XXV ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS Seminário Temático: Antropologia e Comunicação SEÇÃO: O AUDIOVISUAL COMO CAMPO DE REPRESENTAÇÃO E RECEPÇÃO O FILME ANTROPOLÓGICO E AS NOVAS TECNOLOGIAS: um desafio acadêmico para a Antropologia Visual Por Antônio Claudio Brasil Rio de Janeiro 2001. O FILME ETNOGRÁFICO E AS NOVAS TECNOLOGIAS: um desafio acadêmico para a Antropologia Visual por Antônio Claudio Brasil * “O filme etnográfico específico é algo marginal, ainda não encontrou realmente seu próprio caminho. Depois de ter resolvido todos os problemas técnicos, devemos aparentemente reinventar, como Flaherty e Vertov nos anos 20, as regras de uma nova linguagem entre todas as civilizações.” (Jean Rouch, 1975). 1.INTRODUÇÃO Entre tribos e um Antropojornalismo. A Antropologia é um território acadêmico amplo, constituído de diversas tribos. Seus membros habitam espaços delimitados, possuem identidades definidas e falam línguas diversas. Dessa forma, pode-se dizer que os antropólogos se identificam com o próprio objeto de estudo da sua disciplina. Após quase trinta anos tentando conciliar interesses profissionais e acadêmicos tão diversos como o jornalismo, a televisão, os filmes etnográficos, as tecnologias comunicacionais e os estudos antropológicos, creio fazer parte da pequena tribo da “Antropologia Visual”. No entanto, apesar de todas as dúvidas existenciais e restrições acadêmicas, também pertenço a um outro universo social e cultural: a grande tribo da “Comunicação Social”. Nesses dois mundos, procuro valorizar e utilizar com igual rigor tanto a precisão de uma linguagem textual como a liberdade e riqueza de uma linguagem audiovisual. Até o momento, tenho tentado conciliar alguns conflitos inerentes dessa dupla identidade étnico-profissional. Enquanto não surge uma forma híbrida de Antropojornalismo ou Jornalismo antropológico, uma confluência ainda 2 utópica entre as identidades, as técnicas e os objetivos comuns à Antropologia e ao Jornalismo, continuo tentando pensar a Antropologia e a Comunicação Social de uma forma bem abrangente. Um território livre e ainda pouco explorado onde a principal questão epistemológica seja simplesmente o estudo do homem em seu meio ambiente cultural e social. Trata-se, pois, da busca de um campo interdisciplinar suficientemente amplo, receptivo e criativo para incluir nas suas interfaces tanto o rigor da ciência como a ousadia da arte. Uma superação constante dos limites de uma falsa dicotomia entre esses dois campos culturais. Afinal, são formas diversas mas complementares de conhecimento. Nessa procura por uma perspectiva mais ampla para os estudos acadêmicos e por metodologias inovadoras para as pesquisas etnográficas, recorre-se a uma análise da inserção das novas tecnologias comunicacionais nas ciências sociais. Elas podem oferecer possibilidades enriquecedoras voltadas para o desenvolvimento de campos de interesse alternativos , além de indicar os parâmetros de linguagens em sintonia com os objetivos e desafios de uma Antropologia em sua fase pós-moderna. Uma Antropologia que aglutine o enriquecimento das estruturas narrativas, valorize uma subjetividade autoral e contribua para o aperfeiçoamento dos métodos de pesquisa etnográficas sem a perda do seu vigor científico. 2. AS ECOLOGIAS DO TEXTO E DA IMAGEM O saber antropológico ainda é predominantemente dominado pela palavra e pelo registro textual. Após quase cem anos de convívio com o cinema e com os mais diversos exemplos de suportes audiovisuais, a pesquisa antropológica ainda vê com grande ceticismo as possibilidades de geração e disseminação de conhecimento científico pelos filmes etnográficos. Essa forma de registro fílmico já apresenta algumas definições que tendem a serem constantemente revistas e atualizadas. Segundo o Prof. Jay Ruby, atual presidente Center for Visual Communication da Temple University, autor de diversos trabalhos em Antropologia Visual, (1975) : 3 “Os filmes etnográficos deveriam satisfazer a quatro critérios: deveriam ser filmes sobre culturas integrais ou sobre partes (passíveis de serem definidas) de culturas; ser informados por explícitas ou implícitas teorias de cultura; ser explícitos sobre os métodos de pesquisa e filmagem empregados; utilizar um léxico nitidamente antropológico” (Ruby, J., 2000) Contudo, apesar do rigor dos parâmetros estabelecidos nas definições dos filmes etnográficos em seu campo de atuação, a constante produção de trabalhos acadêmicos que analisam suas diversas metodologias e a extensa produção audiovisual nos últimos anos, ainda assim existe grande resistência em relação ao verdadeiro valor científico da Antropologia Visual.. Por outro lado, em relação às novas tecnologias, ainda se depara com uma posição semelhante quanto à sua possível introdução e utilização no cenário acadêmico. Dentro desses novos meios, destacam-se, as redes telemáticas como a Internet, os novos suportes audiovisuais como o vídeo e televisões digitais, além das inúmeras possibilidades multiplicadoras e interativas da união de todas essas novas tecnologias pelo hipertexto ou multimídia. As promessas midiáticas das novas tecnologias costumam ser encaradas com grande admiração técnica por alguns mas com um ceticismo informacional ainda maior por parte de diversos setores da academia. No Brasil, segundo a Profa. Clarice Peixoto, pesquisadora na área de Antropologia Visual, são necessários estudos específicos para questões relacionadas entre a pesquisa etnográfica e sua utilização pelos meios de comunicação de massa: “Impossível ignorar, nos dias de hoje, a acelerada expansão dos suportes imagéticos, sobretudo da Televisão que, como produtora e difusora de imagem, cria e divulga sua representação sobre as diferentes culturas. Sua inserção sutil no campo antropológico nos 4 leva a refletir sobre esse mundo fragmentado pela tecnologia e as instituições midiáticas, que acirram os dilemas cada vez mais complexos da imagem etnográfica. Na fabricação dessas imagens inúmeras são as questões sobre o procedimento de elaborá-las, o estilo a ser adotado, a recepção das pessoas filmadas, enfim, todos esses problemas de ética e epistemologia que acompanham o fazer antropológico” (Peixoto, C., 1995). São principalmente essas questões de natureza epistemológica resultantes de uma interseção entre as potencialidades de uma nova tecnologia e os objetivos da etnografia pictórica que pretendemos discutir nesse trabalho. 3. A ANTROPOLOGIA E OS NOVOS MEIOS COMUNICACIONAIS Desde os seus primórdios, a Antropologia sempre teve uma relação estreita com as tecnologias comunicacionais contemporâneas e preponderantes em diversas épocas do seu desenvolvimento. “A história do filme etnográfico é parte da história do próprio cinema, e mais particularmente dos documentários, ou filmes não ficcionais. Tanto filme quanto etnografia nasceram no século XIX, alcançando sua maturidade nos anos 1920. Mais até 1960 não haviam iniciado uma colaboração sistemática... Entretanto , podemos ver que durante os primeiros quarenta anos do filme etnográfico, as maiores contribuições foram feitas por pessoas que estavam de alguma forma marginais à indústria do cinema e outros que estavam mais ou menos à margem da antropologia” (Heider, P., 1978). 5 Dessa forma, entre a marginalidade acadêmica e a busca de linguagens universais indicadas por Jean Rouch, o filme etnográfico desenvolve sua história. Alguns dos primeiros relatórios científicos elaborados por antropólogos pioneiros já incluíam ensaios fotográficos e cinematográficos. Hoje, somamos a esses mesmos recursos uma profusão de possibilidades oferecidas pelo novos meios infográficos e computacionais. Contudo, para muitos antropólogos, ainda se levantam questões polêmicas e debates infindáveis sobre o verdadeiro sentido dessas inovações. Discussões sobre o grau de “autenticação etnográfica” contido no escopo dos filmes antropológicos e as restrições epistemológicas ao conhecimento transmitido pelos meios de comunicação de massa como a Televisão ou a Internet ainda consomem boa parte das investigações e avaliações sobre o papel dos novos meios comunicacionais diante da Antropologia . Uma discussão recorrente e nem sempre produtiva que, por um lado, permeia e, por outro, cerceia novas iniciativas de se criarem alternativas para as metodologias da pesquisa etnográfica. Alternativas que se inserem num locus disciplinar em constante expansão com investigações notadamente mais aprofundadas de problemas sociais urbanos contemporâneos e indagações cada vez mais complexas de inúmeros grupos étnicos . Apesar das resistências acadêmicas às novas tecnologias e as imposições dos recursos textuais na disseminação do conhecimento científico, alguns setores da Antropologia continuam buscando alternativas para responder às questões relacionadas com o homem em seus mais diversos nichos sociais e culturais. Existe uma necessidade de se avaliar essas novas ferramentas e metodologias disponíveis no campo da tecnologia informacional com a maior urgência e de forma mais realista e menos conservadora . Em verdade, deve existir uma relação constante entre os objetivos de uma pesquisa acadêmico-científica e as possibilidades comunicacionais de diversas disciplinas da área das ciências sociais. Disciplinas comuns que 6 sempre buscaram uma definição de suas identidades, uma razão para as suas praxis e um caminho eficiente para a divulgação do conhecimento acumulado em tantos anos de pesquisa científica. Este estudo também procura estimular uma discussão sobre a interdependência entre disciplinas como a Antropologia e a Comunicação Social frente aos desafios lançados pela introdução, em nosso tempo, das novas tecnologias nas pesquisas etnográficas, no ensino da Antropologia e na divulgação do saber antropológico. Deve-se considerar, igualmente, as possibilidades de uma aproximação cada vez mais significativa das técnicas investigativas da Antropologia em seu trabalho de campo em áreas específicas da Comunicação como o Jornalismo. Pode-se considerar uma atuação interdisciplinar mais efetiva desses dois segmentos das ciências sociais. Trata-se de uma tentativa de se conduzir uma reflexão contextual sobre o verdadeiro papel do conhecimento acadêmico em relação à necessidade de uma divulgação científica ampliada para toda a sociedade pelos meios de comunicação de massa. Essa relação tem encontrado na produção de filmes etnográficos e nas possibilidades de disseminação oferecidas pelas novas tecnologias comunicacionais, uma conciliação entre os objetivos científicos da alternativa de Antropologia e as responsabilidades sociais dos próprios meios de comunicação. Com o desenvolvimento das novas tecnologias como o vídeo digital, a Internet, as televisões a cabo, tvs digitais e os filmes etnográficos encontramos um grande desafio de produção, divulgação e linguagem. Estudos de recepção indicam um interesse crescente do público, não só pela visualização desses documentos audiovisuais, mas também pelos métodos de produção deste material. Passamos de uma postura de visualização passiva por parte do público receptor para uma cultura de interatividade ativa, uma cultura de obra aberta. Os canais tradicionais exerciam uma rota comunicacional de sentido único com conteúdos fechados. Os novos meios inauguram um tráfego aberto e diversificado, tendo como resultado mais 7 imediato, a produção dinâmica de conhecimento com formas inéditas de autoria. Por outro lado, em relação ao próprio ensino da Antropologia, é hoje significativo, que grande parte dos alunos, ao ingressarem nas universidades, nos cursos de Antropologia, indicam a Televisão e os documentários como a principal referência para uma escolha acadêmica e profissional. Nessa perspectiva sobre a influência direta das tecnologias comunicacionais no ensino universitário e o espectro da Antropologia Visual, a Profa. Clarice Peixoto aponta: “É curioso observar que, paralelamente a esse movimento de olhar para si, surge o interesse por um campo ainda pouco difundido no Brasil – a antropologia visual. Na verdade, essa vontade crescente de incorporar o uso do audiovisual no fazer antropológico é uma forte demanda dos jovens universitários, cujo cotidiano é cercado de imagens: computadores, videogames, cinevídeo, cinema, publicidade, entre outros (Peixoto, C., 1995). 4. ANTROPOLOGIA E COMUNICAÇÃO: ALGUMAS QUESTÕES RELEVANTES. Mas como se encontra a produção recente dos filmes etnográficos? Quais são os novos desafios de linguagem numa época de desconstrução de paradigmas e novas perspectivas narrativas no cenário de uma Antropologia pós-moderna? O que podemos esperar da revolução digital numa relação entre a Antropologia e a Comunicação Social? Qual o papel e a influência dos meios de comunicação de massa e das novas tecnologias nos desafios recentes com os quais se depara a Antropologia Social? Quais os novos temas a serem investigados pela interface entre a Antropologia e a Comunicação Social? 8 Antropólogos de uma geração imagética tentam responder algumas dessas questões. Eles procuram desenvolver novos métodos de pesquisa para a produção de etnografias cada vez mais aprofundadas, utilizando do potencial dessas novas tecnologias. Por outro lado, pelo ponto de vista da disseminação do conhecimento, a divulgação científica encontra na Internet a possibilidade de uma maior socialização das produções audiovisuais no campo da Antropologia. Contudo, é necessário pensar e refletir sobre a sistematização dessa produção volumosa para o desenvolvimento de um novo saber antropológico voltado para os desafios sociais do século XXI, que garantam o próprio futuro da Antropologia como uma ciência social engajada nos verdadeiros problemas contemporâneos. 5. O SABER ANTROPOLÓGICO, OS BANCOS DE DADOS INFORMACIONAIS E OS NOVOS RECURSOS DE MULTIMÍDIA. Num cenário disponibilizadas de para inserção o constante universo de acadêmico novas deve-se tecnologias destacar especificamente dois exemplos paradigmáticos: os bancos de dados informacionais e os novos recursos do suporte em multimídia. A introdução e utilização de dessas ferramentas midiáticas oferecem grandes vantagens para o manuseio de grandes volumes de dados e uma interatividade entre todos os demais meios comunicacionais disponíveis para o pesquisador. Contudo, os desafios acadêmicos para a adoção dessas novas tecnologias, tanto na pesquisa como no ensino de Antropologia, têm causado mais um exemplo claro das dificuldades para uma aceitação de mudanças tecnológicas no meio da Antropologia. As resistências a essas mudanças culturais se assemelham, de alguma forma, com questões freqüentemente pesquisadas pelos próprios antropólogos em outros grupos sociais isolados. Assim como existem grandes dificuldades para a introdução de novas ferramentas em algumas sociedades no meio acadêmico habitat natural de grande parte dos membros da tribo dos antropólogos, também há dificuldades para a introdução de novos paradigmas culturais. 9 Principalmente aquelas que possam colocar em dúvida a soberania absoluta e isolada do registro textual como a única forma reconhecimento acadêmico. A resistência para olhar o filme etnográfico como fonte e documento de conhecimento na área das Ciências Sociais vem em parte dos cientistas estarem presos ao determinismo da escrita, ou da fala, impossibilitando-os perceber a legitimidade da imagem. Porém, escrita, fala, imagem e outros registros informacionais estão impregnados de subjetividade de seus autores: a ideologia que determina a escolha de um ângulo ou um enquadramento visual é a mesma que define um estilo literário nas narrativas etnográficas. Um exemplo objetivo dessa resistência às novas tecnologias e às transformações que elas suscitam pode ser avaliado em debates freqüentes e polêmicos suscitados no meio acadêmico. Em artigo publicado pelo emérito professor Marcus Banks do Instituto de Antropologia Social e Cultural da Universidade de Oxford na Inglaterra, sob o título, “Interactive Multimedia and anthropology – a sceptical view” pode-se destacar: “Existe uma tribo conhecida como os produtores de filmes etnográficos – eles acreditam que podem transmitir conhecimento antropológico e que são invisíveis!...Veneram a realidade e desprezam a arte....” “Mas todos aqueles que têm qualquer ponto de contato com o filme etnográfico não podem ter deixado de perceber que ele é raramente levado a sério pelos antropólogos... (sic) igualmente aqueles que devotam grande espaços de tempo à produção e uso do filme etnográfico o fazem porque têm pouco a contribuir com os principais objetivos da teoria antropológica. O resultado disso é que o filme etnográfico é quase nunca usado em pesquisa, a não ser pelo próprio antropólogo que o produziu” (Banks, M., 1997). 10 E até mesmo em relação ao espaço pedagógico da sala de aula, ele acrescenta de forma ainda mais contundente: “Nenhum antropólogo, até agora, parou para considerar se até mesmo o uso do filme etnográfico em sala de aula produz algum efeito realmente positivo”. (Idem) Não se trata, obviamente, de uma opinião ou posição isolada. Afinal, a Antropologia, após mais de cem anos de uma convivência crítica com o cinema e mais de cinqüenta de relacionamento conturbado com a televisão, ainda discute se existe realmente necessidade de uma retórica etnográfica. No Brasil, também se discute a propriedade de uma divulgação ou “vulgarização” científica junto ao grande público pelos meios de comunicação de massa. “A antropologia visual, enquanto campo de reflexão metodológica, ainda não encontrou sua autonomia e aceitação nas áreas de ensino e pesquisa no Brasil. Sua adequação e aplicação aos princípios da teoria antropológica estão ainda longe de serem adotados na maioria das instituições, da mesma maneira que seu espaço de discussão é bastante restrito....No entanto, grande parte da produção do filme etnográfico segue ainda o mesmo trajeto de certos filmes documentários de caráter apenas ilustrativo: limitam-se a uma simples descrição de aspectos culturais e sociais da realidade brasileira, sem explorar o objeto filmado; No Brasil, como na França, ainda não existe metodologia própria ao filme/vídeo etnográfico e, portanto, não é absurdo que não exista uma política voltada para a produção do cinema etnográfico e documentário” (Peixoto, C., 1995). 11 Segundo o Prof. Jay Ruby, um dos maiores pensadores e críticos da Antropologia Visual, aponta a necessidade de maior contextualização teórica e a falta de estruturas conceituais específicas para a análise da produção audiovisual: “As funções do filme etnográfico têm sido dispersas entre três gêneros específicos: documentação cultural para a pesquisa etnográfica, filme antropológico para a educação e filme cultural com teor dramático direcionado para o consumo do público em geral tendo como objetivo, o lucro. Essa diversidade têm confundido o seu foco principal... Contudo, apesar das críticas, os filmes etnográficos podem, de uma maneira dinâmica, acrescentar ao entendimento antropológico....Em sua forma ideal, o filme etnográfico é uma representação visual da própria Antropologia ... e cabe à Antropologia Visual fornecer uma clareza ao significado e função dos filmes etnográficos” (Ruby, J., 2000). E conclui: “Ensinar com filme é a maneira mais pragmática de se apreciar seu valor como comunicação” (Idem) São posições opostas numa discussão recorrente e polêmica. Nota-se que, até mesmo enquanto instrumento pedagógico, uma de suas funções mais pertinentes, o filme etnográfico e as demais formas de representação audiovisuais tradicionais encontram dificuldades para uma inserção positiva no cenário científico e acadêmico. Essa resistência aos meios audiovisuais se caracteriza de uma forma ainda mais contundente em relação à introdução em nossos dias, das “novas tecnologias” como, por exemplo, a Multimídia Interativa. Ao resumir em seu suporte técnico todos os demais meios comunicacionais, ela apresenta um potencial de mudanças paradigmáticas ainda mais revolucionárias. 12 Tais mudanças incluem, pelo ponto de vista do emissor, a possibilidade de desenvolvimento de novas linguagens interativas e, pela perspectiva do receptor, provoca novas formas de leitura não-lineares das informações coletadas pelos pesquisadores. Essa nova forma de leitura inclui a criação de hierarquias epistemológicas diferenciadas, não necessariamente previstas pelos autores. Trata-se de um instrumento de referenciação mais preciso e com maior capacidade de armazenamento do que os meios textuais tradicionais, sem a exclusão específica dos meios audiovisuais como o próprio filme etnográfico e a fotografia. Até que ponto poderemos avaliar, ainda hoje, as mudanças a serem provocadas pelo potencial desse novo meio? A Multimídia Interativa não se limita, simplesmente, a um crescimento exponencial na capacidade de armazenamento de dados obtidos pelos antropólogos em suas pesquisas de campo. No momento em que todos os dados disponíveis para o autor e observador estejam igualmente acessáveis, tanto poderemos pensar numa confirmação das conclusões e reflexões obtidas pelo autor como poderíamos vislumbrar o surgimento de novos conceitos teóricos e novos enfoques de pesquisas a partir dos mesmo dados obtidos. Ou seja, a relação entre as percepções empíricas do observador e as conclusões teóricas passam a ser mais transparentes e contestáveis. O armazenamento extensivo de componentes empíricos e a possibilidade de sua leitura não-linear valorizam a etnografia e ampliam as propostas de uma nova teoria antropológica ainda mais confiável e diversificada. A Multimídia interativa, ao incluir desde o filme etnográfico ao mais simples mapa ou diagrama proporciona, igualmente, um acesso amplo à forma de informação e a geração de novos caminhos de comunicação. Apesar das críticas ao caráter caótico e multiplicador proporcionado pelos links nos documentos em multimídia e à “ingenuidade” dos conteúdos dos documentos pictóricos, existe a necessidade premente de um do aprimoramento de instrumentos metodológicos mais eficientes para a pesquisa de problemas voltados para a complexidade nas ciências sociais. 13 Assim como o texto mal escrito pode ser mal indexado, da mesma forma uma etnografia incipiente em Multimídia pode oferecer links em demasia ou desnecessários. Contudo, assim como existe um consenso sobre a necessidade de estudos interdisciplinares deveria existir a concordância com a utilidade de uma complementação entre os suportes textuais e audiovisuais. 6. NÃO NECESSARIAMENTE O FILME ETNOGRÁFICO Em resposta a essas indagações a Profa. Faye Ginsburg, antropóloga e diretora do Center for Media, Culture and History do Departamento de Antropologia da New York University, tem conduzido pesquisas sobre o próprio futuro da Antropologia em sua interseção com os meios de comunicação de massa como o cinema e a televisão. Em seu artigo “Não necessariamente o filme etnográfico: traçando um futuro para a antropologia visual”, ela afirma: “(...)estamos repensando o lugar, a forma e o propósito do filme etnográfico como parte de uma série de práticas de mídia, preocupadas com a representação da cultura através reconhecendo que das isso fronteiras pode da diferença, acontecer tanto na produção quanto na recepção... Enquanto a falta de institucionalização da antropologia visual tem tornado difícil desenvolver a área de forma coerente, parte de sua vitalidade, diríamos, encontra-se no tráfego constante entre o mundo disciplinar da antropologia e o universo mais arrojado da prática de filmes e vídeos, relativamente livre dos entraves acadêmicos” (Ginsburg, F., 1999). Dessa forma, para aqueles que decidiram por uma vivência no espaço institucional que engloba a antropologia e as diversas áreas da comunicação 14 social como os estudos de cinema, a produção de filmes, a televisão ou mesmo as novas tecnologias, tem ficado evidente que é possível oferecer uma alternativa importante aos paradigmas dominantes nos estudos de mídia, que tendem a se concentrar essencialmente sobre o texto do filme ou do vídeo, às instituições de mídia ou à própria tecnologia, distantes das relações sociais da produção, distribuição e do consumo de produtos audiovisuais. Ademais, seria necessário incentivar as pesquisas etnográficas, baseadas em investigações de caráter empírico, sobre o desenvolvimento da própria televisão e das práticas afins de filme ou vídeo, considerando que as culturas nacionais e locais recebem influências cada vez mais fortes desses meios de comunicação social. Dessa forma, a Antropologia poderia também contribuir para esses estudos definindo novas áreas de investigação. Poderia auxiliar na criação de metodologias específicas, visando caracterizar e preservar a própria natureza e a sistemática dos meios de comunicação. Não só em busca de uma consolidação dos parâmetros de uma antropologia visual mas também, por uma Antropologia dos meios de comunicação de massa. Esse novo campo antropológico deveria indicar os caminhos para uma investigação etnográfica das atividades de produção, recepção e distribuição que operam como formas de ação social que podem ajudar não só a recuperar a mídia como um tópico central para a análise etnográfica mas também sua inserção com teorias sociais sobre a produção e representação cultural. A idéia principal dessa nova relação interdisciplinar deveria ser: “(...)repensar a antropologia visual e a prática do filme etnográfico em relação a uma ecologia global da imagem em rápida mutação e em que as ferramentas da antropologia social podem nos ajudar a entender melhor o papel que a mídia pode desempenhar, na distribuição do saber cultural no século XXI” (Idem). 15 7. O FUTURO DOS FILMES ETNOGRÁFICOS E DA ANTROPOLOGIA VISUAL EM MEIO À UMA CRISE DE IDENTIDADE A informação e a cultura têm em nossos dias um tratamento predominantemente visual. Cada vez mais, contemplamos uma aproximação entre a linguagem e a imagem ou a imagem como linguagem. E de todos os meios, sem dúvida o que atingiu uma maior universalidade receptiva foi a televisão. No limiar de se tornar digital, uma confluência com as novas tecnologias na forma de uma multimídia de proporções desconhecidas, a sedução televisiva encontra um elemento significativo de expansão na produção etnográfica e antropológica. Essa explosão informacional sem os controles condizentes com o rigor científico geram para os parâmetros da representação epistemológica, uma crise de identidade ou uma crise de realidade nos anos 1990. Apesar do crescimento quantitativo da produção etnográfica, existe uma retração qualitativa segundo análises críticas do segmento, mas o futuro da Antropologia Visual tende a ser promissor. As pesquisas conduzidas pela Profa Ginsburg apontam de forma conclusiva: “Não resta dúvidas, com base nos últimos vinte anos de produções de filmes etnográficos para a televisão, que existe ou foi constituída uma audiência popular para a produção audiovisual. Após o surgimento e florescimento do filme etnográfico na décadas de 1960 e 1970, pode-se dizer que o gênero atingiu a maturidade – indicada por sua lenta mas constante aceitação na academia e a popularidade das suas transmissões – e atravessa uma crise da meia-idade... a tarefa é clara: imaginar um futuro em que o filme etnográfico que cumpra sua promessa inicial. Resta ver como o entusiasmo, a inspiração e as inovações dos pioneiros do campo serão transformados por uma nova geração 16 que nasceu com a televisão e atingiu a maioridade durante a revolução das telecomunicações. (Idem) Hoje, tanto na Antropologia como na Comunicação, os estudos epistemológicos se direcionam para investigações sistemáticas sobre o papel da ficção, da verdade ou da realidade, principalmente na produção de filmes etnográficos voltados para um mercado televisivo com valores éticos e mercadológicos muitas vezes contraditórios. Ou seja, dentro de um quadro de novos paradigmas conceituais, o melhor dos filmes etnográficos seria aquele fiel à cultura antropológica tradicional ou aqueles que trazem à luz a questão da primazia da subjetividade e da narrativa, tão próprios de da linguagem televisual e de uma Antropologia pós-moderna? Essas mesmas questões e influências migram do campo acadêmico e alcançam os filmes etnográficos. Os desafios da atualidade não se limitam à introdução das novas tecnologias. A busca de um aprimoramento da linguagem semiótica largamente utilizada na produção fílmica atual pode estar levando os antropólogos-cineastas a desenvolver um novo olhar em direção ao seu objeto de estudo. Um olhar que privilegie simultaneamente a subjetividade e a objetividade da pesquisa etnográfica e do fazer cinematográfico . Afinal, na Antropologia visual e particularmente nos filmes etnográficos mais recentes, com a disseminação dos novos recursos tecnológicos e como a virtualidade ou o ciberespaço, poderia a ficção ou a mesmo a manipulação infográfica, em última instância, vir a criar novos conceitos de ...realidades? * Prof. Antônio Claudio Brasil Mestre em Antropologia Social pela London School of Economics Doutorando em Ciência da Informação pelo IBICT / UFRJ Professor da Faculdade de Comunicação da UERJ [email protected] 17 BIBLIOGRAFIA BANKS, Marcus e MORPHY, Howard. RETHINKING VISUAL ANTHROPOLOGY. Yale, Yale University Press, 1997 BARBASH, Ilisa e TAYLOR, Lucien. 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