O ROCK ALÉM DO SOM: UMA ABORDAGEM ANTROPOLÓGICA

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O ROCK ALÉM DO SOM: UMA ABORDAGEM ANTROPOLÓGICA
Amanda Veloso Garcia - UNESP/Campus de Marília1
Introdução
Ao considerarmos a imensa variedade de estilos a que o gênero “Rock” se refere, e
especialmente as discordâncias quanto a estas classificações entre os adeptos do gênero,
veremos que se constitui uma tarefa difícil a de identificar padrões sonoros comuns. Além do
que, muitos daqueles que seguem alguns padrões sonoros relacionados ao estilo não são
considerados roqueiros e são vistos como posers2.
Diante disso, nos parece que o rock não está ligado apenas aos riffs3 executados pelas
guitarras, mas que há algo mais substancial nessa classificação que leva, por exemplo, a
considerar alguém como Raul Seixas, Renato Russo, Cazuza e tantos outros, cujas melodias
não se caracterizam pelo “peso”, como roqueiros.
Como ressalta Chacon, “O rock não é, portanto, apenas um tipo especial de música, de
compasso ou de ritmo. Restringi-lo a isso é não reconhecer sua profunda penetração numa
parcela (cada vez mais) significativa das sociedades ocidentais” (CHACON, 1982, p. 7):
O rock é muito mais do que um tipo de música: ele se tornou uma maneira
de ser, uma ótica da realidade, uma forma de comportamento. O rock é e se
define pelo seu público. Que, por não ser uniforme, por variar individual e
coletivamente, exige do rock a mesma polimorfia, para que se adapte no
tempo e no espaço em função do processo de fusão (ou choque) com a
cultura local e com as mudanças que os anos provocam de geração a
geração. Mais polimorfo ainda porque seu mercado básico, o jovem, é
dominado pelo sentimento da busca que dificulta o alcance ao porto da
definição (e da estagnação . . .). (CHACON, 1982, p. 7)
1
[email protected]
2 “Poser é um termo pejorativo, usado frequentemente nas subculturas punk, metal, gótico, entre outros, para
descrever "uma pessoa que finge ser algo que ela não é", copiando vestimentas, vocabulário e/ou maneirismos de
um grupo ou subcultura, geralmente para conseguir aceitação dentro de um grupo ou por popularidade em meio
a vários outros grupos, mas que não compartilha ou não entende os valores ou a filosofia da subcultura.”
(WIKIPÉDIA).
3
O riff é uma frase musical que caracteriza a música e que geralmente se repete durante a composição diversas
vezes. No rock, pode-se dizer que a sonoridade que identifica uma determinada música.
O Rock está além do som. Este é frequentemente associado a um certo tipo de atitude
que compreende ações de cunho rebelde que visam subverter padrões de conduta vigentes
numa sociedade. É um estilo de vida, uma postura diante do mundo.
Diante disto, neste trabalho, procuraremos expor o que caracteriza este estilo levando
em conta que o que subjaz ao gênero está muito além do som executado. Para tanto, nos
utilizaremos de ferramentas próprias da Etnomusicologia, área de análise musical que busca
entender os fenômenos sonoros como comportamento, localizando-os além do fenômeno
sonoro.
Contudo, inicialmente exporemos algumas ideias da Antropologia da Música de Alan
Merriam, pioneiro do ramo da Etnomusicologia, de modo a apresentar a importância do
aspecto antropológico na compreensão da música.
Após isto, faremos uma reflexão acerca de algumas situações de músicos e outras
figuras conhecidas por atitudes rock and roll a fim de construir a imagem do Rock. A partir
desta construção, através dos conceitos de Indústria Cultural e Contraculta e da Teoria dos
Sistemas Dinâmicos, faremos uma análise da lógica e ideias que subjazem ao comportamento
que caracteriza o Rock.
1. Música como comportamento
A música é um meio de entender os povos e o comportamento é uma valiosa
ferramenta de análise da cultura e da sociedade. (MERRIAM, 1964, p. 13,
tradução nossa)4
O Rock é um gênero que não pode ser entendido levando em conta apenas aspectos
sonoros. Portanto, para compreender a importância da análise antropológica na compreensão
da música nos pautaremos na teoria de Alan Merriam (1923-1980).
A música é uma manifestação presente nas diversas culturas. Entretanto, os modos de
expressá-la, criá-la, entendê-la e dar-lhe significado diferem em muitos aspectos. Indígenas,
africanos, orientais, ocidentais, latinos, entre outros, apresentam especificidades em suas
práticas e experiências musicais.
Isto se torna evidente ao compararmos a performance musical em nossa cultura com as
práticas indígenas. Em geral, a música indígena está intrinsecamente ligada ao ritual e, por
4
No original: "music is a means of understanding peoples and behavior and as such is a valuable tool in the
analysis of culture and society".
isso, requer o gesto e a dança em sua execução, além de estar ligada a algo além da mera
execução de um som. Já, em na cultura ocidental, nem sempre há essa vinculação intrínseca
entre a musica e a performance de maneira que esta pode ser vista em alguns casos como
mercadoria.
Em meio a tantos diferentes comportamentos musicais, aquele sujeito que se propõe a
de algum modo analisá-los encontra diversas barreiras. Pode acabar por atribuir-lhes
classificações que estão presentes em sua própria cultura sem perceber o quanto estas são
irrelevantes para a compreensão da prática musical alheia, ou por não conseguir abarcar toda
sua complexidade artística.
No exemplo supracitado, ao se estabelecer uma análise musical dentro dos ditames da
música ocidental europeia podemos julgar “simples” as manifestações musicais indígenas;
porém, se a considerarmos enquanto expressão da cultura do povo em questão a
classificaríamos como de extrema complexidade. Análises musicais que não sejam
contextualizadas além de não contribuírem para a compreensão do nicho cultural em que se
inserem acabam sendo reducionistas.
No início, a pesquisa em música procurava desvendar a estrutura destas identificando
suas tonalidades, progressões harmônicas, rítmicas, etc. Há pouco mais de cem anos, iniciouse um movimento que deixou em segundo plano questões como “o que é música?” para se
dedicar à compreensão do “por que a música é deste modo?”: a Etnomusicologia. Tal termo
surgiu em 1950 – por Jaap Kunst – para substituir a expressão “Musicologia Comparada” que
era utilizada para se referir às pesquisas da área desde o século XIX.
Tal escola, que se consolidou a partir de 1956 com a fundação da Society for
Etnomusicology nos EUA, busca entender as práticas musicais como algo além do elemento
sonoro de maneira que a análise etnomusicológica não deve se limitar à estrutura do
fenômeno musical, mas dedica-se a entender os fenômenos culturais enraizados que
produziram tal comportamento musical.
Alan Merriam em seu livro The Anthropology of Music (1964) – um dos clássicos da
área e que ainda hoje tem sido fonte de pesquisa – chama a atenção para o aspecto
antropológico da música e sua integração com a Musicologia.
Para o autor, “A música é um produto do comportamento humano e possui estrutura,
mas sua estrutura não pode ter existência própria se divorciada do comportamento que a
produz” (MERRIAM, 1964, p. 7, tradução nossa)5. Tal consideração é decorrente do
entendimento que o autor tem de “música”:
A música é um fenômeno exclusivamente humano que só existe em termos de
interação social; é feita por pessoas para outras pessoas, e é um
comportamento aprendido. Ele não é e não pode existir por, de, e para si
mesma; deve sempre haver seres humanos fazendo algo para produzi-la. Em
suma, a música não pode ser definida como um fenômeno de som isolado,
pois envolve o comportamento de indivíduos e grupos de indivíduos, e sua
organização particular demanda a concordância social das pessoas que
decidem o que pode e o que não pode. (MERRIAM, 1964, p. 27, tradução
nossa)6
Desse modo, a música é uma forma de relação e comunicação com o meio social, esta
é um comportamento aprendido socialmente. Neste contexto, a música não pode ser entendida
apenas como produto, mas se constitui de um comportamento social.
Para abranger a real complexidade das manifestações musicais é preciso que seja feito
um “estudo da música na cultura” (MERRIAM, 1964, p. 6, tradução nossa)7 de maneira a
entendê-la como um elemento da complexidade comportamental do ser humano8. Por trás de
uma manifestação musical temos crenças e valores que a identificam com sua respectiva
cultura e que justificam, de certo modo, seu acontecimento.
Merriam elaborou um modelo, que seria um subcampo da Etnomusicologia –
Antropologia da Música –, no qual a música deve ser estudada em “três níveis de análise:
conceituação sobre música, comportamento em relação à música, e o som em si mesmo”
(MERRIAM, 1964, p. 32, tradução nossa)9.
Para que se entenda de fato a música é preciso compreender as razões do
comportamento que a produziu. Tais ideias relativas à música, que Merriam chamou de
“conceitos musicais”, são fundamentais para seu estudo. O conceito produz o
comportamento10, e este último, por sua vez, produz o som.
5
No original: “Music is a product of man and has structure, but its structure cannot have an existence of its own
divorced from the behavior which produces it.”
6
No original: “Music is a uniquely human phenomenon which exists only in terms of social interaction; that it is
made by people for other people, and it is learned behavior. It does not and cannot exist by, of, and for itself;
there must always be human beings doing something to produce it. In short, music cannot be defined as a
phenomenon of sound alone, for it involves the behavior of individuals and groups of individuals, and its
particular organization demands the social concurrence of people who decide what it can and cannot be.”
7
No original: “the study of music in culture”.
8
Em obras posteriores – Definitions of ‘Comparative Musicology’ and ‘Ethnomusicology’: Na HistoricalTheoretical Perspective (1977) –, Merriam alterou seu entendimento original de "música na cultura" para
"música como cultura".
9
No original: “three anlytic levels: conceptualization about music, behavior in relation to music, and music
sound itself.”
10
O comportamento também é dividido pelo autor em três níveis: físico, social e verbal.
Contudo, “Conceitos sobre música, então, são fundamentais para o etnomusicólogo
que busca o conhecimento sobre um sistema musical, no qual subjaz o comportamento
musical” (MERRIAM, 1964, p. 84, tradução nossa)11. E, desse modo, o investigador deve
procurar identificar tais conceitos de modo a não aplicar seus próprios conceitos ao
comportamento musical alheio.
Diante de uma prática musical como o Rock que tem relação intrínseca com a postura
comportamental, uma abordagem de tal tipo não é apenas plausível, mas faz-se necessária.
2. A imagem extramusical do Rock
Para uma abordagem que abarque a verdadeira essência do Rock em que está
engendrada a ideia de comportamento, tal qual estamos defendendo aqui, começaremos a
delinear o que é uma atitude rock and roll. Para compreender tal comportamento musical nos
pautaremos na identificação de padrões para que daí possamos nos empenhar em desvendar
ou refletir sobre quais conceitos e critérios os praticantes da supracitada manifestação se
baseiam.
Iniciaremos a reflexão elencando alguns episódios que tiveram atitudes vistas como
rock and roll. Uma vez que pode haver discordâncias acercas das situações que
apresentaremos, não entraremos em questões de mérito, pois tentaremos apenas construir a
imagem que identifica a atitude.
O primeiro caso a ser ressaltado é obviamente a atitude do cantor Ozzy Osborne num
show que aconteceu em janeiro de 1982. O cantor do Black Sabbath durante a apresentação
mordeu um morcego, o que lhe causou alguns problemas de saúde e o levou a tomar injeções
antirrábicas. Após o ocorrido, Ozzy disse não saber que o morcego jogado ao palco por um fã
fosse verdadeiro, pensando que fosse de plástico.
É altamente considerável também a memorável apresentação do guitarrista Jimi
Hendrix. Num show em 1967, Hendrix ateou fogo em sua guitarra, queimando amplificadores
e equipamentos, além de ter sofrido algumas queimaduras que o levaram ao hospital. Depois
deste episódio, repetiu a atitude algumas outras vezes. Tal imagem ficou imortalizada, porém,
antes mesmo de Hendrix, quebrar todos os instrumentos ao final de um show já era prática
11
No original: “Concepts about music, then, are basic to the ethnomusicologist who searches for knowledge
about a music system, for they underlie the music behavior”.
constante do grupo The Who. Esta prática é frequentemente identificada a uma imagem rock
and roll.
Outro episódio interessante é o show do Nirvana no Brasil em janeiro de 1993. No Rio
de Janeiro, Kurt Cobain agiu de maneira depravada, cuspiu nas câmeras da emissora Globo
que transmitia ao vivo o show, e ainda fingiu se masturbar além de destruir diversos
equipamentos de palco. É importante ressaltar que o grupo fez um show imprevisível
utilizando até mesmo instrumentos desafinados e tocando mais lentas ou muito erradas
algumas músicas. O que para muitos, foi considerado o pior show, foi visto como o show
mais rock and roll da carreira da banda.
O vocalista do grupo The Doors, Jim Morrison, também é uma figura importante deste
ideário. Num show em 1969, o cantor foi preso por ter tirado a roupa no palco devido à
influência de drogas e álcool. A mesma imagem era associada à cantora Amy Winehouse, que
nada tinha de Rock em seu som. Entretanto, sua atitude era vista como rock and roll. A
cantora, que morreu devido ao uso de álcool após um período de abstinência, nos últimos
shows de sua carreira se apresentava claramente sob o efeito de drogas e álcool e, inclusive,
tropeçava no palco, esquecia as letras e melodias de suas músicas.
O uso de álcool e drogas é constantemente associado à imagem do Rock por permitir
um abandono da sanidade, um dos modos de se portar contra os ditames da sociedade. Tal uso
pode ser consequência de uma recusa a aceitar os padrões vigentes, como pode ser observado
em diversos casos em que a pessoa se torna viciada nestas substâncias para tentar fugir da
realidade sofrida em que se encontra.
Quando pensamos no cenário Rock brasileiro, é impossível não considerar o rei da
contracultura, já citado em nosso texto: Raul Seixas. Raul, como pode ser notado na letra
“Sociedade Alternativa”, pregou a liberdade sendo uma importante resistência à ditadura
militar. A frase “Faze o que tu queres, pois é tudo da lei”, citada por Raul na música em
questão, abarca essa força libertária representada pelo músico.
Renato Russo também é digno de lembrança. Na primeira entrevista do grupo Legião
Urbana para a TV – entrevista concedida para o programa local de Brasília “Cidade Mágica”
– o músico afirmou “O bom rock n’ roll é uma atitude”. Renato explicava que para fazer Rock
não era preciso de técnica, o mais importante para ele era a atitude. As composições do grupo
tinham um cunho de crítica política e social. Um exemplo deste tipo de letra, que é
continuamente citada como um ícone da juventude, é a música “Geração Coca Cola”.
Logo no início da carreira, Renato Russo chegou a abandonar o palco em um show.
Esta é outra situação bastante associado à atitude rock and roll. Em geral, os músicos
abandonam o palco para mostrar repúdio à organização de um evento ou a uma causa
defendida.
O episódio do Nirvana supracitado, inclusive, se encaixa neste perfil. O músico João
Gordo da banda Ratos de Porão contou recentemente no programa Contos do Rock da
emissora Multishow que antes do show inventou uma história para os integrantes do Nirvana
de que o festival que participariam no Brasil era financiado por uma marca famosa de cigarro
e que não dava oportunidade para bandas underground, o que ocasionou a revolta do vocalista
Kurt Cobain e levou ao péssimo show com intenção de boicote. Diz-se que os músicos do
Nirvana não gostavam da posição em que se encontravam haja vista que faziam parte do
movimento underground. No Rock, a postura de abandonar o show se deve na maioria dos
casos a um repúdio à fama ou ao dinheiro.
Talvez o maior ícone do Rock brasileiro seja Cazuza por sua vida desregrada, louca e
breve, como diz o cantor em uma das suas letras. Em suas letras havia uma forte crítica social,
criticava a política e a postura da população. O cantor, inclusive, foi o primeiro artista
brasileiro a assumir ser portador do vírus do HIV, fato que na época ainda não era bem
esclarecido levando a muitos preconceitos. Suas composições retratavam tão bem as
preocupações históricas que é possível identificar o contexto dos anos 80 através destas.
O titulo “rock and roll” também é conferido a personalidades não musicais. Um
exemplo é o personagem Alex DeLarge do livro A Laranja Mecânica, e filme Laranja
Mecânica. Alex é visto como uma figura rock and roll devido a sua postura subvertedora
diante da sociedade recusando os padrões de comportamento vigentes, não é a toa que a
estética do personagem influenciou diversas bandas de rock. Podemos citar a máscara
utilizada por um dos músicos do grupo Slipknot, que é a mesma do personagem, além do
disco A-Lex do Sepultura, inteiramente inspirado na história do personagem.
Refletindo acerca dos exemplos apresentados, o que há em comum entre as situações
elencadas? Poderíamos dizer que, cada um a seu modo, buscou romper com padrões vigentes,
e isto, exige um agir de modo imprevisível. A imagem rock and roll se caracteriza por um ser
diferente, colocar-se fora do considerado normal.
A análise antropológica, que apresentamos no item anterior deste artigo, se pauta nos
seguintes critérios para compreender uma manifestação musical: a) conceituação sobre
música, b) comportamento em relação à música, c) e o som em si mesmo.
No que diz respeito ao item “c)”, o Rock não apresenta critérios muito rígidos. Em
geral o estilo é caracterizado pelo seu “peso”, a música tem de ser “pesada”. Isto é conseguido
na maioria das vezes por efeitos e técnicas utilizadas pelas guitarras (pedais, tipo de acordes,
tonalidades). A bateria também tem papel importante em conferir tal peso à música. Mas não
é o som que caracteriza o estilo.
No que diz respeito ao item “a)” podemos destacar a busca pela liberdade e a rebeldia.
O Rock é uma filosofia respaldada no agir espontâneo independentemente de parâmetros. É o
imprevisto, o improviso criativo, é o ser diferente. O roqueiro não quer ser mais um. Quer ser
respeitado e entendido pelas suas especificidades, ainda que estas impliquem na loucura.
Quanto ao item “b)”, esta parece ser a dimensão mais característica do estilo, o Rock é
um estilo de vida baseado na subversão de parâmetros, parâmetros estes que ditam os critérios
para o certo/errado, bom/mau, verdadeiro/falso, permitido/proibido, etc.
3. O comportamento rock and roll
Haja vista que o Rock não está no som, tentaremos agora compreender o
funcionamento da lógica do comportamento rock and roll. Pra tanto, apresentaremos o
contexto em que se insere a atitude contestadora que identifica o Rock através do conceito de
Indústria Cultural de Adorno e Horkheimer, e, no momento seguinte, apontaremos a lógica
do comportamento subvertedor através da Teoria dos Sistemas Dinâmicos.
3.1 A Indústria Cultural
Theodor Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1896-1973) no livro Dialética do
Esclarecimento cunharam o conceito de Indústria Cultural, conceito este que acreditamos ser
de extrema importância para delinear o cenário em que a atitude rock and roll se insere.
Com a Revolução Industrial e a ascensão do Imperialismo no século XIX houve
grandes mudanças na maneira como ocorrem a produção e, consequentemente, o consumo. A
Indústria Cultural é decorrência desse novo cenário de produção. Esta se constitui do
processo, por meio de indústrias, de subordinação da cultura às leis capitalistas de mercado de
modo que as empresas e as instituições que a alicerçam no seu processo de marketing têm
como principal atividade a produção de cultura correspondente aos produtos disponíveis e
interessantes para venda. “É o triunfo da propaganda na indústria cultural, a assimilação
neurótica dos consumidores às mercadorias culturais” (ADORNO & HORKHEIMER, 2002,
p. 30).
Por meio deste processo a cultura se subordinou ao capitalismo e passa a ser entendida
e avaliada de acordo com seus fins lucrativos. O que entendemos por cultura é resultado desse
processo pelo qual passamos em nosso cotidiano e que nos dita o que é bonito, útil, desejável,
descolado, inteligente, saudável, etc.
Independente das diferenças culturais, os bens de consumo que desejamos são os
mesmos. “A indústria cultural não sublima, mas reprime e sufoca. Expondo, continuamente, o
objeto do desejo” (ADORNO & HORKHEIMER, 2002, p. 14).
Esse processo de produção cultural decorre de um sistema no qual estão engendrados
rádio, TV, jornais, revistas, internet, gravadores e produtoras de música e filmes, etc; isto é, os
meios de comunicação de massa que através da transmissão não neutra de valores, crenças e
ideias, nos transmitem os ditames a serem seguidos.
Modificando nossos hábitos de vida, os meios de comunicação de massa aumentam o
consumo das grandes empresas favorecendo o sistema capitalista. Transformam, assim,
manifestações culturais em mercadorias.
Desse modo,
Reduzido a material estatístico, os consumidores são divididos, no mapa
geográfico dos escritórios técnicos (que não se diferenciam praticamente
mais dos de propaganda), em grupos de renda, em campos vermelhos,
verdes e azuis. (ADORNO & HORKHEIMER, 2002, p. 4)
A impudência da pergunta retórica: "Que é que a gente quer?" consiste em
se dirigir às pessoas fingindo tratá-las como sujeitos pensantes, quando seu
fito, na verdade, é o de desabituá-las ao contato com a subjetividade. Se
algumas vezes o público recalcitra contra a indústria do divertimento, tratase apenas da passividade - que se tornou coerente - para que ela o educou.
[...] Ele mesmo como indivíduo é absolutamente substituível, o puro nada.
(ADORNO & HORKHEIMER, 2002, p. 17)
Na indústria cultural o indivíduo é ilusório. [...] A particularidade do Eu é
um produto patenteado, que depende da situação social e que é apresentado
como natural. [...] A pseudo-individualidade é a premissa do controle e da
neutralização. (ADORNO & HORKHEIMER, 2002, p. 23)
O indivíduo é desenvolvido pela sociedade capitalista e é apenas estatística. O sujeito
é um objeto. Os indivíduos são constantemente subordinados à lógica capitalista do consumo.
Nesse contexto, refletir não está em foco, a sedução é a força da Indústria Cultural. Nesse
sentido, “A passividade do indivíduo o qualifica como elemento seguro” (ADORNO &
HORKHEIMER, 2002, p. 22). Tudo é padronizado para vender mais.
A técnica usada na produção de bens materiais é transportada para a produção de
sujeito e da arte. Os filmes, as músicas, as estrelas, são produzidas milimetricamente para
seduzir. Recursos tecnológicos ajudam nos efeitos especiais e na afinação do cantor. A
imagem projetada é sempre perfeita. Somos adestrados a desejar e a manter o sistema
capitalista.
Tal cenário originou um movimento chamado de Contracultura. A contracultura se
constitui justamente do processo de resistência ao sistema da Indústria Cultural. Nas palavras
de Pereira, a contracultura pode ser entendida “como uma postura, ou até uma posição, em
face da cultura convencional, de crítica radical” (1983, p. 14).
É um movimento de recusa dos padrões de comportamento promovidos pela Indústria
Cultural. Tem entre seus ideais uma forte presença de pensamentos anticonsumistas criticando
severamente a lógica capitalista e os meios de comunicação de massa.
E é nesse viés que se insere a atitude rock and roll. Como se pode observar nas letras
de músicas de Rock, algumas delas citadas no item anterior deste artigo, o Rock estabelece
forte crítica ao capitalismo e continuamente se coloca contra estes ditames.
O Rock também foi inserido na lógica capitalista da Indústria Cultural, no entanto, os
músicos que se conectam passivamente ao mercado são mal vistos pelos fãs. Como
ressaltamos acima, Kurt Cobain não se sentia confortável na figura de uma estrela da música,
o verdadeiro roqueiro não se submete ao mercado. “[...] o rock pressupõe [...] a integração do
conjunto ou do vocalista com o público, procurando estimulá-lo a sair de sua convencional
passividade perante os fatos” (CHACON, 1982, p. 6).
3.2 Parâmetros vigentes e subversão
Uma vez que delineamos o cenário cultural atual e o papel do Rock neste,
explicitaremos agora como se dá dinâmica de estabelecimentos de parâmetros sociais e sua
consequente subversão.
Considerando a Teoria dos Sistemas Dinâmicos, distinguimos dois tipos de parâmetros
que determinam os comportamentos: parâmetros de controle e parâmetros de ordem. O
primeiro destes parâmetros, parâmetro de controle, é entendido como aquilo que possibilita o
comportamento de um determinado elemento do sistema. Pensando no sistema “sociedade”,
os parâmetros de controle são as condições para que um indivíduo se comporte de
determinado modo.
Por exemplo, para que um grupo de rock toque uma música é preciso da presença de
músicos, instrumentos, equipamentos necessários, local, além da partitura, som, cifra ou
alguma referência para que esta seja executada. Tais fatores é que possibilitarão a execução da
música.
Já os parâmetros de ordem emergem da interação entre os parâmetros de controle. No
caso em questão poderíamos considerar o gênero musical, uma vez que isto ditará o modo
como devem ser executadas as notas da música. São parâmetros de ordem também a
tonalidade da música, pois determinará quais notas e acordem farão sentido na música, e
também a afinidade entre os músicos. Tais parâmetros resultam da interação entre os
parâmetros de controle e agem de modo retroativo sobre os músicos.
É neste viés que se insere Edgar Morin ao elencar como um dos princípios do
pensamento complexo o “Princípio hologramático” (MORIN, 2000, p. 32). Este visa
explicitar a relação parte-todo de modo a entender que não apenas a parte está no todo, mas o
todo também está nas partes. Para compreender tal enunciação basta pensarmos na sociedade.
Enquanto indivíduos somos produtores da sociedade, no entanto, a sociedade enquanto
portadora de leis, linguagem e cultura próprias nos produz. Como indica Morin (2000, p. 23),
“Produzimos a sociedade que nos produz”. Dessa maneira, somos produtores e produto
simultaneamente e não há uma causa única neste processo. É neste sentido que Morin entende
que “o efeito atua retroativamente sobre a causa” (MORIN, 2000, p. 22).
Tais elementos que possibilitam a atuação em sociedade – linguagem, cultura, local,
etc – são parâmetros de controle que, através de sua interação e geram parâmetros de ordem
que determinarão os modos de agir. Enquanto os primeiros parâmetros se desenvolvem em
plano micro, os outros se constituem no plano macro da interação entre os primeiros.
Temos nosso comportamento regido fortemente por estes parâmetros. Uma atitude
rock and roll parece ir no caminho contrário deste movimento, buscando romper com tais
parâmetros.
[...] as questões políticas e a arte e, em especial, o Rock estão quase sempre
ligados a um questionamento da superestrutura do sistema, ou seja, nos
níveis do político, do cultural e do comportamento do sistema que trazem,
obviamente, reflexos sobre a infraestrutura. (CHACON, 1982, p. 20)
Considerações Finais
Merriam nos mostra o quanto a música está intrincada numa rede complexa de
relações irredutíveis a apenas seu aspecto formal/estrutural atentando para necessidade de se
levar em conta seu aspecto antropológico. Haja vista que a música é um comportamento
social, o autor frisa que “Sem um entendimento dos conceitos, não há real entendimento da
música” (MERRIAM, 1964, p. 84, tradução nossa)12. Assim, para compreender diferentes
comportamentos musicais é preciso levar em conta não apenas as escalas, ritmos e notas
executadas, pois estão imbricadas neste comportamento diversos outros elementos
antropológicos/sociológicos que carregam crenças, valores e ideias.
Diante disso, neste artigo, procuraremos identificar tais crenças, valores e ideais
subjacentes ao Rock, estilo musical que acreditamos se caracterizar por uma atitude. O Rock,
no domínio da contracultura, mantém uma postura de recusa diante da Indústria Cultural e da
sociedade como um todo.
A técnica pregada pela cultura de massa é subvertida pelas notas desafinadas e
barulhentas do Rock e surpreendida pelas atitudes imprevisíveis dos roqueiros que passam
longe dos ditames da perfeição. O Rock é contestação, é um libertar-se do que é entendido
como certo e aceitável.
Para combater o poder do Estado e o consumismo burguês, fazia-se
necessário participar. Como? De várias maneiras. Podia ser construída
uma barricada (como em 68), escrevendo um poema (como Guinsberg),
dormindo numa cama de hotel (como Lennon), experimentando LSD (como
Thymothy Leary), gritando numa passeata (como na Marcha pelos Direitos
Civis, em 1963), recusando o alistamento (como Muhammad Ali), usando
casacos de couro (nos anos 50), vestindo como hippie (nos 60) ou punk (nos
70) (como qualquer jovem) ou compondo e cantando num festival (como
tantos rockeiros). Em 1970 Antônio José Saraiva dizia: "A civilização já só
nos oferece a perspectiva de haver cada vez mais máquinas para fabricar
mais objetos e distribuir mais objetos para os comprar (...) cada vez mais
igualdade entre os indivíduos condicionados em série; cada vez menos
imprevistos, menos gritos, menos lágrimas".
O que o Rock busca é esse imprevisto, esse grito, essa lágrima. Fazendo o
jovem refletir sobre seus valores (a família, o sexo, a droga, o amor, o
irreal) ele contribui para a formação de um homem mais livre, mais
conhecedor de si próprio e portanto mais consistente ao encarar as questões
políticas stricto sensu, que atingem a sociedade como um todo. (CHACON,
1982, p. 24)
Referências
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para TV. Disponível em: <http://blogfilhosdarevolucao.wordpress.com/2012/10/31/arquivo-o12
No original: “Without an understanding of concepts, there is no real understanding of music”.
bom-rock-n-roll-e-uma-atitude-diz-rr-em-uma-das-primeiras-entrevistas-para-tv/>.
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