ENTRE ASPAS, O CONTEXTO; NAS MARCAS, DESAFIOS: CONSTRUINDO UMA PEDAGOGIA DA SOLIDARIEDADE. OSOWSKI, Cecília Irene 1 e PACHECO, Rogéria Silveira 2 . (UNISINOS). QUEM SOMOS E ONDE ESTAMOS: CAMINHOS A PERCORRER Encontros de duas professoras - uma da área de Educação e outra da área da Comunicação - têm levado ao desenvolvimento de uma trajetória de pesquisa repleta de trocas, descobertas, construções e desconstruções de saberes, em torno do significado da categoria 3 de amor-justiça no âmbito da Pedagogia Inaciana. O objetivo deste trabalho é apresentar alguns resultados parciais alcançados em nossa investigação 4. Dá continuidade a estudos realizados desde 1995, sobre Pedagogia Inaciana, visando a problematizar o modo pedagógico de proceder inacianamente nas perspectivas do currículo, da formação de professores, da cultura e da ética, inserindo-se na Linha de Pesquisa Práticas educativas, saberes e formação do educador, do Programa de Pós-graduação em Educação, da UNISINOS. Se, por um lado, a Pedagogia Inaciana busca reatualizar princípios que Inácio de Loyola vivenciou e propôs como filosofia de vida, no século XVI 5, por outro, o cristianismo tem sofrido duros questionamentos, desde o século XIX, em especial com Freud, Marx e Nietszche. Ao mesmo tempo, as políticas sócio-econômicas neoliberais e neoconservadoras, vigentes atualmente, avançam, aumentando a exclusão e invadindo todos os espaços da vida social. Torna-se mais forte uma formação pedagógica política e 1 Professora-Pesquisadora Pós-graduação em Educação/UNISINOS. Doutora em Educação. Coordenação da Pesquisa: A categoria do amor-justiça e a Pedagogia Inaciana (1999-2000) 2 Professora Centro Ciências da Comunicação/UNISINOS. Mestre em Educação. Pesquisadora no Projeto: A categoria do amor-justiça e a Pedagogia Inaciana (1999-2000). 3 Utilizamos o conceito de categoria como construção epistemológico-existencial, resultado de um processo de tramas de relações sócio-políticas que constituem e são constituídas por formações discursivas. 4 A categoria do amor-justiça e a Pedagogia Inaciana (1999c). Órgão financiador: UNISINOS. 5 Ver: Ética e o modo de proceder inaciano: implicações pedagógicas (Osowski, 1999a). 1 humanizante, social e cristã para aqueles que assim se assumem, e que se oponha ao crescente aviltamento sofrido pelo ser humano. Precisamos construir uma ética da solidariedade universal e uma ética de compromisso e responsabilidade sobre nossas ações. Nesta perspectiva, a Pedagogia Inaciana, principalmente na segunda metade do século XX, tem assumido criticamente princípios e propostas educativas que valorizem a experiência-reflexão-ação, problematizando o sentido de uma identidade sócio-cultural comprometida com uma forma de viver cristã e inaciana. Entretanto, o relativismo cultural que marca o contexto vivido, e impregna a ética atualmente, lança mais sombras do que luzes para o sentido da vida e para modos de viver ancorados na dignidade humana. Considerando que no espaço pedagógico, muitas vezes, o “contexto é dinâmico, contraditório e formado por uma rede de informações, conhecimentos e relações sociais que se dão em diferentes níveis e materialidades, concretizado por diferentes interlocutores, muitas vezes com discursos e metas diferenciadas entre si” (Osowski, 1995:11-12), optamos por problematizar, mais uma vez, o significado e o próprio sentido de contexto, numa perspectiva educacional e inaciana. Neste trabalho, tomamos como referência de estudo a Carta dos Superiores Provinciais da Companhia de Jesus (1996), que se apresenta como proposta de vida sócio-pessoal e proposta de trabalho coletivo, referenciando o princípio inaciano de amar e servir. Por um lado, a Carta é a manifestação de um compromisso a ser assumido por um grupo, por outro, é exigência de ações que implicarão, necessariamente, na tomada de posições. Com isto, o exercício de liberdade, coração de um modo de viver inaciano, coloca-se como propulsor de reflexões-ações, contribuindo, desta forma, para problematizar a categoria investigada de amor-justiça. Tendo por referência a análise de discurso, sob a ótica da linha francesa, examinamos o significado e o sentido da Carta, enquanto formação discursiva, impregnada de relações sociais e relações semânticas: linguagem fazendo-se ação, ação como manifestação de linguagens. 2 Situando a própria Carta frente à formação discursiva de contexto, aqui discutida, analisamos gênero, emissores, elementos discursivos de conteúdo e receptores como marcas discursivas, possibilitando leituras polissêmicas desta Carta. Ao examiná-la na perspectiva da gramaticalidade, tornou-se possível identificar um contexto sócio-político-teológico que a permeava, exigindo compromissos e a construção de respostas que, para nós, centram-se na pergunta: qual o sentido de uma educação inaciana, 450 anos após haver sido sonhada por Inácio de Loyola? No recorte feito para este momento, organizamos nossas reflexões em torno das seguintes questões: a. A Carta dos Superiores Provinciais da Companhia de Jesus e contexto: marcas de uma formação discursiva; b. A gramaticalidade de compromis-so de respostas um contexto sócio-político-teológico: A Carta dos Superiores Provinciais da Companhia de Jesus e contexto: marcas de uma formação discursiva Para atender ao objetivo de discutir o significado da categoria de amor-justiça para uma pedagogia da solidariedade e suas implicações para a Pedagogia Inaciana, um dos recortes empíricos centrou-se na Carta dos Superiores Provinciais da Companhia de Jesus da América-Latina e o neoliberalismo na América Latina (1996). Essa carta se subdivide em cinco partes: a apresentação da carta; a sociedade da qual fazemos parte; a concepção do ser humano; a sociedade que almejamos e tarefas. Neste trabalho, fizemos um recorte dos resultados já trabalhados, e buscando elementos que nos permitam discutir a formação discursiva de contexto, numa perspectiva inaciana, centramos nossas reflexões em torno da sociedade: tanto aquela da qual fazemos parte, quanto aquela que almejamos. Pela sua importância, no marco histórico-teórico da Pedagogia Inaciana, também a questão do gênero – carta – será objeto de 3 algumas breves considerações, haja visto o lugar que ocupa na obra de Inácio de Loyola. A metodologia investigativa situa-se na análise de discurso, em sua vertente francesa, presente na proposta de autores como Pêcheux, Maingueneau e Orlandi, dentre outros. Levando em conta o restante do corpo da carta, recortamos fragmentos de seu texto e fizemos a análise do valor semântico das aspas, dos substantivos próprios e de uma modalidade de enunciado, considerando sempre, a formação discursiva sócio-pedagógica de contexto. Tal formação discursiva apresenta-se na origem do pensamento inaciano, tanto na estrutura dos Exercícios Espirituais de Inácio de Loyola (séc. XVI), quanto no conteúdo de sua proposta de espiritualidade-pedagógica, ou no modo de proceder, dimensões estas já previamente examinadas por nós (Osowski, 1999b; 2000a), dentre vários outros autores. Dado a exigüidade de tempo e espaço, embora reconhecendo seu valor para o entendimento do que aqui problematizamos, não retomaremos essas perspectivas de estudo. Considerando que não podemos compreender algo, sem contextualizar, e lembrando que apesar de sucintamente, já nos termos apresentado, constatamos que é hora de dizer um pouco sobre a nossa opção metodológica. A Análise do Discurso nasceu sob a crença de uma possibilidade de intervenção política que, por fundamentar-se numa arma científica (a linguagem), permitiria um modo de leitura cuja objetividade parecia insuspeitável (Gadet, 1993:8). Por isso, inicialmente, era denominada análise do discurso pois enfocava sobretudo o discurso político. A análise de discurso articula três regiões do conhecimento científico, conforme Orlandi (1988:19): o materialismo histórico, como teoria das formações sociais e suas transformações; a lingüística, como teoria dos mecanismos sintáticos e dos processos de enunciação; a teoria do discurso, como teoria da determinação histórica dos processos semânticos. 4 A trajetória da análise de discurso percorre três épocas: desde “um corpus fechado de seqüências discursivas, selecionadas num espaço discursivo supostamente dominado por condições de produção estáveis e homogêneas”, até chegar a “um projeto a ser levado a efeito, que decorre da disposição constante de interrogar-negar-desconstruir as noções postas em jogo na Análise de Discurso” (Teixeira, 1997:62). É na transição entre um e outro referencial que se situa o conceito de formação discursiva, que ao ser perpassada pelos questionamentos foucaultianos, permitiu que se trabalhasse com deslocamentos sócio-históricos-linguísticos, des/agregando relações discursivas e identidades sócio-culturais, pois segundo Orlandi (1988:58), a formação discursiva é “o lugar da constituição do sentido e da identificação do sujeito”. Consideramos a análise de discurso como metodologia adequada para investigar implicações pedagógicas do conceito de contexto, na perspectiva inaciana, porque nos instiga a analisar os efeitos de sentido entre os locutores, ou seja, tudo o que se “. . . diz não resulta só da intenção de um indivíduo em informar o outro, mas da relação de sentidos estabelecida por eles num contexto social e histórico” (Orlandi, 1986:63). No presente trabalho, destacamos alguns elementos presentes à Carta dos Superiores Provinciais da Companhia de Jesus, para examinar que relações discursivas são produzidas pelos sujeitos enunciadores da Carta, em condições determinadas, sem no entanto esquecer que também quem analisa deve explicitar o seu processo de produção de conhecimento, daí porque desde o início deste texto tentamos dizer quem somos e de quais lugares falamos. Entretanto, sabemos que mesmo assim, nós próprias somos efeitos de sentido daquilo que pensamos saber, mas que se apresenta nos nossos não-saberes, marcado pelos não-ditos e pelos esquecimentos. De qualquer forma, estes viezes discursivos estão sendo construídos e socializados ao longo da pesquisa e, por isso mesmo, não serão tratados neste momento (Osowski, 1999a; 1999b). Assim, o conhecimento vai sendo produzido em pequenos 5 intervalos entre as partes de um todo, ou seja, nas fendas disciplinares - nos seus ‘entremeios’ - considerando o confronto, a contradição. E isso ocorre na constituição da materialidade discursiva, que acontece quando se estabelece a união entre o histórico e o lingüístico, pois nesse momento há a desconstrução, ou seja, o reconhecimento da existência de vários tipos de “real”. Como afirma Pêcheux (1997: 29 e 43): há real, isto é, pontos de impossível, determinando aquilo que não pode ser ‘assim’. O real é impossível ... que seja de outro modo. Não descobrimos, pois, o real: a gente se depara com ele, dá de encontro com ele, o encontra. Logo: um real constitutivamente estranho à univocidade lógica, é um saber que não se transmite, não se aprende, não se ensina, e que, no entanto, existe produzindo efeitos. O “real” está aí produzindo efeitos de sentido, contudo o agente não o aprende nem o ensina, apenas o encontra. Depois disso, parte-se para uma re/significação. Por essa razão, não é possível estudar o discurso a partir das relações lingüísticas do sistema da língua, nem, tampouco, a partir do enunciado tomado isoladamente. O que interessa, de fato, são as relações entre enunciado e realidade, entre o enunciado e o locutor, e estas vão além dos estudos lingüísticos, convencionalmente considerados. Apresenta-se como necessário examinar o processo discursivo no qual se inserem os elementos que nos permitirão aprofundar o significado de amor-justiça, no contexto da Pedagogia Inaciana. Daí porque se coloca como necessário problematizar o conceito de contexto, porque é com ele e nele que examinamos o quanto a materialidade discursiva, enquanto relações sócio-linguísticas presentifica-se e, com isso, podemos dar cor e sabor à polissemia do amor-justiça. Logo, precisamos examinar a língua como espaço material dos confrontos sociais, atribuindo aos discursos efeitos de sentido. A gramaticalidade de compromisso de respostas um contexto sócio-político-teológico: Considerando que a análise de discurso tem como finalidade principal a compreensão do funcionamento e a produção de sentidos de um texto, visto como objeto lingüístico-histórico, somos exigidos a buscar elementos 6 compreensivos não só de como o texto produz sentidos, mas, além disso, expor os processos de significação que constroem o texto (oral ou escrito). A análise de discurso, que visa a explicitar o funcionamento discursivo, isto é, a produção de sentidos na relação entre o dito e o compreendido, age por dois caminhos: o primeiro, lingüístico, e o segundo, o discursivo. Inicialmente, a língua, enquanto sistema fonológico, morfológico e sintático, é condição material de produção de um discurso num determinado momento histórico. Depois, atua uma semântica discursiva que, percebendo as relações ideológicas ligadas a uma formação social, quer perceber as relações entre o dito e o não-dito. E é esse trabalho que nos possibilita chegar à formação discursiva dominante no texto e às outras que aí se entrecruzam. Isso está presente em Pêcheux, quando diz: “Todo enunciado, toda seqüência de enunciados é, pois, lingüísticamente descritível como uma série (léxico-sintaticamente determinada) de pontos de deriva possíveis, oferecendo lugar a interpretação. É nesse espaço que pretende trabalhar a análise de discurso” (Pêcheux, 1997:53). O texto é um todo rico em múltiplas significações. Daí, então, chamá-lo de heterogêneo, o que é importante para a análise do texto. Considerando as diferenças quanto à sua natureza material (imagem, grafia, som, etc.), à natureza das linguagens (oral, escrita, científica, literária, descritiva, heterogeneidade etc.) pode ser e às posições trabalhada em de sujeito, termos de toda essa formações discursivas, considerando-se a articulação entre dois planos: o do interdiscurso com o do intradiscurso. Conforme Lagazzi (1988: 55 e 56): Só podemos falar de discurso em termos de articulação do plano do interdiscurso com o do intradiscurso. O funcionamento discursivo se coloca na relação enunciado/formulação, na relação da dimensão vertical estratificada onde se elabora o saber de uma F.D.(Formação Discursiva), à dimensão horizontal onde os elementos desse saber se linearizam, tornando-se objetos de enunciação. A partir daí, é possível chegarmos à noção de “condições de produção”, definida por Pêcheux (1975) como sendo “ao mesmo tempo o 7 efeito das relações de lugar no interior das quais se encontra inscrito o sujeito, e a “situação” no sentido concreto e empírico do termo, quer dizer, o ambiente material e institucional, os papéis mais ou menos conscientemente colocados em jogo etc.(...)”. Na análise de discurso, o texto, que possibilita acessar o discurso, é onde há a representação física da linguagem: som, letra, espaço, dimensão direcionada, tamanho. Além disso o texto é lugar de significação. Nessa perspectiva, Orlandi (1996) nos diz que o texto é uma unidade de análise afetada pelas condições de produção. Considerando que não há um discurso fechado, mas um processo discursivo, no qual é possível fazer recortes para posterior análise, o que nos propomos apresentar, neste momento, é a delimitação de um corpus, que é a separação de seqüências discursivas, constituindo, assim, um recorte dos dados, determinado pelas condições de produção. A organização, isto é, a separação do material de análise “deve ser considerada em relação aos objetivos e à temática (da pesquisa) e não em relação ao material lingüístico empírico (textos), em si, em sua extensão” (Orlandi, 1998:10). Para examinar como a formação discursiva contexto foi sendo construída na Carta, propusemo-nos investigar as marcas lingüísticas de gênero, palavras entre aspas e substantivos próprios, enquanto pistas investigativas para a análise. Nossa intenção foi ir ao encontro do processo discursivo, permitindo explicitar não só a compreensão dos sentidos do texto, mas também os processos de significação que fazem parte da sua construção. Gênero: enviando para receber Buscar uma definição de “gênero” não é fácil. Inicialmente, pressupõe-se que um conjunto de práticas (procedimentos) caracterizam tipologias textuais, mas o que se observa, na verdade, é que os gêneros, habitualmente, mesclam-se, encaixam-se uns nos outro. Por isso, podemos afirmar que num texto há o cruzamento de vários gêneros. 8 Por um lado, é difícil encontrar um enunciado desvinculado de um conjunto de coerções comuns que o determinem, tampouco, a análise de discurso deixa de pensar sobre o gênero quando trabalha um corpus. Por outro lado, a análise de discurso não se preocupa com formações discursivas que estariam revestidas de um único gênero, pois os gêneros sofrem modificações conforme os lugares e as épocas. Conforme Maingueneau (1997:36), “o gênero funciona como o terceiro elemento que garante a cada um a legitimidade do lugar que ocupa no processo enunciativo, o reconhecimento do conjunto das condições de exercício implicitamente relacionados a um gênero”. A partir disso, compreende-se que seja difícil de determinar uma lista de gêneros. Cabe, então, ao analista definir, de acordo com seus interesses, os recortes genéricos que lhe parecem pertinentes. Nas análises que apresentaremos a seguir, tomaremos um recorte da Carta dos Superiores Provinciais da Companhia de Jesus. Neste fragmento de texto, observaremos, além de outros, alguns elementos que auxiliam na construção do sentido, como os papéis sociais que os interlocutores desempenham, a intenção do locutor, o conhecimento de mundo, as circunstâncias históricas e sociais em que se dá a comunicação. Ou seja, olhando esse conjunto de fatores que formam a situação na qual foi produzido o texto, identificaremos, melhor, o contexto discursivo. Como toda Carta, ela situa o tempo em que foi redigida – 14 de novembro de 1996, o local – Cidade do México, para quem se dirige – Companheiros (jesuítas) e quem assina – nominata de Superiores Provinciais da América Latina. Destacamos, alguns elementos indispensáveis para sua compreensão que ela insere, apresenta e/ou questiona, segundo o objetivo com que foi escrita: atendendo ao apelo da 34ª Congressão Geral para aprofundar a nossa missão do serviço da fé e da promoção da justiça ((força motivadora). 9 Identificamos o (emissor) Nós Superiores Provinciais da Companhia de Jesus da América Latina e do Caribe), que tem como (objetivo) querer Partilhar algumas reflexões sobre o sistema econômico conhecido como neoliberalismo e seus efeitos em nossos países (os da América Latina e do Caribe). Este Nós tem um (destinatário) vocês (companheiros jesuítas) e todos os que estão preocupados e comprometidos com a sorte do nosso povo, e, em particular, dos mais pobres (os muitos outros). Como (justificativa desse objetivo) dizem: Não queremos nem podemos aceitar pacificamente que as medidas econômicas implementadas nos últimos anos em praticamente todos os países da América Latina e do Caribe sejam o único modo possível de orientar a economia, nem que o empobrecimento de milhões de latino-americanos seja o custo inevitável de um futuro desenvolvimento. Com isto, ilustramos o contexto discursivo do texto (corpus) analisado. Agora, analisaremos outros elementos (marcas) que fazem parte desse processo comunicativo e que também participam da construção de seu sentido. Palavras entre aspas: suspendendo para marcar Tomando um referencial gramatical, as aspas, como marca na escrita, são usadas no início e no final de citações; para destacar palavras estrangeiras, neologismos, gírias; para indicar mudança de interlocutor nos diálogos. É importante lembrar que não há nenhuma agramaticalidade caso não ocorra o emprego das aspas em palavras que se enquadram nas situações citadas, apenas isso demonstrará que elas participam plenamente do espaço discursivo. No entanto, as aspas também apresentam um valor semântico, pois elas estabelecem uma relação com o implícito. As aspas constituem uma marca que deve ser decifrada por um destinatário. No momento em que um sujeito coloca uma palavra entre aspas, ele projeta, ao mesmo tempo, uma imagem de leitor e oferece a este uma imagem de si mesmo, do lugar que assume. É assim que ao grafar “neoliberais”, já situa o leitor de maneira a que este possa posicionar-se 10 criticamente frente a contextos marcados pelas políticas neoliberais, ao mesmo tempo que já demonstra um distanciamento crítico que considera necessário manifestar, como emissor, de tais políticas e das características sócio-políticas que o neoliberalismo enseja. Ou seja, pode-se dizer que colocar uma palavra entre aspas, como por exemplo, “neoliberais” é proteger-se antecipadamente de uma avaliação crítica do leitor, que passará a observar um certo distanciamento em relação a determinada palavra. Conforme Maingueneau (1997: 90), colocar entre aspas não significa dizer explicitamente que certos termos são mantidos à distância e, realizando este ato, simular que é legítimo fazê-lo. Para se interpretar as aspas, deve-se levar em conta o contexto e a partir daí reconstruir a significação da qual ela resultou. Tomaremos, então, recortes da Carta que está sendo analisada, que se configurarão como cenas enunciativas, a partir das quais reconstruiremos imagens impostas pelos limites da formação discursiva. No momento em que os locutores falam da sociedade da qual fazemos parte, empregam aspas em três termos: “neoliberais”, “obstáculos” e “livre”. Logo depois, quando apresentam as tarefas que devem ser realizadas em diversos campos e níveis, usam aspas em mais um termo: “vítimas”. Os fragmentos são os seguintes: Difunde-se em nosso continente a aplicação de medidas conhecidas como “neoliberais”. Suas principais características são: - Para estimular os investimentos “obstáculos” que as leis que protegem privados, eliminam-se os trabalhadores os poderiam representar para esses investimentos. - A atividade política põe-se a serviço desse tipo de economia chamada “livre”. Por um lado, suprimem-se todos os obstáculos que dificultam o exercício do livre mercado. Por outro, introduzem-se controles políticos e sociais, por exemplo, para a livre contratação de mão-de-obra, para garantir a hegemonia desse mesmo mercado. 11 Esse maior conhecimento e as medidas que adotemos deveriam nos levar a: - Acompanhar a caminhada das “vítimas” desse sistema e processo, mediante comunidades de solidariedade, nas quais se possam proteger os direitos dos excluídos e empreender com eles, em diálogo com os setores que controlam as decisões, a construção de sociedades que, sem excluir ninguém, integrem de fato, em sua vida e atividades, o maior número possível de pessoas. As palavras colocadas entre aspas, neste contexto discursivo, foram analisadas por nós de uma maneira articulada, pois, no momento em que os locutores falam dos aspectos sociais, econômicos e políticos, empregam com destaque as palavras “neoliberais”, “obstáculos”, “livre”, “vítimas” para enfatizá-las, pois elas fazem parte da formação discursiva em que esse discurso se inscreve. E levando em conta o conjunto de movimento de sentidos nessa enunciação, as aspas evidenciam o distanciamento que os locutores, explicitamente, estabelecem em relação às idéias e aos valores que possam ser depreendidos a partir do campo de significação onde elas estão inseridas. As medidas “neoliberais”, que eliminam os “obstáculos” que as leis que protegem os trabalhadores poderiam representar para os investimentos, frente a uma economia chamada “livre”, fazem-nos olhar esses procedimentos como um caminho de mão dupla, pois esses termos em itálico que parecem refletir uma imagem um tanto quanto positiva, conotando liberdade, estão também travestidos com sentidos perversos uma vez que eles conduzem as pessoas “vítimas” desse sistema a caminhos repletos de dificuldades, tendo em vista a falta de opção a que esses excluídos são submetidos. Substantivos próprios: nominando discursos Uma das classes de palavras fundamentais da língua, são os substantivos próprios. Eles nomeiam os seres e as coisas que nos rodeiam, 12 como também nossos sentimentos e idéias. Além disso, os substantivos atendem à necessidade dos seres humanos de ordenar, classificar, distinguir, hierarquizar, etc. Como estão ligados diretamente à cultura de um povo, há substantivos que às vezes não encontram correspondência em outras línguas, como por exemplo, a palavra saudade, na nossa língua. Quanto à sua estrutura e formação, os substantivos são classificados: simples ou composto; primitivos ou derivados. E quanto ao seu significado e abrangência, os substantivos classificam-se em: concretos ou abstratos; comuns ou próprios e coletivos. Para nós interessa-nos identificar os substantivos próprios que, ao lado dos comuns, designando todo e qualquer indivíduo de uma espécie de seres, designam um indivíduo, um ser particular de uma determinada espécie. Como grafia diferencial, são escritos com a letra inicial maiúscula e nos permitirão examinar formações discursivas subjacentes ao próprio conteúdo da Carta. Visando agilizar nosso processo de análise, identificamos aqueles grafados com maiúsculas e já o agrupamos, tendo por referência os discursos sócio-teológico e sócio-político. No primeiro agrupamos os substantivos próprios: Deus, Reino, Jesus no Evangelho, Jesus Cristo, Nossa Senhora de Guadalupe, Padroeira da América Latina, Superiores Provinciais da Companhia de Jesus da América Latina e do Caribe, 34ª Congregação Geral. No segundo, agrupamos: América Latina, Caribe e Estado. Para caracterizar um discurso precisamos levar em conta a tendência que sobressai em relação à sua qualidade polissêmica, às marcas formais nele presentes e às suas propriedades, que constituirão os traços fortes do funcionamento discursivo. A nominação que acima fizemos entre discurso sócio-teológico e sócio-político reconhece tais peculiaridades e aponta para a necessidade de um aprofundamento destes discursos no âmbito de nossa pesquisa, o que nos remete a análise de outros textos, já devidamente selecionados, incorporando outros significados e sentidos à categoria do amor-justiça. 13 Queremos examinar, com mais vagar, o sentido destes discursos no âmbito da pesquisa realizada, visando a aprofundar, posteriormente, nossos estudos e suas implicações pedagógicas. Acreditamos que os locutores da Carta usaram o recurso de ênfase, através da letra maiúscula, identificando esses substantivos próprios, para salientar que esses seguimentos necessitam interligarem-se para estabelecer elos de solidariedade, de compromisso mútuo numa sociedade dirigida sob as regras do neoliberalismo. A proposição feita na Carta, de tarefas no âmbito da educação, indica, também, o compromisso atribuído tanto ao pedagógico, quanto ao espiritual, o que nos leva a questionar com quais currículos ensinamos e como a formação de nossos professores, em especial aquela feita em serviço ou no âmbito das instituições educativas que se propõem a ser crítico-humanizadoras, exige maiores atenções e cuidados. Mais do que isso, é preciso repensar os discursos pedagógicos que permeiam o fazer docência/discência em nossas instituições educativas, de maneira que aprendamos a “discutir com os professores e com nossos alunos sobre os diversos modelos de ensino, as diferenças e as semelhanças entre os saberes e o que eles representam socialmente, como também estabelecer uma relação entre as experiências passadas e presentes para perceber de que forma isso tudo pode contribuir para a ressignificação dos sujeitos do processo de ensino (o aluno e o professor), bem como da escola” (Pacheco, 1998). Significa, também, questionar a polissemia que perpassa os currículos, problematizando relações discursivas no trabalho docente e escolar, ao mesmo tempo fortalecendo formas para que o docente “tome em suas mãos a direção deste processo de atualização pedagógica, expondo-se ao diálogo e ao conflito” (Osowski, 2000b:65). O desafio que se coloca é que os serviços que assessoram pedagogicamente os docentes em efetivo exercício de sala de aula, precisam aprender a criar espaços e formas para que o docente, conforme Osowski (2000b:65), possa “problematizar sua práxis pedagógica, a partir dele próprio, no confronto com teorias e outras 14 práticas, questionando, a partir dos seus efeitos de sentido, os entrecruzamentos das relações sociais”. Mesmo sabendo que enfrentará silêncios, resistências, negações e mal-estar, coloca-se a necessidade de aprender/ensinar uma pedagogia da solidariedade, feita no cotidiano da sala de aula, nas entrelinhas do fazer discente, e nos mais diferentes espaços escolares, inclusive nos cantos e recantos da sala de aula, entre janelas e portas que se abrem para a comunidade que pede, espera e participa da escola e da universidade. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CARTA DOS SUPERIORES PROVINCIAIS DA COMPANHIA DE JESUS NA AMÉRICA LATINA. São Paulo: Loyola, 1996. GADET, Françoise & HAK, Tony (org.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução a obra de Michel Pêcheux. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1993. LAGAZZI, Suzi. O desafio de dizer não. Campinas/SP: Pontes, 1988. MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. Campinas/SP: Pontes, 1997. ORLANDI, Eni Puccinelli. A Leitura e os Leitores. Campinas, SP: Pontes, 1998. ORLANDI, Eni Puccinelli. Discurso e leitura. São Paulo: Cortez, 1988. ORLANDI, Eni Puccinelli. Interpretação: autoria, leitura e efeitos de trabalho simbólico. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996. ORLANDI, Eni Puccinelli. O que é lingüística. 1986. São Paulo: Brasiliense, OSOWSKI, Cecília Irene. A categoria do amor-justiça e a Pedagogia Inaciana. São Leopoldo/RS: UNISINOS, 1999c (Projeto de pesquisa) OSOWSKI, Cecília Irene. A Pedagogia Inaciana como proposta curricular. Estudos Leopoldenses. São Leopoldo/RS: UNISINOS. vol.31, n.144, p.7-18, set./out.1995. OSOWSKI, Cecília Irene. Atualização pedagógica e currículo: problematizando a experiência docente e a possibilidade de inéditos-viáveis humanizantes. Revista de Educação AEC, Brasília: AEC, ano 29, n. 115, p.64-72, abr./jun. 2000b. 15 OSOWSKI, Cecília Irene. Buscar e encontrar Deus em todas as coisas: amar e servir. Convergência, Belo Horizonte, MG, ano 35, n. 329, jan./fev.2000a. OSOWSKI, Cecília Irene. Ética e o modo de proceder inaciano: implicações pedagógicas. Estudos Leopoldenses. Série Educação. São Leopoldo, RS, vol.3, n.5, p.41-57, jul/dez.1999a. OSOWSKI, Cecília Irene. O “dizer” poético como sensibilização para a construção do sujeito social. Florianópolis/SC. II Seminário Pesquisa em Educação. Região Sul. UFSC. novembro, 1999b. (Comunicação). PACHECO, Rogéria Silveira. Silenciamentos no discurso pedagógico: interferindo no currículo? São Leopoldo/RS. Pós-Graduação em Educação. (Dissertação de Mestrado), 1998. PÊCHEUX, Michel. O Discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas, SP: Pontes, 1997. TEIXEIRA, Marlene. O “sujeito” é o “outro”? Letras de Hoje, Porto Alegre, vol.32, n.1, p.61-88, mar. 1997. 16 ENTRE ASPAS, O CONTEXTO; NAS MARCAS, DESAFIOS: CONSTRUINDO UMA PEDAGOGIA DA SOLIDARIEDADE. OSOWSKI, Cecília Irene 6 e PACHECO, Rogéria Silveira 7 . (UNISINOS). RESUMO O objetivo deste trabalho é apresentar alguns resultados parciais alcançados na pesquisa A categoria do amor-justiça e a Pedagogia Inaciana. Dá continuidade a estudos realizados desde 1995, sobre Pedagogia Inaciana, visando a problematizar o modo pedagógico de proceder inacianamente nas perspectivas do currículo, da formação de professores, da cultura e da ética, inserindo-se na Linha de Pesquisa Práticas educativas, saberes e formação do educador, do Programa de Pós-graduação em Educação, da UNISINOS. Se, por um lado, a Pedagogia Inaciana busca reatualizar princípios que Inácio de Loyola vivenciou e propôs como filosofia de vida, no século XVI, por outro, o cristianismo tem sofrido duros questionamentos, desde o século XIX, em especial com Freud, Marx e Nietszche. Ao mesmo tempo, as políticas sócio-econômicas neoliberais e neoconservadoras, vigentes atualmente, avançam, aumentando a exclusão e invadindo todos os espaços da vida social. Torna-se mais forte uma formação pedagógica política e humanizante, social e cristã para aqueles que assim se assumem e que se oponha ao crescente aviltamento sofrido pelo ser humano. Precisamos construir currículos onde eduquemos para uma ética da solidariedade universal e para uma ética de compromisso e responsabilidade sobre nossas ações. Nesta perspectiva, a Pedagogia Inaciana, principalmente na segunda metade do século XX, tem assumido criticamente princípios e propostas educativas que valorizam a experiência-reflexão-ação, problematizando o sentido de uma identidade sócio-cultural comprometida com uma forma de viver cristã e inaciana. Entretanto, o relativismo cultural que marca o contexto vivido, e impregna a ética atualmente, lança mais sombras do que luzes para o sentido da vida e para modos de viver ancorados na dignidade humana, o que nos levou a investigar a formação discursiva contexto. Neste trabalho, tomamos como referência de estudo a Carta dos Superiores Provinciais da Companhia de Jesus da América Latina, de 1996, que se apresenta como proposta de vida sócio-pessoal e proposta de trabalho coletivo, referenciando o princípio inaciano de amar e servir, contribuindo, desta forma, para problematizar a categoria investigada de amor-justiça. Tendo por referência a análise de 6 Professora-Pesquisadora Pós-graduação em Educação/UNISINOS. Doutora em Educação. Coordenação da Pesquisa: A categoria do amor-justiça e a Pedagogia Inaciana (1999-2000) 7 Professora Centro Ciências da Comunicação/UNISINOS. Mestre em Educação. Pesquisadora no Projeto: A categoria do amor-justiça e a Pedagogia Inaciana (1999-2000). 17 discurso, sob a ótica da linha francesa, examinamos o significado e o sentido da formação discursiva que se apresenta nesta Carta, impregnada de relações sócio-semânticas: linguagem fazendo-se ação, ação como manifestação de linguagens. Situando a própria Carta frente à formação discursiva contexto, aqui discutida, analisamos gênero, emissores, elementos discursivos de conteúdo e receptores. Considerando as marcas discursivas referenciadas, analisamos na Carta a gramaticalidade de um contexto sócio-político-teológico, exigindo o compromisso da construção de respostas que, para nós, centram-se na pergunta: qual o sentido de uma educação inaciana, 450 anos após haver sido sonhada por Inácio de Loyola? PALAVRAS CHAVES: Currículo – Práticas educativas – Pedagogia Inaciana 18