Mannheim e seu tempo: entre o caos e o autoritarismo

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Mannheim e seu tempo: entre
o caos e o autoritarismo
André Luciano Simão
resumo
O presente artigo propõe reflexão
sobre as influências do contexto
histórico (econômico, social e político) na determinação, e direção, das
idéias e sentimentos de período determinado. Para isso, faz análise da
proposta teórica de Karl Mannheim,
destacado sociólogo do século XX,
e das mudanças que sofre esta proposta conforme a situação social, e
principalmente política, da Europa,
que muda radicalmente, no início
do século XX.
Palavras-Chave
Pensamento social - Democracia planificada - Sociologia do conhecimento.
Introdução
O trabalho pretende inserir o pensamento de Mannheim, destacado intelectual do século XX, no contexto histórico de seu surgimento,
caracterizando também quais as mudanças por que passa este pensamento conforme esse contexto histórico – econômico, político e social
– também passa por transformações. Contudo, não caberia a trabalho
deste porte procurar caracterizar o pensamento mannheimiano em toda
a sua abrangência e em todas as suas metamorfoses. Deste modo, este
trabalho irá limitar-se a caracterizar alguns aspectos da concepção de
democracia no pensamento do autor, em dois momentos. Um primeiro
momento, o início da década de 30, quando Mannheim ainda se encontra
na Alemanha e suas preocupações são as perturbações pelas quais passa
a democracia alemã, a democracia de Weimar. Um segundo momento,
quando se encontra na Inglaterra, expulso da Alemanha, e seu objetivo
maior é definir meios para impedir a completa ascensão do nazismo na
Alemanha e na Europa.
Dessa forma, o trabalho se dividirá em três tópicos e a conclusão.
O primeiro tópico para uma breve caracterização do período e seus
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reflexos sobre parte dos intelectuais que então surgiam, um segundo
para descrever o pensamento de Mannheim ainda na Alemanha e um
terceiro para mostrar o que mudou neste pensamento, com o autor já
na Inglaterra e com o nazismo em plena ascensão. O trabalho procurará,
então, mostrar como Mannheim, atemorizado pelo nazismo, assume
uma posição elitista em relação às massas, posição contraditória com
suas convicções teóricas e políticas anteriores.
O caos do início do século: fim de um sonho
Mannheim faz parte de uma geração de intelectuais que nasceu, e
teve seu primeiro desenvolvimento intelectual, sob a égide do Iluminismo,
do Império de Razão. Teve, portanto, uma forte formação iluminista.
Como grande parte de sua geração, acreditava que a humanidade,
através da Razão, caminharia para a plena realização e concretização
do Homem. Para os intelectuais deste tempo a história estaria em um
contínuo e permanente progresso no qual reinaria a Razão. O mundo
seria um local harmônico e pacífico.
Com a primeira Guerra Mundial vem à tona para estes intelectuais
o outro lado da moeda. O mundo mostra-se, na verdade, um caos.
Nunca antes tamanha brutalidade do homem contra o homem havia
sido vista.
Como poderia haver tamanha violência no reino da Razão?
O mundo não tem mais sentido e mostra-se completamente diferente do que era, nada mais tem o seu lugar definido. Se no passado
não havia por que questionar o mundo, pois este era “sensato”, naquele
instante não há o que ser questionado por que nada é certo.
A primeira missão que estes intelectuais impõem a si mesmos, num
primeiro momento após a guerra, é de estabelecer novamente, com o
auxílio da Razão, um novo sentido para o mundo, uma nova noção de
civilização, de valores etc. Contudo, isso logo se mostrou impossível,
pois o mundo então via-se sob a égide do relativismo, em que “tudo
que é sólido se desmancha no ar” (BERMAN, 1999), não existe mais a
possibilidade de se estabelecer um “único” sentido para o mundo. Agora
o que reina, na ótica destes intelectuais, é o caos, o irracionalismo.
Mannheim, portanto, neste contexto, irá se mostrar com grande
temeridade frente a este caos, frente à possibilidade de uma guerra ainda
mais devastadora. O que Mannheim procurou, em um primeiro instante,
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foi determinar a forma pela qual a sociedade poderia caminhar para um
mundo harmônico e justo, neste momento, para ele, a solução é o debate
político. Aos poucos, com a convivência com a República de Weimar,
percebe que o debate político não é uma solução prática e transita para
novas posições frente à realidade que se mostra a ele.
Críticas à democracia:
a República de Weimar e o liberalismo
Em princípios da década de 20, Mannheim tem a convicção de que a
sociologia do conhecimento através de um objeto particular, a ideologia,
pode compreender a totalidade da sociedade e, desta forma, ajudá-la a
escolher qual o melhor caminho. A sociologia do conhecimento atuaria
através do intelectual, um ser despojado de localismos – valores, ídolos,
ideologias, etc. – que flutuaria por sobre as classes apreendendo, melhor
do que qualquer outro, os anseios das mesmas:
Um grupo social particular que deve ser preservado como
um freio contra monotonia e as tendências niveladoras em
uma cultura planejada é a dos intelectuais independentes.
Uma sociedade composta apenas de grupos profissionais,
burocracias e grupos de interesses limitados corre o perigo de desenvolver uma mentalidade rígida, preocupada
principalmente com o aperfeiçoamento institucional e os
expedientes imediatos. Faltará a ela idéias dinâmicas e imaginação social, capazes de transcender a estrutura existente
de instituições sociais. No passado, grupos de intelectuais
independentes produziram uma mentalidade dinâmica que
ultrapassou as fronteiras do que quer que existisse. A função deles seria difícil de ser substituída. Mais precisamente,
uma sociedade democrática deve planejar deliberadamente
carreiras desvinculadas das escalas sociais e educacionais
regulares (MANNHEIM, 1982, p. 164-165).
Para Mannheim, cada um dos vários grupos sociais possui uma
ideologia própria, que expõe parte da verdade, da totalidade, e oculta
outra. O grande propósito do intelectual é promover o debate político
racional entre estes diversos grupos, nos quais cada um exporia a sua
parte da verdade. Deste modo, através de uma síntese entre as diversas
ideologias, encontrar-se-ia o melhor caminho a ser seguido, no qual cada
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grupo abriria mão de parte de seus anseios para o melhor desenvolvimento do todo. Neste momento, para o autor, não deve existir uma elite
que dirija o processo político.
Com o pleno desenvolvimento da República de Weimar, Mannheim
vê-se obrigado a abdicar de seu sonho inicial. O mundo mostra-se cada
vez mais irracional, o relativismo toma conta da sociedade alemã. Segundo o autor, há uma crise de valores, não há mais uma tradição que
mostre aos jovens qual deva ser o seu comportamento:
[...] podemos, às vezes, duvidar do que está certo ou errado, e isto pode ser aceito como coisa natural. Mas quando
prevalece uma ansiedade de massas, porque a comoção
ideológica geral elimina toda base sadia para a ação comum, e quando a gente não sabe onde está, nem o que
deve pensar a respeito dos problemas mais elementares da
vida, então se pode falar, com razão, de uma desintegração
espiritual da sociedade (MANNHEIM, 1972, p. 23).
A juventude está totalmente desamparada:
Atrás do jovem, a guerra, em frente a ele A ruína social, à
sua esquerda ele está sendo empurrado pelos Comunistas,
à direita, pelos nacionalistas e por toda a sua volta não
existe um só traço de honestidade, de racionalidade, e
todos os seus bons instintos estão sendo distorcidos pelo
ódio (GAY, 1978, p. 77).
Para Mannheim, a ideologia neste momento é extremamente irracional. Perde-se o objetivo inicial da sociologia do conhecimento, pois não é
possível um diálogo racional com as ideologias, não há a possibilidade de
diálogo entre as forças contrárias. O liberalismo, laissez faire, é o grande
responsável por este estado de desagregação quando diz que tudo deve
se ajustar por força própria.
É esta a situação real em que vivemos, numa sociedade de
massas que interpretou literalmente o conceito do laissez
faire, sem perceber que com o desaparecimento dos velhos controles ficaria o homem sem nenhuma orientação.
Tal sociedade está moralmente ‘solapada’ (MANNHEIM,
1972, p. 35-36).
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Neste quadro, Mannheim vê a necessidade de direcionar a tendência
democratizadora para tentar evitar um de seus prováveis resultados:
As ditaduras só podem surgir nas democracias: tornamse possíveis devido à maior fluidez introduzida pela
democracia na vida política. A ditadura não é a antítese
da democracia: é um dos modos possíveis encontrados
por uma sociedade democrática para tentar resolver seus
problemas (MANNHEIM, 1974, p. 141-142).
A democracia, ao ampliar os grupos que participam da arena política, pode criar entraves ao processo decisório, “o curto circuito do
processo político pode entrar então numa fase ditatorial” (MANNHEIM,
1974, p. 142).
Com o sufrágio universal (e a conseqüente possibilidade de acesso
de diversos grupos participação política) a elite política, já amplamente
familiarizada com a realidade política e ciente do que realmente poderia
ser feito, portanto, sem entrar em esquemas utópicos e sem se perder
em devaneios, perde sua homogeneidade. Com efeito, com a democracia plena:
grupos ainda não familiarizados com a realidade política
assumem de repente certas funções políticas. Isto leva a
uma discrepância característica: camadas e grupos cujo
pensamento político se orienta para a realidade tem que
cooperar ou lutar com pessoas que estão vivendo sua
primeira experiência política – pessoas cujo pensamento
ainda se encontra num estágio utópico (MANNHEIM,
1974, p. 142).
Isso se mostra como um mercado livre, onde cada grupo coloca
sua opinião e, dessa forma, o indivíduo confunde-se pelas pressões
das unidades rivais sem conseguir discernir sobre qual o caminho mais
positivo. Sendo assim, um dos grandes problemas da democracia, para
o autor, está em repartir o poder comum, e também no fato de que o
voto, da massa “irracional”, pode ser manipulado por partidos ou grupos
de pressão.
Portanto, segundo Mannheim (1972, p. 56), o chamado governo
da maioria pode acabar de duas formas. Como instrumento do autoritarismo, “a experiência tem demonstrado claramente que um sistema de
partidos excessivamente competitivo leva diretamente ao fascismo”, ou
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então acabar como peso morto impedindo qualquer mudança.
A tão esperada democracia da Razão mostrou-se falsa, o irracionalismo e o conservantismo desvirtuaram o ideal de democracia política.
O que surge é uma democracia do impulso, “como agora se pode ver
claramente, a democracia não é necessariamente um veículo de tendências racionalizadoras na sociedade – pelo contrário, ela bem pode
funcionar como órgão da expressão desinibida de impulsos emocionais
momentâneos” (MANNHEIM, 1974, p. 143).
Mannheim se vê frente a um grande paradoxo. Por um lado, a
sociedade democrática é positiva, pois viabiliza a plena autonomia do
indivíduo. Contudo, este processo tem sua face negativa, pois a sociedade
democrática ao mesmo tempo induz á massificação deste indivíduo. Ao
mesmo tempo em que amplia a liberdade “a democracia também desenvolve poderosos mecanismos sociais para induzir o indivíduo a renunciar
a sua autonomia” (MANNHEIM, 1974, p. 143). É o que o autor dá o nome
de autoneutralização do indivíduo. O homem, através da inteligência e
da invenção liberta-se das imposições naturais, sua liberdade depende
da influência que é capaz de exercer na determinação dos objetivos
coletivos, porém, ao mesmo tempo em que a técnica liberta da tirania
da natureza, ela impõe a dependência social, já que o homem só é capaz de realizar plenamente sua razão e sua técnica como ser coletivo.1
“Quanto mais a técnica nos liberta da força arbitrária da natureza, mais
nos enredamos na rede de relações sociais que nós próprios criamos”
(MANNHEIM, 1986, p. 193).
Mannheim, já no início da década de 30, mas ainda na Alemanha,
demonstra vagamente uma tendência à planificação, à “imposição” de
valores básicos, pois já tem como certo que toda democracia precisa de
recursos, não democráticos ou antidemocráticos, para neutralizar parte
dos poderes individuais. “Tais recursos, entretanto, não são impostos de
fora; consistem essencialmente de uma renúncia voluntária, por parte da
massa, do uso pleno de suas energias” (MANNHEIM, 1974, p. 148), ou
seja, não seriam “impostos”. Para o autor, a democracia neste momento
não pode existir como um ideal de ordem, que ele ainda associa apenas ao
autoritarismo, impor um ideal de ordem seria condenar a democracia.
1. É idéia é muito presente em Kant (1986), autor que muito influenciou Mannheim em
suas concepções sobre liberdade, e sua percepção quanto à insociável sociabilidade dos
homens.
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A existência humana não conseguirá realizar integralmente
suas potencialidades presa a uma disciplina sistemática
excessiva. Se tabus e inibições socialmente impostos impedirem por completo o acesso ao inconsciente, a vida
mental e social se congelará num molde rígido (MANNHEIM, 1974, p. 164).
Mannheim, agora, já admite a idéia de uma elite dominante,
pois, não vê mais a democracia direta como possível de existir em
grandes comunidades, a direção real da política deve estar nas
mãos de uma elite. Contudo, “numa democracia, os governados
podem sempre atuar para remover seus líderes ou forçá-los a tomar
decisões no interesse da maioria” (MANNHEIM, 1974, p. 148). Aqui
está o grande perigo da massificação, já que, os indivíduos estão
predispostos à manipulação. “Entretanto, deve ser enfatizado que a
‘massificação’ não pode ser superada através da redução do número
de indivíduos que participam ativamente do processo político” (MANNHEIM, 1974, p. 163). Ou seja, Mannheim, ao menos abertamente,
não deseja a volta a uma democracia incompleta, quando ainda não
havia o voto universal. Mesmo assim, podemos perceber no que escreve um desejo contido de que o voto volte a ser censitário, onde
votem apenas aqueles que possuam uma condição crítica frente à
realidade, desta forma, não havendo mais discussões “irracionais”
que comprometam a democracia e também a possibilidade de condução das massas.
A democracia, neste instante, se apresenta a Mannheim apenas
como um modo de seleção de elites.
No que se refere à diferença entre a seleção democrática
de elites a não-democrática, o fator mais importante
é obviamente a amplitude de base de seleção. Um
sistema só é democrático se o recrutamento da elite
não se limita aos membros de um grupo fechado”
(MANNHEIM, 1974, p. 169).
Uma democracia desejável, não ideal, é aquela em que as decisões são tomadas por um grupo fechado, onde não exista o acesso
de muitos interesses, pouco acostumados ao exercício do poder, que
possam atrapalhar o processo decisório. Porém este grupo fechado
deve estar sob a constante influência das massas.
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A ameaça nazista: Mannheim e a planificação
Expulso da Alemanha pelo nazismo, vivendo na Inglaterra e
assistindo à ascensão completa do autoritarismo, completa-se uma
transição que já vinha operando no pensamento de Mannheim.
Agora, ele se coloca definitivamente a favor de um planejamento
democrático que implicaria, necessariamente, no uso de técnicas
sociais para a imposição de valores básicos, opondo-se completamente às suas posições anteriores, quando via a democracia enquanto
incompatível com uma ordem dada.
Mannheim percebe que a crise de valores (desintegração social)
e o caos originado pelo laissez faire tornavam eminente a ameaça
do totalitarismo. Desta forma, com a ameaça nazista mais próxima
do que nunca, altera sua concepção: são necessários métodos, técnicas sociais, para que os comportamentos humanos se encaixem
em padrões sociais existentes. “Utilizo a expressão ‘técnicas sociais’
para me referir a todos os métodos que influem no comportamento
humano para que este se encaixe nos padrões de interação e organização social existentes” (MANNHEIM, 1972, p. 24). As técnicas sociais
existiam, grande parte da sociedade estava massificada, portanto as
mesmas técnicas deveriam ser utilizadas irremediavelmente, bastava
apenas definir por quem, pelo autoritarismo ou pela democracia:
A concentração de toda espécie de controles – econômicos, políticos, psicológicos e mecânicos – chegou a tal
ponto (a última guerra mundial acelerou enormemente
essa tendência) que a questão é apenas saber quem
usará esses meios de controle e para que fim; pois não
resta dúvida que, de qualquer maneira, serão usados
algum dia (MANNHEIM, 1972, p. 26).
Segundo Mannheim, o povo só pode unir-se para a guerra ou para a
paz, se existirem valores básicos aceitos por toda a comunidade, valores
que foram eliminados com o fim da tradição. Anteriormente à modernidade, as normas de conduta eram fornecidas pela família, pela religião,
pela escola, etc. Contudo, com o fracasso do laissez faire estas condutas
e valores desintegraram-se. Vivia-se naquele momento, para Mannheim,
o caos social. “Isto indica, por si mesmo, que a época do laissez faire
já passou e que a catástrofe só pode ser evitada pelo planejamento”
(MANNHEIM, 1972, p. 38).
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O povo, na visão de Mannheim, necessita de segurança, de valores
básicos que lhe apontem um objetivo a alcançar e, muitas vezes, segue
cegamente ao primeiro que lhe oferecer uma saída. Cabe á democracia
planificada fornecer esta segurança antes que algum demagogo o faça.
O fascismo se mostra como a exploração inescrupulosa da massa
por uma minoria que usa da propaganda, e de outras técnicas sociais,
para paralisar a reflexão por parte da massa. Esta minoria “não somente
substitui os métodos de discussão política pela propaganda organizada,
como também transforma a educação e todas as relações humanas em
departamentos de propaganda” (MANNHEIM, 1972, p. 46). Para Mannheim (1972, p. 48), “a única possibilidade de que o ideal de liberdade
continue vivo no espírito dos governantes, reside na permanência e no
apoio das instituições livres”. Se um poder ditatorial se apodera do aparelho institucional, ele transforma essas instituições livres em instrumentos
de uma minoria.
Sendo assim, para Mannheim, a democracia deveria assumir o papel
de formadora das condutas humanas. Nesta democracia planificada, o
papel destinado às ciências sociais seria o de substituir a tradição na
função de transmissora dos costumes:
A ciência social há de proporcionar os conhecimentos básicos para a educação social, conceito utilizado com freqüência mas raramente bem definido. A educação social não
visa criar um ser social gregário, mas procura estabelecer
uma personalidade bem equilibrada, dentro do espírito da
verdadeira democracia (MANNHEIM, 1972, p. 233).
A grande diferença entre a democracia planificada e o totalitarismo, é
que este último procura assumir as tarefas da família, controlando principalmente a formação psicológica da juventude, já a democracia planejada
procura assegurar as condições de existência de uma família equilibrada.
Deve-se utilizar a propaganda para convencer os indivíduos. “Promoverse-ão campanhas de propaganda educativa acerca das medidas que
serão desejáveis, porém os não conformistas terão o direito de escolher
o seu próprio modo de vida” (MANNHEIM, 1972, p. 240). A imposição
só deve ser usada em casos extremos. Para Mannheim, somente quando
a família mostrar um comportamento pernicioso, devem ser utilizados
os métodos totalitários.
A democracia planificada, conforme o autor, diferencia-se do totalitarismo, em primeira instância, por não procurar impor uma submissão
passiva ao indivíduo.
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Conclusão
O primeiro fato a se destacar é como se opera uma mudança no pensamento de Mannheim conforme mudam as condições sociais, econômicas
e políticas do momento em que ele vive. Há, com certeza, uma grande
distância entre um pensamento que propõe o debate político entre todos
os grupos sociais como saída para um futuro melhor, e um pensamento
que admite a existência de uma elite que comande o processo decisório,
e que deve “impor” o que é certo ou errado quanto aos comportamentos
humanos. Esta mudança se explica pelo temor do irracional, da ascensão
do nazismo, tão presente no cotidiano do autor.
O principal temor de Mannheim parece ser impedir o domínio do
caos. Entretanto, a única saída que se mostra satisfatória no momento é o
autoritarismo. Porém, Mannheim mantém como valor básico a liberdade do
indivíduo, ao menos aparentemente, conseqüentemente não pode aceitar
a saída autoritária, portanto, ele procura encontrar um meio termo entre
o laissez faire e o autoritarismo, o que não consegue fazer sem entrar em
contradições.
Afinal, procurar determinar quais condutas e comportamentos devem ser adotados não é ser autoritário? Procurar impor uma ordem não
é uma atitude antidemocrática como Mannheim mesmo já havia escrito,
“condenar a democracia em nome de um ideal de ordem é, portanto fútil
e impensado” (MANNHEIM, 1974, p. 164). Mannheim, apesar de procurar
fugir do autoritarismo procura “impor” o que é certo, “este novo conhecimento contém a promessa de que conseguiremos construir gradativamente um ambiente social que favorecerá os traços da personalidade e
as atitudes desejáveis” (MANNHEIM, 1972, p. 238), note-se: construir a
personalidade desejada.
Pois bem, o mesmo Mannheim que descreve como o autoritarismo usa
a propaganda para dominar a massa: “não somente substitui os métodos de
discussão política pela propaganda organizada, como também transforma
a educação e todas as relações humanas importantes em departamentos de
propaganda” (MANNHEIM, 1972, p. 46). Em outro momento, no mesmo
texto, diz que a democracia planificada deve usar a propaganda, “promoverse-ão campanhas de propaganda educativas acerca das medidas que serão
desejáveis [...]” (MANNHEIM, 1972, p. 240). Mas enfim, o que difere as
condutas “desejáveis” determinadas pelos líderes democráticos daquelas
determinadas pelos líderes totalitários? Ambas não são alheias à vontade
da massa, aos olhos desta ambos não têm a mesma aparência. O que
diferencia uma boa conduta “desejável” de uma má conduta “desejável”?
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Quem determina esta diferença? Não estará ele agindo em seu benefício?
Como a massa poderá desvendar este segredo?
Em outro trecho, Mannheim escreve “que não é contrário ao espírito
de liberdade influir tanto no ambiente psicológico como no material, a fim
de induzir os homens a escolherem os valores desejáveis” (MANNHEIM,
1972, p. 247), note-se: a fim de induzir a valores desejáveis. Logo depois
escreve, “à primeira vista, poderá parecer irrelevante que planejemos o
ambiente a fim de suscitar o comportamento desejado, deixando a porta
aberta aos desvios individuais; mas é justamente aí que reside toda a diferença” (MANNHEIM, 1972, p. 248).
A grande diferença entre a democracia planificada e o autoritarismo
parece ser que, aqueles que conseguirem resistir à manipulação psicológica, na democracia, não serão eliminados, ao menos não pelo governo.
Mas, quem sabe o que a massa subjugada faria aos diferentes? Não é o
próprio Mannheim quem alerta para o enorme poder de dominação da
propaganda: onde está, então, a liberdade de opção, de escolher a outra
porta, principalmente àqueles miseráveis que formam a grande parte da
massa?
O pensamento de Mannheim parece marcado por uma obsessão, a
de uma sociedade, senão harmônica, ao menos livre do perigo do caos.
Para concretizar esta esperança Mannheim parece não perceber que a
cada momento se aproxima de seu outro grande temor, a liderança autoritária, no que ela possuí de pior, a manipulação psicológica da massa
empobrecida.
O terror que a possibilidade do caos desperta em Mannheim faz com
que sua crença na democracia plena acabe. Na Inglaterra, o autor já não
acredita na possibilidade de existência da democracia em grandes comunidades, onde o grosso da população foi, ou invariavelmente será, massificada
pelas técnicas sociais devido desagregação dos valores. Somente em pequenas comunidades autônomas haveria a possibilidade de participação de
todos os indivíduos no processo político. Neste momento, Mannheim não
vê com bons olhos a participação de todos os grupos sociais no processo
político, pois a interferência das massas “irracionais” simplesmente levaria
ao fim da democracia. Sendo assim, assume neste momento uma clara
posição elitista quanto ao processo político e decisório. A decisão política
deve estar nas mãos de um pequeno grupo que atuaria “racionalmente”
frente à realidade, para resolver da melhor maneira possível os problemas
que surgissem. Como já foi dito, neste momento, Mannheim vê a democracia apenas como mais um meio de seleção das elites, onde esta não se
restringiria a um grupo fechado.
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Referências
BERMAN, M. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
GAY, P. A. Cultura de Weimar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
MANNHEIM, K. Ideologia e Utopia. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.
______. Karl Mannheim: sociologia. São Paulo: Ática, 1982.
______. Liberdade, poder e planificação democrática. São Paulo:
Mestre Jou, 1972.
______. Sociologia da Cultura. São Paulo: Perspectiva, 1974.
Abstract
The present article considers reflection on the influences of the
historical context (economic, social and politician) in the determination,
and direction, of the ideas and feelings of specific period. For this, it
makes analysis of the proposal theoretical of Karl Mannheim, detached
sociologist of century XX, and the changes who suffers to this proposal
in agreement the social situation, and mainly politics, of the Europe is
modified radically at the beginning of century XX.
André Luciano Simão
Mestre em Sociologia (Pensamento Social) - Unicamp.
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