CONCEITO e SENTIDO em FREGE INTRODUÇÃO Tal como Wittgenstein, também Frege se sentiu enfeitiçado pelas armadilhas da linguagem corrente e travou uma batalha contra os sortilégios enganosos para a inteligência. Se bem que revele o pensamento, dando-lhe expressão, a linguagem corrente também o camufla com as suas ambiguidades e imprecisões."Em grande parte - escreverá no seu último ano de vida - o trabalho do filósofo consiste em lutar com a linguagem." O programa de Frege consistia na elaboração de uma linguagem conceptual perfeita, adequada ao pensamento enquanto pensamento, na qual se mostrassem com nítida clareza os pensamentos, não enquanto conteúdos da consciência individual, não meras representações ou associações mentais, mas pensamentos em si e de acordo consigo mesmos. No Prefácio da sua Conceptografia, Frege considera que uma das tarefas da filosofia é romper com o domínio da palavra sobre o espírito humano, eliminando as concepções erróneas que, através do uso da linguagem, surgem inevitavelmente, com respeito às relações entre os conceitos, libertando o pensamento da sobrecarga com que o deformam muitas vezes, os meios de expressão da linguagem corrente. Para a realização destas tarefas, a conceptografia propõe-se ser um instrumento útil para o filósofo. A proposta de Frege preludia, de certo modo a restrição imposta por Wittgenstein à filosofia: "Só dizer o que pode ser dito, (…)e depois, quando alguém quisesse dizer algo de metafísico, mostrar-lhe que nas suas proposições existem sinais aos quais não foram dados uma denotação" (Tractatus, 6.53). Como lógico e matemático, Frege considerava que estas disciplinas não têm como objectivo a investigação do pensar como processo subjectivo, do pensar individual e suas leis psicológicas e, em certa medida, empíricas. O que pode ser Verdadeiro ou Falso são os pensamentos que são independentes das mentes individuais, os pensamentos não são representações que, como as sensações ou as dores, pertencem ao fluxo interno da consciência individual. A sua tarefa poderia talvez representar-se como a investigação da mente, não das mentes. Frege comenta algumas passagens de Kant, nas quais se mostra o absurdo de misturar e confundir a lógica com questões sobre como é que nós pensamos.. "Em lógica - escreve Kant, não queremos saber como é o entendimento , como pensa e como é que se processa o seu pensamento, mas como é que deveria proceder ao pensar. A lógica deve ensinar-nos o uso correcto do entendimento, isto é, como é que deve estar de acordo consigo mesmo( mit sich selbst übereinstimmenden Gebrauch des Verstandes)"1 Esta tarefa filosófica passa, segundo o programa de Frege, por uma análise e uma depuração da linguagem. Por isso mesmo, Frege é justamente considerado o grande inspirador, e mesmo "o avô" da tradição analítica que se caracteriza, em primeiro lugar pela convicção de que uma análise filosófica da linguagem pode conduzir a uma explicação filosófica do pensamento, e em segundo lugar, a convicção de que esse é o único modo de alcançar uma explicação global. Dois princípios gémeos que nortearam todo o trabalho filosófico, quer dos positivistas lógicos, quer de Wittgenstein, quer da filosofia postcarnapiana dos Estados Unidos, tal como Quine, Davidson, e outros autores da filosofia analítica contemporânea. A precedência da linguagem em relação ao pensamento marcou uma das vias mais frequentemente percorridas pelos grandes analíticos de origem 1 Kant, Logic, trad. Robert S. Hartman e Wolfgang Schwarz, Indianapolis and New York, 1974, p. 16 anglo-saxónica. No entanto, esta primazia atribuída à linguagem em relação ao pensamento, não é compartilhada por alguns autores que, também na esteira de Frege, pretendem que a linguagem só pode ser explicada através de conceitos de vários tipos de pensamentos, que podem ser considerados independentemente da sua expressão linguística2. Frege está numa posição peculiar na ordem a atribuir á relação linguagempensamento: não há dúvida que a linguagem espelha o pensamento e é, portanto, através das expressões linguísticas que se torna possível analisá-lo. Mas, na maior parte dos casos, a linguagem é um espelho que deforma o pensamento, e a atitude de Frege será sempre cautelosa, desmitificando um excesso de confiança na possibilidade de encontrar na linguagem um reflexo adequado e autêntico do pensamento. É sintomático desta sua atitude, o que Frege escreve a Husserl em Nobembro de 1906: "A tarefa essencial do lógico consiste em libertar-se da linguagem"3. Estes sentimentos ambivalentes em relação à linguagem, que se manifestarão ao longo de toda a sua vida e obra, não impedem de encontrar em Frege correntes de fundo que levam à investigação do pensamento através da análise da linguagem, e de reconhecer na sua obra a fonte de inspiração da "viragem linguística" que constitui o prolongamento natural do seu trabalho filosófico4. Dummett identifica três características da filosofia de Frege que estão na origem da "viragem linguística", se bem que o próprio Frege não lhes tenha reconhecido expressamente este estatuto: Em primeiro lugar o reconhecimento dos componentes do sentido como elementos constitutivos dum pensamento depende da apreensão da estrutura de uma proposição que exprime esse pensamento. Frege afirma que a estrutura do pensamento 2 Cfr Dummett, M. Les origines de la philosophie analytique, Gallimard, 1991, p.13. Dummett dá como exemplo desta nova orientação o livro de Gareth Evans, The Varieties of References. 3 G. Frege - Wissenschaftlicher Briefwechsel. 4 Cfr Dummett, ob. cit., p. 17. deve reflectir-se na estrutura da proposição que a exprime 5. Sem o recurso à expressão linguística ficaríamos desapetrechados para compreender o que se possa entender por estrutura de um pensamento. Como escreve a Russell em Julho de 1902: "à decomposição da proposição corresponde uma decomposição do pensamento"6. É ao pensamento, em primeiro lugar, que devemos atribuir o verdadeiro e o falso, a proposição será verdadeira ou falsa em sentido derivado; na medida em que o valor de verdade da proposição é a sua referência, é em primeiro lugar o sentido da proposição que tem esse referente (Bezug), enquanto a proposição apenas o obtém em sentido derivado. Assim, argumenta Dummett, de modo diferente da teoria oficial de Frege, "devemos saber o que significa que uma proposição é verdadeira, antes de poder saber o que significa que ela exprime um pensamento; e antes de poder saber o que significa que uma expressão tem um sentido, devemos saber o que significa que ela tem uma referência"7. Esta tensão entre o sentido - como o modo como se dá o referente, no caso da proposição, o Verdadeiro - e a necessidade do conceito de referente para explicar o conceito de sentido, torna ambivalente o lugar da análise do significado como via de acesso à compreensão e apreensão do referente das proposições. A ambivalência da sua noção de sentido origina, na teoria de Frege várias dificuldades, que ele próprio não chegou nunca a resolver. Frege pensa, por exemplo que é possível apreender um pensamento sem recorrer à sua expressão linguística. Mas, segundo a sua própria noção de sentido, como seria possível essa apreensão do pensamento? Como seria possível apreender um sentido sem ser como o sentido de uma expressão à qual se pode atribuir um referente? Para Frege, os pensnamentos só são acessíveis aos seres humanos, quando se exprimem através de uma linguagem ou de um simbolismo. Faz parte da essência do pensamento ser exprimivel linguisticamente. No entanto, Frege não pensa que um 5 É evidente a influência que esta convicção de Frege tem na concepção linguística do Tractatus : a proposição é uma imagem (Bild) do pensamento que exprime. 6 Wissenchaflicher Brifwechsel 7 Dummett, ob.cit., p. 21. pensamento seja essencialmente o sentido de uma proposição de uma linguagem real ou hipotética. Há pensamentos não expressos, que eventualmente poderiam ser apreendidos por algum outro ser, na sua nudez simbólica, sem a sua «veste» liniguística. Mas, na verdade, não nos é acessível um pensamento na sua nudez, apenas o podemos apreender através da sua expressão linguística. E, nesta medida, deverá parecer-nos mais fácil dar uma explicação do que significa apreender um pensamento expresso por uma proposição. Se não é possível alcançar uma explicação da apreensão do pensamento, sem recorrer à sua expressão linguística - se bem que hipoteticamente se possa pensar na existência de pensamento em si, não expressos linguisticamente, - então estamos não só perante o primeiro princípio da filosofia analítica, mas também o segundo: a análise filosófica da linguagem conduz a uma explicação do pensamento, e não há mesmo nenhuma outra via de acesso ao pensamento, que não seja a da análise linguística.8. Apesar das ambivalências no pensamento de Frege, não há dúvida que nele encontramos as origens da chamada "viragem linguística", se bem que por vezes, essas raízes não sejam claramente percebidos pelo próprio Frege. De qualquer modo, na sua filosofia estão em germen os princípios orientadores da tradição analítica, nas suas diversas manifestações: Frege foi pioneiro na elucidação do que são os pensamentos e na explicação dos significados das proposições e das palavras que as constituem. Todos aqueles que adoptaram como princípio a análise do significado linguístico como modo de acesso a uma análise dos pensamentos, encontram em Frege os fundamentos do seu estilo filosófico e do seu modo de investigação. A primeira obra publicada de Frege - Begriffsschrift - constitui um primeiro passo na realização do projecto fregeano: a construção de uma linguagem conceptográfica, na qual se mostrariam os pensamentos tal como são em si mesmos, e «de acordo consigo mesmos». 8 Ibidem, p. 23. Deste modo, Frege corrigiria as imperfeições, ambiguidades e concepções erróneas provocadas pela linguagem corrente. Sluga, na sua obra sobre Frege, sumariza o conteúdo e objectivos da Conceptografia de Frege: 1) As proposições com significado possuem um conteúdo conceptual objectivo 2) Esse conteúdo é representado apenas de uma forma inadequada na linguagem corrente. 3) É possível construir um sistema notacional no qual o conteúdo conceptual de uma proposição possa ser clara e adequadamente expresso. Este programa pressupõe uma tríplice metodologia filosófica. A tarefa da filosofia consistiria, em primeiro lugar na determinação do conteúdo objectivo das proposições filosóficas de interesse, em segundo lugar numa crítica da sua expressão na linguagem corrente, e por fim na sua tradução numa linguagem adequada. Trata-se da metodologia que a tradição analítica adoptou, com base no esquema do programa de Frege, modificando alguns pormenores e adaptando-a a diferentes visões e concepções do que é a filosofia, o pensamento, etc.9 No programa de Frege há um aspecto que não ocorre geralmente nos diversos desenvolvimentos da filosofia analítica: a tradução de "proposições filosoficamente interessantes”. No Tractatus, para não ir mais longe, não se propõe essa tradução. A terapia proposta por Wittgenstein consiste em mostrar o sem sentido de tais proposições, e portanto, libertar-se simplesmente de tais proposições, negando-lhes mesmo o estatuto de «proposição». Esta eliminação seria o resultado do reconhecimento das nossas tendências intelectuais viciadas, que nos levam a «ver» de uma forma pouco clara e distorcida e a criar mitos na nossa mente que é necessário desmascarar. De qualquer modo, não há dúvida que o Tractatus apresenta afinidades profundas e tem muitas das suas raíz no projecto de Frege. Num escrito póstumo, o próprio Frege apresenta uma síntese do seu itinerário: 9 Cfr Sluga, H. - Gottlob Frege, London, 1980, p. 67 "Parti das matemáticas. Pareceu-me que a necessidade mais premente, era proporcionar a esta ciência uma melhor fundamentação…” “As imperfeições lógicas da linguagem encontram-se no caminho de tais investigações. Tentei ultrapassar esses obstáculos, com a minha conceptografia. Deste modo fui levado da matemática para a lógica.” “O que caracteriza a minha concepção da lógica, é que começo por dar toda a dignidade ao lugar do conteúdo da palavra "verdadeiro", e imediatamente introduzo o pensamento como aquilo a que a questão "É verdade?" se aplica em princípio. Assim, não começo com conceitos unindo-os de modo a formar um pensamento ou um juízo; chego às partes de um pensamento, analisando o pensamento."10 Da matemática à lógica, da lógica à linguagem: a lógica constitui o que poderíamos designar por filosofia do pensamento (pensamento em sentido fregeano). Se os pensamentos não pertencem ao fluxo interno da consciência, tão pouco os conceitos lhe podem pertencer, uma vez que são elementos componentes de um pensamento. Só a partir do contexto se pode entender o que é um conceito. Mas defeni-lo é impossível. Frege dá várias pistas para explicar o conceito – o referente de um predicado gramatical, o conceito é sempre insaturado, incompleto, em contraste com o objecto, sempre saturado, completo, nunca podendo ser significado por um predicado ou expressão predicativa. O conceito é uma espécie de função, que se pode traduzir na respectiva expressão lógica na qual se mostram os lugares vazios, a ser preenchidos pelos argumentos da função. Tal como a função, o conceito não existe por si, é incompleto, só se pode objectivar quando preenchidos os lugares vazios com os objectos que caem sob esse conceito. Conceito e objecto constituem um todo real, completo. A incompletude do conceito não permite nem definições propiamente ditas, nem uma referência directa ao próprio conceito. Frege emprega nos seus escritos numerosas vezes a expressão “o conceito de número”, com a 10 Nachgelasse Schriften intenção de falar de um conceito, mas, como vimos, essa expressão não serve para referir o conceito. Ela reflecte apenas uma espécie de necessidade ou condicionante da linguagem que, literalmente consideradas, acabam por não captar o pensamento: “eu menciono um objecto – escreve Frege – quando o que pretendo é um conceito”11. Com efeito qualquer emprego de expressões como “conceito”, “função” torna-se problemático. Basta considerar as consequências da tentativa de usar o predicado “é um conceito facilmente apreendido”. Sendo um predicado, este só pode ser atribuído a objectos, não a conceitos, e como consequência, sempre que é expressa a predicação, a atribuiução é falsa. Tendo em conta o modo como Frege compreende este predicado, não há nada que possa ser um conceito facilmente apreendido, ou, por outras palavras “conceito facilmente apreendido” não se pode atribuir, porque não há nenhum objecto, nenhuma realidade completa da qual se possa predicar esta expressão 12 . Como escreverá Frege, “a própria palavra ‘conceito’ estritamente considerada, é já defeituosa, uma vez que a frase ‘é um conceito’ requer um nome próprio como sujeito gramatical e portanto, estritamente falando, requer algo de contraditório”13. Tendo em conta esta peculiaridade do carácter quase indizível do conceito, poderse-ia esperar que Frege revisse a sua tese segundo a qual o conceito e a função constituem as noções básicas da sua lógica. No entanto, apesar de reconhecer expressa e reiteradamente a natureza peculiar e defeituosa dos predicados ‘é um conceito’ e ‘é uma função’, nunca reviu a sua perspectiva inicial sobre a importância destas noções na sua lógica. As razões principais por que o não fez, pensa Joan Weiner, assentam na convicção da simplicidade e do carácter originário destas noções que dispensam qualquer definição. Frege não tenta dar uma definição de conceito, porque o que é simples, não pode ser decomposto e o logicamente simples não pode ser definido. Ao introduzir um nome para 11 BG, p. 177. Cfr Joan Weiner – Frege, Oxford University Press, 1999, p.110. 13 Cfr Nachgelassene Schriften, p. 192 12 algo logicamente simples, pensa Frege, não é possível uma definição, apenas se pode levar o leitor ou o ouvinte através de pistas (hints...), a compreender o significado da palavra14. Sendo assim, poderemos concluir que Frege considera o conceito como um termo primitivo, correspondendo a uma noção logicamente simples? Não parece óbvio que o ‘conceito’ seja tido por Frege como um termo primitivo de uma ciência. Segundo afirma, o seu emprego do termo ‘conceito’ corresponde a um uso lógico. No caso de ser um termo primitivo de uma ciência essa ciência seria a lógica, cujas verdades devem exprimir-se em linguagem lógica, na Begriffsschrift. Mas na Bs, as verdades que se podem exprimir sobre o conceito, são indicadas pelo tipo de símbolos usados. Por exemplo, na linguagem lógica introduzida por Frege , a fórmula seguinte usa-se para dizer que cada conceito se predica ou não de cada objecto: (F)(x)(F)(x)v~F(x)). Nesta fórmula os símbolos ‘F’ e ‘x’ pertencem a diferentes categorias: o primeiro é uma expressão conceptual, o segundo não. Por isso ‘F(x)’ é uma expressão correcta, ‘x(F)’ já não o seria. Assim, a linguagem lógica de Frege permite mostrar o carácter peculiar do conceito e da função, através do tipo de símbolo correspondente à sua categoria. Mas não há na Begriffsschrift nenhuma expressão que corresponda à expressão da linguagem natural ‘conceito’, tal como Frege a emprega. Todo o discurso em linguagem natural sobre o conceito de ‘conceito’, apesar de revelarem o carácter imperfeito e deficiente da linguagem, constituem meras pistas (hints) destinadas a levar o leitor a uma compreensão da Begriffsschrift. A tentativa de traduzir em linguagem corrente as verdades lógicas expressas na linguagem lógica manifesta continuamente a imperfeição e o carácter escorregadio da linguagem. A luta de Frege com as palavras é uma constante tentativa de dizer, elucidar, clarificar o que a linguagem lógica mostra sem ambiguidades; essa tentativa torna-se por vezes frustrante, sempre que no dizer, condicionado e imperfeito, se perde algo de originário e peculiar do pensamento. Nestes casos, Frege enreda-se em batalhas de palavras aparentemente paradoxais e contraditórias 14 Cfr Weiner, J. op.cit., p. 111; cfr BG, p. 167. como a que desencadeia a discussão em torno de ‘o conceito de cavalo não é um conceito’. Empregando o critério de Frege 'o conceito cavalo' é claramente um objecto, não um conceito. Mas não há dúvida que se torna pelo menos estranho dizer que o'o conceito de cavalo' não é um conceito. A cidade de Berlim é uma cidade, o vulcão Vesúvio é um vulcão. Como diz Frege: "Nas discussões lógicas é muito frequente ser necessário dizer alguma coisa sobre um conceito e exprimi-lo na forma usual para tais predicações, isto é fazer do que é dito sobre um conceito, o conteúdo do predicado gramatical" 15 . Por exemplo, Frege emprega com frequência 'o conceito de número' significando com a expressão algo sobre um conceito. No entanto, estritamente falando, de acordo com o critério fregeano, esta expressão seria inadequada. Para exprimir o carácter predicativo do conceito, Frege tem necessidade de recorrer frequentemente à metáfora do ‘saturado’ e ‘insaturado’: “... a decomposição numa parte saturada e numa insaturada deve considerar-se um fenómeno logicamente primitivo que deve ser simplesmente aceite e não pode reduzir-se a algo de mais simples. Tenho a consciência que expressões como ‘saturado’ e ‘insaturado’ são metafóricas e só servem para indicar o que se quer dizer...”16. No que diz respeito ao conceito, indicar, em primeiro lugar que este não tem uma existência independente, não se pode considerar o conceito como algo previamente formado, que se apresenta à mente. Frege critica a explicação da formação dos conceitos por abstracção, como uma acitividade lógica primitiva: este erro pressupõe exactamente que os conceitos possuem uma independência ontológica e autosubsistência, que, de facto não possuem, como constituintes insaturados, incompletos de um pensamento ou de um juízo. Numa carta a Stumpf de 1882, Frege escreve: “Não creio que a formação dos conceitos possa preceder o juízo, porque isso pressuporia uma existência independente dos conceitos, mas penso no conceito como tendo surgido pela 15 16 BG, p. 171. Über die Grundlagen der Geometrie, p. 28… decomposição de um conteúdo do juízo” 17 . Atribuir ao conceito a possibilidade de o «tematizar», «objectivar», como referente directo de um discurso sobre o conceito, torna-se por isso enganador, ambíguo e só contribui para obscurecer a natureza própria do conceito. Este não se deixa apreender de um modo directo, mas apenas mediante a decomposição de um juízo ou de um pensamento. Estas dificuldades para compreender a natureza do conceito, não impedem Frege de formular na sua filosofia do pensamento uma teoria da apreensão dos sentidos dos nomes e das frases, situando-os num «terceiro mundo», fora da consciência, dotados de uma realidade objectiva, embora não actuais. O sentido de um juízo ou de uma frase é o pensamento expresso nessa frase. Captar um pensamento corresponde a apreender o sentido de uma frase. E esse pensamento é constituído pelos seus componentes, entre os quais estão os conceitos. Do mesmo modo, apreender o sentido de um nome ou de uma palavra implica e indicia a posse de um conceito correspondente. Para ser coerente com toda a sua teoria, o sentido de um nome apresentar-se-á à mente apenas em relação com as outras componentes semânticas com as quais compõe um pensamento completo. Esta contextualização é expressamente afirmada por Frege, ao propor nos Gla, como um dos seus princípios, que um nome ou uma palavra apenas tem sentido no contexto da frase. Assim, é possível manter a prioridade do juízo, do pensamento completo, acessível à mente, em relação ao conceito isolado: se só temos acesso ao sentido de uma palavra através da frase em que se insere, também teremos acesso ao conceito, apenas como constituinte de um pensamento. O paralelismo linguagem-pensamento exige e assenta neste princípio da contextualização. Um dos aspectos mais controversos de todo o pensamento fregeano é a sua tese da apreensão do sentido e do pensamento: um pensamento completo apresenta-se, dá-se à mente, como uma realidade exterior à própria consciência. Reiteradamente Frege afirma 17 Wissenschaftlicher Briefwechsel, p. 164. que os pensamentos não são representações, não estão incluídos no fluxo interno da consciência, mas formam parte desse «terceiro reino», real, objectivo, que se pode captar, apreender como quem vê um planeta ou um corpo celeste no firmamento. Esta independência total dos pensamentos e sentidos, da consciência e do processo de apreensão psicológico, subjectivo, constitui o que muitos comentadores designaram de autêntica «mitologia fregeana», que levanta questões de ordem epistémica difíceis de resolver. O que é apreender um pensamento ou apreender o sentido de uma expressão? Sendo externa à minha consciência, nada na minha consciência permite a apreensão do pensamento, este dá-se, apresenta-se, oferece-se à consciência, sem no entanto pertencer ao conteúdo da consciência. Esta concepção, pensa Dummett, é contraditória18. O que é apreender um pensamento ou um sentido? Por um lado, lendo as primeiras frases do artigo “A Composição do Pensamento” (Gedankengefüge), - “a estrutura da proposição pode desempenhar o papel de uma imagem da estrutura do pensamento” – a nossa capacidade de compreender uma proposição que exprima uma proposição completamente nova, explica-se pelo nosso conhecimento prévio do sentido dos componentes desta proposição; e este conhecimento não é senão uma disposição 19, que pressupõe não um acto mental, mas uma certa capacidade. O sujeito apreende o pensamento porque tem uma certa capacidade para articular os sentidos das palavras empregues na expressão linguística que a traduz. Neste sentido, Dummett refere-se a uma apreensão disposicional; mas Frege fala também de um sentido episódico da apreensão de um pensamento pela primeira vez. Neste caso, o sujeito em questão – tal como aquele que comunica o pensamento – possui já muito antes a capacidade de articular esse pensamento. Segundo Dummett, considerando os pensamentos completos, parece evidente a prioridade ao conceito episódico da apreensão do pensamento: este é dado, apresentado e «visto» mentalmente, à semelhança de um objecto exterior que se dá na percepção sensível; o 18 19 Cfr Dummett, M. – Les Origines de la Philosophie Analytique, p. 135. Cfr Dummett, op.cit., p. 92. conceito disposicional parece mais apropriado para a apreensão do sentido de palavras isoladas, não sendo importante neste caso que o seu sentido apareça a um sujeito num momento determinado, mas que seja capaz de entender ou empregar uma proposição na qual se integrem essas palavras; o que importa é saber se o sujeito compreende as palavras ao ouvi-las, ou se é capaz de as empregar no momento adequado. Quanto à proposição como expressão de um pensamento completo, não interessa saber se o sujeito em causa está em condições de a compreender ao ouvi-la, não se trata de saber se é capaz de a apreender ou se a conhece já, mas de saber se a apreende no momento: se o pensamento lhe aparece, se o tem em consideração, se julga a proposição como verdadeira , em suma se a concebe como uma asserção20. Na verdade, Frege não se preocupou nunca por explicar os processos psicológicos e epistemológicos do pensamento. No sentido fregeano, o pensamento não se identifica com um processo mental, condicionado pelas circunstâncias psicológias e práticas do sujeito. O âmbito de Frege não é o da Filosofia da Psicologia, mas o de uma Filosofia do Pensamento que tem como questões centrais: o que é um pensamento? O que significa apreender um pensamento, julgar um pensamento como verdadeiro? O seu objectivo central é uma análise do pensamento e sua estrutura. Frege insiste reiteradamente, sobretudo a partir de 1906, quando toma consciência que foi a linguagem que o conduziu ao erro na construção dos fundamentos lógicos da aritmética – que não pretende tratar da linguagem, mas do pensamento. As suas preocupações filosóficas levam-no a uma elucidação sobre os pensamentos enquanto conteúdos de uma atitude proposicional, o que se pode saber, julgar, crer, duvidar; para isso adopta como base exclusiva a formulação de uma teoria do significado, que indique em linhas gerais o que significa que uma expressão tem sentido21. 20 21 Cfr Dummett, op. cit., p. 93. Cfr ibidem, p. 198. Seria possível, no entanto, tratar separadamente estes dois projectos: o da análise do pensamento através da análise da linguagem e do seu sentido e o da apresentação de uma filosofia do pensamento como análise do que significa apreender um pensamento, formular um juízo verdadeiro, etc. De novo nos encontramos perante duas vias seguidas no desenvolvimento da filosofia de Frege: uma, a analítica da linguagem como acesso ao pensamento, outra uma análise directa do pensar como fundamento de toda a filosofia. Certamente muitos autores anteriores a Frege tentaram seguir esta mesma ordem, procurando começar com uma análise do pensamento, mas as suas tentativas não foram além de uma filosofia que se identifica com a teoria do conhecimento. A perspectiva de Frege, neste sentido é totalmente inovadora: não se trata de fundar a filosofia no conhecimento, mas de inaugurar uma disciplina particular que explora de um modo peculiar a natureza e estrutura do pensamento, uma autêntica filosofia do pensamento, não uma filosofia do pensar. A questão que esta nova atitude de Frege levanta de imediato é a de saber até que ponto será possível isolar deste modo os problemas do pensamento em si mesmo considerado, das interferências epistemológicas e psicológicas. É talvez a indecisão ou a ambivalência do modo como Frege trata o pensamento que levou muitos dos seus críticos a classificarem a sua filosofia quer como platonismo, quer como kantismo. Mas a sua noção de 'pensamento', e sobretudo a de conceito, distam tanto das ideias platónicas como dos conceitos kantianos. No caso do conceito, a posição de Frege é irreconciliável com a ontologia platónica, hipostasiadora das ideias em si. Para Frege, como vimos, a realidade é constituída por conceitos e objectos, mas não se dão nunca conceitos em si mesmos constituídos: a sua incompletude, o seu carácter 'insaturado' impossibilita a sua consistência ontológica e inviabiliza qualquer discurso adequado sobre conceitos. O seu carácter funcional poderia permitir uma aproximação a Kant, para quem as categorias são funções. Mas a tópica dos conceitos puros do entendimento, pertencentes à subjectividade transcendental, é expressamente rejeitada por Frege, nomeadamente no seu escrito "Der Gedanke". Alguns aspectos da noção fregeana de conceito aproximam-no mais de uma concepção de raíz aristotélica que deu origem ao "conceito objectivo"22. O conceito fregeano aproxima-se mais da forma aristotélica do que do eidos platónico, precisamente porque Frege não explora o distanciamento, a separação, o hiato entre conceito e objecto, até ao ponto de os hipostasiar em dois mundos, mas procura justificar a unidade complexa ddo todo conceito/objecto. O conceito, como forma ou como função faz parte integrante do mundo real de que falamos, que conhecemos, que podemos captar: o universo real de Frege é constituído por Logos e por Physis, cuja heterogeneidade radical é resolvida em termos de saturação. O que caracteriza fundamentalmente o conceito, a relação e a função é o facto de ser insaturado e é essa característica que lhes permite penetrar o mundo dos objectos, fundindo-se com eles numa unidade que assim se torna inteligível. A Physis está penetrada e é perpassada pelo Logos, não como duas partes que se unem para formar um todo ( e o problema seria sempre explicar, justificar essa união), mas como um todo dado, no qual podemos distinguir aspectos, perspectivas, mas nunca as podemos separar ou isolar. Assim o conceito, o pensamento está tão incrustado nas entranhas do universo real, que a nossa tarefa é desvendá-lo, recolhê-lo com a nossa própria acção de pensar: e pensar mais não é do que ver o que não se vê. O que não se vê é precisamente esse domínio do objectivo não actual, domínio que não se pode assimilar nem ao mundo das ideias platónico, nem ao de uma subjectividade transcendental. É o domínio do pensamento, o domínio próprio da lógica. Frege não se preocupa com a apresentação de nenhuma prova da exist~encia desse domínio, nem da justificação do seu reconhecimento. O único argumento invocado por Frege para comprovar a existência dos conceitos e dos pensamentos é o que apresenta no texto "Der Gedanke", para justificar precisamente as sensações e percepções do mundo sensível, externo: para ver, não basta ter impressões sensíveis; estas são certamente 22 Cfr Angelelli, I. - Studies on Gottlob Frege and traditional philosophy, p. 68. necessárias, mas temos que acrescentar algo de não sensível. Este algo de não sensível, que nos abre para o mundo externo evitando o subjectivismo empirista e psicologista de permanecermos encerrados no mundo interno das próprias representações, é o mundo dos pensamentos, dos conceitos, das relações: um mundo que, sendo independente da nossa mente individual e dos processos de apreensão intelectual, nos é simplesmente apresentado, nos é dado. O itinerário de Frege será o de partir para uma análise desse domínio, libertando-se das questões psicologico-genéticas, ou das epistemológicas, como ponto de partida de toda a tarefa lógica e filosófica. Isto não significa de modo nenhum que Frege fosse indiferente às questões epistemológicas. Significa apenas que não as tomou como o ponto de partida da sua filosofia, nem fez depender delas a resolução do problema fundamental que o ocupará: demonstrar que a matemática é um ramo da lógica, e construir o seu sistema lógico no mais vasto sentido da palavra, como uma teoria do raciocínio dedutivo. Embora em vida, Frege não tivesse atraído muita atenção, e o seu projecto logicista tenha ficado marcado por um aparente fracasso após a crítica e objecção de Russell, o seu pensamento abriu caminhos novos que muitos têm percorrido, partindo das suas análises e da «nova lógica do pensar» que Frege indubitavelmente inaugurou. Os «puzzles» da sua lógica e filosofia da linguagem constituem desafios estimulantes para o pensamento e só indicam a dificuldade e complexidade dos problemas de que Frege se ocupou. A primeira parte deste trabalho é dedicada à noção peculiar do Begriff, considerando a perspectiva lógica, explanada fundamentalmente na Begriffsschrift, nos Gundlagen e nos Grundgesetze, as três grandes obras de Frege, e nos seus ensaios lógicos. Apresenta-se assim o conceito no seu dinamismo próprio que se manifesta essencialmente pelo seu carácter funcional, transformador, como algo que existe realmente, tão realmente como os próprios objectos, com os quais no entanto nunca se confunde, entre os quais nunca se dissolve. A segunda parte considera a semântica do conceito com a procura de um modelo referencial adequado para exprimir através da linguagem essa "realidade" peculiar que é o conceito. A análise desse modelo referencial próprio para as realidades incompletas, insaturadas, das quais o conceito é o paradigma, proporciona unúmeras perspectivas para uma reformulação de algumas questões ontológicas fundamentais. Devo agradecimentos a muitas pessoas que ao longo destes anos me têm proporcionado ocasiões de diálogo e me têm enriquecido com as suas sugestões, críticas, orientações e estímulos. Ser-me-ia impossível nomear aqui todos aqueles que de vários modos têm contribuído para que o trabalho de investigação em Filosofia seja possível e frutífero. Não posso deixar de exprimir um agradecimento especial ao Professor Doutor Fernando Gil, que muito contribuiu, com o seu apoio, estímulo e orientação científica e filosófica, para a elaboração deste trabalho.