UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO FACULDADE DE ENFERMAGEM PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ENFERMAGEM MESTRADO EM ENFERMAGEM GRASIELE CRISTINA LUCIETTO TERAPIA COMUNITÁRIA INTEGRATIVA COMO CUIDADO DE ENFERMAGEM EM AMBULATÓRIO DE NEFROLOGIA PEDIÁTRICA CUIABÁ 2014 GRASIELE CRISTINA LUCIETTO TERAPIA COMUNITÁRIA INTEGRATIVA COMO CUIDADO DE ENFERMAGEM EM AMBULATÓRIO DE NEFROLOGIA PEDIÁTRICA Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, da UFMT, para obtenção do título de Mestre em Enfermagem. Área de concentração: Enfermagem e o Cuidado à Saúde Regional Linha de pesquisa: Estudos do Cuidado em Enfermagem Orientadora: Profª. Drª. Rosa Lúcia Rocha Ribeiro CUIABÁ- MT 2014 Dados Internacionais de Catalogação na Fonte. L937t Lucietto, Grasiele Cristina. Terapia Comunitária Integrativa como cuidado de enfermagem em ambulatório de nefrologia pediátrica / Grasiele Cristina Lucietto. -- 2014 104 f. : il. ; 30 cm. Orientadora: Rosa Lúcia Rocha Ribeiro. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Mato Grosso, Faculdade de Enfermagem, Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, Cuiabá, 2014. Inclui bibliografia. 1. Terapias complementares. 2. Comunidade. 3. Enfermagem Pediátrica. 4. pelo(a) autor(a). Ficha catalográfica elaborada automaticamente de acordo com os dados fornecidos Doença Crônica. 5. Nefrologia. I. Título.1. Terapias complementares. 2. Comunidade. 3. Enfermagem Pediátrica. 4. Permitida a reprodução parcial ou total, desde que citada a fonte. Doença Crônica. 5. Nefrologia. I. Título. GRASIELE CRISTINA LUCIETTO TERAPIA COMUNITÁRIA INTEGRATIVA COMO CUIDADO DE ENFERMAGEM EM AMBULATÓRIO DE NEFROLOGIA PEDIÁTRICA Esta dissertação foi submetida ao processo de avaliação pela Banca Examinadora para obtenção do título de: Mestre em Enfermagem. E aprovada na sua versão final em 25 de fevereiro de 2014, atendendo às normas da legislação vigente da UFMT, Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, área de concentração Enfermagem e o Cuidado à Saúde Regional. _________________________________ Drª Rosemeiry Capriata de Souza Azevedo Coordenadora do Programa BANCA EXAMINADORA: ________________________________ Drª Rosa Lúcia Rocha Ribeiro Presidente (Orientador) _______________________________ Drª Maria de Oliveira Ferreira Filha Membro Efetivo Externo _______________________________ Drª Sônia Ayako Tao Maruyama Membro Efetivo Interno _________________________________ Drª Aldenan Lima Ribeiro Corrêa da Costa Membro Suplente Interno ________________________________ Drª Maria Djair Dias Membro Suplente Externo DEDICATÓRIA Dedico este trabalho a toda minha família, especialmente aos meus pais, Soeli T. K. Lucietto e Leomar Lucietto, e ao meu esposo, Rondinele Amaral da Silva, por todo amor, alegria e ensinamentos partilhados. Agradeço por me incentivarem e percorrerem essa trajetória ao meu lado, fomentando minhas realizações pessoais e profissionais. Obrigada por compreenderem minhas ausências e pelo apoio incondicional para que meus objetivos fossem atingidos. AGRADECIMETOS Agradeço à Deus Agradeço toda a sensibilidade e dedicação da minha orientadora Profª Drª Rosa Lúcia Rocha Ribeiro, exemplo de profissional e pessoa, pelo apoio e orientação. Agradeço imensamente todo o carinho e cuidado ofertado nesses dois anos de convivência, que construíram um laço afetivo que permanecerá presente em minha vida. Ao programa de Pós-Graduação em Enfermagem, em especial o corpo docente, pelas contribuições essenciais no meu processo de formação durante o mestrado. Ao corpo administrativo da Pós-Graduação da FAEN/UFMT, em especial ao Rodrigo, Patrícia e Solange, pela disponibilidade e atenção em todos os momentos. Aos integrantes do grupo de pesquisa GPESC, principalmente as professoras Aldenan e Sonia, pelo imenso afeto e ensinamentos, presentes desde meu ingresso na graduação, exemplos de enfermeiras amorosas e comprometidas com a profissão. À turma de 2012 do mestrado, especialmente à Angélica, Eliziani, Heidy e Jackeline que me apoiaram e tornaram essa jornada mais leve e alegre. Obrigada por todos os momentos de descontração e amizade proporcionados. Agradeço a Ingrid, Camila e Maria Cláudia, amigas e companheiras de trabalho, obrigada pela acolhida, ensinamentos e trocas de experiências. Agradeço todos meus colegas de trabalho pela compreensão e apoio. À CAPES pelo apoio financeiro. “Eu quero desaprender para aprender de novo. Raspar as tintas com que me pintaram. Desencaixotar emoções, recuperar sentidos.” Rubem Alves LUCIETTO, G.C. Terapia Comunitária Integrativa como cuidado de enfermagem em ambulatório de nefrologia pediátrica. 2014. Dissertação. (Mestrado em Enfermagem) – Programa de Pós-Graduação em Enfermagem. Universidade Federal de Mato Grosso, Faculdade de Enfermagem, Cuiabá, p. 104. Orientadora: Dr.ª Rosa Lúcia Rocha Ribeiro. RESUMO Terapia Comunitária Integrativa (TCI) é um ambiente comunitário que visa a partilhar experiências de vida e sabedorias de forma horizontal e circular. Cada participante se torna seu próprio terapeuta através da escuta das histórias de vida relatadas neste espaço. Todos são corresponsáveis na busca de soluções e superação dos desafios do cotidiano, em um ambiente acolhedor e caloroso. A condição crônica na infância interfere no funcionamento corporal da criança em longo prazo, demanda assistência e acompanhamento por profissionais de saúde, limita as atividades diárias, origina alterações no seu processo de crescimento e desenvolvimento, comprometendo o cotidiano de todos os membros da família. Como na maioria das doenças crônicas na infância, as doenças crônicas renais alteram as vidas das crianças em todos os níveis, além de lhes restringir atividades rotineiras. Estudo descritivo, com enfoque qualitativo. A intervenção foi feita no Ambulatório de Nefrologia Pediátrica de um Hospital Universitário, no município de Cuiabá, Mato Grosso. Os sujeitos do estudo foram crianças, adolescentes e suas famílias atendidas no ambulatório, que participaram ao menos uma vez da roda de TCI. Também participaram duas acadêmicas de enfermagem, uma funcionária do hospital e uma terapeuta, totalizando 32 pessoas. O material empírico é composto da transcrição das rodas, que foram filmadas, e das anotações da observação participante. Os resultados evidenciaram que as rodas de TCI foram um instrumento de promoção da saúde, proporcionando um espaço comunitário para que os participantes ressignifiquem suas vivências, partilhem sabedorias e experiências, favorecendo desta forma a superação de dificuldades, a busca por soluções, promovendo a autonomia dos indivíduos. É um meio de integração entre as pessoas, que busca elevar a autoestima e descobrir potenciais, construir redes de apoio e orientar quanto aos seus direitos e seu papel social. Ressalta-se a relevância da TCI como espaço de partilha de experiências com outros familiares/cuidadores em situações semelhantes, visto que os assuntos mais recorrentes nas rodas de TCI foram a sobrecarga da família no cuidado, a responsabilização exacerbada/culpabilização pelo estado de saúde/cuidado do filho e a abnegação por parte da família para uma melhor assistência e acompanhamento do tratamento da criança/adolescente. Apesar das adversidades, ficou evidente que o vínculo afetivo entre mãe/familiar e filho torna o cuidado com a criança uma experiência gratificante. A TCI proporcionou o compartilhamento de sentimentos e vivências, fornecendo segurança e auxiliando a lidar com as incertezas geradas pela condição da criança. A análise dos resultados encontrados neste estudo possibilitou a constatação de que a Terapia Comunitária Integrativa prestada às crianças, adolescentes e suas famílias, em um Ambulatório de Nefrologia Pediátrica no município de Cuiabá, foi uma tecnologia de cuidado complementar, possibilitando uma assistência mais humanizada e acolhedora. Palavras-chave: Terapias complementares. Comunidade. Enfermagem Pediátrica. Doença Crônica. Nefrologia. LUCIETTO, G.C. Integrative Community Therapy as nursing care in outpatient pediatric nephrology. 2014. Dissertation. (Master's degree in nursing) - Postgraduate Program in Nursing. Federal University of Mato Grosso, Nursing College, Cuiabá, p. 104. Advisor: Dr. Rosa Lúcia Rocha Ribeiro. ABSTRACT Community Integrative Therapy (TCI) is a community environment that aims to share life experiences and wisdoms horizontally and circularly. Each participant becomes his own therapist through listening to the life stories reported in this space. All share responsibility in finding solutions and overcoming the challenges of everyday life in a warm and friendly atmosphere. Chronic conditions in childhood interferes with the functioning body of the child in long term, demand assistance and monitoring by health professionals, limits daily activities, causes changes in its growth and development, affecting the daily lives of all family members. As in most chronic childhood diseases, chronic kidney diseases alter the lives of children at all levels, and restrict their routine activities. This is a descriptive study with a qualitative approach. The action was taken at an Ambulatory of Pediatric Nephrology of a University Hospital in the city of Cuiabá, Mato Grosso. The study subjects were children, adolescents and their families attended the clinic, who participated at least once in TCI circle. Two nursing students, an employee of the hospital and a therapist also participated, totaling 32 people. The empirical material consists of the transcript of the circles, which were videotaped, and the notes of participant observation. The results showed that the circles of TCI were an instrument for health promotion, providing a community space for participants resignify their experiences, share wisdom and experiences, thus favoring the overcoming of difficulties, the search for solutions, promoting the autonomy of the individuals. It is a mean of integration between people, who seek to raise the self-esteem and discovering potential, building networks of support and guidance about their rights and their social role. We stress the importance of TCI as an space to share experiences with other families / caregivers in similar situations , as the most recurrent issues on the TCI circles were overloading the family in care , the heightened accountability / culpability for health / child care and dedication by the family to better care and follow-up treatment of children / adolescents . Despite the adversities, it became evident that the emotional bond between parent / child and family makes child care a rewarding experience. TCI provided the sharing of feelings and experiences, providing security and helping to deal with the uncertainties generated by the child's condition. The results found in this study enabled the realization that Community Integrative Therapy provided to children , adolescents and their families in a Pediatric Nephrology Unit in the city of Cuiabá, it was a technology of complementary care, enabling a more humane and friendly assistance. Descriptors: Complementary Therapies; Community; Pediatric Nursing; Chronic Disease; Nephrology. LUCIETTO, G.C. Terapia Comunitaria Integradora como cuidado de enfermería en nefrología pediátrica ambulatoria. 2014. Tesis. (Maestría en Enfermería) - Programa de Posgrado en enfermería. Universidad Federal de Mato Grosso, Facultad de Enfermería, Cuiabá, p. 104. Asesora: Dr. Rosa Lúcia Rocha Ribeiro. RESUMEN Terapia Integradora de la Comunidad (TCI) es un entorno de comunidad que tiene como objetivo compartir experiencias de vida y sabidurías de forma horizontal y circular. Cada participante se convierte en su propio terapeuta a través de escuchar las historias de vida reportados en este espacio. Todos comparten la responsabilidad en la búsqueda de soluciones y la superación de los retos de la vida cotidiana en un ambiente cálido y acogedor. Las condiciones crónicas en la infancia interfieren en el funcionamiento del cuerpo del niño al largo plazo, demanda la asistencia y el seguimiento por profesionales de la salud, limita las actividades diarias, causa cambios en su crecimiento y desarrollo, lo que afecta la vida cotidiana de todos los miembros de la familia. Al igual que en la mayoría de las enfermedades crónicas de la infancia, las enfermedades renales crónicas alteran la vida de los niños en todos los niveles, y restringen sus actividades de rutina. Estudio descriptivo con enfoque cualitativo. La intervención fue tomada en el Ambulatorio de Nefrología Pediátrica de un Hospital Universitario en la ciudad de Cuiabá, Mato Grosso. Los sujetos del estudio fueron niños, adolescentes y sus familias asistidas en el ambulatorio, que participaron al menos una vez de la rueda de TCI. Dos estudiantes de enfermería, una empleada del hospital y una terapeuta también participaron, de un total de 32 personas. El material empírico consiste en la transcripción de las ruedas, las cuales fueron grabadas en video, y las notas de la observación participante. Los resultados mostraron que las ruedas de la TCI eran un instrumento para la promoción de la salud, proporcionando un espacio comunitario para que los participantes resignifican sus experiencias, compartir la sabiduría y experiencias, favoreciendo la superación de las dificultades, la búsqueda de soluciones, la promoción de la autonomía de los individuos. Es un medio de integración entre las personas, que busca elevar la autoestima y descubrir el potencial, la construcción de redes de apoyo y orientación sobre sus derechos y su papel social. Hacemos hincapié en la importancia de las TCI como un espacio para compartir experiencias con otras familias / cuidadores en situaciones similares, como los temas más recurrentes en las ruedas de TCI fueron la sobrecarga de la familia en el cuidado, la responsabilidad mayor / culpabilidad por la salud / cuidado de niños y la dedicación a la familia para una mejor atención y tratamiento de seguimiento de los niños / adolescentes. A pesar de las adversidades, se hizo evidente que el vínculo emocional entre padre / hijo y su familia hace que el cuidado de niños sea una experiencia gratificante. La TCI proporciona el intercambio de sentimientos y experiencias, proporcionan seguridad y ayuda a hacer frente a las incertidumbres generadas por la condición del niño. Los resultados encontrados en este estudio permitieron a la comprensión de que la Terapia Comunitaria Integrativa proporcionada a niños, adolescentes y sus familias en una Unidad de Nefrología Pediátrica en la ciudad de Cuiabá, era una tecnología de atención complementaria, lo que permite una asistencia más humana y agradable. Descriptores: Terapias Complementarias; Enfermedades Crónicas; Nefrología. Comunidad; Enfermería Pediátrica; LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS ABRATECOM – Associação Brasileira de Terapia Comunitária DRC – Doença Renal Crônica FAEN – Faculdade de Enfermagem GPESC – Grupo de Pesquisa Enfermagem, Saúde e Cidadania HUJM – Hospital Universitário Julio Müller OMS – Organização Mundial da Saúde PPGENF – Programa de Pós Graduação em Enfermagem SBN – Sociedade Brasileira de Nefrologia SUS – Sistema Único de Saúde TCI – Terapia Comunitária Integrativa TRS – Terapia Renal Substitutiva UFMT – Universidade Federal de Mato Grosso UFPB – Universidade Federal da Paraíba SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO................................................................................................. 144 1.1 A aproximação com a temática do estudo .......................................................... 14 1.2 Considerações sobre a temática .......................................................................... 15 2.1 Objetivo Geral ................................................................................................... 18 2.2 Objetivos Específicos ........................................................................................ 18 3. REFERENCIAL TEÓRICO ................................................................................ 19 3.1 A TCI: histórico de sua elaboração e prática, objetivos, técnica e pilares teóricos. ................................................................................................................................ 19 3.1.1 O Pensamento Sistêmico ............................................................................. 21 3.1.2 A Teoria da Comunicação ........................................................................... 24 3.1.3 A Antropologia Cultural .............................................................................. 25 3.1.4 A Resiliência ............................................................................................... 26 3.1.5 A Pedagogia de Paulo Freire ....................................................................... 28 3.2 A TCI como uma prática para a superação da hegemonia do modelo biomédico e valorização do Cuidado em saúde ............................................................................ 30 3.3 Condição crônica na infância e suas repercussões para criança e família ............ 35 4. PERCURSO METODOLÓGICO ........................................................................ 38 4.1 Caracterização do estudo ................................................................................... 38 4.2 Local do estudo e inserção da pesquisadora no cenário ...................................... 39 4.3 Sujeitos do estudo .............................................................................................. 40 4.4 Coleta de dados ................................................................................................. 42 4.5 Análise dos dados .............................................................................................. 43 4.6 Aspectos éticos da pesquisa ............................................................................... 44 5. ANÁLISE ........................................................................................................... 45 5.1 Descrição da primeira roda de TCI: “Compartilhar a alegria pela saúde dos filhos” ................................................................................................................................ 45 5.3 Descrição da terceira roda de TCI: “Compartilhar a angústia por se sentir o esteio da família e estar adoecida” ..................................................................................... 59 5.4 Descrição da quarta roda de TCI: “Celebrar a alegria pela saúde dos filhos” ...... 63 6 DISCUSSÃO DO MATERIAL EMPÍRICO ............................................................ 72 6.1 PRINCIPAIS INQUIETAÇÕES/TEMAS RELATADOS PELAS PESSOAS COM DRC SEUS FAMILIARES NA CONVIVÊNCIA COM A DRC ................... 72 6.2 A ENFERMEIRA NA CONDIÇÃO DE TERAPEUTA COMUNITÁRIA E AS PARTICULARIDADES DE SUA ATUAÇÃO NO GRUPO................................... 78 6.3 REFLETINDO SOBRE A TCI COMO INSTRUMENTO DE CUIDADO PARA PESSOAS COM DRC E SEUS FAMILIARES ....................................................... 83 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 944 APÊNDICE ........................................................................................................... 1010 ANEXO .................................................................................................................. 1033 1 INTRODUÇÃO 1.1 A aproximação com a temática do estudo Durante a graduação em Enfermagem, tive a oportunidade de me inserir na pesquisa ao participar do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC). No período de 2008 a 2011, como membro do Grupo de Pesquisa em Enfermagem e Saúde e Cidadania (GPESC), desenvolvi pesquisas que versavam sobre experiências de adoecimento por condições crônicas, especificamente, relativas ao câncer e a obesidade. A participação em diferentes pesquisas instigou a me inserir no mestrado stricto sensu e contribuir na produção de conhecimento em enfermagem, principalmente em pesquisas que contribuíssem para a visão macroscópica do ser humano e suas múltiplas dimensões de cuidado/necessidade. Em 2011, tive meu primeiro contato com a Terapia Comunitária Integrativa (TCI). Nesse período, o GPESC deu início a pesquisas que investigavam a TCI como uma prática de cuidado em diversos contextos, sendo as de maior destaque: as rodas semanais realizadas no Ambulatório de Feridas de um Hospital Universitário (HU) em Cuiabá com pacientes e acompanhantes; rodas semanais realizadas na brinquedoteca do mesmo hospital, com pessoas internadas nas diversas clínicas e seus acompanhantes; e a realização de rodas semanais na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) com discentes, funcionários e moradores da região. Outro trabalho relevante acerca desta temática realizado pelo grupo foi a dissertação intitulada “A Terapia Comunitária Integrativa como cuidado complementar em uma unidade de hemodiálise”, de Mello (2013), que analisou o uso da TCI com adultos em hemodiálise, funcionários e acompanhantes. Os resultados obtidos foram satisfatórios ao evidenciar a TCI como um espaço de cuidado, que promoveu redução do estresse e ampliação do apoio social àquelas pessoas que vivenciam uma condição crônica, dependentes de tecnologias duras para manterem suas vidas. Ao ter contato com os trabalhos de pesquisa e extensão realizados no Ambulatório de Nefrologia Pediátrica do HU, pude conhecer um pouco a realidade das crianças e adolescentes atendidas neste local. Eram centenas de crianças e familiares, de diversas regiões do estado, de estados vizinhos e até de um país fronteiriço, que vinham em busca de tratamento. Histórias imersas de dificuldades, superação e, sobretudo, de amor. Aquele lugar, aquelas pessoas me instigaram a conhecer melhor cada caso, mas, essencialmente, o que mais me inquietava era como poderia contribuir com aquelas pessoas que passavam por essas situações com mais conforto, mais segurança. Por conseguinte, ansiei desenvolver uma pesquisa que visasse a uma prática de cuidado mais acolhedora naquele ambiente. Como já havia participado de algumas rodas de TCI, instigou-me estudar as repercussões dessa prática naquele ambiente. Esta dissertação é um desdobramento do projeto matricial “Formação de terapeutas comunitários, assistência à saúde estudantil e pesquisa ação”, em desenvolvimento no Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da UFMT. 1.2 Considerações sobre a temática A infância é um período em que o esperado é que a criança vivencie situações de saúde que proporcione seu crescimento e desenvolvimento dentro dos parâmetros da normalidade. Contudo, no momento em que a criança se encontra na condição de doente, é natural que modificações possam ocorrer no seu comportamento (HOLANDA, 2008). A condição crônica na infância interfere no funcionamento corporal da criança e a longo prazo demanda assistência e acompanhamento por profissionais de saúde. É comum ocorrerem imitações nas atividades diárias, originando alterações no seu processo de crescimento e desenvolvimento, comprometendo o cotidiano de todos os membros da família. Como parte das doenças crônicas na infância, as doenças renais crônicas (DRC) alteram as vidas das crianças em todos os níveis, restringindo atividades rotineiras (RIBEIRO; ROCHA, 2007). Apesar disso, ainda existem poucos estudos que apontam a incidência e a prevalência de crianças com DRC no Brasil e no mundo, principalmente em relação aos estágios menos avançados da doença, visto que os estudos existentes se concentram nos estágios avançados ou terminais da doença (NOGUEIRA et al, 2011). O estudo feito pelo autor supracitado, no estado de São Paulo, encontrou uma prevalência de doença renal terminal na população de 0 a 18 anos, de 23,4 casos por milhão da população com idade compatível (pmpic). O censo da Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN) de 2012 revela que no Brasil 4,5% da população em diálise se encontra nesta faixa etária, sendo 0,3% (112 pessoas), de 0 a 12 anos, e 4,2% (1610 pessoas) de 13 a 18 anos. Conforme Zuntini (2008), os levantamentos epidemiológicos são de grande relevância, visto que um dos maiores desafios da Nefrologia Pediátrica atual é assegurar o diagnóstico precoce e oportunizar o atendimento interdisciplinar de crianças e adolescentes portadores de DRC para prevenir ou protelar a progressão da doença renal, evitando a necessidade de terapia de substituição renal (TSR). Em Mato Grosso, um HU do município de Cuiabá tem um serviço de referência regional, o Ambulatório de Nefrologia Pediátrica. Tal serviço se caracteriza por atender crianças e adolescentes em tratamento clínico, sendo as patologias mais frequentes a síndrome nefrótica e outras glomerulopatias, calculoses e malformações do trato urinário. São crianças e adolescentes que vivem condições crônicas de difícil manejo, cujo envolvimento familiar com a equipe multidisciplinar é fundamental para um gerenciamento do cuidado de modo mais eficaz (RIBEIRO; ROCHA, 2007). Considerando a importância de um cuidado diferenciado a essas crianças e adolescentes e o quanto se torna essencial que ele seja prestado não só às crianças, mas também à família, emerge nesse cenário a TCI como um instrumento facilitador para promoção da saúde ao possibilitar um espaço coletivo de escuta, reflexão e troca de aprendizagem, deslocando o foco da assistência individual para a coletiva pela participação da comunidade (CARÍCIO et al., 2013). Desta forma, este estudo foi motivado pelos seguintes questionamentos: Como se conformaria a TCI no contexto de um ambulatório de Nefrologia Pediátrica? Como ela poderia contribuir para o cuidado de crianças e suas famílias que convivem com DRC? Quais as principais inquietações e sofrimentos dessas pessoas? Existiriam dificuldades ou limitações na utilização da TCI? Se sim, como superá-las? Qual o potencial da TCI para o aprimoramento da assistência de enfermagem para esse grupo? Com base nos resultados obtidos em outros estudos relacionados à TCI em diversos contextos (BUZZELI, 2012; MELLO, 2013; CARÍCIO et al., 2013; BRAGA et al., 2013; BARRETO, 2008), pressupomos que o uso da TCI possa garantir meios de alcançar um cuidado mais humanizado e integral às crianças e adolescentes com condição crônica e a suas famílias, visando à promoção da autonomia desses participantes. A TCI apresenta características de tecnologia leve, que acredita na capacidade do outro, no estabelecimento de vínculos, fortalecendo relações harmônicas que potencializam a capacidade resiliente das pessoas (DIAS; FERREIRA FILHA; ANDRADE, 2007). A TCI promove a criação de um ambiente comunitário, cujo foco é a partilha de experiências de vida e sabedorias de forma horizontal e circular. Cada participante se torna seu próprio terapeuta pela escuta das histórias de vida relatadas neste espaço. Todos são corresponsáveis na busca de soluções e superação dos desafios do cotidiano, em um ambiente acolhedor e caloroso (BARRETO, 2008). Nesse contexto, objetivamos compreender as rodas de TCI realizadas com crianças e adolescentes que vivenciam uma DRC e suas famílias, confirmando-a como uma prática de cuidado complementar. Apesar do acentuado crescimento de pesquisas envolvendo a TCI, essa tecnologia de cuidado ainda é relativamente nova, e a realização de pesquisas acerca dessa temática permite que essa prática seja reconhecida pela comunidade científica como uma possibilidade terapêutica eficiente em diversos contextos. Desta forma, nos propomos a investigar como esse cuidado complementar se configura em um ambiente ambulatorial que atende um grupo tão singular como o das crianças e adolescentes que vivenciam uma doença renal crônica. 2 OBJETIVOS 2.1 Objetivo Geral Compreender as repercussões da TCI como estratégia de intervenção para o cuidado de crianças e adolescentes com doença renal crônica e de seus familiares. 2.2 Objetivos Específicos Descrever o processo de desenvolvimento das terapias realizadas no ambulatório de nefrologia pediátrica do HUJM, considerando todas as etapas da TCI. Revelar os temas escolhidos para aprofundamento nas rodas de TCI, com a finalidade de dar conhecimento sobre as preocupações do dia a dia que envolvem as crianças e adolescentes e seus familiares, no convívio com a doença renal crônica. Destacar o papel do terapeuta comunitário na condução da terapia, ressaltando seu desenvolvimento com o grupo bem como as particularidades desse trabalho terapêutico. 3 REFERENCIAL TEÓRICO No processo de construção de nosso projeto de pesquisa, nos deparamos com uma citação de Martins (2011), que nos possibilitou reafirmar e assumir a simplicidade como um valor. O autor cita um ditado popular que afirma que “as mais suntuosas palavras se tornam inócuas quando deixam de se referir a uma experiência concreta, servindo apenas como moldura para ilustração de velhos modos de agir e de pensar”. Também, nesse sentido, Paulo Freire (2001) já nos ensinava a valorizar a construção do conhecimento a partir da ação e reflexão sobre a realidade concreta e sobre a necessidade de distanciamento e admiração sobre os objetos que nos causam curiosidade. Somente o homem pode distanciar-se do objeto para admirá-lo. Objetivando ou admirando – admirar se toma aqui no sentido filosófico – os homens são capazes de agir conscientemente sobre a realidade objetivada. É precisamente isto, a “práxis humana”, a unidade indissolúvel entre minha ação e minha reflexão sobre o mundo (FREIRE, 2001, p.15). Assim, neste estudo, propusemos um referencial teórico condizente com a realidade, que permita servir de embasamento para uma prática cuidadora integral e humanizada. Para isso, iniciaremos apresentando a TCI, o histórico de sua elaboração e prática, seus objetivos, técnica e pilares teóricos. Na sequência, apresentamos uma discussão acerca do modelo de saúde vigente, as mudanças que vêm ocorrendo nos últimos anos com o intuito de superar esse paradigma e a posição demarcada pela TCI como uma Prática Integrativa e Complementar de saúde. Também consideramos importante trazer reflexões sobre ética, humanização, integralidade e cuidado. 3.1 A TCI: histórico de sua elaboração e prática, objetivos, técnica e pilares teóricos. A TCI foi desenvolvida em 1987 pelo professor Adalberto de Paula Barreto, da Universidade Federal do Ceará, com base em conhecimentos acumulados em sua formação. O professor Adalberto é médico, com doutorado em Psiquiatria e em Antropologia, sendo, também, licenciado em Filosofia e em Teologia. Propõe, de uma forma simples e eficiente, abordar e acolher o sofrimento humano gerado pela sociedade moderna, estimulando o fortalecimento de redes sociais de forma a prevenir a evolução de problemas familiares e sociais para doenças, como dependências químicas e depressão. De acordo com Carvalho et al. (2013, p.2030), a TCI permite “trabalhar com grupos distintos e característicos de maneira dinâmica, participativa e reflexiva, que oportuniza um espaço aberto para exposição de problemas e inquietações que repercutirão no diálogo em favor da busca de soluções para os conflitos emanados”. A TCI é um método simples, em que as pessoas se encontram, se sentam lado a lado, compondo uma roda, com intuito de compartilhar inquietações, problemas ou dificuldades do cotidiano (individuais e coletivas), bem como alegrias e histórias de superação. Apresenta alta eficácia ao transformar esse compartilhamento de informações/saberes/histórias em oportunidades de crescimento pessoal pela valorização dos saberes de cada indivíduo e de sua competência para superação dos desafios diários (BARRETO, LAZARTE, 2013). A TCI se propõe a reforçar a importância da valorização da família e da rede de apoio solidário, além de estimular que as pessoas cuidem mais de si e valorizem os recursos culturais locais. Esta estratégia de cuidado complementar vem sendo praticada em diversos contextos e comunidades, sobretudo com os socialmente marginalizados e excluídos. Os resultados dessa prática vêm demonstrando sua eficácia como instrumento de intervenção social na atenção à saúde, enfatizando a prevenção de doenças, promoção da saúde e qualidade de vida (BRASIL, 2008). A roda de TCI parte de uma “situação problema” exposta por alguma pessoa da comunidade. A partir dessa situação, a equipe terapêutica busca estimular o crescimento do indivíduo e das pessoas com as quais se relaciona, na busca de autonomia e liberdade. É realizada por meio de um processo de questionamentos em todos os níveis: biológico, psicológico, social e político (BARRETO, 2008). Com a TCI, “a saúde deixa de ser objeto de espaço privado, exclusivo da intervenção de profissionais e instituições, para se tornar um espaço público, onde todos os atores sociais são chamados a agir em diferentes níveis. Cada pessoa se torna protagonista de sua saúde e da saúde coletiva” (BRASIL, 2008, p.62). Na elaboração da metodologia da TCI, Adalberto Barreto se apoiou em, basicamente, cinco pilares teóricos: o Pensamento Sistêmico, a Teoria da Comunicação, a Antropologia Cultural, a Pedagogia de Paulo Freire e a Resiliência. O detalhamento do método e das regras próprias para a sua condução serão mais bem discutidas na metodologia deste trabalho. 3.1.1 O Pensamento Sistêmico Em sua formulação sobre a TCI, Adalberto Barreto utiliza o Pensamento Sistêmico como um dos seus pilares teóricos. Essa é uma teoria frequentemente utilizada nas abordagens terapêuticas com famílias. A ideia sistêmica foi formulada por Bertalanffy, na metade do século XX, na Teoria Geral dos Sistemas, e parte do princípio de que grande parte dos objetos da física, biologia, sociologia, organismos, sociedades, entre outros, constituem sistemas, ou seja, são partes distintas que compõem um todo organizado. Desta forma, um sistema pode ser formado de subsistemas e estar inserido em sistemas maiores (BERTALANFFY, 1975). O Pensamento Sistêmico relata que as crises e os problemas pessoais só podem ser solucionados se percebidos como partes integradas de uma rede complexa que inclui o biológico, o psicológico e a sociedade (BARRETO, 2008). O pensamento sistêmico é pensamento de processo e, consecutivamente, a visão sistêmica considera a saúde um processo contínuo. Enquanto a maioria das definições, como da Organização Mundial da Saúde (OMS), refere saúde como um estado estático de completo bem-estar físico, mental e social, o conceito sistêmico de saúde subentende atividade e mudanças contínuas, refletindo a resposta criativa do organismo aos desafios ambientais (CAPRA, 2012). Capra (2012) ainda considera que a condição de uma pessoa depende do meio ambiente natural e social em que está inserida, não havendo uma condição absoluta de saúde que seja independente desse meio. As transformações contínuas do organismo de uma pessoa em relação às variações ambientais incluem naturalmente fases efêmeras de saúde precária, o que dificulta traçar uma linha divisória nítida entre saúde e doença. Concordamos com Capra, ao afirmar ser a saúde um fenômeno multidimensional, que abarca aspectos físicos, psicológicos e sociais, todos interdependentes. Considerar saúde e doença como extremos opostos de algo contínuo e unidimensional é uma falácia. A doença física pode ser compensada por uma atitude mental positiva, um apoio social, colaborando para que o estado geral seja de bem-estar. Por outro lado, problemas emocionais, isolamento social podem implicar a pessoa sentir-se doente, mesmo apresentando um bom estado físico. Essas múltiplas dimensões da saúde se afetam mutuamente, de modo que a sensação de estar saudável ocorre quando estas dimensões estão equilibradas e integradas. Morin traz o ser humano como um ser único e múltiplo, influenciado pela história, política, contexto social e cultural, um ser de múltiplas necessidades, portanto, devemos trazer elementos e nos utilizarmos de estratégias para atendê-lo em suas múltiplas dimensões de necessidade/cuidado (MORIN, 2000). Do ponto de vista sistêmico, a experiência de adoecer deriva de modelos de desordem capazes de se manifestar em diversos níveis do organismo, assim como nas várias interações entre o organismo e os sistemas mais amplos em que ele está inserido. Na abordagem sistêmica, podemos discernir três níveis interdependentes de saúde: individual, social e ecológico. O que não é saudável para o indivíduo tampouco é saudável, comumente, para a sociedade e para o ecossistema global (CAPRA, 2012). Inerente ao conceito de pensamento sistêmico, está o de complexidade. Complexus significa o que foi tecido junto. Assim sendo, quando elementos diferentes são inseparáveis constitutivos do todo, como o econômico, o político, o sociológico, o psicológico, o afetivo, o mitológico, há complexidade e existe um tecido interdependente, interativo e inter-retroativo entre as partes e o todo, o todo e as partes, as partes entre si. Logo, a complexidade é a união entre a unidade e a multiplicidade (MORIN, 2000). Morin e Capra discorrem sobre a existência de articulações nos diferentes meios, distintos âmbitos de uma sociedade. Um exemplo dessa assertiva é o próprio ser humano, que é ao mesmo tempo sistêmico e complexo, afirmando no pensamento complexo e na teoria do sistema que a parte não é mais e nem menos que o todo, nem o todo é mais que a soma das partes, que na visão moriniana é definido como princípio hologramático. Uma representação prática disso é o sistema renal, que vai à falência se o sistema renal ou cardiovascular não funcionar bem, mas não seria difícil entender isso se não conhecermos adequadamente cada sistema e o conjunto deles, fazendo-se necessário conhecer a parte e também o todo. Seguindo esta linha de raciocínio, não se pode separar o sistema de saúde do sistema político, econômico, cultural, entre outros, pois os problemas emergem desta fragmentação dos sistemas em querer pensar os problemas de saúde sem refletir que parte deles se refere ao contexto no qual o indivíduo está inserido. Esta fragmentação tem origem no paradigma cartesiano de fragmentar para conhecer as partes, porém, além de fragmentar, necessitamos reorganizar estas partes para conhecer o todo e compreendermos a dimensão do ser humano e suas experiências/vivências. A roda de TCI vai ao encontro desta perspectiva sistêmica e complexa, na qual o tema a ser trabalhado não é destinado a uma ou outra organização e muito menos estabelecido por alguém detentor do saber. Os temas emergem dos problemas complexos, das experiências que são ao mesmo tempo individuais e coletivas: individuais porque cada um está inserido em um contexto e coletivas porque eles têm um motivo em comum para estarem ali. São a parte e o todo se articulando novamente. A TCI possibilita, entre outras coisas, a interação entre diferentes indivíduos. No ambiente estudado por nós, os indivíduos não estão inseridos em um mesmo contexto, em uma mesma comunidade, são diferentes culturas, diferentes saberes e diferentes modos de ser, estar e se posicionar no mundo. O grupo, sendo heterogêneo, permite a construção da autonomia, colocado por Morin (2005) como algo construído a partir das múltiplas dependências, não se pauta uma dependência pelo saber do outro, como ainda acontece principalmente nos espaços de saúde, mas dependência por estar no mundo e com tudo que há no mundo. A dependência é do ambiente, das pessoas, das diferentes interações com o mundo. Escutar o outro sobre suas angústias e sofrimentos bem como as estratégias encontradas ou não para amenizar e/ou solucionar tal fato possibilita ao outro pensar, refletir, emprestar estratégias para os problemas particulares e ser assim mais autônomo no restabelecimento de sua saúde. De acordo com Barreto (2008), as crises e os problemas só são compreendidos e solucionados se forem entendidos como partes integradas de uma complexa rede, conectando e relacionando as pessoas num todo que abrange o biológico (corpo), o psicológico (a mente e as emoções) e a sociedade. Nesta rede, cada parte depende da outra, interferindo e influenciando na outra. Barreto também afirma que a abordagem sistêmica é um modo de ver, de abordar, de situar, de pensar em um problema em relação ao seu contexto. Possibilita aproximar-se de uma situação-problema pela visão e compreensão do contexto. O pensamento sistêmico concede aos participantes da TCI apreender que estamos inseridos em um conjunto de relações com família, comunidade, sociedade e com valores e crenças intrínsecos a cada indivíduo (BARRETO, 2008). 3.1.2 A Teoria da Comunicação Sabe-se que as ciências da comunicação em geral e a Teoria da Comunicação em particular são disciplinas multiparadigmáticas, ou seja, podem ser desenvolvidas sob as mais diversas naturezas ou perspectivas teóricas (SERRA, 2007). Em sua elaboração, Adalberto Barreto não se delonga em explicitar ou justificar qual perspectiva da Teoria da Comunicação elege para formular a TCI. De forma simples e direta, Barreto relaciona a Teoria da Comunicação como um dos pilares teóricos da TCI, apontando para o fato de que a comunicação é o elemento que une os indivíduos, a família e a sociedade, podendo essa comunicação ser verbal ou não, individual ou em grupo, indo além das palavras, estando ligada a todo comportamento humano (BARRETO, 2008). Na perspectiva dos estudos sobre Comunicação e Saúde, Araújo e Cardoso (2010) afirmam que a comunicação é o processo de produzir, fazer circular e favorecer a apropriação de bens simbólicos como opiniões, crenças, saberes, orientações, pontos de vista, discursos, enfim. Por meio desse processo, são constituídos os sentidos sociais, sentidos estes que organizam a percepção da realidade. Desta forma, a comunicação está diretamente relacionada com a construção da realidade, sendo um campo de poder, poder simbólico, o poder de fazer ver e fazer crer. Para Araújo (2004), a comunicação produz, circula e consome certos sentidos sociais, manifestados por meio dos discursos, de forma dinâmica, mediante a ação dos envolvidos, dos interlocutores e dos contextos em que operam. Araújo e Cardoso (2007) também demonstram, em seus estudos sobre Comunicação e Saúde, que, ao longo do tempo, atravessando diferentes contextos históricos, políticos, epidemiológicos, teóricos e metodológicos, os campos da comunicação e da saúde aproximaram seus vínculos e agregaram novas faces, mantendo-se, porém, algumas características: forte acento no indivíduo, como responsável por sua saúde; os determinantes sociais das doenças, assim como os econômicos, os políticos e os ambientais são ignorados; privilégio das falas autorizadas, particularmente as institucionais, que veiculam um saber médico-científico; presença hegemônica dos discursos higienista e preventivista; comunicação vista como transferência de informações de um polo detentor de conhecimentos para um polo receptor e desautorizado; e abordagem campanhista, focada em investimentos sazonais ou emergenciais. Admitir a desigualdade dos interlocutores quanto às condições de produção, circulação e consumo dos sentidos sociais é a grande contribuição de Araújo para a compreensão dos processos comunicativos. É disso que a autora trata ao falar de lugar de interlocução ou contexto situacional. Em seus trabalhos, Araújo cria uma formulação que representa graficamente os interlocutores no espaço comunicativo, que, a depender a situação, ocupam lugares mais ou menos distantes do centro ou da periferia. Uma pessoa ocupa muitos lugares de fala, dependendo do contexto situacional, mais imediato da interação/comunicação. Em cada uma das situações, exerce um grau diferente de poder em relação aos seus interlocutores, modificando-se, portanto, a natureza do texto que será produzido. O lugar de fala determina, também, as vozes que serão acionadas na enunciação. É relevante destacar que a TCI se apresenta como uma estratégia de desconstrução desse paradigma ao permitir que o diálogo se estabeleça de forma horizontal e circular, possibilitando aos interlocutores o mesmo poder de fala. A TCI atua na saúde de modo integrativo, valorizando a compreensão da cultura, história de vida, contextos sociais, políticos, familiares e comunitários. Um ditado popular muito empregado na TCI enfatiza esta visão ao afirmar “quando a boca cala, os órgãos falam e quando a boca fala, os órgãos saram”. O terapeuta comunitário encoraja as pessoas a se expressar verbalmente, para que não adoeçam com depressão, gastrites, insônias e outras doenças mais (BRASIL, 2008). 3.1.3 A Antropologia Cultural A Antropologia Cultural dá ênfase para as diferentes culturas em que as pessoas estão inseridas, sendo um elemento de referência essencial na identidade pessoal e grupal, e é a partir dessa referência que os indivíduos se afirmam, se aceitam e assumem sua identidade (BARRETO, 2008). Boehs (2007) define cultura como “sistemas entrelaçados de símbolos interpretáveis: um contexto dentro do qual os acontecimentos sociais, os comportamentos, as instituições ou os processos podem ser descritos de forma inteligível”. Cultura pode ser definida como um conjunto de elementos que medeiam e qualificam qualquer atividade física ou mental, que não seja determinada pela biologia, e que seja compartilhada por diferentes membros de um grupo social. Trata-se de elementos sobre os quais os atores sociais constroem significados para as ações e interações sociais concretas e temporais, assim como sustentam as formas sociais vigentes, as instituições e seus modelos operativos. A cultura inclui valores, símbolos, normas e práticas (LANGDON; WIIK, 2010, p.175). Como afirma Paulo Freire (2001), cada indivíduo está inserido em um tempo e espaço, ou seja, vive numa época, lugar, contexto social e cultural precisos. O homem constitui um ser de raízes espaço-temporais. A cultura – por oposição à natureza, que não é criação do homem – é a contribuição que o homem faz ao dado, à natureza. Cultura é todo resultado da atividade humana, do esforço criador e recria-dor do homem, de seu trabalho por transformar e estabelecer relações de diálogo com outros homens [...] é também aquisição sistemática da experiência humana, mas uma aquisição crítica e criadora, e não uma justaposição de informações armazenadas na inteligência ou na memória e não "incorporadas" no ser total e na vida plena do homem (FREIRE, 2001, p.21). Freire afirma que o homem se cultiva e cria a cultura ao estabelecer relações, ao responder aos desafios do cotidiano, ao criticar, moldar, incorporar a si próprio a experiência humana feita pelos homens que o rodeiam ou que o antecederam. Barreto (2008) reitera que no momento em que a cultura for reconhecida, valorizada e articulada com os demais conhecimentos, entenderemos que este recurso nos possibilita somar, multiplicar nossas competências e resoluções de problemas sociais, permitindo a construção de uma sociedade mais justa e afetuosa. 3.1.4 A Resiliência Outro pilar da TCI é a Resiliência, que significa o saber produzido através do enfrentamento das dificuldades. Esse fenômeno humano se caracteriza pela capacidade de transformar a dor em aprendizado, o trauma em crescimento, o sofrimento em competência (CAMAROTTI, 2013). Milho de pipoca que não passa pelo fogo continua a ser milho de pipoca para sempre. Assim acontece com a gente. As grandes transformações acontecem quando passamos pelo fogo. Quem não passa pelo fogo fica do mesmo jeito a vida inteira (ALVES, 2003, p.54). Resiliência é um termo originado da física e é definido, pelo dicionário Aurélio, como “a propriedade pela qual a energia armazenada em um corpo deformado é devolvida quando cessa a tensão causadora de tal deformação elástica” (FERREIRA, 1999, p.1.743). Este termo foi apropriado pela psicologia para expressar “a capacidade que tem um ser humano de se recuperar psicologicamente quando é submetido às adversidades, violências e catástrofes na vida” (PINHEIRO, 2004, p. 67). A resiliência é um alicerce significativo para a TCI, visto que emerge da história de vida de cada participante. A matéria-prima de um trabalho de conscientização social são as crises, os sofrimentos e as vitórias de cada pessoa, expostos ao grupo de forma que se possam descobrir as implicações sociais de suas experiências, do sofrimento, transformando seus sentimentos, possibilitando uma (re) significação dos fatos e tecendo laços sociais (BARRETO, 2008). Para o autor, o objetivo primordial da TCI é proporcionar, por essa prática, que cada indivíduo, família e comunidade adquira competências para que sejam capazes de solucionar e superar as dificuldades impostas pelo meio e pela sociedade (BARRETO, 2008). Para Capra (2012), o organismo também pode atravessar um processo de autotransformação e autotranscendência, abarcando estágios de crise e transição, que resultam em um estado novo de equilíbrio. Mudanças bruscas no estilo de vida de uma pessoa, induzidas por uma grave doença, são exemplos de respostas criativas que frequentemente deixam a pessoa num nível de saúde superior àquele de que usufruía antes do desafio. Isso sugere que períodos de saúde precária são estágios naturais na interação contínua entre o indivíduo e o meio ambiente. Estar em equilíbrio dinâmico significa passar por fases temporárias de doença, que permitem à pessoa aprender e crescer. Camarotti (2013) afirma que a doença oportuniza o aprendizado e o crescimento, visto que o sofrimento provocado por ela se torna matéria-prima para a renovação da vida, podendo ser geradora de saúde ao despertar a consciência do poder interno e da superação. A prática da TCI configura-se como uma estratégia de ampliação da consciência crítica acerca dos dilemas existenciais e das condições e possibilidades da existência nos moldes que Freire considera necessários para a transformação da história (CAMAROTTI, 2007). 3.1.5 A Pedagogia de Paulo Freire Por fim, como quinto pilar teórico, Adalberto Barreto se utiliza dos princípios da Pedagogia de Paulo Freire para compor a metodologia da TCI (Quadro 1). O principal fundamento utilizado refere-se à premissa de que ensinar é o exercício do diálogo, da troca, da reciprocidade, ou seja, de um tempo para falar e de um tempo para ouvir, de um tempo para aprender e de um tempo para ensinar (BARRETO, 2008). Quadro 1: Comparativo entre a Pedagogia de Paulo Freire e a Metodologia da TCI Pedagogia de Paulo Freire Metodologia da TCI Etapa da Investigação: busca conjunta Escolha do Tema: os participantes são entre docente e discente das palavras e convidados a falar, brevemente, sobre suas temas significativos na vida do discente, inquietações, preocupações ou alegrias. considerando seu universo vocabular e a Após a exposição, o grupo elege um tema comunidade em que está inserido. para ser aprofundado naquele encontro. Etapa da Tematização: por meio da Etapa da Contextualização: a pessoa que análise das palavras e temas elencados na teve o tema etapa anterior, ocorre a tomada de detalhadamente consciência do mundo. participantes escolhido a relata situação, mais e os podem fazer para melhor questionamentos compreenderem o tema. Etapa da Problematização: etapa em que Etapa da Problematização: o grupo é o docente desafia e inspira o discente a convidado a partilhar suas experiências a superar a visão acrítica do mundo, partir do Mote colocado: Quem já viveu tomando uma postura mais consciente. algo parecido e o que fez para superar? Neste momento, a pessoa que teve seu tema escolhido ouve as diversas possibilidades de enfrentamento. * Baseada em tabela apresentada por Reis e Salerno (2011) em Educação escolar e Terapia Comunitária Integrativa: uma relação possível mediada pela Pedagogia de Paulo Freire. p. 371. Barreto, ao pensar a TC como uma estratégia de cuidado com grupos, constituída por situações de ensino-aprendizagem, elegeu a Pedagogia de Paulo Freire como um de seus eixos teóricos, por enfatizar a cultura popular, a horizontalidade do saber entre educador e educandos e promover a libertação das pessoas. Seus ideais são tão relevantes para a TCI que perpassam outros eixos teóricos. Na pedagogia de Paulo Freire (2004, p. 47), “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção”. Ensinar é, sim, um exercício de diálogo, de troca, que demanda a relação entre teoria e prática. Freire afirma que não há docência sem discência, visto que quem ensina também aprende. Seguindo o mesmo raciocínio, na TCI, Barreto diz que é cuidando dos outros que cuidamos de nós mesmos, ouvimos e somos ouvidos, é curando o outro que somos curados. “Passamos a rever nossos esquemas mentais, a relativizar nossas dificuldades, a nos descobrirmos seres inacabados e, sobretudo, a nos curarmos de nossa alienação universitária” (BARRETO, 2008, p. 281). A TCI permite aos indivíduos compartilhar diferentes saberes, um saber geralmente subestimado, desvalorizado por não ser de cunho científico, o que é antagônico e ao mesmo tempo complementar, visto que o saber científico tende a se opor ao saber popular, ao mesmo tempo em que depende dele para existir. Como já discutido na Teoria da Comunicação, a TCI possibilita aos participantes o mesmo poder de fala, sendo todos valorizados com suas singularidades. As regras estabelecidas no início da roda servem para garantir que a comunicação seja circular e horizontal. O espaço de TC permite a promoção da saúde por ser um espaço de aprendizado. O aprender torna-se significativo ao integrar atividades lúdicas como dançar, cantar, brincar, por permitir o sentir, o transparecer das emoções, o ouvir, o falar, o tocar. Possibilitar todas essas atividades e sensações em uma única roda de terapia aumenta as oportunidades e as chances de tornar a informação significativa para o indivíduo que está aprendendo. Para sermos bons terapeutas comunitários, precisamos compreender esse processo de aprendizagem que faz da TCI um espaço de aprendizagem coletiva. Na escuta ativa, aprendo. Quando falo de mim, estou ensinando, e quando ouço o outro, estou aprendendo. Somos todos coterapeutas – terapeutas e terapeutizados, docentes e discentes (BARRETO, 2008, p. 281). Podemos dizer que a TCI é a tradução dos ideais de Paulo Freire, ao se configurar como uma prática de cuidado que possibilita o diálogo circular e horizontal, que valoriza as raízes culturais e históricas dos sujeitos, seu saber popular, com intuito de promover a autonomia e bem-estar de seus participantes. 3.2 A TCI como uma prática para a superação da hegemonia do modelo biomédico e valorização do Cuidado em saúde Na atualidade, o modelo de saúde hegemônico tem sido o modelo biomédico, que enfatiza o estudo e tratamento das patologias, instituindo uma dicotomia entre corpo e mente. Nessa perspectiva, valorizam-se mais os sintomas físicos do que as emoções, como a dor e o sofrimento expressados pela subjetividade, ou seja, a dor da alma (SARAIVA et al., 2011). Sabe-se que esse modelo tem suas raízes históricas na construção do saber médico ocidental, fruto da predominância do pensamento cartesiano, cuja prática estava voltada para o conhecimento anátomo-clínico do corpo, das lesões e das doenças. Nesse modelo, o corpo humano é dividido em sistemas, congregados segundo as características isoladas por cada uma das disciplinas articuladas em seu discurso (CAMARGO JR, 2012). Outra característica relevante nessa perspectiva de pensamento é a dicotomia entre o “normal” e o “patológico”, divisão esta que é operativa e não conceitual (CANGUILHEM, 2000). Também, segundo Tesser (2012), a hegemonia da biomedicina, concomitantemente à globalização capitalista desregrada contemporânea, e o processo de medicalização social progressivo têm gerado uma relação profissional-usuário prolixa, violenta e desequilibrada, em decorrência da demasiada centralidade de poder nos profissionais de saúde, com maior relevo para os profissionais médicos e da medicina especializada, sendo reflexo da vinculação desse modelo com o chamado complexo médico-industrial. O mesmo autor ainda avalia essas implicações no cuidado à saúde, afirmando ser um evento delicado e problemático, visto que a relação de cura fundada quando uma pessoa busca um curador para seus problemas de saúde depende de “pactos de ética e confiança, compartilhamento simbólico e afetivo, projeção de poder por parte do doente, manejo da relação, interpretação e orientação terapêutica e preventiva/promocional por parte do especialista (curador)” (TESSER, 2012, p.257). Para esse autor, e a TCI se realiza também com esse sentido, a relação profissional- usuário deve fomentar a autonomia do usuário e a liberdade com responsabilidade e corresponsabilização pelo cuidado, visando à promoção de saúde e não ao controle de comportamentos, suscitando a dependência. Nesse modelo hegemônico de saúde, o desenvolvimento tecnológico impôs ao cuidado a prevalência de tecnologias duras, no sentido proposto por Merhy (2002), instituindo uma dicotomia que, ao mesmo tempo em que agrega mais legitimidade e poder simbólico, ocasionando mais dependência e consumo a essa prática, frustra os usuários que perduram esperando uma experiência com um profissional que estabeleça vínculos, laços afetivos, com um tanto de “coração” (TESSER, 2012). Para Pires (2009, p.740), a sociedade atual é “fortemente dependente de tecnologias materiais, influenciada pela comunicação global, centrada no consumo, nos valores mercantis e na biomedicina”, sendo que “valores como solidariedade, direito universal a vida digna e ao cuidado não são prioridade”. Para Saraiva et al. (2011, p.156), a abordagem holística na saúde surgiu devido a inúmeras deficiências nos padrões vigentes: [...] a fragmentação do conhecimento levando à construção de modelos explicativos e reducionistas sobre o processo saúde doenças reducionistas; avanço e predominância do modelo tecnicista no tratamento e na recuperação da saúde; a maior valorização do ter em relação ao ser; objetificação do ser humano, nos aspectos econômicos, políticos e sociais, entre outras. Tudo isso pode ter levado a humanidade a uma síndrome coletiva de mal-estar que resulta na perda de valores essencialmente humanos. Diante disso, são necessárias novas práticas em saúde com intuito de desconstruir esse modelo que não atende a todos os anseios da população, alavancando a construção de políticas e práticas que contemplem as necessidades do ser humano como um ser dinâmico, capaz de participar ativamente na luta por seus direitos e no exercício de sua autonomia (LOPES et al., 2009). O conceito de saúde associado à qualidade de vida presente na Constituição Federal (CF) também tem levado o Estado brasileiro a instituir novas políticas de intervenção sobre os determinantes sociais da saúde, visando a agir sobre as causas dos problemas de saúde da população e não somente sobre suas consequências (BRASIL, 2008). A proposta do Sistema Único de Saúde (SUS) foi estruturada com base em princípios que devem organizar sua prática, entre os quais se destacam a universalidade (saúde como direito de todos); a equidade (consideração das diferenças, estratégias redistributivas); a integralidade (consideração das múltiplas dimensões da saúde); a descentralização (desconcentração dos recursos, da gestão e do poder); e a participação social (a sociedade controlando o Estado). Em qualquer sistema, esses princípios têm sido objeto de luta e perseguidos como ideal (ARAÚJO; CARDOSO; MURTINHO, 2009). Considerando o objeto deste estudo - a TCI como estratégia de cuidado à saúde de crianças e adolescentes com doença renal e suas famílias – é importante uma reflexão sobre o cuidado, a intersubjetividade e a integralidade. O cuidado prevê intersubjetividade, que para ocorrer necessita do diálogo, que, para Paulo Freire, é o encontro entre os seres humanos, mediatizados pelo mundo, para designá-lo. É o caminho no qual a humanidade encontra seu significado na condição de humanos, um ato de criação e recriação, uma necessidade existencial que não existe sem o amor, humildade, fé, esperança e pensamento crítico (FREIRE, 2001, p. 42). [...] O amor é ao mesmo tempo o fundamento do diálogo e o próprio diálogo. Este deve necessariamente unir sujeitos responsáveis e não pode existir numa relação de dominação [...] é um ato de valor, não de medo, ele é compromisso para com os homens” (FREIRE, 2001, p. 42). O diálogo efetivado por meio da linguagem é veículo para a relação intersubjetiva e uma premissa para o cuidado em saúde. No caso deste estudo, o diálogo possibilitado pela TCI com crianças e adolescentes com doença renal crônica e suas famílias é um exercício de relação intersubjetiva, tal como compreende Ayres (2001): meio de transformação dos sujeitos e de suas identidades, de construção de consciência e de reconhecimento do outro. Para o autor, tais relações intersubjetivas, na condição de encontros, nos remetem à dimensão dialética presente nas práticas de saúde, de construção e reconstrução dos sujeitos envolvidos por meio do diálogo. Também para Paulo Freire, o diálogo construído a partir da ação-reflexão é capaz de gerar a conscientização, que implica que [...] ultrapassemos a esfera espontânea de apreensão da realidade, para chegarmos a uma esfera crítica na qual a realidade se dá como objeto cognoscível e na qual o homem assume uma posição epistemológica. [...] a conscientização não consiste em “estar frente à realidade” assumindo uma posição falsamente intelectual. A conscientização não pode existir fora da “práxis”, ou melhor, sem o ato ação-reflexão. Esta unidade dialética constitui, de maneira permanente, o modo de ser ou de transformar o mundo que caracteriza os homens (FREIRE, 2001, p. 15). A reflexão na práxis, ou ato de conscientização do profissional, é apontada por Ayres (2007) como uma necessidade para concretização do cuidado. Para o autor, é a partir do ato reflexivo sobre determinada ação que se constrói a sabedoria prática. [...] Ela diz respeito a uma capacidade mesma de saber guiar-se rumo às melhores escolhas frente às contingências da vida [...] junto às finalidades e meios científicos das práticas de saúde, mas transcendendo sua condição de estrita produção de objetos e objetividades, há que buscar os bons critérios relativos à antecipação, escolha e negociação de uma Vida Boa, ou o que chamamos de projetos de felicidade, que justificam e realizam o Cuidado (AYRES, 2007, p. 135) Para Ayres (2007), a sabedoria prática é critério sine qua non para a realização do cuidado em saúde e não pode ser construída sem a reflexão sobre a práxis, pois é este conhecimento que vai impulsionar novas produções do trabalho, implicando novas possibilidades de cuidados específicos, como as realidades dos contextos em que se realizam. Apoiadas no modo como propõe Ayres (2007), podemos dizer que seria na aplicação do diálogo verdadeiro guiado pela sabedoria prática e pela distinção dos lugares de interlocução que se permitirá concretizar o reconhecimento à criança e ao adolescente com condição crônica, como pessoas humanas, cidadãs de direitos, portadoras de estima social. O cuidado em saúde deve ser uma prática reflexiva e articulada, tendo como exigências constantes a tomada de decisão e a escolha frente às ações e interações em curso do viver cotidiano. Para Merhy (2002), os serviços de saúde devem produzir cuidados, que requerem uma intensa relação interpessoal e o estabelecimento de vínculo entre os envolvidos. Vínculo e acolhimento se alimentam e concorrem à eficácia do ato e à satisfação dos envolvidos. O acolhimento é uma mudança de postura capaz de reverter a lógica no uso das tecnologias, de modo que as ações sejam orientadas pelas tecnologias leves, relacionais ou interativas (MERHY, 2002). Almeida et al. (2009) consideram que as técnicas foram as primeiras expressões do saber de enfermagem organizadas nas primeiras décadas do último século e com o passar do tempo foram se estruturando para criar o corpo prático da enfermagem, contudo, não é somente o êxito técnico que delimita a profissão. Neste aspecto, Ayres reforça esta posição afirmando que somente a lógica da racionalidade técnica não é suficiente para produzir o cuidado em saúde. Portanto, são propostas outras lógicas e modos de produzir saúde. Daí a proposição de várias outras estratégias como a Saúde da Família, Promoção da Saúde, Humanização da Saúde e Integralidade da Atenção e as Práticas Integrativas e Complementares em saúde. Medidas de prevenção e promoção da saúde têm sido o foco das ações do Ministério da Saúde nos últimos anos, pois se entende que o sistema de atenção à saúde deva passar por um processo estruturante para garantir a efetivação dos princípios fundamentais de universalidade, descentralização, integralidade e participação comunitária (GOMES; PINHEIRO, 2005). Para Machado et al. (2007), a integralidade como um dos princípios do SUS é entendida como um conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos em todos os níveis de complexidade, permitindo uma identificação dos sujeitos como totalidades. Para Gomes e Pinheiro (2005), a integralidade é um conceito em construção, entendido como um modo de atuar democrático, do saber fazer integrado, em um cuidar mais alicerçado em uma relação de compromisso ético-político de sinceridade, responsabilidade e confiança. Neste contexto, surge então o campo das Práticas Integrativas e Complementares (PIC), que compreende sistemas médicos complexos e recursos terapêuticos da cultura local, os quais são também denominados, pela Organização Mundial de Saúde (OMS), de medicina tradicional e complementar/alternativa. Tais sistemas, recursos culturais e abordagens holísticas envolvem maneiras de estimular os mecanismos naturais de prevenção de agravos e recuperação da saúde por meio de tecnologias eficazes e seguras, com ênfase na escuta acolhedora, no desenvolvimento do vínculo terapêutico e na integração do ser humano com o meio ambiente e a sociedade (BRASIL, 2008). A Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) nasceu como fruto de recomendações de várias Conferências Nacionais de Saúde e discussões em instâncias do SUS, tendo obtido aprovação final pelo Conselho Nacional de Saúde em dezembro de 2005. Nesta ocasião, foram incluídas na PNPIC várias práticas existentes e legitimadas em diversos sistemas municipais de saúde do país como Homeopatia, Acupuntura, Plantas Medicinais e Fitoterapia, Medicina Antroposófica e Termalismo Social/Crenoterapia. A partir de então, foi criada uma coordenação específica para as PICs no âmbito do Departamento de Atenção Básica do MS, que, desde 2007, vem incluindo outras práticas complementares, entre as quais a TCI (BRASIL, 2008). 3.3 Condição crônica na infância e suas repercussões para criança e família Neste trabalho, buscamos compreender a TCI como um cuidado complementar à saúde de crianças e adolescentes com doença renal crônica e suas famílias. Para isso, precisamos conceituar também como é vivenciar uma condição renal crônica na infância tanto para a criança como para seus familiares. A Doença Renal Crônica (DRC) é definida como uma lesão a nível renal seguida, em geral, de perda progressiva e irreversível da função dos rins, causando comprometimento das atividades cotidianas do individuo ou alguma incapacidade. Não obstante, a criança portadora de DRC apresenta as próprias limitações, sendo indispensável um acompanhamento mais minucioso de sua saúde que possibilite um crescimento e desenvolvimento satisfatório (VIEIRA et al., 2009). A condição crônica pode ser controlada, porém, muitas vezes, devido às restrições impostas ao indivíduo, ela pode acarretar mudanças de estilo de vida, demandando sobre as pessoas e suas famílias uma nova forma de encaminhar a vida (OMS, 2003, MARTINS et al., 1996). Este acontecimento é designado de ajustamento na enfermidade crônica. Refere-se ao que é feito pela pessoa frente à doença, compreendendo a mobilização de recursos, manejos para atenuar os seus efeitos e a mobilização de recursos do contexto cultural (CANESQUI, 2007). Doença crônica na infância é aquela que interfere no funcionamento do corpo da criança a longo prazo, requer assistência e seguimento por profissionais de saúde, limita, de alguma forma, as suas atividades diárias, e causa repercussões no seu processo de crescimento e desenvolvimento, afetando o cotidiano de todos os membros da família (NASCIMENTO, 2003, p. 21). Deste modo, as crianças com DRC demandam cuidado especial, visto que apresentam uma acentuada vulnerabilidade. Nesses casos, o atendimento à saúde estende-se à família, uma vez que geralmente são os cuidadores e precisam estar aptos para promover o desenvolvimento saudável destas crianças. Tornam-se necessários o acompanhamento por profissionais da área, redes de apoio e serviços de saúde que integrem a família em todas as etapas do tratamento e vida da criança (DE PAULA et al., 2008; FRÁGUAS et al., 2008; RIBEIRO et al., 2007). Vista por esse vértice, a família representa a principal unidade de cuidado à pessoa vivenciando uma condição crônica de saúde. Esse cuidado é influenciado pelo meio cultural no qual ela está inserida, através das crenças, valores e significados compartilhados, bem como pelas condições socioeconômicas e educacionais. Por essa razão, no contexto dos cuidados em saúde, a família frequentemente toma decisões baseadas em seus hábitos de vida, crenças e valores relacionados ao processo saúdedoença, que sejam compatíveis com sua condição financeira (ALTHOF et al., 1998). A família deve ser vista como peça responsável pela saúde de seus membros, devendo ser ouvida, valorizada e instigada a participar de todo o processo de cuidar (CECAGNO, SOUZA, JARDIM, 2004). A família pode ser considerada um contexto social nuclear no qual os comportamentos, as ações e os hábitos de vida sofrem influência cíclica e multivetorial. Desse modo, o contexto familiar influencia fortemente o estado de saúde de cada indivíduo e este, por sua vez, influencia o modo pelo qual a unidade familiar funciona. Nesse processo de influências recíprocas, a família é considerada o grupo primário de relacionamento e articulação entre seus membros, seja por laços biológicos, legais ou reais (POTTER, PERRY, 2004). As pessoas adoecidas têm comportamentos e pensamentos únicos em relação à experiência da doença, assim como conhecimentos particulares sobre saúde e tratamento. Estas particularidades não ocorrem das diferenças biológicas, mas, sim, das diferenças socioculturais. Por conseguinte, parte-se do pressuposto de que é a cultura que determina essas particularidades. Do mesmo modo, acredita-se que as questões intrínsecas à saúde e à doença devem ser pensadas a partir dos contextos socioculturais específicos nos quais ocorrem (LANGDON; WIIK, 2010). Parte-se do pressuposto de que a experiência do processo saúde-doença pelos indivíduos inseridos em uma sociedade está arraigada nos valores, crenças, práticas, representações, imaginários, significados, experiências individuais e coletivas, reiterando o caráter sociocultural dos fenômenos que o compõe, além de fatores psicobiológicos nele envolvidos (MELO, CABRAL, SANTOS JÚNIOR, 2009). Canesqui (2007) ainda acrescenta que a vivência de certas condições crônicas pode constituir uma experiência estigmatizante, promovendo mudanças na autoimagem e no corpo e na ruptura biográfica, gerando uma construção de identidade coletiva da doença crônica. O adoecido se apoia nas representações sociais, na própria experiência e de outras pessoas enfermas para atribuir significado à situação vivida e para gerenciar a doença. A vivência do adoecimento é sensível às necessidades cotidianas e aos recursos (materiais, relacionais, simbólicos) disponíveis, acessíveis e mobilizados pelo sujeito no seu contexto imediato; além de ser intermediada por elementos da estrutura social, de gênero, da organização e oferta de serviços de cura (oficiais e alternativos), e, ainda, pelos sistemas de valores e as referências culturais que ganham sentido quando reportadas a uma trajetória pessoal única (BARSAGLINI, 2008, p. 574). Deste modo, para que a assistência à criança com DRC ultrapasse a ausência de complicações ou limitações, faz-se necessário a compreensão de que a saúde está interligada com a promoção em qualidade de vida, visando a alcançar bem-estar, conforto e alívio do sofrimento (MOREIRA et al., 2010). Durante o período de reorganização da dinâmica familiar, a família e a criança carecem de um suporte especial, fornecido pela equipe de saúde. Nessa perspectiva de cuidado, a equipe estará buscando a superação do cuidado tradicional para se libertar do automatismo, de ações impessoais e sem envolvimento, para fazer uma reflexão crítica com responsabilidade e solidariedade, deixando emergir o cuidado humanizado e centrado no ser humano, em suas diferentes dimensões (ALVES et al., 2006). Emerge, nesse cenário, a TCI como uma possibilidade que contempla esse novo modo de cuidado em saúde. 4 PERCURSO METODOLÓGICO 4.1 Caracterização do estudo Este estudo é uma pesquisa aplicada, com enfoque qualitativo. Do ponto de vista dos objetivos, trata-se de um estudo descritivo, cujo fenômeno observado foi o processo de desenvolvimento das rodas de TCI que ocorreram em um Ambulatório de Nefrologia Pediátrica. Quanto aos procedimentos técnicos, trata-se de uma pesquisa- ação, pois tanto os pesquisadores como os participantes estavam envolvidos na ação. A TCI é uma ferramenta de intervenção para grupos que vivenciam situações problemáticas e que buscam apoio ou solução para os problemas do cotidiano. A pesquisa qualitativa, ancorada pela abordagem compreensiva, tem sido utilizada pelo Grupo de Pesquisa Enfermagem, Saúde e Cidadania (GPESC) da Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Mato Grosso (FAEN/UFMT). O grupo vem desenvolvendo estudos com pessoas e famílias que vivenciam o adoecimento crônico, buscando aproximar-se de suas experiências para apreender seus afetamentos e os modos de cuidar. A abordagem qualitativa refere-se a estudos de significados, significações, ressignificações, simbolismos, percepções, pontos de vista, perspectivas, vivências, experiências de vida, representações psíquicas, representações sociais, simbolizações, simbolismos, percepções, pontos de vista, perspectivas, vivências, experiências de vida e analogias (TURATO, 2003). Para Minayo (2012), o verbo central da análise qualitativa é compreender. Compreender é praticar o exercício de colocar-se no lugar do outro, é considerar a singularidade do indivíduo, sua subjetividade. Faz-se necessário, além disso, ter ciência de que a experiência e a vivência de uma pessoa sofrem influência do contexto sociocultural do grupo no qual ela está inserida. Para a autora, toda compreensão é parcial e inacabada, tanto a do nosso entrevistado, que tem uma percepção contingente e incompleta de sua vida e de seu mundo, como a dos pesquisadores, visto que também apresentam limitações na compreensão e interpretação das vivências. Para Rocha e Aguiar (2003) a pesquisa intervenção: É qualitativa no sentido de estar ligado à análise dos sentidos que vão gradativamente ganhando consistência nas práticas, ou seja, a pesquisa intervenção busca acompanhar o cotidiano das práticas, criando um campo de problematização para que o sentido possa ser extraído das tradições e das formas estabelecidas, instaurando tensão entre representação e expressão, o que faculta novos modos de subjetivação (ROCHA E AGUIAR, 2003, p. 66) Consideramos a realização das rodas de TCI uma prática de cuidado grupal feita no contexto da prestação dos serviços de enfermagem de um ambulatório de nefrologia pediátrica e, deste modo, se caracterizando uma intervenção como parte constituinte de ato de pesquisar. Neste sentido, a oferta das rodas de TCI assume dupla finalidade: a de oferecer um cuidado de enfermagem às famílias, adolescentes e crianças usuárias do ambulatório e a de contribuir para o avanço do conhecimento científico sobre cuidados à saúde dessa população. A TCI é uma metodologia de intervenção para grupos, sejam eles específicos ou não. É realizada a partir de encontros interpessoais. Tem o intuito de promover saúde com a construção de vínculos solidários, valorização das experiências de vida, resgate da identidade, restauração da autoestima, promoção da autonomia e resiliência (BARRETO, 2008). 4.2 Local do estudo e inserção da pesquisadora no cenário A pesquisa de campo foi realizada no Ambulatório de Nefrologia Pediátrica de um Hospital Universitário, no município de Cuiabá – MT. O Ambulatório de Nefrologia Pediátrica foi estruturado no ano de 1998 e é referência no estado de Mato Grosso, atendendo também estados vizinhos. No ambulatório, são atendidas aproximadamente mil crianças e adolescentes para tratamento clínico, que se encontram em condições crônicas de difícil manejo. O envolvimento dos familiares cuidadores com a equipe multidisciplinar é fundamental para o gerenciamento do cuidado de modo mais eficaz. Assim, este serviço se caracteriza por atender crianças e adolescentes em tratamento clínico, cujas patologias mais frequentes são síndrome nefrótica e outras glomerulopatias, calculoses e malformações do trato urinário. O ambulatório é composto por oito salas, situadas em um anexo do hospital universitário, com ambulatórios de diversas especialidades. A sala de espera é única e compartilhada com usuários com demandas para outras especialidades. As rodas de TCI foram realizadas em uma sala de reunião próxima aos consultórios. O corpo clínico do ambulatório era formado por quatro médicas, duas enfermeiras, uma assistente social, uma fisioterapeuta e uma nutricionista. Em março de 2012, após conhecer o Ambulatório de Nefrologia Pediátrica, iniciei um trabalho voluntário auxiliando a enfermeira do ambulatório nas consultas de Enfermagem, procedimentos e orientações, com intuito conhecer melhor aquela realidade e me familiarizar com os sujeitos do estudo. Permaneci como voluntária até fevereiro de 2013, quando o ambulatório encerrou suas atividades. Essa experiência me enriqueceu profundamente como enfermeira, ao possibilitar vivências jamais tidas anteriormente. 4.3 Sujeitos do estudo Foram consideradas como sujeitos do estudo 32 pessoas, que participaram de ao menos uma das quatro rodas de TCI realizadas no Ambulatório de Nefrologia Pediátrica, sendo 12 crianças/adolescentes, 16 familiares, 2 acadêmicas de enfermagem, uma funcionária do HU e uma terapeuta. No Quadro 2 estão os sujeitos do estudo, com suas respectivas cidades de origem e posição que ocupam na família. Vale ressaltar que a terapeuta e as acadêmicas de enfermagem estavam presentes em todas as rodas de TCI. A funcionária do hospital (Joana) participou apenas da quarta roda. Quadro 2: Sujeitos de estudo, cidade de origem e posição que ocupam na família. 1 2 3 4 5 6 NOME MARCELO LÍVIA MARIA LUCAS ANA GABRIEL PRIMEIRA RODA CIDADE DE ORIGEM Cuiabá – MT Cuiabá – MT União da Vitória – PR Cuiabá – MT Coxim – MS Tangará da Serra – MT PAI MÃE AVÓ PACIENTE MÃE PACIENTE 7 8 9 NOME JOÃO ÍRIS JOSÉ SEGUNDA RODA CIDADE DE ORIGEM Várzea Grande – MT Recife – PE Cuiabá – MT IRMÃO MÃE PACIENTE 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 Várzea Grande – MT Severina – SP Tangará da Serra – MT Santa Isabel – GO Várzea Grande – MT Fortaleza – CE Cuiabá – MT Aquidauana – MS Barra do Bugres – MT Várzea Grande – MT PACIENTE MÃE PACIENTE MÃE PACIENTE MÃE PACIENTE MÃE MÃE PACIENTE TERCEIRA RODA CIDADE DE ORIGEM Ortigueira – PR Sorriso – MT MÃE PACIENTE QUARTA RODA CIDADE DE ORIGEM Cáceres – MT Cáceres – MT Colíder – MT Sinop – MT Rosário Oeste – MT Cuiabá-MT Cuiabá-MT PACIENTE MÃE MÃE PACIENTE PAI IRMÃO PACIENTE FELIPE CARLA GUSTAVO FABIANA JORGE LUZIA JULIANA FERNANDA SÔNIA RAFAELA NOME MÁRCIA LARISSA NOME MATEUS 22 EDUARDA 23 CLÁUDIA 24 HELENA 25 MURILO 26 FELIPE 27 DANIEL 28 Fonte: Dados da pesquisa. Apesar de o ambulatório atender pessoas de outros estados, todos os participantes da pesquisa residem no Estado de Mato Grosso. As idades variaram de 3 meses a 54 anos. Entre as 12 crianças/adolescentes que participaram da TCI, 8 eram do sexo masculino e 4 do sexo feminino. Já entre os familiares, dos 16, apenas 4 eram do sexo masculino, sendo 2 pais e 2 irmãos. Os outros 12 eram do sexo feminino, sendo 11 mães e 01 avó. Os critérios de elegibilidade dos sujeitos do estudo foram: ser criança ou adolescente portador de doença renal crônica e estar em tratamento no ambulatório; ser familiar cuidador de criança ou adolescente com DRC e ter participado ao menos de uma roda de TCI no Ambulatório de Nefrologia Pediátrica. As rodas de TCI geralmente ocorrem em ambientes que possam comportar cadeiras removíveis para formar um círculo, onde as pessoas se sentam uma ao lado da outra para garantir o contato face a face. Não há um número predeterminado de pessoas, nem também de inclusão por idade, sexo, religião. Os grupos podem ser mistos ou específicos. Nesse estudo, a característica das rodas foi a de ser um grupo específico, ou seja, de pessoas com problemas específicos, ser criança ou adolescente portador de DRC e familiar cuidador. 4.4 Coleta de dados Antes da coleta de dados, a mestranda frequentou o local de estudo por alguns meses para se familiarizar com o contexto da pesquisa, buscando maior compreensão da realidade vivida por aquelas pessoas. As quatro rodas de TCI ocorreram no período de dezembro de 2012 a fevereiro de 2013, às quintas-feiras pela manhã, em uma sala de reunião do ambulatório, enquanto as crianças, os adolescentes e seus familiares aguardavam suas consultas. Antes do início da terapia, foi feita a leitura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e elucidadas possíveis dúvidas relativas ao conteúdo do documento. Após isto, foi dado início à terapia, conduzida por uma terapeuta comunitária com certificação reconhecida pela ABRATECOM, que conduziu as terapias obedecendo ao protocolo da técnica desenvolvida pelo prof. Adalberto Barreto (criador da técnica). De acordo com Barreto (2008), a TCI compreende seis passos: Passo 1 - Acolhimento: o terapeuta dá as boas-vindas aos participantes, geralmente com música, e explica resumidamente o que é a TCI e suas regras. O terapeuta convida as pessoas a celebrar alguma conquista ou aniversário, canta músicas adequadas à celebração e finaliza com uma dinâmica para interação entre as pessoas. Passo 2 - Escolha do tema: o terapeuta convida os participantes a falar resumidamente sobre suas preocupações, angústias ou aflições, que são transformados em temas, para, em seguida, proceder à votação do grupo para a escolha do tema a ser aprofundado no dia. Passo 3 - Contextualização: o terapeuta convida o participante, cujo tema foi escolhido, a falar mais detalhadamente sobre seu problema, ou inquietação e explica aos outros participantes que, nesse momento, eles podem lançar perguntas para melhor compreender o sofrimento da pessoa. Passo 4 - Problematização: o terapeuta lança um mote, pergunta-chave, e estimula o grupo a partilhar experiências e estratégias de enfrentamento de situações similares à do protagonista, que foram vivenciadas pelos demais. Passo 5 - Rituais de agregação e conotação positiva: o terapeuta convida os participantes a ficar em pé e formar uma roda de apoio. Todos ficam ombro a ombro, e o terapeuta estimula a valorização do esforço e da coragem das pessoas que expuseram os temas durante a roda. Ele lança uma reflexão e convida outros a fazerem o mesmo. Costuma-se incentivar a reflexão a partir da seguinte indagação: o que é que aprendi hoje aqui e o que vou levando para a minha vida? Passo 6 - Avaliação: momento de analisar a condução da terapia pela equipe que realizou para verificar os pontos positivos e negativos, bem como o impacto da roda para cada pessoa. As rodas de TCI foram registradas em forma de vídeo com áudio para garantir a transcrição das falas dos participantes, além de possibilitar a observação de expressões faciais dos participantes, gestos e/ou movimentos durante as rodas de TCI, para uma interpretação através da meta comunicação. A gravação de voz possibilitou a transcrição fiel das falas dos participantes no decorrer das terapias. As transcrições ocorreram logo após a realização de cada roda de TCI. 4.5 Análise dos dados Para o procedimento de análise, foi feita uma leitura criteriosa do material empírico coletado, evidenciando as unidades de significado, destacando-as em diferentes cores no próprio texto. Da análise, emergiram as seguintes unidades: repercussões da participação na TCI; o desabafo/alívio do sofrimento; sobrecarga do cuidador/responsabilização pela doença do filho; superação das dificuldades/estratégias de enfrentamento; identificação com a vivência do outro; e interação do terapeuta com os participantes/ cuidados realizados para apoiar e confortar. Na pesquisa qualitativa, não é plausível a afirmativa de neutralidade do pesquisador, visto que se torna imprescindível um envolvimento entre entrevistador e entrevistado para o aprofundamento de uma relação intersubjetiva. Essa inter-relação no decorrer da entrevista, que abarca o afetivo, o existencial, o contexto do cotidiano, as experiências e a linguagem do senso comum, é condição sine qua non para um resultado satisfatório desta abordagem em pesquisa (MINAYO, 2010). A técnica de análise temática, proposta por Minayo (2010), “consiste em descobrir os núcleos de sentido que compõem uma comunicação cuja presença ou frequência signifiquem alguma coisa para o objetivo analítico visado”. Tais unidades foram reagrupadas no empenho de identificação dos elementos internos e dos sentidos e coerência de cada uma. Assim, explicitamos três categorias que discutimos na análise: (1) Principais inquietações/temas relatados pelas pessoas com DRC seus familiares na convivência com a DRC; (2) A enfermeira na condição de terapeuta comunitária e as particularidades de sua atuação no grupo; e (3) Refletindo sobre a TCI como instrumento de cuidado para pessoas com DRC e seus familiares. 4.6 Aspectos éticos da pesquisa Este estudo respeita as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos, contempladas na Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012 (BRASIL, 2012). Está inserido na pesquisa matricial intitulada “Projeto de extensão em interface com a pesquisa: formação de terapeutas comunitários, assistência à saúde estudantil e pesquisa-ação”, cadastrado na Pró-Reitoria de Pesquisa sob o Nº 272/CAP/2010, e obteve parecer favorável do Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário Júlio Müller (Nº 817/CEP-HUJM/2010). A autorização dos sujeitos se deu por meio do TCLE (APÊNDICE I), como forma de respeito aos princípios éticos e esclarecimento sobre o uso do material empírico. Os TCLE das crianças e adolescentes participantes foram assinados pelos seus responsáveis legais. Os participantes tiveram suas identidades preservadas, por meio do uso de nomes fictícios, e as situações que poderiam expor suas identidades foram, igualmente, mantidas em sigilo. 5 RESULTADOS Para melhor compreensão do fenômeno estudado, optamos por descrever a dinâmica, bem como a organização e o conteúdo de cada roda de terapia, visto não haver continuidade e obrigatoriedade de relação ou continuidade entre uma roda e outra. A descrição foi subsídio tanto para a análise quanto para o entendimento para a discussão. 5.1 Descrição da primeira roda de TCI: “Compartilhar a alegria pela saúde dos filhos” No dia 22 de novembro de 2012, foi realizada, no Ambulatório de Nefrologia Pediátrica de um Hospital Universitário no município de Cuiabá/MT, a primeira roda de Terapia Comunitária. Chegamos às sete horas da manhã para organizar o espaço e eu e minha orientadora escolhemos a sala de reuniões para a atividade. Após a organização, juntamente com uma estudante graduanda de enfermagem, convidamos as crianças, adolescentes e familiares que aguardavam na sala de espera suas consultas com as nefrologistas pediatras. Explicamos sucintamente o que seria a atividade e seu objetivo. Algumas pessoas já me conheciam, pois comecei a frequentar o ambulatório alguns meses antes para me familiarizar com aquela realidade. Às 7 horas e 45 minutos, iniciamos a Terapia com o acolhimento. A terapeuta, que também é minha orientadora, é enfermeira e trabalhou durante muitos anos no ambulatório de Nefrologia Pediátrica com atividades de extensão, convidou os participantes para uma rodada de apresentações. Faziam-se presentes, além de mim (Grasiele) e da terapeuta (professora Rosa), quatro familiares (Marcelo, Lívia, Maria e Ana), duas crianças pacientes (Lucas e Gabriel) e uma aluna de graduação (Laura). A terapeuta fez sua apresentação, dando a todos boas-vindas e indagando se alguém sabia o que era a TCI. Após ouvir algumas explicações dos participantes, ela expôs, de forma concisa e clara, o significado e o objetivo da TCI: “A terapia comunitária é um espaço de trocas de experiências do nosso dia a dia, ou seja, é um espaço para compartilhar nossas preocupações, nossas angústias, aquilo que nos tira o sono e também nossas alegrias”. A apresentação foi conduzida de forma que todos os integrantes informassem seus nomes e a cidade de nascimento. Após as apresentações, a terapeuta explicou as regras para a condução da roda: “Na terapia comunitária, temos algumas regrinhas com as quais a gente costuma orientar para que a roda caminhe bem. A primeira regra é o silêncio quando a outra pessoa está falando, para podermos aprender com a experiência do outro. A segunda regra é falar sempre usando o eu, então evitar falar a gente, nós, as pessoas. Falar sempre como eu, porque nós vamos falar aqui da nossa experiência. A terceira regra, na verdade, é um conjunto de regras: aqui a gente não vai julgar, não vamos dar conselhos, não vamos fazer sermão e nem discurso. E a quarta regra é que a gente pode cantar. Vou explicar (risos). É assim: digamos que durante a nossa conversa alguém fale alguma coisa que faça você lembrar uma música, ou uma piada, ou um ditado popular. Você pode começar a cantar e a gente continua. Vamos então lembrar as regras?”. Atentamente, todos repetiram as regras. Em seguida, a terapeuta convidou todos para uma dinâmica de aquecimento, com o intuito de “quebrar o gelo”, se aproximar dos participantes e deixá-los mais à vontade: “Vamos levantar um pouquinho só pra gente aquecer o corpo? Nós vamos cantar uma música e no decorrer dela eu vou dar uns comandos, como, por exemplo, apertar a mão de alguém. Vamos lá? ‘Bater a mão, bater o pé pra entrar na casa do Zé! Bater a mão, bater o pé, pra entrar na comunidade. Mas você tem que apertar a mão de alguém (bis)’. Bater a mão, bater o pé... (a brincadeira foi feita com a participação de todos, sendo oferecidos os seguintes comandos: puxar a orelha, puxar o cabelo, fazer coceguinhas e dar um abraço).” Ao final, a terapeuta orientou que todos deveriam dar pelo menos cinco abraços. Após essa dinâmica, a terapeuta Rosa propôs mais uma brincadeira: “Só mais uma pra gente ficar bem aquecido, é uma brincadeira bobinha, mas ela é boa (risos). Eu vou fazer um gesto e cantar a música. Depois, eu vou apontar pra outra pessoa e essa pessoa tem que inventar outro gesto (risos). Se não quiser, não tem problema (risos). Por exemplo: (gesticulando) ‘faça assim, faça assim, faça assim, como é bom fazer. Faça assim, faça assim e agora é você...”. Todos participaram e riram muito. Em seguida, a terapeuta convida todos a se sentar e diz: “Vamos então? Como a gente disse, a terapia comunitária é um lugar pra gente trocar nossas experiências do dia a dia. Mas, por que é importante falar? Tem um ditado popular que diz assim: quando a boca cala o corpo fala, quando a boca fala o corpo sara! Então, muitas vezes, quando não falamos com a boca, o nosso corpo fala com uma dor de cabeça, uma gastrite, uma dor de estômago, insônia! Tem outro ditado que fala: quando guarda, azeda, quando azeda, estoura, quando estoura, fede. É engraçado, mas é verdade. Muitas vezes a gente vai guardando as coisas dentro da gente e uma hora a gente estoura! E muitas vezes estouramos no lugar errado, na hora errada, com pessoas que não estão preparadas pra nos ouvir. Já aqui na terapia, aqui podemos falar, todo mundo está preparado pra nos acolher, ninguém vai dar conselho ou julgar. E do que nós vamos falar na terapia comunitária? Do que a gente quiser, das nossas preocupações do dia a dia, de uma alegria. A única coisa que a gente não deve falar na terapia comunitária é segredo, tá? Porque a gente não pode garantir que não vai sair daqui. Risos. E segredo faz parte da nossa riqueza pessoal, então guardamos conosco!” Na sequência, a terapeuta passou para o segundo momento da TCI, a escolha do tema: “Bem, chegou a hora de falar. Nesse momento, quem quiser falar, peço que levante a mão, diga seu nome e, em poucas palavras, conte o que você gostaria de compartilhar na roda. E vou pedir licença pra anotar algumas coisas que é pra eu não esquecer, tudo bem?”. A mãe de um paciente (Ana) então inicia: “Eu gostaria de falar. É que meu filho faz tratamento há cinco anos e estou muito feliz porque ele está bem! Está praticamente curado! Nunca mais foi pro hospital, uma coisa que me preocupava muito e hoje não me preocupa mais”. A terapeuta faz uma síntese do seu tema: “Então, o que você quer compartilhar é a alegria da recuperação, da cura do seu filho, é isso?” Ela então confirma: “É! Porque eu já sofri demais, eu achava que não ia ter jeito, parecia que ele piorava cada vez mais. Antes, para vir era um sofrimento, hoje eu venho toda feliz, porque sei que cada dia ele está melhor!” A terapeuta agradece e questiona se mais alguém gostaria de compartilhar alguma experiência. O pai de uma criança sinaliza: “Eu gostaria! Meu nome é Marcelo e gostaria de compartilhar também a felicidade, a alegria, porque nosso filho está bem visualmente, mas com certeza sua saúde também, graças ao tratamento que está fazendo. Sofremos uma desilusão quando ele nasceu, quando a médica nos disse seu diagnóstico. Tivemos fé em Deus e procuramos outros caminhos, ajuda de outras pessoas, outros lugares. Viemos para este hospital, fomos super bem atendidos pela médica, pela equipe toda. Está fazendo o tratamento direitinho, tudo o que é solicitado, nós estamos fazendo. Não tem como ficar triste com uma coisa mais linda dessa! Então, meu motivo de felicidade é ele, tudo é pra ele e é isso que me faz feliz!”. A terapeuta faz uma síntese do seu tema: “Então você quer também celebrar a felicidade por o seu filho estar bem?”. O participante confirma. A terapeuta indaga novamente se mais alguém gostaria de compartilhar experiências. A mãe da mesma criança diz: “Eu também. Meu nome é Lívia e estou feliz porque o exame que eu fui pegar agora melhorou bastante. Isso quer dizer que ele vai tomar menos remédio, tomar menos injeção, por isso eu estou feliz! A última vez que vim deu tudo alterado e fiquei muito triste. Agora espero que melhore cada dia mais”. A terapeuta conclui: “Então você quer compartilhar sua alegria? Todo mundo feliz! Coisa boa! Mais alguém?”. Um paciente, a criança Gabriel, então, diz: “Quando eu vejo alguma coisa na televisão que é do mal, que dá medo em mim, quando fico com o olho fechado e vou sonhar, fico com medo, levanto da cama e vou lá pra sala.” A terapeuta indaga: “Você tem medo então? Medo de alguma coisa que passa na televisão?” Ele balança a cabeça em sinal positivo. A terapeuta continua: “Você quer falar um pouquinho sobre isso?”. Gabriel balança a cabeça em sinal negativo. Inicia-se então o próximo momento da TCI, a contextualização e a problematização. A terapeuta explica: “Hoje, três pessoas falaram, a Ana, o Marcelo e a Lívia. Todos quiseram compartilhar a alegria pela cura ou pela saúde dos seus filhos. Como são três situações parecidas, não precisaremos votar. Normalmente na TCI, quando saem assuntos muito diferentes, elegemos uma situação, pois em uma roda não conseguimos falar de todos os casos. Eu vou pedir então pra dona Ana contar um pouquinho sobre a história do Gabriel e que vocês, Marcelo e Lívia, também contem a história do Lucas pra que possamos entender por que estão felizes, pode ser? Enquanto eles estiverem contando a história, nós podemos perguntar para entender melhor os casos, tudo bem?”. Ana inicia: “O Gabriel nasceu uma criança perfeita, mas quando tinha um ano e seis meses, começou a inchar. Levei ao médico e começou o tratamento aqui. A médica me disse que ele era nefrótico. Eu não entendia nada, era crônico! Falavam crônico, eu já pensava: vai morrer! Cada vez que inchava e internava ficava cada vez pior. Idas e vindas constantes ao hospital por três anos, mas labutando mesmo. Eu entrava em desespero, era praticamente eu sozinha pra correr atrás de tudo, foi muito difícil, nossa! Como foi difícil! Tinha hora que dava vontade de falar assim: eu não vou dar mais medicação, vou largar, eu chegava a esse ponto, entendeu? Porque já tinha a alimentação, que é a pior coisa. Eu já dava papinha pra ele, tinha que fazer sem sal. Eu entrava em crise, ninguém podia olhar pra mim que eu queria derrubar tudo. A medicação eu dava, eu cuidava tudo certinho. Eu chegava aqui a doutora olhava pra mim e falava: mãe, o que você está fazendo? Entendeu? Eu falava: nada, doutora, nada. Você não entende direito no começo, pensa que ela está te culpando, sabe? Em casa, eu dava alguma coisa e falava pra minha mãe que ele estava inchando e ela falava: o que você deu pra ele? Tudo caía sobre mim. Tinha dia que eu desanimava, ele estava bem e de repente descompensava, tinha que vir pra cá novamente, internação longa. Mas graças a Deus, de dois anos pra cá ele teve apenas uma internação, por decorrência do psicológico, estava abalado. Meu sonho era que ele saísse do corticoide e ele saiu, já faz seis meses. Estou feliz demais! Ele continua em tratamento, a dieta alimentar, faz muita diferença, muita mesmo. Faço uma coisinha errada, já percebo. Eu faço aquele controle em casa com a urina, se dou um refrigerante no outro dia eu já vejo a diferença, já sei que tá perdendo proteína. A boca é tudo, quando eu vejo mães falando que as crianças não fazem dieta, parece bobeira, mas não é! É essencial.” A terapeuta agradece e pergunta se o filho quer falar. Gabriel sinaliza negativamente. Ela então solicita ao casal que fale um pouco mais sobre o segundo paciente. Marcelo diz: “Lucas foi pra nós uma bênção.” Ele se emociona e permanece alguns segundos em silêncio. “Na gravidez, já vinham constando as alterações no rim, o fêmur também era menor que o normal, o fígado alterado. Ele tem alteração genética nos dedos, tem seis dedos nas duas mãos. Minha esposa aqui gestante e eu estava trabalhando em uma usina hidrelétrica distante, pois precisávamos de um financeiro pra dar um conforto melhor pra ele. Eu querendo participar da gravidez, estar próximo dela, com tudo isso acontecendo, até que desisti de ficar lá e vim embora uns meses antes de ele nascer. Nasceu com 41 semanas e dois dias. A médica disse: vai ficar só um pouquinho na incubadora, isso foi passando, passaram-se quatro horas e nada. Eram exames atrás de exames e eu sem ver meu filho. Os dias foram passando, todas as pessoas tendo parto, saindo, e minha esposa lá. Eu podia vê-la só uma hora por dia. Nosso psicológico estava abalado, até que uma dia me exaltei, comecei a falar muitas coisas, se devia ou não devia, falei. A médica foi nos atender e falou coisas que, na minha opinião, por ser uma profissional, não devia ter falado. Falar que ele não tinha mais jeito, que tínhamos que nos contentar com isso e não caberia mais a ela fazer nada. Acabou nosso chão! Como? Se minha criança está mamando, fazendo tudo que é normal e a pessoa fala que não tem mais o que fazer, falando que não teríamos mais filho. Tivemos alta e um funcionário onde trabalho disse: “Vai no HU, meus filhos fazem tratamento lá, é bom, vão atender vocês bem, farão todo procedimento possível pro seu filho”. Vim, fiz a ficha dele, fiz tudo que era pra ser feito, peguei o encaminhamento com a medica de lá. A médica daqui já sabia de tudo. Eu me emociono um pouco... hoje ele está super bem.” A terapeuta então canta: “Pai, você foi meu herói, meu bandido... (música do Fábio Júnior)” e complementa: “nunca vi um pai desse jeito! Muito bonita sua história”. Marcelo diz: “Quando chega o dia da consulta dele, eu não vou ao meu serviço. Até me acidentei, fraturei uma costela. Por sinal, fui fazer uma consulta e descobri que tenho uma inflamação nos ossos da coluna”. A terapeuta ressalta a importância dos cuidadores cuidarem de si. Marcelo responde: “Com certeza! Mas o que acontece, foi encadeando várias outras coisas. Estou cheio de dores, mas quando chega nesse dia, da consulta dele, esqueço de tudo! Esqueço dor, esqueço firma, esqueço todo mundo pra vir consultar com ele. Meu maior pensamento está aqui! Só tenho ouvidos pro que tem que fazer, o que precisa. Se não tiver condição financeira, dou um jeito, faço de tudo por ele!”. A terapeuta lembra outra música e convida todos para cantar: “Ei dor, eu não te escuto mais você não me leva nada. Ei medo, eu não te escuto mais, você não me leva a nada. E se quiser saber pra onde eu vou, pra onde tenha sol é pra lá que eu vou”. Após a música, a terapeuta agradeceu os participantes por compartilhar suas histórias e instigou os demais questionando se alguém se identificara com as experiências compartilhadas e se tinha o desejo de falar: “Muito bom! Agora, já que o tema foi essa alegria e essa dedicação de pai, de mãe, de avó, de todo mundo, quem ainda não falou e quiser falar alguma coisa, ou já viveu uma situação assim, de muita felicidade pela recuperação e quiser compartilhar com a gente... Quem já viveu uma outra experiência de felicidade parecida com essa e quer compartilhar?”. Todos permaneceram em silêncio, refletindo. Marcelo então diz: “Minha mãe está emocionada ainda!”. Todos sorriem. Ele então continua: “Ela não fala. Mas quando eu nasci, na verdade eu acho que não era nem pra eu ter nascido, não estava no planejamento. Naquele tempo, não sei como era o tratamento, mas quando nasci o médico falou: seu filho vai ser especial!”. Ao que a terapeuta complementa: “E é mesmo, né?”. Todos sorriem. Marcelo dá seguimento: “Tive que fazer transfusão de sangue, foi aquela luta atrás de um doador de sangue. O médico então disse: olha, seu filho não vai muito longe, está muito fraquinho! E agora olha o tamanho do filho! Eu queria conhecer esse médico, pra ver por que ele falou isso”. Ana complementa: “Ela fica emocionada porque praticamente está vivendo tudo de novo!”. A terapeuta se levanta, se aproxima e se senta ao lado de Dona Maria e canta: “Encosta sua cabecinha no meu ombro e chora, e conta logo suas mágoas todas para mim. Quem chora no meu ombro eu juro que não vai embora. Que não vai embora, porque gosta de mim”. A terapeuta, então, pergunta se Dona Maria gostaria de falar e elogia a história compartilhada. Dona Maria gesticula negativamente. A terapeuta então solicita que todos se levantem para a conclusão da roda: “Vamos chegar bem pertinho e vamos dar as mãos? Bem pertinho, bem pertinho! Vamos dar a mão pro Lucas (bebê) também. Todos sorriem. Tem uma música aqui na terapia comunitária que é assim: tô balançando, mas não vou cair, mas não vou cair. Tô balançando, na terapia. Tô balançando, mas não vou cair... E por que eu não caio?” Lívia responde: “Porque a gente está bem apoiado um no outro”. Ainda em roda com todos os participantes de mãos dadas, também mantendo um leve balanço de um lado para o outro, a terapeuta continua: “Eu quero agradecer muito a Ana, Marcelo, Lívia, Dona Maria. A senhora pode não ter falado, mas seu choro expressou o imenso amor de mãe e de avó. E todos vocês, o amor pelos filhos, pelos netos... e dizer que eu me senti muito tocada com as histórias contadas hoje. E mais uma vez, vi que a gente está no caminho certo. Ao cuidar de crianças, temos uma excelente recompensa! Também porque me lembrou o meu papel de mãe. Muitas vezes, a gente esquece, deixa o filho meio largado, e hoje eu vou cuidar melhor da minha filha!”. Todos sorriem. A terapeuta então questiona: “Gostaria de perguntar pra cada um de vocês: o que eu estou levando daqui hoje? Cada um de vocês. Pode ser uma palavra só! O que eu estou levando daqui hoje? Marcelo diz: “Experiência”. Eu: “Dedicação”. Dona Maria: “Amor”. Ana: “Carinho”. Lívia: “Amor”. Gabriel: “Amor”. Laura: “Atenção”. A terapeuta convida todos para cantar outra música para reforçar os laços entre os participantes, bem como alegrar o final do encontro: “Eu conheço uma música bem alegre. E a da pipoca, vocês conhecem? É assim: uma pipoca estoura na panela, outra pipoca vem logo responder. Começa então um tremendo falatório, e ninguém mais consegue se entender. É um tal de ploc! Plopoc, ploc, ploc (bis)”. Foi muito divertido. Além da música, a dinâmica propunha uma coreografia em grupo, que todos dançaram e riram muito. A terapeuta finaliza e agradece a participação: “Bom, pessoal, obrigado por vocês terem vindo. A terapia comunitária é isso. Quem gostou conta pros outros. Quem não gostou fala pra gente! Temos terapia também toda quarta-feira à noite, com os pacientes e acompanhantes aqui no hospital. Obrigada a todos e desejo um bom-dia pra vocês!”. Após a roda, que durou cerca de 50 minutos, enquanto conversávamos (eu, a aluna da graduação e a terapeuta) sobre as experiências compartilhadas, Dona Maria voltou para a sala. A terapeuta inicia a conversa: “Vocês são daqui de Cuiabá mesmo, Dona Maria? Ela responde: “Não, eu moro em Várzea Grande há 30 anos”. Terapeuta: “Está com dor de cabeça?”. Dona Maria: “Não!” A terapeuta diz: “Parabéns pelo seu filho!”. Dona Maria: “Ele é o caçula”. Terapeuta: “Que bênção, não”. Todos sorriem. Terapeuta: “A senhora tem quantos filhos?”. Dona Maria: “Tenho quatro”. Dona Maria começou a chorar e disse: “Eu choro por causa dele”. A terapeuta estende os braços e acolhe Dona Maria: “Vem cá, vem cá!”. Dona Maria continua: “Eu tenho dó dele sofrer muito. Eu tenho tanto medo que ele sofra, por isso que eu choro”. A terapeuta diz: “Vai ficar tudo bem, não está tudo bem?”. Dona Maria: “Agora que ele começou, ainda tem muita coisa pela frente”. A terapeuta: “E a senhora tem medo dele sofrer...”. Dona Maria: “Ele é louco por essa criança! Eu choro, choro todos os dias em casa!”. Ela silencia e continua a chorar por instantes. A terapeuta diz: “No próximo dia que a senhora vier, vamos falar mais então...”. Ela continua chorar. A terapeuta diz: “Sente-se um pouquinho”. Ela diz: “Vou lá pra consulta”. A terapeuta então diz: “A senhora já ouviu a história da pérola?”. Dona Maria diz que não. A terapeuta continua: “A senhora sabe como é formada a pérola? É assim: cai dentro da ostra um grãozinho de areia. Esse grãozinho de areia machuca a ostra. E a ostra, ela vai soltando uma gosma, que a gente chama de nácar. Essa ‘gosma’ vai envolvendo o grãozinho de areia, vai envolvendo, envolvendo, e se forma a pérola. Então, a pérola é fruto do sofrimento da ostra. O seu filho está se transformando em uma pérola, assim como a senhora se transformou. Qual que é sua pérola hoje? É ser essa avó, essa mãe! Pense nessa história. Às vezes, a gente quer proteger muito, e a gente deve proteger mesmo. Mas o sofrimento também tem um componente importante, que é de deixar as pessoas crescer. Eu acho essa história uma das mais lindas do mundo: um grãozinho de areia que machuca a ostra e a ostra vai envolvendo, envolvendo, envolvendo, até formar uma coisa linda, nobre. Seu filho é a coisa mais linda do mundo”. Elas sorriem. Dona Maria agradece e diz: “Obrigada, vou pensar na história. É difícil, só Deus sabe”. 5.2 Descrição da segunda roda de TCI: “Compartilhar a alegria pela saúde dos filhos” A segunda roda de TCI no Ambulatório de Nefrologia Pediátrica ocorreu no dia 29 de novembro de 2013, com início às oito horas da manhã. Participaram treze pessoas, sendo seis mães (Íris, Carla, Fabiana, Luzia, Fernanda e Sônia ), um irmão (João) e seis crianças/adolescentes (Rafaela, Juliana, Jorge, Gustavo, Felipe e José) pacientes do ambulatório. A Genecília, estudante de licenciatura em Música e co-terapeuta, tocava violão, enquanto as mães e os filhos aguardavam na sala. A terapeuta Rosa sentou-se ao lado de Genecília e disse para uma mãe: “essa música é bonita, né?” [é preciso amor para poder pulsar, é preciso paz para poder sorrir, é preciso a chuva para florir...] Enquanto isso, as pessoas observam e se ajeitam. Eu, Grasiele, me sentei conversando e sorrindo com a estudante Laura, as mães conversavam entre si e a Genecília terminou de cantar. A terapeuta sorri. Genecília diz: “deu para aquecer, hein?!” Grasiele: “Bom dia, como falei para vocês, meu nome é Grasiele, sou enfermeira do ambulatório. Estou fazendo mestrado na UFMT e nossa proposta hoje é realizar uma roda de terapia comunitária com vocês. Aponta para a professora Rosa e diz: “a professora Rosa é minha orientadora e enfermeira. Ela vai explicar um pouquinho para vocês o que é terapia comunitária. A terapeuta Rosa diz: “Bom dia para todo mundo. Então, meu nome é Rosa, sou enfermeira, trabalho na UFMT como professora também. Há algum tempo a gente vem fazendo a terapia comunitária aqui no hospital, toda quarta-feira, das 19 às 20 horas. Íris (mãe): “eu já fiz parte desse aí”, diz, toda alegre. Nesse momento, a porta se abre, entra uma mãe com o filho. Terapeuta: “bom-dia, pode entrar! Tem um lugar ali. Sente-se você aqui então (e troca de lugar). A terapeuta se senta ao lado de Grasiele e diz: “então a terapia comunitária é um espaço de troca de experiência nossa do dia a dia.” No momento da explicação, ouvem-se pessoas conversando alto do outro lado da divisória da sala. A terapeuta interrompe, bate na divisória e diz: “meninas, falem mais baixinho tá bom? Obrigada!” e sorri. “Então, a terapia comunitária é um espaço de troca de experiências do dia a dia, é um espaço pra gente falar do que nos tira o sono, das nossas angústias, também das alegrias. É um espaço de partilha”. Terapeuta: “Então, antes de a gente começar, vamos fazer as apresentações. Vamos fazer assim, a gente fala o nome e onde foi que nasceu”. Todos se apresentam e sorriem. Terapeuta: “Então tá bom! A terapia comunitária diz que pra gente conseguir falar é bom aquecer o nosso corpo. Então, vamos levantar um pouquinho pra gente dar uma aquecida” Todos sorriem. “Tem uma música da TCI que a gente usa para aquecer. Eu já estou aquecida porque já passei um rodinho aqui e acena no piso da sala. As pessoas sorriem. Terapeuta: “A música é assim [bater a mão bater o pé, pra entrar na casa do Zé. Bater a mão, bater o pé, pra entrar na comunidade]. A segunda vez é comunidade. Daí eu vou falar assim, por exemplo, apertar a mão de alguém. E todo mundo tem que apertar a mão de alguém. E ai eu vou dando vários comandos e todos têm que repetir, ok?” Começa a música, todos cantam e participam. Os comandos foram: apertar a mão, puxar a orelha, fazer cócegas, puxar o cabelo e dar um abraço. O grupo se diverte e ri. Felipe fica todo empolgado, diz para o Jorge: “fica em pé, cara”. Carla: “levanta, Jorge, fica em pé”. Jorge levanta. Terapeuta: “isso Jorge! Só mais uma, só pra a gente dar uma aquecida, essa é bem prática. As crianças gostam bastante”. Todos ainda em pé, a terapeuta demonstra, balançando as mãos e cantando: “[faça assim, faça assim, faça assim, como é bom fazer. Faça assim, faça assim e agora é você!”] A terapeuta aponta para a coterapeuta, que continua a brincadeira, apontando para a criança Felipe, e assim por consecutivo, cada um fazendo um gesto diferente. Nesse momento, entra na sala a mãe do João com seu irmãozinho. Depois do aquecimento, todos se sentam. Terapeuta: “Bom, para quem chegou, a gente está fazendo aqui uma roda de terapia comunitária. Estávamos no aquecimento. A TCI é um espaço pra gente falar das coisas que acontecem no dia a dia, que nos tiram o sono, nossas angústias, preocupações, alegrias. E para a terapia andar bem, temos quatro regras: “a primeira regra é o silêncio quando a outra pessoa estiver falando. Silêncio para ouvir e para aprender com a experiência do outro. A segunda regra é falar sempre usando o eu. Devemos evitar falar assim: a gente, nós, as pessoas. Porque nós vamos falar da nossa experiência, então vou usar sempre o eu. Por exemplo, podemos dizer: eu penso assim, aconteceu isso comigo. A terceira regra é que não pode dar conselho, não pode julgar, também não pode fazer sermão, ficar falando até o outro cansar, tipo um discurso (risos). A quarta regra é que a gente pode cantar. Como assim? Vou explicar. A gente trouxe uma violeira (risos). Vamos dizer que, durante a conversa, surja um assunto, alguém fale algo que você se lembre de alguma música. Daí você pode propor e a gente ajuda você a cantar. Então vamos lembrar as regras?” Todos relembram as regras. A terapeuta continua: “Por que é importante falar? Se vocês leram o cartaz que está ali fora, está escrito assim: quando boca cala, o corpo fala. Quando a boca fala, o corpo sara. Quando a gente não fala com a boca, fica guardando, o corpo da gente vai falar de outro jeito, seja com uma dor no estômago, uma gastrite, uma dor de cabeça, depressão, insônia. Por isso é importante a gente falar, e falar com a boca, para que o corpo da gente não fale de outro jeito. Tem outro ditado que diz assim: quando guarda, azeda, quando azeda, estoura, quando estoura, fede. Igual ao leite, se você deixa guardado tampado, uma hora estoura. Muitas vezes a gente vai guardando, guardando, guardando... e uma hora a gente explode e às vezes num lugar onde as pessoas não estão preparadas para nos acolher em nossas preocupações, nosso sofrimento. Mas aqui a gente sabe que podemos falar, pois todo mundo já está orientado que não pode dar conselho e nem julgar. E o que a gente vai falar na terapia comunitária? As coisas do nosso dia a dia, o que nos preocupa, que tira nosso sono, ou algo que a gente quer celebrar. A única coisa que a gente orienta que não fale são segredos. Por quê? Porque o segredo a gente não garante que vai sair daqui (risos).” Terapeuta: “Então, chegou a hora de falar. Quem gostaria de compartilhar, nessa roda de conversa, alguma preocupação, algo que está tirando o seu sono, alguma alegria? Nesse momento, pode levantar a mão, dizer seu nome e, em poucas palavras, dizer qual seu sofrimento ou o que mais quiser compartilhar. Eu vou anotar pra gente não esquecer, tudo bem? Quem gostaria de compartilhar algo?” Oito minutos de silêncio. Íris: “Tem que ser só preocupação? Pode ser alegria?” Terapeuta: “claro, algo que você queira compartilhar.” Íris: “Pois é, então, lá vou eu! Eu tenho só alegria, tristeza já passou. Porque meu filho continua sarando, se recuperando, então é só alegria!” Terapeuta começa a cantar: “[tristeza, por favor vai embora...]”. Genecília continua... “[por favor vai embora, minha alma que chora...]”. “Ih, eu esqueci a letra”, diz a terapeuta. Todo mundo sorri. Genecília diz: “A tristeza já passou, foi, então tá bom!” Terapeuta: “Então Íris, o que você quer compartilhar hoje é sua alegria, por que seu filho está cada fez melhor, é isso?” Íris balança a cabeça positivamente, sorrindo e diz: “É alegria, isso”. Terapeuta: “Obrigada, Íris! Mais alguém quer compartilhar?” Fabiana: “Me chamo Fabiana. A minha também é alegria, porque esse aqui também está cada vez só melhorando, não está mais usando medicamento”. Terapeuta: “alegria!! Uhul!” Todos se alegram. Fabiana: “Isso é a maior alegria, nesse momento. Essa daí a gente sempre tem que carregar dentro do coração”. Terapeuta: “Bom demais!” Fernanda levanta a mão e diz: “Hoje eu também estou feliz, porque já tem um ano que estou tentando uma vaga pra ela aqui, ela tem a bexiga reduzida”. Juliana (sua filha) deita para trás, com vergonha. Fernanda continua: “A bexiga dela é de um bebê de nove meses. Fiquei um ano tentando. Na quinta-feira passada, eu vim trazer minha cunhada, ela faz tratamento aqui e consegui marcar uma consulta pra ela hoje e estou muito feliz”. Terapeuta: “Que legal! Mais alguém quer compartilhar alguma preocupação, alegria, algo que está tirando o sono?” Alguns minutos de silêncio. Carla: “Eu sou a Carla. Também estou muito feliz porque o Felipe também vem só progredindo, melhorando bastante. Só que eu tenho uma preocupação. Na escola, ele está bagunçando demais, eu nunca tinha reclamação. Mas depois da enfermidade que ele teve, ele vem ficando mais teimoso, e isso está me preocupando. Eu não sei se isso foi por causa da enfermidade ele ficou ‘manhando’ demais. Ficou pouco tempo em casa e agora ele está assim, meio rebeldinho na escola e tal. Isso está me preocupando muito”. Terapeuta: “Então Carla, o que te preocupa é o fato de o Felipe ter ficado muito teimoso, rebelde na escola?” Carla: “Dei muita corda pra ele, meu esposo fala que eu dei corda pra ele, porque estava doente. Mãe é assim, então eu mimei demais, minha preocupação é que eu mimei demais. Mas ele vai melhorar com certeza”. Terapeuta: “Então sua preocupação é se você está agindo bem com ele? É isso?” Carla: “Isso. É porque quando ele ficou doente, eu tinha um cuidado muito grande com ele. A pressão dele era para medir duas a três vezes, eu media cinco vezes a seis vezes. Ele estava na escola, a preocupação foi muita, eu acho que sobrecarregou demais”. Terapeuta: “Obrigada, então, Carla. Mais alguém? (cinco minutos de silêncio) Bom, a gente tem quatro pessoas que falaram, três que querem celebrar a alegria. Então nós vamos fazer uma votação. Mas antes eu queria saber das pessoas que não falaram, qual das situações faladas aqui hoje tocou mais você e por quê.” Sônia: “Dela ali (Carla), dela preocupar-se com o filho, chegando à adolescência, é assim mesmo. Eu também tenho um filho chegando à adolescência. Teimosos, acham que são donos da razão e me preocupa também.” Luzia: “Eu também o dela, porque a gente muitas vezes nem pode falar. Ele acha que já é dono do próprio nariz. Já demos muita ‘barda’ pra eles e quando você quer cortar o mal pela raiz, já não consegue mais. Esse já está com quatorze anos (aponta para o filho), vai fazer no mês que vem, e a gente já está aqui há um mês.” João: “O dela (aponta para Íris), porque ele vem melhorando progressivamente, e isso é muito importante.” Terapeuta: “É bom comemorar, né?” João: “É muito bom!” (risos). Terapeuta: “Então, nós vamos votar. Como são três histórias semelhantes (de alegria) à da Carla, vamos votar nessas duas opções”. Todos votam. “Então, hoje a alegria ganhou (risos). Eu agradeço muito a Carla por ter trazido a sua situação. Vou pedir pra Íris pra Fabiana e pra Fernanda falarem um pouquinho das suas histórias, porque essa alegria tão grande. Pode ser?” Fernanda: “Ela passou por uma cirurgia do coração, tem cinco anos que ela fez essa cirurgia. Depois dessa cirurgia, começou aparecer esse problema de bexiga. Eu sofri bastante com ela, porque ela não conseguia fazer xixi, doía. Venho tentando consulta. Agora, daqui pra frente, depois dessa consulta, quero ver o que vai acontecer”. Terapeuta: “Legal! Íris, fala um pouquinho, por que tanta alegria? Íris: “A alegria primeiro pela adaptação do Jorge. A alimentação sem sal foi uma batalha enorme, mas venci. E a outra alegria é que nessa época nós estávamos internados, e hoje nós estamos aqui só consultando, e isso pra mim é o suficiente”. Terapeuta: “Legal! Fabiana, e você, por que tanta alegria?” Fabiana: “A minha alegria é porque o Gustavo também, a alimentação dele era sem sal, eu tive que sair do serviço pra cuidar dele... Saí, cuidei, e a minha maior alegria é dele poder estar aqui! Você vê: ele, com três anos de tratamento, um ano sem medicação. Tirou toda medicação dele, voltou a alimentação normal, que ele não podia. Agora, se alimenta normalmente. Isso é a maior alegria da gente. Você vê: eu vim do interior. É sofrido sair duas horas da manhã pra estar aqui. Eu cheguei a vir duas vezes essa semana pra trazer ele, pra gente ter um resultado desses é uma alegria muito grande!. Pra gente não tem como!”A terapeuta celebra: “Gente, vamos bater palmas!” Todos batem palmas e Fabiana fica emocionada. “Muito bom, obrigada meninas! Então, agora, eu pergunto a todos vocês que as ouviram um pouquinho, o restante do grupo: qual é a sua alegria hoje? E por quê?” Carla: “A minha alegria hoje é que, graças a Deus, estou viva. Hoje posso criar meus filhos e ele, principalmente, porque ele sofreu bastante com essa enfermidade. A maior alegria nossa hoje é por ele estar bem, estar cada vez melhor. Então já é uma alegria. Só de levantar e respirar já uma dádiva de Deus, eu acho”. João: “A minha alegria hoje é ver esse guri lindo aqui (aponta para Jorge e coloca o irmão menor de Jorge no colo), e compartilhar com vocês esse carinho, que cada um tem pelos seus entes queridos. Carinho da mãe e dos filhos. Esse valor precisa cada vez mais ser repassado, porque está se perdendo. Quando a gente pensa que as coisas mais simples estão sendo esquecidas e um lutando pela saúde do outro, é muito importante”. A mãe de João começa a chorar. Todos se emocionam e alguns tentam conter as lágrimas. Fabiana também chora e seu filho a abraça. Genecília canta: [encosta sua cabeçinha no meu ombro e chora. E conta logo suas mágoa todas para mim. Quem chora no meu ombro eu juro que não vai embora...por gosta de mim...] A terapeuta pergunta para a mãe do João: “Qual sua alegria hoje?” Fabiana: “Desde que ele nasceu, tem sido uma alegria pra mim, ele tem melhorado bastante”. Terapeuta: “Sua alegria é ter ele com você hoje?” Fabiana: “É. Tenho mais três filhos, só que eu nunca tive problema nenhum com os outros. Ele nasceu com um problema gravíssimo e hoje ver ele assim está bem pra mim”. Terapeuta: “Lindo, né? Muito bom! Uma música bem alegre aí, então!”. Genecília: “Vamos ver...[viver e não ter a vergonha de ser feliz. Cantar e cantar e cantar, a beleza de ser um eterno aprendiz... Ah, meu Deus, eu sei! Mas isso não impede que eu repita: é bonita, é bonita e é bonita...]” Terapeuta: “Alguém mais gostaria de falar, qual é sua alegria hoje e por quê?” Sônia: “A minha alegria hoje é ver meus filhos bem. Tenho a Rafaela de dez anos e meu filho de doze. Também fiquei um ano e pouco tomando remédio para depressão e graças a Deus não tomo mais. Todos batem palmas. Sônia se emociona. Terapeuta: “Quem mais quer falar, qual sua alegria hoje e por quê?” Fabiana fala para seu filho: “Você quer falar?” Ele balança a cabeça sinalizando negativamente, olhando para baixo, envergonhado. Todos sorriem. Íris: “Quer falar, Jorge?” João: “Jorge, fala!”. Todos sorriem porque ele é o mais tímido. Jorge sinaliza que não com a cabeça para baixo. Carla, sorrindo, diz: “Jorge, fala!” É como se fosse difícil para ele. Terapeuta: “Não é obrigado a falar, só fala se quiser, tá? Mais alguém quer falar sua alegria de hoje e por quê?” Segue um minuto de silêncio. “Então tá bom. Vamos levantar um pouquinho? Daqui a pouco a doutora começa a chamar!” A terapeuta coloca a criança menor num banquinho, no centro da roda. A criança fica tranquila, observando. “Vamos dar as mãos. Jorge, agora você vai ter que dar a mão, tá? Você consegue dar a mão aí? Nossa, a sala ficou pequena hoje! Levanta um pouquinho, Jorge. Isso!”. Jorge se levanta e todos comemoram sorrindo! Terapeuta: “Olha só: hoje eu quero agradecer muito a Fabiana, a Fernanda, a Íris e a Carla, por terem trazido suas histórias, e por meio das histórias vocês terem permitido que a gente refletisse um pouco sobre nossas conquistas, alegrias... Nessa vida de batalha de saúde, que não é fácil, mas que a gente consegue. Vocês conseguiram superar todas as adversidades. E quem não superou, já está no caminho da superação. Agradeço muito a vocês e gostaria de perguntar para o grupo: o que vocês estão levando dessa roda hoje? Eu estou levando daqui hoje a mensagem de superação.” Luzia: “Experiência, muito mais experiência. De um problema do outro que todo mundo aprende. É experiência, no meu caso”. Fabiana: “Eu estou levando muita alegria, de muitas crianças que só estão alcançando o que querem. A vitória é o melhor. Lutando, sofrendo, a gente chega lá”. Fernanda: “Eu estou levando a experiência da vitória!”. Sônia: “Experiência!”. Grasiele: “Dedicação!”. Genecília: “Alegria também!” (sorri). Laura: “O amor” (risos). Terapeuta Rosa: “O que eu estou levando daqui hoje?” Íris: “Força. A gente pensa que os nossos problemas são grandes, mas tem gente que tem maiores”. Terapeuta Rosa: “Tem uma música assim: [Tô balançando mas não vou cair, mas não vou cair, mas não vou cair... Tô balançado na terapia...] E por que eu não caio?” Fabiana: “Fé!” Terapeuta: “Ah, estou segurando no outro...” Carla: “Deus maior do nosso lado, nós não vamos cair nunca!” Carla: “Eu estou levando esperança!” Íris: “Quem tem fé, nunca cai!” Carla: “Verdade!” Terapeuta Rosa: “O que eu estou levando daqui hoje?” Fernanda: “Alegria. Porque cada dia a gente vai tentando e vai conseguido. Cada dia fica a gente fica mais feliz” Carla: Eu estou levando esperança!” Felipe vai melhorar!” Diz isso olhando para ele, que retribui sorrindo. Terapeuta: “O que mais eu estou levando?” Alguém diz: “Alegria!” Terapeuta: “Rafaela, o que você está levando daqui hoje?” Rafaela: “Alegria.” Terapeuta: “Juliana, o que você está levando daqui hoje? Ah... ela não fala, só sorri...Tá bom!” Juliana: “Estou com vergonha.” Todos sorriem. A terapeuta Rosa se dirige à criança Felipe e pergunta: “O que você está levando daqui hoje?” Felipe, bem atento na roda, responde: “Alegria.” Terapeuta: “E você, Jorge?” Ele responde: “Alegria”. Terapeuta: “Gustavo, o que você esta levando daqui hoje?” A criança responde: “Alegria”. Todos sorriem. Terapeuta: “Que bom, gente! Parabéns para todo mundo!” Todos aplaudem, sorrindo. “Só para finalizar, alguém propõe alguma música bem alegre pra gente dançar?” Genecília: “Está todo mundo tímido”. João: “Ninguém quer falar, né”? Genecília: “Tem uma de alegria, mas acho que ninguém conhece. É um samba”. Terapeuta: “Será?” Genecília canta: “[...fez um zig-zag fascinante, num maior show da terra. Será? Que eu serei o dono desta festa? No meio de uma gente tão bonita e tão modesta.. Eu fui descendo a serra, cheia de euforia para desfilar... Diga, espelho meu, se há na avenida alguém mais feliz que eu...]. Todos sorriem. Terapeuta: “Legal! Então pessoal, a terapia comunitária é isso! Quem gostou conta pros outros, e a gente está sempre aqui. Estamos querendo fazer pelo menos algumas vezes aqui no ambulatório. Aqui no hospital fazemos toda quarta-feira das 19 às 20 horas. Quem quiser vir, mesmo de fora, será bem-vindo. Obrigada, viu!” Várias pessoas respondem: “Obrigada você!” 5.3 Descrição da terceira roda de TCI: “Compartilhar a angústia por se sentir o esteio da família e estar adoecida” No dia 06 de dezembro de 2012 foi realizada a terceira roda de TCI no Ambulatório de Nefrologia Pediátrica. Teve início às 8 horas. Além da terapeuta e das alunas, participaram de todas as etapas da roda uma mãe (Márcia) e uma criança (Larissa) paciente do ambulatório. A terapeuta inicia o acolhimento solicitando que todos se apresentem, dizendo o seu nome, a cidade natal e uma fruta preferida. Todos se apresentam e se divertem ao falar de suas frutas preferidas. Como nas outras rodas, a terapeuta Rosa apresenta a terapia comunitária aos participantes e suas regras. Em seguida, solicita aos participantes repetir as regras, de modo que todos possam fixá-las. Como dinâmicas de aquecimento, a terapeuta Rosa propôs a música “Casa do Zé” e, depois, “Faça assim”, do mesmo modo que na roda de TCI anterior. As pessoas participantes logo se mostram soltas e sorriem. Terapeuta Rosa: “Deu para esquentar um pouquinho, foi?” A terapeuta Rosa explica brevemente a importância de se falar, exemplificando com os ditados populares e, em seguida, abre a palavra aos participantes: “Então, chegou a hora da gente falar. E eu pergunto para todo mundo: quem gostaria de compartilhar uma preocupação, algum sofrimento, ou alguma alegria?” Grasiele: “Eu quero compartilhar uma alegria”. Terapeuta Rosa: “Como que é seu nome?” Grasiele: “Grasiele.” Terapeuta Rosa: “Grasi, diga.” Grasiele: “Eu estou feliz porque meus pais estão vindo me visitar esta semana. E eu estou com muitas saudades deles. Por isso estou feliz.” Terapeuta Rosa: “Obrigada por compartilhar, Grasi. Mais alguém gostaria de compartilhar?” Márcia: “Bom, eu gostaria de compartilhar sim. É um sofrimento. É que há três anos que eu venho de Sorriso pra cá, sempre por motivo de doença. E hoje eu estou aqui novamente. Então, isso traz muito desgaste, isso me fez eu também ficar doente. Amanhã eu tenho uma consulta e eu vou mostrar uma biópsia de medula óssea e estou muito preocupada.” Terapeuta Rosa: “Você que fez o exame?” Márcia acena positivamente com a cabeça e diz: “Foi assim, acho que foi consequência de, de muita doença na família. E eu sempre fui o esteio. E este esteio agora caiu, né? Então, está sendo difícil para eu me levantar, me colocar de pé novamente. Porque foram muitas coisas em pouco tempo para mim. E está assim, isso está me deixando... Eu... hoje eu estou bem. Hoje eu posso dizer que estou bem, mas eu já tive muito, muito, muito ruim. Tento me manter forte. Tenho um marido alcoólatra, uma filha que faz faculdade, tem ela (aponta a criança) que tem este problema. Então, assim, mesmo com o meu problema, eu tenho que ser forte.” Terapeuta Rosa: e “Qual é o sentimento que vem quando você fala tudo isso? Como você se sente?” Márcia: “Assim, eu me sinto angustiada, uma angústia muito grande. Tanto que eu tomo medicamento para tirar a ansiedade. Porque eu fico me perguntando a mim mesmo o porquê de tudo isso. Então, isso me deixa muito angustiada.” Terapeuta Rosa: “Márcia, veja s se eu entendi. Você se sente angustiada por se sentir o esteio da família e por agora você estar vivendo a sua doença? É isso?” Márcia: “Exatamente.” (silêncio) Terapeuta Rosa: “Obrigada, Márcia. Mais alguém gostaria de compartilhar uma preocupação, uma alegria? (...) Gostaria de falar alguma coisa? (...) Hoje não? Então tá certo. Bem, na terapia comunitária a gente não consegue discutir todos os problemas que são colocados. Então, normalmente, a gente faz uma votação”. É feita a votação e a situação da Márcia é a escolhida. Terapeuta Rosa: “Márcia, então conta um pouquinho mais pra gente sobre essa sua angústia. Márcia: “Então, tudo começou com este diagnóstico. Primeiro começou com meu pai. Meu pai tem 83 anos. E ele entrou em coma e ficou 45 dias internado no hospital. Logo em seguida, desses 45 dias, fazia uns 30 dias que eu estava internada, apareceu a doença, a síndrome (refere-se à síndrome nefrótica da criança). A gente só tem que agradecer a Deus porque os médicos mandaram ele ir para casa pra gente cuidar porque estava em estado terminal. Mas hoje ele esta lá, forte! Isso é um motivo de alegria. Aí ela também é um motivo de alegria, porque ela hoje não toma medicamento. Hoje ela está bem. Mas o ano passado, acompanhei a outra mais velha, que faz faculdade. Ela ficou vinte dias internada entre Sinop, Sorriso e Cuiabá. Os médicos até hoje não sabem o que aconteceu com ela. A princípio, foi desmaio, depois o rim parou e logo em seguida deu derrame em todo o corpo. E nesse período de tempo eu, sozinha, porque meu marido é alcoólatra. Eu sozinha pra fazer tudo. Eu tenho anemia crônica e esqueci de mim, esqueci por completo. O que me dessem pra comer eu comia. Se não dessem, eu não comia. Até que o ano passado, quando ela saiu do hospital voltando pra casa, logo em seguida, eu achei agora estava todo mundo bem, me aparece uma hanseníase.” Terapeuta Rosa: ”Você está com hanseníase?” Márcia: “É, já passou. Já tratou. Pela segunda vez me aparece uma hanseníase e iniciei o tratamento de hanseníase. Nisso já começou a anemia se agravar porque eu já estava com o quadro anêmico e tomando o ácido fólico e tal, e começou a se agravar. Foi então que os médicos de Sorriso me pediram para eu passar numa hematologista. Aí foi quando começou a minha rotina. A primeira biópsia da medula óssea, veio a mielodisplasia. E aí meu mundo caiu. E agora? Eu tenho um pai pra cuidar, um marido alcoólatra, duas filhas com problema e tem a faculdade dela que a gente mantém ela lá. E eu fui ficando cada vez pior, só que nisso tudo, eu sempre fui muito religiosa e isso fez com que eu descobrisse um Deus maior ainda do que eu já tinha. Através da cura do meu pai, da cura da minha filha, até mesmo a dela (aponta a criança), eu pude descobrir este Deus que é muito maior. Eu fiz a segunda biópsia, daí deu negativo. Agora fiz a terceira, que vou consultar amanhã. Na terceira tem alguma anormalidade, mas assim, pelo envolvimento da gente e o que ele pesquisou é alguma coisa mais simples, nada muito grave. Então, isso fez com que eu desmoronasse. Estou em pé porque eu vou na psicóloga, trato, tomo remédio antidepressivo, tomo remédio pra ansiedade. Então tudo isso fez com que eu, até hoje, eu me mantenha em pé, com a ajuda de Deus. Deus em primeiro lugar, que me fez estar aqui hoje, do jeito que eu estou. Porque há quatro e cinco meses eu não parava em pé...” Terapeuta Rosa: “Quando não houver saída, quando não houver mais solução, ainda haverá saída... enquanto houver sol, enquanto houver sol... Ainda haverá... Poxa... eu sou a única que estou lembrando essa música! (Risos). Muito obrigada, Márcia, por você ter compartilhado sua história com a gente. E agora, vou perguntar então pra todo mundo, ou seja, para a Laura, para a Grasiele e para mim mesma: quem já viveu uma situação parecida com a da Márcia, de sentir assim o mundo desabar? Como foi? E o que fez pra superar? Agora, Márcia, eu queria que você ouvisse, tá bom? Alguém já viveu uma situação parecida? Não precisa ser igual, por motivo de doença, pode ser outra coisa, por morte...” Houve um momento de silêncio dos participantes e um barulho de vozes externas à sala. Terapeuta Rosa: “Eu vivi uma situação parecida, que eu achei que o mundo ia acabar mesmo, sabe? Eu perdi uma filha, ela tinha quatro anos. Foi um atropelamento dentro do condomínio de casa, do meu prédio. E aí eu senti, achei que eu não ia dar conta não. A gente não imagina. É o mesmo que dizer, assim, uma dor que não tem nome. Li um livro na época que se chamava ‘A dor que não tem nome’, que era a história de uma mãe que tinha perdido um filho. Porque, ela diz no livro, quando você perde uma mãe ou um pai, você fica órfão. Quando você perde o marido, você fica viúva. Quando você perde um filho não tem nome. Não existe nome pra isso. E, realmente, é uma dor imensa, não tem nome, eu achei que o mundo fosse acabar mesmo. Isso foi em 1999. Antes disso, meses atrás, tinha vivido a situação de uma amiga que tinha perdido um filho e eu conversava com meu marido: como ela consegue viver. Achei que jamais conseguiria... Mas aí, a mesma coisa aconteceu com a gente e eu achei realmente que não sobreviveria. Mas eu descobri que eu tinha forças. Mas eu procurei ajuda mesmo. Hoje aprendi que quando eu sofro tenho que buscar ajuda e, às vezes, tem que ser ajuda profissional, mas também pode ser ajuda de outras pessoas. Eu consegui ajuda logo, fiz terapia. Fiz umas quatro sessões de terapia, que me ajudaram a superar. E o que me ajudou muito foi conversar com as pessoas e escrever bastante. Eu passei muito tempo escrevendo sobre a experiência, conversando com outras pessoas e perguntando a mim mesma o sentido da vida, o sentido da morte... Até que um dia ouvi essa música e sempre que eu faço terapia cujo tema é morte eu canto essa música, porque me marcou muito. Vou cantar a música da morte, que fala assim:’Se a morte faz parte da vida, e se vale a pena viver, então morrer vale a pena, se a gente teve o tempo para crescer. Crescer para viver de fato, o ato de amar e sofrer. Se a gente teve esse tempo, então vale a pena morrer’. Então, assim, isso foi uma coisa que eu aprendi em relação à morte. Quer dizer, faz parte da vida e todo mundo passa por isso uma vez na vida. E a outra coisa... ai, me fugiu agora...Ah, sim, que eu dou conta, que todas as coisas são possíveis de se superar quando existe amor. Sabe, eu não acreditava mais em Deus. Até hoje, assim, meu Deus é um Deus diferente do que era antes. Eu aprendi o sentido de Deus a partir de João (do Evangelho). João diz que Deus é amor. Então, eu fiquei pensando nisso: não é que Deus é feito de amor. Não, Deus é o próprio amor! Se eu tenho amor, se me amam, ou se eu amo, Deus está presente. Tenho buscado isso para superar as dificuldades, a partir disso, com a expressão do amor. Mais ou menos, né? Isso que eu poderia compartilhar. Então, assim, eu poderia desmoronar, mas eu consegui, eu superei. Mais alguém que já viveu uma situação que se sentiu desmoronar? Seguem-se alguns instantes de silêncio. Terapeuta Rosa: “Alguma música que lembre isso? (...) Então, vamos levantar? Vamos nos dar as mãos e ficar bem pertinho.” Faz-se a roda, dessa vez bem pequena, com cinco pessoas. A terapeuta Rosa continua: “Bom, hoje quero agradecer a Márcia e a Larissa por terem vindo, por terem falado sua experiência, sua vivência, por terem se aberto com a gente... E dizer que eu fiquei muito emocionada mesmo, muito tocada pela sua força, pois não é fácil viver tantas angústias e, ainda assim, ser firme e forte e ainda ser o esteio da família.” A terapeuta Rosa interrompe um pouco a fala e observa como as pessoas se deram as mãos. E continua: “Deixa eu só ver uma coisa aqui. Vamos ver como a gente deu as mãos... Hum... Olha só, vamos fazer assim: uma mão a gente dá e a outra a gente recebe, entendeu? Bom, então tá, porque tem que ser assim na vida da gente: a gente tem que dar e tem que receber. Tem gente que só quer receber, né? E outros só querem dar. Então, vamos dar e receber. Você (sinaliza para Márcia) já estava assim, olha... (demonstra com as duas mãos em posição de dar) Tem uma música na terapia comunitária que é assim... a gente faz um balezinho, pra lá e pra cá.... ‘Estou balançando mas não vou cair, mas não vou cair, mas não vou cair... estou balançando mas não vou cair, mas não vou cair, mas não vou cair... Tô balançando, na terapia, tô balançando mas não vou cair. Tô balançando, na terapia, tô balançando mas não vou cair...’ E por que que eu não vou cair, Larissa? Por que que a gente não cai? Bom, eu queria perguntar para as pessoas que participaram dessa terapia: o que eu estou levando desta roda de terapia comunitária hoje? Pode ser uma palavra só.” As palavras mencionadas foram: confiança, felicidade e força. Terapeuta Rosa: “Para finalizar, então, vamos cantar e brincar com a Olaria do Povo?” Todas as pessoas em círculo, chama-se uma pessoa de cada vez para o centro e se cantou a música: ‘Fulana vai entrar, na olaria do povo (bis). Desce como um vaso velho e quebrado e sobre como um vaso novo (bis)’. Na sequência, foram para o centro da roda Grasiele, Laura, Márcia, Larissa e Rosa. Todas brincaram e demonstraram bastante alegria. A terapeuta Rosa conclui: “Bom, Larissa e Márcia, então, a terapia comunitária é isso! Se vocês gostaram, contem pros outros, a gente faz terapia aqui no hospital toda quarta-feira, menos feriado, das sete às oito da noite, na frente da pediatria, estando aberta para a comunidade. Se quiserem participar, se um dia estiverem por aqui, é só chegar. Todos se despedem com abraços. 5.4 Descrição da quarta roda de TCI: “Celebrar a alegria pela saúde dos filhos” No dia 07 de fevereiro de 2013 foi realizada a quarta roda de TCI no Ambulatório de Nefrologia Pediátrica. Teve início às 7 horas e 30 minutos. Além da terapeuta e das alunas, participaram de todas as etapas da roda quatro pessoas, sendo duas mães (Eduarda e Cláudia), duas crianças (Mateus e Helena) pacientes do ambulatório e uma funcionária do HU (Joana). Um pai (Murilo) e seus dois filhos (Felipe e Daniel), sendo um deles paciente, participaram apenas do início da roda, pois foram chamados para a consulta de acompanhamento. Após as pessoas se acomodarem, nos apresentamos (eu e minha orientadora, a professora e terapeuta comunitária Rosa) e, em seguida, demos orientações sobre a atividade da terapia comunitária e sobre a gravação e seus objetivos. Todos consentiram em participar sem restrições. Nessa roda, eu, Grasiele, fiz o papel de coterapeuta. Grasiele: “Pra gente começar a terapia, vou pedir para cada um se apresentar. Falar o nome de vocês e onde nasceram, certo? Vamos começar?” Todos se apresentam e já se percebe certa descontração entre os participantes. Grasiele continua: “Então, pra gente aquecer um pouco o corpo - porque pra gente falar, a gente precisa aquecer o corpo - a gente vai começar com uma dinâmica. Vou pedir pra vocês ficarem em pé. Murilo (pai de uma criança) diz: “Movimentar o corpo.” Grasiele: “Isso, a gente vai aquecer um pouquinho.” Murilo: “Tá certo, vou deixar a folha.” Terapeuta Rosa: “O senhor quer colocar a folha em cima da mesa?” Grasiele, então, propõe uma dinâmica de aquecimento (a brincadeira do “faça assim”), e todos participam. Cláudia comenta: “Bom que dá uma movimentada.” Grasiele: “É, todo mundo aquecido agora.” Eduarda: “É bom que a gente perde um pouco a vergonha.” Grasiele: “Agora quem vai continuar é a Rosa, tá? Ela vai dar seguimento à roda.” Terapeuta Rosa: “Todo mundo esquentou?” Felipe: “Sim.” Terapeuta Rosa: “Soltou a língua? (risos). Bom, então, como a Grasiele falou, a terapia comunitária é um espaço de troca de experiências do nosso dia a dia. É um espaço pra gente falar daquilo que nos tira o sono, nossas preocupações, angústias, sofrimentos e também pra gente celebrar! É um espaço pra gente comemorar, celebrar nossas conquistas, nossas alegrias. Na terapia comunitária, a gente tem quatro regras que são importantes para que nossa conversa ande bem. A primeira regra é o silêncio quando a outra pessoa estiver falando. Então, quando a outra pessoa estiver falando, a gente fica em silêncio para poder aprender com a experiência do outro. A segunda regra é falar sempre usando eu, então evitar falar Falar sempre eu, como, por exemplo, a gente, nós, as pessoas. eu penso assim, aconteceu assim comigo. A terceira regra é um conjunto de regras: não dar conselho, não julgar, não fazer sermão ou discurso. Conselho se fosse bom a gente vendia, não é? E julgar... Murilo: “Quem somos nós pra julgarmos o outro, né?” Rosa: “Exatamente! E a quarta regra é que nós podemos cantar. Se durante a conversa alguém falar algo que lembre uma música, você interrompe e diz: lembrei-me de uma música que tem a ver com isso. Você pode começar a cantar e a gente acompanha. Além de música, pode ser uma piada que tenha a ver com assunto, um ditado popular ou uma poesia... Em seguida, a terapeuta Rosa pede que todos repitam as regras, sendo que as crianças também participam. A criança Felipe diz; “O silêncio!” Eduarda: “O eu.” Rosa: “A outra? Não julgar, não dar conselho e não dar sermão. E a quarta regra? Podemos...?” A criança Daniel: “Cantar uma música.” Rosa: “Isso mesmo, muito bem! Bom, e por que é importante falar? Tem um ditado popular que diz assim: quando a boca cala o corpo fala, quando a boca fala o corpo sara. Então, muitas vezes, a gente não fala com a boca e o nosso corpo fala de outro jeito, com uma dor de cabeça, uma gastrite, uma dor de estômago, uma insônia... Então, é importante falar com a boca para o corpo não precisar falar. Tem outro ditado que diz assim: quando guarda, azeda, quando azeda, estoura, e quando estoura, fede. Se guardamos muito, podemos estourar e, às vezes, estouramos com as pessoas erradas, no lugar errado... e aí o negócio fede! (risos) Então, aqui a gente pode falar, porque a gente sabe que ninguém vai julgar, ninguém vai dar conselho, está todo mundo preparado para nos ouvir. E do que nós vamos falar? Nós vamos falar das coisas do dia a dia, preocupações, família, saúde, o que quiser. A única coisa que a gente não fala aqui é segredo, pois segredo a gente não garante que não vai sair daqui. E o segredo faz parte da nossa riqueza pessoal, não é? Não tragam segredo, tá bom? Então, pra gente começar, quem gostaria de compartilhar alguma coisa nessa roda aqui hoje, levante a mão, fale o seu nome e, em poucas palavras, pode dizer qual a sua preocupação, o que você gostaria de compartilhar. Vou anotar umas coisas pra eu não me esquecer, certo? Eduarda: “Vou começar, porque eu gosto muito de falar! Já que eu estou aqui em Cuiabá, vou falar o que eu vim fazer aqui e quais são as minhas preocupações de agora. Nós morávamos em Cáceres, aí nos mudamos para Araputanga e, em Araputanga, tivemos problemas com esse rapazinho (mostra a criança). Ele tem... hum... dez anos. Ou vai fazer dez?” Mateus: “Tem dez já!” Eduarda: “Tem dez, vai fazer onze! Até a mãe está errando, então onze. E aí, um belo dia, ele foi fazer xixi, diz que ouviu no vaso um barulhinho. E aí começou a sangrar, direto começava a sangrar quando ia fazer xixi... e sangrava... Ele tinha entrado bem recente na escolinha de futebol e começou a reclamar que doía aqui (mostra o dorso) dos dois lados. Aí eu dizia:’Às vezes você caiu e bateu no chão, começou no futebol agora, às vezes foi isso. Não é isso?’ Sei que eu não liguei, achei que tinha sido uma queda mesmo. Uma batida e parou de sangrar e não preocupei mais. Ah, deve ser porque caiu, aí foi passando e passando... Um dia ele chamou de novo que estava doendo, aí eu corri no PSF que tinha no bairro, pedi exame de urina. Antes disso, uns dois anos atrás, ele teve uns problemas, fez uns exames e constou que ele tinha problema na bexiga. Esse problema já tinha acontecido uns dois anos atrás e eu nem liguei uma coisa a outra. Achei que foi aquela vez, pediu exame de urina, exame de sangue e deu que estava com infecção muito forte na urina. Aí fez uns exames e a ultrassonografia acusou que ele estava com probleminha no canal da urina. Achei que era só ali. Aí tomou antibióticos e sarou. Mês passado, começou de novo, aí lembrei e falei: vou pedir os exames. Aí a médica fez de urina simples, urocultura, fez exame de sangue e nada, estava tudo normal. Aí ela falou: - ‘mãe, vamos fazer uma ultrassonografia dos rins’. E fizemos a ultrassonografia dos rins e o médico me apavorou: ‘- nossa, quanta pedra no rim dessa criança! Está cheia de pedras, e as pedras são grandes, 52 centímetros’, ele falou lá.” Terapeuta Rosa: “Milímetros...” Eduarda: “Isso, a maior era esse tamanho. Aí eu disse: ‘nossa, tudo isso?’ Os dois rins estão tomados de pedra. O que vai fazer, né? Eu fiquei apavorada. Aí o médico encaminhou para uma nefropediatra. Foi quando ela me enviou para a doutora. Aí, a gente veio para a primeira consulta, eu e meu esposo. Aí, viemos a segunda vez. E a terceira, estamos aqui novamente. E quando foi dia cinco agora (que eu tô desde segunda feira em Cuiabá), quando foi terça-feira, dia cinco, nós fizemos outra ultrassonografia, que foi a nossa maior alegria, minha e dele, dele ainda mais! Ele fez assim: ‘Oba, mãe! Porque a medica falou assim: ‘você tá sentindo alguma dor?’Aí ele: ‘não, não tô sentindo.’ Então, eu acho que tem uns seis meses que ele não se queixa de dor. Aí ela: ‘E qual era o problema dele?’ Aí eu: ‘Ele tinha umas pedras nos rins’ Aí ela: ‘Não, mãe, ele não tem nenhuma pedra, nenhum dos rins dele. Está perfeito, a não ser que tenha uma areinha lá no fundo e não dá para ver. Aí ele: ‘Oba, que bom! Aí falei pra ele: ‘Deve ser a dieta que nós estamos fazendo que melhorou’. Então, é essa a alegria nossa, que era tristeza e agora é alegria. Espero que não dê nada nos outros exames de sangue! Terapeuta Rosa: “Tá, então você quer celebrar sua alegria, pois parece que seu filho está bem?” Eduarda: “Aparentemente, né?” Murilo: “Graças a Deus, hein?” Terapeuta Rosa: “Aham, ok... Mais alguém quer compartilhar alguma preocupação. Uma pessoa de fora abre a porta e pergunta: “Bom-dia! Quem é Daniel? A doutora está chamando.” Terapeuta Rosa: “Vai lá! Vai, depois volta, tá?” Murilo: “Pega o exame lá. Eu vou lá também, eu trouxe um exame pra mostrar pra ela, que às vezes... Mas nós voltaremos aqui!” Terapeuta Rosa: “Tá bom! Vai lá, volta pra cá! Mais alguém gostaria de compartilhar alguma preocupação?” Cláudia: “Tá, só eu aqui, tem que ser eu” Terapeuta Rosa: “Não, tem mais gente! (sorriso) Todo mundo pode falar.” Grasiele: “Todo mundo pode falar.” Terapeuta Rosa: “Seu nome?” Cláudia: “Meu nome é Cláudia e eu moro em Sinop. E o caso dela... É que ela estudava lá na creche e eu trabalhava. Ela sempre foi magrinha, mas sempre barrigudinha. Desde que nasceu, e ela teve problema no parto... eu tive. Só que a doutora pediatra disse que não tinha nada a ver. Ela demorou acho que oito horas depois que nasceu pra fazer xixi. Mas disse que era normal, né? Não tinha nada. Então, aí, como ela era muito magrinha, falei pra minha mãe: ‘Ah, vou dar um remédio de verme. Fui na farmácia, comprei, dei, passou umas duas semanas ela começou... Na minha cabeça, ela estava engordando. Mas minha mãe disse que era inchando, e eu não vou teimar com minha mãe. Mas, na minha cabeça, ela estava engordando. Aí, um dia, a professora me ligou que ela estava se queixando de dor, que ia fazer xixi e estava doendo a barriga. Aí eu saí do serviço e fui buscar ela. Aí, eu vi que realmente ela estava inchando mesmo, a barriga estava bem inchada. Aí eu levei no médico lá e ela ficou seis dias internada e eles falaram que ela tinha pielonefrite. E eu nem media nada Aí ela teve pressão alta, começou a sair sangue do nariz. Ela ficou seis dias internada e voltou pra casa, com dieta. O doutor pediu dieta de alimentação, tudo sem sal, essas coisas todas. Aí eu comecei a fazer até que, com quinze dias, voltou tudo de novo. Começou a sair um monte de furúnculos, furúnculo, furúnculo... Por falar nisso, estou até com um no braço, aqui, que não estou nem aguentando. Daí levei de novo no médico e eles falaram que podia ser estreptococos, acho que é esse o nome mesmo, né? Que poderia ter afetado os rins dela. Mas como em Sinop não tinha especialista no caso, tinha que ficar aguardando vaga. Aí fiquei aguardando, aguardando e aquela dificuldade toda. A central (de vagas) sempre com atraso... pra ela fazer os exames dela. E ela sempre de pressão alta. Daí vim por conta pra Cuiabá tentar o Pronto Socorro. Aí cheguei na rodoviária, fui no Pronto Socorro e fiquei três dias com ela lá. Aí ela começou o tratamento no Hospital Geral. Ela ficou ali até 2009 quando a médica de lá ficou doente, aí a gente passou para cá e graças a Deus, sei lá se é um milagre... sei lá... foi uma bênção. Depois que ela veio pra cá a pressão dela está sempre boa. E ela trata desde o mês de agosto de 2006”. Terapeuta Rosa: “Então você também quer celebrar?” Cláudia: “Lógico! Quem vem de 15 em 15 dias, quem ficou três meses dentro do hospital e saía só pra respirar um pouco, hoje eu estou no céu!” Eduarda: “É uma alegria. Também, porque ela sempre foi inchada. Ela nunca estava magra e hoje ela está desse jeito. Até ela voltou a usar as roupinhas (risos). Terapeuta Rosa: “Que legal, Cláudia! Então você também quer celebrar? Ok! Mais alguém gostaria de compartilhar alguma preocupação...? Joana: “Eu também vou celebrar.” Terapeuta Rosa: Joana, vou pedir para que você seja mais breve, tá? É que o pessoal está falando demais! (risos) Joana: “Eu quero celebrar a minha volta à escola, depois de dez anos” Terapeuta Rosa: “Qual é o seu nome mesmo? Então você quer celebrar o seu retorno às aulas? É isso?” Joana: “Joana. Isso!” Terapeuta Rosa: “Ótimo! Então hoje é só alegria, né? (risos)” Joana: “Graças a Deus!” Terapeuta Rosa: “Mais alguém quer compartilhar alguma preocupação? Pode falar, viu, Laura. Você também pode (silêncio por alguns instantes). Bom, então, geralmente, a gente faz assim: na terapia, saem vários temas. A pessoa quer falar da preocupação de um filho... vários problemas. Hoje, o tema foi comum que é a alegria. Então, vou perguntar para quem não falou: qual é a sua alegria hoje? Qual a sua alegria de hoje ou o que faz você feliz? Acho melhor essa pergunta: O que faz você feliz?” Grasiele: “A minha alegria é poder estar aqui em Cuiabá estudando, continuando meus estudos, é poder participar daqui, estar aqui, conhecer pessoas novas, poder vir aqui no ambulatório, conhecer novas histórias, essa é a minha alegria!” Terapeuta Rosa: “O que te faz feliz?” Laura: “O que me faz feliz no momento? Assim, o que está me deixando mais feliz agora, no momento, é saber que eu estou terminando mais uma etapa da minha vida, que eu estou me formando para dar início a outras etapas. Eu me formo agora em maio, e isso me deixa muito feliz, assim, de saber que tô concluindo mais uma etapa e dar início a outras. Terapeuta Rosa: “Helena?” Joana: “Sabe, de ver eu fico bem, essa alegria que vocês estão sentindo...” Eduarda: “A maior preocupação da gente é o filho da gente. A gente tá sempre preocupada junto com eles. E daí, tem mãe que ainda supera para poder levantar eles... Agora, eu, sou o contrário. Não consigo passar essa força positiva pra ele...” Terapeuta Rosa: Helena, o que te faz feliz?” (instantes de silêncio) Terapeuta Rosa: “Passear, namorar? Fale se quiser, tá? Não é obrigada. e então, a pergunta é: o que faz você feliz? Mais alguém gostaria de falar? Cláudia: “Eu.” Terapeuta Rosa, pedindo licença para Cláudia: “Deixe-o falar. O que faz você feliz? Eduarda, para a criança: “O que faz você feliz?” Mateus: “Agora, o que me faz feliz é que a ultrassom não tem nada, está limpinha”. Terapeuta Rosa, para a criança: “O que te faz feliz é a ultrassom estar limpinha? É isso? Legal!” Cláudia: “O que me faz feliz em primeiro lugar, então, é ter saúde e ter força para aguentar meus três filhos, para poder criar eles. Porque meu pequenininho, também na gravidez, eu tomei vacina contra rubéola e eu não sabia. O médico disse que ele ia nascer com deficiência. Mas graças a Deus nasceu perfeito, deu nada. Isso pra mim é o que me faz feliz.” Terapeuta Rosa: “Helena, quer falar o que te faz feliz? Não? Então vamos levantar. Joana: “Quer descansar, né? (Risos) Eduarda: “Vamos!” Terapeuta Rosa : “Chega aqui, Laura, passo pra você (Grasiele).” Grasiele: “Então, a gente vai dar as mãos, vamos todo mundo dar as mãos. Como vocês deram as mãos? É sempre uma dando e uma recebendo, tá certo? Você tá só, só recebendo, é uma pra cima e uma pra baixo, porque na vida a gente tem que dar e receber, não é? E aí a gente vai cantar uma música assim: ‘ tô balançando mas não vou cair ...’. Por que que a gente não cai?” Cláudia: “Porque tem alguém do nosso lado nos apoiando.” Grasiele: “Isso. E eu gostaria que todo mundo falasse o que vocês levaram da roda de hoje.” Eduarda: “Para mim, foi aprendizado, porque por mais que eu tenha 32 anos e sou mãe de três filhos e casada quinze anos, eu nunca fiz o que a professora disse. Primeiro, as regrinhas, eu nunca segui essas regrinhas, entendeu? Eu vou aprendendo a cada dia que passa e eu amadureço, vou guardando para mim. E a razão do meu filho, você também me deu uma coisa, viu, meu filho? O que eu mais aprendi dessa roda foram as quatro regrinhas.” Cláudia: “E se eu falar igual ela? Isso é que veio na minha cabeça. E essa daqui (apontando para a filha), principalmente, tá demais, precisando, né, filha? De regras...” Grasiele: “Vocês conseguem falar em uma palavra só? O que vocês levam?” Joana: “Vou levar a determinação dessas duas.” Cláudia: “Vou levando o amor.” Eduarda: “Levar o prazer de estar com vocês, a força.” Mateus: “A felicidade de participar dessa roda.” Terapeuta Rosa: “Que legal! Vou levar a lembrança de quando eu era adolescente, como a Helena, eu era muito tímida, muito tímida.” Cláudia: “Ah, se fosse assim quando está em casa!” Terapeuta Rosa: “Ah é? (Risos) Grasiele: “E então, pra gente encerrar, vamos cantar uma música? Alguém sugere uma música?” Cláudia: “Eu não. Eu sou péssima!” Eduarda: “Eu também não sou boa de música.” Terapeuta Rosa: “Uma música de felicidade.” Grasiele: “Então vamos cantar a pipoca? Vocês conhecem a pipoca? Uma pipoca estoura na panela...” Terapeuta Rosa: “Aí vem o balezinho, tem o balé. Aí a gente canta, depois vem o balé. (Risos).” Grasiele: “Aí a gente vai de dupla, depois de trio, depois de quatro, até ir todo mundo. Se a gente conseguir ir todo mundo... Se você ficar com dor e não precisa pular, tá?” Foi feita a brincadeira, sendo que todos participaram e se divertiram, rindo muito. Eduarda: “Foi ótimo!” Grasiele: “Terapia comunitária é isso. Quem gostou, fala para os outros. Quem não gostou, conversa com a gente. A gente está tentando manter aqui, todas as quintas-feiras. Aí, se vocês vierem de novo, talvez a gente esteja aqui. Ah, eu vou entregar o termo de consentimento pra vocês e depois eu pego no corredor. 6 DISCUSSÃO DO MATERIAL EMPÍRICO 6.1 PRINCIPAIS INQUIETAÇÕES/TEMAS RELATADOS PELAS PESSOAS COM DRC SEUS FAMILIARES NA CONVIVÊNCIA COM A DRC Um assunto recorrente nas rodas de TCI realizadas foi a sobrecarga da família no cuidado. Ficou evidente a predominância do gênero feminino no cuidado, em geral, da mãe. Isso reforça que, ainda, pelo padrão cultural atual, o cuidado de doentes, idosos e crianças das famílias, comumente, se torna responsabilidade da mulher. Já as atividades para prover as condições financeiras da família têm sido mais comumente tidas como responsabilidade do homem. [...] nós precisávamos de um financeiro para eu dar até um conforto melhor para ele. Eu estava trabalhando numa empresa metalúrgica. Então, eu fui trabalhar numa usina hidrelétrica distante, eu querendo estar próximo da esposa para participar da gravidez [...] mas como eu estava longe, e isso foi acontecendo, até que eu desisti de ficar lá e vim embora (Marcelo, pai de um paciente). As práticas de cuidar se desenvolveram, inegavelmente, no contingente feminino da população e se afirmaram como tal justificadas falsamente, porque mulheres seriam dotadas de qualidades “naturais” para seu desempenho. Historicamente, o cuidado era designado às mulheres, desenvolvido em nível doméstico: realizado por mães, servas, escravas de leite, babás e governantas e ligado, em geral, ao aspecto materno, à nutrição e à educação das crianças. Posteriormente se estendeu para o cuidado de doentes da família e idosos (WALDOW, 2007). “No contexto brasileiro, desde os tempos da colonização, são as mulheres que mais se deparam com as adversidades, o processo de exclusão e as desigualdades” (BRAGA et al., 2013, p.84). [...] eu tive que sair do serviço pra cuidar dele. Saí, cuidei e a minha maior alegria é ele poder estar aqui, [...] você vê, eu vim do interior, é sofrido, saí duas horas da manhã para estar aqui e eu vinha duas vezes na semana para trazer ele (Fabiana, mãe de um paciente). Em momentos foi possível observar que a responsabilização pelo cuidado é tão intensa que, em muitas situações, os cuidadores se sentem culpados pela ocorrência de uma complicação na saúde da criança. E, frequentemente, essa responsabilização pelo cuidado é reforçada, ainda mais, pelos profissionais de saúde em seu contato com as pessoas cuidadoras, como se apresenta na narrativa a seguir: Eu chegava aqui e a doutora olhava pra mim e falava: mãe, o que você está fazendo? Entendeu? Eu falava nada [...] você não entende direito no começo, você acha que ela está te culpando, sabe? Em casa eu dava alguma coisa e falava para minha mãe que ele estava inchando, e ela falava: o que você deu pra ele? Tudo caía em cima de mim, tudo a culpada era eu [...] tinha dia que eu desanimava [...] faço uma coisinha errada já percebo. Eu faço aquele controle em casa com o xixi dele e se eu dou um refrigerante no outro dia eu já vejo a diferença (Ana, mãe de um paciente). Essa narrativa nos remete à reflexão de como os profissionais de saúde, em sua prática, podem gerar sofrimento para a pessoa cuidadora. Na busca pelas causas dos problemas de saúde ou pelo insucesso do tratamento, é comum haver uma tendência a se culpabilizar a pessoa cuidadora. Nesse contexto, pelo fato de a pessoa cuidadora ser, em geral, a mãe, esse sentimento de culpabilização é intensificado. Isso ocorre, especialmente, pelo modo como se realiza o processo de comunicação entre o profissional e os usuários (pacientes e cuidadores) no cotidiano dos ambulatórios, por exemplo. As consultas médicas tradicionais são limitantes para uma comunicação de qualidade, para um diálogo efetivo. Diferentemente do diálogo possibilitado durante uma roda de TCI, as consultas rápidas, a pouca ou não valorização do saber dos usuários, a centralidade e valorização do saber técnico médico podem provocar a ocorrência de intenso sofrimento dos cuidadores. Isso nos faz imaginar o quanto o cuidado de crianças com DRC e suas famílias poderia ser aprimorado se nele fossem incorporados os elementos e princípios presentes na TCI. Na infância, as condições crônicas estabelecem mudanças que envolvem o sistema familiar como um todo. “A família sente-se responsável em amenizar os efeitos da doença, de modo a promover um desenvolvimento e crescimento o mais satisfatório possível” (NÓBREGA et al., 2010, p.432). Isso transforma o cuidar em uma tarefa exaustiva, estressante e causadora de sobrecarga. A mãe, ao assumir o papel de cuidadora, atravessa dificuldades que vão além das novas demandas de cuidados e perpassam pelo aspecto emocional. Ela vivencia a ansiedade diante do diagnóstico do filho, passa por períodos de medo e incertezas, além de se adequar à nova realidade imposta pela condição da criança (ALMEIDA et al., 2006). Fiz tudo que era para ser feito [...] eu me emociono um pouco [..] todo medicamento que passam pra ele (choro) [...] quando chega o dia da consulta dele, eu não vou no meu serviço (Marcelo, pai de um paciente). Isso é porque quando ele ficou doente eu tinha um cuidado muito grande com ele. A pressão dele era para medir duas a três vezes, eu media cinco a seis vezes. Ele estava na escola, assim, a preocupação foi muita com ele. Eu acho que sobrecarregou demais (Carla, mãe de um paciente). Outro ponto significativo foi a abnegação por parte da família para uma melhor assistência e acompanhamento do tratamento da criança/adolescente. Isso demonstra que, apesar da sobrecarga e do desgaste, o amor e o afeto da família pela criança fazem com que todo sofrimento seja amenizado. A sobrecarga dos cuidadores é física, causada pelas mudanças nas atividades diárias, mas também emocional, pelo medo das complicações e até mesmo da morte da criança adoecida. Em uma das falas, os cuidadores admitem se colocar em segundo plano, priorizando o cuidado do filho. [...] com isso, foram se encadeando várias outras coisas em mim. Agora, eu estou cheio de dores, cheio de coisa. Mas só que, quando chega nesse dia da consulta dele, eu esqueço de tudo, esqueço dor, esqueço firma, esqueço todo mundo para vir consultar com ele. Meu maior pensamento está aqui. Eu só dou ouvidos para o que tem que fazer, o que eu tenho que fazer após isso. Se ele precisar de outro remédio, eu vou atrás. Se eu não tiver condição financeira, dou um jeito, mas eu faço de tudo para ele (Marcelo, pai de um paciente). [...] há três anos venho de Sorriso para cá, sempre por motivo de doença. E hoje eu estou aqui novamente, então isso traz muito desgaste. Isso me fez, também, ficar doente. Amanhã eu tenho uma consulta em que vou mostrar uma biópsia de medula óssea e estou muito preocupada (Márcia, mãe de uma paciente). Foi revelado na TCI que essa sobrecarga se eleva quando a pessoa cuidadora não tem um suporte dos outros membros da família, de amigos ou comunidade, afetando sua saúde física e emocional, como expressa a narrativa a seguir: E, neste período de tempo, eu sozinha, porque meu marido era alcoólatra, eu sozinha para fazer tudo. E eu tenho anemia crônica, esqueci de mim, esqueci por completo. O que me desse pra comer eu comia, se não desse eu não comia (Márcia, mãe de uma paciente). Diversos estudos sobre a experiência de cuidado a pessoas em condições crônicas destacam a importância do apoio à pessoa cuidadora, entre os quais alguns estudos locais de nosso grupo de pesquisa GPESC (BELATTO et al., 2009; NEPOMUCENO, 2011; ALMEIDA, 2012; LAGO, 2012; CORREA, 2012; SILVA, 2012; MUFATO, 2012; MUSQUIM et al., 2013; DOLINA, 2013; REIS, 2013 e SILVA, 2013). Para Bellato (2009), as redes para o cuidado em saúde podem se configurar como de apoio, sendo elas externas, menos densas e pontuais, ou de sustentação, quando se apresenta de forma a mais constante, tecida por relações mais próximas e íntimas e baseadas na afetividade. Essa última forma se mostra indispensável para a manutenção da saúde da pessoa cuidadora, o que não ocorre no caso de Márcia em sua tarefa de cuidar. Nos dias atuais, sentimentos como de solidão, descaso e desamor tornam-se cada dia mais presentes na sociedade, acarretando insegurança, baixa autoestima e tristeza a essas pessoas. O ser humano vai além das necessidades biológicas, necessitando também de atenção, cuidado, uma palavra de conforto e alguém que o acolha (SARAIVA, FILHA, DIAS et al., 2011). Para além das questões subjetivas que as pessoas expressam em suas falas quando relatam o cotidiano de cuidado, existem questões de ordem objetiva relacionadas às condições materiais de existência. Ressaltese que as pessoas atendidas no Ambulatório de nefrologia pediátrica são um público de grande vulnerabilidade socioeconômica, sendo que boa parte dos problemas vivenciados por elas se relacionam a essa condição. A desigualdade e a exclusão são fatores que geram a discriminação e o conflito nas relações, principalmente no que tange a grupos sociais constituídos, principalmente, em função de classe, sexo, raça, etnia e religião. A TCI emerge como um espaço de escuta, de fala, de partilha de experiências do cotidiano, contribuindo para a construção de uma nova forma de empoderamento do ser humano, sem buscar a identificação pelas fraquezas e carências dos participantes, mas proporcionando o despertar das características resilientes, geralmente desconsideradas para o enfrentamento das dificuldades (BRAGA et al., 2013, p.84). Considerando a condição cognitiva das crianças, seus sofrimentos ou inquietações manifestados na TCI são, predominantemente, relacionados ao momento vivenciado no presente. Já os familiares, como pessoas adultas, expressam angústias relacionadas também aos tempos passado e futuro. Enquanto as crianças não compreendem muitas vezes a dimensão de uma condição crônica em suas vidas, os familiares, além de lidar com o futuro incerto de seus filhos, muitas vezes se culpam, associam algum fato ocorrido durante a gestação ou no período em que a criança não apresentava a doença, com o fato de serem diagnosticadas com a DRC. É comum no ambulatório, principalmente por parte das mães, essa culpabilização pela doença do filho. Assim, eu me sinto angustiada, uma angústia muito grande. Tanto que eu tomo medicamento para tirar a ansiedade. Porque, assim, eu fico me perguntando a mim mesma o porquê de tudo isso? Então, isso me deixa muito angustiada (Márcia, mãe de uma paciente). O vínculo afetivo entre mãe e filho torna o cuidado com a criança uma experiência gratificante, ancorada em sentimentos de amor, respeito e em atitudes de altruísmo (BARBOSA et al., 2012). Hoje eu estou feliz, porque já tem um ano que eu estou tentando uma vaga para ela aqui [...] foi difícil conseguir e agora eu consegui e espero que melhore cada vez mais (Fernanda, mãe de um paciente). Ficaram evidentes sentimentos de carinho, amor, afeto, presentes entre os familiares e as crianças e adolescentes. Apesar das diversas dificuldades encontradas por eles para que seus filhos tenham um atendimento adequado, isso de certa forma os aproximou mais. A maior demanda de cuidados, as adequações nas atividades diárias, os medos e incertezas quanto ao futuro dessas crianças fizeram com que seus pais demonstrassem mais a gratidão que sentem por ter seus filhos estáveis, encontrando um padrão de normalidade na convivência com uma condição crônica. Esses sentimentos estavam evidentes nas falas, nos gestos, no toque. Em diversos momentos das rodas, percebia-se o amor com que se olhavam, tanto dos pais para com as crianças, como das crianças que admiravam, atentas a tudo o que seus familiares expressavam nas rodas. Os abraços, beijos e toques que ocorrem durante as dinâmicas só reforçaram esses sentimentos presentes nas relações familiares-filhos. Como afirma Camarotti (2013), o aprendizado proveniente da experiência vivenciada tem sido a mola propulsora do crescimento do ser humano, tanto individual como da sociedade como um todo. Ressalta ainda que emoções positivas como a solidariedade, o amor e a compaixão favorecem a construção da resiliência. No transcorrer das rodas, ficou evidente a capacidade de resiliência dos participantes. Barreto e Lazarte (2013) afirmam que no decorrer das rodas de TCI uma rede começa a ser tecida e as pessoas vão construindo uma autonomia, tornando-se menos dependentes de remédios e instituições, sendo mais resilientes frente às adversidades. A minha alegria hoje é ver meus filhos bem, tenho uma (filha) de dez e meu filho de doze. Tem um ano e pouco tomando remédios de depressão e, graças a Deus, eu não tomo mais (Sônia , mãe de um paciente). Sob essa perspectiva, reforça-se a relevância da TCI como espaço de partilha de experiências com outras mães em situações semelhantes, no qual poderão compartilhar sentimentos e vivências, fornecendo segurança e auxiliando-as a lidar com as incertezas geradas pela condição da criança. Reiteramos a capacidade dessas mães de serem resilientes ao estabelecerem adaptações necessárias para conviver com a DRC de seus filhos. Neste sentido, a TCI vai além de um espaço de partilha, configurando-se também como um espaço de reflexão, renovando a dinâmica interna de cada indivíduo, contribuindo para a melhora da autoestima dessas pessoas, podendo ser vista como mais um dispositivo para consolidação dos ideais de promoção, prevenção e recuperação da saúde, preconizados pelo do SUS (SOUZA et al., 2011). 6.2 A ENFERMEIRA NA CONDIÇÃO DE TERAPEUTA COMUNITÁRIA E AS PARTICULARIDADES DE SUA ATUAÇÃO NO GRUPO A terapeuta que conduziu essas rodas era enfermeira, e o cuidado como ela conduziu os gestos e suas falas condiz com o modo de fazer a enfermagem na clínica da saúde coletiva e da saúde mental, em que o enfoque do cuidado é a pessoa na sua integralidade. A TCI, na qualidade de tecnologia de cuidado, permite a ampliação do cuidado em relação ao outro e a si próprio. Ao mesmo tempo em que o terapeuta medeia a terapia para os outros, ele está fazendo terapia para si também. A experiência clínica em nefrologia pediátrica/familiaridade com o cuidado nos momentos mais graves/internação, bagagem que a formação em enfermagem propicia, fez com que a terapeuta lidasse com mais tranquilidade/naturalidade com os problemas apresentados. Não só a enfermagem foi diferencial para a TCI, bem como a TCI fez com que a terapeuta refletisse sobre seu modo de cuidar e sobre a importância do acolhimento/da escuta no cuidado. Suas formações (enfermeira e terapeuta comunitária) agregaram valor mutuamente na sua atuação profissional, ou seja, seus conhecimentos clínicos e científicos colaboraram na forma como ela conduz a TCI, bem como todo conhecimento adquirido com as experiências e as sabedorias partilhadas na roda lhe trouxeram uma maior sensibilidade na escuta, no acolhimento e na formação de vínculos com as pessoas às quais presta cuidados na condição de enfermeira. Retomando o que foi discutido no referencial teórico, a Enfermagem está centrada no cuidado, que vai além da técnica, somando valores e atitudes que estreitam os laços, com pactos de ética e confiança. A TCI vem ao encontro desta nova conformação do cuidar, ao possibilitar um espaço em que os participantes, que muitas vezes não são ouvidos, se expressam, gerando sentimentos de valorização e elevação da autoestima, o que implica promoção da autonomia e desenvolvimento de competências e habilidades para a superação de conflitos e adversidades. A TCI corrobora o sentido proposto por Ayres (2010) de cuidado como uma designação de uma atenção à saúde imediatamente interessada no sentido existencial da experiência de adoecimento, físico ou mental e, por conseguinte, também nas práticas de promoção, proteção ou recuperação da saúde (AYRES, 2010). Devemos sempre nos ater ao ser humano a ser cuidado em sua complexidade. Na visão moriniana, ele é percebido como um ser único e múltiplo: único ao considerar, além do fator genético, a singularidade em suas relações, pensamento e subjetividade; múltiplo, devido à diversidade humana e às relações que ele desenvolve com a sociedade; e o uno e múltiplo, porque os seres humanos interagem entre si de maneira que se entrelaçam (MORIN, 2000, p.55). A intersubjetividade e os conhecimentos do terapeuta influenciam na dinâmica da TCI, pois, embora tenham uma metodologia demarcada, a formação e a experiência de vida do terapeuta influenciam ao fomentar autonomia, despertar discussões mais críticas e no empoderamento dos participantes. Considerando a TCI uma prática de ensino-aprendizagem, fundamentada na Pedagogia de Paulo Freire, podemos dizer que a partilha de experiências nas rodas de TCI possibilita o aprendizado significativo ao respeitar os diversos saberes, a singularidade/complexidade dos participantes, reconhecendo sua identidade cultural; ao incitar a criatividade, estando aberto ao novo e rejeitando qualquer forma de discriminação. Faz-se necessária, para que ocorra um processo de aprendizado satisfatório, a compreensão de que para ensinar é necessário escutar o outro, exigindo a disponibilidade para o diálogo, estimulando os participantes na tomada de decisões e na promoção da autonomia. Cada terapeuta tem suas vivências e, em certos momentos, sai do papel de mediador/condutor da roda e deseja partilhar suas experiências. Apesar de o protagonismo da TCI ser da comunidade, existem momentos em que se torna pertinente o compartilhamento de histórias particulares da terapeuta. As próprias rodas de terapia comunitária são permeadas de incertezas, tendo somente como regras fazer silêncio; falar sempre na primeira pessoa; não dar conselhos, não fazer julgamentos; e propor músicas, poemas, piadas, histórias que tenham relação com o tema que está sendo partilhado. O que ocorre é não sabemos qual rumo a TCI vai tomar, e este não saber nos remete à noção moriniana de ecologia da ação, que traz que toda ação humana, uma vez iniciada, escapa da mão de seu iniciador, sofre interferências do meio externo, que é incerto, podendo se desviar de seus objetivos, resultando em ações que podem ser contrárias ao esperado (MORIN, 2003). Em uma das rodas, de forma imprevista, depois do acolhimento, permaneceram apenas uma mãe e uma criança na roda. Considerando a falta de participantes para a partilha de experiências, a terapeuta considerou oportuno que compartilhasse sua própria vivência, de modo que aquele momento se tornasse mais significativo para aquelas pessoas. Note-se, também, que a terapeuta faz a TCI para si, inclusive. Eu perdi uma filha, ela tinha quatro anos, foi um atropelamento dentro do condomínio de casa, do meu prédio. Eu senti, achei que eu não ia dar conta não, a gente não imagina. É o mesmo que dizer, assim, uma dor que não tem nome, porque diz que a história de uma mãe que tinha perdido um filho, porque quando um filho perde uma mãe é órfão, quando você perde o marido, você fica viúva, quando você perde um filho, não tem nome, não existe nome pra isso, e realmente é uma dor imensa, não tem nome, e achei que o mundo fosse acabar mesmo. Isso foi em 1999, e antes disso, meses atrás tinha vivido a situação de uma amiga que tinha perdido um filho e eu, conversando com meu marido, falava como consegue viver? Achava que jamais ia conseguir, e a mesma coisa aconteceu com a gente, eu achei realmente que não ia sobreviver (Terapeuta). O terapeuta comunitário deve estar ciente de seus objetivos e limites, não assumindo o papel de especialista. Deve trabalhar sempre na perspectiva da inclusão, da competência e das possibilidades dos participantes. Sua função é fomentar perguntas, levantar a dúvida, a inquietação, para que o participante reflita sobre sua história e reconstrua seu sistema gerador de sofrimento, para que anseie construir novos vínculos de bem-estar, confiança e vida (ABDALA-COSTA, 2011). As pessoas, de acordo com Canguilhem (2000), têm “modos de andar a vida” que emergem do próprio modo como a vida se reporta coletivamente e das singularidades intrínsecas de cada ser humano. “Encontros coletivos (rodas) convidam pessoas a partilhar dificuldades e superações, tendo o terapeuta comunitário como facilitador, com isto, potencializa os recursos de cuidado, acolhimento e saúde da própria comunidade” (BRASIL, 2008, p.52). A TC procura valorizar a cultura popular, evidenciada tanto pelos seus eixos teóricos, como por suas regras. Exemplo disto são os ditados e as músicas que reforçam a experiência de vida, gerando competências e habilidades que promovem um benefício coletivo. A proposta de utilizar diversas atividades lúdicas como dança, músicas e brincadeiras torna o ambiente mais acolhedor, deixando o participante mais à vontade para falar, interagir. Possibilita de forma mais acentuada que o participante aprenda algo com as informações/experiências compartilhadas naquele ambiente. Lembrei-me de outra música, aquela que fala assim: Ei dor, eu não te escuto mais. Você não me leva a nada. Ei medo, eu não te escuto mais. Você não me leva a nada. E se quiser saber pra onde eu vou, pra onde tenha sol, é pra lá que eu vou (Terapeuta). Sabe como se forma a pérola? Cai dentro da ostra um grãozinho de areia, e aí esse grãozinho de areia machuca a ostra e ela vai soltando uma gosma (que a gente chama de nácar) e essa gosma vai envolvendo o grãozinho de areia, vai envolvendo, vai envolvendo e forma a pérola. Então, a pérola é fruto do sofrimento da ostra. Então, olha só: o seu filho está se transformando em uma pérola, assim como a senhora se transformou. Qual que é a sua pérola hoje? É ser essa avó, essa mãe...e então, pense nessa história. Às vezes, a gente quer proteger muito (e a gente deve proteger mesmo). Mas o sofrimento também tem um componente importante, que é deixar as pessoas crescerem (Terapeuta). Essa história da pérola eu acho uma das mais lindas do mundo, um grãozinho de areia que machuca a ostra e a ostra vai envolvendo, envolvendo, envolvendo, até formar uma coisa linda, nobre. Seu filho é a coisa mais linda do mundo (risos) (Terapeuta). Ficou evidente a importância de o terapeuta valorizar as histórias, elevar a autoestima (conotação positiva), reforçar a confiança dos participantes, pois isso auxilia essas pessoas a ressignificar suas experiências, a se sentir capazes de resolver seus problemas. Aí eu nasci e o médico falou: seu filho vai ser especial (Marcelo, pai de um paciente). E é mesmo, né? (risos) (Terapeuta). Gente, vamos bater palmas (todo mundo bate palmas). A mãe que estava falando fica emocionada. Muito bom, obrigada, meninas (Terapeuta). Camarotti (2013) reforça a autoestima saudável como fermento para resiliência ao auxiliar no processo de superação de sofrimentos e dificuldades. No momento em que o terapeuta valoriza as histórias, fortalece a confiança dos participantes, auxiliando as pessoas a descobrir seus potenciais na busca de qualidade de vida. Isso gera um empoderamento no sujeito, promovendo maior autonomia no seu cuidado a saúde. Hoje, eu quero agradecer muito (as pessoas que compartilharam suas experiências), por terem trazido suas histórias e por meio das histórias de vocês ter permitido que a gente refletisse um pouco sobre nossas conquistas, alegrias nessa vida de batalha de saúde que não é fácil, né? Mas a gente consegue. Vocês conseguiram superar todas as adversidades e quem não superou, está no caminho da superação (Terapeuta). Quero agradecer a (Márcia, mãe de uma paciente) e a (Larissa, paciente) por terem vindo, terem falado suas experiências, suas vivências, por terem se aberto com a gente. E dizer que eu fiquei muito emocionada mesmo, muito tocada pela sua força, pois não fácil viver tantas angústias e, ainda assim, ser firme e forte, ainda ser o esteio da família (Terapeuta). Outro aspecto importante a se destacar é que, em terapias comunitárias com a presença de crianças, o terapeuta necessita apurar sua perspicácia e sensibilidade para ouvi-las de forma atenta e, especialmente, de forma simétrica, valorizar sua fala e seus sentimentos. Na primeira roda de terapia comunitária, a criança Gabriel partilha suas inquietações: Um paciente, a criança Gabriel, então, diz: “Quando eu vejo alguma coisa na televisão que é do mal, que dá medo em mim, quando fico com o olho fechado e vou sonhar, fico com medo, levanto da cama e vou lá pra sala.” A terapeuta indaga: “Você tem medo então? Medo de alguma coisa que passa na televisão?” Ele balança a cabeça em sinal positivo. A terapeuta continua: “Você quer falar um pouquinho sobre isso?”. Gabriel balança a cabeça em sinal negativo. Inicia-se então o próximo momento da TCI, a contextualização e a problematização. A terapeuta explica: “Hoje três pessoas falaram, a Ana, o Marcelo e a Lívia. Todos quiseram compartilhar a alegria pela cura ou pela saúde dos seus filhos.” (Primeira roda de TCI) Gabriel trouxe claramente uma situação para a roda de TCI, o medo de alguns programas de TV, os quais, inclusive, lhe tiravam o sono. Entretanto, a criança não teve interesse em explicar melhor sua experiência. Apesar de Gabriel não desejar explicitar melhor suas inquietações, a TCI teve uma avaliação positiva também para ele, visto que ele expressou, ao final, como bagagem, o “amor”. Para a enfermeira, na condição de terapeuta comunitária, as particularidades da sua atuação no grupo, a sensibilidade para acolher e mediar as experiências compartilhadas pelo grupo ficaram evidentes não só na fala, mas também nos gestos, no olhar. Sua postura influenciou na qualidade com que as rodas foram conduzidas e nas repercussões da sua utilização como um instrumento de cuidado complementar, possibilitando um atendimento mais integral e humanizado. 6.3 REFLETINDO SOBRE A TCI COMO INSTRUMENTO DE CUIDADO PARA PESSOAS COM DRC E SEUS FAMILIARES Os dados demonstraram que a TCI representa uma estratégia efetiva de cuidado para crianças e adolescentes com DRC e seus familiares, sendo que a centralidade desse cuidado está na partilha de experiências e na sua resultante ressignificação para os participantes. Observamos que a metodologia da TCI (regras e etapas) favorece e estimula a interação entre os membros participantes, e este processo de interação contribui para que as pessoas se sintam confiantes e à vontade para expressar suas angústias e sofrimentos. Os participantes compartilham suas histórias bem como as adequações efetivadas no cotidiano diante das necessidades de saúde e suas estratégias de superação. Observamos que as famílias que estão com as crianças em tratamento há mais tempo promovem aumento da confiança através de suas vivências e experiências de famílias que estão com seus filhos no início do tratamento. Nossa, eu já sofri demais, eu achava que não ia ter jeito, cada vez parecia que ele piorava mais e mais. Antes, para eu vir pra cá (ambulatório), era um sofrimento. Hoje, eu venho toda feliz porque eu sei que a cada dia ele está melhor. Para mim, hoje, ele está curado (Ana, mãe de um paciente). O cuidado da TCI está presente essencialmente no diálogo, elemento que concretiza a simetria da relação entre cuidadores e seres cuidados. Aliás, nessa relação, todos são cuidadores e todos são seres cuidados. O diálogo nas rodas de TCI permite o compartilhamento de sabedorias entre os participantes que, ao mesmo tempo em que ensinam com suas experiências e conhecimentos, aprendem ouvindo as experiências dos outros e também ouvindo suas próprias experiências. Isso porque no momento em que a pessoa conta sua vivência passada - agora já com a possibilidade de ter certo distanciamento dela pelo tempo - também consegue refletir melhor sobre ela. Pode-se dizer que as pessoas, na TCI, ensinando e aprendendo com o outro e consigo, também cuidam e são cuidadas com o outro (em comunhão, como diria Paulo Freire). Ressaltese que, para Paulo Freire (2001), o diálogo está fundamentado no amor. Ele (filho) nasceu uma criança perfeita e quando ele tinha um ano e seis meses, começou a inchar, inchar... Levei no médico, começou o tratamento, mandou ele pra cá, aí deu que ele era nefrótico [...] eu entrava em crise, ninguém podia olhar pra mim que eu queria derrubar tudo [...] graças a Deus, de dois anos pra cá, ele teve só uma internação no início desse ano [...] meu sonho era ele sair do corticoide e ele saiu [...] agora já vai pra seis meses [...] Estou feliz demais, ele continua em tratamento, que é o regime de boca, que faz muita diferença, muita, muita diferença mesmo, a boca é tudo. Quando eu vejo mãe falando que as crianças fazem regime de boca, parece bobeira, mas não é, é uma coisa essencial (Ana, mãe de um paciente). Compartilhar também a felicidade, a alegria, porque nosso filho está bem visualmente, mas com certeza até na saúde dele, do tratamento que ele está fazendo, por causa da desilusão que a gente teve quando ele nasceu [...] tivemos fé em Deus e procuramos outros caminhos, ajuda de outras pessoas, outros lugares [...] não tem como ficar triste com uma coisa mais linda dessa. Então, meu motivo de felicidade é ele, tudo é pra ele e é isso que me faz feliz! (Marcelo, pai de um paciente). A TCI se apresenta como instrumento para aliviar as angústias geradoras de estresse, ao imprimir a sensação de liberdade e acolhimento aos participantes. O desabafo traduz o sofrimento, os significados que uma vivência adquire para aquela pessoa, especificamente. A possibilidade de transmitir os conhecimentos provenientes do adoecimento é a pérola que se oferece ao mundo. O bem-estar gerado ao doar esse aprendizado é força motriz para novas superações e aprendizados. A pessoa resiliente tem como característica essencial o anseio de transmitir o que aprendeu e como superou (CAMAROTTI, 2013). A roda de terapia favorece um aprendizado, que se estabelece de maneira horizontal, em que as experiências vivenciadas são compartilhadas e o contexto, a cultura e os saberes dito populares na perspectiva científica são valorizados. É este tipo de aprendizado que se opõe ao saber bancário, como colocado por Paulo freire (pedagogia da autonomia), isto é, o saber que não estabelece relação, que se preocupa com a informação, negligenciando o contexto e os saberes populares, que contribui para o estabelecimento de estratégias pelos familiares e paciente que amenizam o sofrimento. [...] a médica foi nos atender e falou coisas que, na minha opinião, ela, por ser uma profissional, não devia ter falado. Falar que não tinha mais jeito e já se contentar com isso, e que não caberia mais a ela fazer o que deveria ser feito? Acabou o chão, né? Como? Minha criança está, aí, bem, mamando, fazendo tudo o que é normal, e a pessoa fala que não tem mais o que fazer, falando que não ia ter mais filho? (Marcelo, pai de um paciente). O saber vertical impossibilita ou desfavorece a interação entre o ser cuidado e o cuidador, o sujeito sente dificuldade de expressar as insatisfações e incertezas por ter o sujeito que lhe transmite a informação como detentor do conhecimento. Tal situação é diferenciada na roda de terapia, e apesar de existir a presença do terapeuta com formação superior, ele se coloca em relação de igualdade e como o sujeito que aprende ao escutar as dificuldades e anseios dos sujeitos. Minha mãe está emocionada ainda [...] eu acho que ela não fala, mas quando eu nasci, na verdade, eu acho que não era nem pra eu ter nascido, né? Não estava no planejamento. Naquele tempo, não sei como era o tratamento, eu nasci e o médico falou: seu filho vai ser especial [...] tive que fazer uma transfusão de sangue, aí foi aquela guerra atrás de um doador de sangue e o médico falou: seu filho não vai muito longe, tá muito fraquinho, não sei o que... E olha agora o tamanho do filho! (Marcelo, pai de um paciente). Outro aspecto relevante da roda de TCI é o fato de permitir que as pessoas se identifiquem com o problema do outro. Essa empatia foi recorrente nas rodas realizadas com a preocupação evidenciada pelas mães com o início da adolescência de seus filhos, nas narrativas seguintes: [...] estou muito feliz porque meu filho, também, vem só progredindo, melhorando bastante. Mas eu tenho uma preocupação [...] na escola ele está bagunçando mais, eu nunca tinha reclamação. Eu sei que foi depois da enfermidade que ele teve, e ele vem ficando mais teimoso (Carla, mãe de um paciente). Me identifico com ela (Carla), dela se preocupar com o filho chegando à adolescência, é assim mesmo. Eu também tenho um filho chegando na adolescência. Teimosos, acham que são os donos da razão e me preocupa também (Sônia , mãe de um paciente). A TCI incita as pessoas participantes a expressar seus sentimentos sem risco de serem julgadas. Através da partilha de experiências, são apresentadas possíveis estratégias para a superação dos sofrimentos do cotidiano, o que possibilita à comunidade descobrir, entre si, soluções para seus problemas (BARRETO, 2008). Ao ouvirem as experiências de outros participantes, as pessoas têm a possibilidade de descobrir meios de superação das adversidades. No ambulatório de Nefrologia Pediátrica, acentua-se esse aspecto, visto que as situações se assemelham - os sofrimentos, as dificuldades e os percursos realizados para o tratamento das crianças -, o que permite que, além de se identificarem com os problemas alheios, as pessoas descubram outras formas de superação das adversidades. Eu descobri que eu tinha forças, mas eu procurei ajuda mesmo. Hoje aprendi que quando eu sofro, eu tenho que buscar ajuda e, às vezes, tem que ser ajuda profissional, mas pode ser ajuda de outras pessoas. Eu consegui ajuda logo, eu fiz sessões de terapia que me ajudaram a superar. O que me ajudou foi conversar muito com as pessoas, escrever bastante, passei muito tempo escrevendo sobre a experiência, e perguntando pra mim mesmo o sentido da vida, o sentido da morte. [...] Todas as coisas são possíveis se superar quando existe amor [...] Tenho buscado superar as dificuldades a partir disso, com a expressão do amor. Eu poderia desmoronar, mas eu consegui, eu superei (Terapeuta). [...] foi uma bênção, depois que ela veio pra cá a pressão dela está sempre boa. Para quem vem de 15 em 15 dias, quem ficou três meses dentro do hospital, e saía só pra respirar um pouco, hoje eu estou no céu [...] O que me faz feliz, em primeiro lugar, então, é ter saúde e ter força [...] para poder criar eles (filhos) (Cláudia, mãe de um paciente). A minha alegria hoje é ver esse guri lindo aqui (ele coloca o irmão dele no colo), ver esse carinho que cada um tem pelos seus entes queridos, carinho da mãe e dos filhos. Assim, esse valor cada vez mais, precisa ser repassado, porque, cada vez mais está se perdendo. Quando a gente pensa que as coisa mais simples estão sendo esquecidas e ver vocês lutando pela saúde de cada um, isso é muito importante (a mãe dele começa chorar e todos se emocionam. Outra mãe também chora e o seu filho a abraça) (João, irmão de um paciente). Diferentemente de outras atividades educativas em saúde, na TCI, o protagonismo do cuidado é da comunidade, sendo que cada participante é seu próprio terapeuta. Todos têm o mesmo poder de fala. Apesar da diversidade de conhecimentos, todos são igualmente valorizados, sem distinção do saber popular e científico. Essa relação de o participante da roda de terapia comunitária ser ao mesmo tempo participante e seu próprio terapeuta nos remete ao princípio recursivo da complexidade, “onde os produtos e os efeitos são, ao mesmo, tempo causas e produtores do que os produz” (MORIN, 2011, p.74). Ao realizar este movimento, o participante se ‘torna seu terapeuta’ no momento em que ele consegue refletir sobre o tema e realizar um exame crítico da sua situação, e isto se configura na noção moriniana de autoexame, definido por Morin (1999, p.122) como o ato de “incluir em toda observação a autoobservação, em todo o exame o autoexame, introduzir em todo o conhecimento a vontade de autoconhecimento do conhecimento”. Freire (2001, p.53) também afirma a importância da reflexão na conscientização ao afirmar que “os homens são capazes de agir conscientemente sobre a realidade objetivada. É precisamente isto, a ‘práxis humana’, a unidade indissolúvel entre minha ação e minha reflexão sobre o mundo”. No caso da TCI, acreditamos que as rodas de conversa possibilitam o autoexame dos indivíduos por meio das rodas de discussão, ao permitir o exercício da autorreflexão sobre os temas apresentados também por outros participantes, que, muitas vezes, se assemelham com sua realidade. A partir destas reflexões, o indivíduo tem a possibilidade de modificar suas práticas, se autocorrigir, ressignificar suas vivências. Especificamente no Ambulatório de Nefrologia Pediátrica, ao discutir as experiências nas rodas, os familiares das crianças compartilham também o itinerário terapêutico realizado por eles, o percurso desde a descoberta da doença até a atualidade, as dificuldades encontradas, as adequações nas atividades diárias, o que possibilita aos familiares que iniciam o tratamento de suas crianças um apoio/conforto, ao mostrar que é possível superar as adversidades de uma doença renal crônica na infância. A TCI tem o intuito de prevenção e promoção à saúde, através da instituição de espaços coletivos de partilha dos sofrimentos, enfrentando fatores estressantes que trazem riscos à saúde da população (BRASIL, 2008). Buss (2009) conceitua a promoção da saúde como o protagonismo dos determinantes gerais na produção das condições de saúde, ou seja, a saúde é fruto de um extenso espectro de fatores relacionados com a qualidade de vida que, no sentido amplo, se caracteriza por construir ambientes favoráveis ao desenvolvimento da saúde, reforçando a capacidade de indivíduos e comunidades, empoderando-os no estabelecimento de uma vida saudável. A partir do momento em que uma pessoa reconhece no outro - seja ele um familiar, vizinho ou amigo - um recurso com o qual pode contar, gera-se uma menor dependência das instituições, sente-se menos oprimida pelos próprios problemas e, consequentemente, mais autônoma. Perceber que meu sofrimento não é somente meu, mas de tantos outros, permite às pessoas ressignificar seus problemas, receber o apoio do grupo, criar novos vínculos e construir nova rede de apoio, favorecendo a autonomia, a autoestima e a corresponsabilidade (BRASIL, 2008). A rede tecida com a realização da TCI é composta de elementos que compõem os pilares teóricos dessa tecnologia de cuidado. Algumas noções do pensamento complexo de Edgar Morin se relacionam às potencialidades que a TCI proporciona. Observamos que a autonomia proposta por Morin se estabelece por meio da dependência, estando tal dependência relacionada ao meio cultural, social e político, entre outros. A roda de TCI promove interação entre sujeitos e, consequentemente, um sujeito se estrutura e se reestrutura a partir da experiência do outro, experiência esta que se relaciona a um saber e ações da equipe de saúde, ao espaço de saúde, às condições do lar, às experiências espirituais, entre outros. Deste modo, temos uma relação de teia que se origina de múltiplas dependências e de múltiplas interações. A teia é constituída pelos saberes e experiências partilhadas em grupo, traduzida em uma relação complexa de diferentes saberes e experiências. O compartilhamento possibilita tecer junto significados da complexidade, novas estratégias para amenizar e superar os obstáculos (MORIN, 2005) Seguindo a lógica da complexidade no contexto da terapia comunitária, percebemos que a dinâmica com ela acontece e se estabelece de maneira recursiva, pois a troca de experiência permite aprender e ensinar ao mesmo tempo. Assim, o sujeito participante é ao mesmo tempo produto e produtor, causa e efeito, sentido que traduz um processo recursivo, isto é, o mesmo produto de uma experiência proveniente das necessidades e dificuldades de saúde e produtor de novos aprendizados que são significados por outros integrantes do grupo (MORIN, 2011). As significações das experiências pelos integrantes do grupo se articulam de modo a promover o conhecimento pertinente, que articula diferentes conhecimentos: o conhecimento proveniente da sua experiência como familiar e paciente, que vivenciam o processo; o conhecimento proveniente das experiências do outro; o conhecimento proveniente do saber cientifico, que é traduzido pelos profissionais de saúde; e o conhecimento proveniente do contexto no qual está inserido (MORIN, 2005). O processo saúde-doença, como representado nas falas, denota incertezas, e tais incertezas favorecem a busca pela ajuda mútua de estratégias que possam ser eficazes nos momentos em que as incertezas se traduzem em angústias e sofrimentos. A incerteza é colocada por Morin (2000) como um elemento inerente às relações e condições humanas, pois todo e qualquer tipo de ação comporta situações de erros e incertezas, sendo tais elementos definitivos na área da saúde tanto para situações de vida quanto para situações de morte. A morte muitas vezes está associada a falhas de alguma ação que foi incerta. O grupo de TC possibilita enfrentar e trabalhar situações de incertezas que permeiam o processo saúde-doença. Eu não entendia nada, era crônico, né? Daí, falava crônico, eu já pensava: vai morrer! Cada vez que inchava e internava, ficava cada vez pior, ia pra casa, voltava. Foi por assim três anos, mas labutando mesmo, eu entrava em desespero e era praticamente eu sozinha para correr atrás de tudo. Foi muito difícil, nossa, como foi difícil! Tinha hora que dava vontade de falar assim: eu não vou dar mais medicação, vou largar, eu chegava nesse ponto, entendeu? (Ana, mãe de um paciente). Diante do exposto, intencionamos demonstrar de maneira ilustrativa os elementos que permeiam a terapia comunitária bem como os elementos complexos que a constituem. A teia tecida na Figura 1 relaciona as características da TCI, presentes no círculo central, com as características do pensamento complexo que compõe o círculo externo. Figura 1: Figura comparativa entre características da TCI e do pensamento complexo. Recursividade Conhecimento pertinente Compreensão humana Incertezas Criatividade Ajuda mútua Resiliência Antropologia cultural TCI Pedagogia de Paulo Freire saber científico" e "saber popular" Autopoiesis contexto Autonomia Complexidade * Fundamentado na tabela apresentada por Abdala-Costa (2011) em Terapia Comunitária Integrativa e o Pensamento Complexo: os sete saberes necessários à rede solidária. p.133. Como podemos observar, a TCI é permeada de elementos que enriquecem o resultado causado nos participantes que a realizam. Ao participarem de uma roda de TCI, as pessoas são incitadas a desenvolver competências e saberes como autonomia, resiliência, ajuda mútua, pelo fato de essa tecnologia de cuidado considerar o sujeito na sua complexidade, inserido em um contexto, valorizando os diversos saberes, considerando as incertezas e tendo criatividade para superá-las. O que eu tô levando daqui hoje? (Terapeuta) Experiência, muito mais experiência. Os problemas de um, problema do outro, todo mundo aprende, é experiência no meu caso (Luzia, mãe de um paciente). Eu tô levando muita alegria, de muitas crianças que só está alcançado o que quer, e a vitória é melhor, lutando, sofrendo, a gente chega lá (Fabiana, mãe de um paciente). Eu estou levando a experiência da vitória! (Fernanda, mãe de um paciente). Experiência! (Sônia, mãe de um paciente). Força, a gente pensa que os nossos problemas são grandes, mas tem gente que tem maiores (Íris, mãe de um paciente). Alegria, porque a cada dia a gente vai tentando e vai conseguindo. Cada dia a gente fica mais feliz! (Fernanda, mãe de um paciente). Eu tô levando esperança! Meu filho vai melhorar (diz olhando para o filho, que retribui sorrindo) (Carla, mãe de um paciente). Este apoio entre as famílias e a ajuda mútua que há entre elas nos remetem à noção moriniana de autonomia, a qual se alimenta de dependência. Para o autor, ao dependermos, por exemplo, de educação, cultura e da sociedade para sermos autônomos, necessitamos também de uma rede de múltiplas dependências, visto que dependemos destas inter-relações (MORIN, 2011). Por ser uma doença crônica, estas crianças, adolescentes e famílias, ao fazerem o tratamento no ambulatório, na sala de espera, interagem ente si e, neste conversar, trocam experiências, informações e se apoiam mutuamente. Com a TCI nesse ambiente, a interação e as trocas são fortalecidas e incrementadas, considerando as características de sua metodologia, que promovem o diálogo horizontal e circular, valorizando todos os participantes, suas sabedorias e singularidades. Para Freire (1996), a autonomia, na condição de amadurecimento do ser para si, não ocorre em data marcada. É um processo de reflexão e aprendizado que deve estar pautado em experiências que estimulem a tomada de decisões e de responsabilidade. “A singularidade da Terapia Comunitária reside na capacidade de trabalhar com as contradições, com a pluralidade de percepções, condutas e códigos. A Terapia Comunitária é um exercício permanente de inclusão e valorização das diferenças” (BRASIL, 2008, p.63). As conexões que se estabelecem durante todo o processo desenvolvido permitem que os participantes se organizem sistematicamente numa rede de trocas interativas que os coloca em relação uns com os outros, num jogo de ação, emoção e reflexão (CAMAROTTI, 2007). O que eu estou levando daqui hoje? (Terapeuta) Experiência (Marcelo). Amor (Maria). Carinho (Ana). Amor (Lívia). Amor (Gabriel). O que eu estou levando desta roda hoje? Pode ser uma palavra só (Terapeuta). Confiança, felicidade (Márcia, mãe de uma paciente). Eu estou, também, levando força (Larissa, paciente). Sabe, de ver eu fico bem, essa alegria que vocês estão sentindo (Joana, funcionária do HU). A TCI como um espaço de aprendizado através do diálogo horizontal e circular fica evidente na fala abaixo. Ancorados nas ideologias de Paulo Freire, podemos afirmar que esse aprendizado acontece simultaneamente, pois ao mesmo tempo em que um compartilha experiências/ensina, também está aprendendo. Todos os saberes são valorizados, sendo eles populares ou científicos, e essa é a riqueza presente nas rodas, a apreciação da diversidade cultural, o respeito às diferenças. O que eu tô levando daqui hoje? (Terapeuta) Pra mim, foi aprendizado, por que por mais que eu tenha 32 anos e sou mãe de três filhos e casada há quinze anos, eu nunca fiz o que a professora disse. Primeiro, as regrinhas. Eu nunca segui essas regrinhas, entendeu? E eu vou aprendendo a cada dia que passa eu amadureço. Vou guardando para mim e a razão do meu filho. Você também me deu uma coisa, viu meu filho? O que eu mais aprendi dessa roda foram as quatro regrinhas (Eduarda, mãe de um paciente). E se eu falar igual ela? Isso que veio na minha cabeça. E essa daqui, principalmente, está demais, precisando, né, filha? De regras (Cláudia, mãe de um paciente). Vou levar a determinação dessas duas (Joana, funcionária do HU). Vou levando o amor (Cláudia, mãe de um paciente). Levo o prazer de estar com vocês, a força (Eduarda, mãe de um paciente). A felicidade de participar dessa roda (Mateus, paciente). Os resultados evidenciaram que as rodas de TCI são um instrumento de promoção da saúde, proporcionando um espaço comunitário para que os participantes ressignifiquem suas vivências, partilhem sabedorias e experiências, favorecendo desta forma a superação de dificuldades, a busca por soluções, promovendo a autonomia dos indivíduos. É um meio de integração entre as pessoas, que busca elevar a autoestima e descobrir potenciais, construir redes de apoio e orientar quanto aos seus direitos e a seu papel social. Como proposto por Buss (2009), a promoção da saúde é considerar a concepção de que o processo saúde-doença-cuidado é permeado de determinantes sociais, econômicos, políticos e culturais, para além da herança genética, a biologia humana e os fatores ambientais mais imediatos. Desta forma, podemos afirmar a TCI como uma estratégia de promoção da saúde, pois sua metodologia e pilares teóricos valorizam esses aspectos, sem qualquer discriminação às diferenças. CONSIDERAÇÕES FINAIS A análise dos resultados encontrados neste estudo possibilitou a constatação de que a Terapia Comunitária Integrativa prestada às crianças, adolescentes e suas famílias em um Ambulatório de Nefrologia Pediátrica no município de Cuiabá foi uma tecnologia de cuidado, possibilitando uma assistência mais humanizada e acolhedora. As rodas de TCI foram um instrumento de cuidado ao proporcionar um espaço de aprendizado, no qual os participantes partilham experiências, sofrimentos e, através da escuta dos problemas alheios e da autorreflexão, ressignificam suas vivências, favorecendo o desenvolvimento de estratégias de superação, elevação da autoestima, promovendo a autonomia dos indivíduos. Ressalta-se a relevância da TCI como espaço de partilha de experiências com outros familiares/cuidadores em situações semelhantes, visto que os assuntos mais recorrentes nas rodas de TCI foram a sobrecarga da família no cuidado, a responsabilização exacerbada/culpabilização pelo estado de saúde/cuidado do filho e a abnegação por parte da família para uma melhor assistência e acompanhamento do tratamento da criança/adolescente. Apesar das adversidades, ficou evidente que o vínculo afetivo entre mãe/familiar e filho torna o cuidado com a criança uma experiência gratificante. A TCI proporcionou o compartilhamento de sentimentos e vivências, fornecendo segurança, auxiliando as mães a lidar com as incertezas geradas pela condição da criança. Outro aspecto importante a se destacar é que a formação da terapeuta que conduziu essas rodas configurou-se como um diferencial nos resultados obtidos nessa intervenção. Como sua formação tem o enfoque no cuidado e visa a uma assistência considerando a pessoa na sua integralidade, a utilização da TCI possibilitou a ampliação do cuidado em relação ao outro e a si próprio. Seus gestos, suas falas, enfim, a forma como a terapeuta conduziu as rodas expressou sua sensibilidade e cuidado com aquelas pessoas. Esses apontamentos são coerentes com os resultados de outras pesquisas, como admitimos no início desse trabalho. A TCI se apresentou como uma alternativa de cuidado de promoção à saúde, ao possibilitar um espaço integrador que busca a elevação a autoestima e a descoberta de potenciais, tecendo redes sociais. Como afirma Adalberto Barreto (2008, p.40), “as terapias comunitárias são semelhantes ao trabalho da aranha que tece teias invisíveis, porém, fortíssimas”. Como limitação enfrentada para este estudo, destaca-se o fato de utilizarmos o período que os participantes aguardavam suas consultas. Em certos momentos, alguns participantes precisaram deixar a roda por terem sido chamados para consulta. No entanto, isto não comprometeu a fidedignidade dos resultados, apontando para problemas que poderão suscitar novas pesquisas. As particularidades de trabalhar com crianças e adolescentes tornaram-se um desafio, visto a necessidade de uma sensibilidade maior para integrar esses participantes na roda. Tornam-se necessárias novas pesquisas acerca da utilização da TCI com crianças e adolescentes para que se estabeleçam adequações/sugestões para que essa prática seja realizada com esses grupos específicos. Como pesquisadora, vivenciei e compartilhei diversos momentos com estas pessoas, presenciei as imensas dificuldades que estas famílias passam para prover o melhor atendimento aos seus filhos. As reflexões advindas desta pesquisa me possibilitaram maior sensibilidade como enfermeira, ao permitir a percepção de que o estabelecimento de vínculos entre profissional e usuário proporciona a realização de um cuidado mais efetivo e centrado nas múltiplas necessidades desse ser complexo. O estudo demonstrou que a TCI tem muito a contribuir como um instrumento mediador de transformações das práticas profissionais do cuidado de crianças e adolescentes com DRC e suas famílias. REFERÊNCIAS ABDALA-COSTA, M. P. Terapia Comunitária Integrativa e o Pensamento Complexo: os sete saberes necessários à rede solidária. In: CAMAROTTI, M. H.; FREIRE, T. C. G. P.; BARRETO, A. P. Terapia Comunitária Integrativa sem fronteiras: compreendendo suas interfaces e aplicações. Brasília: MISMEC-DF, 2011. ALMEIDA, K. B. B. Vivência do adoecimento crônico por agravos concomitantes e o cuidado na vida de jovem e família. 2012. 155 f. 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Pesquisadora: Grasiele Cristina Lucietto (Mestranda em Enfermagem) Orientadora: Profª Drª Rosa Lúcia Rocha Ribeiro (Faen/Ufmt) Inserido no Projeto Matricial “FORMAÇÃO DE TERAPEUTAS COMUNITÁRIOS, ASSISTÊNCIA À SAÚDE ESTUDANTIL E PESQUISA-AÇÃO”, pesquisadores responsáveis: Sônia Ayako Tao Maruyama (Faen/Ufmt) e Aldenan Lima Ribeiro Correa da Costa (FAEN/UFMT). Nº DE REGISTRO NA CAP: 272/CAP/2010. Objetivo: Compreender as rodas de TCI realizadas com crianças, adolescentes e suas famílias que vivenciam uma doença renal crônica como uma prática de cuidado à saúde. Procedimentos: As rodas de TCI serão gravadas e filmadas. Você está sendo convidado a participar, como voluntário, da pesquisa Terapia Comunitária Tecnologia de Cuidado à Saúde de Crianças, Adolescentes e suas Famílias com Doença Renal Crônica. Após ser esclarecido (a) sobre as informações a seguir, no caso de aceitar fazer parte do estudo, assine ao final deste documento, que está em duas vias. Uma delas é sua e a outra é do pesquisador responsável. Em caso de recusa, você não terá nenhum prejuízo em sua relação com o pesquisador ou com a instituição da qual recebe assistência. Se você tiver dúvida a respeito do projeto, você pode procurar o Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário Júlio Müller- UFMT- pelo telefone (65) 3615-8254. Você receberá uma cópia desse termo com o nome, telefone e endereço da pesquisadora responsável, para que você possa localizá-la a qualquer tempo. Seu nome é Grasiele Cristina Lucietto, residente à Rua G, nº 80, Bloco 01, Apto 02, Residencial Água Marinha, Bairro Terra Nova, Cuiabá-MT, CEP 78050-407, Fone: (65) 3023-9336 ou (65) 9239-9773. Sou bolsista da Capes e no momento estou exclusivamente cursando o mestrado em Enfermagem. EMAIL: [email protected]. Nesta pesquisa, você participará das rodas de Terapia Comunitária. A pesquisa não envolve riscos, mas apenas o desconforto da gravação e filmagem. Esta pesquisa poderá favorecer a qualidade da assistência em saúde. Para a roda de Terapia Comunitária, serão utilizados filmadora e gravador de voz. A filmagem será utilizada como recurso de observação daquilo que você expressar pela sua fisionomia e os gestos/movimentos durante sua participação nas rodas de TCI. A gravação de voz permitirá a descrição fiel daquilo que você relatar. Os dados serão divulgados de forma que sua identificação não seja possível. As rodas de TCI serão conduzidas pela própria pesquisadora e sua orientadora, em local privativo, e seu nome será substituído por nomes fictícios, resguardando preceitos éticos de pesquisas com seres humanos. Considerando os dados acima, CONFIRMO estar sendo informado por escrito e verbalmente dos objetivos e procedimentos desta pesquisa e AUTORIZO gravação de minha voz e filmagem de minha imagem, que só poderão ser utilizadas para fins pedagógicos e para descrição fiel daquilo que eu relatar. Eu......................................................................................................................................... .....................,Idade:...........Sexo:..................Naturalidade:.....................portador(a) do documento RG nº:.........................................................declaro que entendi os objetivos, desconfortos e benefícios de minha participação na pesquisa e concordo em participar da mesma. ................................................................................. Assinatura do participante (ou do responsável, se menor): ....................................................... ................................................................................................ Grasiele Cristina Lucietto Pesquisador principal Testemunha* ............................................................................................ * Testemunha só é exigida caso o participante não possa, por algum motivo, assinar o termo. Cuiabá, _____de ______________de 20___ ANEXO ANEXO I – TERMO DE APROVAÇÃO ÉTICA DE PROJETO DE PESQUISA