Faculdade de Belas Artes – Pintura 2013/2014 Cláudia Sofia Marques Furtado nº7676 História da Arte I – Professor Luís Jorge Gonçalves The Mind In The Cave David Lewis-Williams Cláudia Furtado, Pintura 2013/2014 Índice Introdução................................................................................................................................. 3 Biografia do autor – David Lewis-Williams........................................................................... 3 Obras publicadas................................................................................................................... 3 Desenvolvimento ...................................................................................................................... 4 Três Cavernas: Três Unidades de Tempo ............................................................................... 4 Descobrindo a Antiguidade Humana ..................................................................................... 5 Procurando respostas ............................................................................................................. 7 Ilusão Criativa ....................................................................................................................... 9 A Matéria da Mente ............................................................................................................ 10 Caso 1 – Arte Rupestre de San na África do Sul .................................................................. 12 Caso 2 – Arte Rupestre no Norte de África .......................................................................... 17 A Origem da realização de imagens ..................................................................................... 19 A Mente na Caverna............................................................................................................ 23 Caverna e Comunidade ....................................................................................................... 26 Caverna e Conflito .............................................................................................................. 29 Conclusão ............................................................................................................................... 31 Bibliografia............................................................................................................................. 32 2 Cláudia Furtado, Pintura 2013/2014 Introdução No âmbito da disciplina de História da Arte I, este trabalho procura resumir o livro The Mind in the Cave, da autoria de David Lewis-Williams, cuja temática se incide sobre a Arte Paleolítica. De seguida, será apresentada uma breve biografia do autor. O trabalho está organizado segundo a ordem do livro, sintetizando os aspectos mais importantes de cada capítulo. Na conclusão, apresento ainda uma comparação entre a obra de Lewis-Williams e As Religiões da Pré-História de Leroi-Gourhan, duas obras indispensáveis ao estudo dos nossos antepassados. Biografia do autor – David Lewis-Williams Nascido em 1934, na Cidade do Cabo, na África do Sul, David Lewis-Williams é um arqueólogo e historiador, com um doutoramento em Antropologia Social. Foi director do Rock Art Research Institute, em Joanesburgo e professor de Arqueologia Cognitiva. É conhecido pelas suas pesquisas exaustivas em torno da arte e de crenças, nomeadamente as práticas xamãs no Paleolítico. Lançou The Mind in the Cave em 2002, em Londres e em 2005, em Madrid. Nesta obra, Lewis-Williams apresenta as suas ideias sobre a evolução da mente humana e o processo da criação artística, concentrando-se sobretudo nas primeiras pinturas rupestres do Paleolítico Superior e que foram descobertas no século XIX. Incide as suas pesquisas em várias cavernas como Chauvet, Altamira e Enléne, recolhendo nestas diversas provas. O autor tentar procurar respostas às questões relacionadas com o porquê do surgimento da criação da arte no Paleolítico, o seu significado, a interpretação de imagens, e o mundo dos xamãs e dos estados de alucinação que têm um papel importante na criação e interpretação da arte. Segundo David Lewis-Williams, a exploração destas questões, levar-nos-á a perceber a essência do que é ser humano hoje. Obras publicadas David Lewis-Williams publicou ainda as seguintes obras: Believing and Seeing: Symbolic Meanings Southern San Rock Painting; Discovering Southern African Rock Art; Conceiving God: The Cognitive Origin and Evolution of Religion; The Shamans of prehistory: Trance magic and the painted caves. 3 Cláudia Furtado, Pintura 2013/2014 Desenvolvimento Três Cavernas: Três Unidades de Tempo No início do livro, o autor apresenta-nos três casos que se situam em três unidades de tempo diferentes. Na primeira, entre os 13/14 mil anos, nas Grutas de Volp (Enlène e Les Trois Frères), em França, um homem entra na caverna com uma tocha acesa e um dente de urso na mão. Aventura-se no meio da escuridão, e encontra a câmara que pretendia (onde se encontra a figura de um leão cravada numa parede). Aí crava o dente que trazia consigo, e segue até à câmara seguinte, onde é confrontado com inúmeras imagens de animais e figura antropomórficas (metade humanas, metade animais) pintadas nas paredes. O segundo caso já se situa no ano de 1660, na Gruta de Niaux, também em França, onde Ruben de la Vialle e os seus companheiros entraram na caverna mais profunda, o Salão Negro (Salon Noir) e inscreve o seu nome e a data na parede, junto de várias imagens aí pintadas, como comemoração da sua visita à gruta. O autor realça que ninguém pareceu dar atenção a nenhuma das pinturas da caverna. A terceira unidade de tempo é a mais próxima dos nossos dias e é datada a 1994, na Gruta de Chauvet, em França. Três amigos resolvem investigar a Arte Paleolítica e a 18 de Dezembro encontram esta gruta. Começam a remover as pedras da entrada, para que pudessem passar os três, e o túnel que seguem leva-os a uma câmara. Começam a explorá-la e encontram imagens de animais, impressões digitais e pegadas. Numa outra câmara larga, encontraram um painel de cabeças de cavalo, muito bem pintadas e noutra, igualmente profunda, uma série de cabeças de leão. Entusiasmado com a exploração e descoberta que fizeram, relatam a sua experiência ao mundo. Estes três períodos demonstram a maneira de ver e de pensar distinta dos intervenientes e é sobre estas diferenças que vão incidir vários capítulos. 4 Cláudia Furtado, Pintura 2013/2014 Descobrindo a Antiguidade Humana Neste capítulo, David Lewis-Williams incide-se sobre a importância e o impacto que as descobertas da arte do Paleolítico e as teorias de Darwin tiveram sobre o modo como pensamos sobre nós próprios e o nosso lugar na Natureza e na História. Inicialmente, aborda as questões levantadas pela primeira unidade de tempo, nomeadamente “quem eram estas pessoas”, “porque faziam isto”, “que idade teriam”, “seriam homens ou mulheres”, “qual o significado da caverna” e “quais as suas crenças”. Explora também a dualidade entre racional e irracional, questionando-nos acerca da diferença entre inteligência e consciência. O período entre o segundo e o terceiro casos mostra a evolução da mentalidade, mudança que abriu muitas portas e fez com que o mundo ganha-se noção de que a humanidade teve um passado e esta revelou curiosidade em revelar e entender as suas verdadeiras origens - no segundo caso, os homens não desprezaram aquilo que viram, mas simplesmente não compreenderam a sua importância, contrariamente à exploração voluntária do grupo do século XX que se dirigiu à gruta à procura de novas provas. Sem dúvidas que a teoria de Darwin provocou grandes discussões após a sua publicação. A Origem das Espécies, que explica não só, como o título indica, a origem das espécies como também a selecção natural. Esta teoria pôs em causa juízos morais e sociais ao afirmar que o homem descendia do macaco e não de um ser supremo, como o Cristianismo defendia. Como a demonstração prática desta e de outras teorias não era possível, também os métodos de investigação foram modificados, tendo que seguir algumas normas. A reunião de dados e de matéria de forma a criar hipóteses coerentes era um factor imprescindível para que as teorias não fossem vistas como desvaneios ou epifanias. Os dados não eram recolhidos aleatoriamente, mas pois era feita uma selecção dos que eram mais relevantes e importantes para a construção de hipóteses ou teorias. Apesar da Origem das Espécies não apresentar as evidências necessárias, pois não existiam fósseis na altura que provassem esta teoria, causou um grande furor na comunidade científica. A Arte Paleolítica foi sendo descoberta e investigada, acentuando o conhecimento deste período pré-histórico. Porém, muitos exploradores foram considerados fraudes por não reunirem provas suficientes nas suas pesquisas. É a arte móvel e a descoberta do período Glacial que se descobre a existência de animais já extintos. A própria diferença entre parietal e móvel foi motivo para grandes discussões. E a comprovação de uma consciência primitiva foi alvo de outros debates. O uso de técnicas variadas assim como o aproveitamento das formas das próprias paredes sugerem algo mais que a simples representação. No final de 1870, a maioria das pessoas já acreditava que a história humana não estava isenta de conceitos de uniformidade e de evolução. 5 Cláudia Furtado, Pintura 2013/2014 Em 1879, surge Marcelino Sautola, que procurou vestígios de homens préhistóricos na gruta de Altamira, em Espanha. Juntamente com a sua filha descobrem imagens pintadas no tecto da caverna, diferentes das encontradas até à altura. Esta descoberta é revelada no livro Breves apuntos sobre algunos objectos prehistoricos de la provincia de Santander, que foi um fracasso – foi recebido com cepticismo pela parte de alguns, acusando várias das imagens como falsas, mas outros catalogaram-nas como pertencentes ao período Magdalenense. Nas décadas seguintes, o estudo da Arte Parietal e móvel aumentou, consideravelmente, na França. Em 1900, o abade Henri Breuil, iniciou o estudo da Arte do Paleolítico Superior, associando-se à descoberta de grutas, onde compreendeu a variedade e a complexidade deste período. Procurou ainda estabelecer uma cronologia, baseado nos níveis arqueológicos, e entendeu a Arte do Paleolítico Superior como a consequência de práticas mágicas que asseguravam, ao grupo, caças abundantes e a fecundidade das mulheres e dos animais. Apesar do fracasso de Sautola, após a sua morte foi reconhecida a importância da gruta de Altamira. Esta estava repleta de pinturas, algumas com detalhes que podiam ser interpretados de diversas formas. É em 1950 que, com a descoberta da técnica do rádio de carbono por parte de Williard F. Libby, foi possível analisar o início e a duração do Paleolítico e assim distinguir os vários períodos existentes: o Paleolítico Inferior (durou cerca de 3 milhões de anos e estavam presentes o Homo Habilis e o Homo Erectus, cujos fósseis foram encontrados sobretudo na África), o Paleolítico Médio, antecessor do Superior (foi dominado pelo Homo Neanderthalensis). O Homem de Neandertal confrontou-se com uma outra espécie, o Homo Sapiens. Esta transição deu-se há 35 mil anos atrás e mostra um importante período de transição da história humana fundamental para o conhecimento da arte pré-histórica. 6 Cláudia Furtado, Pintura 2013/2014 Procurando respostas “O que é que levou o Homem do Paleolítico Superior a fazer estas pinturas?”. O segundo capítulo começa com esta questão, a qual tem sido abordada ao longo dos anos e ainda perdura nos dias de hoje. Antes de mais, é importante referir que os homens primitivos não faziam arte com a mesma consciência de que temos hoje. Recuperando a Teoria de Darwin, esta foi utilizada para explicar um dos grandes problemas envolvido na origem humana – a concepção artística – baseando-se na crença de um reino não material. Continua a não ser fácil perceber o porquê dos homens primitivos fazerem arte e as dúvidas foram surgindo. Porém, a palavra “arte” surgiu ingenuamente, pois na altura, estes homens não sabiam que a estavam a fazer. Cada investigador interpretava as suas descobertas à sua maneira, transformando teorias simples em complexas. Essa complexidade chegava a um ponto que não os deixava continuar. Inicialmente foi atribuído um carácter decorativo à Arte do Paleolítico Superior e os primeiros estudos incidiam na teoria da “arte pela arte”. Segundo esta explicação, os homens sem religião desenhavam uma série de elementos decorativos, apenas pelo desejo produzir algo “belo” ou por puro prazer. A arte Paleolítica tinha, deste modo, origem no ócio. Num ambiente de grande abundância de comida, o Homem não necessitava de dispensar todo o seu tempo a caçar e a arte aparece, para ocupar o seu tempo ou por surgimento de novas ideias. No início do século XX, surge a Sociologia e a Antropologia, que despertam um interesse crescente sobre as comunidades pré-históricas. Destaca-se Salomon Reinach que explicou a importância de examinar o modo como viviam estas comunidades, pois a arte desse tempo não pode ser entendida fora do seu contexto social (o mesmo acontece com a arte de hoje). Reinach foi o homem que compreendeu melhor o Paleolítico Superior através da antropologia e da etnografia. Ao explorar as vivências e o modo de vida no Paleolítico Superior, surgiu então uma ideia de totemismo. No início do século, esta palavra ainda se encontrava por definir. Alguns investigadores sugeriram que as imagens nas cavernas eram "totens" decorados com pequenas imagens de animais, figuras e até mesmo predadores, que podiam estar associadas a um clã. Os totens também mostravam determinadas espécies, o que possibilitava a criação de grupos de diferentes tipos. Em primeiro lugar, estes podiam justificar o facto e a razão pela qual as imagens se encontravam em grutas e que incidiam no facto de eles desejarem o que era representado. Chamaram a esse acto o desejo de querer o que as imagens representam, ou seja, “magia simpática”. No Paleolítico Superior, essas imagens representavam o sustento da comunidade, que fazia de tudo para obter esse alimento, daí os rituais feitos para a formação de imagens. A “magia simpática” obteve assim duas explicações para a sua existência. Se por um lado, alguns investigadores apoiaram que se tratava simplesmente de uma mistura de linhas que eventualmente constituíam as imagens, por outro, alguns autores afirmavam que só era utilizada quando fosse precisa em tempos mais difíceis, como por exemplo nas caçadas para obter alimento. Reinach afirmou ainda que era necessário fazer-se uma introspecção da forma como a ciência avança, 7 Cláudia Furtado, Pintura 2013/2014 para permitir a apresentação de hipóteses bem estruturadas e consistentes, que levariam ao avanço e não ao recuo da ciência. O autor, David Lewis-Williams, complementa esta opinião, fazendo referência a cinco critérios essenciais para uma boa teoria: a explicação deve concordar com trabalhos gerais aceites; as hipóteses devem ser coerentes; deve abranger o maior número de dados e campos; deve ser feita uma dedução a partir de feitos já realizados; e deve levantar mais questões. O uso destes critérios não levará a uma resposta, mas poderá apresentar soluções ou alternativas mais coerentes. Posto isto, Andre Leroi-Gouhran fez referências ao estruturalismo e à mitologia para defender os primitivos, confirmando que estes conceberam o mundo material através da sua forma de pensar. Este investigador acreditava ser possível dividir e agrupar as espécies de animais, representadas nas grutas, de forma a entender como é que estavam estruturadas as mentalidades, tornando-se necessário distinguir os vários tipos de arte para explicar as relações sociais e mentalidades dos nossos homens préhistóricos. Foi Leroi-Gouhran que definiu uma sequência cronológica e cultural das representações, analisando e comparando as peças de arte móvel e parietal. 8 Cláudia Furtado, Pintura 2013/2014 Ilusão Criativa Em 1857, enquanto escavava uma caverna conhecida como Felhofer Grotto, na Alemanha, um trabalhador descobriu ossos humanos, referentes a uma parte da pélvis e um crânio. A gruta estava localizada em Neander Valley, local dedicado a Joachim Neander, um professor e teologista do século XVII, e do qual deriva a palavra "Neandertal". No início, estavam convencidos de que se tratavam de ossos de ursos já extintos. Fuhlrott discordava dizendo que o crânio não podia ser de um urso devido às características que apresentava como o facto de a testa ser grossa e ligeiramente inclinada para trás. Apesar das muitas hipóteses que foram colocadas, Fuhlrott estava confiante de que iria desvendar o mistério, e para tal, o livro “Origem das Espécies” de Darwin, foi bastante importante. Com o avançar do tempo, as investigações progrediram e descobriu-se que se tratavam de vestígios de Homo Sapiens Neanderthalensis. Huxley ponderou seriamente de o "Homem de Neandertal" seria a ligação que faltava entre os primatas e o homem moderno. Começaram a abordar-se os problemas do que hoje conhecemos como a “Transição” do Médio para o Paleolítico Superior, a época em que, na Europa Ocidental, o Neandertal desapareceu, deixando o Homo Sapiens como única espécie humana. Inicialmente, a discussão centrou-se na Europa Ocidental, especialmente no sudoeste da França e no norte da Espanha, onde a “Transição” está bem documentada e estudada. Nestas regiões, este período situa-se entre os 45.000 e 35 000 anos atrás. Não restam dúvidas de que surgiram uma série de mudanças sociais e mentais. Muitos estudiosos tendem em concluir que a arte desse período foi um elemento simbólico causado pelas mudanças ambientais. Porém, o autor afirma que, para ele, a arte “não deveria ser vista como o simples resultado de algo”. A arte não foi o resultado final do desenvolvimento estético, mas o senso estético é que foi a consequência da produção de arte. 9 Cláudia Furtado, Pintura 2013/2014 A Matéria da Mente Com a descoberta da arte do Paleolítico Superior surgiram várias teorias de historiadores. Lewis-Williams afirma que as mudanças climáticas e ecológicas provocadas pelas temperaturas de Inverno, fazia com que os nómadas não se movimentassem, quando pelo contrário, com a temperatura de Verão eram levados a procurar locais quentes onde pudessem sobreviver. Estas movimentações eram visíveis na arte descoberta. Na criação dos artefactos de pedra, ossos, chifres, etc. comparam-se o Homo Neandertal e o Sapiens. O primeiro inovou nas estratégias de caça e nos enterros, mas eram muito parecidos nas técnicas construtivas. Obviamente, as ferramentas de pedra foram sendo aperfeiçoadas indo para além da sua funcionalidade. Começam a formar-se identidades individuais e de grupo. Ao longo do capítulo, Lewis-Williams tenta compreender a mente e o cérebro pondo em evidencia que foi preciso explorar a neuropsicologia – o estudo de como o cérebro e a mente funcionam, para se perceber o que levava estes povos a fazer o que hoje se chama de arte. Pondo em pé de igualdade mente e cérebro, sabe-se que a mente é uma projecção, uma abstracção e a sua essência pode ser discutida até à exaustão, é uma matéria muito vaga comparada com o estudo do cérebro, considerando que o próprio cérebro pertence mais ao corpo físico não sendo tão vago como a própria mente em si. Os psicólogos dizem que as pessoas anatomicamente modernas têm uma melhor interacção por módulos do que os restantes animais. A inteligência social; a inteligência técnica; história natural da inteligência e inteligência linguística são os quatro módulos mentais apresentados. Continuando com as noções cérebro/mente, o desenvolvimento destas é descrito posteriormente. Uns dizem que a consciência é a sensação criada por electroquímica no sistema cerebral, outros dizem que é como a religião. Inteligência e consciência cooperam uma com a outra, no entanto, há que distingui-las. As formas em que o cérebro está neurologicamente estruturado e as maneiras pelas quais ele funciona electroquimicamente sugerem que devemos pensar na consciência como um espectro abrangente. São também referidas as dependências dos módulos mentais, perante o comportamento animal e humano, a ausência de informação directa perante as mentes antigas. A inovação tecnológica começou a permitir testar ligações entre os tipos de comportamento e as específicas localizações do cérebro. No subcapítulo “O espectro da consciência”, existem dois tipos de estados – o Sono e o estado de estar acordado. Até chegarmos ao sono passamos por vários estados, que constituem um espectro, criado por Martindale, havendo ainda outros pesquisadores que imponham menos ou mais estados. Em seguida, passamos para a fase na qual 10 Cláudia Furtado, Pintura 2013/2014 sonhamos e depois para o sono profundo "inconsciente”. Isto é simplesmente um produto da forma como o cérebro funciona. O modelo neuro psicológico diz-nos: 1. Que as pessoas podem provar percepções visuais geométricas, incluindo pontos, grelhas… tudo isto pode ser visualizado até mesmo com os olhos fechados ou abertos, pois é independente da existência de uma luz exterior; 2. Descreve a existência de uma trajectória onde está presente um fenómeno entóptico elaborando formas icónicas similares aos objectos da vida real; 3. Que as imagens icónicas provêem de memórias por norma interligadas a experiências emocionais de elevada intensidade, onde as imagens trocam uma para a outra, associadas a um grau de vivacidade aumentados. Relativamente ao “aproveitamento do cérebro” nota-se que durante a Transição, e também hoje, devido ao nosso comum sistema nervoso humano, eles nunca evitavam a experiência do espectro da consciência humana, a repetição do que tinham sonhado e isolamento de potenciais alucinações. O xamanismo tem a ver com vários estados de consciência alterados. Os xamãs tinham quatro objectivos: entrar em contacto com espíritos e entidades sobrenaturais; curar; controlar a vida e os movimentos dos animais e por último; alterar o clima. Então, os xamãs eram “detentores” de um poder sobrenatural e muitas vezes eram ajudados por animais e espíritos para controlar esse poder. Peter Frust pôs a possibilidade de que o xamanismo possa ter tido um “poder psicadélico” no meio ambiente natural, pois relaciona-se com os princípios da religião. 11 Cláudia Furtado, Pintura 2013/2014 Caso 1 – Arte Rupestre de San na África do Sul O quinto capítulo da obra em análise é um estudo sobre a Arte Rupestre SulAfricana dos Xamã San, um povo caçador-recolector da Idade da Pedra. Começa com uma abordagem à cultura, religião e expressão artística deste povo e põe em destaque os diferentes idiomas partilhados pelos seus habitantes. Em 21 de Junho de 1874, encontram uma cópia de arte rupestre que demonstrava uma linguagem dessa civilização. Heinrich Wihelm Emmanuel Bleek, um linguista alemão foi para o Sul de Africa para preparar a linguagem Zulu; posteriormente abandona a pesquisa para aprender Xamã. Nesta longa pesquisa, acolheu alguns prisioneiros desta civilização para poder estuda-los. Diä!kwain é o nome do Xamã/San que tornou a cultura e as crenças do seu povo mais compreensíveis aos olhos de civilizações exteriores. Diä!kwain, contactou Bleek, que se dedicou ao seu estudo. Bleek, que conseguiu dominar o idioma dos Xamã San através do estudo da sua gramática e fonética, começou a construir um dicionário com a ajuda da sua cunhada e colaboradora Lucy Lloyd, que tomava nota das histórias, rituais, crenças e mitos que caracterizam esta civilização. Wilhelm Bleek e Lucy Loyd sabiam que os San faziam pinturas rupestres e gravuras nas pedras, contudo nenhum deles tinha tido oportunidade de visitar os locais onde foram realizadas, apenas tinham visto algumas cópias que não permitiam uma avaliação fidedigna da arte San. O geólogo George William Stow apresentou-lhes um conjunto de imagens de Cape Town (1875) que deixou Bleek impressionado pela delicadeza, detalhe, sombreado, grande aptidão no desenho e variedade que a Arte San demonstrava ter. Começou a considerar-se que as imagens podiam ser determinantes na percepção dos mistérios que envolviam a religião San. Bleek tinha razão quando disse que as imagens apontavam para “alguns resultados valiosos e esclareceram muitas coisas até então ininteligíveis ” (Lewis-Williams, 2002: 138), uma vez que eram crenças sobre !gi:tem (sing: !gi:xa), uma palavra usada por Diä!kwain face às cópias das pinturas rupestres de Orpen (feitas no Sul de Drakensberg). A primeira sílaba da palavra !gi, significa “força sobrenatural”, uma energia que havia sido dada aos humanos e que certos animais possuíam, especialmente o “eland” , o maior antílope de toda a África. A segunda sílaba é xa e quer dizer “cheio de”. Por isso, a palavra, !gi:xa significa “cheio de energia” que dizia respeito a uma pessoa, do sexo feminino ou masculino que tivesse dentro de si essa força sobrenatural. Lucy Lloyd traduziu esta palavra por “feiticeiro/a”. David Lewis-Williams propõe “xamã”, que crê ser a tradução adequada. Em 1950, a Família Marshall começou a investigar os Ju’hoan San, um povo que vivia no Deserto Kalahari da Namibia e Botswana, perto da região onde viviam os Xamã/San. Os Marshall mudaram-se para África depois da Segunda Grande Guerra e desde então estiveram sempre em contacto com os San. Com base nas pesquisas desta família, sabemos hoje que cerca de metade dos homens de uma aldeia San são Xamãs. 12 Cláudia Furtado, Pintura 2013/2014 Os San, acreditavam num domínio espiritual onde vivia Deus, membros da sua família, os seus animais, os espíritos mortos e monstros. A tarefa dos Xamãs era aproveitar a sua força sobrenatural para contactar com esse domínio espiritual, entrando num estado de transe. A dança, correspondia ao mais importante ritual religioso dos San. Nessa dança, participavam todos os membros da comunidade e, ao que nos deram a conhecer as pinturas rupestres do Sul, existiam várias formas distintas de realizar esse ritual. Grande parte desses rituais, eram realizados para comemorar a morte de um animal de grande porte. Os grandes Xamãs são aqueles que aprenderam a controlar a sua força interior, e, por isso, são capazes de curar os doentes, extraindo as doenças e transferindo-as para si. Mais tarde, através de um grito, conseguiam expulsar a doença do seu corpo. Também se acreditava que, num estado de transe profundo, os xamãs conseguiam abandonar o seu corpo. Todos os grupos San partilham a mesma fundação religiosa, apesar de existirem diferenças entre eles, nomeadamente as linguísticas. Ocupando um lugar central estão as relações com o mundo espiritual, a dança e as actividades dos xamãs. Para os San, bem como para outras sociedades xamãs, o xamanismo não é de todo uma opção, mas sim a essência da sua vida. Outros rituais que envolvem a dança e a celebração da “produção” e “reprodução” são a iniciação à caça para os rapazes e a dança dos elã nas primeiras menstruações para as raparigas. Outros conceitos importantes – transe (!aia), força sobrenatural (n/om) e um poder relacionado com o tempo meteorológico, nascimento de bebés e caça (n!ao) – são pontos de referência numa análise à cultura dos Ju/’hoansi. A experiência de transe está, então, incutida nos mitos e nas histórias destas culturas. Tal como a arte rupestre San. Para o abade Henri Breuil, a Europa era a origem da arte pois a maior parte dos pesquisadores viam a arte rupestre Sul-africana como sendo simples com imagens do quotidiano da comunidade. Os estudiosos, não deram muita importância à investigação feita por Bleek e Lloyd, até às décadas de 60/70, quando alguns investigadores se debruçaram sobre os seus estudos e simultaneamente sobre o trabalho da Família Marshall. No início, o autor considerou que a etnografia San era como que impenetrável, pois não era fácil ver como estava relacionada com as imagens de arte rupestre. Posteriormente, percebeu-se que a etnografia não explicava a arte directamente. Isto acontece porque quer a etnografia, quer a arte, precisam de explicação já que ambas são penetradas e constituídas por um conjunto de metáforas. Mesmo que pareçam representar figuras realistas, as pinturas e gravuras San revelam sinais de terem sido processadas pela mente humana, percorrendo o espectro da consciência (em estado de transe). Os San explicavam as suas imagens nos seus próprios termos, não na linguagem dos antropólogos. David Lewis-Williams afirma que um dos temas centrais deste livro é a conexão entre a metáfora, mente, imagem, sociedade e universo. Para a explicar, opta por descrever o cosmos San e os seus reinos espirituais. 13 Cláudia Furtado, Pintura 2013/2014 No tópico “Cosmos no cérebro”, o autor assume que a religião dos San é constituída em volta da crença de um Universo de camadas. Eles acreditavam num reino situado acima do mundo onde viviam e outro situado por baixo. Essas noções tinham origem nas suas experiências mentais, nomeadamente aquelas que estavam relacionadas com o submundo e aquelas que faziam referência a um reino acima. Na noção de submundo, são exemplos as experiências debaixo de terra e de água. No tópico “Cosmos e arte” são apresentadas três imagens de pinturas San Sulafricanas. Na primeira, fig. 30 da página 148, o pintor conseguiu sugerir ambas as experiências subterrâneas e subaquáticas. As figuras surgem debaixo da terra, e estão associadas com criaturas aquáticas. Depois são pintadas linhas que representam raios de luz que, os xamãs San dizem que escalam quando visitam a Casa de Deus no céu. Não existe certezas nem provas de que eram só os xamãs que pintavam, mas parece bastante provável já que eram eles que atravessavam e contactavam com o mundo dos espíritos e, ao mesmo tempo, viviam no mundo terrestre. No entanto, esta hipótese não induz que os xamãs pintavam enquanto estavam em transe, pois as pinturas eram muito delicadas para terem sido feitas pela mão trémula de um xamã em transe. É por isso mais plausível que as tenham executado conscientes, reproduzido ou recriando as suas experiências pelos reinos sobrenaturais. Lewis-Williams defende que os três níveis do universo (as três camadas do cosmos) não eram meramente conceptuais; eram manifestadas nos abrigos de pedra. Continua, dizendo que as imagens pintadas sobre o outro mundo faziam sentido por causa da sua localização, entre o que era material e o que era espiritual. Estas imagens, feitas nos muros dos abrigos, eram as “portas” de acesso para os reinos espirituais que as pessoas comuns não eram capazes visitar. Assim, através das pinturas, podiam ter uma pequena visão de como esses reinos eram. Na fig. 31, da página 150, está representada uma grande criatura que, segundo as crenças San, é o animal da chuva (xorro). Para os San, a chuva era um animal que passeava ao longo da terra com as suas pernas. Na pintura, a ideia de ambiente subaquático e representada pelo próprio animal da chuva, enquanto a ideia de voo é representada pelas assas e penas. As figuras humanas e o “xorro” estão associados aos zig zags, possivelmente representações das visões resultantes de um alterado estado de consciência . (ver fig. 32,pág.150) - animal da chuva a ser guiado, saindo da água em direcção aos céus. O animal movimenta-se sobre uma linha na horizontal, da esquerda para a direita. À esquerda, foram desenhados peixes e, à direita, pássaros. Trata-se da representação gráfica dos três níveis do universo, sendo que os peixes são um atributo do submundo (experiências debaixo de água) e os pássaros surgem como figuras do reino do céu (experiências de voo). Até agora, as imagens que foram apresentadas neste capítulo diziam respeito ao chamado Stage 3. No seguinte tema, o autor irá explicar as imagens relacionadas com o Stage 1 e Stage 2. O tema seguinte inicia-se com uma analogia entre as pinturas e as gravuras na pedra. As pinturas eram feitas nos abrigos de pedra, enquanto as gravuras se encontravam em planícies, feitas sobre pedras planas e superfícies rochosas. Ao 14 Cláudia Furtado, Pintura 2013/2014 contrário dos pintores, os gravadores aparentam ter tido mais interesse nas imagens mentais geométricas. Os pintores exploravam as imagens do fenómeno entóptico e tendiam a incorporá-las em imagens icónicas, enquanto os gravadores lhes deram valores e significados. Na fase 2, a construção de uma forma entóptica como um objecto, revela um certo interesse pois mostra como os xamãs San tinham conhecimento das capacidades neurológicas. Explica depois as três variedades de imagens, destacando os seus elementos principais: um arco e a parte de dentro, uma área de invisibilidade. O autor diz que se sabe, sem dúvida, que os San entravam frequentemente em estados de transe, por isso, teriam de ter a capacidade neurológica para ver o mesmo fenómeno entóptico de toda a gente. Eis que coloca a questão: como eram eles capazes de perceber e construir esse fenómeno? Alguns investigadores analisaram estas pinturas como representações de coisas existentes no mundo real e assumiram que os San as pintavam porque gostavam de mel, e, de facto, gostavam. Mas, perante toda a análise anteriormente feita à arte rupestre San, esta simples interpretação é duvidosa. O autor passa então a explicar, com base na neurologia e na etnografia, porque é que os pintores rupestres construíam as suas visões naviculares daquela maneira. Os alterados estados de consciência provocam transtornos nos sentidos. Ao nível da audição, é comum ouvirem-se zumbidos. Na África do Sul, os San misturavam essa experiência com as alucinações visuais do fenómeno entóptico navicular e, por isso, acreditavam que estavam a ver e a ouvir abelhas voando em enxame à volta de mel. Do ponto de vista etnográfico, os Ju/’hoansi acreditavam que as abelhas eram mensageiras de Deus e que tinham grande força. Por isso, este grupo San gosta de dançar quando há enxames e têm uma dança medicinal chamada “Mel”. O autor defende que alguns artistas constroem estas representações por serem visões de poderosos símbolos – abelhas e mel. A produção de imagens não era um procedimento isolado. Para mostrar como eram feitas imagens num acto social, o autor identifica quatro fases de produção: - É explicada a aquisição das imagens. Os San tinham quatro meios para ter acesso ao mundo espiritual, através dos sonhos, da dança de transe, rituais especiais de cura e da observação da arte rupestre. Cada um destes contextos estava associado a duas oposições que as pessoas podiam explorar para criar ou fazer divisões sociais e políticas. Surge então o indivíduo na sociedade e as visões inesperadas que acabavam por comprometer o estado de consciência. Durante a dança de transe todos concordam que o xamã pode receber revelações, viajar por outras partes dopais e contactar com os outros níveis do universo. - A sociedade é, então, dividida nos que “vêm” e nos que “não vêm” ou “recebem”. Noutro caso, as visões pintadas nas paredes estimulam os observadores a terem visões semelhantes e as pessoas tendem a alucinar quando esperam alucinar. Os sonhos são o contexto mais pessoal no qual os xamãs podem ter visões ou receber novas canções medicinais. 15 Cláudia Furtado, Pintura 2013/2014 - Em relação à manufactura das tintas, o autor explica como a tinta era feita, destacando um especial tipo de vermelho, derivado do pigmento qharg qharg, que só podia ser encontrado nas altas montanhas de basalto. Para a obtenção desse pigmento, os San faziam uma peregrinação até ao local e uma mulher teria de o aquecer ao ar livre numa noite de lua cheia, até ficar vermelho. - Na realização das pinturas rupestres, o autor sugere que é improvável que todos os xamãs pintassem. Existe, a hipótese da realização da pintura ser, tal como a dança, uma ocasião apropriada para cantar músicas medicinais, fortalecendo assim o trabalho do xamã. Que funções tinham as pinturas na sociedade? As pinturas eram sobretudo fonte de transmissão de energia e força sobrenatural. O último tema deste capítulo tem como título, “Vários significados”. O autor comenta que a maioria das imagens se refere explicitamente, de uma maneira ou de outra, ao mundo espiritual. Unem o mundo material aos domínios espirituais. A arte San tinha muitos significados e faz referência a vários contextos rituais e ao lugar do Homem no universo. Falam das pessoas especiais que têm a capacidade de atravessar as 3 camadas do cosmos. A Arte Rupestre San, começou pela maneira como os San tinham consciência da forma como funcionava o sistema nervoso humano e conseguiam compreender os estados de consciência. A partir daí, o autor, avançou para a ideia de um universo em camadas, conceito sempre presente nas pinturas e gravuras San. A arte rupestre desta comunidade conseguia conjugar o mundo espiritual com o mundo material dos abrigos de pedra. 16 Cláudia Furtado, Pintura 2013/2014 Caso 2 – Arte Rupestre no Norte de África Apresenta-se seguidamente uma relação entre a arte sul-africana com a norte americana, centrando-se o estudo nas comunidades do Oeste norte-americano e da Grande Bacia do Nevada. As investigações em ambos os continentes foram diferentes. Seguindo uma análise antropológica realizada ao longo de um século nesta região, Alfred Kroeber, antropólogo, chegou à conclusão que existiam três áreas culturais relativamente parecidas, com poucas diferenças. Na América do Norte associaram sempre a arte rupestre ao Xamanismo, por haver uma tradição de relação da magia com a caça, praticada ainda hoje pelas comunidades nativas norte-americanas. Relativamente aos sítios onde hoje se encontram as pinturas rupestres, não existe uma explicação consistente que demonstre que serviam para observações astronómicas, visto que os locais que suportam o argumento são, provavelmente, aleatórios. Concentremo-nos então nas crenças, rituais e formas de vida dos nativos. Nos anos 70, Thomas Blackburn tentou clarificar as relações entre a narrativa oral e outros aspectos da cultura, juntando para tal informações sobre todos os grupos de nativos norte-americanos, focando-se mais nos Chumash pois viu que o contraste entre natural e sobrenatural estava presente nas suas narrativas. Os Chumash reconheciam xamãs de vários tipos e Blackburn concluiu que as pinturas eram feitas por eles. O trabalho neuro psicológico que Blackburn, com a sua pesquisa impulsionou grandes avanços na compreensão da arte rupestre norte-americana, contudo era necessário fazer uma interligação da imagem, etnografia e neuropsicologia. Keyser e Whitley encontraram referências etnográficas que associavam a pintura rupestre à busca de visões, viagens onde uma pessoa procurava ver o espírito do animal que o ajudará a alcançar o poder, e referências que mostravam que eram realmente os Xamãs a fazer. Os xamãs nativos norte-americanos, procuravam os espíritos e muitas imagens foram feitas pelos próprios espíritos, segundo as afirmações de comunidades. Quer isto dizer que eram à mesma feitas pelos xamãs, porque estes tinham poderes. Os xamãs embelezavam vários esconderijos com pinturas e lá guardavam o seu equipamento. Alguns esconderijos tinham uma vertente mais sagrada – os mawyucan, que quer dizer, “local de voo”, enquanto outros, os pahdin, eram onde os xamãs se afogavam para poder entrar no mundo sobrenatural. Esta interpretação e ligação com um mundo superior têm parecenças com relatos de outras partes do mundo, mostrando que o sistema nervoso do humano é universal. A pintura rupestre norte-americana não evidência unicamente a busca de visões, mas também encontra-se associada a cerimónias da puberdade onde rapazes e raparigas eram ensinados pelos xamãs. As comunidades não deixavam que as pessoas se distanciassem dos motivos pré-concebidos, exemplo disso são as diferenças entre as pinturas feitas por rapazes e por raparigas. 17 Cláudia Furtado, Pintura 2013/2014 A relação das pinturas norte-americanas com as pinturas sul-africanas são relevantes para o estudo da arte do alto paleolítico, pois todas as comunidades tinham o mesmo sistema nervoso, universal. Whitley encontrou evidência dos três estados de transição de intensificação da alteração da consciência: apreender os temas, identificá-los como objectos importantes e experimentar e participar em alucinações. Identificou também vários temas utilizados pelos xamãs - a morte, a agressão, o afogamento, o voo, relações sexuais, etc. Uma das mais recentes descobertas é a da utilização de pedras encrostadas nas rochas que continham poderes sobrenaturais. Encontraram pedras de quartz branco entre rachas na pedra. Diziam que os cristais eram habitados por espíritos e eram utilizados para cerimónias. Acredita-se que algumas comunidades partiam pedras de quartz branco para que o poder espiritual contido na pedra fosse transferido para o corpo de quem as partia porque, quando se faz fricção entre pedras de quartz, estas brilham como se de um poder sobrenatural se tratasse. É importante referir que a comunidade aceita o que é um xamã e o que este faz, embora nunca tenham visto o reino espiritual. Aceitam que os xamãs consigam viajar entre um mundo e o outro, respeitam, as imagens como materializações de sonhos ou visões sobrenaturais. Porquê? Porque também já sonharam e o sonho é uma evidência da existência desse mundo. A importância do xamã para os nativos norte-americanos aumentou quando estes se passaram a dedicar à agricultura. Esta mudança ampliou as diferenças no sistema de organização social. A forma de manter esta assimetria social foi a arte rupestre e o crescimento político da região. O que difere entre o xamanismo do sul de África e o da América do Norte é o secretismo, enquanto no sul de África os xamãs eram abertos às suas crenças e contavam a todos pormenores da sua viagem, na América do Norte as actividades dos xamãs eram secretas, os xamãs não revelavam todos ou nenhuns detalhes das suas visões, procuravam locais remotos, longe dos outros. Tudo isto colocou os xamãs à parte, física e psicologicamente, e, ou eram respeitados ou temidos pelas pessoas. As manifestações materiais das actividades dos xamãs estabeleceram as relações sociais colocando-os fora da ordem natural, as imagens eram realizadas para ter um determinado impacto na comunidade. Começa a surgir também a ligação entre religião e política já que os chefes aumentavam a sua fortuna com uma relação com o xamã, e o xamã recebia em troca a sua protecção. 18 Cláudia Furtado, Pintura 2013/2014 A Origem da realização de imagens A forma como as mudanças de consciência ocorreram nas pessoas originou a união de vários conceitos: cosmologia, domínios sobrenaturais e arte. É a partir da consciência humana que o ser humano adquire percepção da arte. Um dos tópicos mais comentados pelos escritores trata-se da grande mudança que se deu no oeste europeu, durante o paleolítico superior. Comparado com o paleolítico médio, no paleolítico superior ocorreram muito mais mudanças num período de tempo menor. Grande diversidade de materiais usados na construção de artefactos, novos objectos, o desenvolvimento de ferramentas regionais, típicas, estratégias de caça e trocas de artigos. Decoração de corpos também se desenvolveu. Todas estas áreas não se desenvolveram individualmente: elas estavam interligadas. Durante o desenvolvimento no paleolítico superior é evidente a existência de tensões a nível social que proliferaram e se enraizaram na sociedade. Segundo Max Raphael, historiador de arte modernista, a arte das comunidades do Paleolítico Superior não era simplesmente uma expressão idílica de contentamento, mas sim uma questão de luta e contestação. A arte corporal não podia nunca ter evoluído para imagens/ desenhos de animais. Segundo Henri Breuil, as suas visões dentro da questão da origem da arte baseavam-se numa visão inatista. Segundo ele, as imagens evoluíram a partir de mascaras mas não explicou como isto aconteceu. Outra explicação seria que as pessoas de repente teriam pintado na parede as imagens de cavalos e outros animais, percebendo de repente que eles podiam fazer essas marcas por eles próprios. Breuil disse ainda que estas representações de animais evoluíram a partir de marcas de mãos. Outra explicação seria de que de repente algumas pessoas excepcionalmente inteligentes teriam de repente começado a pintar nas paredes. Contudo, surgem questões com estas teorias, por exemplo: porque é que um homem teria a curiosidade de conservar com cuidado as obras numa parede? Brigitte e Giles Delluc, arqueólogos franceses e especialistas da arte das cavernas, defendiam o conceito de que, há cerca de 30.000 anos atrás, no início do Paleolítico Superior, uma pessoa ou um grupo de pessoas da região de Les Eyzies inventou o desenho, ou seja, a representação de uma imagem a duas dimensões na superfície da pedra. Mas então, como poderiam os humanos do paleolítico superior ver imagens e compreende-las sem terem uma noção de como o fazer? Conclui-se que já estava determinada socialmente uma noção de imagem. Whitney Davis, historiador de arte, rejeita a noção de que a criação da imagem foi consequência de uma sensibilidade estética envolvente e declara que o conhecimento evoluiu das imagens bidimensionais e que as imagens do Paleolítico Superior eram representações de coisas reais, da vida material. Defende também que as pessoas faziam marcas aleatórias, até ao Paleolítico Médio. O aparecimento das representações, é uma lógica previsível e consequência da crescente elaboração do mundo visual criado pelo Homem. A descoberta da criação de imagens através de linhas aleatórias foi quase 19 Cláudia Furtado, Pintura 2013/2014 inevitável. Estava presente na mente dos indivíduos, um vocabulário de motivos antes destes criarem as imagens. A noção de imagem e o vocabulário de motivos faziam parte da experiencia de cada individuo da comunidade já antes do aparecimento da arte móvel e parietal. O biólogo Gerald Edelman , vencedor de um Nobel pelo seu estudo sobre as origens da consciência humana, defendeu a convicção de que tanto a mente como a consciência são os produtos da matéria a que chama-mos cérebro. Propõe dois tipos de consciências: a primária e a de alta ordem. A consciência primária indica-nos um estado de estar desperto para o mundo e ter imagens do presente. Contudo, não está acompanhado por uma noção de passado e futuro. Está limitado a uma pequena porção de memória referente ao presente. Animais que possuam consciência primária têm capacidade de observar imagens contudo não o conseguem fazer de um ponto de vista de um ser socialmente construído. Por outro lado, a consciência elaborada é o tipo de consciência que o Homo Sapiens possui - implica que um sujeito racional reconheça os seus próprios actos ou afectos. Desenvolveu-se nas nossas espécies e envolve a habilidade de construir uma personalidade que se baseia na sociedade. Já a consciência de alta ordem atribui à consciência uma noção de passado e futuro em adição ao presente. A diferença entre consciência primária e consciência elaborada é que os membros da espécie Homo Sapiens têm melhor memória e podem usar essa memória para personalizar as suas próprias identidades individuais e “cenas” mentais de acontecimentos do passado ou do presente. A linguagem inteiramente moderna é uma condição essencial para a consciência elaborada (de alta ordem). A consciência de alta ordem desenvolveu-se primariamente em África, antes da emigração para médio oriente e Europa. Segundo Edelman, a linguagem e a consciência superior têm de estar obrigatoriamente ligadas. Assim, o Homo Neandertal tinha apenas consciência primária ao passo que o Homo Sapiens apresentava consciência superior. O Neandertal podia, por exemplo, criar ferramentas mas não podiam desenvolver um mundo espiritual para onde iriam os mortos. Isto explica o porquê dos Neandertais serem capazes de pedir emprestado certas coisas aos seus novos vizinhos, mas não outras: porque a consciência e forma de linguagem destes indivíduos eram restritas ao presente relembrado. É muito importante referir que, com o desenvolvimento da consciência superior, os seres humanos foram capazes de recolher e compreender os sonhos que tinham e através deles construir um mundo espiritual. Todos os animais com consciência primária sonham, no entanto, só aqueles com consciência superior conseguem lembrarse dos sonhos. Assim, o Homo Sapiens concluiu que tinha uma capacidade que o Homo Neandertal não tinha. Alguns animais, como por exemplo o cão, sonham mas não se lembram dos seus sonhos, nem os partilham. Contrariamente, os seres humanos não só conseguem lembrar-se dos seus sonhos como também são capazes de estabelecer uma conversa acerca deles. Este facto remete-nos mais uma vez para o espectro da consciência 20 Cláudia Furtado, Pintura 2013/2014 humana. Através da consciência elaborada e com a linguagem inteiramente moderna, o ser humano consegue lembrar-se e falar sobre os sonhos. Estes e as visões são, inevitavelmente, atraídos para a socialização da própria pessoa e para os conceitos de o que é ser humano. Os seres humanos perceberam que as marcas numa superfície plana ou uma escultura tridimensional podia representar um animal através, em parte, da habilidade de recordar e socializar sonhos e visões e, em outra parte, numa característica especifica das imagens visuais e experienciadas em estados alterados de consciência. Às imagens que retomam depois do acto de acordar dá-se o nome de “afterimages”, estas são uma espécie de ilusão óptica e podem permanecer na visão durante um minuto ou mais. Ao desenvolver a consciência elaborada o ser humano tem, consequentemente, a capacidade de ver imagens “projectadas” em superfícies e de experienciar as referidas ilusões visuais, as “afterimages”. Esta pode ser a resposta para o enigma das imagens bidimensionais. As pessoas não inventaram as imagens bidimensionais; o mundo dos seres humanos já estava investido com imagens bidimensionais. Já se encontrava desenvolvido um conjunto de imagens mentais partilhadas socialmente, que se iam tornar o reportório dos motivos do Paleolítico Superior. As primeiras imagens bidimensionais não eram representações de realidades tridimensionais. Em vez disso, eram imagens mentais fixas. Para os criadores as pinturas e gravuras eram visões e não representações de visões. As pessoas fixavam as suas visões projectadas durante um profundo estado alterado de consciência. As imagens parietais do Paleolítico Superior têm características em comum com o conjunto de imagens de estados alterados da consciência. As referidas imagens parietais estão dispostas sem um tamanho concreto ou uma posição relativa, umas em relação às outras. Apresentam frequentemente a ausência de cascos, estando assim a flutuar livremente e de uma forma independente de qualquer ambiente natural. O desenvolvimento da arte do Paleolítico Superior seguiu três caminhos: conjunto de imagens mentais fixado enquanto era experienciado; conjunto de imagens mental recolhido; a contemplação dos produtos gráficos dos anteriores e da percepção de que alguém que nunca experienciou um estado alterado podia imitá-los. A consciência elaborada permitiu que um grupo de pessoas numa comunidade maior dominasse as experiências de consciência alterada e para colocá-los separadamente daqueles que não tinham essas experiências. O espectro da consciência humana tornouse um instrumento de discriminação social. A socialização do espectro gerou a criação da imagem, que estava relacionada com a fixação das visões: arte e religião tinham simultaneamente nascido num processo de estratificação. O primeiro conjunto de imagens tridimensionais foi encontrado em estratos Aurinhancenses no sul da Alemanha. Foram feitas maioritariamente a partir de marfim. Representavam animais, nomeadamente felinos, mamutes, antropomorfos, bisontes, ursos e cavalos. Mas maioritariamente felinos que demonstravam preocupação pelo seu ar perigoso. Estes artefactos eram esculpidos com utensílios de pedra e o polimento era 21 Cláudia Furtado, Pintura 2013/2014 feito possivelmente com pele de animal ou pedra calcária molhada. O aparecimento deste tipo de arte pode ser explicado pela mesma forma do aparecimento de imagens a duas dimensões: a projecção de imagens que o sistema nervoso provoca em estados alterados de consciência. O mundo de alguns indivíduos das comunidades do Paleolítico Superior estava investido com imagens mesmo antes de começarem a fixá-las nas paredes das cavernas, essas imagens seriam tanto bidimensionais como tridimensionais. Nas representações de animais em três dimensões é perceptível que para os seres humanos as espécies de animais têm determinadas propriedades que os tornavam especiais. Assim, eles pensavam que algumas peças tinham propriedades especiais que lhes davam sorte na caça, por exemplo. Estas estatuetas móveis de animais eram mais do que peças decorativas, eram materializações tridimensionais de espíritos animais com todos os seus poderes. A arte móvel foi feita em circunstâncias e contextos mais variados do que as circunstâncias restritas estabelecidas pelas localizações subterrâneas das imagens parietais. A origem das imagens tridimensionais não é de todo diferente da das imagens bidimensionais, os mesmos princípios geradores aplicam-se a ambos. A criação de imagens não se originou num sítio em particular e posteriormente se desenvolveu pelo resto do mundo. Agora já se entende a relação obtida entre o Neandertal e o Sapiens. 22 Cláudia Furtado, Pintura 2013/2014 A Mente na Caverna Este capítulo gira em torno dos estados alterados de consciência e da projecção de imagens “mentais” na superfície das cavernas. Pois bem, Lewis-Williams refere-se à Alegoria da Caverna para obter uma nova perspectiva da mentalidade do paleolítico Superior. Numa das passagens da obra de Platão “A República”, Sócrates convida um dos seus discípulos, Glaucon, a entrar numa caverna, na qual havia um longo caminho a percorrer até ser atingida a luz. Nesta caverna haviam prisioneiros que ali habitavam desde sempre. Ora estes prisioneiros só conseguiam ver sombras do exterior sem saberem o que era. Assim as sombras eram a realidade dos prisioneiros. Se um dos prisioneiros saísse e contasse aos outros prisioneiros como era a realidade estes não acreditariam. Para mais ainda, havia prémios dentro da caverna para os prisioneiros que encontrassem sombras mais rápido ou que se recordassem do maior número de sombras. Ora ouvindo o prisioneiro que saiu dizer como era a realidade lá fora, os que tinham os prémios não queriam acreditar nele e recusavam-se a abdicar destes. Contudo, não estamos somente preocupados em saber como se comportava a mente humana dentro das cavernas, mas também como se comportavam socialmente nas cavernas e como estas tinham influência sobre os humanos, por exemplo alterando a consciência ou a sensação. Esta é “A Mente na Caverna”. Tal como os prisioneiros de Sócrates acreditavam que as sombras eram realidade, também os humanos das cavernas acreditavam que as imagens que eles pintavam eram realidade. A mente na caverna ou a caverna neurológica na época do Paleolítico Superior, resume-se à alteração de consciência ou alucinações. Há indícios de ter havido xamanismo no Paleolítico Superior da Europa Ocidental. O xamanismo é a mais antiga prática espiritual e filosófica da humanidade. Podemos compreender, através da análise dos comportamentos dos caçadores-recolectores que de uma forma generalizada sempre existiram práticas xamãs. O cérebro do Homo Sapiens da altura teria aspecto moderno, logo, seria capaz de sonhar, de ter visões. Para compreenderem estes aspectos dos sonhos e visões, ele teria de chegar a um acordo comum entre todos que lhe proporcionasse uma explicação. Em contraste, os Neandertais, enquanto mamíferos conseguiam ter sonhos e alucinações, porém não tinham o potencial neurológico para os compreenderem. Em segundo lugar temos também o caso das comunidades de caçadores recolectores, nas quais existiam réplicas de misticismo. Eles tinham rituais que alteravam, por exemplo, o estado de consciência. O xamanismo não foi exercido por toda a Europa Ocidental, e há provas disso. Nesta arte, coexistiam motivos geométricos, imagens figurativas e animais. Qual será a relação entre as representações e as imagens geométricas dos animais? 23 Cláudia Furtado, Pintura 2013/2014 Como foi visto anteriormente, não poderiam ter evoluído a partir de marcas nas paredes. O mais provável é que o sistema nervoso produz tanto imagens geométricas como representacionais. Mas não é tudo. Quando o modelo neurofisiológico, mencionado no capítulo 4, é aplicado nas imagens da arte do paleolítico superior então podemos encontrar todos os 3 estados. Voltando ao xamanismo, as cavernas são a prova viva de que o xamanismo era uma prática espiritual activa no Paleolítico Superior. A cosmologia xamanística concebe-se como um conjunto de dois reinos, material e o espiritual que se subdividem porque quanto mais complexa for a sociedade mais estratificadas estarão as subdivisões do cosmo. A entrada das cavernas do Paleolítico Superior era considerada como a entrada ao vórtice mental que leva a experiências e alucinações de estado profundo. Para se chegar ao mundo inferior, tanto física como psicologicamente, bastava entrar nas passagens e câmaras subterrâneas. O acto de vislumbrar de forma fugaz e imperfeita o mundo espiritual, era prova suficiente de que os xamãs realmente podiam visitá-lo. O Homo Neandertal e o Homo Sapiens exploravam as potencialidades das superfícies rochosas para criarem imagens, muitas das vezes usavam instrumentos para fazê-lo, como foi o caso das acanaladuras dactilares. No entanto, Peter Ucko, director do Instituto de Arqueologia de Londres, sobre isto diz que é inconcebível entender a natureza de tal acção. Outro enigma trata-se das marcas de dedos e mãos deixadas nas cavernas, que podem ser positivas ou negativas. Apesar do seu estudo não ter sido muito aprofundado trata-se de uma questão bastante importante. A explicação mais óbvia seria a de marcar a presença dos que ai deixaram as marcas visto que estas marcas estavam localizadas em locais de difícil acesso. De qualquer maneira, o acto de deixar marcas na parede representava um acto extremamente importante, visto que estas representavam como que uma entrada ou a representação do mundo dos espíritos. Pode então concluir-se que existiam sinais de metáforas religiosas. As pinturas do Paleolítico Superior eram muito mais que imagens contempladas: algumas brotavam de uma metáfora fundamental. Muitos autores têm analisado as metáforas segundo as quais vivemos, as que dão significado e orientação às nossas vidas, as que formam as maneiras como relacionamos perante o mundo e as outras pessoas como por exemplo, o contraste entre luz e escuridão. Nos estados alterados de consciência, todos os sentidos alucinam. Os xamãs não só ouvem sons de instrumentos musicais, de espíritos humanos e animais, como ouvem os animais a comunicar-lhes. As pessoas do Paleolítico Superior também faziam música. Tinham flautas e outros instrumentos feitos em osso e outros materiais que emitiam diferentes sons. O tambor era o mais associado aos xamãs. Os estados da mente segundo Sócrates, estão divididos em quatro secções: no extremo superior está a inteligência, o segundo é a razão (entendimento), o terceiro é a crença (fé), e no extremo inferior encontra-se a ilusão (imaginação). As mentes daqueles 24 Cláudia Furtado, Pintura 2013/2014 homens organizavam-se segundo esta linha de Sócrates. A caverna na mente e a mente na caverna não podem separar-se. 25 Cláudia Furtado, Pintura 2013/2014 Caverna e Comunidade Este capítulo aborda as implicações sociais na forma como as imagens eram feitas e nos espaços onde eram concebidas. Fala particularmente da adaptação das grutas à topografia, ao xamanismo cosmológico e relações sociais. Várias grutas serão dadas como exemplo para colocar a questão da existência de várias religiões. O autor relaciona cosmologia, crenças e estrutura e topografia das cavernas. Argumenta que os povos das cavernas, não transcreveram sob a forma de imagens as estruturas sociais do Paleolítico Superior. Fala nas cavernas como instrumentos activos na sociedade. Segundo o autor há que considerar alguns aspectos para interpretar a Arte Parietal do Paleolítico: a forma como as imagens são feitas, quando foram feitas, as implicações sociais que influenciaram o como e onde foram feitas, e os modos de execução, significado e relação social relacionados com o xamanismo. De seguida, serão analisadas cavernas da região de Dorodogne que se pensa serem aproximadamente da mesma idade, topograficamente e de importância social diferentes mas com semelhanças indiscutíveis pela maneira como foram decoradas. Gabillou, situa-se na França, perto da cidade de Mussidan, e é do período Magdalenense. É um bom exemplo de como as imagens feitas no seu interior podem ser entendidas em termos xamanísticos. A entrada da caverna está decorada com imagens e gravações simples de animais como veados, pássaros, bisontes e cavalos, todas elas também do período Magdalenense. Após a entrada, há um túnel com cerca de 1,5m que obrigava as pessoas a baixarem-se cada vez que quisessem passar, restringindo os movimentos. É um túnel extremamente bem preservado com imagens e gravações de cavalos, bisontes e monstros por todo o lado com vestígios de tinta ocre. A forma natural da caverna foi aproveitada para fazer as representações, como por exemplo cabeças de animais com saliências. A entrada da caverna era muito mais espaçosa e havia espaço para a prática de rituais, enquanto se presenciavam as imagens nas paredes. Como não é possível datar todas as imagens destas paredes estima-se que a função desta área pode ter sido alterada consoante os tempos. Já a função do túnel era mais específica devido ao seu comprimento, era usado por poucas pessoas, maioritariamente por quem tinha visões. Existiam, então, etapas – largar o mundo exterior ao entrar na caverna; aproximação do mundo espiritual no túnel e começo das visões; intensificação das visões e representação das mesmas nas paredes (monstros, criaturas estranhas); depois de todas as experiências, o regresso ao nível de realidade onde eram recebidos e considerados especiais pois eram eles que possuíam capacidades mágicas. Isto originava a divisão da comunidade, formando-se uma hierarquia, não só baseada na idade ou no género, mas também pelas experiências de cada um. Em suma de uma perspectiva social, a topografia de Gabillou dividia o grupo: os que ocupavam a câmara na entrada da gruta; aqueles a quem era permitida a entrada no túnel; os xamãs que realizavam as imagens. Esta hierarquia provavelmente foi mudando ao longo do tempo tanto como os critérios de escolha dos indivíduos, tal como da importância das 26 Cláudia Furtado, Pintura 2013/2014 zonas das cavernas e até mesmo das cavernas a ocupar e por quanto tempo, mas permanecem ainda desconhecidas as razões. Curioso o facto de existir um Therianthrope, parte bisonte, parte humano, no fim do túnel, num lugar remoto, tal com acontece nas profundezas de Les Trois Frères e a figura no Shaft de Lascaux. Em todas estas há a ligação da imagem com outros símbolos que não se encontram em mais parte nenhuma das grutas. A outra gruta é a de Lascaux, situada perto do rio Vézère, perto de Montignac. Lascaux ,é a gruta mais famosa do paleolítico Superior, e mostra ter sido muito mais usada e mais estruturada do que a anterior. Divide-se em: Parede dos Touros ou dos bois; Galeria axial; A passagem; A Nave; Divertículo dos Felinos; Poço. A entrada desta caverna é conhecida como a Parede dos Touros. É a zona mais próxima da superfície e tem a forma de uma grande elipse. As paredes superiores desta zona contêm a presença de calcite, provavelmente usada para a preservação dos desenhos que nelas foram executados. Nas paredes mais longe da entrada podem ver-se imagens de cavalos, muitos deles incompletos. Nas mais próximas da entrada vêem-se cavalos e bisontes, e um possível unicórnio com corpo de rinoceronte, cabeça de gato e cauda de cavalo. Nas paredes centrais estão representações de arqueiros e veados pintados a vermelho cujas formas aproveitam a forma natural da parede, touros e ursos. Muitas destas imagens foram feitas com a técnica de sopro, onde os pigmentos eram soprados contra as paredes criando formas. Para tal quantidade de imagens e gravuras e devido às suas grandes dimensões esta zona acolhia um grande número de indivíduos onde para além da sua arte, faziam rituais de dança e canto. Esta é a única parte da caverna que acolhia um grande número de pessoas. A Galeria Axial vinha a seguir à Parede dos Touros, é a sua extensão, também foram encontrados vestígios de calcite. Esta área era imensamente decorada com imagens desde as paredes ao tecto, feitas por indivíduos em estado alterado. Encontram-se cavalos negros e também séries de pontos, segmentos e símbolos em várias partes das paredes. Numa das paredes, pode ver-se a imagem de um bisonte e dois cavalos, sendo o bisonte de maior interesse visto que tem a cauda levantada, reflexo de medo e estado de alerta. A Galeria Axial era vista como a entrada psíquica para estados alterados de consciência. Nela, foram descobertas pequenas lâminas incrustadas nas paredes que mostravam sinais de uso. A comunidade via as paredes como uma membrana entre eles próprios e o mundo espiritual. Assim, eles cravavam pequenos objectos como lâminas ou ossos, sob os desenhos de animais para serem transferidos para esse outro mundo. A membrana funcionava como meio de comunicação entre o mundo real e o mundo espiritual. Uma das imagens muito significativa que podemos encontrar na galeria é o cavalo em queda, para se ver esta imagem na sua totalidade é preciso deslocarmos nos em torno da imagem. Sobre esta imagem já se fizeram muitas suposições entre elas de que seria a representação do animal a cair numa armadilha, mas a interpretação desta deve ser feita tendo em conta a estrutura da caverna, e assim vamos entender a imagem como parte de um vortex criado pelo túnel. A próxima área é a Passagem. Aqui os desenhos e gravações nas paredes foram feitos de modo constante criando sobreposições de imagens, sendo vezes sem 27 Cláudia Furtado, Pintura 2013/2014 conta imagens adicionadas às originais. Esta área está pouco preservada. Outra área da caverna é a Abside, relativamente pequena, pobre em desenhos mas rica em gravações. Foram nestas paredes representados cavalos, bisontes, arqueiros, veados e possivelmente lobos e leões, e também apenas partes deles. Esta é uma área de grande confusão onde provavelmente grupos de pessoas nela permaneceram durante longos períodos de tempo em estado alterado. Seguidamente encontra-se uma área conhecida como a Nave. Trata-se de uma área relativamente grande e menos decorada que as restantes onde foram encontradas lamparinas. Aqui é possível ver certas gravações retocadas, feitas de novo e sobrepostas. Segue-se uma outra área que faz ligação com a Nave, conhecida como Divertículo dos Felinos, repleta de imagens de felinos, arqueiros, cavalos, bisontes com caudas levantadas, pontos e símbolos. Foram aqui encontrados desde dentes de cavalo, ossos, pigmentos, etc. As pessoas levavam objectos especiais e aqui os deixavam como ligação com o mundo espiritual. No entanto, não era uma área muito visitada; aqui, os indivíduos contactavam os espíritos através de visões e alucinações. A última área de Lascaux é a área mais enigmática da caverna. Para aceder a esta zona as pessoas tinham de descer por uma corda por ser de maior profundidade. Aqui ,foram encontradas lamparinas, argila, pigmentos, lâminas e conchas deixados lá propositadamente. Esta área não acolhia um grande número de indivíduos, era sim uma área onde as pessoas iam deixar objectos para comunicarem com o mundo espiritual. As paredes têm imagens de bisontes, rinocerontes, cavalos e também de uma imagem zoomórfica de um pássaro da cintura para cima e humano da cintura para baixo. Quem aqui vinha participava em transformações reais, via coisas reais, via através da membrana de ligação entre os dois mundos e as pinturas do Poço (nome desta última zona) captam essa essência. As duas grutas, apesar das semelhanças, são bastante diferentes. Lascaux tem mais ramificações e mais evidências de actividade e experiências denotadoras de um sistema social mais complexo. Em Gabillou, os xamãs guardavam as suas visões e imagens separadas da sua comunidade, eram mais independente, enquanto em Lascaux reuniam imagens na Abside e estavam dispostos a partilharem essas imagens com outros xamãs. Este contraste entre diferentes xamanismos e diferentes relações entre imagens mostra as diferentes sociedades do Paleolítico Superior. 28 Cláudia Furtado, Pintura 2013/2014 Caverna e Conflito Durante o Paleolítico Superior, houve um período na arte em que os motivos de animais eram repetitivos, pois os artistas pintavam o que queriam e o que lhes apetecia – linces, mamutes, lebres, bisontes, cavalos, felinos, etc., e os conhecidos Homens feridos. Nesta época os humanos viveram em comunidades com grandes capacidades de invenção, o que trouxe consequentemente tensões e conflitos. Certos indivíduos, por saberem como trabalhavam as comunidades, conseguiam manipulá-las e trabalhá-las. Não querendo isto dizer que aceitassem os mesmos princípios e crenças. Esta “falta de liberdade” é aqui retratada. Cada indivíduo constrói a sua identidade através das convivências, dos seus desejos e necessidades, ou seja, constrói a sua personalidade, e, como sabemos, as personalidades chocam e mais uma vez temos as tensões. As alucinações visuais sempre tiveram um papel muito importante na sociedade e arte do Paleolítico Superior. Quando a consciência humana é intensificada por sensações, todos os sentidos entram em alucinação. Para perceber é necessário considerar também as alucinações somáticas (ingestão de drogas que provocam danos a nível da saúde, como esquizofrenia , epilepsia, por exemplo.) Vários xamãs quer ocidentais, quer americanos experimentaram essas sensações somáticas, entrando numa espécie de transe que causavam efeitos secundários e afectavam os sentidos causando, por exemplo, sensações de picadas, queimaduras ou até mesmo chicotadas, e a arte era o meio para representar isso mesmo, por exemplo, esta interpretação da sensação de picadas está representada em algumas pinturas rupestres. Estima-se a presença de apenas 75 figuras antropomórficas em todo o Paleolítico Superior, um número muito inferior ao total de imagens conhecidas. Os “Homens Feridos” aparecem em Cougnat e em Pech Merle dois locais situados no distrito de Quercy em França. E o que são estes homens? São figuras humanas estilizadas com duas ou mais linhas a formarem os corpos. No entanto, muitos historiadores afirmam que são muito difíceis de interpretar, há quem considere as linhas como sendo lanças ou até mesmo a representação das forças da vida que ligavam os xamãs com os animais. Andre Leroi-Gourhan observa que muitas das figuras tinham o corpo inclinado para a frente, propondo que talvez a postura fosse o resultado dos efeitos de estados de alucinação. Muitas pinturas sul-africanas representam os xamãs em posições dolorosas, em transe. Estes Homens Feridos juntamente com outras imagens, foram feitos em eventos/rituais dentro de algumas comunidades; associam-se ao xamanismo e encontram-se em locais geográficos limitados. Foram associados a iniciações xamanísticas, aos espíritos, ao sofrimento, à morte e são encontrados em áreas geográficas restritas e foram executadas em eventos que tomaram lugar em certas comunidades. Os contextos topográficos e iconográficos sugerem que as imagens dos Homens Feridos estão ligadas ao movimento social e intelectual localizado dentro da cosmologia da época. 29 Cláudia Furtado, Pintura 2013/2014 As características das imagens do Homo Erectus são provavelmente uma resposta ao desafio pessoal, antes da escassez de imagens antropomórficas na Arte Parietal. No acto de adaptar uma nova personalidade, implica estados alterados de consciência, porque esses estados estão situados dentro da cabeça de cada indivíduo. A função e a transformação mostram-se de forma clara nas imagens dos Homens Feridos. As pessoas que fizeram estas imagens estavam a explorar os estados alterados de consciência, ressaltando deste modo as suas posições religiosas aliadas ao sofrimento pessoal. Voltando ao Neandertal, esta espécie foi incapaz de fazer certas coisas que o Sapiens fazia, porque a consciência ainda não estava bem desenvolvida. O Neandertal não conseguia conceber um mundo espiritual ou construir relações sociais e políticas. Como consequência destas relações sociais desenvolvidas na transição do Paleolítico Médio para o Superior foram a criação de imagens mentais, fazendo com que um conjunto de animais, por exemplo, se tornasse simbólico entre as comunidades. 30 Cláudia Furtado, Pintura 2013/2014 Conclusão Terminada a leitura do livro The Mind in the Cave de David Lewis-Williams adquirimos o conhecimento necessário à compreensão da arte do Paleolítico Superior e todos os seus processos envolventes. Lewis-Williams interpreta a arte do Paleolítico como estando ligada a uma prática de xamãs neuro psicológicas, defendendo que a arte nasce de determinados rituais onde os seres embebidos em substâncias, alteravam o estado de consciência. Para nos ajudar a entender, responde aos problemas colocadas no início do livro, levando-nos numa viagem pela Pré-História elucidando-nos sobre vários temas como as origens das imagens e da arte, o seu significado para as comunidades ancestrais, modos de vida, estados alucinatórios, etc. O leitor sente-se como se fosse transportado para aquela época, para aqueles locais, com aqueles homens; Sente-se a magia daquelas imagens como se lá estivéssemos a observar. As referências que faz às várias grutas como as de Altamira, Chauvet, Lascaux, América do Norte e Sul de África, são de extrema importância para o entendimento destes nossos antepassados e da sua arte. O autor, para além da sua teoria, não deixa passar em branco as teorias e hipóteses de outros historiadores e antropólogos que muito contribuíram para a construção do saber de hoje e que permitiram o avanço da ciência. Williams defende que as imagens criadas não são criações artísticas mas sim criações mágicas do mundo dos xamãs. As alucinações e o mundo espiritual tinham grande relevância no mundo da arte rupestre. Elucida-nos também acerca do processo evolutivo do Homo Neandertal para o Homo Sapiens, explicando os seus modos de vida, diferenças e semelhanças, o desenvolvimento da inteligência e a formação de identidades individuais e colectivas. Podemos estabelecer uma comparação entre este autor e Andre Leroi-Gourhan com o seu livro As religiões da Pré-História. Enquanto o primeiro defende que a arte rupestre se baseia nos xamãs e nos estados alterados de consciência, Gourhan acredita que é possível que a magia tenha existido no Paleolítico, mas que os homens representavam deuses. Na sua obra, Gourhan faz a análise do conjunto e comparativa das peças de arte móvel e parietal, define o conceito de “santuário” – lugares centrais onde as pessoas iam. Estes santuários são a vertente mágica e mostram como a arte se dispõe dentro da própria gruta. Ao contrário de Lewis-Williams, ele interpreta a arte do paleolítico como estando associada a ritos de passo e ao princípio do masculino e do feminino. Outro facto importante é que Gourhan realça que não existem provas suficientes, há poucos vestígios que fundamentem estas hipóteses de práticas xamãs. No entanto, ambos concordam no facto da sociedade da altura ser já uma sociedade inteligente e complexa. Depois de evocar todo este universo Paleolítico, Lewis Williams sugere-nos então semelhanças importantes entre as funções da arte no Paleolítico e na actualidade. Podemos concluir que a ligação entre mente, imagem, sociedade e universo é a chave deste livro. 31 Cláudia Furtado, Pintura 2013/2014 Bibliografia LEWIS-WILLIAMS, David. The Mind in the Cave. Consciousness and the origins of Art. London: Thames & Hudson, 2002. LEROI-GOURHAN, André. As Religiões da Pré-História. Paris, 2007. Apontamentos das aulas de História da Arte I, Setembro/Outubro de 2013 32