o predomínio de uma visão de mundo. In: MACHADO, A. M.; SOUZA, M. P. R. (Org.). Psicologia Escolar em busca de novos rumos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997. SOUZA, M. P. R. et al. Psicólogos na saúde e na educação: A busca de novos caminhos na compreensão da queixa escolar. Insight Psicoterapia, São Paulo, v. 3, n. 33, p. 25-29, 1993. Recebido em: 01 de agosto de 2007 Aprovado em: 01 de setembro de 2007 Dificuldades de aprendizagem em adultos: a teoria das defasagens cognitivas Tania Scuro Mendes * Resumo: O adulto, como sujeito cognitivo, exercendo determinadas estruturas cognitivas em campos específicos, relacionadas às áreas de estudo e de atuação profissional, pode não generalizar algumas dessas estruturas de modo a aplicálas formalmente a todas as situações-problema com as quais se depara, não conseguindo ultrapassar limites de condutas operatórias concretas, segundo a teoria psicogenética de Piaget. Desse modo, o adulto pode evidenciar defasagens cognitivas que se refletem nas formas de inserção social, nos interesses, significados sociais das atividades, especializações profissionais. São analisadas as implicações dessas defasagens em contextos de EJA e como as interações educativas podem auxiliá-lo na superação das mesmas. Palavras-chave: Educação de Jovens e Adultos. Teoria piagetiana. Defasagens cognitivas. Learning difficulty in adult: The cognitive discrepancy theory Abstract: The adult, as cognitive individual, exercising determinate cognitive structures in specific areas, related to his study area and professional activity, he may not generalize some of these structures to adapt them formally to all * Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Docente da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA – Canoas) e Faculdade Anglo-Americano de Caxias do Sul. E-mail: [email protected] APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano V n. 9 p. 127-142 2007 128 Tania Scuro Mendes problematic situations he encounters, not being able to surpass limits of concrete operative proceedings, according to the psychogenetic theory of Piaget. So, the adult may evidence discrepancies which reflect in the shape of social insertion, in the interests, social significance of the activities, professional specializations. Are analyzed implications of the cognitive discrepancies in the context of Adult and Youth Education and how educational interactions can help to surmount them. Key-words: Adult and Youth Education. Piagetian theory. Cognitive discrepancy. Natália, professora de uma turma de Educação de Jovens e Adultos, solicita, em uma de suas intervenções educativas que se constituiu na elaboração de uma linha de tempo histórico pessoal, que um de seus alunos calcule a diferença entre a sua idade e a idade que sua mãe tinha quando ela lhe gerou. F., um aluno com 37 anos, olha e analisa a linha de tempo por ele construída; retira do bolso uma caixa de fósforos e começa a calcular: escreve sua idade atual e “desconta” isso da idade atual de sua mãe, utilizando, para cada um dos momentos da operação matemática, as unidades de palitos de fósforo. Depois de fazer esse cálculo, dá a tarefa por encerrada e a entrega à professora. Contextos educativos similares ao descrito, envolvendo diferentes áreas de conhecimento e distintos modos e necessidades de interação do adulto com materiais concretos ou semiconcretos (exemplos, metáforas...), são comuns de serem encontrados em turmas de educação de jovens e adultos. Embora adultos, “parecem” funcionar cognitivamente como crianças. A revisão de literatura, acerca do desempenho operatório de adultos, permite-nos dizer que, a partir da década de 70, vêm se desenvolvendo pesquisas inter-culturais, com sujeitos de diferentes nacionalidades e ambientes sociais, enfocando-se especialmente a passagem da adolescência à adultez. Estudos etnográficos e pesquisas na perspectiva piagetiana, inclusive brasileiras 1, têm evidenciado que, em numerosas culturas, há adultos que não ultrapassam as operações concretas.2 1 2 Ver Piaget (1972) e Mendes (1993), conforme referências bibliográficas. A propósito dos períodos e estágios cognitivos, ver Piaget (1982). Dificuldades de aprendizagem em adultos: a teoria das defasagens cognitivas 129 Amparados no pressuposto de que as trocas interativas do sujeito com o meio – o que implica interações sujeito-objeto e sujeitosujeito – coadunam-se ao tipo de tarefa, interesses, motivações, significados práticos e sociais das atividades, hábitos, especializações profissionais, é plausível dizermos que o meio cultural, no qual o sujeito interage, influi, do ponto de vista do desenvolvimento cognitivo, nas manifestações das estruturas cognitivas, podendo relacionar-se ao maior ou menor desenvolvimento cognitivo do sujeito e, como diz Piaget (1983), adiantá-lo, retardá-lo ou impedi-lo. De modo a fundamentar e a alargar a abordagem apontada, este texto visa enriquecer a análise acerca de uma problemática que tange nossa realidade social e que diz respeito, portanto, à necessidade de aprofundamento neste campo teórico. Na tentativa de elucidarmos essa questão, nortearemos nossa análise por uma opção epistemológica: a Epistemologia Genética de Jean Piaget, revisitando algumas definições e procedendo a um recorte dessa teoria quanto ao tema em pauta, à luz dos significados aludidos nesse aporte. Para tanto, ajustaremos o foco para os períodos de desenvolvimento cognitivo no adulto e para suas relações com possíveis defasagens intra e inter períodos. A dialética da estruturação: os períodos de desenvolvimento cognitivo no adulto Os períodos de desenvolvimento cognitivo designam, segundo Piaget (1982), grandes unidades que são subdivididas em estágios. O desenvolvimento cognitivo implica um processo que segue uma ordem de sucessão, que não se orienta pela determinação de datas cronológicas constantes. Relembrando a posição desse epistemólogo, podemos conferir que cada período de desenvolvimento envolve um estágio de instalação (gênese) e outro de consolidação, sendo que o que efetivamente caracteriza um estágio é a mudança qualitativa das estruturas 130 Tania Scuro Mendes cognitivas. A inauguração de cada período cognitivo não é relativa à idade cronológica, devido à impossibilidade de se estabelecer uma homogeneidade nos desempenhos cognitivos dentro de faixas etárias. Por isso, os estágios e períodos precisam ser tomados no sentido amplo. Assim, cada período comporta caráter integrativo, ou seja, absorve o(s) anterior(es), reorganizando-o(s). Além disso, possui um nível de preparação e outro de acabamento (equilíbrio), bem como um processo de formação ou gênese que se refere à diferenciação da estrutura anterior e, ainda, um processo de equilíbrio final. Piaget (1983, p. 292) sublinha: “toda gênese atinge uma estrutura e toda estrutura é uma forma de equilíbrio terminal, comportando uma gênese. Um enfoque teórico dessa natureza requer a explicitação de, pelo menos, algumas características dos períodos de desenvolvimento cognitivo comumente demonstrados por adultos: período das operações concretas e período das operações formais, que correspondem ao terceiro e quarto períodos do desenvolvimento cognitivo.3 Por não pretendermos abarcar a extensão de cada uma das caracterizações que se constituem em objeto de análise, e pelo fato desses períodos não poderem ser considerados isoladamente, importa dialetizá-los, integrando-os em um conjunto coerente de significações. Ao questionamento sobre as reais fronteiras que demarcam os dois períodos mencionados, especialmente quanto às lógicas cognitivas que os engendram, cabe-nos expressar, como síntese, o que segue. No período das operações concretas, o sujeito lida, diretamente, com o real, estando colado à experiência e, através dela, desenvolve abstrações e reflexões. Coordena e aprimora estruturas de classes e relações, concebendo a classe somente se pertence diretamente a outras e compondo e recompondo as classes e relações envolvidas na proposição. Liga uma proposição à outra pelo seu conteúdo lógico, 3 Para uma análise pormenorizada de cada um dos períodos de desenvolvimento cognitivo, sugerimos a consulta aos seguintes livros, os quais abarcam uma trilogia fundamental à compreensão da vastíssima obra piagetiana: O Nascimento da Inteligência na Criança; A Construção do Real na Criança; A Formação do Símbolo na Criança, conforme referências bibliográficas. Dificuldades de aprendizagem em adultos: a teoria das defasagens cognitivas 131 constituído de classes e relações que se relacionam a objetos. Classifica por inclusão simples (ex. gato, mamífero, vertebrados) e por vicariância de classes complementares (ex: margarida + flores). Opera a negação de uma combinação por aproximações sucessivas e por classes que complementam classes mais amplas e mais próximas. Concebe as inversões e reciprocidades como constituídas por agrupamentos distintos. Encara a reunião como adição de casos reais. Pensa sobre o real, sendo o possível um prolongamento deste, pois carece de instrumentos cognitivos para coordenar os agrupamentos operatórios. Apesar de expressar pensamentos sedimentados em base conceitual, não abdica do processo que transita no sentido da ação à representação. Já no período das operações formais, o sujeito desprende-se do real e desapega-se das ações, lidando com reuniões complexas e transformações. O pensamento torna-se enunciativo e independente dos conteúdos. Subordina o real ao possível, devido aos agrupamentos operatórios coordenados num sistema. Assume a conjunção como operação fundamental. Desenvolve a estrutura do reticulado, baseando-se no conjunto das partes. Constrói a classe com duas proposições que se associam. Compõe e recompõe as proposições, segundo os valores de verdade e falsidade das combinações. Deduz a proposição, que não é diretamente ligada à realidade, segundo as conseqüências necessárias. Classifica por generalização de vicariância que constitui uma combinatória (elemento por elemento), e por combinações de proposições de todos os modos possíveis. Opera a negação de uma combinatória pelo conjunto de todas as outras. Concebe as inversões e reciprocidades como constituintes do novo sistema que envolve o grupo das quatro transformações (I.N.R.C. – Identidade; Negação. Reciprocidade; Correlatividade). Esse conjunto de características propicia que o sujeito desenvolva a aptidão para deduzir hipotética-dedutivamente. Podemos constatar que ambos os períodos tem o ponto central de seus processos dialéticos, com caráter evolutivo, na reversibilidade. Não obstante, entre os dois períodos podem ocorrer defasagens e, 132 Tania Scuro Mendes mesmo no transcorrer de cada período, elas também podem evidenciarse. Por isso, é possível que o sujeito, antes de atingir as operações formais, experimente caminhos repletos de mesclas entre noções e estruturas de ambos os períodos, conjugadas as reconstruções de patamares antecessores. É comum encontrarmos sujeitos que não possuem formas de compreensão que se generalizam segundo as características de apenas um dos períodos descritos. Importa, a propósito disto, dizermos que as estruturas cognitivas nunca estão integralmente formadas; orientam-se às possibilidades que se abrem em processo espiral de desenvolvimento, o qual se alarga continuamente, tendo indefinidos seu começo e seu fim. Por esse motivo, “no adulto, cada um dos estágios passados corresponde a um nível mais ou menos elementar ou elevado da hierarquia das condutas. Mas a cada estágio correspondem também características momentâneas e secundárias, que são modificadas pelo desenvolvimento ulterior em função da necessidade de melhor organização. Cada estágio constitui, então, uma forma particular de equilíbrio, efetuando-se a evolução mental no sentido de uma equilibração sempre mais completa” (PIAGET, 1985, p. 13-14) Desse modo, o desenvolvimento pode acarretar a repetição ou reprodução de um processo em idades diferentes, o que, por sua vez, pode provocar defasagens cognitivas.que podem levar a dificuldades de aprendizagens. Na acepção genérica, defasagem é entendida como a diferença de fase entre dois fenômenos ou estados. Trata-se de precisarmos quais são esses fenômenos e estados e qual a denotação de defasagem no processo cognitivo. Para enveredarmos a essas explicações, faremos referências a outras interpretações tecidas no estatuto teórico de Piaget. Umas poucas citações são suficientes para configurá-las. Segundo Piaget (1976), o processo de construção do conhecimento transita da ação à operação, orientando-se em uma espiral dialética engendrada por (des)equilibrações. Explicando que o processo de estruturação cognitiva não é linear, Piaget (1978) diz Dificuldades de aprendizagem em adultos: a teoria das defasagens cognitivas 133 que o plano de representação, por exemplo, requer um trabalho de reconstrução do que o sujeito dominava no nível de ação para um equilíbrio qualitativamente melhorado em termos de estruturação e de campos de aplicação. Desse modo, novas coordenações são elaboradas a cada dificuldade surgida, ocasionando a necessidade de refazer o trabalho cognitivo já efetuado no nível anterior através de interrelações e adaptações. Inhelder (1977), colaboradora direta de Piaget, explica que os aperfeiçoamentos cognitivos levam a sucessivos estados de equilíbrio parcial. A autora sublinha que toda construção cognitiva resulta de compensações relativas a perturbações que lhe originaram. Dessa forma, é nos desequilíbrios que se situa a fonte de progressos cognitivos, pois esses incitam o sujeito a ultrapassar as perturbações de um estado atual para que construa novas soluções. Ainda Piaget (1976) distingue dois tipos principais de perturbações. Um primeiro tipo refere-se àquelas que se opõem à acomodação e a uma realização, pois sua intensidade faz com que o sujeito não construa a necessidade de superá-las e, conseqüentemente, não apresente reação ao obstáculo que resiste. Afluindo a causas de erros e de fracassos, quando ocorre tomada de consciência das perturbações, evocam aspectos negativos para a conquista de novas construções. O segundo tipo, por sua vez, resulta da insuficiente alimentação de um esquema de assimilação já ativado. Ainda que ocasione lacunas surgidas pela insatisfação de necessidades, assume um caráter de positividade. Através dessa abordagem, chegamos ao conceito de defasagem cognitiva. Esta pode resultar de perturbações no processo de estruturação cognitiva e, se relacionada a cada um dos tipos de perturbações descritas por Piaget, pode verter para enfoques distintos. Em um primeiro caso, converge a deficiências em elementos ou momentos do processo endógeno da construção do conhecimento. É endógeno porque as possibilidades de recombinação e de reorganização têm caráter interno, orgânico e implicam uma atividade 134 Tania Scuro Mendes alicerçada em um funcionamento lógico-matemático nascido da coordenação de ações do sujeito. Entendemos que, nesse prisma, as defasagens cognitivas podem repercutir em diferentes velocidades no desenvolvimento, compatíveis a uma lentidão ou até mesmo a um bloqueio na estruturação porque se traduzem, a nossos olhos, em obstáculos epistemológicos. Por razões sociais, econômicas, nutricionais, afetivas, etc., muitos sujeitos não percorrem todo o caminho cognitivo que poderiam percorrer. Sob o outro prisma, em cada passagem de estágio e de nível de desenvolvimento cognitivo ocorre uma mudança de estruturação. Porém, quando as passagens desses patamares não assumem caráter de necessidade e não se generalizam, isto é, não se difundem completamente, podem manifestar-se lacunas cognitivas ou comporse mesclas de noções de dois ou mais estágios de desenvolvimento. A reelaboração de estruturas que se equilibram sucessivamente faz com que a cada patamar de uma construção cognitiva progressiva manifeste-se lacunas, uma vez que não há generalização automática de conhecimentos adquiridos anteriormente, mas sim reconstruções sobre novos planos. Por isso, essas lacunas ou defasagens são momentos naturais ao longo do desenvolvimento cognitivo, cujo motor é a equilibração progressiva. Daí o cunho positivo da perturbação e da lacuna causada.. Exemplo disso é a incapacidade de representar simbolicamente a realidade construída adequadamente ao nível da ação; nesse caso, ocorre uma defasagem ação-representação, acarretando uma deficiência na capacidade de operar e, consequentemente, um atraso cognitivo. As defasagens cognitivas, conforme Piaget (1983), denunciam um deslocamento temporal no decurso do desenvolvimento, possuindo um aspecto intensivo, relativo à compreensão, e outro extensivo, relacionado à abrangência. A passagem vertical do pensamento de um patamar inferior a um superior, quando um conteúdo é aplicado a estruturas mentais diferentes, suscita defasagens em compreensão. Um exemplo pertinente a esse tipo de defasagem é a noção de espaço, a qual diferencia-se de um nível a outro. Dificuldades de aprendizagem em adultos: a teoria das defasagens cognitivas 135 De modo distinto, quando problemas seguem uma ordem de sucessão e apresentam complexidade progressiva em um plano horizontal de construção, por aparecerem em um mesmo período de desenvolvimento, manifestam-se defasagens em extensão. Neste caso, a mesma operação desdobra-se em domínios qualitativamente diferentes, sendo uma estrutura aplicada a diferentes conteúdos, tal como ocorre com a noção de conservação (de massa, de peso, de volume). As defasagens horizontais, nesse âmbito de análise, revelam uma real limitação na possibilidade de aplicação de uma estrutura operatória. Apontando essa relação, a revisão teórica autoriza-nos a dizer que as defasagens horizontais são produzidas em todos os níveis de desenvolvimento, enquanto que as defasagens verticais ocorrem por reprodução de formas ou momentos distintos de evolução e incorrem na necessidade de mudança de estrutura mediante uma diferenciação das categorias mentais. Em síntese, e sem esgotarmos as possibilidades de apreciação, podemos deduzir que as defasagens, com seus aspectos positivos, explicam o desenvolvimento e, com seus aspectos negativos, podem delimitá-lo sob forma de perturbação da gênese ou de atraso. Essa definição de defasagem cognitiva contrapõe-se ao conceito de “déficit”, considerado, geralmente, como sinônimo de deficiência, carência, insuficiência, falta intelectual, saldo-devedor... Esta conceituação tem sido, historicamente, eivada de conotação ideológica porque a construção social do seu significado evoca uma tendência à estabilidade e, portanto, à sua não superação. Se, contudo, buscarmos as origens das dificuldades cognitivas, podemos nos defrontar com um sujeito que apresenta defasagens cognitivas em certas compreensões e isso não significa, necessariamente, que seja um defasado cognitivo. RamozziChiarottino (1987) expõe que o sujeito pode estar funcionando a nível deficiente sem ser cognitivamente deficiente, ou seja, pode “estar” e não “ser” um defasado cognitivo. 136 Tania Scuro Mendes Diante dessas considerações, importa a análise dos mecanismos do desenvolvimento cognitivo não só quanto à estruturação, mas também na perspectiva do funcionamento, uma vez que esse é o meio para a compreensão mais exata das competências operatórias de um sujeito. Daí a necessidade da recorrência à Epistemologia Genética que prescreve a matriz interacionista sujeito-objeto, sujeito-sujeito no processo de construção do conhecimento. Com base nesse enfoque, podemos considerar que as deficiências não residem no sujeito e nem se situam no meio, mas nas trocas interativas entre ambos. Se efetuado o enriquecimento dessas trocas - ainda que admitamos a importância das diferenças culturais, econômicas, políticas, bem como das diferenças individuais (sexo, idade, escolaridade, nível sócio-econômico...) – a superação e a ultrapassagem de defasagens cognitivas, encaradas como um descompasso que pode ser reparado, torna-se possível. Isso é viável porque tais diferenças, especialmente o contexto sócio-econômico, não são fortes o suficiente para bloquear ou impedir, contínua e permanentemente, o processo psicogenético. Cabe esclarecermos, porém, que o enriquecimento das interações, quando alimentam os esquemas cognitivos do sujeito, podem até mesmo apressar a construção operatória, via reorganizações internas, desde que respeite a seqüência de ordem de aquisições psicogenéticas, pois a sucessão de etapas (creodos), como demonstraram numerosas pesquisas desenvolvidas por Piaget e pela Escola de Genebra, mantém-se constante. Outro aspecto relativo a como as estruturas se põem em funcionamento refere-se à abordagem das operações, as quais não se constituem isoladamente, mas na agregação em sínteses de processos de abstração e de generalização. Sobre tal interpretação, Piaget (1976) fundamenta que uma estrutura “acabada” pode sempre dar lugar a exigências de diferenciações em novas subestruturas ou a integrações em estruturas mais amplas. Dificuldades de aprendizagem em adultos: a teoria das defasagens cognitivas 137 Composto, concisamente, o estatuto epistemológico concebido por Piaget, façamos referências ao adulto. O adulto como sujeito cognitivo Configurando as formas de inserção social do adulto, podemos traduzir algumas de suas ações para suas práticas cotidianas e profissionais, as quais propiciam construções cognitivas à medida em que ele se apropria dos mecanismos de suas ações significadas no transcorrer de um processo de experiências. Diante dessa realidade, consideremos o seguinte comentário de Piaget (1983, p. 275): “[...] operando sobre os objetos, o sujeito elabora, por sua ação mesma, estruturas e não é somente o teatro de uma reestruturação ou de uma reequilibração [...] Na realidade, o sujeito [...] testemunha de uma atividade que é solidária de sua própria história”. Tendo em vista os períodos de desenvolvimento cognitivo em que o adulto geralmente se encontra: operacional concreto e operacional formal, esse não se serve somente de ações, mas de representações de ações. Porém, exercendo determinadas estruturas cognitivas em campos específicos, não raro relacionadas às suas áreas de estudo e de atuação profissional, o adulto pode não conseguir ultrapassar os limites de condutas cognitivas operatórias concretas, quando solicitado a resolver certos problemas. Para ele, o “fazer” no plano representativo e o “saber” como fez requer a parada da ação para refleti-la. Não significa esse processo apenas uma forma de adaptação dialética – com uma suspensão para conseqüente superação – senão uma real dificuldade do sujeito para se desvencilhar da ação assimiladora colada à experiência ao testar suas hipóteses e convicções. Entretanto, a utilização de condutas operatórias concretas não atesta que um adulto apresente déficits cognitivos, pois, como enfatizamos, as ações sobre o real não são abandonadas nos patamares superiores. O que alegamos é que, mesmo que o meio social cobre certos tipos de estruturação mental, muitos adultos não pensam operatória ou formalmente em determinados campos do conhecimento. 138 Tania Scuro Mendes Embora não possamos, ainda, produzir mapeamentos cognitivos – a neurologia não avançou a esse nível – Piaget vislumbra, na sua concepção teórica, paisagens epigenéticas constituídas por “picos” para determinadas noções e “depressões” para outras. Vista sob esse ângulo, a interpretação acerca da existência de adultos que não generalizam algumas estruturas cognitivas, de modo a aplicá-las formalmente a todas as situações-problema com as quais se deparam (mesmo na vida cotidiana), ganha respaldo. Pelo motivo das estruturas cognitivas permanecerem muito tempo inconscientes, tais sujeitos, por vezes, além de desconhecerem as razões de certos saberes, não compreendem a amplitude de aplicação de seus conhecimentos. Circunstanciados à realidade social, há adultos que não rompem com a rigidez de pensamentos no sentido de sua mobilidade (reversibilidade operatória) para a saída de determinada perspectiva. Piaget (1983), apesar de não ter se detido nesta questão, expressa, exemplificando, que muitos adultos assimilam a justiça à regra, pois não colocam a autonomia da consciência sobreposta a preceitos sociais, a preconceitos e a leis escritas. Com isso, articula o desenvolvimento moral à evolução intelectual. Piaget (1977, p. 344-345) adverte: Todos notaram o parentesco que existe entre as normas morais e as normas lógicas: a lógica é uma moral do pensamento, como a moral, uma lógica da ação. Do apriorismo, para o qual é a razão pura que comanda, ao mesmo tempo, a reflexão teórica e a vida prática, à teoria sociológica dos valores morais e do conhecimento, quase todas as doutrinas contemporâneas concordam em reconhecer a existência desse paralelismo. Em função dos aspectos delineados, ainda que muitos outros possam ser sinalizados, é essencial a abordagem de como as defasagens cognitivas do adulto situam-se em relação ao contexto de interações educativas, e como essas interações podem auxiliá-lo na superação das mesmas. Emerge, então, a necessidade de especificarmos quem são os interagentes nessas condições, focos de nosso interesse. Dificuldades de aprendizagem em adultos: a teoria das defasagens cognitivas 139 Os sujeitos que tais interações nos revelam são: o aluno adulto e o professor, também adulto. Ambos possuem suas histórias de construções cognitivas. O que os diferencia em relação a esse fato é que o aluno, geralmente, está em processo de construção cognitiva em certas áreas e o professor, tendo experimentado muitas situações a que aquele é encorajado a experimentar, usufrui de um referencial cognitivo que o permite assumir uma postura de educador. Contudo, resta questionarmos: o professor tem consciência do seu próprio processo de desenvolvimento cognitivo? Quais as implicações educativas dessa possível inconsciência? Ele realmente considera, conhece e compreende os períodos e os estágios de desenvolvimento cognitivo do aluno adulto? O docente que atua em Educação de Jovens e Adultos enfoca suas ações educativas como possibilidades para seus alunos desencadearem construções cognitivas? Longe de esgotarmos possíveis respostas, teceremos, nos contornos deste artigo, apenas um breve comentário que objetiva contribuir na busca por explicações plausíveis a esses questionamentos. Presos ao pretenso compromisso de construir conhecimentos e obstaculizados pelo “como” operacionalizá-lo, não raro, os professores despedem atenção à periferia das interações, ou seja, aos procedimentos de ensino. Desse modo, propiciam enriquecimentos nos processos educativos mediante o incremento no uso de técnicas e de materiais e negligenciam o processo de construção do conhecimento do aluno. A análise desse processo ter mina restringindo-se, comumente, à observação do “erro construtivo”, entendido como um estágio pré-lógico na construção cognitiva. Este tem justificado, como conseqüência de interpretações equivocadas, atitudes de tolerância relativas a certa passividade de alguns professores frente ao respeito pelas defasagens cognitivas dos alunos. Dito isto, de modo tão incisivo, compete-nos admitir que as relações entre as práticas pedagógicas e os referenciais teóricos são demasiadamente intrincadas para se reduzirem a simples etiquetas. 140 Tania Scuro Mendes Embora reconheçamos esse limite, destacamos que é fundamental um posicionamento epistemológico para a orientação da ação docente. Compreender a produção e as formas de superação de defasagens cognitivas em adultos, com uma postura epistemológica consciente, pode ser um meio eficaz para um trabalho educativo mais promissor nesse contexto educativo. A educação de jovens e “adultos” implica a necessidade de se atentar à especificidade desses alunos e, conforme destaca o Parecer 009/2001 do Conselho Nacional de Educação, de superar a prática de trabalhar com os adultos da mesma forma que se trabalha com alunos de ensino fundamental e médio regular. Prossegue a argumentação no parecer, expressando que, apesar de poderem estar nas mesmas etapas de escolaridade, mas por estarem em outros estágios da vida, os adultos têm experiências, condições sociais e psicológicas, expectativas que os distinguem do mundo infantil e adolescente. Essa condição solicita que os professores dedicados a essa modalidade educativa desenvolvam condições didáticas significativas aos adultos, o que requer compreensão desse universo, das causas e dos contextos sociais e institucionais que configuram as situações de aprendizagem desses alunos, o que, como reiteramos neste excerto, podem evidenciar a necessidade de superação de defasagens cognitivas. Mapeamos alguns caminhos em vias de se confirmarem em visões precisas no que respeita as defasagens cognitivas. Por isso, as conclusões apontadas neste texto são possíveis e parciais. Constituemse como pretexto a diferentes contextos de discussão e seu escopo é, como alertamos inicialmente, atualizar o debate sobre defasagens cognitivas em adultos. Por isso, está aberto o debate! Dificuldades de aprendizagem em adultos: a teoria das defasagens cognitivas 141 Referências bibliográficas BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Ministério da Educação. Parecer 009/2001. Brasília: MEC, 2001. INHELDER, B.; BOVET, M.; SINCLAIR, H. Aprendizagem e estruturas do conhecimento. São Paulo: Saraiva, 1977. MENDES, T. M. S. Defasagens cognitivas em adultos: a ideologia do “déficit” X superação pela interdisciplinaridade. 1993. 242 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1993. PIAGET, J. Intellectual evolution from adolescense to adulthood. Human Developmental, v. 15, p. 1-12, 1972. ______. A equilibração das estruturas cognitivas. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. ______. O julgamento moral na criança. São Paulo: Mestre Jou, 1977. ______. Fazer e compreender. São Paulo: Melhoramentos; EDUSP, 1978a. ______. A formação do símbolo na criança. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1978b. ______. A construção do real na criança. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. ______. O nascimento da inteligência na criança. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. ______. Problemas de psicologia genética. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Coleção Os Pensadores). ______. Seis estudos de psicologia. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1985. 142 Tania Scuro Mendes RAMOZZI-CHIAROTTINO, Z. O déficit pode ser real. Revista Psicologia, Ciência e Profissão, v. 7, n. 1, p. 21-24, 1987a. ______. Psicologia e epistemologia genética de Jean Piaget. São Paulo: EPU, 1987b. Recebido em: 13 de julho de 2007. Aprovado em: 30 de agosto de 2007. O sentido do saber à expansão da vida: um estudo fenomenológico do processo de aquisição da leitura Divaneide Lira Lima Paixão * Ondina Pena Pereira ** Resumo: O estudo apresenta a discussão dos resultados de uma pesquisa realizada com 06 crianças e 02 professoras responsáveis pela alfabetização dessas crianças, com o objetivo de investigar os deslocamentos que a aquisição da leitura possibilita ao sujeito aprendente no que concerne às posições que ocupa em relação a seus pares e professores. A fenomenologia, aliada ao pensamento trágico, foi o método escolhido para orientar a coleta e o tratamento dos dados, assim como o poder disciplinar, em Foucault. Os resultados sugerem uma reflexão sobre as relações de poder que acontecem em sala de aula como efeito dos sentidos atribuídos ao saber/não-saber. Palavras-chave: Alfabetização. Leitura. Perspectiva trágica. Relações de poder. Fenomenologia. * Mestre e doutoranda em Psicologia. Professora dos Cursos de Graduação em Pedagogia e dos Cursos de Pós-Graduação em Educação Infantil e Psicopedagogia da Universidade Católica de Brasília. E-mail: [email protected] ** Doutora em Antropologia pela Universidade de Brasília (UNB). Professora do Mestrado em Psicologia da Universidade Católica de Brasília. E-mail: [email protected] APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano V n. 9 p. 143-167 2007 144 Divaneide Lira Lima Paixão e Ondina Pena Pereira The meaning of the knowledge to the expansion of the life: A study phenomenological of the process of acquisition of reading Abstract: The study it presents the quarrel of the results of a research carried through with 06 children and 02 responsible teachers for the literacy of these children, whose objective was to investigate the displacements that the acquisition of the reading makes possible to the citizen aprendente in that it concerns to the positions that it occupies in relation its pairs and teachers. The phenomenology, allied to the tragic thought, was the chosen method to guide the collection and the treatment of the data. The results suggest a reflection on the relations of being able that they happen in classroom as effect of the directions attributed when knowing and not-knowing. Key-words: Literacy. Reading. Tragic perspective. Relations of power. Phenomenology. Introdução O ato de ler é considerado um facilitador para o acesso a bens culturais escritos e estes, por sua vez, essenciais ao engajamento favorável do sujeito no mundo moderno, o que acaba intensificando o interesse de muitos pesquisadores e pensadores pelo campo da linguagem tanto oral quanto escrita. Conforme observam Gnerre (1994), Kleiman (1995), Scribner apud (TOBACH et al., 1997), Melo (1997), Kramer (2001), Bosco (2002) e Belintane (2006) existe uma extrema valorização da leitura em nossa sociedade, porque esta favorece o pensamento descontextualizado e independente da experiência do sujeito. Além do mais, a leitura, bem como a escrita, favorece a consciência meta-cognitiva, isto é, as operações deliberadas do sujeito sobre suas próprias ações intelectuais. A reflexão sobre o impacto da escrita nas sociedades humanas, no que respeita seu desenvolvimento econômico e social e aos efeitos provocados no desenvolvimento cognitivo dos indivíduos, constituise, atualmente, em um objeto de interesse de muitos estudiosos. Dominar a leitura e a escrita significa, para um grande número de pessoas, estar preparado para engajar-se no processo de expansão da O sentido do saber à expansão da vida: um estudo fenomenológico do processo ... 145 modernidade social, na medida em que essa aquisição pode se constituir em via de acesso aos bens culturais acumulados pela humanidade, possibilitando também o exercício da participação social. Um estudo desenvolvido por Melo (1997) com um grupo de trabalhadores adultos em processo de alfabetização colheu vários depoimentos através dos quais esses trabalhadores relataram a importância que essa aprendizagem representa para suas vidas. “Tudo hoje em dia depende do saber”, disse um dos entrevistados. Outro trabalhador relatou que “a pessoa analfabeta é sempre marginalizada, não sabe das coisas, não faz o trabalho dentro dos conformes”. Segundo a mesma autora, para esse grupo de trabalhadores, tornar-se alfabetizado é se livrar dos estigmas de burro, cego, incapacitado e outros tantos, e mais, é ter a possibilidade de “conseguir um bom emprego”. Eles reconhecem de tal forma o valor que a alfabetização tem para a sociedade e que se esforçam para garantir estudo aos seus filhos para que suas vidas sejam menos árduas. Esses trabalhadores querem ver seus filhos compartilharem os direitos sociais que a vida lhes negou. Melo (1997) observou que o sentimento de inferioridade, de marginalização, de culpa e de incapacidade é visivelmente presente na postura desses trabalhadores quando estão nas classes de alfabetização. É como se eles estivessem perdidos no mundo da escrita e todos esses sentimentos se tornam cada vez mais fortes. Essas pessoas, que antes falavam, pensavam, produziam o seu trabalho e a sua língua, passam a ter, após ingressarem nessas turmas, a obrigação de se tornarem conscientes de sua inferioridade lingüística e cultural. De fato, o modo de inserção de indivíduos “pouco letrados” na sociedade tem um caráter de exclusão, em um sistema em que o pleno domínio da leitura e da escrita e de outras práticas letradas é um pressuposto da constituição das competências individuais valorizadas nessa sociedade. Desse modo, a visão hegemônica de nossa sociedade acredita que a escrita fornece ao seu usuário instrumentos simbólicos que facilitam a utilização de alguns materiais 146 Divaneide Lira Lima Paixão e Ondina Pena Pereira de controle cognitivo como: listas, tabelas, calendários, manuais informativos, livros, revistas, computador e o próprio recurso do registro gráfico que pode dar suporte a esses procedimentos. É papel da instituição escolar tornar “letrados” os membros da sociedade, fornecendo-lhes instrumental para interagir ativamente com o sistema de leitura e de escrita. Essa instituição vem a ser um lugar social onde o contato com esses códigos e com a ciência enquanto modalidade de construção de conhecimento se dá de forma sistemática e intensa, potencializando os efeitos desses outros aspectos culturais sobre os modos de pensamento. Além disso, na escola o conhecimento em si mesmo é o objetivo mais importante da ação dos sujeitos envolvidos, independentemente das ligações desse conhecimento com a vida imediata e com a experiência concreta dos sujeitos Oliveira (apud KLEIMAN, 1995). É por tudo isso que a escola se constitui em um espaço privilegiado para investigar as transformações que a aquisição da leitura traz ao sujeito aprendente, transformações essas que podem ser percebidas a partir dos seus relacionamentos em sala de aula. Nesse ambiente se revelam, mais claramente, as relações de poder nas quais os sujeitos se encontram inseridos, mostrando as diferenças psicossociais apresentadas por alunos leitores e não leitores. A concepção de poder à qual nos referimos é aquela definida por Foucault (1989), isto é, algo que se exerce, um dispositivo que atravessa o sujeito, nas suas inúmeras relações. É o poder entendido como conjunto de estratégias, que forma, cria, individualiza, disciplina e, também, proíbe e delimita o campo de ação do sujeito. Além do conceito de poder, outros conceitos usados nesse trabalho assumiram um significado muito particular e acabaram influenciando, de modo geral, não apenas a forma como nosso olhar foi conduzido para o desvelamento do fenômeno que nos propomos investigar, mas também a própria maneira de interpretar o fenômeno descrito. O termo leitura, por exemplo, foi adotado a partir do sentido atribuído pelo educador Paulo Freire (1985, p. 11), que envolve mais O sentido do saber à expansão da vida: um estudo fenomenológico do processo ... 147 do que a decifração de códigos escritos. Para ele, “a leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele”. Ou seja, ler não é apenas estabelecer relações entre o gráfico e o sonoro. Ler envolve um duplo desafio: decifrar e descobrir o significado simultaneamente. A leitura é, portanto, aqui entendida como parte de um amplo processo de letramento. O termo letramento indica, por sua vez, segundo Soares (1998) e Scribner apud (TOBACH et al., 1997), a condição que um grupo social ou indivíduo adquire em decorrência da apropriação da escrita. É o estado ou condição de quem se cerca das várias práticas sociais de leitura e de escrita. Como em nossa sociedade há uma crescente necessidade em se definir melhor o que é ser alfabetizado, o termo letramento tem sido usado para significar um processo cujas dimensões vão além do que é compreendido hoje como alfabetização, já que o conteúdo significado por esta palavra extrapola a simples aquisição de códigos e envolve também capacidade de reflexões acerca do mundo. O presente estudo foi ancorado na importância da atribuição de sentidos ao ato de ler e mostrou-se capaz de contribuir para a construção de um saber sobre as relações entre a dimensão psíquica da criança e a cultura na qual se inscreve, especialmente aquela de sala de aula, e as conseqüências da aquisição da leitura nessas relações no que concerne à sua condição e posição de sujeito. Alguns deslocamentos foram percebidos nas relações dos alunos com seus colegas e professores à medida que os alunos foram se mostrando mais capazes de ler. Porém, mais do que os deslocamentos que procurávamos, encontramos especificidades na relação de poder entre professores e alunos e na forma como estes últimos lidam com as exigências do processo educativo. Por fim, fomos levados a discutir as formas pelas quais os saberes proporcionados pela competência na leitura e na escrita podem servir de molas propulsoras para a expansão da vida, isto é, para a alegria e ocupação de espaços privilegiados nas relações que os sujeitos estabelecem no dia a dia. 148 Divaneide Lira Lima Paixão e Ondina Pena Pereira O método fenomenológico Adotou-se neste estudo o método fenomenológico e a opção por esse método teve como origem a busca de um caminho de investigação que conduzisse a um olhar mais aberto e abrangente sobre o tema a ser investigado. Criado por Edmund Husserl, o método fenomenológico foi muito utilizado pelas várias abordagens das ciências humanas, mas também revisitado por vários filósofos, entre eles, Merleau-Ponty. Na releitura do método, a idéia husserliana de um “sujeito transcendental”, capaz de ver o mundo e os sujeitos psicológicos, empíricos, a partir de uma posição privilegiada – o que tornou a fenomenologia de Husserl passível de ser considerada idealista – foi recusada por Merleau-Ponty, que rompeu com a posição idealista, apontando a existência de uma posição transcendental ocupada não por um sujeito idealizado, mas pelo que ele chama de “corpo-próprio”. O sentido atribuído a esta idéia indica que “o sujeito é seu corpo, seu mundo e sua situação, e de certa forma estabelece com estes uma permuta” (ZUBEN, 1982, p. 59). Essa articulação consciência-mundo, tal como a noção de corpo-próprio, está na base da perspectiva fenomenológica de Merleau-Ponty e se faz necessária quando se deseja compreender a existência concreta. É a experiência da percepção que ensina a passagem de um momento a outro (da percepção a idéia) e busca a unidade do tempo que, no ato de perceber, expõe um horizonte de possibilidades e vivências sobre o objeto percebido. Além disso, essa relação encerra uma possibilidade de compreensão do espaço, do tempo e do “mundo vivido”. Esse mundo vivido diz respeito às experiências do sujeito. Só é possível compreender um determinado fenômeno através de um retorno a esse mundo, às experiências vividas que se constituem como base de todo conhecimento. A descrição das experiências vividas pelos alunos em processo de aquisição da leitura permite ver a configuração do sentido que essa aquisição tem para a vida dos jovens estudantes no que diz O sentido do saber à expansão da vida: um estudo fenomenológico do processo ... 149 respeito aos deslocamentos ocorridos nos relacionamentos com seus pares e professoras. Nas descrições, as crianças se revelam, através de seu corpo, sua linguagem e atos, seres atuantes e protagonistas de sua relação com o mundo. Uma atitude é descrita de maneira fenomenológica quando apresenta o fenômeno precisamente como ele se dá, sem adicionar ou subtrair nada. Levando adiante a interrogação desse trabalho, foi delimitado um campo de observação que privilegiava as experiências vividas pelos alunos em sala de aula, cujo foco de observação eram os relacionamentos e o processo de aquisição da leitura. O resultado de uma descrição é a definição de um sentido, de uma intencionalidade. A maneira como cada um dos alunos observados articulou e significou sua vivência em sala de aula foi captada através desse olhar fenomenológico que permite o conhecimento do significado inerente a cada ato do sujeito. Esse olhar remete a própria experiência à relação da consciência com o mundo. Mesmo a significação não sendo imediatamente articulada pelos próprios alunos e expressada através de um diálogo, ela existe e se revela por intermédio dos atos do corpo, através de um retorno às experiências vividas pelos sujeitos. Segundo Merleau-Ponty (1994), o retorno às coisas mesmas só é possível quando se opera a “redução fenomenológica”, conceito considerado como o ponto crítico da fenomenologia de Husserl e que sofreu várias mudanças ao longo da vida. Para Husserl (2000), as reduções visavam basicamente uma mudança de atitude. A atitude natural, onde vivemos espontaneamente e consideramos os objetos como exteriores à consciência, existentes em si, deve se transformar, através das reduções, em uma atitude transcendental. A abordagem fenomenológica permite estudar o que nas ciências naturais é negligenciado em função de um entendimento da realidade como composta por fatos objetivos que podem ser definidos e quantificados. Ou seja, na perspectiva das ciências naturais, os fenômenos da consciência, vistos como expressões da intencionalidade da vida psíquica, não podem ser conhecidos. Mas a 150 Divaneide Lira Lima Paixão e Ondina Pena Pereira fenomenologia se propõe a compreender esse fenômeno, definido como tudo aquilo que se mostra. As questões referentes à vida psíquica do sujeito se tornam, portanto, objeto de seu conhecimento. O processo de aquisição da leitura é focalizado, geralmente, sob o ponto de vista pedagógico, em termos de técnicas para se fazer ler, mas o sentido desse ato para os sujeitos é algo que, apesar de ser importante para se compreender a motivação dos alunos para adquirir este ato, ganhou pouca atenção no meio acadêmico. O método fenomenológico oferece essa possibilidade de elucidação do sentido do fenômeno leitura e indica uma nova forma de olhar para ele, onde o foco passa a ser o sujeito que percebe e o que ele percebe. Isto significa que, ao fazer uma descrição fenomenológica do processo de aquisição da capacidade de leitura pelos alunos, é possível intuir o sentido da leitura, como potência adquirida, para a vida dos jovens estudantes, o que pode indicar como os sujeitos recolocam suas posições em relação aos colegas e professor e de como se abrem os horizontes simbólicos, já que a leitura é, no nosso mundo, uma habilidade cujo valor é imprescindível a um posicionamento de prestígio. Participantes O estudo foi realizado em uma escola pública da Ceilândia, cidade satélite do Distrito Federal. A princípio, uma turma de 1ª série do Ensino Fundamental1, a turma da sala 01, regida pela professora Eva, havia sido selecionada e nela 04 alunos se constituíram participantes deste estudo: Camila e Jaqueline, com oito anos de idade cada uma, que apresentavam um bom desempenho nas atividades de leitura e escrita e Diego e Íris, ele com nove e ela com oito anos de idade, que eram avaliados como os alunos cujo desempenho nas tarefas de ler e escrever era inferior ao esperado. 1 Tendo a duração do Ensino Fundamental passado de 08 para 09 anos, a turma, hoje, corresponderia a uma 2ª série. O sentido do saber à expansão da vida: um estudo fenomenológico do processo ... 151 Duas semanas após o início das observações, houve um remanejamento entre os alunos da turma da sala 01 e os alunos da turma da sala 03, ambas turmas de 1ª série do Ensino Fundamental. Anne e Biel, ambos também com oito anos de idade, eram alunos da turma da sala 03 e foram remanejados, juntamente com outros dois colegas para a turma da sala 01, onde um número maior de alunos estava em um nível de desenvolvimento aquém daquele esperado pelas professoras. Enquanto Camila e Jaqueline, cujo desempenho escolar era satisfatório, passaram a freqüentar a turma da sala 03, cujos alunos eram avaliados como mais competentes que aqueles matriculados na sala 01. Ou seja, as duas alunas, cujo nível de aprendizagem era considerado adequado para a idade e a série, foram transferidas para uma turma “mais adiantada”. O remanejamento dos alunos ocorreu, portanto, como estratégia para homogeneizar ao máximo as turmas e, segundo o próprio relato de uma das professoras da pesquisa, ao mudarem de turma esses alunos teriam melhores condições de desenvolvimento. Por força desse remanejamento, a turma da sala 03 passou a ser observada, já que Camila e Jaqueline agora freqüentavam essa turma. A professora Flora, de 25 anos de idade, regente da turma 03, também passou a ser participante da pesquisa, assim como os alunos Anne e Biel, considerados por ela como alunos com muitas dificuldades de aprendizagem nas tarefas de leitura e escrita. Por fim, então, a pesquisa contou com participação de 06 alunos e duas professoras.2 Assim, a escolha dos alunos e das turmas foi determinada por fatores que surgiram ao longo das observações e que estiveram relacionados ao nível de aprendizagem de leitura e escrita das crianças: quatro crianças estavam aquém do esperado pela escola e duas estavam, segundo as professoras, em um nível mais avançado que o da turma em que estavam inseridas. A escola localiza-se em uma comunidade desfavorecida em termos sócio-econômicos. Os alunos selecionados advêm, portanto, de famílias com baixos salários. 2 Por questões éticas os verdadeiros nomes dos alunos e das professoras foram preservados, bem como a denominação das turmas selecionadas para este estudo. 152 Divaneide Lira Lima Paixão e Ondina Pena Pereira Instrumentos Para as descrições fenomenológicas foi utilizado um diário de campo, no qual o pesquisador anotava tudo aquilo que acontecia e tinha alguma relação com o fenômeno investigado. Já para as conversas/entrevistas semi-estruturadas foi utilizado um gravador de áudio. Procedimentos Os procedimentos metodológicos para coleta e análise dos dados foram definidos com base no método fenomenológico de Merleau-Ponty e estão descritos a seguir: Redução fenomenológica: Foram feitas descrições das dezoito observações realizadas e por meio das quais se procurou ter fidelidade para com a experiência ocorrida. Durante toda a coleta de dados, a atenção esteve voltada para aspectos pertinentes, significativos e relevantes sobre o fenômeno leitura e sua relação com a posição de poder, ou potência, na relação dos aprendizes com o mundo. Entrevistas ou conversas semi-estruturadas: Estas conversas foram gravadas em fitas de áudio e transcritas posteriormente. O objetivo das conversas foi ouvir das próprias crianças o que elas pensam em relação à aprendizagem de leitura e, na medida do possível, colher infor mações adicionais que pudessem ajudar no desvelamento do fenômeno investigado. Elaboração de um relatório etnográfico: Nesse relatório foi descrito de forma geral tudo que se observou em relação às crianças e que diziam respeito, de alguma for ma, a aprendizagem de leitura e a seus relacionamentos em sala de aula. Ou seja, foi descrito como as crianças agiram em relação aos exercícios propostos em sala e como agiram nas interações com O sentido do saber à expansão da vida: um estudo fenomenológico do processo ... 153 colegas e professores. Também foram incluídas no relatório as informações dadas pelos pais e professores das crianças. Para a elaboração desse relatório foram usados os dados colhidos nas duas etapas anteriores. Identificação/descrição de temas: Após a elaboração do relatório exposto no item anterior, ao se fazer um paralelo entre as descrições das crianças, foi possível identificar temas tanto comuns como divergentes em seus relacionamentos. Considerou-se importante descrever os temas invariáveis que puderam ser indicativos do sentido que a aprendizagem da leitura encerrou na consciência dos aprendentes, durante o período observado. Ao descrevermos os temas, procedemos também com a discussão sobre o material exposto, tendo como suporte as teorias adotadas na pesquisa. O Fenômeno e seu sentido As descrições elaboradas a partir de observações, que tiveram como foco os modos de relacionamentos em sala de aula e o processo de aquisição da leitura, possibilitaram a identificação de categorias que se mostraram invariáveis e de alguns aspectos muito particulares, que divergiram daqueles percebidos na maioria dos alunos. Portanto, um olhar global sobre as descrições permitiu a identificação de temas convergentes e divergentes. As categorias chamadas aqui de invariáveis tiveram como objetivo mostrar aquilo que se repetiu nas duas turmas observadas, levando-se em consideração especificidades dos dois grupos de alunos: a dupla que demonstrou boa capacidade de leitura e os quatro alunos que apresentaram dificuldades em desenvolver tal capacidade. No que se refere às relações sociais, estivemos em alerta quanto aos dispositivos de poder presentes nelas e aos seus determinantes histórico-culturais. Já as atividades relacionadas com a aquisição da leitura foram observadas como movimento de expansão da vida, da potência, e também como seu contrário, ou seja, como submissão ao adestramento. 154 Divaneide Lira Lima Paixão e Ondina Pena Pereira Das descrições sobre os alunos em um nível mais avançado: Camila e Jaqueline apresentavam claramente um elevado nível de auto-estima evidenciado nos seus comentários em relação ao grau de dificuldade presente nas atividades. Exemplificando, podemos citar frases do tipo: “Ah! Essa atividade eu faço rapidinho” ou “Ah não tia, esse dever é fácil demais!”. Toda auto-estima, demonstrada não só por Camila e Jaqueline, mas também pelos outros dois alunos que foram remanejados da sala 01 para a sala 03, despertava nos alunos um grande sentimento de confiança. Elas não tinham medo de errar. Costumavam ir ao quadro quase todos os dias responder a questões propostas pela professora no momento da correção de atividades. Estavam habituadas a acertar, mas, quando acontecia algum erro, elas não se frustravam e agiam com naturalidade, mesmo porque não eram repreendidas por isso. As experiências que essas alunas tiveram nas duas turmas foram avaliadas como positivas. Elas diziam gostar tanto da professora Eva quanto da professora Flora. Camila e Jaqueline tinham muitos amigos em sala de aula, tendo relatado, portanto, raros casos de problemas isolados com um ou outro colega. As professoras também demonstravam carinho quando falavam dessas alunas, não costumavam chamar a atenção delas e elogiavam seus desempenhos sempre que podiam. A relação afetiva entre os atores que participam da dinâmica escolar é um dos fatores positivos para promover o desenvolvimento cognitivo, que não se dissocia jamais do afetivo. O aprendizado vai se estabelecendo através das relações afetivas que ocorrem pela vivência individual e coletiva. É, pois, função da escola realizar a mediação entre os sistemas afetivos e cognitivos (VYGOTSKY, 1993). É importante pontuar aqui que, segundo Merleau-Ponty (1994), o sujeito engajado no mundo, ao estabelecer relações, acaba sentindo e se fazendo sentir, vendo e sendo visto, tocando e sendo tocado, porque ele não é apenas sujeito nem apenas objeto, ele está entre os O sentido do saber à expansão da vida: um estudo fenomenológico do processo ... 155 dois e é assim que deve ser compreendido. Isto significa que há entre os sujeitos que se relacionam uma troca intersubjetiva, onde todos constituem sentidos e sofrem esse mesmo processo de constituição. Observa ainda que os sujeitos se expressam através de seu corpo. Assim, o corpo está associado à percepção, à linguagem, ao mito, enfim, a toda experiência vivida pelos sujeitos. Portanto, ao descrever essas experiências do corpo em movimento, é possível captar os sentidos construídos através da cultura em que o sujeito está inserido. Durante as observações, podia-se ver com freqüência que Camila e Jaqueline viviam rodeadas de colegas mesmo durante as aulas, porque a professora permitia que tais alunos fizessem o papel de monitores em atividades de matemática e língua portuguesa, já que não demonstravam dificuldades em realizar suas tarefas e terminavam muito antes do tempo previsto. O fato de os alunos mais competentes terem um número muito grande de amizades em sala, em relação aos alunos com mais dificuldades, pode ser indicativo de uma vantagem dos primeiros sobre os segundos. Camila e Jaqueline foram colocadas em um lugar importante dentro da sala de aula. Fazer amizade com essas alunas pode ter se configurado em algo muito oportuno para os demais, porque essa amizade poderia garantir até mesmo a realização de suas próprias atividades. Além de se colocarem na posição de colaboradoras dos demais alunos, Camila e Jaqueline tinham direito a voz e a participação nas correções de atividades que a professora realizava diariamente. Os convites freqüentes que a professora fazia a essas alunas acabavam dando um destaque muito grande às suas habilidades e competências em desenvolver as tarefas. Tal destaque era responsável pelo “lugar superior” que a professora lhes havia concedido naquela turma e que parecia ter sido ocupado também na turma anterior. Elas eram sempre tomadas como exemplo quando o assunto era inteligência, organização e esperteza. Todos esses atributos tornavam essas alunas seres superiores aos demais, pelo menos no 156 Divaneide Lira Lima Paixão e Ondina Pena Pereira processo de alfabetização que ocorria naquele cenário, o que pode realmente ter facilitado a aproximação dos outros alunos. Por estarem tão bem posicionadas dentro das normas da escola – sempre faziam os deveres de casa, eram asseadas, prestavam atenção às explicações dadas pela professora, realizavam com rapidez e competência suas atividades em sala, mantinham o material sempre organizado – elas até tinham direito a certas regalias: podiam conversar após realizarem suas tarefas, podiam caminhar um pouco dentro de sala e sempre eram autorizadas a ir ao banheiro, o que não acontecia com os demais, que só podiam fazê-lo no momento determinado para isso ou quando houvessem terminado suas atividades. Com base em Foucault (1989), é possível entender tais concessões como estratégias do poder disciplinar para consolidar a normatização escolar desses alunos. Nessa perspectiva, uma das características do poder é agir justamente sobre a ação dos outros, com a intenção de reforçar o pressuposto de que as pessoas são livres. Essa aparente liberdade dentro da qual Camila e Jaqueline se moviam não teria lugar, como não havia no caso dos outros alunos, se elas deixassem de agir dentro das normas estabelecidas pela instituição escolar. É, portanto, uma falsa liberdade. É esse poder que atravessa as relações que determina os limites dentro dos quais uma ação é possível por ser normativa. O poder disciplinar, sem nem mesmo usar o mecanismo da repressão, incide nas relações concedendo aos alunos mais obedientes, dóceis, aqueles que não rompem com as normas escolares, que aprendem com facilidade, lugar de prestígio e aptidão para exercer certas ações. Conforme verificamos, essas capacidades podem surgir desde cedo no ambiente escolar, ambiente este que é concebido como o lugar onde ocorre, ou pelo menos deveria ocorrer, a apropriação e a sistematização do conhecimento e onde a aprendizagem da leitura e da escrita deveria estar sempre presente. Porém, um olhar mais atento revela surpresas muito sutis. Aos “bons alunos”, aqueles que demonstram uma capacidade de assimilação maior, a escola reserva O sentido do saber à expansão da vida: um estudo fenomenológico do processo ... 157 um lugar especial, mas o lugar que confere sucesso tem o seu reverso simultâneo, o da submissão à disciplina, à norma. Das descrições sobre os alunos em um nível menos avançado: Dos quatro alunos que apresentavam dificuldades para ler e escrever, e que foram obser vados mais atentamente, todos apresentaram um número restrito de amizades em comparação com as amizades firmadas pelos alunos “mais adiantados”. Anne e Biel, por exemplo, quando estudavam na sala 03, mantiveram relacionamentos de amizade quase que unicamente com outros dois colegas. Quando passaram a fazer parte da sala 01, os relacionamentos desses alunos não se expandiram. Íris e Diego se relacionavam amigavelmente com uma quantidade maior de colegas. Mesmo assim, em número de amigos eles não conseguiam superar os alunos em nível mais avançado. Diversos estudiosos chamam a atenção para a importância das relações estabelecidas pelas crianças, apoiados na idéia de que tais relações favorecem a aprendizagem. O fato de alunos não se relacionarem amigavelmente com muitos colegas em sala de aula não significa que eles não estejam constantemente inseridos em relações sociais e, conseqüentemente, aprendendo. Mesmo não havendo entre os alunos um relacionamento de amizade, as interações acontecem. No entanto, devemos lembrar que, de acordo com a perspectiva que adotamos para esse estudo, a separação sujeito-objeto do conhecimento não deve ser considerada. Conforme a fenomenologia de Merleau-Ponty (1994), o sujeito é seu mundo e é no mundo que ele se constrói. Isto significa que o aluno não pode ser distanciado daquilo que ele intenciona conhecer. No próprio momento em que o fenômeno é visado pelo aluno, o fenômeno torna-se constituinte do próprio aluno, ao mesmo tempo em que é constituído por ele. Relacionamentos positivos têm um caráter de confiabilidade muito presente e esse sentimento é também importante para as formas 158 Divaneide Lira Lima Paixão e Ondina Pena Pereira de relacionamento em sala de aula porque acaba influenciando diretamente a aprendizagem dos alunos, já que é determinante do nível de participação deles nas tarefas de sala de aula, como observou McDermott (1977). A falta de confiança que existia nas relações estabelecidas entre os alunos que apresentavam mais dificuldades na aprendizagem parecia mesmo ser responsável pela não-participação dos alunos nas atividades propostas pelas professoras. Muito raramente esses alunos eram convidados a participar ativamente das correções de atividades realizadas pelas professoras, e quando eles tinham oportunidade de participação, ou seja, quando as professoras faziam uma pergunta para todo o grupo, esses alunos não se sentiam à vontade para participar. A participação dos alunos que apresentavam dificuldades de aprendizagem era muito mais restrita que a dos alunos que demonstravam mais facilidades para aprender. Eles até tentavam responder alguma coisa, sentados em seus próprios lugares, mas ir até a frente da sala para realizar alguma tarefa era um ato que esses alunos não se arriscavam a pôr em prática, possivelmente em decorrência da pouca confiança que tinham em si mesmos e nos outros também. Esse ato poderia se tornar em algo constrangedor para eles, já que tinham que expor perante todo o grupo suas limitações. Esses alunos procuravam negar suas dificuldades de todas as maneiras possíveis. Muitas vezes eles preferiam deixar suas tarefas em branco, alegando que não estavam com vontade de realizá-las a ter que expor perante professoras e colegas suas incapacidades em relação à leitura e à escrita. As ações realizadas pelos alunos para tentar esconder dos outros e, às vezes, de si mesmos, suas incapacidades, levam a crer que é doloroso para os alunos vivenciarem essa situação de insucesso nas atividades escolares. Eles acabam sofrendo para aprender porque há toda uma expectativa em torno dessa aprendizagem, construída por familiares, professores e pelos próprios colegas, e eles não conseguem responder a ela de forma positiva. O sentido do saber à expansão da vida: um estudo fenomenológico do processo ... 159 É interessante notar que as características presentes no comportamento dos alunos em relação à aprendizagem das formas tradicionais de alfabetização parecem estar todas interligadas. Confiança determina participação, que por sua vez possibilita a superação das dificuldades, que acaba concedendo aos alunos um lugar de prestígio nas relações entre pares e professores. Quando as características de auto-estima/confiança não estão presentes, as outras ficam também prejudicadas e o resultado final do processo que acaba sendo desencadeado, em função dessas ausências, caminha em direção ao fracasso desses alunos na escola e provavelmente na vida. Essa dificuldade em assumir posições de não-subalternidade está relacionada com a não participação dos alunos nas atividades e com as relações de poder que se estabelecem no cenário educativo. Normalmente o que acontece é que os alunos não estão nem um pouco seguros em relação a seus conhecimentos a ponto de arriscar uma participação, já que o próprio grupo não oferece confiança suficiente a eles. Em face de tantas dificuldades, muitos alunos conseguem surpreender os outros e a si próprios. Esses alunos são capazes de recriar sua força e potência. Diante do sofrimento provocado pelas dificuldades que têm de enfrentar, eles conseguem descobrir meios de expandir sua existência, de se alegrar. Assim, vários alunos considerados “fracos” pelas professoras roubavam a cena de variadas formas durante a realização de alguma tarefa, obtendo algum tipo de reconhecimento. Dos alunos observados, Biel, Anne e Íris foram capazes de, ainda que momentaneamente, assumir posições prestigiadas nos grupos sociais dos quais fizeram parte. Anne, por exemplo, encontrava essa possibilidade nas tarefas de produção de texto e leitura, ao criar textos oralmente, no espaço do imaginário; Biel fazia os colegas rirem, ou dava um jeito de parecer tão capaz quanto os outros na tarefa de formação de palavras. Além disso, se ele não tinha nada mais 160 Divaneide Lira Lima Paixão e Ondina Pena Pereira interessante para fazer, escolhia algo na sala que considerava “bonito” e lançava a este algo toda sua atenção, tentando, talvez, reinventar a realidade; já Íris, tal como Diego, buscava estratégias para realizar suas atividades e, aos olhos de muitos colegas e das professoras, parecer mais capaz. Existia entre os alunos outra prática capaz de amenizar o sofrimento e as angústias, eram as expressões artísticas. Diego, por exemplo, encontrava alegria nos desenhos e na pintura que ele realizava com freqüência. Por inúmeras vezes, esse aluno foi visto desenhando e colorindo. Às vezes, seus desenhos mereciam elogios dos colegas e das professoras e ele se alegrava ainda mais com isso. Era através do desenho que esse aluno dava sentido à sua existência. As observações em relação a Biel, Anne, Íris e Diego levam a crer que eles necessitam criar formas diferenciadas para reagir à situação de exclusão e serem reconhecidos dentro do cenário de sala de aula. Os alunos que apresentam facilidades para aprender os códigos da escrita já conseguem esse destaque sem que precisem mover esforços para isso. São, portanto, normatizados, submissos. Os outros alunos, justamente por suas dificuldades, resistem a normatização. São capazes eles mesmos de criar oportunidades e, sem submissão, sentem-se vitoriosos ao experimentar o lugar de destaque obtido por seu esforço criativo, o que os faz sentir uma alegria intensa, capaz de gerar risos inexplicáveis, e outros tipos de manifestações exercidas através do corpo. Aos alunos que apresentam dificuldades no processo de alfabetização, ou que se mostram mais resistentes a eles, a escola reserva um lugar comum ou lugar nenhum. As surpresas destinadas a esses alunos não amenizam o aspecto doloroso do processo de alfabetização, ao contrário, o ressaltam. E é justamente aí, diante desses obstáculos, que os alunos se superam, criam seus espaços e inscrevem sua forma própria de ver o mundo, expandindo sua linguagem e, portanto, a vida. É essa capacidade de expansão da vida, de potencialização de suas qualidades, que os alunos excluídos, marginalizados, considerados incapazes ou mesmo deficientes mentais, deixam transparecer através O sentido do saber à expansão da vida: um estudo fenomenológico do processo ... 161 de suas ações, suas palavras, seu corpo. São essas capacidades que fazem alunos como Anne e Biel encontrarem, em meio aos seus insucessos, possibilidades outras de vitória e de alegria. Temas divergentes: Foram identificadas algumas atitudes diferenciadas entre os alunos com dificuldades de aprendizagem, mas isso não quer dizer que todos os alunos que mostram competências em relação às habilidades de leitura e escrita não apresentem alguns comportamentos peculiares, próprios de sua constituição subjetiva. A primeira característica que se fez notar, justamente por não condizer com a maioria das características percebidas, foi o isolamento dos alunos Anne e Biel. Quando estudavam na sala 03, estes alunos faziam questão de sentar sempre nas últimas carteiras. Ao serem transferidos para a sala 01, Biel aceitou o lugar destinado para ele naquela turma, mas Anne continuou demonstrando essa necessidade de isolamento. Em nenhum momento ela aceitou sentar no lugar em que a professora lhe havia reservado: a primeira carteira da fila. Mesmo apresentando problemas visuais, a menina preferia não sentar próxima ao quadro. Esses mesmos alunos citados no parágrafo anterior tinham dificuldades de expressar seus sentimentos em relação às professoras de ambas as turmas que freqüentaram. Mesmo reconhecendo que gostavam das professoras, esses alunos não costumavam demonstrar diretamente às professoras seus sentimentos conforme faziam os outros alunos. Além disso, Anne demonstrava claramente, em seu comportamento, formas de resistência ao poder disciplinar. Na sala 03, ela costumava se opor, por exemplo, à correção das atividades de autoditado. Mesmo quando a professora considerava que havia muitos erros e afirmava categoricamente que ela deveria apagar as palavras e refazê-las, a menina simplesmente não respondia à exigência. Ficava calada em seu lugar. 162 Divaneide Lira Lima Paixão e Ondina Pena Pereira Biel e Diego usavam algumas estratégias que demonstravam alguma resistência ao poder, como, por exemplo, fazer caretas, deixar de cumprir a atividade para desenhar e até mesmo se recusar a desenvolver alguma atividade, mas era Anne que se opunha sempre às exigências. Além de se afastar do grupo, de não realizar as atividades sugeridas pelas professoras e de não participar da correção das atividades, ela ainda costumava bater nos colegas que lhe agrediam. Por ser estrábica, as agressões não eram muito raras e ela respondia a todas da mesma forma. Nas duas turmas, as professoras pediam que os alunos falassem diretamente com elas quando algum colega os agredisse, mas Anne não respeitava esse pedido e respondia diretamente às agressões a ela dirigidas. Mais do que oposição, Diego manifestou um comportamento de indiferença. Mostrava-se muitas vezes apático, sem ânimo para realizar as tarefas. Embora estivesse sempre com um sorriso no rosto, o menino deixava passar um ar de tristeza e, às vezes, de pura distração. As demonstrações de indiferença de Diego em relação ao desempenho nas atividades – às vezes, ele realizava as atividades, outras vezes, não – são reveladoras de uma série de sentimentos. Ora pode indicar oposição ao poder, ora pode indicar submissão a ele. O fato é que a escola não parecia se configurar para ele como algo agradável a não ser no que se refere aos relacionamentos de amizade, que não eram muitos, mas que pareciam ser muito importantes para ele naquele cenário. De todas as divergências que surgiram ao longo das observações, talvez a que tenha nos chamado mais a atenção esteja relacionada ao comportamento de aceitação e submissão assumido por Íris. Essa aluna demonstrou o tempo todo um comportamento diferenciado daquele apresentado pelos colegas pertencentes ao grupo dos “fracos”. Ela se comportava como se pertencesse ao outro grupo. Realizava suas atividades, sentava exatamente onde a professora a colocava. Não costumava levantar do seu lugar e nem conversar com os colegas. Estava sempre sorrindo, como se tudo estivesse muito bem. O sentido do saber à expansão da vida: um estudo fenomenológico do processo ... 163 Não reclamava das atividades, mesmo se fosse algo que ela não fosse capaz de realizar. Todos os temas que surgiram ao longo da investigação e que se mostraram divergentes, por não serem identificados em todos os alunos do gr upo observado, acabam por indicar diferenças propriamente humanas que se constituem ao longo da vida dos sujeitos, a partir da interpretação pessoal e dos significados que eles atribuem a todos os conhecimentos que lhes chegam à consciência, isto é, a partir de sua subjetividade. A subjetividade é entendida aqui como “a qualidade subjetivomental ou privada de algo, ou seja, refere-se a eventos, estados, processos e disposições mentais ou privadas que, por causa dessas qualidades, só podem ser de, ou pertencer a, ou estar em um sujeito” (ABID, 1999, p. 55). Nesse sentido, no ato de esclarecer as exigências do papel, está impressa a subjetividade do sujeito, que se constitui, simultaneamente, em um ato de modificação de papel (RATNER, 1996). Por uma conclusão fenomenológico-trágica Ao buscar o sentido do ato de ler, esse estudo elevou o fenômeno leitura a um patamar onde o domínio dessa habilidade extrapola o simples processo de apropriação de conhecimentos e significados, tornando-se algo de maior valor para a existência humana. Entendemos a leitura a partir da visão de Paulo Freire, que a concebe em um sentido mais amplo, onde a principal função dessa habilidade não é de ordem pragmática, mas de ordem social. Ou seja, para esse educador, a prática da leitura é importante também e, sobretudo, por servir de poderoso instrumento para o exercício da participação social. Estar preparado para ingressar no projeto de expansão da modernidade social não é simplesmente saber ler e escrever. É preciso, antes de tudo, saber o que pode ser feito com essas habilidades e ter conhecimento das funções que a alfabetização assume em uma 164 Divaneide Lira Lima Paixão e Ondina Pena Pereira sociedade complexa como a nossa. É saber usar essas habilidades em função do crescimento pessoal e social. Nossa sociedade se modernizou rapidamente e para acompanhar tal progresso é preciso que as pessoas se tornem, de fato, letradas. Conforme já havia sido constatado por Scribner apud (TOBACH et al., 1997), quanto mais complexa é uma sociedade, e mais desenvolvidas são as tecnologias para reproduzir as formas de escrita, mais diversas são as práticas de alfabetização dentro dela, ou mais variados são os usos que se faz dessa aprendizagem. Ao que parece, as pessoas que são capazes de fazer uso dessas práticas de alfabetização e que compreendem bem as funções da leitura e da escrita acabam por ocupar os lugares de maior prestígio nos seus grupos sociais mais próximos e, conseqüentemente, na sociedade onde vivem. Por estarmos cientes da importância que as habilidades de leitura e escrita têm em sociedades como a nossa, chegando a despertar em vários pesquisadores a necessidade de compreender mais profundamente essa importância, procuramos investigar se era possível perceber desde cedo algumas mudanças nas formas de relacionamento entre os alunos e entre eles e o professor a partir do momento em que esses alunos passassem a fazer parte do mundo de leitores. Essas mudanças de posição só puderam ser percebidas nos relacionamentos desses alunos, quando eles conseguiam expandir e potencializar suas vidas através de situações positivas vividas em sala de aula. Quando olhamos para o fenômeno da leitura como algo maior do que decifrar códigos escritos ou quando percebemos a leitura como leitura de mundo, e quando os alunos mostram as capacidades que têm em relação a esse tipo de leitura, aí conseguimos observar que acontecem alguns deslocamentos nos relacionamentos que eles estabelecem em sala de aula. Pudemos também indicar possíveis mudanças de posição ao compararmos os relacionamentos de alunos que já estavam em uma fase mais avançada desse aprendizado com o relacionamento de alunos que ainda estavam iniciando tal aprendizado. Com base nessa comparação, foi possível apreender que a habilidade de leitura, tanto O sentido do saber à expansão da vida: um estudo fenomenológico do processo ... 165 quanto a habilidade de escrita, é capaz de fornecer elementos para que os sujeitos ocupem posições privilegiadas no ambiente de sala de aula. A possibilidade de melhoria de vida, ligada diretamente ao desejo e necessidade de aprender a ler, acaba suscitando nos educandos uma enorme responsabilidade que não lhes cabe assumir sozinhos. O caráter doloroso desse aprendizado que, na maioria das vezes, é proporcional às dificuldades encontradas no caminho, pode estar vinculado também a essa responsabilidade que lhes é atribuída. O aprendizado da alfabetização exige esforço, provoca sofrimento. Mas, é esse aprendizado, cujos determinantes históricoculturais tornam algo tão valorizado na sociedade moderna, que se configura para os alunos como aquilo que pode trazer alegria não apenas para eles, mas também para as pessoas significativas que os cercam. De todo o sofrimento provocado pelo processo de alfabetização, podem surgir aptidões que ajudam o aluno a extrapolar esse processo, alcançando algo muito maior, a capacidade de letramento. É essa capacidade que se torna importante na tarefa de expansão e potencialização da vida. Talvez seja correto afirmar que mesmo os alunos que já estão em processo avançado de alfabetização não vão conseguir expandir sua existência sem lançarem mão das capacidades de letramento. Aos alunos alfabetizados que não conseguem por si só uma potencialização de suas capacidades, resta, ao que parece, submissão, obediência. A esses a sociedade provavelmente já reservou um lugar e eles não precisam de muitos esforços para ocupá-los, basta continuarem agindo com a mesma obediência, dentro dos mesmos princípios que lhes foram determinados. A grande maioria das pessoas, no entanto, precisa mover muitos esforços para poder alcançar posições de prestígio na sociedade em que vivem. Essas posições quando alcançadas tornam-se muito especiais, representando alegria e vitória. As pessoas que alcançam tais situações de prestígio, com a superação de suas próprias dificuldades, são aquelas que aprenderam a fazer a “leitura de mundo”, tal como desejada por Paulo Freire, são aquelas que aprenderam a 166 Divaneide Lira Lima Paixão e Ondina Pena Pereira colocar em prática as habilidades de letramento, cujo sentido, significado e alcance são mais amplos do que se pode imaginar. Referências bibliográficas ABID, J. A. D. Empirismo radical e subjetividade. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, v. 15, n. 1, p. 55-63, 1999. BELINTANE, C. Reading and literacy in Brazil: a search beyond polarization. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 32, n. 2, 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/<http://www.scielo.br/cielo.php?script=sci _arttext&pid=S151797022006000200004&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 09 jun. 2007. BOSCO, Z. R. No jogo dos significantes: a infância da letra. Campinas: Pontes, 2002. FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1989. Tradução de R. 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Recebido em: 06 de junho de 2007 Aprovado em: 15 de outubro de 2007 Dificuldades de aprendizagem e educação inclusiva Rosimar Bortolini Poker * Resumo: A cada ano mais e mais crianças não atingem os objetivos curriculares da série em que se encontram e, por isso, passam a compor a categoria dos alunos com Dificuldades de Aprendizagem. Esse é um dos maiores desafios da escola denominada inclusiva que se instaurou no Brasil a partir de 1990. Entretanto, o estudo demonstra que essa mudança de paradigma deu-se em termos conceituais, com o uso da terminologia necessidades educacionais especiais, mas não repercutiu na prática pedagógica. A escola inclusiva passou a ser obrigada a aceitar esse alunado mas não assumiu efetivamente a sua educação. Palavras-chave: Dificuldades de aprendizagem. Inclusão educacional. Fracasso escolar. Learning disabilities and inclusive education. Abstract: Each year many more children don’t reach the school goals of the grades they are taking, then they take part f the group of the students with learning disabilities. This is one of the greatest challenges of the “inclusive school” which was stablished in Brazil in the 90’s. However, this essay shows that this paradigm change was due to some conceituals therms, with the use of the therminology of special educational needs, but it didn’t reverberate in the pedagogycal practice. The inclusive school became obliged to accept these students but it didn’t assume effectively their formal education. Key-words: Learning disabilities. Educational inclusion. School failuse. * Doutora em Educação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP) – Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC), Campus de Marília. Professora da UNESP/FFC/Marília. E-mail:[email protected]. APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano V n. 9 p. 169-180 2007 170 Rosimar Bortolini Poker A exclusão de crianças e jovens com Dificuldades de Aprendizagem do sistema educacional é uma realidade. A cada ano mais e mais crianças não conseguem atingir nem minimamente os objetivos curriculares esperados para a série em que se encontram e, por isso, passam a compor a categoria dos alunos com Dificuldades de Aprendizagem. Esse problema constitui, em termos pedagógicos, um dos maiores desafios da escola. Tais alunos são uma ameaça para o sistema público financeiro pois multiplicam os gastos planejados para a sua educação. A maioria deles passa por uma ou mais retenções e precisa de apoio pedagógico adicional. O número de alunos que apresenta fracasso escolar está aumentando sensivelmente, atingindo muitos países e regiões do mundo. Tal fato incomoda os gestores responsáveis pela organização das políticas públicas e preocupa diretores, coordenadores pedagógicos, professores, familiares, ou seja, constitui-se em um problema a ser enfrentado por toda a sociedade. Mas, apesar da gravidade da situação, no Brasil, as causas e o levantamento do número preciso de alunos com Dificuldades de Aprendizagem, ainda são desconhecidos. Isso porque não há consenso quanto à elegibilidade ou mesmo a identificação dessa clientela. Não há preocupação pelos sistemas de ensino em realizar um diagnóstico mais detalhado sobre as condições psicológicas, orgânicas, sociais, intelectuais desse alunado, e nem sobre as condições de ensino que lhe são proporcionadas pela escola. O que é sabido é que uma grande porcentagem de alunos das escolas brasileiras apresenta insucesso escolar, e que a característica comum desse grupo é o fato de não aprenderem os conteúdos mínimos previstos para a série compatível com a sua faixa etária. Diante desse quadro incerto, os alunos com Dificuldades de Aprendizagem ficam vagando entre a educação especial e a educação regular. Alguns chegam a freqüentar salas de recursos para deficientes mentais, programas compensatórios no período oposto ao da aula e até mesmo salas especiais com professores especializados. Dificuldades de aprendizagem e educação inclusiva 171 Os professores ao se depararem com esses alunos muitas vezes não se sentem preparados para atuarem. Normalmente, encaminham tais alunos para avaliação e para atendimentos de especialistas da área da saúde. De certa forma, por desconfiarem da presença de algum distúrbio neurológico ou cognitivo, os professores não se sentem responsáveis pela sua aprendizagem. Acreditam que o problema decorre de distúrbios do aluno e, por isso mesmo, não questionam a eficácia de suas práticas ou métodos de ensino. De acordo com Senf (1981) as Dificuldades de Aprendizagem têm sido uma área obscura que fica entre a normalidade e a defectologia. O autor afirma que os professores que ensinam tais alunos não raramente sugerem o encaminhamento para a educação especial sem, contudo, pensarem em modelos dinâmicos e diferenciados de avaliação e de intervenção. Mas, afinal, o que é uma criança com Dificuldade de Aprendizagem? Segundo a definição do National Joint Committee of Learning Disabilities (NJCLD) de 1988, que reúne internacionalmente o maior consenso, Dificuldades de Aprendizagem [...] é um termo geral que se refere a um grupo heterogêneo de desordens manifestadas por dificuldades significativas na aquisição e utilização da compreensão auditiva, da fala, da leitura, da escrita e do raciocínio matemático. Tais desordens, consideradas intrínsecas ao indivíduo, presumindo-se que sejam devidas a uma disfunção do sistema nervoso central, podem ocorrer durante toda a vida. Problemas na auto-regulação do comportamento, na percepção social, na interação social podem existir com as Dificuldades de Aprendizagem. Apesar das DA ocorrerem com outras deficiências (por exemplo, deficiência sensorial, deficiência mental, distúrbios sócio-emocionais) ou com problemas extrínsecos (por exemplo, diferenças culturais, insuficiente ou inapropriada instrução, etc.), elas não são o resultado dessas condições. 172 Rosimar Bortolini Poker De acordo com a definição é possível verificar que a Dificuldade de Aprendizagem é um fenômeno extremamente complexo que abarca uma diversidade de conceitos, critérios e teorias. Para Senf (1990), a Dificuldade de Aprendizagem tornou-se uma “esponja sociológica” que cresceu muito rápido exatamente porque foi utilizada para absorver uma diversidade de problemas educacionais acrescidos de uma gama de fenômenos a eles inerentes. A ausência de uma teoria sólida e coesa baseada em estudos científicos explica a ambigüidade e a falta de legitimidade e fidedignidade da definição das Dificuldades de Aprendizagem. Conseqüentemente, os ser viços utilizados para atender as necessidades educacionais de tais alunos são ineficientes. Muitas vezes repetem as estratégias e atividades já desenvolvidas pelos professores nas salas de aula. É importante ressaltar também que a identificação das Dificuldades de Aprendizagem ocorre com base em critérios arbitrários sustentados em laudos ou avaliações de diferentes áreas não tratadas de forma interdisciplinar. Ora a identificação é feita com base em critérios pedagógicos, ora em critérios médicos, ora em critérios neurológicos, psicológicos, emocionais, motores, sociais ou mesmo culturais. Em muitas ocasiões o diagnóstico clínico é super valorizado e tratado isoladamente e, seus resultados apontam para alterações que não se convertem em uma proposta de ensino ou de re-educação a ser elaborada para o aluno com Dificuldades de Aprendizagem. Isso acontece porque ainda não há uma identificação científica comum sobre Dificuldades de Aprendizagem que seja concordante entre diferentes áreas de conhecimento, e nem critérios legítimos para a sua definição e caracterização (que podem ser intrínsecos ou extrínsecos aos sujeitos). A classificação imprecisa e às vezes inconseqüente, leva alunos que, de fato, apresentam tais dificuldades, a não serem atendidos pelos serviços de apoio escolar e, em outras ocasiões, alunos que têm problemas de comportamento, problemas emocionais ou mesmo carência sócio-econômica passam a usufruir desses serviços. Dificuldades de aprendizagem e educação inclusiva 173 Diante desse contexto confuso, pensou-se em modificar a maneira de se classificar os alunos indicados para o atendimento da educação especial. Pesquisas constataram que muitos alunos com Dificuldades de Aprendizagem que poderiam se beneficiar do apoio especializado da educação especial eram excluídos desse serviço porque, só eram elegíveis para tal serviço, os que apresentavam alguma deficiência sensorial, motora, física ou cognitiva. E, nem sempre esses alunos precisavam, de fato, desse suporte. Foi no Relatório Warnock, documento publicado em 1978, resultado do trabalho coordenado por Mary Warnock, do Departamento de Educação e Ciência da Inglaterra, que modificouse as concepções e terminologias referentes aos alunos com insucesso escolar. Tal relatório foi resultado de uma investigação que durou quatro anos sobre as condições da educação especial da Inglaterra, na década de 70. De uma visão de deficiência, dificuldade ou desajuste mais determinista, centrada no sujeito, começam a ser considerados também fatores ambientais como sendo causadores dos problemas de aprendizagem. Substitui-se a nomenclatura referente às categorias de deficiência ou desajustamento social e educacional pela expressão necessidades educacionais especiais. Pretendeu-se com essa mudança desvincular a questão da dificuldade de aprendizagem à presença da deficiência, uma vez que muitos alunos que apresentam distúrbios de aprendizagem não têm necessariamente uma deficiência física, mental, sensorial ou múltipla. Entretanto, ambos os grupos têm necessidades educacionais especiais que exigem recursos educacionais não utilizados na educação escolar regular, para alunos com a mesma faixa etária. Essa mudança de enfoque tenta deslocar a ênfase do “aluno com deficiência” para situar-se na resposta educativa da escola, sem negar a condição vivida pelo aluno. Demonstra que apontar a deficiência, como atributo isolado do sujeito, pouco contribui para o seu desenvolvimento. Mesmo porque, a condição do sujeito depende da ação do meio que pode ou não suprir as suas necessidades. 174 Rosimar Bortolini Poker O Relatório sugere que a expressão necessidades educacionais especiais seja aplicada não para rotular o aluno, mas sim, para traduzir todas as exigências para seu progresso escolar. Inclui-se aí a eliminação de barreiras arquitetônicas; formação e competência dos educadores; adaptação de material didático; utilização de recursos especiais (material para alunos com cegueira, surdez, paralisia cerebral, etc.); sistema de suporte; orientação à família; etc. Nesse sentido, são considerados meios e recursos especiais de acesso ao currículo, adequações curriculares e intervenções no âmbito familiar e escolar no qual a criança está inserida. Vê-se então que o foco de atenção se deslocou da deficiência para o meio, no caso, as respostas educativas da escola que devem ser organizadas para suprir as necessidades de cada aluno para que ele venha a aprender. Para Marchesi e Martín (1995, p. 11) o termo necessidades educacionais especiais refere-se ao sujeito que: [...] apresenta algum problema de aprendizagem ao longo de sua escolarização, que exige uma atenção mais específica e maiores recursos educacionais do que os necessários para os colegas de sua idade. Aparecem, portanto, nesta definição, duas noções extremamente relacionadas: os problemas de aprendizagem e os recursos educacionais. Ao falar de problemas de aprendizagem e evitar a terminologia da deficiência, a ênfase situa-se na escola, na resposta educacional. Sem dúvida, esta nova concepção não nega que os alunos tenham problemas especificamente vinculados a seu próprio desenvolvimento. Uma criança cega ou com paralisia cerebral apresenta inicialmente algumas dificuldades que seus colegas não têm. No entanto, a ênfase consiste agora na capacidade do centro educacional oferecer uma resposta a suas demandas. Segundo as Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica de 2001, são considerados alunos com necessidades educacionais especiais: Dificuldades de aprendizagem e educação inclusiva 175 Educandos que durante o seu processo educacional apresentarem: I- dificuldades acentuadas de aprendizagem, compreendidas em dois grupos: a) Aquelas vinculadas a uma causa orgânica específica; b) Aquelas relacionadas a condições, disfunções, limitações ou deficiências. A alteração da definição do aluno com Dificuldades de Aprendizagem para aluno com necessidades educacionais especiais, aponta assim, para uma expectativa positiva. Entretanto, não suficiente. Isto porque não atingiu uma uniformidade em termos de discussão de estratégias de diagnóstico, de procedimentos de intervenção pedagógica e muito menos em termos da formação do professor para atuar com esses alunos. No Brasil, a terminologia necessidades educacionais especiais apareceu na década de 90, quando o modelo da educação inclusiva se disseminou. A partir daí o fenômeno da deficiência e/ou desajuste passou a ser concebido não mais em função da limitação que o sujeito porta, mas sim, em função da resposta educacional e das possibilidades de aprendizagem do educando, configurando-se uma perspectiva interativa. Mas, apesar da perspectiva inclusiva basear-se na visão interativa da deficiência ou mesmo da dificuldade de aprendizagem, observa-se que têm ocorrido muitos equívocos na implementação desse modelo de escola. Escola, inclusão e o aluno com necessidades educacionais especiais De acordo com os princípios da educação inclusiva o aluno com Dificuldades de Aprendizagem deve ser considerado um desafio, visto que, a escola, precisa se adaptar às suas necessidades, organizando-se para atendê-lo da melhor forma possível proporcionando-lhe seu pleno desenvolvimento. Estes alunos passaram a fazer parte da categoria de alunos com necessidades educacionais especiais e, por isso mesmo, receberam o 176 Rosimar Bortolini Poker rótulo de alunos “da inclusão”. Precisam ser “aceitos” pela escola, o que subentende, como acontece de forma equivocada com os alunos com deficiência, que passam a ser considerados alunos - problemas ou mesmo alunos incapazes. Dissemina-se a idéia deturpada de que a escola, ao ser acolhedora, deve respeitar o ritmo de cada aluno e sua condição social, cultural e econômica, sem se mobilizar para oferecer, de fato, a possibilidade de uma aprendizagem significativa para esses alunos, de forma a provocar a sua transformação. Os aspectos didáticos pedagógicos propriamente ditos, ou seja, que se referem a intervenção proporcionada pela escola e pelo professor são, de certa forma, negligenciados. Além disso, não são consideradas as especificidades da aprendizagem de alunos que têm comprometimentos orgânicos e/ ou neurológicos. Outro aspecto a ser ressaltado é que, a partir do paradigma da educação inclusiva, a educação especial assume também o alunado que apresenta Dificuldades de Aprendizagem, além de atuar com os alunos com deficiência. Carvalho (2004, p. 76) afirma que encaminhar alunos com Dificuldades de Aprendizagem para classes especiais: É criticável na medida em que, historicamente, a educação especial se originou e se organizou para o atendimento educacional escolar de alunos com deficiência como sistema paralelo à educação comum, ou ensino regular. Alunos com distúrbios de aprendizagem não são, conceitualmente, portadores de deficiência, não devendo ser segregados. Isso é extremamente perigoso porque como não existe um teste ou método de avaliação que seja capaz de diagnosticar ou identificar de forma objetiva um aluno com Dificuldades de Aprendizagem ou os problemas de leitura ou escrita que ele apresenta, uma grande porcentagem de alunos está sendo encaminhada de forma errônea para os serviços especializados. Na verdade, muitos desses alunos apresentam dificuldades decorrentes de problemas relacionados a uma Dificuldades de aprendizagem e educação inclusiva 177 concepção de ensino e de aprendizagem tradicionais que não considera a ação transformadora do professor no sentido de proporcionar as melhores condições para o aluno se desenvolver. Diferentemente das deficiências sensoriais, físicas ou motoras, as Dificuldades de Aprendizagem não podem ser tratadas como decorrentes de apenas uma causa. É um conjunto de condições extrínsecas e intrínsecas ao sujeito que podem provocar tal problema que exige procedimentos psicopedagógicos diferenciados e individualizados. Segundo Carvalho (2004, p. 71) Parece impossível, pois, compreender ou explicar as dificuldades de aprendizagem sem levar em conta os aspectos orgânicos, psicológicos ou sociais, banalizando a importância de cada um, isoladamente ou desconsiderando suas intrincadas inter-relações. Na verdade, há que examinar o dinamismo existente entre todos os fatores, sem atribuir unicamente a um deles a responsabilidade pelo sucesso ou fracasso escolar do aluno. Por conta disso, torna-se fundamental rever o processo de avaliação desses alunos. Só a partir de uma avaliação detalhada e interdisciplinar do potencial de aprendizagem, capaz de coletar dados sobre as dificuldades do aluno no que tange aos processos cognitivos subjacentes aos diferentes conteúdos, bem como aos aspectos sociais, familiares, emocionais e escolares é que será possível, de fato, planejar estratégias pedagógicas individualizadas que promovam o seu desenvolvimento. Avaliação e intervenção passam a se relacionar diretamente. Interessante notar o que vem acontecendo atualmente. Em nome da escola denominada “inclusiva”, o aluno com Dificuldades de Aprendizagem segue sua trajetória escolar sem ter a possibilidade de se desenvolver em sua plenitude. As limitações do nosso sistema educacional tradicional não são reconhecidas e muito menos reveladas ou enfrentadas. Dessa forma tais alunos são aceitos de maneira passiva pelo sistema educacional e pelo professor em sala de aula que não se 178 Rosimar Bortolini Poker preocupa em identificar os fatores que levaram a essas dificuldades e muito menos em organizar um currículo diferenciado de tal forma a atender às necessidades educacionais específicas dos educandos. A escola, como não se sente responsável pelo problema, não revê seus princípios, e nem suas práticas. Conseqüentemente, não realiza avaliação diferenciada e, conseqüentemente, não planeja estratégias pedagógicas que viabilizem e respeitem o estilo e as condições de aprendizagem do educando. Ao fazer uma análise da definição a respeito do conceito de necessidades educacionais especiais, percebe-se que, a expressão conforme foi definida, não conseguiu, de fato, deslocar o foco do problema do aluno, direcionando para as respostas educacionais específicas e adequadas exigidas para sua aprendizagem. Observa-se claramente que houve um desvirtuamento desse objetivo. A expressão ao evitar enfatizar os atributos ou condições pessoais (orgânicas ou não) que podem interferir na escolarização do aluno, permitiu aos sistemas educacionais transferirem o foco para as causas externas que provocam a condição da não aprendizagem. E, como essas condições (sociais, familiares, econômicas), não podem ser modificadas pela escola, foram tratadas como simples diferenças do alunado que a escola, denominada inclusiva, precisa lidar. Ou seja, ao enfatizar e culpabilizar as condições limitadoras do meio de onde a criança provém, como causadoras dos problemas de aprendizagem, isenta-se de certa maneira, o sistema educacional, da responsabilidade pelo fracasso escolar desse alunado que compõe a maioria das crianças da escola pública brasileira. Essa maneira de compreender e enfrentar a questão do fracasso escolar é muito diferente do que propõe, de fato, uma educação inclusiva, uma educação de qualidade para todos. Uma educação verdadeiramente inclusiva reconhece a diversidade do seu alunado e, por isso mesmo, adapta-se às suas características de aprendizagem. Oferece respostas específicas adequadas e diversificadas, que proporcionam para o aluno condições de superar ou compensar as suas dificuldades de aprendizagem, independentemente das causas que provocaram tal problema em seu processo de escolarização. Dificuldades de aprendizagem e educação inclusiva 179 Por conta disso, quando surge a discussão sobre a inclusão, a primeira questão que deveria ser tratada é a exclusão social e econômica. Até 1990, só os alunos com deficiência eram explicitamente excluídos do sistema regular de ensino. Depois, constatou-se que a escola utilizava também de forma implícita o mecanismo de exclusão com todos aqueles que não se enquadravam no modelo de aluno idealizado por ela, ou seja, excluía o alunado das classes sociais menos favorecidas. Daí emergem indagações como: a quem a escola pública presta serviço? À classe média? Nesse sentido, duas reflexões precisam ser feitas: – O aluno que não aprende porque vive em condição de pobreza extrema que provoca limitações de ordem emocional, lingüística e até mesmo intelectual, não deve ser considerado, simplesmente, como um aluno com necessidades educacionais especiais que aprende com instrumentos e recursos pedagógicos diferentes. Essa é uma questão social muito mais ampla e complexa! A escola, por isso mesmo, não pode se responsabilizar sozinha por esse problema. Afinal, não podemos naturalizar a miséria e muito menos camuflar o problema. Não adianta criar uma escola de pobres para pobres. É preciso oferecer condições de vida adequadas para que todos, de fato, tenham as mesmas possibilidades de aprender. Não é desqualificando o ensino que se garante a igualdade de oportunidades. Isso constitui um grande engodo. – Se as dificuldades de aprendizagem decorrerem da inabilidade da escola em lidar com a sua clientela, ou seja, se a escola continua a trabalhar dentro de um modelo tradicional e homogeneizador de ensino, que impede o desenvolvimento do aluno das classes populares, a dificuldade não é de aprendizagem e sim de “ensinagem”, devendo, o sistema educacional, rever suas concepções de ensino e de aprendizagem. Quando se instaura uma nova lógica para tratar da questão do papel da escola no processo de construção de uma sociedade inclusiva, fala-se justamente que todos devem ter igualdade de direitos e que a 180 Rosimar Bortolini Poker escola constitui-se na instância privilegiada ao favorecer a convivência com a diversidade, principalmente num país como o Brasil, com alto índice de pobreza e miséria social, desemprego e trabalho infantil. Nesse sentido, cabe à escola organizar-se para proporcionar as melhores condições possíveis de aprendizagem ao aluno, uma escola baseada na teoria construtivista. Para tanto, é necessário mudar os pressupostos epistemológicos que a sustentam. Isso quer dizer rever a atuação da escola, sua metodologia de ensino, os recursos utilizados, sua estrutura e sua organização, seu currículo, o número de alunos da classe, a formação dos professores, o salário dos profissionais da educação, etc. Conclui-se então que é preciso não só resignificar o conceito de Dificuldades de Aprendizagem como também rever o papel da escola em uma sociedade que assume o paradigma da inclusão. Referências bibliográficas BRASIL. Conselho Nacional de Educação. CEB. Parecer n.17, de 03 de julho de 2001. Estabelece diretrizes nacionais para a educação especial na educação básica. Brasília: MEC, 1990. CARVALHO, R. E. Removendo barreiras para a aprendizagem: educação inclusiva. Porto Alegre: Mediação, 2000. COLL, C.; PALACIOS, J.; MARCHESI, A. Desenvolvimento psicológico e educação: necessidades educativas especiais e a aprendizagem escolar. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. SENF, G. M. Issues surrounding the diagnosis of LD. In: KRATOCHWILL, T. (Ed.). 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Partimos do pressuposto de que o conhecimento dos estilos de aprendizagem e de como eles influem na aprendizagem de Língua Estrangeira (LE) pode subsidiar tanto novas pesquisas quanto o trabalho docente voltado ao ensino e à formação de professores, pois permite compreender algumas das possíveis razões do surgimento de dificuldades de aprendizagem nesse campo. Palavras-chave: Estilos de aprendizagem. Dificuldades. Língua Estrangeira. Adult english language students’ learning styles and achievement rates Abstract: This article is aimed at presenting part of an investigation which studied how the relationship between the learning styles global/analytical and introvert/extrovert of a group of adult Brazilian students of English influenced their achievement rates. We departed from the presumption that the knowledge * Doutora em Educação Escolar. Docente do Centro Universitário Central Paulista (UNICEP), São Carlos – São Paulo – Brasil. E-mail: [email protected] APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano V n. 9 p. 181-202 2007 182 Renata Maria Moschen Nascente about learning styles and how they influence foreign language learning might subsidize new investigations as well as teaching methodologies aimed at both: regular classrooms and teachers’ education processes, because it enhances the comprehension of the possible reasons of the arising of learning difficulties in this field. Key-words: Learning styles. Difficulties. Foreign language. Introdução Este estudo objetiva introduzir uma discussão sobre a influência de alguns estilos de aprendizagem nos níveis de rendimento e no surgimento de dificuldades de estudantes adultos de Língua Inglesa. Partimos do pressuposto de que a compreensão desse relacionamento tem o potencial de subsidiar adequações pedagógicas direcionadas à amenização dessas dificuldades. Decidimos assim, na primeira parte do trabalho, fazer uma revisão sobre as origens e desdobramentos das pesquisas sobre os estilos de aprendizagem. Em seguida, estabelecemos uma ligação entre essas investigações e a área de ensino de Língua Estrangeira (LE). Finalmente, apresentamos um trabalho de pesquisa (NASCENTE, 2004) que investigou esse relacionamento em um grupo de estudantes brasileiros adultos de Língua Inglesa. Percorremos esse caminho baseados na premissa de que o conhecimento dos estilos e de como eles influem na aprendizagem de LE pode subsidiar tanto novas pesquisas como o trabalho docente e a formação de professores nesse campo. Origens e desdobramentos dos estudos sobre os estilos de aprendizagem Reportamos-nos aos trabalhos de Claxton e Ralston (1978) e Lemes (1998) nos quais foram inventariados os primórdios dos estudos sobre estilos de aprendizagem. Lemes (1998) demarcou que a necessidade de estabelecer as maneiras pelas quais os seres humanos constituem a sua individualidade remonta ao final do século XVII. Entretanto, o Estilos de aprendizagem e rendimento de estudantes adultos de língua inglesa 183 surgimento dos estudos específicos sobre os estilos de aprendizagem como os conhecemos hoje ocorreu na década de quarenta do último século. O autor explica ainda que, durante a década de cinqüenta, essa área da psicologia se expandiu, com a proliferação de estudos bastante diversificados sobre os estilos de aprendizagem. Houve assim o desenvolvimento de uma grande variedade de conceitos nesse campo, que se deveu às diferentes escolas de pensamento psicológico que influenciaram os estudos sobre os estilos de aprendizagem. Essas influências foram: a psicanálise e as psicologias da gestalt, cognitiva e comportamental. Esclarecedora da diversidade das investigações desenvolvidas sobre os estilos a partir desses trabalhos iniciais é a obra de Claxton e Ralston (1978), na qual os autores elaboraram um estado da arte sobre as pesquisas concluídas até então sobre estilos cognitivos, de personalidade e de aprendizagem. Eles fizeram também um mapeamento integrando os diversos estilos. O quadro a seguir apresenta uma síntese do trabalho dos autores. (continua) MODELO DESCRIÇÃO REFERÊNCIAS 1.Dependência A dependência de campo se caracteriza pelos Witkin et al (1954); ou independên- modos globais de percepção. Os independentes Witkin (1976) cia de campo de campo, pelos modos analíticos de percepção. 2. Conceituação O estilo analítico inclui a diferenciação entre analítica ou não atributos e qualidades. O estilo não analítico analítica pode responder de maneira mais relacional ou temática. A impulsividade é caracterizada por respostas 3. Impulsividade rápidas, a reflexão por respostas mais lentas e reflexão e deliberadas. A pessoa impulsiva é mais rápida, mas erra mais. 4. Capacidade de correr riscos ou medo de correr riscos O indivíduo capaz de correr riscos o faz mesmo quando as chances de sucesso são muito pequenas. O outro tipo, que tem medo de correr riscos, é caracterizado pela relutância de correr riscos a menos que a possibilidade de sucesso seja muito grande. Kagan et al (1960);Mesick e Kogan (1963) Kagan (1965) Kogan; Wallach (1964) 184 Renata Maria Moschen Nascente (conclusão) 5. Sistemático ou intuitivo 6. Nivelador ou agudo O sistemático demonstra inclinação para transformar dados em conceitos relacionados a outros retidos previamente. Ele inclina-se a desenvolver seqüências. Já McKenney; Keen (1965) o intuitivo tende a absorver dados de maneira bruta, desenvolvendo livremente as suas idéias dos dados propostos e ainda separa as partes do todo. Esses tipos demonstram variações no que se refere à assimilação e à memória. O nivelador tende a assimilar novos estímulos dentro de categorias previamente estabelecidas, enquanto o agudo tende a diferenciar novas informações das que tinham sido previamente estabelecidas. 7.Cognitivo complexo ou simples Apresentam diferenças na tendência de ver o mundo de maneira multidimensional. Os complexos se caracterizam pelo uso de integração hierárquica, enquanto os simples mostram-se no uso de dimensões e diferenças. 8. Detalhista e focado Envolvem a identificação de informação relevante e irrelevante nas tentativas de resolver um problema. 9. Controle flexível e restrito O tipo controle restrito demonstra maior suscetibilidade a distrações, o tipo controle flexível demonstra resistência a interferências. 10. Tolerância ou intolerância à incongruência Indivíduos tolerantes à incongruência demonstram facilidade para perceber dados e situações não convencionais. A tolerância é caracterizada por uma grande capacidade de adaptação a percepções não usuais. Os intolerantes revelam-se pela demanda de mais dados e explicações antes que algo não usual seja aceito. Gardner (1959) Harvey et al (1961);Kelly (1955) Schlesinger (1954) Klein (1954) Klein; Gardner; Schelsinger (1962) Como se pode observar, em um período de mais ou menos vinte anos de pesquisas sobre os estilos cognitivos e de aprendizagem institui-se uma diversidade muito grande de conceitos e paradigmas. Deve-se levar em conta ainda o fato de que existe um certo nível de Estilos de aprendizagem e rendimento de estudantes adultos de língua inglesa 185 sobreposição entre esses conceitos, o que interferiu também nos instrumentos de investigação. Essa é uma situação que perdura até os nossos dias. Assim, uma das maiores dificuldades de um pesquisador que queira trabalhar com os estilos de aprendizagem é decidir quais deles são mais adequados aos seus objetos de estudo. Uma compreensão sobre como os estilos de aprendizagem influenciam os processos de ensino e aprendizagem de LE só pode ser adquirida se entendermos como esses estilos têm sido agregados pelo campo da educação. Por isso, decidimos rever alguns dos principais trabalhos e paradigmas sobre eles, para só posteriormente integrá-los à área de Língua Estrangeira, em estudos que propuseram relacionamentos entre as duas áreas. Estilos e estratégias de aprendizagem Tanto Claxton e Ralston (1978) quanto Lemes (1998) definiram os estilos como uma maneira consistente pela qual um aluno responde a um determinado estímulo e como ele o utiliza no contexto de aprendizagem. Esse pressuposto nos leva a crer que se fosse possível combinar determinados estilos de aprender com certas formas de ensinar seriam facilitadas as interações em sala de aula, o que, a princípio, consideramos uma vantagem para a eficiência dos processos de ensino e aprendizagem. Sternberg e Grigorenko (2001), por sua vez, preocuparamse com o maior problema teórico no que concerne aos estilos, e um dos que mais interessam aos professores de LE, que seria a diferenciação entre estilos e estratégias de aprendizagem. Para os autores, os estilos entram em ação de maneira inconsciente, enquanto as estratégias se constituem em escolhas conscientes de alternativas. Eles ordenam esses processos da seguinte forma: primeiramente vêm os estilos, como preferências, e, posteriormente, as estratégias, que seriam uma concretização dos estilos. Complementa essa perspectiva o trabalho de Renzulli e Dai (2001). Nele os autores explicam que os estilos de aprendizagem 186 Renata Maria Moschen Nascente seriam influenciados tanto por características inatas dos indivíduos quanto pelo meio social e educacional no qual se inserem. De acordo com o retorno recebido pelo indivíduo no que tange os seus estilos, ele pode modificá-los, se perceber alguma necessidade de adaptação, ou reforçá-los, transformando-os em atitudes intencionais, o que estenderia o estilo à categoria de estratégia de aprendizagem. Eles explicam que do ponto de vista do desenvolvimento, o indivíduo interage com o meio como uma pessoa total, com competências adquiridas ou a adquirir, que são tanto os pressupostos como os resultados dessa interação. Concordamos também com Watkins (2001) em sua premissa de que não deve existir uma divisão rígida entre os estilos e as estratégias de aprendizagem. Talvez a estratégia possa ser considerada uma concretização do estilo, que, por sua vez, se reestrutura a partir do retorno fornecido pela própria prática de uma estratégia. Essa visão dinâmica do processo de aprendizagem deve nos ajudar a descobrir quais os tipos de conflitos que devem aparecer nas interações ocorridas em contextos de ensino e aprendizagem de LE, guiando-nos na compreensão das dificuldades de aprendizagem surgidas nesse processo. Também nos alinhamos com Riding (2001) e Biggs (2001) e Nascente (2004) quando eles levantam a importância dos professores conhecerem seus próprios estilos de aprendizagem, que influenciam diretamente suas práticas pedagógicas. A identificação dos estilos de seus alunos pelos professores deve propiciar a elaboração de estratégias de ensino que levem em consideração as maneiras pelas quais os alunos abordam as atividades de aprendizagem propostas, o que deve diminuir conflitos e dificuldades e fomentar a aprendizagem. Implicações pedagógicas dos estilos de ensinar e aprender Entwistle, McCune e Walker (2001) situam três instâncias que compõem o trabalho do professor em sala de aula: suas concepções Estilos de aprendizagem e rendimento de estudantes adultos de língua inglesa 187 sobre o ensino, que ele forma ao longo da vida; os estilos de ensino, diretamente derivados dos estilos de aprendizagem e de sua personalidade, e as abordagens de ensino, baseadas em sua formação profissional, das quais derivam os métodos e técnicas de ensino que promovem determinadas atividades em sala de aula em detrimento de outras. Para os autores existe uma interação dinâmica entre essas instâncias que são influenciadas e influenciam o contexto sócioeducacional no qual se inserem e apresentam tanto características mutáveis quanto estáveis. Portanto, podemos dizer que os estilos pelos quais os professores aprendem e, consequentemente, ensinam, constitui-se em uma influência básica nas formas pelas quais eles administram as situações de aprendizagem sob sua responsabilidade. Sternberg e Zhang (2001) e Nascente (2004) concordam em duas implicações pedagógicas do conhecimento sobre os estilos para o trabalho pedagógico dos professores. A primeira é que os professores devem perceber as razões pelas quais alguns alunos têm baixo rendimento, que não deve ser a falta de habilidades acadêmicas, mas um desencontro entre seus estilos e a maneira em que a aprendizagem lhes é proposta. A segunda é que os professores devem ficar atentos aos estilos de seus alunos, aos estilos que promovem e aos estilos que punem em sala de aula. Sternberg e Zhang (2001) e Nascente (2004) propõem exemplos de trabalhos com os estilos a serem realizados com os alunos em sala de aula. Dessa forma, os professores podem encorajar estilos de aprendizagem que sejam efetivos permitindo que os alunos dêem a sua própria opinião sobre os assuntos que estão aprendendo e que possam escolher seus materiais de estudo e projetos. Os professores podem ainda incentivar uma abordagem aprofundada da aprendizagem, promovendo um entendimento dos materiais de ensino. Nesse contexto, os alunos devem se tornar mais independentes e mais autônomos no que concerne às suas escolhas de estilos de aprendizagem. Portanto, os autores assumem uma visão dinâmica dos estilos, acreditando que além de influenciados por 188 Renata Maria Moschen Nascente características individuais, eles têm muito a ver com as vivências de cada um. Assim, consideram que os estilos são moldados pelas experiências do indivíduo na sociedade. As conseqüências dessas concepções para a educação são muito profundas. Se os estilos também são concebidos na sociedade, eles são, conseqüentemente, mutáveis. Portanto, os professores podem fomentar estilos que sejam apropriados a determinados conteúdos, ou adaptar esses conteúdos aos estilos dos alunos. Nesse caminho, os professores podem variar bastante suas metodologias de ensino, utilizando diversos instrumentos de avaliação e trabalhar com os alunos para que eles conheçam seus próprios estilos para que possam maximizar suas chances de aprender. Estilos de aprendizagem em Língua Estrangeira (LE) Talvez uma das maiores estudiosas do relacionamento entre estilos de aprendizagem e processos de ensino de aprendizagem de LE, Ehrman (1996) coloca que os estilos de aprendizagem são preferências demonstradas por indivíduos quando eles se propõem a aprender algo. Essas preferências são algumas características gerais, mais do que comportamentos específicos. Tais preferências se concretizam por intermédio de estilos peculiares de aprendizagem. Para a autora, poucos alunos conhecem a maneira pela qual aprendem. Esporadicamente, eles podem classificar-se como aprendizes “visuais” ou dizerem-se propícios a aprender gramática, por exemplo, por intermédio de regras claramente estabelecidas. Por outro lado, o professor geralmente acessa superficialmente o estilo de aprendizagem dos alunos fazendo inferências e observando-os em sala de aula. Para Ehrman, esse tipo de conhecimento não é suficiente para que o professor compreenda as dificuldades de aprendizagem dos alunos e os auxilie a superá-las. A autora explica que existe uma polaridade entre os estilos de aprendizagem dentro de um determinado contínuo. Dessa forma o Estilos de aprendizagem e rendimento de estudantes adultos de língua inglesa 189 grau de preferência por um estilo, por exemplo, analítico, não implica necessariamente que uma pessoa aprenda cem por cento de maneira analítica e zero por cento de maneira global. A proporção pode ser oitenta por vinte por cento ou setenta por trinta. Para uma minoria, entretanto, os estilos de aprendizagem se estabelecem de maneira rígida e ultrapassam a barreira da preferência. Nesses casos, o efeito do desajuste entre o estilo do aluno e o currículo e metodologia de ensino a ele oferecido é mais do que apenas um problema de desconforto ou perda de eficácia. Pode haver uma grande perda de eficiência de aprendizagem ou ainda uma total inabilidade de aprender dentro daquele determinado contexto. Se o programa for metodologicamente muito rígido e o aluno também, em relação aos seus estilos de aprendizagem, ele pode ser rotulado como incapaz de aprender línguas, passando acreditar nisso como se fosse realmente verdade. Baseados em Nascente (2004) podemos afirmar que o aprendiz mais flexível no que se refere aos seus estilos de aprendizagem é aquele que terá mais facilidade de aprender, independente do contexto ou da área do conhecimento. Entretanto, acreditamos que poucas pessoas sejam completamente flexíveis. Para a maioria dos indivíduos, principalmente para os adultos, que costumam ter estilos relativamente consolidados, a aprendizagem eficaz depende de um determinado nível de coerência entre seus estilos, os programas nos quais estão inseridos e o trabalho que seus professores realizam em sala de aula. Talvez do trabalho com os estilos de aprendizagem surja uma possibilidade de se estruturar uma discussão sobre o conceito de aptidão para a aprendizagem de línguas. Como sabemos que na aprendizagem de LE o aluno tem que lidar com diversos sistemas na hora de utilizá-la como meio de comunicação, os estilos de aprendizagem que favoreçam essa capacidade de lidar com diferentes sistemas ao mesmo tempo devem propiciar uma produção lingüística mais apurada e, portanto, mais efetiva do ponto de vista comunicativo. 190 Renata Maria Moschen Nascente Ehrman (1996) também alerta para o fato de que a categorização dos estilos de aprendizagem não deixa de ser uma simplificação, para que se dê conta de sua complexidade. Geralmente, as dimensões de um determinado estilo podem ser analisadas de maneira simples ou composta, ou seja, associadas a outros estilos ou isoladamente. Essas dimensões são ainda bipolares, atuando em um determinado ponto de um contínuo, como já foi explicado. Finalmente, Ehrman (1996) explica que existem publicadas diversas categorias de estilos de aprendizagem e também numerosos instrumentos de aferição deles no campo do ensino e da aprendizagem de LE, assim como caminhos para analisá-los. Baseados em Nascente (2004), pensamos que cabe ao pesquisador e/ou professor se debruçar sobre a questão do levantamento dos estilos de aprendizagem, decidir quais as categorias de análise utilizar e, conseqüentemente, adequar os instrumentos de pesquisa aos seus objetivos. Reid (1998) explica em seu trabalho como os professores de LE podem acessar os estilos para lidar com eles em sala de aula. O autor toma por base o pressuposto de que alunos e professores são companheiros na tarefa de ensinar e aprender e que o conhecimento dos estilos de ensino e aprendizagem é essencial para que os alunos tenham oportunidades de avantajar-se de seus pontos fortes nessa tarefa. Já as estratégias de aprendizagem em contextos de ensino de LE se agrupam em três categorias: meta-cognitivas: auto-observação e auto-avaliação; estratégias cognitivas: tomar notas e fazer inferências; estratégias sociais e afetivas: fazer perguntas para obter esclarecimentos e trabalho cooperativo. Para Nascente (2004) o conhecimento dos estilos dos alunos por parte de seus professores de LE pode ser acessado de diversas maneiras, tais como questionários, escalas, diários, entrevistas e dinâmicas. Os dados levantados devem elevar o nível de consciência tanto do professor quanto dos alunos sobre seus respectivos estilos, fazendo com que compreendam como ocorre a aprendizagem, quais as escolhas que eles têm nesses processos e como podem identificar seus pontos fortes e fracos. Estilos de aprendizagem e rendimento de estudantes adultos de língua inglesa 191 No que diz respeito a trabalhos de pesquisa nessa área, consideramos que seja necessário ao investigador adaptar ou criar um instrumento que realmente “meça” o que ele se propõe a medir e que seja adequado do ponto de vista social, cultural e lingüístico à população com a qual deseja trabalhar. As possibilidades de reaplicação do instrumento, tanto previamente quanto posteriormente à pesquisa proposta, também devem ser levadas em consideração. Se essas condições não são atendidas, a validade do trabalho acaba tornando-se um tanto quanto duvidosa, não sendo, portanto, possível a generalização dos resultados. Resultados duvidosos podem depreciar tanto esse campo de investigação como fornecer contribuições imprecisas, que podem prejudicar o trabalho pedagógico de professores que neles se baseiem. Trabalhos sérios que focalizem a relação entre estilos de ensinar e aprender, por outro lado, devem ter o potencial de proporcionar aos professores uma ampliação de seus conhecimentos sobre o assunto, o que deve propiciar ações intencionais por parte deles e também dos alunos, notadamente se forem adultos, com a intenção de maximizar potencialidades individuais de aprendizagem. Um professor que realmente entende os estilos de aprendizagem de seus alunos e que acredita incondicionalmente que eles possam aprender dará oportunidades de sucesso a todos eles. Tyacke (1998) descreve um projeto que identificou alguns grupos de estilos em estudantes adultos de inglês como segunda língua. Seu propósito foi o de demonstrar que as diferenças de estilos devem ser levadas em consideração na elaboração de currículos, programas e avaliações. A autora sugere algumas estratégias de trabalho em sala de aula. A primeira delas é que o contexto de aprendizagem deve ser flexível, permitindo diferentes disposições de lugares na sala e o exercício de diferentes papéis por parte de alunos e professores, como por exemplo, terapeuta e paciente, especialista e aluno, consultor e cliente e facilitador e companheiro. Deve-se ainda promover a autonomia dos alunos com opções e oportunidades de variação, elaborando atividades que atendam aos diferentes estilos 192 Renata Maria Moschen Nascente de aprendizagem. A segunda é que as avaliações também devem ser flexíveis. Por exemplo, pode-se incluir no programa uma variedade de procedimentos de avaliação que devem permitir aos alunos escolher diferentes maneiras de demonstrar que eles alcançaram os objetivos propostos. Os alunos devem receber retorno sobre sua aprendizagem de forma regular e sistemática para que o curso do processo possa ser mudado de acordo com suas dificuldades. As tarefas contidas nas avaliações devem atender a diferentes estilos. A autora finaliza seu trabalho afirmando que os professores são os indivíduos que têm a maior oportunidade possível de observação e experimentação em sala de aula e que, por causa disso, eles são as pessoas mais indicadas para investigar os efeitos de um determinado programa sobre um aluno. Esse tipo de pesquisa não precisa ser intrusivo, e deve permitir aos alunos participar de maneira ativa na investigação de forma que eles desenvolvam sua própria percepção no projeto, que pode, em última instância, melhorar o trabalho docente como um todo. Portanto, de acordo com Reid (1998), Tyacke (1998) e Nascente (2004), os problemas relacionados aos estilos e estratégias de aprendizagem são elementos que influenciam a geração de baixo rendimento de aprendizagem de LE de alunos adultos. Entretanto, os autores alertam para a existência de outros fatores, que escapam à área educacional, na geração das dificuldades e que o trabalho com estilos e estratégias não é uma panacéia capaz de solucionar todos os problemas vivenciados pelos alunos. Para Brown (1994), aprendizes de línguas bem sucedidos são aqueles que sabem como manejar seus próprios estilos e adequar as suas estratégias com o objetivo de aprender a língua-alvo. Isso inclui, ainda, ser capaz de superar possíveis deficiências inerentes a um determinado estilo. Por exemplo, uma pessoa que se entende como sendo excessivamente global, pode, desde que consciente de que isso deve dificultar sua aprendizagem, tentar superar esse estado, esforçando-se para adquirir algumas estratégias ligadas ao estilo analítico. Esse processo só ocorrerá se alunos e professores estiverem conscientes da importância dos estilos no processo de aprendizagem. Estilos de aprendizagem e rendimento de estudantes adultos de língua inglesa 193 O papel dos estilos na aprendizagem de estudantes brasileiros de Língua Inglesa No que diz respeito a trabalhos realizados no Brasil relacionando o corpo teórico apresentado sobre estilos e processos de ensino e aprendizagem de LE, nos reportamos ao trabalho de Nascente (2004) que buscou compreender as dificuldades de aprendizagem de um grupo de estudantes adultos de Língua Inglesa dentro de uma perspectiva multifatorial, na qual se destacaram os estilos de aprendizagem: global/ analítico e introvertido/extrovertido, considerados pela autora como os mais relevantes na realidade educacional estudada. Metodologia da investigação A metodologia utilizada nessa investigação foi descritiva (SELIGER; SHOHAMY, 1990), pela necessidade de compreender fenômenos que ocorrem naturalmente e que estão conectados com o processamento e o desenvolvimento dos estudantes de LE. A pesquisa descritiva não utiliza procedimentos que possam de alguma forma manipular a situação de aprendizagem, sendo geralmente motivada por questões específicas ou hipóteses derivadas de teorias oriundas da área de aquisição de segunda língua ou de campos correlatos. A pesquisa descritiva é útil, dessa forma, para caracterizações dos fatores ligados à aprendizagem de LE. Podemos dizer que a pesquisa de Nascente (2004) se adequou ao paradigma descritivo por ter surgido a partir de um problema heurístico, que foi o baixo rendimento de aprendizagem em um grupo de estudantes de Língua Inglesa. Visando o estudo desse problema, foi elaborada uma hipótese principal, norteadora do trabalho, que foi a de que um dos elementos causadores do baixo rendimento seriam os conflitos entre estilos de ensino e aprendizagem. Finalmente, foram levantados dados que tiveram como objetivo captar informações sobre os estilos de aprendizagem dos alunos e de seus professores como eles se apresentam na realidade de aprendizagem estudada, sem nenhum tipo de manipulação. 194 Renata Maria Moschen Nascente Dentro do paradigma descritivo, a abordagem analítica foi escolhida devido à proposta de estudar os estilos de aprendizagem como uma chave para a compreensão de um problema bastante geral, que seria o baixo nível de aprendizagem apresentado por alguns estudantes brasileiros adultos de Língua Inglesa. Nesse processo foram utilizados procedimentos analíticos, cada estilo foi estudado da forma mais aprofundada possível. Deve-se ressaltar, entretanto, que esse detalhamento não teve como objetivo o conhecimento de cada fator isoladamente, ao contrário, buscou-se no trabalho entender como os estilos interagem favorecendo ou dificultando a aprendizagem de LE. Dessa maneira, Nascente (2004) realizou uma investigação descritiva, analítica e dedutiva. A preferência pela dedução ocorreu pelo fato dos alunos pesquisados pertencerem a um grupo social e etário relativamente uniforme, adultos de nível sócio-econômico médio/alto e educacional médio e/ou superior. Ao estudar um grupo que não apresentava variações etárias, socioculturais e econômicas que poderiam justificar o surgimento de baixos rendimentos de aprendizagem, a autora considerou relativamente seguro partir da hipótese de que as diferenças nas maneiras de ensinar dos professores e de aprender dos alunos poderiam ser consideradas como elementos na geração de suas dificuldades. Ao traçar seus objetivos de pesquisa mais para o pólo dedutivo, Nascente (2004) utilizou alguns conceitos oriundos da psicologia cognitivista, já trabalhados na área de lingüística aplicada, mais precisamente na área de aprendizagem de LE, e, a partir deles, gerou hipóteses de trabalho a serem testadas por intermédio de instrumentos especialmente elaborados para essa pesquisa, que foram: livros didáticos utilizados pelos alunos-sujeitos, suas provas orais e escritas e suas autoavaliações. Foram ainda elaborados e aplicados dois questionários. O primeiro deles baseado em um instrumento de Oxford (1998) – SAS –Style Analysis Survey, tratou-se de uma escala de afirmações, dez para cada estilo estudado, com diferentes níveis de concordância a serem Estilos de aprendizagem e rendimento de estudantes adultos de língua inglesa 195 assinalados pelos alunos: nunca, algumas vezes, freqüentemente, sempre. Esse instrumento também possuía duas questões qualitativas, que tinham como objetivo aferir as razões pelas quais os alunos estavam estudando inglês e dar a eles a chance de fazer quaisquer observações sobre o instrumento no seu final. Os próprios professores pesquisados aplicaram o questionário em seus grupos. Ao receberem de volta os questionários, eles foram instruídos a marcar com um asterisco, no canto superior direito da primeira folha do questionário, se o aluno que o respondeu apresentava algum tipo de dificuldade de aprendizagem. Foi explicado a eles que dificuldade de aprendizagem poderia ser considerada como qualquer área na qual o aluno tinha um desempenho abaixo da média do esperado para o seu nível. Foi solicitado ainda que eles escrevessem abaixo do asterisco as áreas nas quais os alunos apresentavam dificuldades, por exemplo, escrita, produção oral ou gramática. Responderam a esse questionário 183 alunos adultos de nível intermediário e doze de seus professores. Aferir os estilos dos professores foi essencial na medida em que um dos nossos pressupostos é que os estilos de ensinar estão diretamente relacionados aos estilos de aprendizagem. O segundo questionário foi montado para complementar as informações levantadas pelo primeiro. Sua natureza era qualitativa, contendo questões relacionadas às experiências de aprendizagem de inglês anteriores dos pesquisados, além de aferir quais as maneiras de ensinar dos professores que mais favoreciam ou desfavoreciam suas aprendizagens. Esse questionário foi respondido por cerca de 30% dos alunos. Discussão dos resultados Para que compreendamos os resultados da pesquisa de Nascente (2004), é necessária uma descrição das dimensões global e analítica, que têm sua origem nos estilos dependente e independente de campo, como dimensões que influenciam estruturalmente as maneiras pelas 196 Renata Maria Moschen Nascente quais os indivíduos pensam, vêem e respondem a informações. Isso afeta a forma pela qual eles organizam os insumos recebidos, percebem suas situações de trabalho e se relacionam com outras pessoas. Os globais vêem as situações como um todo e são capazes de obter uma perspectiva geral e apreciá-la dentro de um contexto mais amplo. Em contraste, os analíticos vêem uma situação como uma coleção de partes e, freqüentemente, focalizam um ou dois aspectos da situação de cada vez, excluindo os outros. Existem os tipos intermediários entre os dois que conseguem permanecer no meio dos dois extremos, o que deve dar a esses indivíduos as vantagens dos dois estilos. De acordo com os resultados de Nascente (2004) podemos afirmar que ambas as dimensões podem facilitar ou dificultar processos de aprendizagem de LE. A desvantagem dos globais é que eles têm dificuldades em enxergar as partes, tais como diferenças ortográficas, que podem causar dificuldades de comunicação tanto originadas em aspectos semânticos como sintáticos. Mesmo quando eles conseguem fazer essas diferenciações, elas podem não ser nítidas o suficiente. Para a autora, por outro lado, os analíticos focalizam apenas um aspecto de cada vez, podendo distorcer e /ou exagerar uma parte do todo. Assim, um aprendiz que tende para o pólo analítico pode se ater a detalhes, por exemplo, de pronúncia, que diminuam sua fluência, o que deve dificultar suas tentativas de comunicação como um todo. Nascente (2004) afirma, baseada em seus resultados, que a vantagem dos globais é exatamente a sua visão de todo, que deve levá-los a conseguir se comunicar na língua alvo, apesar de cometerem erros nesse processo. Já a vantagem dos analíticos seria justamente a sua capacidade de análise, que faz com que consigam fazer distinções e estabelecer analogias bastante finas, o que de acordo com sua investigação contribuiu para que o nível de precisão de suas produções orais e escritas fosse bastante alto. Já introversão e extroversão, de acordo com Nascente (2004), são estilos de grande relevância em contextos nos quais os aprendizes são adultos porque, como já dissemos antes, esses estilos já devem Estilos de aprendizagem e rendimento de estudantes adultos de língua inglesa 197 estar relativamente consolidados na vida adulta. Os extrovertidos precisam se sentir ativos, pelo menos verbalmente, eles sentem-se ainda melhor se puderem estar ativos também fisicamente. Portanto, os resultados aferidos pela autora apontam para a variedade e a interação como elementos-chave para que os extrovertidos aprendam de maneira eficiente. Algumas outras características dos extrovertidos são que, quando contrastados com os introvertidos, eles preferem estratégias visuais de aprendizagem. Para Nascente (2004) essa preferência pode estar relacionada à própria definição do que é ser extrovertido, que seria a de alguém orientado para o mundo exterior. A visualização seria uma maneira de fazer conexões entre elementos do mundo exterior e os símbolos que compõem a língua alvo. Outra característica marcante dos extrovertidos é que eles utilizam-se mais de estratégias afetivas, tais como diminuição da própria ansiedade, autoencorajamento e aferição dos próprios estados emocionais, como maneiras de facilitar sua própria aprendizagem. Por outro lado, para os introvertidos (NASCENTE, 2004), a sala de aula é fundamental mais pela possibilidade de sistematização do insumo recebido do que pela interação que ela oferece. Eles preferem estudar sozinhos, em casa, processando o material de forma cuidadosa, sem a interferência dos outros. Portanto, para eles, nada melhor do que tarefas bem planejadas, que aprofundem o conteúdo dado durante as aulas. Isso ocorre porque os introvertidos precisam processar o insumo recebido mentalmente antes de utilizá-lo em atividades presenciais, notadamente nas de fala. Portanto, eles se benefi-ciam de ambientes de ensino nos quais o clima seja de segurança no que concerne à prática da LE, ao engajamento em novos comportamentos e ao surgimento e correção de erros. Apesar desse tipo de clima beneficiar todos os tipos de aprendizes, ele deve ser particularmente benéficos aos introvertidos. Atividades em pequenos grupos e individuais, as quais levem, por exemplo, a elaboração e ensaio de um diálogo para ser apresentado no final da atividade, também devem ser de muita valia para os introvertidos, que, como já foi dito anteriormente, precisam processar primeiro o insumo para depois colocá-lo em prática. 198 Renata Maria Moschen Nascente O estudo de Nascente (2004) demonstrou que quando um professor que tende, por exemplo, aos pólos da globalidade e extroversão interage com um aluno que tende aos pólos da analiticidade e introversão, pode ocorrer um conflito cognitivo, pois, como já foi dito antes, os professores tendem a ensinar de acordo com seus estilos de aprendizagem. Nesse caso, o rendimento do aluno pode cair, pois esse conflito faz com que ele tenha mais dificuldade em apreender, processar, reestruturar e produzir os insumos oferecidos pelo professor. Assim, a autora confirmou a hipótese de que algumas das dificuldades de aprendizagem do grupo de estudantes adultos de Língua Inglesa que estudou relacionavam-se a discrepâncias entre os estilos de aprendizagem dos alunos e os estilos de ensino dos professores, que se relacionam tanto aos seus próprios estilos de aprendizagem quanto às metodologias e abordagem de ensino que utilizavam, que nem sempre são por eles livremente escolhidas. Seus resultados sugeriram também que a analiticidade e a extroversão podem ser características facilitadoras da aprendizagem de Língua Inglesa. Uma tendência moderada em direção a esses pólos pode ser vista como um elemento de previsão de um desempenho capaz de conduzir a resultados satisfatórios de aprendizagem. Essas inclinações devem ser moderadas na medida em que, se elas forem muito radicais, podem entrar em conflito com os estilos dos professores, geralmente mais equilibrados justamente por sua experiência como aprendizes avançados da língua-alvo. Nascente (2004) aferiu ainda que os conflitos estilísticos entre professores e alunos são particularmente prejudiciais quando conjugados com outras dificuldades de aprendizagem. Em outras palavras, para um aluno que, por diversas razões, inclusive as relacionadas a alguns estilos, tem facilidade para aprender uma LE não importa muito o estilo do professor, ele vai conseguir se sair bem de qualquer maneira. Entretanto, para o aluno que já traz consigo algum tipo de problema de aprendizagem, o conflito de estilos pode ser um forte elemento no fomento de suas dificuldades. Explicando Estilos de aprendizagem e rendimento de estudantes adultos de língua inglesa 199 melhor, o professor deve procurar descobrir os estilos dos alunos que apresentam dificuldades, tanto para ensiná-los dentro desses parâmetros como para ampliar as possibilidades desses alunos, por intermédio de estilos diferentes dos que eles possuem. Nascente (2004) alinha-se com Ehrman (1998), Tyacke (1998) em relação à premissa de que o professor deve tentar amenizar os extremismos estilísticos de seus alunos, mas também trabalhá-los como eles se apresentam, para fomentar o conforto emocional e cognitivo do qual eles tanto precisam para aprender. Para os autores essa variação pode ser extremamente benéfica, uma vez que trabalhando harmonicamente com os estilos dos alunos, o professor propicia uma situação de conforto cognitivo e, conseqüentemente, emocional muito favorável à aprendizagem. Por outro lado, trabalhando com atividades que forcem os alunos em direção oposta das suas, deve fazer com que eles se tornem mais flexíveis em relação aos seus estilos, situação propiciadora de aprendizagem de LE. Considerações finais Concluímos assim, que as pesquisas que relacionam estilos e aprendizagem de LE comprovam a importância da compreensão por parte dos professores das principais tendências de seus alunos nesse campo para uma possível reflexão sobre seus procedimentos de ensino. Também acreditamos na necessidade de variação na utilização dos estilos para o melhor aproveitamento dos alunos, notadamente daqueles que apresentam dificuldades de aprendizagem. Recomendamos ainda que se continue estudando a hipótese de que as diferenças entre estilos de professores e alunos devem afetar seus níveis de aprendizagem. Essa recomendação deve ser encarada como particularmente válida para o Brasil na medida em que poucos têm sido os trabalhos dedicados à questão do relacionamento entre estilos de aprendizagem e o aproveitamento de nossos aprendizes adultos de LE. 200 Renata Maria Moschen Nascente Referências bibliográficas BIGGS, J. Enhancing Learning: A Matter of Style or Approach? 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A intenção é fomentar e incrementar as reflexões e pesquisas cujos objetivos desviem o foco do problema como sendo necessariamente da criança, para a discussão sobre as concepções e metodologias de ensino adotadas pelos profissionais que atuam na Escola, as quais estigmatizam e definem as trajetórias de vida das crianças rotuladas com “dificuldades de aprendizagem”. Palavras-chave: Aprendizagem sem dificuldades. Zona de desenvolvimento proximal. Teoria Histórico-Cultural. Concepções sobre aprendizagem. Metodologias de ensino. Learning without difficulties: The cultural-historical perspective. Abstract: This article discuss the scholar learning with support in the HistoricalCultural Theory, disconnecting its of the term “difficulties” and of the “product” * Professora Doutora do Departamento de Metodologia de Ensino e do Programa de PósGraduação em Educação da Universidade Federal de São Carlos. Coordenadora do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Extensão sobre a Escola de Vigotsky (NEEVY). E-mail: [email protected] APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano V n. 9 p. 203-218 2007 204 Maria Aparecida Mello perspective, analyising the development of the learning process interposed by the creation of the proximal development zone. The intention is to foment and to develop the reflections and researchs whose goals put out of the way the focus of the problem as being own of the child to the discussion about the conceptions and the teaching methodologies adopted by the diferents persons who act in the school, which lable and defining the trajectories of the children´s life rotulared with “learning dificulties”. Key words: Learning without difficulties. Proximal development zone. Historical-Cultural Theory. Conceptions about learn. Teaching methodologies. A questão sobre as dificuldades de aprendizagens de crianças, adolescentes e jovens é um assunto que perpassa gerações de estudos na área da Educação em todos os níveis de ensino, com diferentes tipos de argumentações e possíveis alternativas de soluções. Na Educação Básica, as crianças que não apresentam o desempenho esperado são rotuladas como portadoras de dificuldades de aprendizagem, cujas denominações nas discussões entre professores, coordenadores, supervisores e gestores no cotidiano escolar variam: hiperativo, disléxico, disgráfico, etc., cujas explicações e causas são atribuídas à própria criança, às suas condições de vida e de família, culminando em encaminhamentos médicos e terapêuticos. Esses procedimentos adotados pelos profissionais que atuam na Escola geram, por um lado, a exclusão dessas crianças de relações sociais imprescindíveis para o desenvolvimento de aprendizagens e, por outro, definem trajetórias de fracasso para as suas vidas. A questão da aprendizagem na Escola As dificuldades de aprendizagem na escola têm se configurado em um problema para os seus profissionais, tanto no ensino público como privado. A insatisfação dos docentes, gestores e familiares em relação ao desempenho escolar de crianças e adolescentes vem aumentando e transformando a vida de todos os envolvidos, principalmente os estudantes. Aprendizagens sem dificuldades: a perspectiva histórico-cultural 205 Apesar de a Escola buscar acompanhar e inserir algumas tecnologias como recursos didáticos para possibilitar as aprendizagens dos conteúdos escolares, o pressuposto metodológico e a concepção educacional que ainda persiste é a de que a criança ou adolescente traz ou não consigo uma carga genética para a aprendizagem. Nessa concepção, aqueles que não são privilegiados geneticamente são os que apresentam dificuldades de aprendizagem e são encaminhados para terapias e consultas médicas que possam resolver o problema para a Escola. A partir dessa concepção biologicista de desenvolvimento humano, na qual estão subjacentes as concepções dos professores e gestores sobre criança, adolescente, ensino, aprendizagem, etc., alicerçam-se as metodologias de ensino que irão contribuir para que as aprendizagens dos educandos se tornem “dificuldades de aprendizagem” e um problema intransponível para a Escola, justificando os encaminhamentos médicos e terapêuticos junto às famílias. Se mudarmos a direção de nossa análise, da criança para as metodologias de ensino utilizadas por professores, corroboradas por supervisores, coordenadores e gestores na Educação Básica, observaremos que elas, ainda, estão muito pautadas no produto que a criança ou adolescente apresenta, ao invés do seu processo de aprendizagem. Tais metodologias de ensino ainda são muito direcionadas para o individual, uma vez que as atividades são realizadas com a classe toda, da mesma forma e ao mesmo tempo. Os conteúdos, por sua vez, são fixos e com prazos determinados para serem “ensinados”, retirando do educando a motivação em aprender, pois não há tempo de se apropriar do sentido deles para a sua vida e, limitando ao professor a flexibilidade de escolha de conteúdos mais interessantes para a vida dos educandos. Portanto, mudando nosso foco, mudamos o problema. Ele deixa de ser “dificuldades de aprendizagem” para ser “dificuldades de ensino”, decorrentes de vários problemas que envolvem a organização 206 Maria Aparecida Mello escolar e curricular, formação do professor, condições de trabalho, entre outras, já amplamente discutidas na literatura da área de Educação. A aprendizagem e o ensino na perspectiva Histórico-Cultural Vigotsky (1993, Tomo II) discute a aprendizagem e o ensino escolares por intermédio de dois conceitos: zona de desenvolvimento proximal – relacionada ao processo da aprendizagem; o que a criança pode fazer hoje em colaboração, com a ajuda de outra pessoa, poderá fazê-lo autonomamente amanhã – e desenvolvimento atual – relacionado ao produto da aprendizagem, ou seja, o que ela já aprendeu e domina. Nessa perspectiva teórica, a aprendizagem e o ensino sempre estão à frente do desenvolvimento, pois a criança assimila aspectos da matéria estudada antes de aprender a utilizá-los conscientemente e voluntariamente, nesse processo são desencadeadas diferentes funções psíquicas que estão em processo de maturação e encontram-se na zona de desenvolvimento proximal, as quais devidamente exploradas e potencializadas pelo ensino poderão se tornar parte do desenvolvimento atual. As investigações de Vigotsky (1993, p. 235, Tomo II) demonstraram que sempre há “divergencias y que nunca se manifiesta paralelismo entre el curso de la instrucción escolar y el desarrollo de las correspondientes funciones”. Os processos didáticos seguem linhas de continuidade de complexa organização e se desenvolvem no formato de aulas ou lições, as quais hoje são umas, amanhã poderão ser outras, ou ainda, no primeiro semestre seguem determinados conteúdos ou disciplinas, diferentes do segundo semestre, dependendo do tipo de currículo, nível de ensino, proposta pedagógica da escola, etc., mas todos regulados por horários, dias, ou programas. Vigotsky (1993, Tomo II, p. 235) argumenta que: Aprendizagens sem dificuldades: a perspectiva histórico-cultural 207 […] sería un gran error suponer que estas leyes externas de la estructuración del proceso didáctico coinciden por completo con las leyes internas de estructuración de los procesos de desarrollo que provoca la instrucción. Sería errôneo pensar que si este semestre el alumno há estudiado en aritmética algo, por conseguiente, también en el semestre (interno) de su desarrollo ha conseguido los mismos éxitos. Si intentamos reflejar simbólicamente en forma de una curva la línea de continuidad del proceso didáctico y hacemos lo mismo respecto a la curva de desarrollo de las funciones psíquicas que intervienen directamente en la instrucción, como lo hemos tratado de llevar a cabo en nuestros experimentos, observaremos que estas dos cur vas no van a coincidir nunca, aunque descubrirán correlaciones muy complejas. Nos processos de ensino e de desenvolvimento humano existem momentos cruciais próprios de cada um que estão relacionados a uma série de outros momentos anteriores e posteriores. Apesar de apresentarem complexas relações internas, eles não coincidem necessariamente, da maneira que a Escola é estruturada. Tomemos por exemplo, os problemas relacionados à não alfabetização de crianças. O prazo do domínio da aprendizagem desses conteúdos, estipulados pelos currículos escolares, não é o mesmo que, geralmente, as crianças necessitam para a tomada de consciência interna da linguagem e o domínio da leitura escrita. Os objetivos usualmente colocados por professores, gestores, coordenadores, supervisores e famílias para a alfabetização das crianças é o final da primeira série do Ensino Fundamental e com a implantação do Ensino de 9 anos, corremos o risco de diminuir esse prazo para as crianças de 6 anos. Como disse Vigotsky (1993, Tomo II, p. 236): “el desarrollo no se subordina al programa escolar, tiene su lógica interna”. Se a lógica na qual a Escola estrutura seus currículos, conteúdos e metodologias de ensino não alcança a lógica de aprendizagem e desenvolvimento das crianças, certamente haverá um descompasso entre as aprendizagens e o ensino, gerando para a Escola as “dificuldades de aprendizagem” e para a criança uma trajetória de fracasso que contribuirá para o não desenvolvimento de novas aprendizagens. 208 Maria Aparecida Mello Em contrapartida, se a concepção na Escola sobre ensino e aprendizagem considerar os momentos de assimilação da aprendizagem de um determinado conteúdo como apenas o início para o domínio dele, os progressos das crianças serão mais evidentes. O foco do ensino e da avaliação passará a ser a criança, no seu processo de aprender os conteúdos e não apenas no conteúdo e no produto já estabelecido a priori. Quando nos atemos apenas ao produto final, deixamos de compreender o processo pelo qual a criança está desenvolvendo a aprendizagem daquele conhecimento. Portanto, o problema de dificuldades de aprendizagem desloca-se da criança para o ensino e as metodologias utilizadas pelo professor para alcançar os processos desenvolvidos pelas crianças para conseguirem aprender um determinado conteúdo. Vigotsky (1993) investigou a relação entre as matérias escolares e as funções psíquicas superiores, utilizando a matemática e a leitura e escrita. Os resultados demonstraram que o desenvolvimento mental da criança não se realiza de acordo com o sistema das matérias escolares, ou seja, a matemática não desenvolve funções de forma isolada e independente, assim como a linguagem escrita e outras tantas funções. As diferentes matérias têm um certo grau de base psíquica comum. Tanto na matemática como na leitura e escrita, a tomada de consciência e o domínio de cada um dos conteúdos estão igualmente no primeiro plano de desenvolvimento da aprendizagem de ambos. O pensamento da criança se processa em todas as matérias e seu desenvolvimento não se decompõe em trajetórias separadas em função das diferentes disciplinas escolares. Se a concepção de aprendizagem que está subjacente ao ensino for aquela de que todo indivíduo é capaz de aprender e que cada um tem trajetórias e tempos diferentes, então o problema de dificuldades de aprendizagem deixa de ser um problema. Os desafios do professor e da Escola modificam-se para a investigação dos sentidos de determinados conteúdos para a aprendizagem das crianças, os quais Aprendizagens sem dificuldades: a perspectiva histórico-cultural 209 exigirão metodologias de ensino apoiadas nas habilidades que as crianças precisam desenvolver ou que caracterizam o processo de desenvolvimento para a aprendizagem desses conteúdos. Essa concepção educativa torna os processos de aprendizagem mais prazerosos e adequados ao desenvolvimento psíquico das crianças, uma vez que instiga a curiosidade e a necessidade de conhecer, próprias dos seres humanos; e ainda, modifica os processos de ensino, já que não parte do pressuposto de que existe um problema, mas sim, possibilidades, deixando os professores mais seguros e motivados para irem em busca constante de outros conteúdos e metodologias de ensino mais interessantes. Da mesma forma que no processo de ensino existe uma estrutura interna com sucessão dos níveis de dificuldades do conteúdo e com uma lógica de desenvolvimento; na cabeça dos estudantes existe uma rede interna de processos ativos durante o ensino escolar, que possui sua própria lógica de desenvolvimento. Vigotsky (1993) preconizava que uma das tarefas fundamentais da psicologia escolar consiste precisamente em descobrir essa lógica interna, esse desenvolvimento interno do pensamento das crianças que tem uma trajetória diferente do ensino. Seus experimentos estabeleceram três fatos na relação entre o ensino das matérias escolares e a aprendizagem das crianças: 1) no ensino de diferentes matérias escolares há enorme possibilidade de que a aprendizagem de algumas matérias influencie em outras; 2) existe também uma influência recíproca do ensino no desenvolvimento das funções psíquicas superiores, que supera os limites do conteúdo específico de cada disciplina escolar, como se houvesse uma disciplina que agregasse e fosse inerente a todas as disciplinas escolares. Quando a criança toma consciência dos conteúdos de uma disciplina, passa a dominar uma estrutura que se transfere a outros campos de seu pensamento não relacionados diretamente com aqueles conteúdos; 210 Maria Aparecida Mello 3) ocorrem igualmente a interdependência e a inter-relação entre as diferentes funções mentais que compõem a aprendizagem de uma determinada disciplina. Assim, por exemplo, os desenvolvimentos da atenção voluntária e da memória lógica, do pensamento abstrato e da imaginação científica produzem-se como um processo complexo único, graças à base comum de todas as funções psíquicas superiores; tal base comum, cujo desenvolvimento constitui o principal foco da educação escolar, compõe a tomada de consciência e o domínio do conhecimento. Nas pesquisas que temos realizado no âmbito do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Extensão sobre a Escola de Vigotsky (NEEVY) com formação continuada de professores e professoras na área de Educação Infantil e séries iniciais do Ensino Fundamental, os resultados têm demonstrado que as amarras de tempo, conteúdos, metodologias e outras dinâmicas que envolvem a comunidade escolar geram angústias nos professores sobre as aprendizagens das crianças, tornando-os mais desmotivados na busca de melhoria de suas práticas pedagógicas. Os prazos de aprendizagem das crianças estipulados nos currículos escolares, normalmente, referem-se ao período letivo de 10 meses, com um número limitado de conteúdos pré-determinados a serem ensinados, que não oferecem aos professores mais experientes o tempo necessário para que possam aprofundar suas reflexões acerca dos processos de ensino e de aprendizagem e assimilar os avanços acadêmicos oriundos de pesquisas e concepções alternativas que possam auxiliá-los na reformulação de suas próprias concepções educativas e, ainda, limitam também o tempo necessário aos professores iniciantes para que possam compreender a complexidade que envolve os processos de ensino e de aprendizagem. O problema, portanto, não está na existência de dificuldades de aprendizagem das crianças, mas no descompasso entre as concepções de aprendizagem que estão presentes na comunidade escolar, no tempo necessário à investigação, produção e Aprendizagens sem dificuldades: a perspectiva histórico-cultural 211 implementação de conteúdos e metodologias de ensino adequadas às realidades das escolas e o tempo exigido das crianças para o domínio dessas aprendizagens. Em um projeto desenvolvido no ano de 2006, com 300 docentes que atuam na Educação Infantil municipal de São Carlos/ SP, denominado: “As atividades de Brincadeiras: significado e sentido para professores de Educação Infantil”, pudemos discutir com os participantes sobre as concepções que estão subjacentes às suas práticas educativas e aprofundarmos as reflexões sobre as alternativas metodológicas possíveis no cotidiano, para potencializar as aprendizagens das crianças. Uma das estratégias que utilizamos para potencializar o diálogo sobre essas práticas educativas foi a solicitação ao professores e professoras que observassem algumas brincadeiras livres das crianças e registrassem suas impressões. O exemplo a seguir, ilustra o descompasso entre o que a professora espera de desempenho das crianças e a sua dificuldade de interpretação sobre esse desempenho. Era uma turma de crianças de 3 anos de idade, estavam brincando de casinha duas meninas. Uma delas representava o papel de mãe e a outra de filha. A filha chamava a mãe que respondia: “Não posso, estou lavando roupa”. A professora que realizou essa observação verbalizou, em primeiro lugar, que a tarefa de observar as crianças brincando lhe deu uma outra visão sobre as crianças para as quais ela ensinava, e em segundo lugar, que ficou muito surpresa com o tema da brincadeira dessas crianças, pois esperava que ao deixá-las brincar livremente, fossem dramatizar a história de príncipes e princesas que ela havia lhes contado minutos antes. Não imaginava que as crianças pudessem brincar com temas reais e, não compreendia o fato de não dramatizarem a história de conto de fadas, já que as crianças haviam gostado muito da história contada. 212 Maria Aparecida Mello A partir desse relato pudemos dialogar e analisar com os docentes as concepções romantizadas de criança que estão direcionando as práticas educativas e as conseqüências dessas práticas para o desenvolvimento das aprendizagens das crianças, aprofundando juntos a reflexão sobre as imitações das crianças a respeito das ações cotidianas dos adultos que as auxiliam a compreender as relações entre elas e a desenvolverem aprendizagens importantes para a convivência com os outros. Quando nos colocamos a observar essas representações das crianças sobre o mundo em que vivem, temos a oportunidade de rever nossas concepções, identificar em que bases estão se fundamentando os processos de aprendizagens das crianças, selecionar conteúdos com sentido para elas, os quais possam potencializar e instigar essas e novas aprendizagens. O confronto de nossas concepções com o resultado das observações que realizamos enquanto as crianças desenvolvem atividades nem sempre é fácil de ser aceito e leva tempo para podermos nos convencer de que a criança que temos em mãos para ensinar é bem diferente daquela que imaginávamos. Esse processo não é tranqüilo e nem pode ser realizado solitariamente. É preciso uma parceria entre a universidade e a escola que se possa compartilhar os saberes produzidos em ambas instituições, produzir e implementar juntos metodologias de ensino que auxiliem os docentes a compreender os processos de aprendizagem das crianças e adequar as atividades a elas, desenvolvendo os motivos para a criança aprender e os motivos para o professor ensinar. Leontiev (1978) argumenta que a relação entre os motivos e a evolução das necessidades humanas não é constituída apenas pela consciência dos motivos relacionados às necessidades naturais, mas consiste no deslocamento dos motivos de uma ação para fins mais amplos, que não correspondam diretamente à satisfação dessas necessidades, mas para a criação de novas necessidades. Esse processo é extremamente complexo, pois é produzido no deslocamento dos Aprendizagens sem dificuldades: a perspectiva histórico-cultural 213 motivos para os fins e pela sua conscientização. O homem passa a direcionar os motivos de suas ações a um fim, intencional, transformando suas ações em atividades. Essas atividades são especiais, pois exigem atos que reflitam a relação entre o motivo de uma atividade concreta e o de uma atividade muito mais ampla, a qual gera uma relação vital, maior e mais geral do que aquela atividade concreta em questão. A “brincadeira” é um tipo de atividade em que o motivo está no próprio processo e é característica do período pré-escolar. Ela é o tipo principal de atividade na infância. É caracterizada por seu objetivo residir no próprio processo e não no produto da ação. Por exemplo: para uma criança pequena que brinca com areia ou blocos de madeira, o alvo da brincadeira não está na construção de castelos ou estruturas, nem em contar ou anotar a quantidade de blocos vermelhos utilizados na sua construção, mas em fazer, ou seja, na própria ação, no processo de montar e desmontar, de deixar cair, etc. Quando a professora de Educação Infantil imprime a sua visão de jogo, com suas regras e tempos determinados, à brincadeira da criança, tornando o produto mais importante do que o processo de participação, a atividade deixa de ser uma brincadeira para a criança e torna-se apenas uma tarefa escolar a ser cumprida, sem compreender de fato o sentido dela. Com esse procedimento, a professora perde a oportunidade de aprender sobre os processos de aprendizagem que a criança está desenvolvendo enquanto brinca, pois sua atenção está focada no desempenho final, naquilo que ela aprendeu ou deveria aprender. Se adotasse o procedimento de observação da brincadeira, sem limites fixos de regras e tempos, poderia talvez chegar à conclusão de que mesmo a criança não apresentando o produto esperado, não significa que ela esteja com dificuldades. Talvez, apenas tenha utilizado processos de pensamento diferentes daqueles que a professora utilizaria, gerando um outro produto, que não é melhor ou pior, mas diferente e que produziu outras aprendizagens. 214 Maria Aparecida Mello A Zona de Desenvolvimento Proximal O estágio do desenvolvimento da criança não pode ser determinado apenas por meio daquilo que a criança já aprendeu. [...] “el horticultor, que deseando determinar el estado de su huerto, no tendrá razón si se limita a valorar los manzanos que ya han madurado y han dado fruto, sino que debe tener también en cuenta los árboles en maduración” (VIGOTSKI, 1993, p. 238, Tomo II). Assim, não apenas o nível atual é importante para o professor diagnosticar o desenvolvimento das aprendizagens da criança, mas principalmente, a zona de desenvolvimento próximo, ou seja, investigar aquelas aprendizagens que estão em processo. O conhecimento que a criança já adquiriu deve se configurar no nível inferior do ensino, uma vez que o processo de aprendizagem não está terminado. É fundamental o estabelecimento do nível superior de ensino – o que a criança precisa adquirir para a aprendizagem desse conhecimento se efetivar, ou seja, dominar o conhecimento. “Solo dentro de los limites existentes entre estos dos umbrales puede resultar fructífera la instrucción. [...] La enseñanza deve orientarse no al ayer, sino al mañana del desarrollo infantil” (VIGOTSKI, 1993, p. 242). Se as atividades individuais são importantes para uma avaliação diagnóstica das aprendizagens das crianças, em contrapartida, as atividades que envolvem colaboração entre as crianças são fundamentais para desencadear novas aprendizagens. Todavia, a metodologia de ensino para ambas atividades não pode permanecer sob a concepção de constatação, mas sim, de investigação. As atividades individuais oferecem aos professores a possibilidade de poder decidir os pontos de partida do ensino. As atividades colaborativas vão direcionando o professor sobre as possibilidades de ensino e as adequações metodológicas necessárias de ser implementadas durante o processo de ensino e de aprendizagem. Cada criança tem seu tempo e uma forma de aprender, mas, isso não significa, necessariamente, dificuldades em aprender. Todo Aprendizagens sem dificuldades: a perspectiva histórico-cultural 215 ser humano é capaz de aprender. Na perspectiva histórico-cultural a atividade que possibilita aprendizagens e o desenvolvimento das funções psíquicas superiores é uma atividade mediatizada por signos, objetos, outras pessoas, outros conteúdos, que têm história, tempos e estão inseridos na cultura. As funções psíquicas superiores são o produto da complexa interação do homem com o mundo, interação mediatizada pelos objetos criados pela sociedade. A diferença entre a psique “natural” dos animais e dos processos psíquicos superiores do homem é justamente os “instrumentos” especiais, denominados por Vigotsky (1995, Tomo III) de signos – os quais se colocam entre a função natural e seu objeto, mudando a raiz das propriedades dessa função. O conceito de signo refere-se a todo estímulo criado artificialmente pelo homem e que constitui um meio para dominar o comportamento alheio ou próprio. Os instrumentos e os signos não esgotam todo o conteúdo da categoria da atividade mediatizadora. A diferença entre eles se configura no fato de que o instrumento provoca modificações no objeto da atividade, configurando-se como meio da atividade externa do homem na transformação da natureza. O signo, não modifica nada no objeto da operação psicológica, ele é o meio da ação psicológica sobre o comportamento humano, portanto, dirigido para dentro do homem. Ambos estão unidos na filo e ontogênese, uma vez que o domínio da natureza está entrelaçado ao domínio de si mesmo. Daí a transformação da natureza realizada pelo homem produzir a modificação de sua própria natureza, pois o homem, ao empregar os instrumentos, marcou o início do gênero humano. Na ontogênese, o uso do primeiro signo assinalou que o ser humano saiu dos limites do sistema orgânico da atividade. No desenvolvimento das funções psíquicas superiores, Vigotsky (1995) afirma que a função, no desenvolvimento cultural da criança, aparece duas vezes: a primeira no plano social, como função interpsicológica, compartilhada entre duas pessoas (a criança e o outro) e a segunda, no plano psicológico, como função intrapsicológica, no próprio indivíduo. 216 Maria Aparecida Mello Nas palavras do próprio Vigotsky (1993, Tomo III, p. 146): Toda la historia del desarollo psíquico del niño nos enseña que desde los primeros días de vida, su adaptación se logra por medios sociales, a través de las personas circundantes. El camino que va de la cosa al niño y del niño a la cosa pasa a través de otra persona. El tránsito de la via biológica de desarollo a la social es el eslabón central en el proceso de desarollo, el punto de viraje radical de la historia del comportamiento del nino [...]. El lenguaje juega aqui un papel de primer orden. O desenvolvimento cultural da criança não é conseqüência e nem continuação direta do desenvolvimento orgânico, nem ocorre de maneira uniforme, como se concebia antigamente, por exemplo: a passagem das percepções de figuras numéricas ao sistema decimal, o balbucio às primeiras palavras, etc. As investigações de Vigotsky (1993) demonstraram que antes o que se pensava que era um caminho reto, contínuo, apresenta de fato uma ruptura e avanços por saltos e que os processos culturais concebidos apenas como assimilação de hábitos sociais, são considerados hoje como processos de desenvolvimento humano. Na perspectiva histórico-cultural, o desenvolvimento cultural da criança só pode ser concebido como um processo vivo de desenvolvimento, de formação, de luta, em contraposição aos modelos estereotipados e padronizados de desenvolvimento. O processo de desenvolvimento vivo ocorre em constantes contradições entre as formas primitivas e culturais, comparados à evolução dos organismos na história da humanidade (Vigostky, 1995, Tomo III). Ao superar a concepção biologicista de desenvolvimento e de aprendizagem humanas, o docente passa a compreender que à medida que a criança adentra na cultura, não apenas assimila e se enriquece com diferentes aprendizagens e conhecimentos, mas a própria cultura modifica profundamente a composição natural da conduta da criança e fornece uma orientação completamente nova ao seu desenvolvimento. Aprendizagens sem dificuldades: a perspectiva histórico-cultural 217 Portanto, a compreensão das necessidades de aprendizagens das crianças, tendo como foco a cultura e, não as “dificuldades”, envolve conceber a si próprio como um agente mediador de aprendizagens e de novas trajetórias de desenvolvimento das crianças, assim como as outras crianças, os signos, objetos, ferramentas que também compõem essa cultura agem como mediadores de aprendizagem. A mudança radical na concepção transforma, também, radicalmente, o ensino e as questões relacionadas às aprendizagens. As implicações educativas decorrentes da mudança de concepção de ensino e aprendizagem apontam na direção da superação da ênfase de ensino no nível de desenvolvimento efetivo, ou seja, daquilo em que a criança já aprendeu, cabendo, geralmente, à Escola apenas aprofundá-lo em seus diferentes níveis de Educação Básica; da superação da demarcação de limites de desenvolvimentos para determinadas crianças, faixas etárias, nível social, etc. Essas e outras concepções oriundas da perspectiva tradicional de educação escolar eram admissíveis em uma época em que o ensino deveria ir a reboque do desenvolvimento e servir para reforçá-lo, pois parecia impossível que ele pudesse preceder o desenvolvimento biológico da criança, uma vez que não se podia ensinar aquilo para o qual não havia bases maturativas na própria criança. Vigotski (1993, p. 245) critica o ensino que se limita ao nível de desenvolvimento efetivo ou atual da criança, afirmando que o bom ensino é aquele que se adianta ao desenvolvimento efetivo, ou seja, aquele que atua na zona de desenvolvimento próximo. “Ensinar a uma criança aquilo que é incapaz de aprender é tão inútil como ensinar-lhe a fazer o que é capaz de realizar por si mesma.” Assim, na escola as atividades devem ser desafiantes, de forma a levá-la a ultrapassar o nível de desenvolvimento efetivo, problematizando o que ela já sabe, de maneira a gerar novas aprendizagens. Petrovski (1980) explica que não há nada melhor que a prática cotidiana de superação de problemas para desenvolver uma 218 Maria Aparecida Mello qualidade volitiva tão valiosa para o homem, como o domínio sobre si mesmo. O papel do coletivo nesse processo de formação é importantíssimo, pois é nele que o homem contrapõe sua visão e tem a opinião do outro. Nesse processo, à medida que o professor percebe as necessidades de aprendizagem das crianças, também visualiza as suas próprias necessidades e, no esforço de criar nas crianças novas necessidades, gera nele também outras tantas, e assim, juntos vão se distanciando de visões que admitem a dificuldade na aprendizagem. A prática educativa é por natureza intencional, vinculada à formulação de fins e subjacente a valores produzidos pela sociedade. Não basta aos homens terem acesso e se apropriarem das tecnologias produzidas na sociedade atual. É preciso ir além, interiorizá-las, desenvolver as habilidades necessárias para dominá-las e ao mesmo tempo, captar a sociedade em seu conjunto, percebendo a alienação produzida nela e pela própria tecnologia. O homem precisa conhecer a sociedade em que vive, a ponto de poder movê-la e mover-se nela. Referências bibliográficas LEONTIEV, A. O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Livros Horizonte, 1978. PETROVSKI, A. Psicologia general. Manual didáctico para los institutos de pedagogía. Moscú: Editorial Progreso, 1980. VIGOTSKY, Liev S. Obras Escogidas. Tomo II. Pensamiento y Lenguaje. Madrid: Visor Distribuciones, 1993. ______. Obras Escogidas. Tomo III. Problemas Del desarrollo de la psique. Madrid: Visor Distribuciones, 1995. Recebido em: 01 de agosto de 2007. Aprovado em: 10 de setembro de 2007. Avaliação cognitiva: contribuições para um melhor desempenho escolar Roberta Rocha Borges * Orly Zucatto Mantovani de Assis ** Resumo: Este artigo apresenta as experiências de avaliação cognitiva realizadas pelo Serviço de Avaliação e Intervenção Psicopedagógica (SAIP), serviço de extensão comunitária realizado pelo Laboratório de Psicologia Genética da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). As crianças atendidas, na faixa etária de 7 a 10 anos, e com dificuldades na escola, cursam o ensino fundamental público ou particular de Campinas-SP e região, sendo avaliadas quanto ao aspecto cognitivo, enfocando-se suas estruturas intelectuais. Os resultados encontrados revelam que 94% das crianças avaliadas não possuem as estruturas cognitivas esperadas. Assim, o objetivo do SAIP é sugerir maneiras mais eficazes de intervenção pedagógica para auxiliar essas crianças na escola. Palavras-chave: Dificuldade de aprendizagem. Piaget. Cognição. Desempenho escolar. Diagnóstico operatório. * Doutoranda em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Pedagoga e pesquisadora do Laboratório de Psicologia Genética (LPG). E-mail: [email protected] ** Doutora em Educação. Fundadora e responsável pelo Laboratório de Psicologia Genética (LPG) da Unicamp. Docente da Universidade Estadual de Campinas. E-mail: [email protected] APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano V n. 9 p. 219-245 2007 220 Roberta Rocha Borges e Orly Zucatto Mantovani de Assis Cognitive avaliation: Contributions for a better school performance Abstract: This paper presents the experiences with cognitive evaluation made by Serviço de Avaliação e Intervenção Psicopedagógica (SAIP), communitary extension service provided by Laboratório de Psicologia Genética da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). The children assisted, from 7 to 10 years old, with school problems, attend Campinas’ public or private elementary schools, being evaluated in their cognitive aspect, focusing their intellectual structures. The obtained results show that 94% of the evaluated children don’t have the intellectual structures expected. Considering that, SAIP’s objective is to suggest more efficient ways of pedagogical approach to help those children at school. Key words: Learning problems. Piaget. Cognition. School performance. Diagnosis school problems. O Serviço de Avaliação e Intervenção Psicopedagógica (SAIP) O Laboratório de Psicologia Genética (LPG) da Faculdade de Educação da UNICAMP oferece à comunidade um serviço de extensão universitária que presta atendimento às crianças que apresentam dificuldades de aprendizagem escolar. Esse serviço é denominado Serviço de Avaliação e Intervenção Psicopedagógica (SAIP) e tem por objetivo atender crianças e adolescentes provenientes de escolas públicas e particulares que apresentam dificuldades de aprendizagem. Tais dificuldades são apontadas, inicialmente, em virtude de os alunos apresentarem baixo desempenho acadêmico, ou seja, problemas em acompanhar os conteúdos escolares. Tais situações levam pais e professores a encaminharem essas crianças ao SAIP para que sejam avaliadas e, se necessário, a participarem do programa de intervenção psicopedagógica, oferecido pelo serviço. O SAIP atende em média 30 crianças por ano na faixa etária de 7 a 10 anos de escolas públicas e particulares de Campinas-SP e região. Essas crianças, inicialmente, passam por uma série de avaliações cognitivas. Os resultados obtidos com tais avaliações permitem que a equipe de profissionais do LPG intervenha adequadamente a partir Avaliação cognitiva: contribuições para um melhor desempenho escolar 221 de um trabalho pedagógico e psicopedaógico, ou seja, tal equipe traça um plano de trabalho específico para cada criança. O SAIP se propõe a realizar uma avaliação através da qual é feita uma análise estrutural do desempenho intelectual da criança, ou seja, quando tal criança apresenta qualquer queixa de dificuldades escolares, aplica-se, a princípio, as provas diagnósticas do pensamento operatório que permitem diagnosticar o tipo de raciocínio que essa criança utiliza para resolver os problemas escolares com lógica, ou seja, se possuem as estruturas de classificação, seriação e conservação. Tais estruturas são extremamente importantes para a interpretação do mundo físico ou social, que permitem a todo indivíduo assimilar as próprias ações e as dos seus semelhantes. Portanto, estas estruturas cognitivas constituem uma forma de compreender e transformar a realidade (MACEDO, 1994). Dessa forma, o que se busca na avaliação realizada pelo SAIP é conhecer quais são os instrumentos intelectuais de que o indivíduo utiliza-se para interagir com a realidade ou, em outras palavras, conhecer bem o momento de construção em que sua inteligência encontra-se. Diferentemente da abordagem psicométrica, que procura aferir o grau de desenvolvimento dos esquemas mentais, ou seja, medir o quanto se é inteligente, a avaliação utilizada pelo SAIP propõe-se a realizar uma análise qualitativa da inteligência. O que importa nesse tipo de avaliação não são as respostas certas da criança, mas, principalmente, os argumentos utilizados em suas respostas. O que interessa é conhecer por que a criança faz isto ou aquilo, ou seja, porque ela pensa dessa ou daquela forma. Para a equipe do SAIP, adotar essa forma de avaliação justificase por permitir a apreensão de como a criança estrutura o seu conhecimento. Trata-se de um processo diagnóstico ainda pouco conhecido e valorizado nos meios escolares, por envolver o trabalho com os aspectos endógenos que fazem parte dos processos de desenvolvimento e aprendizagem. Sabe-se que, apesar de complexa, 222 Roberta Rocha Borges e Orly Zucatto Mantovani de Assis a avaliação estrutural pode trazer uma grande contribuição para o entendimento de muitas das dificuldades de aprendizagem apresentadas pelas crianças. Segundo a Epistemologia Genética de Jean Piaget (1896-1980), muitas dessas dificuldades podem estar relacionadas ao fato de as crianças em idade escolar não possuírem as estruturas lógicas elementares. E para resolver os problemas que os conteúdos escolares oferecem, é importante a construção dessas estruturas. Isso porque tais estruturas favorecerão o pensamento lógico da criança na idade em que freqüenta o ensino fundamental. É necessário também mencionar o fato de que alguns conteúdos da escola necessitam de técnicas de aprendizagem e memorização e, dessa forma, devem ser ensinados para as crianças. O exercício de memorização dos conteúdos demanda um certo tempo para ser assimilado e acomodado às estruturas de pensamento da criança; por isso, necessita da sua ação repetida. E ainda não se pode, nesse processo, esquecer o aspecto afetivo; a escola deve levar em conta os interesses, a necessidade e a motivação de cada criança. Caso isso não seja levado em conta, tal processo torna-se extremamente cansativo e desinteressante para a criança. E, ao avaliá-las quanto a esses conteúdos que demandam memorização, pode-se cair no erro de mencionar que elas apresentam dificuldades na escola. E isso não é verdade, já que é necessário saber distinguir se a criança precisa somente assimilar e acomodar aquele conteúdo novo às suas estruturas ou se a criança não tem as estruturas para entendê-los. Vale destacar que, comprometido com uma concepção construtivista de desenvolvimento, o trabalho proposto pelo SAIP parte do pressuposto que a evolução cognitiva não está desvinculada dos processos relacionados aos aspectos afetivo, social e físico, visto compreendê-los como dimensões fundamentais e indissociáveis do processo de constituição do indivíduo. Muito pelo contrário, valorizase bastante a importância do aspecto afetivo para a construção das estruturas lógicas. Avaliação cognitiva: contribuições para um melhor desempenho escolar 223 O aspecto afetivo, muitas vezes, é esquecido nos processos de ensino e aprendizagem, pois acredita-se que aprender representa somente absorver os conteúdos escolares contidos nos livros didáticos, ou seja, os conhecimentos que a criança traz para a escola acabam sendo descartados. No entanto, neste artigo, serão apresentados os aspectos realizados quanto à natureza cognitiva da avaliação, visto que estes ajudam os educadores a melhorarem a compreensão da forma de raciocínio da criança e, com isso, obter situações de ensino e de aprendizagem mais coerentes com as necessidades e possibilidades de cada aluno. Os fundamentos teóricos O S AIP tem por fundamento a teoria piagetiana; caberia, portanto, explicar como ocorre o processo de construção do conhecimento para que se possa entender o porquê das dificuldades escolares em crianças que não apresentam o desempenho escolar exigido pela escola. Jean Piaget, biólogo, nasceu na cidade suíça de Neuchâtel, a 9 de agosto de 1896, tendo formulado a teoria da psicologia e da epistemologia genética, cuja preocupação era estudar como o conhecimento é possível. Para ele, o conhecimento que se constrói é fruto de uma interação entre o indivíduo e o meio que o cerca, cujas propriedades vão se estruturando à medida que a criança estrutura seus próprios conhecimentos. Tendo em vista que a escola tem como objetivo principal fazer com que as crianças aprendam os conteúdos ensinados por ela, caberia iniciar essa fundamentação teórica respondendo a esta pergunta: como a criança aprende? Em primeira instância, a criança aprende como indivíduo ativo do processo de construção do conhecimento. O foco do aprendizado deve estar nela; o conteúdo existe, mas é preciso uma 224 Roberta Rocha Borges e Orly Zucatto Mantovani de Assis interação entre este e a criança, uma vez que ela é quem deveria pensar sobre o conteúdo. Nesse sentido, Piaget (1973, p. 39-40) ressalta que: Os conhecimentos não partem, com efeito, nem do sujeito (conhecimento somático ou introspecção) nem do objeto (porque a própria percepção contém uma parte considerável de organização), mas das interações entre sujeito e objeto, e de interações inicialmente provocadas pelas atividades espontâneas do organismo tanto quanto pelos estímulos externos. A partir destas interações primitivas, onde os fatores internos e externos colaboram de maneira indissociável (e são subjetivamente confundidos), os conhecimentos orientam-se em duas direções complementares, apoiando-se constantemente nas ações e nos esquemas de ação, fora dos quais não têm nenhum poder nem sobre o real nem sobre a análise interior. Em muitas escolas, acredita-se ainda que o conhecimento dá-se dessa forma, que a mente da criança, ao nascer, é uma tábula rasa; destituída de qualquer conteúdo. O conhecimento dá-se à medida que as percepções sensoriais vão captando as informações da realidade. Segundo tais concepções escolares, o conhecimento é adquirido de fora para dentro, preenchendo o vazio inicial da mente com as cópias tiradas da realidade que irão formar o conteúdo mental. É por isso que a criança passa horas escutando as explicações dos professores para aprender. Mas, isoladamente, tal fato não basta para a criança aprender. É preciso que haja interação entre a criança e o conteúdo explicado uma vez que é a criança quem precisa organizar tal conteúdo. Piaget adota uma posição construtivista; uma vez que, para ele, o conhecimento não provém só do meio, como explicam os empiristas, ou só do indivíduo, como admitem os racionalistas, mas sim, da interação entre ambos. Para conhecer, o sujeito atua sobre o meio, transformando-o. “O conhecimento é sempre um vir a ser e consiste em passar de um conhecimento menor para um estado mais completo e mais eficaz” (PIAGET, 1973, p. 12). Avaliação cognitiva: contribuições para um melhor desempenho escolar 225 Nesse sentido, Piaget (1988, p. 32) ressalta que: A faculdade de pensar logicamente nem é congênita nem está pré-formada no psiquismo humano. O pensamento lógico é o coroamento do desenvolvimento psíquico e constitui o término de uma construção ativa e de um compromisso com o exterior, os quais ocupam toda a infância. A construção psíquica que desemboca nas operações lógicas depende primeiro das ações sensoriomotoras, depois das representações simbólicas e finalmente das funções lógicas do pensamento. O desenvolvimento intelectual é uma cadeia ininterrupta de ações, simultaneamente de caráter íntimo e coordenador, e o pensamento lógico é um instrumento essencial da adaptação psíquica ao mundo exterior. Piaget (1973) traz uma outra visão de aluno, que seria a de um ser que nasce com a capacidade de vir a ser inteligente e que quanto mais age sobre o objeto de conhecimento, que podem ser os seus conteúdos, mais essa criança aprende. Além disso, muitas vezes faltam as estruturas intelectuais para que essa criança aprenda um determinado conteúdo, e esse é memorizado sem entendimento algum, sendo logo esquecido. Tal fato não é levado em conta pelas escolas e, assim, muitas vezes, a criança obtém uma aprendizagem irreal, pois não foi possível assimilar e acomodar os conteúdos A teoria piagetiana tem por objetivo central explicar a construção das estruturas de conhecimento que surgem no decorrer do funcionamento adaptativo do ser humano. A construção dessas estruturas específicas para o ato de conhecer ocorre à medida que o sujeito interage com o meio. “[...] A originalidade das estruturas biológicas reside em serem dinâmicas, isto é, admitem um funcionamento” (PIAGET, 1973, p. 169) Logo, é preciso que as crianças pensem sobre os conteúdos escolares. Piaget (1973) acredita que todos os seres humanos nascem com a capacidade de vir a ser inteligentes, uma vez que herdam de seus ancestrais a possibilidade orgânica de construir a inteligência. 226 Roberta Rocha Borges e Orly Zucatto Mantovani de Assis [...] o conhecimento não poderia ser concebido como algo predeterminado nas estruturas internas do indivíduo, pois que estas resultam de uma construção efetiva e contínua, nem nos caracteres preexistentes do objeto, pois que estes só são conhecidos graças à mediação necessária dessas estruturas; e estas estruturas os enriquecem e enquadram (pelo menos os situando no conjunto dos possíveis) (PIAGET, 1971, p. 7). A construção das estruturas da inteligência não pode ser explicada apenas pelo processo de aprendizagem. “A aprendizagem com reforço externo produz muito pouca mudança no pensamento lógico ou então uma extraordinária mudança momentânea, sem compreensão real” (PIAGET, 1978, p. 89). As estruturas cognitivas possuem um caráter integrador, visto que são preparadas por aquelas que as precedem, integrando-se àquelas que as sucedem. Para que ocorra a construção das estruturas da inteligência, o sujeito precisa adaptar-se ao meio, e tal adaptação dá-se através de dois processos fundamentais e indissociáveis: assimilação ou incorporação de um elemento do meio exterior e acomodação, que seria um processo complementar ao da assimilação, e que implica na modificação do esquema ou estrutura em função das particularidades do objeto a ser assimilado. A adaptação supõe sempre um equilíbrio entre a assimilação e a acomodação. [...] uma acomodação só pode ser a acomodação de uma estrutura organizada e, por conseguinte, não se produz sob a influência de um fator ou de um elemento exterior senão na medida em que há mais assimilação momentânea ou durável deste elemento ou de seu prolongamento à estrutura que modifica (PIAGET, 1973, p. 200). Para Piaget, assimilação e acomodação são duas funções complementares, constituindo os dois pólos funcionais de toda adaptação, opostos um ao outro. “[...] O caráter indissociável da assimilação e da acomodação, condições constitutivas, são ao mesmo tempo inseparáveis e necessárias [...] “ (PIAGET, 1973, p. 200). Avaliação cognitiva: contribuições para um melhor desempenho escolar 227 É através dos processos de assimilação e acomodação que as estruturas se transformam, dando origem umas às outras. O fato essencial, do qual se deve partir, é o de que nenhum conhecimento, mesmo que perceptivo, constitui uma simples cópia do real, uma vez que supõe um processo de assimilação às estruturas anteriores. Assim: [...] Assimilação é realmente a integração a estruturas prévias, que podem permanecer invariáveis ou são mais ou menos modificadas por esta própria integração, mas sem descontinuidade com o estado precedente, isto é, sem serem destruídas, mas simplesmente acomodando-se à nova situação (PIAGET, 1973, p. 13). É necessário que haja um equilíbrio entre a assimilação e acomodação para que o sujeito possa adaptar-se ao meio; tal equilíbrio implica uma modificação das estruturas e, ao mesmo tempo, sua conservação. Pode-se afirmar, a partir dessa teoria, que o meio exerce um papel fundamental na construção das estruturas cognitivas. É a partir das solicitações do meio que ocorre a construção do conhecimento, uma vez que ele oferece estímulos aos quais o indivíduo reage. A solicitação do meio deve ser entendida como um processo sistemático que consiste em colocar a criança em situaçõesproblema que a conduzem a manipular um conjunto de objetos que, pela sua natureza (forma-cor e tamanho), deverão determinar a sua capacidade crescente de: a) conhecer suas propriedades físicas; b) estabelecer relações entre esses objetos reuni-los em classes, dissociá-los (concluir, por exemplo, que uma bola amarela pertence ao mesmo tempo ao conjunto de objetos amarelos e ao conjunto das bolas); c) ordená-los, entendendo que se um elemento “A” de uma série é maior do que “B” de uma mesma série e “B” é maior do que “C”, logo, “A” é maior do que “C”. Essas noções implicam a conservação da substância, a classificação e a seriação operatória (ASSIS, 1976, p. 52) 228 Roberta Rocha Borges e Orly Zucatto Mantovani de Assis Nesse sentido, Assis (1976) enfatiza, em seus estudos, o quanto o papel do meio influencia na construção das estruturas de inteligência. Só esses estímulos do meio fazem com que a criança reaja à construção do conhecimento. Dessa forma, o ritmo do processo de construção das estruturas da inteligência depende das solicitações do meio e das respostas do sujeito a essas solicitações; por conseguinte, poderá haver acelerações ou atrasos devido às experiências adquiridas e às transmissões sociais. Como afirma o próprio Piaget (1973, p. 102): Sabemos que hoje esta organização consiste na construção de estruturas operatórias, a partir da coordenação geral das ações, e que esta construção se efetua graças a uma série de abstrações reflexivas (ou diferenciações) e de reorganizações (ou interações). Julgamos saber, além disso, que estes processos são dirigidos por uma auto-regulação ou equilibração progressiva e que supõem claramente a interação contínua entre o sujeito e os objetos, isto é, o duplo movimento de assimilação às estruturas de acomodação destas ao real. O desenvolvimento da inteligência da criança surge como sucessão de quatro grandes construções, em que cada uma delas prolonga a anterior, reconstruindo-a; primeiro, num plano novo, para ultrapassá-la e, em seguida, de forma cada vez mais ampla. São estes os estágios da inteligência estudados por Piaget: o da inteligência sensório-motora ou prática, que constitui o período que vai da lactência até por volta de 1 ano e meio a dois anos, isto é, anterior ao desenvolvimento da linguagem e do pensamento; o estágio da inteligência intuitiva, ou pré-operatório, que se inicia, aproximadamente, aos 2 anos e termina por volta dos 7/8 anos; o estágio das operações intelectuais concretas, ou seja, operatório concreto (começo da lógica) e que se inicia por volta dos 7/8 anos e termina, aproximadamente, aos 11/12 anos e, por último, o estágio das operações intelectuais abstratas, que se inicia por volta dos 11/ 12 anos e se estende até os 15/16 anos. Piaget (1975, p. 14) explica, em relação aos estágios, que: Avaliação cognitiva: contribuições para um melhor desempenho escolar 229 Cada estágio é caracterizado pela aparição de estruturas originais, cuja construção o distingue dos estágios anteriores. O essencial dessas construções permanece no decorrer dos estágios ulteriores, como sub-estruturas, sobre as quais se edificam as novas características. Segue-se que, no adulto, cada um dos estágios passados corresponde a um nível mais ou menos elementar ou elevado da hierarquia das condutas. Mas a cada estágio correspondem também características momentâneas e secundárias, que são modificadas pelo desenvolvimento ulterior, em função da necessidade de melhor organização. Cada estágio constitui, então, pelas estruturas que o definem, uma forma particular de equilíbrio, efetuando-se a evolução mental no sentido de uma equilibração sempre mais completa. O período sensório-motor vai do nascimento até a aquisição da linguagem, sendo de extrema importância para o desenvolvimento mental, uma vez que é decisivo para todo o curso da evolução psíquica, representando a conquista da percepção e dos movimentos de todo o universo prático que cerca a criança. Esse período constitui o ponto de partida do desenvolvimento, uma vez que, quando o recém-nascido vem ao mundo, este possui um conjunto de reflexos (como, por exemplo, o de sugar ou o de pegar) que entram em ação desde o nascimento. As repetições das ações ajudarão na consolidação da conduta, fazendo com que o bebê domine determinada ação. Piaget denomina esse período de sensório-motor, pois há falta de função simbólica; o bebê não apresenta pensamento nem afetividade ligados às representações que permitam evocar pessoas ou objetos na ausência deles. A inteligência, nesse período, é essencialmente prática, ou seja, tende a resultados favoráveis, e não ao enunciado de verdades. Essa inteligência resolve um conjunto de problemas por meio da ação, como por exemplo: alcançar objetos afastados ou escondidos, construindo, para isso, um sistema complexo de esquemas de assimilação e de organização do real de acordo com um conjunto de estruturas espaçotemporais e causais. 230 Roberta Rocha Borges e Orly Zucatto Mantovani de Assis Para Piaget e Inhelder (1988, p. 31), os esquemas sensóriomotores constituem o alicerce sobre o qual todos os conhecimentos ulteriores serão construídos. Suas palavras são esclarecedoras quando eles afirmam: Se as crianças dos sete aos doze anos, e mais tarde os adultos, são capazes de adquirir conhecimentos geométricos e físicos é porque já durante os primeiros anos da vida conquistaram o espaço graças aos seus movimentos e percepções. A coordenação dos movimentos do próprio corpo e dos objetos leva ao conhecimento sensório-motor do espaço sobre o que se estruturam mais tarde as representações espaciais concretas e, sobre estas, as operações geométricas do pensamento. Pela coordenação dos movimentos e das percepções a criança constrói o esquema de sua conduta frente aos objetos constantes. Descobre que também os objetos, total ou parcialmente ocultos, têm uma forma e um tamanho permanentes. Este esquema sensório-motor dos objetos constitui por sua vez o fundamento de todos os princípios de invariação físico-matemática adquiríveis posteriormente, os quais dão segurança ao nosso pensamento e nos permitem orientar-nos no acontecer tempo-espacial. É a partir de um conjunto de reflexos que o bebê traz consigo ao nascer que este vai se relacionar com o meio exterior e adaptar-se. Esses reflexos vão perdendo sua rigidez inicial e vão adaptando-se a situações externas, transformando-se em esquemas de ação os quais permitem ampliar, consideravelmente, as possibilidades de contatos da criança com o mundo. Dessa maneira, nesse período, o sujeito inicia o processo de construção do conhecimento, ou seja, a construção de esquemas sensório-motores que se integrarão às estruturas do pensamento pré-operatório. Ao final de dois anos, a criança do período sensório-motor construiu o conhecimento prático da realidade e de si própria, bem como seus esquemas sensório-motores. O período pré-operatório ou da inteligência intuitiva ou prélógica tem o seu início a partir dos 2 anos, estendendo-se até por Avaliação cognitiva: contribuições para um melhor desempenho escolar 231 volta dos 7 anos. Tal período é marcado pela capacidade de representação, que consiste na função simbólica ou semiótica, a qual possibilita a evocação de alguma coisa: um significado qualquer, um objeto ou um acontecimento por meio de um significante diferenciado e específico para esse fim. A criança, no segundo ano de vida, torna-se capaz de representar o passado e antecipar o futuro por meio da imitação, do jogo simbólico, do desenho, da linguagem e da imagem mental. A imitação diferida consiste na capacidade de a criança reproduzir um modelo na ausência dele, após um intervalo mais ou menos longo, enquanto que, no período sensório-motor, o bebê realiza imitações somente dos modelos que percebe. O jogo simbólico consiste na assimilação egocêntrica do real pela própria criança, uma vez que transforma o real ao sabor de suas fantasias e de seus desejos. O jogo simbólico é importante para a criança, tendo em vista que serve para a resolução de conflitos, para a compensação de necessidades não satisfeitas, para a inversão de papéis, para a extensão do eu etc.: [...] Tal é o jogo que transforma o real por assimilação mais ou menos pura às necessidades do eu, ao passo que a imitação (quando constitui um fim em si mesma) é a acomodação mais ou menos pura aos modelos exteriores e a inteligência é equilíbrio entre a assimilação e acomodação (PIAGET, 1995, p. 52). Por sua vez, a imagem mental resulta de uma interiorização da imitação, permitindo à criança a evocação representativa de um objeto ou acontecimento ausente e, por conseguinte, a diferenciação entre significantes e significados. O desenho se inscreve a meio caminho entre o jogo simbólico e a imagem mental, que representa o esforço de imitação do real. Quanto à linguagem, ao final do período sensório-motor, surgem as “palavras-frases” por meio das quais a criança exprime seus desejos, emoções, bem como os acontecimentos passados e futuros. 232 Roberta Rocha Borges e Orly Zucatto Mantovani de Assis Piaget afirma, em relação à função simbólica, que: A despeito da espantosa diversidade das suas manifestações, a função semiótica apresenta notável unidade. Quer se trate de imitações diferidas, de jogo simbólico, de desenho, de imagens mentais e de lembranças-imagens ou de linguagem, consiste sempre em permitir a evocação representativa de objetos ou acontecimentos não percebidos atualmente. Mas, reciprocamente, se possibilita, dessa maneira, o pensamento, fornecendo-lhe ilimitado campo de ação sensório-motora e de percepção, que só progride sob a direção e graças às contribuições desse pensamento ou inteligência representativa. Nem a imitação, nem o jogo, nem o desenho, nem a imagem, nem a linguagem, nem mesmo a memória (à qual se teria podido atribuir uma capacidade de registro espontâneo comparável ao da percepção) se desenvolvem ou organizam sem socorro constante da estruturação própria da inteligência (PIAGET, 1995 p. 79). O pensamento da criança pré-operatória é intuitivo, ou seja, até os sete anos ela permanece “pré-lógica e substitui a lógica pelo mecanismo da intuição” (PIAGET, 1991, p. 35). Piaget define a intuição como uma simples interiorização das percepções e dos movimentos sob a forma de imagens representativas e de “experiências mentais”, que prolongam, assim, os esquemas sensório-motores, sem uma coordenação propriamente mental. Portanto, a criança, diante de alguns problemas práticos, apresenta respostas que se apóiam nas aparências dos fatos, o que ocorre porque a criança pequena não infere de um modo dedutivo, nem indutivo, dependendo seus pensamentos quase sempre de deduções por analogia. Piaget e Inhelder (1988, p. 47) exemplificam: Uma menina quisera comer laranjas. Explica-se-lhe: as laranjas não têm ainda sua cor dourada, estão verdes, não estão maduras e, portanto, não se pode comê-las. Dá-se-lhe para beber camomila. Então ela observa: “a camomila já está amarela, as laranjas estão também amarelas; dê-me laranjas”. Da cor amarela da camomila deduz por analogia que as laranjas estarão já amarelas, isto é maduras. Avaliação cognitiva: contribuições para um melhor desempenho escolar 233 Pode-se afirmar que as crianças dessa idade deduzem um caso particular de outro caso particular, sem referir-se a uma lei comum que os ligue, o que acontece porque o pensamento delas é caracterizado pela falta de reversibilidade1 e pela ausência de conservação. A criança pequena ainda não é capaz de realizar “inclusões de classes” (implicações de classe), ou seja, incluir, no total, os elementos parciais (e, inversamente, desagregar o total em elementos parciais), nem coordenar entre eles relações simétricas e assimétricas. Uma outra característica importante, que marca também o período pré-operatório, é o egocentrismo intelectual. Piaget (1993, p. 61) explica: É uma atitude espontânea que comanda a atividade psíquica da criança nos seus primeiros tempos de vida e subsiste por toda a vida nos estados de inércia mental. Do ponto de vista negativo, esta atitude opõe-se à comparação do universo e à coordenação das perspectivas, isto é, à atividade impessoal da razão. Do ponto de vista positivo, esta atitude consiste num envolvimento do eu nas coisas e no grupo social, a tal ponto de o indivíduo imaginar conhecer as coisas e as pessoas por elas mesmas, enquanto na realidade lhes atribui, além das suas características objetivas, qualidades provenientes do seu próprio eu ou da perspectiva particular em que está envolvido. Sair do seu egocentrismo consistirá, portanto, para esse indivíduo, não tanto em adquirir conhecimentos novos sobre as coisas ou o grupo social, nem mesmo em aproximar-se mais do objeto, mas em descentralizarse e dissociar o sujeito ou o objeto: em tomar consciência do que é subjetivo nele, em situar-se entre o conjunto de perspectivas possíveis, e por aí estabelecer entre as coisas, as pessoas e seu próprio eu, um sistema de relações comuns e recíprocas. O egocentrismo opõe-se, pois, à objetividade, na medida em que objetividade significa relatividade no plano físico e reciprocidade no plano social. “Ora, do ponto de vista estrutural, a reversibilidade, que é a possibilidade permanente de uma volta ao ponto de partida, se apresenta sob duas formas distintas e complementares. Podemos voltar ao ponto de partida anulando a operação efetuada, o que constitui uma inversão ou negação: o produto da operação direta e de seu inverso é, então, a operação nula ou idêntica. Mas podemos voltar ao ponto de partida anulando uma diferença (no sentido lógico do termo), o que constitui uma reciprocidade: o produto de duas operações recíprocas é, então, não uma operação nula mas uma equivalência” (PIAGET, 1976, p. 205). 1 234 Roberta Rocha Borges e Orly Zucatto Mantovani de Assis Somente por volta dos sete anos ou oito anos, a criança libertase do pensamento egocêntrico; assim, já é capaz de relacionar e coordenar pontos de vista diferentes e o seu pensamento torna-se reversível. “A criança é capaz então de operações lógicas concretas, pode formar com os objetos concretos tanto classes como relações” (PIAGET, 1988, p. 38). Piaget e Inhelder (1988) afirmam que a criança desse período só pode construir as noções de classes e relações lógicas com a ajuda de objetos concretos. A criança operatória concreta ainda não é capaz de resolver problemas puramente verbais como, por exemplo: Edite tem cabelo mais escuro que Lili; Edite é mais loira que Suzana; qual das três tem o cabelo mais escuro? Em geral, respondem: Edite e Lili são morenas; Edite e Suzana são loiras; Lili é mais morena etc. “As crianças retrocedem assim a um tipo de conduta anterior, e formam uma série incoordenada de pares” (PIAGET; INHELDER, 1988 p. 39) . Isso ocorre porque só depois dos doze anos, comumente aos quinze, os jovens são capazes de substituir conceitos verbais por objetos concretos e uni-los num sistema reversível ao raciocinar, chegando à lógica formal. A lógica formal tem seu início por volta dos 11 anos, atingindo seu patamar de equilíbrio por volta de 14-15 anos. Piaget e Inhelder (1976) explicam o pensamento formal: Do ponto de vista das estruturas lógicas, os resultados parecem comportar uma conclusão que distingue claramente o adolescente da criança. Esta chega apenas a lidar com operações concretas de classe, de relações e números, cuja estrutura não ultrapassa o nível dos “agrupamentos” lógicos elementares ou dos grupos numéricos aditivos e multiplicativos. A criança chega, assim, a utilizar as duas formas complementares da reversibilidade (inversão para as classes e os números, reciprocidade para as relações), mas sem fundi-las nesse sistema único e total que caracteriza a lógica formal. O adolescente, ao contrário, superpõe a lógica das proposições à das classes e das relações, e assim desenvolve pouco a pouco (atingindo o seu patamar de equilíbrio por volta de 14-15 anos), um mecanismo formal fundamentado Avaliação cognitiva: contribuições para um melhor desempenho escolar 235 simultaneamente nas estruturas do reticulado e do grupo das 4 transformações; estas lhe permitirão reunir num mesmo todo, além do raciocínio hipotético dedutivo e da prova experimental baseada na variação de um único fator (desde que as outras coisas permaneçam iguais), certo número de esquemas operatórios que utilizará continuamente em seu pensamento experimental. (p. 249, grifo nosso). O período operatório formal é marcado pelas operações proposicionais e a conquista da capacidade de raciocinar a partir de proposições verbais, e não somente sobre objetos concretos. Em resumo, o SAIP , valoriza todas estas características do pensamento da criança, ou seja, nas suas avaliações faz diagnósticos do nível de desenvolvimento de cada sujeito participante para poder orientar pais e escolas quanto ao trabalho que devem realizar com as crianças que não apresentam o desempenho escolar exigido e esperado. Portanto, caberia neste momento explicar como se realizam as avaliações das estruturas intelectuais. O Processo de Avaliação proposto pelo SAIP Coerentemente com o propósito deste artigo, nesta seção serão descritos os processos envolvidos na fase de avaliação cognitiva. A avaliação realizada pelo S AIP ocorre de acordo com as seguintes etapas: entrevista de anamnese inicial com os pais com o objetivo de investigar a trajetória familiar e escolar da criança; avaliação da criança por meio de entrevista clínica, referente aos diferentes aspectos do desenvolvimento infantil: afetivo, cognitivo e social (PIAGET, 1979); por último, a entrevista devolutiva de retorno aos pais e/ou profissionais que fizeram o encaminhamento. Para diagnosticar a etapa de estruturação cognitiva das crianças entre 7-10 anos que são atendidas pelo SAIP são utilizadas as provas piagetianas que permitem diagnosticar a natureza das estruturas de pensamento operatório, as quais se manifestam pela presença de noções de conservação, classificação e seriação. 236 Roberta Rocha Borges e Orly Zucatto Mantovani de Assis Essas provas são aplicadas uma vez que conseguem diagnosticar o tipo de raciocínio que as crianças dessa faixa etária possuem, ou seja, se operam logicamente, pois ao construírem as estruturas de classificação, seriação e conservação, já conseguem operar concretamente. Dessa forma, é apresentado à criança um conjunto de situações específicas a partir da exposição de materiais diversos: duas coleções de fichas com duas cores para a conservação das quantidades discretas; massa de modelar com cor única e copos diferenciados em largura e altura para a conservação das quantidades contínuas; flores e frutas diferenciadas em subclasses, além de bastonetes de madeira, diferenciados pela altura para compor uma série crescente ou decrescente. A criança irá agir sobre esse material, formulando hipóteses e com isso explicitar sua forma de raciocínio. As figuras a seguir ilustram os materiais utilizados na aplicação das provas operatórias: Conservação das quantidades discretasFICHAS Seriação operatória BASTONETES Conservação das quantidades Contínuas-LÍQUIDO Conservação das quantidades Contínuas-MASSA Classificação operatória de inclusão de classes FRUTAS e FLORES Avaliação cognitiva: contribuições para um melhor desempenho escolar 237 Por meio dessas situações é possível conhecer em que etapa da construção cognitiva a criança se encontra e, desse modo, melhor compreender como ela se relaciona com os conteúdos escolares, uma vez que, segundo a teoria piagetiana, para se compreender é preciso que o dado exterior seja assimilado às estruturas intelectuais do sujeito, o que só é possível se tais instrumentos de pensamento já existirem anteriormente (BORGES et al., 2006) No diagnóstico do pensamento operatório, considera-se que a criança possui a noção de conservação de quantidades discretas – fichas – quando faz a correspondência termo a termo e afirma a igualdade das quantidades, mesmo quando a correspondência ótica deixa de existir, isto é, ela compreende que dois conjuntos são equivalentes, mesmo que a disposição de seus elementos seja modificada, apresentando os argumentos de identidade, reversibilidade simples e/ou por reciprocidade. A criança possui a noção de conservação do líquido quando afirma que, nos copos A e B e A e C, há a mesma quantidade de água. Com relação à massa, quando afirma que as bolinhas transformadas continuam tendo a mesma quantidade de massa. Possui a noção de inclusão de classes ou de classificação operatória quando responder que “há mais frutas”, porque bananas e maçãs são frutas e “mais flores”, porque rosas e margaridas são flores. Possui a noção de seriação quando compreende que qualquer um dos elementos medianos da série é, ao mesmo tempo, maior dos que o antecedem e menor dos que o sucedem (BORGES et al., 2006). Participantes do processo de avaliação realizado pelo SAIP No ano de 2007, o SAIP avaliou cerca de 30 crianças entre sete e dez anos de idade, provindas de escolas particulares e públicas de Campinas e região, encaminhadas pela família ou pela escola, com queixas de dificuldades de aprendizagem, ou suspeita de atraso no processo de desenvolvimento. 238 Roberta Rocha Borges e Orly Zucatto Mantovani de Assis Nessas avaliações constatou-se que 94% das crianças possuíam um atraso no processo de construção das estruturas operatórias. Ou seja, eram crianças que, de um modo geral, participavam de uma aprendizagem que privilegiava a ação do professor e não a do aluno, centrada no cumprimento de instrução e na memorização. Portanto, quando os conteúdos escolares requeriam pensar-se sobre eles e relacioná-los, essas crianças apresentavam dificuldades de entendimento e resolução dos exercícios. Dessa forma, há necessidade de um trabalho de intervenção pedagógica para que essas crianças construam tais estruturas que minimizem as dificuldades de aprendizagem, uma vez que os estudos fundamentados na teoria piagetiana têm dado provas de que o predomínio desse modelo escolar dificulta o desenvolvimento da capacidade de pensar por parte do aluno e representa um entrave para o processo de estruturação cognitiva (BORGES et al., 2006). Esse atraso pode ser explicado, principalmente, devido a um ambiente escolar empobrecido de situações desafiadoras ao pensamento e à ação da criança. Como já foi mencionado anteriormente, a criança é quem deve ser agente construtor do seu próprio conhecimento. Tomando por referência os pressupostos piagetianos, essas crianças avaliadas que não apresentaram as estruturas lógicas foram encaminhadas ao programa de intervenção do SAIP, com vistas a participarem de atividades desafiadoras, capazes de mobilizar seus esquemas de modo a fazê-las progredirem e terem um desempenho apropriado na escola. Pode-se afirmar que existe uma interdependência entre as estruturas intelectuais e a aprendizagem escolar, visto que 94% das crianças que foram encaminhadas pela escola ou por suas famílias, em função de não apresentarem um bom desempenho nas tarefas acadêmicas, não possuíam as estruturas cognitivas. Mas, por um outro lado, 6 % das crianças, ou seja, duas crianças cuja faixa etária estava entre 8 e 9 anos apresentavam dificuldades escolares, mas já haviam construído as estruturas operatórias quando Avaliação cognitiva: contribuições para um melhor desempenho escolar 239 foram aplicadas as provas para o diagnóstico do pensamento operatório. Tal resultado levou-nos a avaliar o processo de leitura e escrita (por meio de ditados, leitura de textos e redação) e analisar as provas escolares. O que foi constatado é que tais crianças encontravam-se em um processo de construção da leitura e escrita que a escola valoriza como única forma de avaliação dos alunos. E essas duas crianças que possuíam a inteligência preservada e raciocínio para entender os conteúdos da escola estavam sendo tratadas por essa instituição como “seres incapazes”, que não apresentavam bom desempenho nas provas escolares porque ainda estavam em fase de construção do sistema escrito e também porque erravam os exercícios que exigiam memorização e técnicas para assimilação de alguns conteúdos. Quanto aos procedimentos pedagógicos, tais crianças não necessitaram de intervenção pedagógica enquanto construção das estruturas cognitivas, mas foram apresentadas aos pais, bem como à escola, orientações quanto a um plano de estudo para elas; o retorno obtido de pais e escola foi a melhora significativa no desempenho escolar quando foi oferecida uma forma de trabalho pedagógico para essas crianças. Nesse sentido, as orientações que são transmitidas aos pais consistem em organizar um horário fixo de estudo, bem como um local apropriado para isso. Quanto ao plano de estudo, este consiste em refazer as atividades propostas pela escola para que tais conteúdos sejam realmente assimilados, acomodados e equilibrados pela criança, tendo-se em vista que, muitas vezes, o conteúdo é exposto uma única vez. No entanto, uma das crianças que foi avaliada não teve necessidade de acompanhamento pedagógico por parte do SAIP, pois só o que faltava era o seguimento de um adulto, ou melhor, da família na orientação de seus estudos: checar as lições feitas, apontar as dificuldades percebidas no desenvolvimento escolar, solicitar à criança que revise o conteúdo na época de provas etc. 240 Roberta Rocha Borges e Orly Zucatto Mantovani de Assis Já quanto à outra criança, foi necessário um acompanhamento no processo de leitura e escrita, uma vez que esta apresentava um pequeno atraso. A pedagoga do SAIP também orientou a forma como a criança deveria estudar para realizar as provas bimestrais. Acreditase que até o final do presente ano de 2007, essa criança já consiga acompanhar a escola sem o auxílio de um profissional. Considerações finais Por meio dos resultados obtidos a partir do trabalho de avaliação desenvolvido pelo SAIP , podem-se classificar as crianças em dois grupos: o primeiro composto pelas crianças que possuem as estruturas intelectuais próprias da sua idade e o segundo grupo formado pelas crianças que não possuem as estruturas intelectuais. O primeiro grupo, que representa 6% das crianças que foram diagnosticadas pelo SAIP, apresenta as estruturas operatórias para o entendimento dos conteúdos escolares. Essas crianças apresentam baixo desempenho escolar; falta ensinar-lhes como dominar técnicas de resolução das operações de somar subtrair, dividir e multiplicar, bem como informar às crianças de que alguns conteúdos escolares exigem memorização, como por exemplo os estados de seu país e suas capitais, datas, ortografia de algumas palavras etc. Não se pode esquecer também que elas estão em processo de construção da linguagem escrita. Todavia, já construíram o principal instrumento para acompanhar os conteúdos escolares que são as estruturas lógicas elementares. É preciso lembrar que os conteúdos que exigem memorização devem ser assimilados e acomodados pelas crianças, o que demanda certa repetição para que ocorra o aprendizado. Mas todo conteúdo que exige memorização e técnica para ser aprendido é extremamente cansativo para o aluno. Por isso é importante que se planejem atividades como, por exemplo, as que envolvam os jogos com regras, para que tais exercícios fiquem prazerosos para as crianças. Só assim Avaliação cognitiva: contribuições para um melhor desempenho escolar 241 elas realmente irão aprender e vir a ter um melhor desempenho escolar. Como ressalta Zaia (2006, p. 55): “Neste contexto os jogos e situaçõesproblemas se destacam pelo seu poder desafiador e pelas possibilidades de adaptação aos interesses, necessidades e possibilidades específicas das crianças”. Essas crianças não podem ser tratadas pelas escolas como seres incapazes, uma vez que apresentam as estruturas lógicas operatórias que permitem relacionar os conteúdos, interpretá-los e levantar soluções para os problemas a serem resolvidos. No momento em que dominarem a técnica de resolução de alguns exercícios, a memorização de alguns dados que necessitam realmente ser decorados e quando dominarem a leitura e a escrita, tais dificuldades desaparecerão. Nesses casos em que as escolas enviam tais crianças para a avaliação cognitiva e estas apresentam as estruturas lógicas é preciso cuidado ao lidar com esses alunos, pois são indivíduos pensantes e capazes. No entanto, estão sendo tratados por essas instituições como crianças sem condições de aprender, mencionando-se até mesmo a possibilidade da reprovação dessas crianças ou deixandoas com um sentimento de incapacidade, criando, assim, um desinteresse pela escola. Portanto, destaca-se a importância da avaliação das estruturas operatórias para identificar os reais problemas que estão dificultando o desempenho escolar da criança: para que se possa saber interferir e ajudar na superação das dificuldades presentes. No caso dessas crianças, ao final do processo de avaliação, o SAIP orienta os pais e a escola quanto à forma de estudo de alguns conteúdos escolares, não havendo necessidade de um trabalho específico de acompanhamento e intervenção. Quanto ao segundo grupo, composto por 94% das crianças que não possuem as estruturas cognitivas, há a necessidade de um trabalho de intervenção para que se possa dar a oportunidade de participarem de um processo em que as estruturas cognitivas possam ser construídas e as crianças tenham condições de realmente 242 Roberta Rocha Borges e Orly Zucatto Mantovani de Assis entenderem os conteúdos que a escola lhes apresenta. Caberia ressaltar que tal processo é longo e os resultados das construções das estruturas, muitas vezes, demoram por aparecer, tendo-se em vista que essas crianças participam desse trabalho de intervenção uma vez por semana, devido ao tempo disponível dos pais e dos próprios educandos. Mesmo assim, essas atividades de avaliação e de intervenção realizadas junto às crianças têm fornecido dados empíricos que comprovam que a construção do conhecimento é resultado de um processo interno de pensamento em que o sujeito coordena diferentes noções entre si, atribui-lhes um significado, organizando-as e relacionando-as àquelas que já possuía anteriormente por meio dos processos cognitivos dos quais dispõe. A construção desses instrumentos de pensamento é fruto de um processo inalienável e intransferível decorrente das trocas as quais se estabelecem entre o indivíduo e o meio físico e/ou social (BORGES et al., 2006). Nesse sentido, o papel do profissional do SAIP, que atua com a criança com dificuldade de aprendizagem, consiste em criar condições favoráveis para a construção de suas estruturas cognitivas, e não em transmitir o conhecimento, sob a forma de soluções prontas, na tentativa de inculcar conteúdos na cabeça dos alunos, ignorando seus processos construtivos ao supor que os mesmos possam aprender por meio de atividades desprovidas de sentido. O S AIP leva em conta algumas condições que considera necessárias para aprender, tais como: a possibilidade de organizar dados; coordenar ações observáveis; solucionar problemas; levantar hipóteses; construir e experimentar estratégias de verificação; considerar situações passadas e antecipar possibilidades; tomar consciência das ações e operações realizadas, compreender e seguir regras de ação e de convivência social, além de descentração do próprio ponto de vista e da possibilidade de colocar-se no lugar do outro (BORGES et al., 2006). Assim, o trabalho de inter venção psicopedagógica, desenvolvido pelo SAIP consiste em criar situações que geram conflitos Avaliação cognitiva: contribuições para um melhor desempenho escolar 243 cognitivos os quais, por sua vez, desencadeiam o processo de equilibração, responsável pela construção do conhecimento. São situações durante as quais as crianças têm a oportunidade de construir conceitos e noções a partir da exploração ativa dos objetos que o meio lhes oferece. As crianças do SAIP vêm apresentando avanços e conquistas escolares como ressalta Mantovani de Assis (2004): “ [...] à medida que a criança se desenvolve, sua capacidade de aprender também aumenta”. Em outras palavras, os resultados encontrados mostram que os procedimentos utilizados têm, satisfatoriamente, desencadeado mudanças nas condutas dos sujeitos, contribuindo para o avanço na construção das estruturas lógicas elementares e, conseqüentemente, para a melhora do desempenho escolar. Assim, o trabalho do SAIP está comprometido com uma forma complexa de avaliar as crianças, em que os resultados apresentam maneiras para saber intervir com cada uma delas. Como ressaltam Dolle e Bellano (1995, p. 32), “o sujeito não pode ser apreendido senão em sua própria complexidade. Daí vem a necessidade de apurar os métodos destinados a observá-lo, avaliá-lo, a educá-lo, a conhecêlo”. É justamente por isso que o SAIP acredita no trabalho de avaliação para diagnosticar a dificuldade escolar de cada criança e, assim, traçar um plano de trabalho específico para cada caso. Só assim será garantido à criança o direito de freqüentar a escola e aprender os conteúdos que lhes são ensinados. Referências bibliográficas ASSIS, O. Z. M. Uma nova metodologia de educação pré-escolar. 7. ed. São Paulo: Pioneira, 1976. ______. (Org.). Provas para diagnóstico do comportamento operatório concreto e formal. São Paulo: Ed. da UNICAMP, 2004. ______; ASSIS, M. C. (Org). PROEPRE: prática pedagógica. São Paulo: Ed. da UNICAMP, 2004. 244 Roberta Rocha Borges e Orly Zucatto Mantovani de Assis BORGES, R. R. A construção da noção de família em crianças pré-escolares. 2001. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação da UNICAMP, Campinas, 2001. BORGES, R. et al. A contribuição da avaliação cognitiva para a inclusão social: o trabalho de Avaliação e Intervenção Psicopedagógica – SAIP. In: ENCONTRO NACIONAL DE PROFESSORES DE PROEPRE: EDUCAÇÃO E INCLUSÃO SOCIAL, 23., 2006, Campinas. Anais... Campinas: LPG/FE/UNICAMP, 2006. DOLLE, J. M.; BELLANO, D. Essas crianças que não aprendem: diagnósticos e terapias cognitivas. Traduzido por Cláudio João Paulo Saltini. Rio de Janeiro: Vozes, 1995. MACEDO, L. Ensaios construtivistas. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1994. PIAGET, J. O nascimento da inteligência na criança. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1966. ______. Biologia e conhecimento. Tradução de Francisco M. Guimarães. Petrópolis: Vozes, 1973. Edição original: 1967. ______. 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Apresentaremos aqui os dados referentes a três delas: 1) Como você se sente em relação ao aluno com dificuldade de aprendizagem? Que sentimentos ele desperta em você? 2) Na sua opinião, o que é imprescindível para que um aluno aprenda? 3) Que outros fatores você considera importante para o sucesso da aprendizagem? Os dados obtidos a partir das respostas foram categorizados segundo a análise de conteúdo e análise estatística simples. Os principais resultados indicam que os futuros psicopedagogos demonstram dificuldade em considerar os inúmeros aspectos envolvidos na situação de ensino e aprendizagem, culpando ou os alunos ou os próprios docentes. Há também, em grande parte dos sujeitos, um sentimento de impotência e * Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP ). Docente e Coordenadora dos Cursos de Pedagogia e Psicopedagogia da UNIFAIMI, Mirassol-SP. E-mail: [email protected]; [email protected] ** Doutora em Educação pela UNICAMP. Docente do Departamento de Psicologia da Educação da Universidade Estadual Paulista (U N E S P ), campus de Marília-SP. E-mail: [email protected] APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano V n. 9 p. 247-268 2007 248 Karina Perez Guimarães e Eliane Giachetto Saravali incapacidade de ação diante de um aluno que não aprende. Estes dados iniciais apresentam as idéias e concepções que futuros profissionais têm e chamam a atenção para a importância da discussão destes temas nos cursos de formação de psicopedagogos. Palavras-chave: Dificuldades de aprendizagem. Psicopedagogia. Psychopedagogical formation and learning difficulties Abstract: This article presents a cutout made from a research that investigates ideas and conceptions of psychopedagogues about learning difficulties. The participants are 52 students of Psychopedagogy course in private institutions of the interior do São Paulo state and Minas Gerais. All of them have answered a questionnaire composed of nine discursive questions. We will present the results referring to three of them: 1) How do you feel about students with learning difficulties? What feelings does s/he rise in you? 2) In your opinion, what is indispensable for a student to learn? 3) What other factors do you consider important for the success of learning? Data raised from the answers to these questions were categorized according to the analysis of content and simple statistic analysis. The main results indicate that future psychopedagogues demonstrate difficulties in considering the innumerous aspects involved in the teaching and learning situation, blaming either the students or the teachers. It could also be noticed a feeling of impotence and incapacity of action when dealing with a student who does not learn among the majority of the participants. These initial data present ideas and conceptions that future professionals have and call our attention to the importance of discussion of these topics in the courses of formation of psychopedagogues. Key words: Learning difficulties. Psychopedagogy. Introdução Dificuldades de aprendizagem, distúrbios de aprendizagem, problemas específicos para aprender, déficits cognitivos, entre tantos outros, são termos bastante utilizados em nossas escolas e por nossos docentes, na atualidade. Ao mesmo tempo e, de forma relacionada, cresce a fila de encaminhamentos para atendimento especializado de nossas crianças; tais atendimentos enquadram-se em diferentes áreas como a neurologia, a psicopedagogia, a fonoaudiologia e a psicologia. Formação psicopedagógica e dificuldades de aprendizagem 249 Embora esse quadro sugira uma epidemia escolar, diante da (nova) incapacidade de aprender de nossas crianças, e uma idéia equivocada de que os procedimentos adotados estão resolvendo os problemas dos alunos, ao se pesquisar a definição dos termos mais utilizados em diagnósticos e avaliações, não se observa consenso entre os pesquisadores e autores da área. Talvez, seja essa amplitude e confusão terminológica que permita tantos rótulos prévios e poucas reflexões sobre as ações pedagógicas (SARAVALI, 2005). Um profissional que vem sendo muito procurado nesses encaminhamentos feitos pelas escolas é o psicopedagogo. Ainda que não seja uma profissão legalmente regulamentada a Psicopedagogia tem um reconhecimento social importante e isso tem se mostrado nas intervenções e ações que muitos psicopedagogos, seja num âmbito clínico ou institucional, têm conseguido realizar junto a escolas e a alunos que não aprendem. Pensando nessas questões, o objetivo desse artigo é discutir dados parciais de uma pesquisa que investiga as concepções que futuros psicopedagogos têm acerca do termo “dificuldades de aprendizagem”. Como esses futuros profissionais avaliam e percebem essas questões? Como interpretam o ter mo dificuldades de aprendizagem? Quais atribuições e quais processos são considerados quando pensam numa criança que não aprende? Nosso objetivo é discutir, a partir das concepções apresentadas, a importância do conhecimento e da investigação de questões relacionadas ao não aprender, sobretudo, por parte dos profissionais que vão lidar, ao menos em tese, diretamente com essas crianças. Alunos que não aprendem: desafios e perspectivas O termo dificuldade de aprendizagem não é recente e há uma evolução histórica que caracteriza múltiplas influências que os estudos e pesquisas nessa área sofrem. Conforme apresentado em Saravali (2005), essas diferentes perspectivas ora apontam para tendências 250 Karina Perez Guimarães e Eliane Giachetto Saravali médicas e orgânicas, ora para tendências psicológicas e pedagógicas sem, no entanto, haver consenso sobre o que caracteriza uma dificuldade de aprendizagem. [...] as teorias das dificuldades de aprendizagem são controversas, conceitualmente confusas e raramente apresentam dados de aplicação educacional imediata. Mesmo com uma grande panorâmica e com um grande potencial de investigação, as teorias das DA continuam a ser muito complexas e muito pouco consistentes (FONSECA, 1995, p. 57-58). Dentro dessa variedade terminológica, há autores que buscam uma separação entre o que seria denominado problema, dificuldade ou distúrbio de aprendizagem. É o caso, por exemplo, dos trabalhos de Passeri (2003) e Osti (2004). Neles, as autoras apontam que o termo distúrbio de aprendizagem refere-se mais a comprometimentos neurológicos e que o termo dificuldade de aprendizagem trataria mais de problemas na área acadêmica, decorrentes de fatores internos ou externos ao indivíduo. Segundo Passeri (2003, p. 29) “este segundo termo é mais genérico, portanto, e envolve os termos ‘dificuldade escolar’ e ‘problemas de aprendizagem’”. No entanto, essa perspectiva não se confirma em várias outras obras nas quais, muitas vezes, estes termos são tratados como sinônimos, é o caso, por exemplo, do trabalho de Smith e Strick (2001). Uma das poucas certezas que podemos ter em relação a estas definições é que as crianças com dificuldades de aprendizagem não apresentam baixa inteligência, mas sim problemas específicos para aprender. Essa caracterização foi apresentada à comunidade científica por Samuel Kirk considerado, atualmente, o pai dos estudos nesse campo. Todavia, cumpre destacar que ao definir o termo, o autor apontava que tais problemas eram provocados, especialmente, por desordens internas ou fatores intrínsecos aos indivíduos. Na atualidade, esse panorama não sofreu grandes transformações, mas podemos considerar uma definição bastante Formação psicopedagógica e dificuldades de aprendizagem 251 aceita datada de 1988 pelo National Joint Committee on Learning Disabilities, qual seja, dificuldades de aprendizagem engloba um grupo heterogêneo de transtornos, manifestando-se por meio de atrasos ou dificuldades em leitura, escrita, soletração e cálculo, em pessoas com inteligência potencialmente normal ou superior e sem deficiências visuais, auditivas, motoras ou desvantagens culturais. Geralmente, não ocorre em todas essas áreas de uma só vez e pode estar relacionada a problemas de comunicação, atenção, memória, raciocínio, coordenação, adaptação social e problemas emocionais (SISTO, 2001). O indivíduo com DA não possui rebaixamento de QI, indicando aquilo que muitos autores chamam de conduta discrepante acentuada entre o potencial para a aprendizagem e o desempenho acadêmico. Dessa forma, podemos dizer, de modo simplificado, que são sujeitos que não aprendem por questões próprias, ou seja, intrínsecas, mas, ao mesmo tempo, são sujeitos com grande potencial para aprendizagem. Embora muitos autores considerem essa definição como a mais completa, não acreditamos que o uso abundante do termo em escolas e por docentes, pelo menos não de forma consciente, esteja enquadrado nos aspectos previstos pelo Comitê Internacional em questão, fato esse que, se assim o fosse, significaria o caos em relação à possibilidade de aprender dos nossos estudantes, dada a enorme quantidade de queixas em relação às dificuldades de aprendizagem discentes. Nesse sentido, entendemos que ao se assumir que nossos alunos com queixas de dificuldades de aprendizagem, que estão às margens de nosso sistema de ensino ou de nossas salas de aula, estão enquadrados nessa definição, estamos assumindo também que há uma espécie de epidemia escolar e de um grande número de desordens sofridas pelos estudantes. Essa postura desconsidera, ao menos em princípio, a coordenação de múltiplos fatores envolvidos no processo de aprendizagem, inclusive as questões pedagógicas. Fonseca (1995, p. 12) adverte que para definirmos ou mesmo pensarmos em dificuldades de aprendizagem devemos adotar uma 252 Karina Perez Guimarães e Eliane Giachetto Saravali postura interacional e dialética, ou seja, procurar integrar os déficits no indivíduo, na escola, na família e outros pois “[...] as condições internas (neurobiológicas) e as condições externas (sócio-culturais) desempenham funções dialéticas (psicoemocionais) que estão em jogo na aprendizagem humana”. Dessa forma, o ambiente escolar também pode ser ou não estimulante, oferecendo ou não as oportunidades apropriadas para a aprendizagem. A fim de obterem progresso intelectual, as crianças devem não apenas estarem prontas e serem capazes de aprender, mas também devem ter oportunidades apropriadas de aprendizagem. Se o sistema educacional não oferece isso, os alunos talvez nunca possam desenvolver sua faixa plena de capacidades, tornando-se efetivamente ‘deficientes’, embora nada haja de fisicamente errado com eles [...] A verdade é que muitos alunos fracos são vítimas da incapacidade de suas escolas para ajustarem-se às diferenças individuais e culturais (SMITH; STRICK, 2001, p. 33-34, grifo nosso). Um aspecto interessante de se considerar e que, talvez, fosse a primeira questão a ser colocada quando estamos diante de uma criança que não aprende é: quais foram as reais chances que essa criança, esse aluno teve de aprender esse ou aquele conteúdo? Ou, dito de outra forma: esse aluno teve, durante seu processo de escolarização, as solicitações adequadas para que seu desenvolvimento ocorresse de maneira plena em seus aspectos social, afetivo, cognitivo e motor, de tal forma a favorecer a construção do conhecimento e a aprendizagem dos conteúdos escolares? A resposta, afirmativa ou negativa, muda ou deveria mudar radicalmente as condutas seguintes. Devemos evitar aqui ao máximo o processo de culpabilização, já existente, que ora atribui a responsabilidade da não aprendizagem ao aluno e sua família e ora, somente, ao docente e sua prática cotidiana. Todavia, é sempre bom destacar que é a criança que sofrerá as maiores conseqüências de uma rotulação prévia, excludente e definitiva, tendo em vista que essa questão a acompanhará em toda sua trajetória escolar e em todas as situações de aprendizagem de sua vida. Formação psicopedagógica e dificuldades de aprendizagem 253 Collares e Moysés (1996) ao discutirem o fracasso escolar produzido no interior da escola usam o termo “patologização do processo de ensino-aprendizagem”, apontando o significado que uma doença, que um diagnóstico ou que a interferência de um outro profissional, principalmente da área da saúde, tem sobre a atuação docente. Muitas vezes, os professores esperam por isso para justificar, de uma forma praticamente definitiva, os maus resultados obtidos por seus alunos. Segundo essas autoras: A explicação para o fracasso escolar recai sempre sobre o aluno e os seus pais: crianças não aprendem porque são pobres, porque são negras, porque são nordestinas, ou provenientes de zona rural; são imaturas, são preguiçosas; não aprendem porque seus pais são analfabetos, são alcoólatras, as mães trabalham fora, não ensinam aos filhos... Pelo discurso dos professores e diretores, a sensação é de que estamos diante de um sistema educacional perfeito, desde que as crianças vivam uma vida artificial, sem nenhum tipo de problemas, enfim, crianças que provavelmente não precisariam da escola para aprender. Para a criança concreta, que vive neste mundo real, os professores parecem considerar muito difícil, se não impossível, ensinar (COLLARES; MOYSÉS, 1996, p. 26, grifo nosso). O uso recorrente de termos como dificuldades de aprendizagem, distúrbios, dislexia, discalculia, hiperatividade e a confusão terminológica existente, a nosso ver, permitem o grande número de encaminhamentos, gerando nas escolas e por parte dos docentes a necessidade de explicações provenientes de outras áreas e de outros profissionais, sobretudo da área da saúde. Entretanto, o que se observa é que a situação é caótica. As escolas encaminham, as crianças e suas famílias formam percepções sobre esses encaminhamentos e posteriores atendimentos, os diagnósticos são feitos e os alunos continuam não aprendendo na escola. Portanto, precisamos ao menos ter grande cautela e desconfiar do que vem ocorrendo. A respeito do diagnóstico, gostaríamos de comentar que diante dos inúmeros novos transtornos e problemas que existem ou que estão sendo descobertos, quase sempre são 254 Karina Perez Guimarães e Eliane Giachetto Saravali encontrados problemas em nossos alunos seja um transtorno disso ou daquilo, uma disfunção aqui ou ali. Mas, esse diagnóstico tem realmente alterado ou mudado ou, ainda, melhorado a vida das crianças nas carteiras escolares? Para quem ele serve? Retira o peso dos ombros dos pais? Dos professores? E os alunos? Como se relacionam com ele? Nesse contexto, um profissional que vem sendo bastante procurado e para o qual inúmeros alunos são encaminhados é o psicopedagogo. Os psicopedagogos são profissionais que lidarão com o processo de aprendizagem, objeto de estudo da Psicopedagogia. Segundo Macedo (1992, p. 123): “a psicopedagogia é necessária sempre que se puder, se quiser e se precisar considerar características psicológicas do sujeito que aprende, além de outras especificamente pedagógicas ou educacionais”. A formação do psicopedagogo em nosso país tem sido feita, em sua maioria, em cursos de especialização de 360 horas. Essa formação não pode prescindir de estudo teórico e prático que fundamente as ações deste profissional ao lidar com a aprendizagem seja na escola, na clínica ou em hospitais, tanto num nível remediativo como preventivo. Como hoje percebemos esse grande aumento no número de encaminhamentos oriundos da escola e dos docentes, é de se esperar que o psicopedagogo, pela própria especificidade da formação, tenha uma visão e postura diferentes, a começar, por exemplo, pela avaliação de um aluno que não aprende. O próprio código de ética da Psicopedagogia ressalta em seu artigo quinto que é dever do psicopedagogo “promover a aprendizagem, garantindo o bem-estar das pessoas [...]”. Dessa forma, cabe a esse profissional a investigação e busca constantes sobre razões e intervenções possíveis quando a aprendizagem não caminha bem e isso necessariamente implica em uma formação diferenciada. Fica, portanto, uma reflexão: será que nossos cursos de Psicopedagogia estão preparados para qualificarem seus alunos? Será que os futuros psicopedagogos estão sendo preparados no intuito de realmente intervirem nessas questões envolvendo a aprendizagem e as dificuldades de aprendizagem, tão disseminadas e incompreendidas no meio escolar? Formação psicopedagógica e dificuldades de aprendizagem 255 Nesse sentido, os dados que apresentaremos a seguir procuram clarificar as idéias que estes profissionais, futuros psicopedagogos, têm a respeito das dificuldades de aprendizagem e consequentemente das crianças que não aprendem. Entendemos que essa compreensão é importante na medida em que suas concepções influenciarão as decisões que tomarão em suas atividades profissionais. Essas decisões não deverão ocorrer somente no nível remediativo, ou seja, quando os problemas já estiverem instalados, mas também no nível preventivo, papel esse, principalmente, do psicopedagogo institucional. A visão dos futuros psicopedagogos A pesquisa que passaremos a apresentar baseia-se no trabalho de Osti (2004) que caracterizou o termo dificuldade de aprendizagem na concepção de 30 professores do ensino fundamental da rede pública do interior do estado de São Paulo. A autora se valeu de uma entrevista semi estruturada e da análise estatística das respostas. Os resultados obtidos demonstraram que os professores apresentam uma visão parcial do que seja a dificuldade de aprendizagem, atribuindo a responsabilidade ou a causa do problema em questão à família ou ao próprio aluno. Segundo Osti (2004), os sujeitos não foram capazes de considerar a correspondência entre a metodologia, a relação do professor e sua prática com a dificuldade do aluno. Tomando por referência o instrumento utilizado por Osti, trabalhamos com 52 alunos de cursos de Psicopedagogia em nível de especialização lato sensu de cidades do interior dos estados de São Paulo e Minas Gerais. Destes 52 alunos, 14 eram ingressantes, 20 estavam exatamente no meio do curso de especialização e 18 eram concluintes. Como não foram encontradas diferenças significativas nas respostas dos sujeitos em relação ao tempo que tinham de curso, os dados serão apresentados conjuntamente. 256 Karina Perez Guimarães e Eliane Giachetto Saravali Os alunos foram convidados a responder, por escrito, a um questionário que continha 9 questões referentes à aprendizagem e à dificuldade de aprendizagem, além de dados sobre a formação profissional, tempo de experiência etc. A graduação destes estudantes concentrava-se no curso de Pedagogia, conforme pode ser visto na tabela I a seguir: Tabela I – Graduação dos sujeitos CURSO Pedagogia Outras Licenciaturas Psicologia QUANTIDADE1 31 15 2 Outros Cursos 5 Nossos resultados foram, em alguns aspectos, semelhantes aos obtidos por Osti (2004). No entanto, como nosso estudo foi realizado com psicopedagogos, algumas diferenças foram observadas, sobretudo em relação às categorias das respostas obtidas, razão pela qual apresentaremos nossos dados sem compará-los diretamente com aqueles obtidos no trabalho de referência de Osti. A análise das respostas foi realizada conforme a metodologia da Análise de Conteúdo proposta e sistematizada por Bardin (1977); a quantificação destas respostas sofreu análise estatística simples. Em outra ocasião, já apresentamos dados referentes a três questões (GUIMARÃES; SARAVALI, 2006), são elas: 1) O que é dificuldade de aprendizagem?; 2) Em que momento você julga necessário encaminhar um aluno para atendimento especializado? e 3) Você já encontrou em sua prática alunos com dificuldade de aprendizagem? Se sim, emita um parecer sobre uma criança que apresentou dificuldade. Se não, explique hipoteticamente. Resumidamente, os dados obtidos a partir dessas três questões apontaram que 56% dos sujeitos classificam as dificuldades de 1 Um aluno tem formação em dois cursos diferentes. Formação psicopedagógica e dificuldades de aprendizagem 257 aprendizagem como problemas específicos e inerentes aos alunos, caracterizados como uma incapacidade do próprio sujeito que não aprende; 46% sentem-se incapazes diante do quadro de um aluno que não aprende e não sabem intervir, necessitando recorrer a atendimentos especializados e 33% descrevem alunos com dificuldades de aprendizagem como aqueles que possuem problemas relacionados aos conteúdos abordados em sala de aula, principalmente matemática e leitura e escrita. Esses dados iniciais apontaram para a existência de preconceitos e de rotulação prévia, principalmente na terminologia utilizada pelos futuros psicopedagogos. No presente artigo, analisamos outras três perguntas do instrumento aplicado. A primeira pergunta analisada foi formulada da seguinte maneira: Como você se sente em relação ao aluno com dificuldade de aprendizagem? Que sentimentos ele desperta em você? Na categoria I, observam-se sentimentos diversos como impotência, culpa, preocupação, mas que geram alguma mobilização, nesses casos os sujeitos se sentem desafiados, com vontade de ajudar, de solucionar o problema, indicando a presença de uma ação. Alguns exemplos: “Preocupada em detectar a fonte do problema e encontrar soluções para ajudá-lo a superar suas dificuldades”. “O sentimento às vezes é de angústia, impotência, necessidade de estudar mais etc.”. “São crianças que despertam em minha pessoa o desejo de poder ajudá-las e ampará-las, pois a visão que tenho dessas nas salas de aula, é que elas realmente ficam em condição de desamparo”. “Desperta às vezes um sentimento de insegurança, pois sabemos que teremos uma grande luta pela frente.” “Me dá forças para tentar descobrir como fazer com que ele aprenda”.2 Na categoria II, aparecem ainda os mesmos sentimentos diversos, porém, diferentemente da categoria anterior, não há referências a mobilizações ou a ações. Nas respostas observadas nessa categoria, é possível perceber certa inércia. Vejamos alguns exemplos: 2 Todas as respostas foram transcritas aqui exatamente como escritas pelos sujeitos. 258 Karina Perez Guimarães e Eliane Giachetto Saravali “Me sinto impotente, inapta”. “Sentimento de impotência”. “Incapacidade do professor para motivá-lo a aprender”. “Sentimento de insegurança”. “Não poder desenvolver um trabalho para que atinja o seu objetivo”. “Eu sinto um desejo enorme de ajudá-lo, mas me vejo impotente às vezes, sem nenhuma condição para isso. O sentimento que ele desperta em mim é de pena e compaixão”. “Me sinto um pouco angustiada por não poder ajudá-lo tanto quanto ele precisa, tendo em vista que muitos alunos apresentam dificuldades avançadas isto faz com que seja despertado sentimentos de frustração”. “Ao deparar-me com algum aluno com dificuldade de aprendizagem, além de ficar preocupado, fico inseguro, sem saber ao certo quais decisões tomar. O aluno com dificuldade de aprendizagem desperta em mim um profundo sentimento de impotência [...]”. Três respostas compõem a categoria III. Tais respostas indicam questionamentos, inclusive em relação ao próprio trabalho, todavia, consideramos esses questionamentos diferentemente da situação de inércia da categoria II e da situação de mobilização da categoria I. Denominamo-os aqui de reflexões processuais. Exemplos: “Antes de afirmar tal condição: ‘dificuldade de aprendizagem’ procuro em mim uma possibilidade de ‘dificuldade de ensinagem’”. “Diante de um aluno com dificuldade de aprendizagem me sinto intrigada, pois quem atribui essa dificuldade a ele, pois muitas vezes essa dificuldade é rotulada, isso é, os professores passam de ano para ano”. “Eu me sinto incomodada, preocupada pensando se o problema está no meu modo de ensinar ou lidar com o aluno ou se a dificuldade está mesmo no desenvolvimento de aprendizagem dele”. Na categoria IV, consideramos aquelas respostas em branco, as que dizem “não sabem” ou que são consideradas tautológicas. Às vezes são respostas sem sentido e que retratam sentimentos do aluno e não do docente, conforme indicado na pergunta. É o caso de: “Ao me defrontar com um aluno que possua alguma dificuldade de aprendizagem, o sentimento dispertado é profissional, pois acredito que, como sendo uma educadora, não posso deixar passar desapercebido tal fato”. 259 Formação psicopedagógica e dificuldades de aprendizagem A tabela a seguir mostra os resultados referentes à questão 1. Tabela II – Respostas referentes à questão 1 Categorias I II III IV Soma Quantidade de Respostas 33 19 3 4 59 Percentual (%) 63 37 6 8 ** Os sentimentos de incapacidade, de impotência, de preocupação e até de estagnação podem encontrar suas origens na própria formação desse aluno que já se encontra numa pós-graduação. Notamos, (G UIMARÃES ; S ARAVALI , 2006), que ao analisarmos anteriormente a questão “Em que momento você julga necessário encaminhar um aluno para atendimento especializado?”, 46% dos nossos sujeitos responderam quando esgoto todas as possibilidades. Agora, diante da pergunta “Como você se sente em relação ao aluno com dificuldade de aprendizagem”? 63% respondem que se sentem angustiados, embora impelidos a resolver o problema. Portanto, gostaríamos de pontuar: se o encaminhamento ocorre quando acredito que minhas possibilidades se acabaram e se tenho sentimentos diversos como angústia, culpa, frustração entre outros, será que minha formação está adequada para lidar com estas questões? Será que justamente os psicopedagogos, profissionais que devem ser preparados para estas situações, deveriam não sentir-se tão reféns e inaptos diante de um aluno que não aprende? Vale dizer que podemos pensar com quais crianças ou alunos nossos sujeitos gostariam de lidar. Será que ter momentos de não aprendizagem ou dificuldades no processo não deveriam ser encarados com mais naturalidade por esses profissionais? * O valor percentual resultante é maior que 100%, assim como o número de respostas é superior a 52 porque há sujeitos que emitem respostas cujo conteúdo concentra-se em várias categorias simultaneamente. 260 Karina Perez Guimarães e Eliane Giachetto Saravali As respostas dadas na categoria III nos parecem bem mais interessantes do ponto de vista da reflexão, da coordenação de diferentes fatores numa análise de situação de não-aprendizagem. Mas, somente 3 sujeitos deram respostas com essas características. É interessante trazer aqui uma passagem de Collares e Moysés (1996, p. 61) salientando a importância de se pensar no processo de ensinoaprendizagem como algo que tem dois pólos. “A impressão é de que na escola ocorre um processo exclusivamente de aprendizagem. A criança aprende ou não aprende. Simplesmente”. Os sentimentos de impotência, incapacidade, inércia, frustração não estão relacionados somente à incapacidade da criança em executar sua tarefa? E a ação docente? No caso dos nossos sujeitos, o que dizer da intervenção psicopedagógica institucional? Nesse sentido, o que difere a categoria I da categoria II também precisa ser considerado com cautela, afinal, vontade de fazer algo pela criança, vontade de ajudar, coragem para encarar uma luta que se inicia são ações que precisam estar em comunhão com as ações pedagógicas, revistas, reorganizadas, pensadas, elaboradas, fundamentadas etc. É preciso estar atento ao significado dessa ação/ inter venção a ser executada. Se essa ajuda se referir a encaminhamentos e/ou avaliações de outros profissionais, então, o quadro existente e que já discutimos aqui somente se perpetuará. O que poderíamos esperar de um aluno que já realiza um curso de pósgraduação é a busca pelo conhecimento, mas essa resposta só podemos observar em dois sujeitos. Podemos inferir aqui que um dos fatores que poderia gerar esse quadro de propostas de encaminhamentos e intervenções de outros profissionais está relacionado à visão que os sujeitos da pesquisa possuem a respeito da sala de aula. A maioria deles é formada em Pedagogia tendo enquanto educadores a visão de sua prática pedagógica a respeito da dificuldade de aprendizagem. Talvez, faltalhes ainda um olhar da prática clínica, enquanto psicopedagogo, uma vez que a experiência em estágios ao longo do curso de Especialização pode ter sido insuficiente ou ainda não ter ocorrido. No entanto, cumpre Formação psicopedagógica e dificuldades de aprendizagem 261 destacar que a atuação do psicopedagogo também poderá/deverá ocorrer no plano institucional e nesse aspecto o trabalho terá que se aproximar muito dos docentes, de suas relações com toda a instituição escolar e, sobretudo, das questões pedagógicas referentes a ensino e a aprendizagem. A segunda pergunta que discutiremos aqui foi apresentada aos sujeitos dessa forma: “Na sua opinião, o que é imprescindível para que um aluno aprenda?” Compondo a categoria I estão as respostas que identificam características do professor como imprescindíveis para a aprendizagem, tais como fornecer conteúdos significativos, promover a aprendizagem prazerosa, ser capaz de prender a atenção dos alunos, dedicação etc. Vejamos alguns exemplos: “[...] o professor seja determinado e objetivo”. “[...] um bom corpo docente[...]”. “[...] a dinâmica do educador”. “Dedicação do professor e além disso um olhar para perceber onde este aluno está com dificuldade”. “[...] que o professor explore todas as formas de explicar e demonstrar determinado assunto”. Na categoria II, estão as respostas que remetem a características do aluno, como ter vontade, desejo, interesse, capacidade individual. “Que esse aluno mostra interesse, vontade de aprender [...]”. “Estar interessado na aula, desperto e alimentado”. “Atenção” “Desejo, sentirse capaz e responsável pelo próprio aprendizado”. Na categoria III foram agrupadas as respostas que consideram a interação docente/discente como aspecto fundamental para a aprendizagem, tais como respeito e admiração pelo professor. Exemplos: “Para que o aluno aprenda é importante que haja uma boa relação entre professor e aluno”. “[...] a relação afetiva de professor-aluno”. Para a categoria IV foram agrupadas as respostas que apontam para questões familiares. É o caso de: “Amor por parte da família e incentivo”. “A aprendizagem está relacionada à questão muitas vezes da família, equilíbrio familiar, amor, essas crianças geralmente são adotadas, rejeitadas e etc.”. “[...] a participação da própria família na educação de seu filho”. 262 Karina Perez Guimarães e Eliane Giachetto Saravali Na categoria V estão as questões relacionadas à estrutura escolar. Exemplo: “[...] um bom espaço físico, ou seja, que a instituição ofereça um espaço organizado”. Assim como na categoria IV da pergunta anterior, na categoria VI foram agrupadas outras respostas isoladas, consideradas incompreensíveis. São os casos de: “Encontrar significados e sentidos que justifiquem a sua aprendizagem”. “Acredito ser imprescindível que um aluno aprenda a ler e escrever de forma autônoma, conseguindo fazer uso dessa competência para atender às solicitações do meio, usufruir os bens culturais produzidos, atender as suas necessidades pessoais, dentre outras”. A tabela III a seguir mostra os resultados referentes à questão 2. Tabela III - Respostas referentes à questão 2 Categorias I II III IV V VI SOMA Quantidade de Respostas 31 26 8 7 2 4 78 Percentual (%) 60 50 15 13 4 8 * Na verdade, a resposta que culpabiliza os alunos era por nós esperada considerando-se as respostas já analisadas de outras questões (GUIMARÃES; SARAVALI, 2006), mas a ênfase no trabalho do professor nos trouxe certa surpresa e contentamento, pois indicou a existência de uma reflexão maior. Todavia, precisamos pensar qual o real significado desse discurso e aqui apresentamos nossas hipóteses sobre esses aspectos. A diferença entre a categoria I que atribui ao docente a responsabilidade pela aprendizagem e a categoria II que atribui essa responsabilidade ao aluno é de apenas 5 respostas. Percebe-se, Formação psicopedagógica e dificuldades de aprendizagem 263 novamente, uma dificuldade em se refletir sobre os processos e fatores que envolvem a aprendizagem e uma tendência a culpabilização: do aluno ou do docente. Simultaneamente, é incoerente perceber que o mesmo sujeito que responde que as dificuldades de aprendizagem são problemas apenas dos alunos, responde também que para aprender é preciso um bom professor. Será que podemos desvincular as dificuldades de aprendizagem das questões relacionadas ao ensino e a aprendizagem? Aqui cabe uma reflexão, encontrada também no trabalho de Collares e Moysés (1996). Ao se dizer que é preciso um bom professor para aprender, será que os sujeitos se consideraram enquanto docentes de alunos que não aprendem? De que professor falam então? É preciso tomar cuidado com a dissociação entre discurso e a prática, principalmente quando esse aluno assumir a função de psicopedagogo, seja numa escola ou numa clínica. “Um discurso genérico, sobre um professor abstrato, não guarda qualquer relação com a atuação concreta de cada um deles. E de todos eles” (COLLARES; MOYSÉS, 1996, p. 209). Ou será que estamos diante de uma nova postura assumida agora por um novo profissional que passa a avaliar o trabalho docente de outra forma? Novamente Collares e Moysés (1996) encontraram algo semelhante em suas pesquisas. Ao entrevistarem diretores (que haviam sido professores) estes culpam os docentes pelo mau desempenho dos alunos. Não se pode perder de vista a compreensão destas questões todas na formação do psicopedagogo. No âmbito institucional esse profissional deverá lidar com o movimento de todos os elementos que compõem a escola, com suas múltiplas interações e com o fluxo contínuo e recíproco de energia e material. Dessa forma sua função será potencializar ao máximo a capacidade de ensinar dos profissionais e a capacidade de aprender dos alunos (GASPARIAN, 1997). Nesse sentido, o papel desse profissional é cuidar da prevenção e do enfrentamento de conflitos envolvendo a escolarização (NOFFS, 2003). Portanto, sua postura não pode ser rotulante e nem 264 Karina Perez Guimarães e Eliane Giachetto Saravali culpabilizadora, uma postura diferente não se enquadraria nem nas repostas que compõem a categoria I, nem na II. Talvez, os dois sujeitos que apresentam as respostas da categoria V já estejam conseguindo direcionar suas reflexões nessa direção. A terceira pergunta e última a ser apresentada no presente trabalho foi assim formulada: “Que outros fatores você considera importante para o sucesso da aprendizagem?” Novamente na categoria I encontram-se aquelas características relacionadas ao professor, tais como a didática, a forma de organização das aulas. Alguns exemplos: “Para que o aluno aprenda também é preciso que o professor saiba ensinar”. “Considero importante a criatividade docente”. “Acho que quando o professor possui uma boa formação pedagógica, dispõe de diferentes recursos didáticopedagógico e conta com atendimento especializado, o campo se abre para que o aprendizado aconteça”. Na categoria II, estão as respostas que elencam questões familiares. É o caso de: “Diálogo dos pais com a criança, brincadeiras e programas de televisão saudáveis histórias de livros que transmite lições de vida para os mesmos”. “Presença da família”. “[...] a participação da própria família na educação de seu filho”. “[...] haver uma sintonia entre pais e escola, ou seja, cada um fazer a sua parte, os pais ensinar o que é certo e o que é errado (‘da educação’ para seu filho) e a escola ensinar valores culturais para seus alunos”. “Temos visto que a presença da família é de extrema importância. Muitas vezes, o que se vê, é que a família delega para escola aquilo que é de sua responsabilidade: educar, transmitir valores. Sem esse apoio familiar fica muito difícil”. “Incentivo, apoio e ajuda da família”. As respostas da categoria III apontam para características inerentes aos alunos. Vejamos alguns exemplos: “[...] o compromisso do aluno com a aprendizagem”. “O desejo de aprender, a vontade”. “Interesse do aluno”. Compõem a categoria IV respostas que mencionam a importância da interação entre professor e aluno. Exemplos: “[...] a 265 Formação psicopedagógica e dificuldades de aprendizagem relação afetiva de professor-aluno”. “Interação de alunos e professores”. “Uma boa relação entre a professora e os seus alunos”. Para a categoria V encontram-se as respostas que abordam aspectos referentes à estrutura escolar e ao apoio institucional. É o caso de: “Apoio institucional, reciclagem dos professores, orientação profissional para pais e professores”. “[...] escolas com mais infraestruturas”. Na categoria VI, agrupamos outras respostas isoladas, respostas consideradas tautológicas bem como aquelas em branco. Por exemplo: “A equivalência entre teoria e prática é sumariamente importante, são fatores paralelos. Os sentimentos positivos em relação à tal situação é fundamental”. A tabela IV a seguir mostra os resultados referentes à questão 3. Tabela IV – Respostas referentes à questão 3 Categorias I II III IV V VI SOMA Quantidade de Respostas 24 17 13 9 5 3 71 Percentual (%) 46 36 25 17 10 6 * A respeito das respostas que se concentram na primeira categoria, valemo-nos dos mesmos comentários apresentados anteriormente. Importante observar que somando o número de respostas que aparecem na categoria II com aquelas da categoria III temos 30 respostas apontando para a família ou para o próprio aluno as condições de sucesso na aprendizagem. Assim, podemos pensar que basta uma família presente ou um aluno interessado e os problemas se resolveriam. Observa-se também, na análise dessa pergunta, o aumento do número de respostas que compõem a categoria V, que é a mesma encontrada na pergunta anterior, apontando para a coordenação de outros fatores já realizada por esses 5 sujeitos. 266 Karina Perez Guimarães e Eliane Giachetto Saravali Considerações Finais Apresentamos aqui alguns dados que complementam uma análise já iniciada a respeito das concepções que estudantes do curso de Psicopedagogia têm a respeito das dificuldades de aprendizagem. A formação do psicopedagogo em nível teórico e prático, essa última principalmente em relação aos estágios, para atuação tanto na clínica como na instituição, requer responsabilidade, grande sustentação teórica e rigor científico e profissional. Isso se faz necessário para que aos alunos que não aprendem seja dada sempre a chance da investigação continuada, do trabalho de intervenção fundamentado e da não rotulação prévia excludente e responsabilizante. Acreditamos que as reflexões que propusemos, bem como outras que possam surgir, a partir das respostas emitidas ao questionário, necessitam ocorrer por parte daqueles que atuam na formação dos psicopedagogos. Na medida em que estas respostas caracterizam decisões e julgamentos que já são e/ou que poderão ser norteadores do trabalho destes profissionais, não podemos ignorá-las. Estamos diante de uma epidemiologia escolar vigente e percebemos que as questões pedagógicas perdem espaço, isto é, os professores e pedagogos são absorvidos, voluntariamente ou não, pela amplitude de focos, termos, explicações encontradas, sobretudo, na área da saúde. Longe de querermos romper com um processo de interdisciplinaridade positivo, queremos chamar atenção que para os procedimentos da sala de aula, para as intervenções pedagógicas, para entender e saber sobre o desenvolvimento, sobre a aprendizagem, não deveríamos necessitar recorrer a ninguém, ou no caso do que vem ocorrendo em nossas escolas, não deveríamos acreditar que esses outros profissionais e seus inúmeros diagnósticos e rótulos, necessariamente, melhorariam nosso trabalho junto a uma criança que não aprende. Sobre o rótulo e seu peso sempre vale observar as palavras de Collares e Moysés (1996, p. 217): Formação psicopedagógica e dificuldades de aprendizagem 267 [...] leva à estigmatização de crianças inicialmente sadias, que incorporam o rótulo, sentem-se doentes, agem como doentes. Tornam-se doentes. Compromete-se sua auto-estima, seu autoconceito e aí, sim, reduzem-se suas chances de aprender. A esse respeito, os psicopedagogos, principalmente os que vão atuar no campo institucional escolar, precisam ser bem formados. Se o olhar não for diferenciado, preparado para refletir e, se necessário, romper com essas questões, esse profissional será mais um número, e pouca transformação ocorrerá. Centrar as causas do fracasso escolar em qualquer segmento que, na verdade, é vítima, seja a criança, a família, ou o professor, nada constrói, nada muda. Imobilizante, constitui um empecilho ao avanço das discussões, da busca de propostas possíveis, imediatas e a longo prazo, de transformações da instituição escolar e do fazer pedagógico (COLLARES; MOYSÉS, 1996, p. 217). Apenas completando a fala das autoras e enfatizando aquilo que dissemos no início desse texto, quem mais sofre enquanto todos nós estamos falhando são os alunos. São eles que carregam os rótulos ou que se arrastam pelos anos de escolarização sem poder usufruir daquilo que realmente a escola deveria promover. Ressaltamos, mais uma vez, que a formação teórica e prática dos futuros psicopedagogos necessita fundamentá-los, habilitá-los e ajudá-los a tornarem-se atuantes responsáveis na realidade que precisamos transformar. Apostar numa formação diferenciada desse profissional com a qualidade necessária para a questão é pensar em conhecimentos científicos e teóricos, formação prática e interventiva que permitam a reflexão/ação/reflexão e o rompimento com os inúmeros preconceitos já existentes. Referências bibliográficas BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977. COLLARES, C.; MOYSÉS, M. A. Preconceitos no cotidiano escolar – ensino e medicalização. Campinas: Cortez, 1996. 268 Karina Perez Guimarães e Eliane Giachetto Saravali FONSECA, V. Introdução às dificuldades de aprendizagem. 2. ed. rev. e aum. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. GASPARIAN, M. C. C. Psicopedagogia institucional sistêmica. Contribuições do modelo relacional sistêmico para a psicopedagogia institucional. São Paulo: Lemos Editorial, 1997. GUIMARÃES, K. P.; SARAVALI, E. G. Concepções dos alunos do curso de psicopedagogia a respeito das dificuldades de aprendizagem. Educação Temática Digital, Campinas, v. 8, n. 1, dez. 2006. p. 187-207. MACEDO, L. Para uma psicopedagogia construtivista. In: ALENCAR, E. S. (Org.). Novas contribuições da psicologia aos processos de ensino e aprendizagem. São Paulo: Cortez, 1992. p. 121-140. OSTI, A. As dificuldades de aprendizagem na concepção do professor. 2004. 149 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, UNICAMP, Campinas, 2004. PASSERI, S. M. R. R. O autoconceito e as dificuldades de aprendizagem no regime de progressão continuada. 2003. 179f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2003. NOFFS, N. Psicopedagogo na rede de ensino – a trajetória institucional de seus atores-autores. São Paulo: Elevação, 2003. SARAVALI, E. G. Dificuldades de aprendizagem e interação social – implicações para a docência. Taubaté: Cabral, 2005. SISTO, F. Dificuldades de aprendizagem. In: SISTO, F. et al. Dificuldades de aprendizagem no contexto psicopedagógico. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2001. p. 19-39. SMITH, C.; STRICK, L. Dificuldades de aprendizagem de A a Z – um guia completo para pais e educadores. Tradução: Dayse Batista. Porto Alegre: Artmed, 2001. Recebido em: 20 de junho de 2007. Aprovado em: 01 de agosto de 2007. RESENHA SISTO, Fermino Fernandes; MARTINELLI, Selma de Cássia. (Org.). Afetividade e dificuldades de aprendizagem: uma abordagem psicopedagógica. São Paulo: Vetor Editora, 2006. 208 p. Elaine Cristina Cabral Tassinari * O livro Afetividade e Dificuldades de Aprendizagem: uma abordagem psicopedagógica é uma coletânea de onze estudos, na forma de capítulos, que visam investigar a relação entre fatores emocionais e as dificuldades de aprendizagem; como nos diz os organizadores, seu objetivo é responder a pergunta: “como se encontra o sistema emocional das crianças que estão passando por dificuldades de aprendizagem?” (p. 9). O fracasso escolar é algo freqüente nas escolas e a análise de seus porquês é algo que passa e já passou por diversas fases. Por exemplo, já se apontou como causas do fracasso: a falta de incentivo por parte dos professores, o uso de cartilhas para a alfabetização, as condições sócio econômica, etc. O livro, então, busca um outro enfoque: o de olhar como está a criança envolvida nesse processo, como ela o encara, qual o reflexo desse problema na sua vida emocional e, também, quanto esse emocional influencia nas questões de dificuldades de aprendizagem. Na apresentação do livro os organizadores dão um panorama geral das teorias e hipóteses levantadas sobre o tema, além de destacarem os pontos importantes apresentados em cada capítulo do livro, assim como, os principais resultados chegados por cada autor. * Discente do curso de Pedagogia da Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Marília-SP. E-mail: [email protected] APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano V n. 9 p. 269-274 2007 270 Elaine Cristina Cabral Tassinari Os textos são breves e mostram pesquisas psicopedagógicas, muitas por questionários e testes psicológicos. Um dos méritos da obra é proporcionar ao leitor uma visão diversa dos fatores emocionais envolvidos no processo de aprendizagem, além de mostrar a multiplicidade de relações estabelecidas entre esses fatores, tendo como ponto comum, a perspectiva psicopedagógica. No capítulo O papel das relações sociais na compreensão do fracasso escolar e das dificuldades de aprendizagem de Fermino Fernandes Sisto e Selma de Cássia Martinelli, o fracasso escolar é abordado tendo como enfoque as relações sociais, mostrando a sua importância para o desenvolvimento cognitivo. Vários estudos e teorias são citados. Um resultado importante que se pode inferir a partir do texto é que: quanto mais a criança é aceita pelo seu meio, menor será a sua dificuldade de aprendizagem e, quanto maior a rejeição, menor é seu desempenho acadêmico. O capítulo A afetividade no jogo de regras de Betânia Alves Veiga Dell’Agli e Rosely Palermo Brenelli mostra-nos a estreita ligação entre a cognição e a afetividade tendo como base a teoria de Jean Piaget sobre a afetividade e sobre o uso dos jogos. As autoras mostram, por meio de estudo de caso, a importância dos jogos para o desenvolvimento das crianças nas diversas fases de seu desenvolvimento. A interação professor-aluno, fator importante para o desenvolvimento afetivo e cognitivo das crianças, é analisada no texto Fracasso escolar: um olhar sobre a relação professor-aluno, de Selma de Cássia Martinelli, e, principalmente, essa interação é discutida nos casos de fracasso escolar. No capítulo, são levantados dados sobre o comportamento dos professores em relação a alunos que aprendem com facilidade e a alunos que apresentam dificuldades. Um dos pontos a que chega o estudo apresentado é que “é importante ao professor tanto o autoconhecimento quanto o conhecimento da importância e as conseqüências de seu comportamento no de seus alunos, Resenha 271 capacitando-os, dessa forma, para alterar a dinâmica das relações estabelecidas em sala de aula” (p. 53). Algumas relações entre aprendizagem e sentimentos, como alegria, tristeza, medo e coragem, são estabelecidas no quarto capítulo Alegria, tristeza, medo e coragem em crianças com dificuldades de aprendizagem de Gisele A. Patrocino Bazi e Fermino Fernandes Sisto. Nesse trabalho, os autores procuram, por meio de testes psicológicos em crianças de séries iniciais, elementos que permitem estabelecer as relações entre aprendizagem e os sentimentos citados. Dentre outros resultados, as pesquisas indicam que crianças com dificuldades de aprendizagem apresentam um quadro de maior tristeza, angústia e medo e que, para os autores, o sentimento de alegria mostrou-se propício para a aprendizagem. No texto A transmissão dos sinais emocionais pelas crianças de Gislene de Campos Oliveira, a autora analisa alguns aspectos afetivos que podem interferir na aprendizagem escolar e o papel do corpo como veículo para expressar essas emoções. Dentre as emoções analisadas estão a raiva, a agressividade, o medo, a inibição e a timidez, o stress infantil, a ansiedade, a baixa auto-estima. Ao final do capítulo, a autora discute o papel da psicomotricidade como instrumento que permite à criança aprender a lidar com suas emoções. Em Avaliação dos aspectos afetivos envolvidos nas dificuldades de aprendizagem, Acácia Aparecida Angeli dos Santos, Fábian Javier Marín Rueda e Daniel Bartholomeu buscam diferenciar problemas emocionais em crianças com e sem dificuldade de leitura, bem como eventuais diferenças vinculadas ao gênero. Através de suas pesquisas, com testes psicológicos, os autores detectaram que, nos meninos, é estatisticamente significativa a relação entre os problemas emocionais (tais como insegurança, retraimento, timidez, sentimentos de inadequação e preocupação com o ambiente) e os erros de leitura, inferindo que quanto mais problemas emocionais, mais problemas na leitura; no caso das meninas, não se constatou ser estatiscamente significativa essa relação. 272 Elaine Cristina Cabral Tassinari Fábian Javier Marín Rueda, Daniel Bartholomeu e Fermino Fernandes Sisto, no capítulo Emotividade e aprendizagem da escrita, destacam a relevância de uma disposição positiva para o aprendizado; além disso, os autores expõem diversas teorias que têm como foco a relação de variáveis emocionais (como, por exemplo, a ansiedade) e a aprendizagem. O estudo realizado pelos autores apresenta relações entre problemas emocionais (tais como, instabilidade emocional, imaturidade, ansiedade, impulsividade, agressividade, maiores necessidade de realização e baixo conceito) e o baixo desempenho acadêmico. Constatam, ainda, que erros de escrita estão associados a problemas emocionais de forma que, quanto mais dificuldades de aprendizagem da escrita, mais se agravam os problemas emocionais. Um dos aspectos importantes a se ressaltar, nesse estudo, é a identificação, somente em meninos e não em meninas, de que há uma correlação entre problemas na aprendizagem da escrita e problemas emocionais; fato que, segundo eles, demandam mais pesquisas para sua averiguação. Edna Rosa Correia Neves e Evely Boruchovitch, em seu texto As orientações motivacionais do aluno: um olhar do ponto de vista das emoções, objetivam investigar, através de testes e entrevista, “as orientações motivacionais intrínsecas e extrínsecas dos estudantes e as emoções positivas e negativas relacionadas à aprendizagem escolar” (p. 123). No decorrer do trabalho, as autoras apresentam também pesquisas e resultados já obtidos sobre o tema que revelam a importância das emoções positivas na relação ensino-aprendizagem. No final do capítulo, as autoras chegam à conclusão que, de modo geral, os resultados confirmam o importante papel das emoções na motivação e no desempenho dos estudantes em situações acadêmicas, e sugerem que os educadores devem ficar atentos às influências que as orientações motivacionais e as emoções têm sobre o desenvolvimento e aprendizagem dos alunos. Em seu texto Percepção de autocontrole e desempenho acadêmico de adolescentes, Selma Martinelli, Aleksandro Barbosa e Fermino Fernandes Resenha 273 Sisto, definem autocontrole como sendo “uma variável que pode ser vista como uma forma de controlar o próprio comportamento em situação de conflito, de acordo com padrões definidos pela sociedade” (p. 145), e, a partir daí, procuram verificar a importância desse fator para o processo de aprendizagem. Esses estudos levaram os autores a constatar a presença e a influência do autocontrole em várias esferas da vida do estudante, e em diversos contextos como, por exemplo, o autocontrole pessoal, ligado ao desempenho matemático, o autocontrole familiar, que se mostrou ligado ao aprendizado de português, e o autocontrole social, que mostrou não influenciar no contexto escolar. Lucila Diehl Tolaine Fini e Geiva Carolina Calsa tratam da motivação para o aprendizado em seu trabalho intitulado Matemática e afetividade: aluno desinteressado no ensino fundamental? Uma das idéias defendidas pelas autoras é a de que uma disposição favorável ao aprender é um fator determinante para se obter sucesso na aprendizagem. Nesse texto, as autoras procuram desvendar a relação entre a dificuldade de aprender matemática e as relações afetivas, além de mostrarem como o aluno motivado pode mudar a sua situação e a sua visão sobre a matemática, superando assim, suas dificuldades. Relatam, ainda, que através de intervenção psicopedagógica, crianças com dificuldades de aprender matemática superam suas dificuldades; nessa intervenção são utilizadas histórias em quadrinhos, com o intuito de envolver as crianças nos problemas matemáticos e, assim, ensiná-las a resolvê-los; como resultado, as crianças resolveram seus conflitos cognitivos e passaram a gostar de matemática. No último capítulo do livro Sintomas depressivos e as estratégias de aprendizagem em alunos de ensino fundamental: uma análise qualitativa, de Miriam Cruvinel e Evely Boruchovitch, as autoras procuram estabelecer e identificar estratégias de aprendizagem utilizadas por alunos com dificuldades de aprender e com problemas emocionais, como, por exemplo, depressão. Entre outras questões, perguntam-se até que ponto fatores emocionais podem interferir no uso e escolha 274 Elaine Cristina Cabral Tassinari dessas estratégias. Sugerem que, através dessa determinação de estratégias, faz-se possível uma intervenção, a fim de melhorar o desempenho acadêmico dos alunos e interferir também nos seus sintomas emocionais. O livro, como podemos ver, faz uma cobertura ampla do tema, por abordar vários aspectos da relação entre os fatores emocionais e as dificuldades de aprendizagem; mas, ao mesmo tempo, é suficientemente profundo e nos fornece dados importantes para a compreensão dessa relação, além de expor diversas reflexões, pesquisas e sugerir algumas formas de intervenção junto ao problema. Fornece, ainda, aos profissionais da área, uma abordagem das novas perspectivas dos estudos sobre dificuldades de aprendizagem e, ao leitor não especializado, que se interessa pelo tema, um panorama de fácil compreensão das pesquisas atuais. Periódicos permutados Cadernos de Educação (UFPel/Pelotas-RS) Análogos (PUC-RJ) Análise & Síntese (Faculdade São Bento/Salvador-BA) Educação em Revista (UFMG/B. Horizonte-MG) Revista Comunicações (UNIMEP/Piracicaba-SP) Ethica – Cadernos Acadêmicos (UGF/Rio de Janeiro-RJ) Ícone Educação (UNITRI/Uberlândia-MG) Proposições (UNICAMP/Campinas-SP) Hispeci & Lema (FAFIBE/Bebedouro-SP) BIOETHIKOS (Centro Universitário São Camilo/São Paulo-SP) Práxis Educativa (UEPG/Ponta Grossa-PR) Revista Educação (PUC/Porto Alegre-RS) EccoS – Revista Científica (UNINOVE/São Paulo-SP) Educação em Questão (UFRN/Natal-RN) BOLEMA – Boletim de Educação Matemática (UNESP/Rio Claro-SP) Educação e Pesquisa (USP/São Paulo-SP) Dialogia (UNINOVE/São Paulo-SP) Educere – Revista da Educação (UNIPAR/Umuarama-PR) Revista de Educação Pública (UFMT/Cuiabá-MT) Revista Diálogo Educacional (PUC/Curitiba-PR) Ciência & Educação (UNESP/Bauru-SP) Comunicação & Educação (USP/São Paulo-SP) SIGNOS (UNIVATES/Lajeado-RS) Estudos em Avaliação Educacional (Fundação Carlos Chagas/São Paulo-SP) Revista Pesquisas e Práticas Psicossociais (UFSJ/São João del-Rei-MG) Cadernos de Pesquisa (Fundação Carlos Chagas/São Paulo-SP) Estudos de Psicologia (PUC/Campinas-SP) Revista da SPAGESP (SPAGESP/Ribeirão Preto-SP) Revista Educação (UFSM/Santa Maria-RS) Normas para publicação de trabalhos O APRENDER é uma publicação que pretende divulgar trabalhos sobre o processo educacional em suas variáveis filosóficas e psicológicas ou contribuições de outras áreas do saber. Por abranger diversas áreas de conhecimento, esta revista define alguns enfoques temáticos para melhor orientar o conteúdo dos trabalhos candidatos à publicação. Filosofia da Educação: • A aprendizagem como problema filosófico: como e em que condições se dão a transmissão, construção ou apropriação do conhecimento. • A Filosofia e a instituição escolar. • Abordagem teórica das diferentes escolas pedagógicas. • Diferentes conceitos e concepções de educação. • Educação e Filosofia: as correntes filosóficas e sua relação com a idéia de formação e os processos educacionais. • Ética e Educação: a ética como fundamento para a formação e a aprendizagem, a ética profissional do educador, entre outras abordagens. • Teorias da Pesquisa em Educação. • Educação e Política: o caráter formador e transformador da educação em seus aspectos político e filosófico. • O papel da Filosofia nas transformações da educação contemporânea. • Novas tendências e tecnologias de ensino: aspectos filosóficos. Psicologia da Educação: • A aprendizagem como problema psicológico: como e em que condições se dão a transmissão, construção ou apropriação do conhecimento. • Aspectos psicológicos voltados para o estudo do campo das necessidades educativas especiais: dificuldades de aprendizagem, educação especial, preparo e formação de professores, entre outros pontos de vista. • As escolas psicológicas e sua relação com os processos educacionais. • Novas tendências e tecnologias de ensino: aspectos psicopedagógicos. • Psicanálise e Educação. • Psicologia Escolar/Educacional: trabalho docente, processo ensinoaprendizagem, aquisição da leitura e da escrita, interação professor-aluno, cultura escolar, atuação do psicólogo na escola, entre outros pontos. • Psicologia do Desenvolvimento e Educação: aspectos psicomotores, afetivos, cognitivos, lingüísticos, sociais, culturais e familiares. • Relações humanas na escola. • Sociedade e Educação: fatores psicossociais e de formação do sujeito. • Trabalho e Educação. Obs.: Somente são aceitos trabalhos que se enquadram em um ou mais dos enfoques temáticos citados. Envio dos Trabalhos São recebidos para publicação artigos, ensaios, debates, resenhas, traduções, entrevistas, relatos de caso, etc. Os textos enviados para análise devem ser escritos em português, espanhol, inglês ou francês. Os trabalhos candidatos à publicação devem ser enviados por e-mail, com o texto anexo, para os seguintes endereços eletrônicos: [email protected] e [email protected]; ou pelo correio, com uma cópia impressa e uma cópia em disquete, para o endereço abaixo: Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb) Departamento de Filosofia e Ciências Humanas (DFCH) APRENDER – Caderno de Filosofia e Psicologia da Educação Estrada do Bem-Querer, km 4. 45083-900 – Vitória da Conquista – Bahia Tanto no envio por endereço eletrônico como pelo correio, os trabalhos devem ser acompanhados de uma folha à parte, em que constem os seguintes dados de identificação: • Título, resumo e palavras-chave no idioma do texto. • Nome completo do(a)(s) autor(a)(es). • Maior titulação (com indicação da área de conhecimento e nome da instituição). • Instituição de origem e função que está exercendo. • Endereço eletrônico e telefone. Formato dos Trabalhos 1. Os trabalhos devem ser digitados em Word for Windows e apresentados segundo as especificações a seguir: Artigos – 20 páginas, não incluídas as referências bibliográficas; Resenhas – cinco páginas; Entrevistas e debates – dez páginas; Traduções – 20 páginas. 2. A configuração do texto deve ser conforme as seguintes especificações: papel tamanho A4 (21 X 29,7), margens superior, inferior e laterais de 2 centímetros, espaçamento entre as linhas de 1,5 centímetro e alinhamento justificado. 3. O título do trabalho deve ser em fonte Times New Roman, tamanho 12, negrito e caixa alta, centralizado no alto da página inicial. 4. Dois espaços abaixo do título do trabalho, deve vir o nome do(s) autor(es) em fonte Times New Roman, tamanho 12, em itálico, alinhado à direita da página, seguido de asterisco, e, em nota de rodapé, deve-se indicar a maior titulação (com a área de conhecimento e a instituição na qual foi obtida), a instituição a que o(s) autor(es) se encontra(m) vinculado(s) e endereço eletrônico. 5. Para artigo, dois espaços abaixo da indicação do(s) autor(es), deve vir o Resumo, no idioma da redação, acompanhado das palavras-chave (máximo de cinco). O título, o resumo e as palavras-chave precisam ser traduzidos para o inglês (Abstract e Key Words) ou francês (Résumé e Mots-clés). 6. O Resumo (bem como o respectivo Abstract ou Résumé ) deve ter no mínimo 40 palavras e no máximo 100 palavras e ser redigido em um só parágrafo. 7. Subtítulos devem vir em fonte Times New Roman, tamanho 12, em negrito, somente com as primeiras letras maiúsculas e alinhados à esquerda da página (não devem ser numerados). 8. As citações e referências bibliográficas devem seguir as normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). 9. Figuras e fotos, se houver, devem vir no corpo do texto, no local desejado pelo autor, em preto e branco. 10. Gráficos, se houver, devem ser apresentados no final do trabalho, em preto e branco, de maneira legível e com indicações e/ou legendas por extenso. Avaliação dos trabalhos Os trabalhos candidatos à publicação são avaliados quanto a sua qualidade e originalidade, por especialistas do assunto abordado. A escolha dos pareceristas é feita, preferencialmente, entre os membros que compõem o Conselho Editorial da revista. Revisão Os trabalhos aceitos para publicação serão submetidos à revisão de linguagem. 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APRENDER - CADERNO DE FILOSOFIA E PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) Departamento de Filosofia e Ciências Humanas (DFCH) Estrada do Bem-Querer, km 4 45083-900 - Vitória da Conquista – Bahia EQUIPE TÉCNICA COORDENAÇÃO EDITORIAL E NORMALIZAÇÃO TÉCNICA Jacinto Braz David Filho CAPA Luiz Evandro de Souza Ribeiro DRT - 2535 EDITORAÇÃO ELETRÔNICA E ACOMPANHAMENTO GRÁFICO Ana Cristina Novais Menezes DRT - 1613 REVISÃO DE LINGUAGEM (TEXTOS EM PORTUGUÊS) Eliane Giachetto Saravali Conselho Editorial (UNESP-Marília, SP) Leonardo Maia Bastos Machado Editor responsável Na tipologia Garamond 11/15/papel offset 90g/m² Em janeiro de 2008.