Mannheim e seu tempo: entre o caos e o autoritarismo André Luciano Simão resumo O presente artigo propõe reflexão sobre as influências do contexto histórico (econômico, social e político) na determinação, e direção, das idéias e sentimentos de período determinado. Para isso, faz análise da proposta teórica de Karl Mannheim, destacado sociólogo do século XX, e das mudanças que sofre esta proposta conforme a situação social, e principalmente política, da Europa, que muda radicalmente, no início do século XX. Palavras-Chave Pensamento social - Democracia planificada - Sociologia do conhecimento. Introdução O trabalho pretende inserir o pensamento de Mannheim, destacado intelectual do século XX, no contexto histórico de seu surgimento, caracterizando também quais as mudanças por que passa este pensamento conforme esse contexto histórico – econômico, político e social – também passa por transformações. Contudo, não caberia a trabalho deste porte procurar caracterizar o pensamento mannheimiano em toda a sua abrangência e em todas as suas metamorfoses. Deste modo, este trabalho irá limitar-se a caracterizar alguns aspectos da concepção de democracia no pensamento do autor, em dois momentos. Um primeiro momento, o início da década de 30, quando Mannheim ainda se encontra na Alemanha e suas preocupações são as perturbações pelas quais passa a democracia alemã, a democracia de Weimar. Um segundo momento, quando se encontra na Inglaterra, expulso da Alemanha, e seu objetivo maior é definir meios para impedir a completa ascensão do nazismo na Alemanha e na Europa. Dessa forma, o trabalho se dividirá em três tópicos e a conclusão. O primeiro tópico para uma breve caracterização do período e seus janus, lorena, ano 3, nº 4, 2º semestre de 2006 115 reflexos sobre parte dos intelectuais que então surgiam, um segundo para descrever o pensamento de Mannheim ainda na Alemanha e um terceiro para mostrar o que mudou neste pensamento, com o autor já na Inglaterra e com o nazismo em plena ascensão. O trabalho procurará, então, mostrar como Mannheim, atemorizado pelo nazismo, assume uma posição elitista em relação às massas, posição contraditória com suas convicções teóricas e políticas anteriores. O caos do início do século: fim de um sonho Mannheim faz parte de uma geração de intelectuais que nasceu, e teve seu primeiro desenvolvimento intelectual, sob a égide do Iluminismo, do Império de Razão. Teve, portanto, uma forte formação iluminista. Como grande parte de sua geração, acreditava que a humanidade, através da Razão, caminharia para a plena realização e concretização do Homem. Para os intelectuais deste tempo a história estaria em um contínuo e permanente progresso no qual reinaria a Razão. O mundo seria um local harmônico e pacífico. Com a primeira Guerra Mundial vem à tona para estes intelectuais o outro lado da moeda. O mundo mostra-se, na verdade, um caos. Nunca antes tamanha brutalidade do homem contra o homem havia sido vista. Como poderia haver tamanha violência no reino da Razão? O mundo não tem mais sentido e mostra-se completamente diferente do que era, nada mais tem o seu lugar definido. Se no passado não havia por que questionar o mundo, pois este era “sensato”, naquele instante não há o que ser questionado por que nada é certo. A primeira missão que estes intelectuais impõem a si mesmos, num primeiro momento após a guerra, é de estabelecer novamente, com o auxílio da Razão, um novo sentido para o mundo, uma nova noção de civilização, de valores etc. Contudo, isso logo se mostrou impossível, pois o mundo então via-se sob a égide do relativismo, em que “tudo que é sólido se desmancha no ar” (BERMAN, 1999), não existe mais a possibilidade de se estabelecer um “único” sentido para o mundo. Agora o que reina, na ótica destes intelectuais, é o caos, o irracionalismo. Mannheim, portanto, neste contexto, irá se mostrar com grande temeridade frente a este caos, frente à possibilidade de uma guerra ainda mais devastadora. O que Mannheim procurou, em um primeiro instante, 116 janus, lorena, ano 3, nº 4, 2º semestre de 2006 foi determinar a forma pela qual a sociedade poderia caminhar para um mundo harmônico e justo, neste momento, para ele, a solução é o debate político. Aos poucos, com a convivência com a República de Weimar, percebe que o debate político não é uma solução prática e transita para novas posições frente à realidade que se mostra a ele. Críticas à democracia: a República de Weimar e o liberalismo Em princípios da década de 20, Mannheim tem a convicção de que a sociologia do conhecimento através de um objeto particular, a ideologia, pode compreender a totalidade da sociedade e, desta forma, ajudá-la a escolher qual o melhor caminho. A sociologia do conhecimento atuaria através do intelectual, um ser despojado de localismos – valores, ídolos, ideologias, etc. – que flutuaria por sobre as classes apreendendo, melhor do que qualquer outro, os anseios das mesmas: Um grupo social particular que deve ser preservado como um freio contra monotonia e as tendências niveladoras em uma cultura planejada é a dos intelectuais independentes. Uma sociedade composta apenas de grupos profissionais, burocracias e grupos de interesses limitados corre o perigo de desenvolver uma mentalidade rígida, preocupada principalmente com o aperfeiçoamento institucional e os expedientes imediatos. Faltará a ela idéias dinâmicas e imaginação social, capazes de transcender a estrutura existente de instituições sociais. No passado, grupos de intelectuais independentes produziram uma mentalidade dinâmica que ultrapassou as fronteiras do que quer que existisse. A função deles seria difícil de ser substituída. Mais precisamente, uma sociedade democrática deve planejar deliberadamente carreiras desvinculadas das escalas sociais e educacionais regulares (MANNHEIM, 1982, p. 164-165). Para Mannheim, cada um dos vários grupos sociais possui uma ideologia própria, que expõe parte da verdade, da totalidade, e oculta outra. O grande propósito do intelectual é promover o debate político racional entre estes diversos grupos, nos quais cada um exporia a sua parte da verdade. Deste modo, através de uma síntese entre as diversas ideologias, encontrar-se-ia o melhor caminho a ser seguido, no qual cada janus, lorena, ano 3, nº 4, 2º semestre de 2006 117 grupo abriria mão de parte de seus anseios para o melhor desenvolvimento do todo. Neste momento, para o autor, não deve existir uma elite que dirija o processo político. Com o pleno desenvolvimento da República de Weimar, Mannheim vê-se obrigado a abdicar de seu sonho inicial. O mundo mostra-se cada vez mais irracional, o relativismo toma conta da sociedade alemã. Segundo o autor, há uma crise de valores, não há mais uma tradição que mostre aos jovens qual deva ser o seu comportamento: [...] podemos, às vezes, duvidar do que está certo ou errado, e isto pode ser aceito como coisa natural. Mas quando prevalece uma ansiedade de massas, porque a comoção ideológica geral elimina toda base sadia para a ação comum, e quando a gente não sabe onde está, nem o que deve pensar a respeito dos problemas mais elementares da vida, então se pode falar, com razão, de uma desintegração espiritual da sociedade (MANNHEIM, 1972, p. 23). A juventude está totalmente desamparada: Atrás do jovem, a guerra, em frente a ele A ruína social, à sua esquerda ele está sendo empurrado pelos Comunistas, à direita, pelos nacionalistas e por toda a sua volta não existe um só traço de honestidade, de racionalidade, e todos os seus bons instintos estão sendo distorcidos pelo ódio (GAY, 1978, p. 77). Para Mannheim, a ideologia neste momento é extremamente irracional. Perde-se o objetivo inicial da sociologia do conhecimento, pois não é possível um diálogo racional com as ideologias, não há a possibilidade de diálogo entre as forças contrárias. O liberalismo, laissez faire, é o grande responsável por este estado de desagregação quando diz que tudo deve se ajustar por força própria. É esta a situação real em que vivemos, numa sociedade de massas que interpretou literalmente o conceito do laissez faire, sem perceber que com o desaparecimento dos velhos controles ficaria o homem sem nenhuma orientação. Tal sociedade está moralmente ‘solapada’ (MANNHEIM, 1972, p. 35-36). 118 janus, lorena, ano 3, nº 4, 2º semestre de 2006 Neste quadro, Mannheim vê a necessidade de direcionar a tendência democratizadora para tentar evitar um de seus prováveis resultados: As ditaduras só podem surgir nas democracias: tornamse possíveis devido à maior fluidez introduzida pela democracia na vida política. A ditadura não é a antítese da democracia: é um dos modos possíveis encontrados por uma sociedade democrática para tentar resolver seus problemas (MANNHEIM, 1974, p. 141-142). A democracia, ao ampliar os grupos que participam da arena política, pode criar entraves ao processo decisório, “o curto circuito do processo político pode entrar então numa fase ditatorial” (MANNHEIM, 1974, p. 142). Com o sufrágio universal (e a conseqüente possibilidade de acesso de diversos grupos participação política) a elite política, já amplamente familiarizada com a realidade política e ciente do que realmente poderia ser feito, portanto, sem entrar em esquemas utópicos e sem se perder em devaneios, perde sua homogeneidade. Com efeito, com a democracia plena: grupos ainda não familiarizados com a realidade política assumem de repente certas funções políticas. Isto leva a uma discrepância característica: camadas e grupos cujo pensamento político se orienta para a realidade tem que cooperar ou lutar com pessoas que estão vivendo sua primeira experiência política – pessoas cujo pensamento ainda se encontra num estágio utópico (MANNHEIM, 1974, p. 142). Isso se mostra como um mercado livre, onde cada grupo coloca sua opinião e, dessa forma, o indivíduo confunde-se pelas pressões das unidades rivais sem conseguir discernir sobre qual o caminho mais positivo. Sendo assim, um dos grandes problemas da democracia, para o autor, está em repartir o poder comum, e também no fato de que o voto, da massa “irracional”, pode ser manipulado por partidos ou grupos de pressão. Portanto, segundo Mannheim (1972, p. 56), o chamado governo da maioria pode acabar de duas formas. Como instrumento do autoritarismo, “a experiência tem demonstrado claramente que um sistema de partidos excessivamente competitivo leva diretamente ao fascismo”, ou janus, lorena, ano 3, nº 4, 2º semestre de 2006 119 então acabar como peso morto impedindo qualquer mudança. A tão esperada democracia da Razão mostrou-se falsa, o irracionalismo e o conservantismo desvirtuaram o ideal de democracia política. O que surge é uma democracia do impulso, “como agora se pode ver claramente, a democracia não é necessariamente um veículo de tendências racionalizadoras na sociedade – pelo contrário, ela bem pode funcionar como órgão da expressão desinibida de impulsos emocionais momentâneos” (MANNHEIM, 1974, p. 143). Mannheim se vê frente a um grande paradoxo. Por um lado, a sociedade democrática é positiva, pois viabiliza a plena autonomia do indivíduo. Contudo, este processo tem sua face negativa, pois a sociedade democrática ao mesmo tempo induz á massificação deste indivíduo. Ao mesmo tempo em que amplia a liberdade “a democracia também desenvolve poderosos mecanismos sociais para induzir o indivíduo a renunciar a sua autonomia” (MANNHEIM, 1974, p. 143). É o que o autor dá o nome de autoneutralização do indivíduo. O homem, através da inteligência e da invenção liberta-se das imposições naturais, sua liberdade depende da influência que é capaz de exercer na determinação dos objetivos coletivos, porém, ao mesmo tempo em que a técnica liberta da tirania da natureza, ela impõe a dependência social, já que o homem só é capaz de realizar plenamente sua razão e sua técnica como ser coletivo.1 “Quanto mais a técnica nos liberta da força arbitrária da natureza, mais nos enredamos na rede de relações sociais que nós próprios criamos” (MANNHEIM, 1986, p. 193). Mannheim, já no início da década de 30, mas ainda na Alemanha, demonstra vagamente uma tendência à planificação, à “imposição” de valores básicos, pois já tem como certo que toda democracia precisa de recursos, não democráticos ou antidemocráticos, para neutralizar parte dos poderes individuais. “Tais recursos, entretanto, não são impostos de fora; consistem essencialmente de uma renúncia voluntária, por parte da massa, do uso pleno de suas energias” (MANNHEIM, 1974, p. 148), ou seja, não seriam “impostos”. Para o autor, a democracia neste momento não pode existir como um ideal de ordem, que ele ainda associa apenas ao autoritarismo, impor um ideal de ordem seria condenar a democracia. 1. É idéia é muito presente em Kant (1986), autor que muito influenciou Mannheim em suas concepções sobre liberdade, e sua percepção quanto à insociável sociabilidade dos homens. 120 janus, lorena, ano 3, nº 4, 2º semestre de 2006 A existência humana não conseguirá realizar integralmente suas potencialidades presa a uma disciplina sistemática excessiva. Se tabus e inibições socialmente impostos impedirem por completo o acesso ao inconsciente, a vida mental e social se congelará num molde rígido (MANNHEIM, 1974, p. 164). Mannheim, agora, já admite a idéia de uma elite dominante, pois, não vê mais a democracia direta como possível de existir em grandes comunidades, a direção real da política deve estar nas mãos de uma elite. Contudo, “numa democracia, os governados podem sempre atuar para remover seus líderes ou forçá-los a tomar decisões no interesse da maioria” (MANNHEIM, 1974, p. 148). Aqui está o grande perigo da massificação, já que, os indivíduos estão predispostos à manipulação. “Entretanto, deve ser enfatizado que a ‘massificação’ não pode ser superada através da redução do número de indivíduos que participam ativamente do processo político” (MANNHEIM, 1974, p. 163). Ou seja, Mannheim, ao menos abertamente, não deseja a volta a uma democracia incompleta, quando ainda não havia o voto universal. Mesmo assim, podemos perceber no que escreve um desejo contido de que o voto volte a ser censitário, onde votem apenas aqueles que possuam uma condição crítica frente à realidade, desta forma, não havendo mais discussões “irracionais” que comprometam a democracia e também a possibilidade de condução das massas. A democracia, neste instante, se apresenta a Mannheim apenas como um modo de seleção de elites. No que se refere à diferença entre a seleção democrática de elites a não-democrática, o fator mais importante é obviamente a amplitude de base de seleção. Um sistema só é democrático se o recrutamento da elite não se limita aos membros de um grupo fechado” (MANNHEIM, 1974, p. 169). Uma democracia desejável, não ideal, é aquela em que as decisões são tomadas por um grupo fechado, onde não exista o acesso de muitos interesses, pouco acostumados ao exercício do poder, que possam atrapalhar o processo decisório. Porém este grupo fechado deve estar sob a constante influência das massas. janus, lorena, ano 3, nº 4, 2º semestre de 2006 121 A ameaça nazista: Mannheim e a planificação Expulso da Alemanha pelo nazismo, vivendo na Inglaterra e assistindo à ascensão completa do autoritarismo, completa-se uma transição que já vinha operando no pensamento de Mannheim. Agora, ele se coloca definitivamente a favor de um planejamento democrático que implicaria, necessariamente, no uso de técnicas sociais para a imposição de valores básicos, opondo-se completamente às suas posições anteriores, quando via a democracia enquanto incompatível com uma ordem dada. Mannheim percebe que a crise de valores (desintegração social) e o caos originado pelo laissez faire tornavam eminente a ameaça do totalitarismo. Desta forma, com a ameaça nazista mais próxima do que nunca, altera sua concepção: são necessários métodos, técnicas sociais, para que os comportamentos humanos se encaixem em padrões sociais existentes. “Utilizo a expressão ‘técnicas sociais’ para me referir a todos os métodos que influem no comportamento humano para que este se encaixe nos padrões de interação e organização social existentes” (MANNHEIM, 1972, p. 24). As técnicas sociais existiam, grande parte da sociedade estava massificada, portanto as mesmas técnicas deveriam ser utilizadas irremediavelmente, bastava apenas definir por quem, pelo autoritarismo ou pela democracia: A concentração de toda espécie de controles – econômicos, políticos, psicológicos e mecânicos – chegou a tal ponto (a última guerra mundial acelerou enormemente essa tendência) que a questão é apenas saber quem usará esses meios de controle e para que fim; pois não resta dúvida que, de qualquer maneira, serão usados algum dia (MANNHEIM, 1972, p. 26). Segundo Mannheim, o povo só pode unir-se para a guerra ou para a paz, se existirem valores básicos aceitos por toda a comunidade, valores que foram eliminados com o fim da tradição. Anteriormente à modernidade, as normas de conduta eram fornecidas pela família, pela religião, pela escola, etc. Contudo, com o fracasso do laissez faire estas condutas e valores desintegraram-se. Vivia-se naquele momento, para Mannheim, o caos social. “Isto indica, por si mesmo, que a época do laissez faire já passou e que a catástrofe só pode ser evitada pelo planejamento” (MANNHEIM, 1972, p. 38). 122 janus, lorena, ano 3, nº 4, 2º semestre de 2006 O povo, na visão de Mannheim, necessita de segurança, de valores básicos que lhe apontem um objetivo a alcançar e, muitas vezes, segue cegamente ao primeiro que lhe oferecer uma saída. Cabe á democracia planificada fornecer esta segurança antes que algum demagogo o faça. O fascismo se mostra como a exploração inescrupulosa da massa por uma minoria que usa da propaganda, e de outras técnicas sociais, para paralisar a reflexão por parte da massa. Esta minoria “não somente substitui os métodos de discussão política pela propaganda organizada, como também transforma a educação e todas as relações humanas em departamentos de propaganda” (MANNHEIM, 1972, p. 46). Para Mannheim (1972, p. 48), “a única possibilidade de que o ideal de liberdade continue vivo no espírito dos governantes, reside na permanência e no apoio das instituições livres”. Se um poder ditatorial se apodera do aparelho institucional, ele transforma essas instituições livres em instrumentos de uma minoria. Sendo assim, para Mannheim, a democracia deveria assumir o papel de formadora das condutas humanas. Nesta democracia planificada, o papel destinado às ciências sociais seria o de substituir a tradição na função de transmissora dos costumes: A ciência social há de proporcionar os conhecimentos básicos para a educação social, conceito utilizado com freqüência mas raramente bem definido. A educação social não visa criar um ser social gregário, mas procura estabelecer uma personalidade bem equilibrada, dentro do espírito da verdadeira democracia (MANNHEIM, 1972, p. 233). A grande diferença entre a democracia planificada e o totalitarismo, é que este último procura assumir as tarefas da família, controlando principalmente a formação psicológica da juventude, já a democracia planejada procura assegurar as condições de existência de uma família equilibrada. Deve-se utilizar a propaganda para convencer os indivíduos. “Promoverse-ão campanhas de propaganda educativa acerca das medidas que serão desejáveis, porém os não conformistas terão o direito de escolher o seu próprio modo de vida” (MANNHEIM, 1972, p. 240). A imposição só deve ser usada em casos extremos. Para Mannheim, somente quando a família mostrar um comportamento pernicioso, devem ser utilizados os métodos totalitários. A democracia planificada, conforme o autor, diferencia-se do totalitarismo, em primeira instância, por não procurar impor uma submissão passiva ao indivíduo. janus, lorena, ano 3, nº 4, 2º semestre de 2006 123 Conclusão O primeiro fato a se destacar é como se opera uma mudança no pensamento de Mannheim conforme mudam as condições sociais, econômicas e políticas do momento em que ele vive. Há, com certeza, uma grande distância entre um pensamento que propõe o debate político entre todos os grupos sociais como saída para um futuro melhor, e um pensamento que admite a existência de uma elite que comande o processo decisório, e que deve “impor” o que é certo ou errado quanto aos comportamentos humanos. Esta mudança se explica pelo temor do irracional, da ascensão do nazismo, tão presente no cotidiano do autor. O principal temor de Mannheim parece ser impedir o domínio do caos. Entretanto, a única saída que se mostra satisfatória no momento é o autoritarismo. Porém, Mannheim mantém como valor básico a liberdade do indivíduo, ao menos aparentemente, conseqüentemente não pode aceitar a saída autoritária, portanto, ele procura encontrar um meio termo entre o laissez faire e o autoritarismo, o que não consegue fazer sem entrar em contradições. Afinal, procurar determinar quais condutas e comportamentos devem ser adotados não é ser autoritário? Procurar impor uma ordem não é uma atitude antidemocrática como Mannheim mesmo já havia escrito, “condenar a democracia em nome de um ideal de ordem é, portanto fútil e impensado” (MANNHEIM, 1974, p. 164). Mannheim, apesar de procurar fugir do autoritarismo procura “impor” o que é certo, “este novo conhecimento contém a promessa de que conseguiremos construir gradativamente um ambiente social que favorecerá os traços da personalidade e as atitudes desejáveis” (MANNHEIM, 1972, p. 238), note-se: construir a personalidade desejada. Pois bem, o mesmo Mannheim que descreve como o autoritarismo usa a propaganda para dominar a massa: “não somente substitui os métodos de discussão política pela propaganda organizada, como também transforma a educação e todas as relações humanas importantes em departamentos de propaganda” (MANNHEIM, 1972, p. 46). Em outro momento, no mesmo texto, diz que a democracia planificada deve usar a propaganda, “promoverse-ão campanhas de propaganda educativas acerca das medidas que serão desejáveis [...]” (MANNHEIM, 1972, p. 240). Mas enfim, o que difere as condutas “desejáveis” determinadas pelos líderes democráticos daquelas determinadas pelos líderes totalitários? Ambas não são alheias à vontade da massa, aos olhos desta ambos não têm a mesma aparência. O que diferencia uma boa conduta “desejável” de uma má conduta “desejável”? 124 janus, lorena, ano 3, nº 4, 2º semestre de 2006 Quem determina esta diferença? Não estará ele agindo em seu benefício? Como a massa poderá desvendar este segredo? Em outro trecho, Mannheim escreve “que não é contrário ao espírito de liberdade influir tanto no ambiente psicológico como no material, a fim de induzir os homens a escolherem os valores desejáveis” (MANNHEIM, 1972, p. 247), note-se: a fim de induzir a valores desejáveis. Logo depois escreve, “à primeira vista, poderá parecer irrelevante que planejemos o ambiente a fim de suscitar o comportamento desejado, deixando a porta aberta aos desvios individuais; mas é justamente aí que reside toda a diferença” (MANNHEIM, 1972, p. 248). A grande diferença entre a democracia planificada e o autoritarismo parece ser que, aqueles que conseguirem resistir à manipulação psicológica, na democracia, não serão eliminados, ao menos não pelo governo. Mas, quem sabe o que a massa subjugada faria aos diferentes? Não é o próprio Mannheim quem alerta para o enorme poder de dominação da propaganda: onde está, então, a liberdade de opção, de escolher a outra porta, principalmente àqueles miseráveis que formam a grande parte da massa? O pensamento de Mannheim parece marcado por uma obsessão, a de uma sociedade, senão harmônica, ao menos livre do perigo do caos. Para concretizar esta esperança Mannheim parece não perceber que a cada momento se aproxima de seu outro grande temor, a liderança autoritária, no que ela possuí de pior, a manipulação psicológica da massa empobrecida. O terror que a possibilidade do caos desperta em Mannheim faz com que sua crença na democracia plena acabe. Na Inglaterra, o autor já não acredita na possibilidade de existência da democracia em grandes comunidades, onde o grosso da população foi, ou invariavelmente será, massificada pelas técnicas sociais devido desagregação dos valores. Somente em pequenas comunidades autônomas haveria a possibilidade de participação de todos os indivíduos no processo político. Neste momento, Mannheim não vê com bons olhos a participação de todos os grupos sociais no processo político, pois a interferência das massas “irracionais” simplesmente levaria ao fim da democracia. Sendo assim, assume neste momento uma clara posição elitista quanto ao processo político e decisório. A decisão política deve estar nas mãos de um pequeno grupo que atuaria “racionalmente” frente à realidade, para resolver da melhor maneira possível os problemas que surgissem. Como já foi dito, neste momento, Mannheim vê a democracia apenas como mais um meio de seleção das elites, onde esta não se restringiria a um grupo fechado. janus, lorena, ano 3, nº 4, 2º semestre de 2006 125 Referências BERMAN, M. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. GAY, P. A. Cultura de Weimar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. MANNHEIM, K. Ideologia e Utopia. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986. ______. Karl Mannheim: sociologia. São Paulo: Ática, 1982. ______. Liberdade, poder e planificação democrática. São Paulo: Mestre Jou, 1972. ______. Sociologia da Cultura. São Paulo: Perspectiva, 1974. Abstract The present article considers reflection on the influences of the historical context (economic, social and politician) in the determination, and direction, of the ideas and feelings of specific period. For this, it makes analysis of the proposal theoretical of Karl Mannheim, detached sociologist of century XX, and the changes who suffers to this proposal in agreement the social situation, and mainly politics, of the Europe is modified radically at the beginning of century XX. André Luciano Simão Mestre em Sociologia (Pensamento Social) - Unicamp. 126 janus, lorena, ano 3, nº 4, 2º semestre de 2006