CATEGORIAS EMERGENTES EM AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA1 Ana Sílvia Moço Aparício (Universidade Estadual de Campinas) 0. Introdução O que pretendemos com este trabalho é especificamente identificar os procedimentos pelos quais professor e alunos constroem discursivamente os objetos de ensino em uma aula de Análise Lingüística (doravante AL)2 ministrada por uma professora disposta a inovar sua prática pedagógica de ensino de gramática. Para a análise da interação em sala de aula, recorremos inicialmente aos conceitos de Goffman (1998) referentes aos papéis que falantes e ouvintes podem assumir em uma dada situação social, bem como aos alinhamentos e mudanças de alinhamentos (footing) que são projetados pelos interlocutores em relação um ao outro e em relação ao que está sendo dito. A utilização desses conceitos, para analisar os papéis assumidos pelo professor e pelos alunos e as mudanças de alinhamento efetuadas por eles no curso da aula, nos permite visualizar melhor o que está acontecendo “aqui e agora” na aula e o que está sendo feito pelos participantes sob o ponto de vista dos mesmos. Dito de outra forma, é relevante em nosso trabalho a focalização dessas “estruturas de participação” no sentido de que estão associadas ao processo dinâmico de construção de significados pelos participantes (Goffman, 1970). Além das estruturas de participação, focalizamos as marcas lingüísticas deixadas pelas operações discursivas, as quais são imprescindíveis para que os participantes produzam inferências, contextualizem e, assim, interpretem o que está acontecendo numa interação. Para isso, nos pautamos nos estudos de Gumperz (1998) sobre as pistas de contextualização que incluem aspectos paralingüísticos e lingüísticos. Os aspectos paralingüísticos, de caráter prosódico, englobam o tempo da fala, a entoação, a acentuação e a altura da voz, o ritmo, a hesitação, risos, entre outros; os aspectos lingüísticos correspondem aos processos relacionados à mudança de código, dialeto e estilo, bem como às possibilidades de escolha entre opções lexicais e sintáticas, expressões pré-formuladas, aberturas e fechamentos conversacionais, entre outros. 1. Metodologia, coleta e caracterização dos dados Situamos este trabalho no campo da Lingüística Aplicada, tendo em vista o interesse dessa área por práticas reais e específicas de uso da língua por falantes reais. Para a coleta e o tratamento dos dados, adotamos a metodologia da pesquisa interpretativista de base etnográfica, considerando que essa tendência metodológica, mais voltada para o acontecimento, permite a focalização dos processos em andamento (cf. Signorini, 1998). O corpus considerado neste artigo refere-se a uma aula de AL com aproximadamente 40 minutos de duração. Essa aula, gravada no primeiro semestre de 2002, foi ministrada em uma 8a. série da rede pública estadual no interior paulista por uma professora de língua portuguesa licenciada em Letras em 1992 por uma faculdade particular também do interior do estado de São Paulo. Essa professora caracteriza-se como uma profissional que, após a conclusão da licenciatura, continuou freqüentando cursos de capacitação na área de ensino de língua. Além disso, afirma que está tentando transformar sua prática pedagógica e que organiza suas próprias aulas a partir da seleção de materiais didáticos e não-didáticos variados, ou seja, retirados de fontes diversas. Para uma melhor compreensão dos dados da aula que estamos considerando neste artigo, apresentamos o esquema a seguir: Série: 8a. Prof.: Eni Conteúdo: preposição de Este trabalho está inserido no Projeto de Pesquisa Integrado “Práticas de escrita e de reflexão sobre a escrita em contextos de ensino” (CNPq no. 520427/2002-5). 2 Estamos entendendo por Análise Lingüística as práticas de reflexão sobre a língua em uso desenvolvidas em sala de aula, conforme sugerem os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). 1 Descrição Sumária da aula: a partir da leitura de parte um texto de Mário Perini 3 sobre o fato de que não basta o conhecimento lingüístico para atribuirmos sentidos aos textos, o professor discute exemplos de diferentes contextos de uso da preposição de, sugeridos pelo autor. Com isso, o professor pretende: 1) que os alunos entendam que, para reconhecer as diferentes relações de sentido expressas por esse elemento gramatical, é preciso compreender adequadamente o contexto, o que requer não apenas conhecimentos lingüísticos, mas também conhecimento de mundo; 2) que os alunos sejam capazes de resolver exercícios de vestibular sobre a preposição de Pela descrição sumária acima, podemos observar que a aula focalizada contempla o estudo da preposição abrangendo os níveis morfológico, sintático, semântico e pragmático de funcionamento da língua. Tendo em vista a forma como a professora procura introduzir o conteúdo para atingir os objetivos da aula, podemos admitir que essa aula se aproxima mais do que estamos considerando como AL do que das típicas aulas de gramática tradicionais caracterizadas por apresentação e definição da categoria gramatical estudada, para posterior identificação e classificação pelo aluno (cf. Moura Neves, 1990; Aparício, 1999). Para identificar, então, os modos pelos quais professor e alunos constroem os objetos de ensino em aula de AL, desenvolvemos a análise que apresentamos a seguir. 2. Análise da aula O ponto de partida que propomos para o estudo que desenvolvemos é a consideração da aula como um acontecimento interacional ordenado, cujo desenvolvimento é estruturado seqüencialmente pela coordenação local dos participantes. Essa coordenação geralmente se apóia na fala do professor que, segundo as categorias propostas por Goffman (1998), como um “ator” se dirige a uma “platéia”, isto é, a um conjunto de ouvintes ratificados mais comprometidos com o que está sendo falado e que têm mais direito de ser ouvidos do que geralmente acontece em entretenimentos de palco. De fato, a regulação e a organização da aula são, principalmente, gerenciadas pelo professor. Porém, ao definir para os alunos o que está sendo feito e o que está sendo dito, o professor projeta alinhamentos e mudanças de alinhamentos, os quais são negociados interacionalmente e tematicamente com os alunos. Esses ajustes permitem aos participantes (professor e alunos) estabelecerem conjuntamente o sentido do “que está acontecendo aqui e agora” (Goffman, 1981). Assim, a análise dessas projeções permanentemente elaboradas e reelaboradas pelos participantes pode tornar mais evidentes os modos como são constituídos/construídos interativamente os objetos de ensino na aula. Como demonstra Mondada (2001), é no discurso e pelo discurso que são postos, delimitados, desenvolvidos, transformados, os objetos de discurso que não lhe preexistem e que não têm uma estrutura fixa, mas que ao contrário emergem e se elaboram progressivamente na dinâmica discursiva. Os objetos de discurso são, segundo a autora, os elementos aos quais o discurso faz referência, ou seja, aquilo que os participantes reconhecem como sendo o que organiza sua enunciação. (Mondada, 1997) Nesse sentido, podemos entender que os objetos de ensino são objetos de discurso e que geralmente é em torno desses objetos que professor e alunos constroem interacionalmente e tematicamente a aula. A aula que consideramos para análise neste trabalho tem como tema principal as diferentes relações de sentido expressas pela preposição de, cuja finalidade é a resolução, pelos alunos, de duas questões sobre tal assunto, em forma de teste, extraídas de um exame de vestibular. Considerando a organização seqüencial da aula, estabelecemos, em função do tratamento dado ao tema principal, três etapas: Abertura, Desenvolvimento e Encerramento. A Abertura corresponde à preparação para a introdução do tema da aula, ou seja, é quando um aluno faz a leitura do texto de Mário Perini e em seguida a professora inicia a discussão sobre o assunto do texto: a idéia de que o significado de um enunciado não se baseia somente nos elementos lingüísticos que o constituem, mas também em informações extralingüísticas. O Desenvolvimento corresponde à explicitação, compreensão e avaliação da compreensão do tema. Nessa etapa a professora discute os exemplos, sugeridos pelo texto lido, de enunciados em que aparecem a preposição de; avalia, oralmente, a compreensão dos alunos sobre a definição/função da Trata-se do texto “As gravatas de Mário Quintana”(p.59-61), In: Perini, M. A . Sofrendo a Gramática. São Paulo: Ática, 1997. 3 “preposição” a partir da discussão desenvolvida; resolve a primeira questão juntamente com os alunos; estabelece um tempo para os alunos resolverem a segunda questão. O Encerramento corresponde a uma espécie de conclusão com um efeito retrospectivo em relação ao que foi discutido em torno do tema principal. Antes de uma rápida correção da segunda questão, o professor esclarece os objetivos das questões desenvolvidas e a importância do que foi realizado na aula para melhor compreensão de textos. Finalizando a aula, o professor sugere, como tarefa, um outro exercício de identificação dos sentidos expressos pela preposição de, a partir de frases que apareceram na segunda questão já resolvida. De modo geral, podemos dizer que, embora estejamos focalizando as ações do professor, essa organização seqüencial da aula é co-construída pelos participantes que, como já apontamos anteriormente, estão constantemente negociando no discurso e pelo discurso a construção dos objetos de ensino. Considerando, então, os alinhamentos projetados pelo professor nessa organização seqüencial da aula, procuramos observar a relação entre a construção de diferentes papéis pelo professor e a construção dos objetos de ensino. Inicialmente, tendo em vista as formas de participação da interação propostas por Goffman (1998) para o plano do falante, verificamos que a fala do professor é marcada por alterações de alinhamentos em função dos diferentes papéis sociais por ele assumidos no curso da aula: animador, autor e responsável. O papel de animador, segundo Goffman, é desempenhado em toda a fala do professor, simplesmente por ser um indivíduo que fala, um corpo envolvido em uma atividade acústica. Observando as palavras enunciadas por esse animador, vemos que ele emprega diferentes pronomes pessoais na construção de seu discurso dirigido aos alunos: nós, a gente, você, vocês, eu, ele. O que de fato ocorre é que ao selecionar essas diferentes pessoas do discurso, o professor está introduzindo a função pela qual fala (alinhamento) e se esforçando para estabelecer uma base recíproca de identificação correspondente para aqueles a quem tal tomada de posição é endereçada. Na Abertura da aula, na preparação para introdução do assunto principal, após a leitura do texto por um aluno, já é possível verificar a projeção de um desses papéis pelo professor. Observemos o trecho a seguir4: 1 2 3 4 5 6 7 Exemplo 1 (Abertura) P: (...) qual que é afinal a moral da história que ele ((o autor do texto lido)) está tentando passar pra gente? A1: o conhecimento que precisamos ter pra entender as coisas. P: que pra conhecer e entender até um aspecto gramatical é preciso também ter conhecimento de... A2: gramática P: MUN-DO...é mundo... Como vemos, o professor utiliza a expressão “ a gente” (linha 2) para se referir a ele e aos alunos, isto é, para sinalizar aos alunos que ambos são interlocutores do texto lido e, portanto, devem estar interessados na “moral da história”. Nesse caso, no papel de responsável, aquele que endossa implicitamente uma posição que não é só sua ou que não é sua, o professor estabelece um alinhamento que sinaliza uma aproximação dos alunos em relação ao que está sendo feito/dito no momento. Com esse alinhamento, e através de uma pergunta para verificar a compreensão do texto pelos alunos (linhas 1e 2), o professor introduz um objeto de ensino que é preciso se transformar em objeto do saber dos alunos, para a introdução do tema principal da aula (um outro objeto de ensino). Em outras palavras, o professor está introduzindo a noção da importância do conhecimento de mundo para a compreensão de elementos gramaticais em uso, tendo em vista levar os alunos a reconhecer e identificar as diferentes relações de sentido expressas pela preposição de, de acordo com o contexto em que aparecem. 4 Adotamos as seguintes convenções para transcrição: ... : pausa nos fluxos de fala; (( )): comentários do analista; maiúsculas (ex: MUNDO): entonação enfática. separação por hífen (ex: mun-do): silabação ::: (ex: é::: ): prolongamento de vogal ou consoante Considerando, então, essa seqüência da Abertura da aula, podemos notar que o tópico “moral da história” (linha 1), introduzido pelo professor, ao ser caracterizado, ainda que genericamente, por A1(linha 3), adquire status de objeto de ensino e, portanto, se constitui em uma resposta esperada pelo professor. O professor, por sua vez (linha 4), tentando especificar o objeto de ensino, reformula a resposta de A1 realizando uma estrutura de fala típica de sala de aula, do tipo preenchimento de lacuna, contando com uma resposta adequada dos alunos. Porém, isso não ocorre. A2 (linha 6) completa o espaço deixado pelo professor utilizando uma expressão (gramática) que evidencia uma associação a uma situação já conhecida dele, em um tempo anterior ao “aqui e agora” dessa aula, cujo cenário aparentemente pode ser o mesmo: aula de gramática. Em outras palavras, A2 está construindo uma versão do objeto de ensino que está sendo proposto com base em um objeto do seu saber: “para compreender um aspecto gramatical é preciso ter conhecimento de gramática”. Como essa recepção do objeto de ensino pelo aluno é tida como contraditória pelo professor, este corrige em voz alta (linha 7) e ainda repete a expressão que completaria adequadamente a lacuna, com vistas a marcar o objeto de ensino a que intenciona se referir nas linhas 4 e 5: “pra conhecer e entender até um aspecto gramatical é preciso antes de tudo também ter conhecimento de mundo”. Vale destacar ainda que nessa formulação inicial do professor, através das expressões “até” e “também”, está implícita a idéia, que contradiz uma visão tradicional de ensino de gramática, de que para o estudo da gramática (no caso a preposição de), é preciso considerar outros conhecimentos que não sejam apenas os lingüísticos/gramaticais. Tal fato demonstra que o modo, nesse caso implícito, como o professor e A1 explicitam (categorizam/descrevem) o objeto de ensino em questão não coincide com o de A2: aqueles tomam por base o conteúdo do texto lido; este o conteúdo geral da aula (cenário já conhecido) de ensino de gramática, já que vai se falar da preposição de. Dessa forma, a explicitação, bem como a compreensão e a ratificação dos objetos de ensino propostos, é essencial para o bom desenvolvimento da aula como um todo. O trecho a seguir demonstra as tentativas, sobretudo do professor, de estabilizar/adequar/controlar a compreensão dos objetos de ensino propostos, tendo em vista o tema principal da aula: Exemplo 2 (Desenvolvimento) 1 P: ((a professora está se referindo aos enunciados: “as gravatas de Mário Quintana” e 2 “as gravatas de Pierre Cardin”, exemplos escritos na lousa, retirados do texto lido no 3 início da aula))...aparentemente a estrutura sintática é a mesma... mas a preposição 4 “de” está indicando a mesma coisa entre um elemento e outro? 5 As: não 6 P: não...entre um elemento e outro?...não...agora como é que eu vou saber que não é a 7 mesma coisa?... 8 As: ((vários alunos falam ao mesmo tempo e as falas ficam incompreensíveis)) 9 P: quando eu sei que Mário Quintana é um escritor né?...então...se eu disser as 10 gravatas que ele usa...não é?...quer dizer as gravatas que ele possui...e quando eu digo 11 as gravatas de Pierre Cardin não é? eu só posso no mínimo pensar duas coisas...as 12 gravatas que têm o nome dele...que ele é um estilista...que ele desenhou...que tem a 13 marca dele...inclusive pode ser até as que ele usa também... 14 A2: que ele usava 15 P: ((a professora ri)) que ele usou...que ele usava né? ((os alunos fazem comentários 16 ao mesmo tempo e a professora continua a explicação)) então...quer dizer...ele tá 17 tentando...é interessante isso que ele tá tentando mostrar que não é porque a estrutura 18 sintática é a mesma que o sentido vai ser o mesmo...né?...eu preciso saber...ter o 19 conhecimento de mundo... Como podemos observar na seqüência acima, através da exemplificação de dois enunciados, o professor pretende demonstrar que, embora a estrutura sintática seja a mesma, a preposição de não estabelece o mesmo sentido. Assim, para que esse objeto de ensino se transforme em um objeto do saber do aluno, o professor formula uma pergunta (linhas 3 e 4), de estrutura típica de sala de aula, exigindo a ratificação dos alunos e, ao mesmo tempo testando/comprovando a inteligibilidade do que está sendo dito, para dar continuidade ao tema. Nesse caso, os alunos assumem o papel que lhes é atribuído, de alunos cooperativos e atentos, ao formularem a resposta esperada pelo professor (linha 5). Em seguida (linhas 6 e 7), o professor valida a resposta dos alunos controlando o objeto de ensino que está sendo proposto no momento:“a preposição de não indica a mesma coisa entre um elemento e outro”. Como essas operações, bastante ritualísticas, de introdução e recepção do objeto de ensino em questão parecem não garantir a compreensão desse objeto pelos alunos, o professor projeta um outro alinhamento, assumindo uma posição que não é sua, através da utilização do pronome “eu” (linha 6) representando implicitamente os alunos. Assim, no papel de responsável, o professor reproduz uma suposta fala ou situação que caracteriza especificamente o aluno e não o professor, isto é, o aluno é quem precisa saber como reconhecer os diferentes sentidos expressos pela preposição de. Esse alinhamento estabelece uma distância entre o professor e os alunos sinalizando que existe um objeto de ensino que já é objeto do saber do professor, mas que deverá ser objeto do saber dos alunos a partir da explicitação desse objeto pelo professor. Desse modo, através de uma pergunta, que acaba funcionando como uma pergunta retórica, o professor introduz a explicitação do objeto de ensino com base nos exemplos emprestados do texto lido no início da aula (linhas 9 a 13). Ainda mantendo o mesmo alinhamento, isto é, utilizando “eu” para representar o aluno, o professor desenvolve um longo turno explicativo/argumentativo caracterizado tanto por pedidos de confirmação da participação e/ou da compreensão dos alunos em relação ao que está sendo dito, através dos marcadores discursivos “né?” “não é”? (linhas 9, 10 e 11); quanto por reiteradas referenciações, através do pronome “ele”, ao escritor Mário Quintana, à pessoa e ao estilista Pierre Cardin. Em seguida, esse mesmo turno é rapidamente interrompido por A2 que retifica o tempo verbal utilizado pelo professor (linha 14) demonstrando saber que Pierre Cardin já morreu. Nesse caso, embora pareça que o aluno não está contribuindo para o desenvolvimento do tema, formulando apenas uma correção da fala do professor, pode-se considerar, ao contrário, que a fala de A2 sinaliza uma demonstração de sua compreensão de um assunto tratado no início da aula (Exemplo 1) e que é retomado no Exemplo 2: a valorização do conhecimento de mundo. A2, que no início da aula foi corrigido pelo professor por não ter contribuído com a resposta esperada sinalizando a não compreensão do que estava sendo dito, agora corrige o professor demonstrando que tem o conhecimento de mundo sobre a morte de Pierre Cardin, fato que o professor sinalizou não saber ao se referir às gravatas que Pierre Cardin usa. Essa interpretação da intervenção de A2 parece não ter sido percebida ou considerada pelo professor que, ao retomar seu turno (linha 15), ainda reformula a correção do tempo verbal proposta pelo aluno e, após uma pausa, percebe que a utilização do verbo “usou” não corresponde ao sentido adequado e elaborando uma auto-correção acaba reafirmando a proposta de A2 (“que ele usava né?”). Dando continuidade ao tema, através dos marcadores “então” e “quer dizer”, o professor introduz uma espécie de conclusão do que foi dito nessa seqüência do Exemplo 2 assumindo uma outra posição (autor encaixado para Goffman, 1998), ao trazer o discurso do outro (Mário Perini) para o seu próprio discurso utilizando o pronome “ele” (linhas 15, 16 e 17). Nesse caso, diferentemente das outras referenciações através do pronome “ele” realizadas nessa mesma seqüência, já comentadas acima, o referente não está diretamente designado, trata-se, pois, do autor do texto que não foi nominalizado desde o início da interação, sendo sempre inferido do contexto da aula. Percebemos, então, que esse alinhamento projetado pelo professor indica aos alunos, e talvez até para ele próprio, a veracidade/confiabilidade de sua argumentação. Finalizando o último turno, o professor muda de alinhamento e reassume o papel de responsável representando os alunos novamente através da utilização do pronome “eu” (linha 18), retomando, assim, o tema inicial da aula e marcando/controlando o que os alunos precisam saber/ter/considerar: o conhecimento de mundo. Em suma, todas essas operações desenvolvidas para tornarem inteligíveis os objetos de ensino propostos no início da seqüência do Exemplo 2 desencadearam a formulação de outro objeto de ensino que amplia a formulação inicial do primeiro objeto de ensino proposto na Abertura (Exemplo 1). Para melhor visualização desses processos de desenvolvimento/construção dos objetos de ensino propostos nos dois trechos de aula analisados, apresentamos no Quadro II a seguir a seqüência em que esses objetos foram sendo formulados para se transformarem em objetos do saber dos alunos. Quadro II 1o. Saber da importância do conhecimento de mundo para entender um aspecto gramatical. 2o. Saber que em uma mesma estrutura sintática a preposição de não expressa o mesmo sentido entre os elementos que liga. 3o. Saber como reconhecer que a preposição de não estabelece o mesmo sentido entre os elementos que liga. 4o. Saber que para reconhecer as diferenças de sentido expressas pela preposição de é preciso ter conhecimento de mundo. O Quadro II acima evidencia que a construção dos objetos de ensino se deu em um movimento circular, em que a noção de conhecimento de mundo figura como ponto de partida e ponto de chegada. Podemos visualizar melhor esse movimento na Figura 1 a seguir: Figura 1 Conhecimento de mundo Diferentes sentidos Aspecto gramatical Preposição de mesma estrutura sintática Verificamos, então, nos processos de produção e recepção dos objetos de ensino, envidenciados pelos Exemplos 1 e 2, uma espécie de hierarquização desses objetos que, à medida que vão sendo explicitados, isto é, constituindo-se em objetos do saber dos alunos, vão sendo ampliados, reformulados e até transformados, como poderemos constatar na seqüência a seguir que faz parte do Encerramento da aula. Exemplo 3 (Encerramento) 1 P: ((após a resolução do primeiro exercício, o professor esclarece os objetivos do 2 exercício))...então veja bem...este aqui é um exercicinho...este aqui pra falar a 3 verdade pra vocês é uma questão de vestibular...e eu trouxe só pra vocês terem 4 uma idéia né? de como às vezes a função é muito mais importante do que a 5 própria classificação ou identificação...porque essa questão ela visa...você 6 identificar a preposição? não...e nem você classificar? não...mas pra tentar 7 entender qual é o sentido que uma preposição exerce ao ligar dois elementos da 8 frase não é?...agora o texto dois é a mesma coisa ((a professora lê o enunciado do 9 segundo exercício)) então aí vocês parem pra pensar... Como podemos perceber no trecho acima, o professor assume um outro papel ao utilizar as formas pronominais você/você para se referir aos alunos e eu para representar ele mesmo. Assumindo, então, o papel de autor, isto é, dono das palavras que enuncia, o professor projeta um outro alinhamento cuja intenção é sinalizar aos alunos a posição que eles devem assumir em relação às atividades que estão sendo desenvolvidas na aula. Com esse alinhamento, podemos ver que o professor estabelece uma separação (não distância) de papéis de professor e de aluno, no sentido de marcar não só que é ele quem ensina e os alunos são aqueles que devem aprender, como também que ele é quem determina “o que”/ “como” deve ser ensinado e aprendido. Essa idéia é reforçada pela forma como o professor retoma o tema principal da aula (“entender qual é o sentido que uma preposição exerce ao ligar dois elementos”), uma vez que sua intenção é confirmar/validar esse objeto de ensino. Para isso, ele justifica/explica a escolha e a forma de desenvolvimento do exercício realizado. Nesse caso, o fato do professor utilizar a expressão “exercício” no diminutivo (linha 2) e o marcador “só” em “e eu só trouxe pra vocês terem uma idéia né?”, e também de não ter revelado antecipadamente aos alunos que se tratava de uma questão de vestibular, demonstra uma desvalorização do exercício em si, no sentido de uma atividade rotineira de sala de aula cujo objetivo é quase sempre testar a compreensão pelos alunos de objetos de ensino mobilizados. Mas, por outro lado, demonstra uma valorização do tratamento dado pelo exercício aos objetos de ensino em questão, considerando essa atividade como uma espécie de manipulação desses objetos para que sejam comprovados/ratificados e, conseqüentemente, compreendidos pelos alunos, ou até pelo próprio professor. Desse modo, através de perguntas retóricas (linhas 5 e 6), para continuar mantendo o seu turno e, conseqüentemente, o desenvolvimento do tópico sem a interrupção, mas com a atenção da platéia, o professor reformula os objetos de ensino focalizados até então. Se antes, para a compreensão dos diferentes sentidos estabelecidos pela preposição de, considerando os exemplos discutidos, era importante ter conhecimento de mundo; agora, é importante reconhecer a função da preposição de, considerando os exercícios realizados, em detrimento da classificação ou identificação desse elemento gramatical. Esta última formulação marca contrastivamente o objeto de ensino focalizado, excluindo, assim, outras formas possíveis de se compreender esse objeto, isto é, classificando-o ou idendificando-o na frase. Enfim, essas tentativas de confirmação/comprovação dos objetos de ensino focalizados no Exemplo 3 podem ser melhor visualizadas no Quadro III a seguir, em que apresentamos outra seqüência, proposta pelo professor, para que esses objetos se transformem em objetos do saber dos alunos. Quadro III 1o. Saber que a função da preposição de é ligar dois elementos na frase. 2o. Saber que reconhecer a função da preposição de é mais importante que classificá-la ou identificá-la. 3o. Saber que, ao ligar dois elementos na frase, a preposição de expressa diferentes sentidos. Como podemos observar no Quadro acima, ao comentar os objetivos dos exercícios propostos e desenvolvidos (as questões de vestibular), o que funciona também como uma conclusão sobre o que foi discutido em torno do tema principal da aula, isto é, um processo de retomada para confirmação do que foi feito/dito, o professor acabou reelaborando/transformando os objetos de ensino, estabelecendo um outro movimento de construção desses objetos. A Figura 2 evidencia esse movimento: Figura 2 Preposição de Ligar dois elementos da frase Diferentes sentidos Se compararmos a Figura 2 acima com a Figura 1, apresentada anteriormente, verificaremos que, para compreensão dos diferentes sentidos expressos pela preposição de, houve uma mudança de foco da importância dos conhecimentos extralingüísticos (sempre designados pelo professor por conhecimento de mundo) para a importância do reconhecimento da função dessa preposição. Em outras palavras, o professor inicia a explicitação do principal objeto de ensino (a preposição de) valorizando o extralingüístico, o contextual, e termina valorizando o lingüístico, o cotextual. Temos, então, inicialmente, um procedimento de AL mais atualizado, que considera a língua em uso e, posteriormente, outro, não totalmente tradicional, que privilegia somente aspectos sintáticos e semânticos em detrimento de aspectos pragmáticos. Como vemos, as categorizações do objeto de ensino “preposição de” efetuadas pelo professor são instáveis, ou seja, ora são construídas com base em uma concepção mais descritiva, ora em uma concepção mais discursiva de língua e de gramática. Tal instabilidade parece ser característica da aula de professores que estão tentando transformar sua prática pedagógica de ensino de gramática. Acreditamos também que um dos dispositivos, entre outros, que pode ter desencadeado/provocado essas reformulações/transformações/desestabilizações dos objetos de ensino está nos diferentes suportes utilizados pelo professor para transformar esses objetos de ensino em objetos do saber dos alunos. Conforme demonstrou a análise dos Exemplos 1 e 2, o texto de Mário Perini é que serviu de preparação e introdução do tema principal da aula, inclusive os exemplos utilizados pelo professor foram os trazidos por tal texto; já a análise do Exemplo 3 evidenciou que os exercícios de vestibular desenvolvidos, naquele momento, eram a base para a confirmação/comprovação da inteligibilidade do principal objeto de ensino da aula. 3- Considerações finais Com base na análise que desenvolvemos sobre a aula selecionada, foi possível verificar que: a aula é um acontecimento interacional em que ocorre uma alternância de papéis e de alinhamentos pelos participantes para sinalizar “o que está acontecendo aqui e agora”; essa alternância de papéis e de alinhamentos é projetada principalmente pelo professor que, nas posições de animador, autor e responsável, se dirige a uma platéia, estabelecendo aproximações, distanciamentos e separações em relação uns aos outros e em relação ao que está sendo dito; essas projeções empreendidas pelo professor estão relacionadas aos procedimentos de introdução, explicitação e comprovação/validação dos objetos de ensino para que sejam transformados em objetos do saber dos alunos; esses procedimentos, com base em atividades de argumentação, exemplificação, manipulação, e nos suportes que sustentam essas atividades, desencadeiam os processos de formulação, reformulação e transformação dos objetos de ensino emergentes no fio da interação; A partir dessas considerações, acreditamos ainda que uma análise desses processos de coconstrução dos objetos de ensino para que eles se tornem inteligíveis, ou melhor, para que eles se tornem objetos do saber dos alunos e, às vezes, até do professor, nos ajudará a definir melhor as categorias utilizadas e elaboradas por esses participantes, bem como os dispositivos de categorização à disposição desses interlocutores, para produzir tal inteligibilidade. Pensamos, então, que, é a partir do reconhecimento dessas categorias e da forma como são organizadas, elaboradas no curso da interação que poderemos compreender melhor como professores e alunos se apropriam e constroem os saberes em aulas de AL. Referências bibliográficas APARICIO, Ana Sílvia M. A renovação do ensino de gramática no primeiro grau no Estado de São Paulo. Dissertação de mestrado inédita. Campinas: Unicamp, 1999 GOFFMAN, E. Ritual de la interacción. Buenos Aires: Tiempo Contemporáneo, 1970. _____. Façons de parler. Paris: Les Editions de Minuit: 1981. _____. Footing. In: Ribeiro, Branca Telles & Garcez, Pedro M. (orgs) Sociolingüística interacional. Porto Alegre: AGE, 1998. GUMPERZ, J.J. Convenções de contextualização. In: Branca Telles & Garcez, Pedro M. (orgs) Sociolingüística interacional. Porto Alegre: AGE, 1998. MONDADA, Lorenza. A Entrevista como acontecimento interacional - Abordagem lingüística e conversacional. In: Revista RUA, vol. 3:59-86. 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