As rimas de Guido Cavalcanti: uma introdução

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As rimas de Guido Cavalcanti: uma introdução
José Clemente Pozenato
Universidade de Caxias do Sul
Resumo
Guido Cavalcanti teve importante papel na consolidação do stil nuovo, que por sua vez foi
fundamental para a afirmação da literatura italiana, com a produção de autores como Dante, Petrarca
e Boccaccio. Neste artigo, busca-se delinear o contexto político e intelectual de Florença, no século
XIII, em seu intercâmbio com a poesia da Sicília, da Provença e de Bolonha e com o renascimento
do aristotelismo, em perspectiva tomista e averroísta, para explicar os rumos que teve a partir daí a
literatura na Itália e na Europa. O poema de Cavalcanti, Donna me prega, oferecido aqui em tradução
e em paráfrase, é uma ilustração concreta da lírica amorosa buscada nesse período.
Palavras-chave
Guido Cavalcanti, stil nuovo, poética, lírica amorosa, Donna me prega
José Clemente Pozenato foi professor de Literatura de Língua Portuguesa e de Literatura Italiana na
Universidade de Caxias do Sul – RS. Bacharel em Filosofia e Doutor em Letras, sempre deu especial
atenção à dimensão conceitual dos textos literários. Traduziu para o português o Cancioneiro de
Francesco Petrarca, publicado por Ateliê Editorial e Editora Unicamp, em edição bilíngue, em 2014.
Como romancista, produziu uma trilogia sobre a imigração italiana no Sul do Brasil, sendo que o
romance O Quatrilho foi levado ao cinema e indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 1996.
Sua produção poética, por onde iniciou a carreira literária, encontra-se reunida em Mapa de Viagem,
da Editora Educs, de Caxias do Sul, RS.
MORUS – Utopia e Renascimento, 11, 2016
Guido Cavalcanti’s rhymes: an introduction
José Clemente Pozenato
University of Caxias do Sul
Abstract
Guido Cavalcanti played an important role in consolidating the stil nuovo, which in turn was
instrumental for the affirmation of Italian literature, with the production of authors such as Dante,
Petrarch and Boccaccio. In this article, we seek to outline the political and intellectual context of
Florence in the thirteenth century, in its correspondence with the poetry of Sicily, Provence and
Bologna, and the revival of Aristotelianism in Thomistic and Averroist perspective, to explain the
course Italian and European literature had from this point. Cavalcanti's poem, Donna me prega,
offered here in translation and paraphrase, is a concrete illustration of the love lyric sought in this
period.
Keywords
Guido Cavalcanti, stil nuovo, poetry, love lyric, Donna me prega
José Clemente Pozenato was professor of Literature in Portuguese Language and Italian Literature at
Universidade de Caxias do Sul - RS. Bachelor of Philosophy and Doctor of Letters, he has always
given special attention to the conceptual dimension of literary texts. He translated into Portuguese
Petrarch’s Cancioneiro, published in a bilingual version by Editora Unicamp and Ateliê Editorial in
2014. As a novelist, he wrote a trilogy about the Italian immigration in southern Brazil. From it, the
novel O Quatrilho was taken to the cinema and nominated for the Oscar of best foreign film in 1996.
His poetical work, from where he began his literary career, is collected in Mapa de Viagem, Editora
Educs, Caxias do Sul, RS.
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As rimas de Guido Cavalcanti: uma introdução
1. Biografia
Guido Cavalcanti nasceu em Florença antes de 1260, por volta talvez de 1255:
nunca foi estabelecida com precisão a data. Era filho de Cavalcante Cavalcanti, chefe de
uma das casas mais poderosas e temidas dos guelfos: a tumultuada vida política da cidade
dividia-se entre os guelfos e os gibelinos, e, mais tarde, entre o partido dos guelfos negros
(i Neri) e o dos guelfos brancos (i Bianchi).
Em 1267, depois da batalha de Benevento, que arruinou quase todas as famílias
de Florença, numa cerimônia de paz, foram realizados noivados entre moços de um
partido e moças do partido oposto, com a esperança de reduzir os conflitos. Guido, um
guelfo, (então com menos de 12 anos de idade) se tornou noivo de Beatrice (Bice), filha
do gibelino Farinata degli Uberti, e mais tarde casou com ela, tendo ao menos uma filha,
Tancia, e um filho, Andrea.
Para a formação humanística, cultivada pelos grandes de Florença, Guido
Cavalcanti foi discípulo de Brunetto Latini, ao lado de quem se tornou membro do
Conselho Geral da Comuna, em 1284. Por essa época saiu em peregrinação a Santiago de
Compostela, sem ter seguido até o final. Supõe-se que foi nessa ocasião que Guido visitou
Toulouse (Tolosa) e conheceu Mandetta (Amande, nome muito comum na França),
celebrada numa de suas baladas.
Nesse meio tempo tornou-se cada vez mais áspero o conflito entre as duas facções
guelfas. Corso Donati, chefe dos Neri, odiava Guido Cavalcanti, a quem apelidou de
“Cavicchia” (“estaca”), zombando do gosto deste pelas questões abstratas e disputas
filosóficas. Donati teria tentado assassinar o poeta durante a viagem a Compostela. De
volta a Florença, Guido quis vingar-se e armou uma emboscada contra o rival, mas a
flecha errou o alvo. Para acalmar os ânimos, os Priori, (integrantes de um Conselho de
nove membros, denominado Signoria, criado em 1282), decidiram, no dia 24 de junho de
1300, com voto favorável de Dante Alighieri, distanciar os dois adversários. A posição
de Dante nessa sentença dá a entender que a amizade entre ele e Guido estava de fato
rompida, como transparece em alguns sonetos do último. Anos mais tarde, com a vitória
definitiva dos Neri, facção radical dos guelfos, coube a Dante o amargor do exílio.
Com outros guelfos da facção branca, Guido foi exilado em Sarzana, na Ligúria,
próximo a Gênova: exílio lembrado, ao que parece, na balada Perch’i’ no spero di tornar
giammai (“Porque não espero voltar jamais”). De Sarzana ele retornou a Florença, doente,
provavelmente de malária (o nome da doença deriva, etimologicamente, de mala aria –
maus ares...), onde morreu, sendo sepultado a 29 de agosto de 1300.
2. O contexto
Guido Cavalcanti se insere no período do Duecento (século XIII), em que se dá o
início da literatura italiana. É quando a língua vulgar, derivada do latim e usada apenas
como língua corrente no dia-a-dia, começa a ser utilizada como língua literária, seguindo
o exemplo dos troubadours da Provença.
Na península itálica, a primeira manifestação de uma literatura em língua vulgar
ocorre com a chamada “scuola poetica siciliana”, na primeira metade do século, com o
estímulo e apoio do rei Frederico II. De origem sueva, agregou ele na corte doutores,
filósofos, homens letrados e homens de ciências, criando um ambiente propício à
produção intelectual, e estimulou o uso da língua vulgar italiana no gênero lírico das
canções e baladas. A figura mais importante dessa escola foi Jàcopo, ou Giàcomo, da
Lentini, conhecido como Notaio (escrivão, notário). Deixou 38 poemas reconhecidos
como de sua autoria e é considerado o inventor do soneto.
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Na metade do século, nasce uma segunda escola lírica, ainda de inspiração
siciliana, mas em língua toscana. Seu iniciador foi Guittone d’Arezzo (1225-1294), que,
além dos temas líricos convencionais, tanto da poesia provençal quanto da siciliana,
introduziu em seus poemas o tema político, que repercutiria mais tarde em poetas como
Dante e Petrarca.
A renovação, a que Dante daria a designação de “dolce stil nuovo”, viria da
Bolonha, por obra de Guido Guinizelli (c.1230-1276) que teria exercido nessa cidade a
função de juiz, ou de jurisconsulto. De sua obra restaram 23 poemas, entre os quais cinco
canções e 15 sonetos, que são uma forma de transição entre a poesia do círculo toscano
(Guittone d’Arezzo, Bonagiunta Orbiciani), e um novo estilo buscado por ele, menos
formal e mais espontâneo. Dante, no canto XXVI do Purgatório, se refere a Guinizelli
como “pai” e como mestre em “rime d’amore usar dolci e leggiadre” (“fazer versos de
amor suaves e elegantes”) (vv. 93-94). Mas seria em Florença que essa poesia nova iria
prosperar, num primeiro momento com nomes como Guido Cavalcanti, Dante Alighieri,
Cino da Pistoia e, na geração seguinte, com Francesco Petrarca.
As características básicas do “estilonovismo” poderiam ser assim resumidas:
- no plano estilístico, a presença de imagens e metáforas, associadas a cenas da
natureza e expressas em versos com musicalidade suave e bem desenhada, em que o
cuidado com a seleção das rimas é visto como fundamental: era uma poesia para ser
ouvida, mais do que lida;
- no plano temático, o amor como centro do mundo poético e a figura da mulher
como deflagradora da experiência de um amor capaz de erguer o homem do mundo
terreno para o celeste: nessa dialética, os “tópoi” da Mulher-anjo, do Amor armado e da
Morte inimiga se fazem frequentes;
- no plano conceitual, a estreita relação entre a faculdade de amar e a nobreza de
espírito, não por posição social, mas por virtude; além disso, a adoção de uma postura
filosófica que valoriza a dimensão sensorial, na linha do averroísmo aristotélico: o
platonismo agostiniano deixa de ser referência.
O resultado é uma poesia com profundidade de sentimentos, capacidade
introspectiva e diálogo interior do ser humano com suas dimensões de ser material e
espiritual.
3. A figura
Todos os depoimentos de seus contemporâneos descrevem Guido Cavalcanti
como uma figura fascinante, dedicado ao estudo e à discussão de ideias, com tendência à
vida solitária, mas de temperamento forte, audacioso, às vezes temerário. Boccaccio
contribui para a lenda com um perfil desenhado no Decamerão, pela narrativa de Elisa,
na nona novela da sexta jornada:
foi um dos melhores lógicos [loici] do mundo e excelente filósofo natural, [...] foi
um homem muito elegante e muito bem educado, além de muito eloquente; tudo
o que ele quis fazer, e que ficasse bem a gentil-homem, soube fazê-lo melhor do
que qualquer outra pessoa. Ademais, era riquíssimo, e sabia honrar, como
ninguém, as pessoas que ele, no seu ânimo, considerava que valessem (O
Decamerão, VI, 9. p. 641-2).
O “filósofo natural”, referido por Boccaccio, significa que Guido Cavalcanti
desenvolveu um pensamento afastado da teologia: consta que ele chegou a ser acusado
de ateísmo. A base de seu pensamento foi a filosofia de Aristóteles, um filósofo da
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realidade que está em oposição a Platão, filósofo da idealidade. Mas um aristotelismo
repassado pelo filtro da análise de Averróis, médico e pensador árabe nascido em
Córdoba, na Espanha, que, com Avicena, reintroduziu o pensamento aristotélico na
Europa, dando início ao abandono do platonismo herdado de Santo Agostinho e que
dominou toda a Idade Média, com um encerramento em alto nível na Divina Comédia de
Dante.
Isto é, as divergências de Cavalcanti com seu amigo não parecem ter ocorrido
apenas no campo político, mas também no da visão de mundo. Gianfranco Contini afirma
que Guido discordava da sublimação de Beatriz e de sua transposição ao plano
transcendente, feitas por Dante na Divina Comédia (Contini, 1860, p. 489).
Guido Cavalcanti e Dante Alighieri foram os maiores representantes do Dolce stil
nuovo, a nova escola poética surgida em Bolonha por iniciativa de Guido Guinizelli e
depois migrada para Florença. O novo estilo renovou a lírica amorosa, propondo o
afastamento do modo artificioso herdado dos provençais pelos poetas sicilianos e
toscanos, e promovendo a espontaneidade da inspiração e a doçura graciosa da dicção
poética.
4. A poesia
Da produção poética de Guido Cavalcanti só restaram, seguramente autênticos,
36 sonetos, 11 baladas, duas canções, um motete (pequeno poema satírico) e estrofes
isoladas de outra canção..
Em Cavalcanti, como em todos os estilonovistas, o amor aparece como um
sentimento puro, que exalta e enobrece o homem, mas unido a um sentimento
profundamente doloroso, marca dominante do seu cancioneiro, a não ser em alguns raros
quadros cheios de vivacidade.
Dante, Petrarca e Boccaccio, os três, fazem referências elogiosas à sua poesia,
considerando-o um mestre. Mas para o público leitor mais amplo, durante muito tempo,
o poeta foi lembrado somente pela canção Donna mi prega, um poema de cunho filosófico
que teoriza a respeito do amor numa perspectiva considerada averroísta por uns, tomista
por outros. Ela foi objeto de análise e de comentários interpretativos no período
humanista. É evidente a segurança e a habilidade de Guido no uso da linguagem
filosófica, dando a impressão de que o poeta buscava dar uma demonstração de
competência intelectual, o que, aliás, é declarado na primeira estrofe e na estrofe final: é
a pessoas de mente esclarecida que se dirige a canção.
A tradução aqui apresentada procura respeitar, na sua construção, a
meticulosidade, para não dizer o preciosismo, com que Guido Cavalcanti organiza o
esquema de rimas e de ritmo. Para uma percepção melhor do sentido do poema, é
apresentada também uma paráfrase de todos os versos.
5. Edições
Dispersos em códices manuscritos em bibliotecas de Florença, Bolonha e Roma,
seus poemas só tiveram edição impressa, pelo que apurou o filólogo Nicola Arnone, em
1527, em Florença, numa antologia com outros poetas toscanos: Dante Alighieri, Dante
da Maiano, Cino da Pistoia e outros.
Foi ainda em antologias – às vezes com o aparecimento de algum outro poema
tido por inédito – que a poesia de Guido Cavalcanti continuou sendo divulgada nos
séculos seguintes. A primeira publicação exclusiva de suas rimas, incluindo as já editadas
e outras inéditas seria feita já no século XIX, em 1813, em Florença. A iniciativa foi de
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um descendente de Guido Cavalcanti, o abade Antonio Cicciaporci. Ele coletou, além dos
poemas editados, um bom número de poemas encontrados em vários arquivos. No total,
entre os poemas já editados, a publicação somou 31 sonetos, 13 baladas, 2 canções e uma
frottola (poema jocoso); entre os inéditos, mais 3 sonetos, uma balada, um madrigal e
nada menos que 11 canções, que se comprovaria mais tarde serem apócrifas. Durante as
décadas seguintes, a edição Cicciaporci permaneceria como referência para outras
publicações, feitas entre 1822 e 1877.
Em 1881 apareceu a que seria a primeira edição crítica da poesia de Guido
Cavalcanti, organizada por Nicola Arnone e publicada em Florença por G. C. Sansoni
Editore. O autor se deteve em catalogar todos os arquivos e códices contendo poemas
atribuídos a Guido Cavalcanti e, além disso, em identificar a sua real autoria. Dessa
publicação constam, como rimas autênticas de Cavalcanti 2 canções, 13 baladas e 39
sonetos. A esse conjunto, Arnone acrescentou 13 poemas de diversos autores, dirigidos a
Guido Cavalcanti, mais um total de 11 rime inedite, com uma advertência: “eu as publico
aqui neste apêndice, para que outros possam examiná-las e verificar a paternidade”
(Arnone, 1881, p. 93, nota).
A edição que se tornaria referência clássica até os dias de hoje foi a publicada em
1957 aos cuidados de G. Favati. Ela foi depois utilizada por Gianfranco Contini no
segundo volume da obra Poeti del Duecento, editada pela Ricciardi em 1960. Foi essa
edição que a editora Einaudi tomou como referência para publicar as Rime, com grafia
atualizada, texto esse utilizado para a presente tradução.
6. O poema-chave: Donna me prega
Mulher me roga – e eu vou discernir
um acidente – que frequente – é fero
e tão severo – que é chamado amor:
quem o derroga – possa um dia sentir!
E no presente – o inteligente – quero,
pois não espero – que os de baixo teor
de razão cheguem à ciência também:
certo, sem – natural aclaramento
não tenho talento – para provar
onde reside, e quem o faz criar,
e qual sua virtude e sua potência,
e a essência – depois cada movimento
e o aprazimento – que se diz amar:
a quem quiser ver pode-se mostrar.
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Donna me prega, – per ch’eo voglio dire
d’un accidente – che sovente – è fero
ed è sì altero – ch’è chiamato amore:
sì chi lo nega – possa ’l ver sentire!
Ed a presente – conoscente – chero,
perch’io no spero – ch’om di basso core
a tal ragione porti canoscenza:
ché senza – natural dimostramento
non ho talento – di voler provare
là dove posa, e chi lo fa creare,
e qual sia sua vertute e sua potenza,
l’essenza – poi e ciascun suo movimento,
e ’l piacimento – che ’l fa dire amare,
e s’omo per veder lo pò mostrare.
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Naquela parte – onde está a memória
toma ele estado – e é formado – como
transparência ao lume – da obscuridade
vinda de Marte – vem e nela mora;
ele é criado – e, notado, – ganha nome;
da alma é costume – e do coração vontade.
Vem duma forma vista que se apreende
e se rende – no possível intelecto
como sujeito – lugar de estança.
Nesse lugar não pesa na balança
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In quella parte – dove sta memora
prende suo stato, – sì formato, – come
diaffan da lume, – d’una scuritate
la qual da Marte – vène, e fa demora;
elli è creato – ed ha sensato – nome,
d’alma costume – e di cor volontate.
Vèn da veduta forma che s’intende,
che prende – nel possibile intelletto,
come in subietto, – loco e dimoranza.
In quella parte mai non ha possanza
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porque é uma qualidade tão somente:
o intelecto resplende – esse é o seu feito;
não tem afeto – a tudo ele alcança;
ele é tal que não tem semelhança.
perché da qualitate non descende:
resplende – in sé perpetüal effetto;
non ha diletto – ma consideranza;
sì che non pote largir simiglianza.
Amor não é virtude – de outra vem
que é perfeição – (e é de feição – tal)
não racional – mas que sente, digo;
para a saúde – o ajuizar mantém,
que a intenção – pela razão – vale:
discerne mal – quem do vício é amigo.
Por seu poder se vai seguido à morte
se, forte, – a virtude for impedida,
e for crescida - a contrária via:
não porque o natural contraria,
mas tudo o que o bem perfeito aborte
é a sorte – não se pode dizer que tenha vida,
que reprimida – não tem senhoria.
O mesmo vale quando alguém o olvida.
O amor é quando – o querer é tanto
que além da medida – a natura – excede
pois não se concede – pausa jamais.
Move, mudando – a cor, o riso em pranto
e a figura – de tremura – empalidece;
não permanece; - e verás coisas mais
que gente de valor mais dele prova.
A nova – experiência faz suspirar
e obriga a olhar – em ponto indefinido
desatando uma ira de fogo ardido
(Imaginar não pode quem não a prova)
sem que se mova – embora a se encantar
e a voltar – ao jugo submetido:
mente nenhuma alcança o sucedido.
Disso extrai – do olhar uma maneira
que faz aparecer – prazer – é certo:
não pode coberto – ser nesse ponto.
A beleza é uma flecha certeira
que o querer – por temer – faz desperto:
consegue mérito – o alvejado.
E não se pode conhecer seu rosto:
exposto – o claro nesse objeto foge;
bem que se olhe – forma não aparece;
pois que ele forma nenhuma tece.
De cor privado, apenas acidente
assente – no escuro à luz refoge.
Fora de engano digo, em boa fé,
que só de amor assim nasce mercê.
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Non è vertute, – ma da quella vène
ch’è perfezione – (ché si pone – tale),
non razionale, – ma che sente, dico;
for di salute – giudicar mantene,
ch la ’ntenzione – per ragione – vale:
discerne male – in cui è vizio amico.
Di sua potenza segue spesso morte,
se forte – la vertù fosse impedita,
la quale aita – la contraria via:
non perché oppost’ a naturale sia;
ma quanto che da buon perfetto tort’è
per sorte, – non pò dire om ch’aggia vita,
ché stabilita – non ha segnoria.
A simil pò valer quand’om l’oblia.
L’essere è quando – lo voler è tanto
ch’oltra misura – di natura – torna,
poi non s’adorna – di riposo mai.
Move, cangiando – color, riso in pianto,
e la figura – con paura – storna;
poco soggiorna; – ancor di lui vedrai
che ’n gente di valor lo più si trova.
La nova – qualità move sospiri,
e vol ch’om miri – ’n non formato loco,
destandos’ ira la qual manda foco
(imaginar nol pote om che nol prova),
né mova – già però ch’a lui si tiri,
e non si giri – per trovarvi gioco:
né cert’ ha mente gran saver né poco.
De simil tragge – complessione sguardo
che fa parere – lo piacere – certo:
non pò coverto – star, quand’ è sì giunto.
Non già selvagge – le bieltà son dardo,
ché tal volere – per temere – è sperto:
consiegue merto – spirito ch’è punto.
E non si pò conoscer per lo viso:
compriso – bianco in tale obietto cade;
e, chi ben aude, – forma non si vede:
dunqu’ elli meno, che da lei procede.
For di colore, d’essere diviso,
assiso – ’n mezzo scuro, luce rade.
For d’ogne fraude – dico, degno in fede,
che solo di costui nasce mercede.
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Tu podes seguramente ir, canção,
aonde te agrade: eu te pus tão ornada
que bem louvada – será tua razão
entre as pessoas de grão – entendimento:
ficar com outras não é teu intento.
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Tu puoi sicuramente gir, canzone,
là ’ve ti piace, ch’io t’ho sì adornata
ch’assai laudata – sarà tua ragione
da le persone – c’hanno intendimento:
di star con l’altre tu non hai talento.
7. Paráfrase do poema
1-4. A mulher (a mulher como gênero, não como pessoa individual) me roga, por isso
quero escrever a propósito de um acidente que é, muitas vezes, cruel e acerbo a ponto de
chamar-se amor (considerava-se que a palavra “amor” era derivada de “morte”: amore/
amor[t]e ). E quem nega que seja assim, possa experimentar a verdade!
5-7. Para tanto, exijo um leitor inteligente, pois não espero que um homem de razão
limitada possa chegar a entender esta argumentação.
8-14. De fato, sem uma demonstração conduzida pelos instrumentos da filosofia natural
(distinta da teologia) não conseguirei demonstrar onde amor reside e o que o faz nascer,
e qual seja seu poder e sua força, e também qual a sua essência, qual o movimento de
ânimo que suscita e de como o prazer, que faz com que se defina o “amar”, é representável
a ponto de ser percebido pela vista.
15-18. O amor se forma (prende suo stato) e se fixa de modo estável (e fa demora) naquela
parte (da alma) em que se encontra a memória, causado por uma obscuridade que deriva
de Marte, da mesma maneira em que os corpos transparentes aparecem por efeito da luz.
19-20. Ele (o amor) é criado (por isso não é uma substância, mas um acidente) e adquire
um nome quando passa a ser percebido pelos sentidos; ele é uma disposição natural da
alma e um desejo do coração.
21-23. Brota da visão de uma figura (de pessoa) quando esta atinge o intelecto e se fixa
de modo estável (prende loco e dimoranza) no intelecto possível fazendo dele o sujeito
do amor: intelecto possível é um conceito de Aristóteles que designa a parte da mente que
formula as abstrações, isto é, que das formas singulares extrai as ideias gerais.
24-28. Nessa parte da alma (do intelecto possível) o amor não possui nenhum poder,
porque é tão somente qualidade. Ele, o intelecto possível, é puro e contínuo processo de
compreensão, e não de provar prazer: ele se limita a “pensar”, e assim não oferece
elementos sensíveis de referência. (Ou seja: o amor nada influi sobre o intelecto possível,
porque é uma paixão ligada à alma sensitiva, ao passo que a contemplação abstrata do
intelecto possível é uma experiência distinta e separada do amor).
29-31. O amor não é uma faculdade (vertù significa uma faculdade humana), mas deriva
da perfeição: não se entenda como perfeição racional, mas sensitiva.
32-34. O amor lança o juízo para fora do modo são de raciocinar, uma vez que o desejo
substitui a razão: faz mau uso da razão quem se apega viciosamente à paixão (al quale il
vizio è amico).
35-37. Da potência do amor resulta muitas vezes a morte se, por força, a virtude (a força
vital) que sustenta o homem contra a morte sofre forte obstáculo em seu modo de operar:
38-41. E isso não porque o amor seja contra a natureza, mas na medida em que possa
afastar do sumo bem (buon perfetto, isto é, a felicidade), não se pode dizer que se viva de
verdade, porque não se tem domínio seguro sobre si mesmo.
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42. Ao mesmo desfecho pode levar o fato de alguém esquecer o sumo bem.
43-45. O ser do amor se verifica (ou seja, existe amor) quando o desejo se torna tão
intenso que ultrapassa os limites naturais e não tem nenhum instante de pausa.
46-49. Ele transforma o riso em pranto, faz mudar de cor, transforma o aspecto exterior
por força do medo; é inconstante, embora ele se encontre com mais frequência em pessoas
de ânimo nobre.
50-56. A nova condição (a de enamorar-se) provoca suspiros e impõe que se olhe um
objeto (a mulher) indefinido (isto é, que não adquiriu forma ainda no intelecto possível),
o que causa o surgimento de uma cólera que faz arder: ninguém pode imaginar isso sem
experimentar; ela paralisa, apesar da atração para o objeto de desejo, e ninguém pode se
livrar disso, para encontrar descanso, enquanto a mente não entende tudo o que está
acontecendo.
57-59. De semelhante condição o amor faz nascer (tragge: extrai) dos olhos do
enamorado um olhar tal que faz a atração evidente: e isso não poderá mais ser escondido
depois de se chegar a esse ponto.
60-62. As belezas são como flechas que podem provocar as feridas do amor, porque o
desejo é submetido à prova do temor: e o ânimo que é traspassado (pela flecha do amor)
adquire preço (ou seja, se refina e aperfeiçoa).
63-66. O amor não é visível aos olhos: desde sua concepção, a cor branca (a claridade)
desaparece em tal objeto (o amor); se não se pode ver a forma, menos ainda se pode ver
o amor, que deriva da forma.
67-70. Privado de cor, além de substância (é um acidente), posto no escuro, o amor rejeita
a luz. Com toda sinceridade (fuor d’ogni fraude) afirmo, merecedor de fidúcia, que só de
um amor assim nasce recompensa.
71-75. Tu, canção, podes andar com toda segurança, por onde te agrade, porque eu te
elaborei de tal forma que a tua argumentação será amplamente elogiada pelas pessoas
competentes: quanto às outras, tu mesma não desejas ficar entre elas.
Referências bibliográficas
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