universidade de são paulo: fundação e reforma - traços da

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO: FUNDAÇÃO E REFORMA - TRAÇOS DA
HISTÓRIA DA FACULDADE DE EDUCAÇÃO DA USP NA PRODUÇÃO DE
HELÁDIO ANTUNHA
Alexsandro do Nascimento Santos
Universidade de São Paulo
[email protected]
Palavras-Chave: Intelectuais, FEUSP, Heládio Antunha
Introdução
Heládio Antunha ingressou, como estudante, na então Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras da Universidade de São Paulo no ano de 1945. Naquele momento, a
presença dos professores da Missão Francesa estava em franca diminuição e o contato
dos estudantes com este grupo de professores era mais restrito. Na ocasião das
comemorações do cinquentenário da Universidade de São Paulo, o próprio Antunha
recupera este momento:
Ao matricular-me, em 1945, na Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras, logo percebi que eu pertencia a uma nova geração de alunos
que, cada vez mais, via diminuir a influência pessoal dos grandes
mestres estrangeiros, do passado recente, mas que ao mesmo tempo
presenciava o crescimento e a influência dos novos mestres nacionais,
por aqueles formados. Presenciava, na verdade, o início do processo de
substituição dos antigos mestres “missionários” pelos novos e
competentes docentes nacionais, por aqueles formados. Além de
Fernando de Azevedo e de seus colegas vindos do antigo Instituto de
Educação, meus professores foram João Cruz Costa, Anita Cabral,
Lívio Teixeira, Cícero Cristiano de Souza, além de mais jovens como
Laerte Ramos de Carvalho, João Cunha Andrade, entre outros. Os dois
únicos estrangeiros de que fui discípulo na FFCL, - de 1945 a 1948 – já
num outro contexto foram Otto Klineberg, americano e Giles Gaston
Granger, francês. (Antunha, 1984:317)
Ao nomear explicitamente nomes como João Cruz Costa, Lívio Teixeira e
Laerte Ramos de Carvalho, Antunha se filia a uma trajetória específica: a dos estudos
sobre a história e a filosofia da educação organizados a partir da cadeira de mesmo
nome da então Seção de Pedagogia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras.
1
De acordo com Bontempi Junior (2001, 2007), a cadeira de História e Filosofia
da Educação tem suas origens ainda no Instituto de Educação quando a disciplina (então
nomeada Filosofia e História da Educação) passou a compor o currículo do curso de
formação de professores, juntamente com as disciplinas de Psicologia Educacional,
Sociologia Educacional, Biologia Educacional, Educação Comparada e Metodologia do
Ensino Secundário. A regência desta disciplina esteve a cargo do normalista Roldão
Lopes de Barros de 1933 até 1951. Em 1938, com a extinção do Instituto de Educação e
a criação da Seção de Educação (Quarta Seção) da Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras, Roldão Lopes de Barros tornou-se catedrático da cadeira XLV, que herdou o
mesmo nome da disciplina: Filosofia e História da Educação.
No período de 1938 a 1948, o assistente de Roldão Lopes de Barros foi José
Querino Ribeiro. Com sua transferência definitiva para a cadeira de Administração
Escolar, assumiu a função de primeiro assistente Laerte Ramos de Carvalho. Com o
falecimento de Lopes de Barros, em 1951, Ramos de Carvalho assumiu interinamente a
Cadeira XLV e, em 1955, assumiu-a de forma definitiva. Roque Spencer Maciel de
Barros e João Eduardo Vilalobos foram nomeados, no período da regência de Cátedra
de Ramos de Carvalho (1955-1968), para a função de primeiros-assistentes.
É
justamente nesse período que um grupo de estudantes e pesquisadores se organizará no
entorno de Ramos de Carvalho cumprindo um extenso programa de investigação
histórica sobre a educação brasileira. Fator auxiliar, mas extremamente relevante para
compreender as condições em que essas pesquisas emergiram é a criação do Centro
Regional de Pesquisas Educacionais de São Paulo (CRPE), do qual Ramos de Carvalho
foi diretor. Segundo Bontempi Junior, acumulando a regência da Cadeira XLV e a
coordenação do Centro, o eminente catedrático pôde disponibilizar aos pesquisadores
uma estrutura significativa em termos de instalações, acesso à documentação e a fontes
bibliográficas. Ainda segundo Bontempi Junior,
As pesquisas foram sendo estimuladas pelo regente no interior dos
próprios cursos regulares da cadeira de História e Filosofia da
Educação, destacadamente no curso de Especialização, cumprido no
quarto ano por alunos escolhidos, tendo em vista o doutoramento em
futuro próximo. (...)
Em 1962, Ramos de Carvalho convocou antigos alunos de Pedagogia,
dentre os quais Jorge Nagle e Casemiro dos Reis Filho, para que
participassem de um projeto pioneiro de investigação e escrita da
História da Educação Brasileira, que consistia na produção de
monografias que pudessem gerar em seu conjunto uma visão mais
alargada de nossa história educacional. (Bontempi Junior, 2007: 99100)
É nesse contexto específico que Heládio Antunha construirá sua tese de
doutoramento, A Reforma de 1920 da Instrução Pública no Estado de São Paulo (1967).
Embora apresentado no concurso para livre-docência da disciplina de Filosofia da
Educação da já autônoma Faculdade de Educação em 1971 (portanto, após a
reorganização da Universidade de São Paulo e já findo o regime de cátedras), o trabalho
que ora analisamos, Universidade de São Paulo: Fundação e Reforma também emerge
na esteira dessa mesma produção coletiva da Cadeira XLV. Não por menos, seu autor
assinala, nos dois parágrafos finais de sua introdução:
Desejamos manifestar, nesta oportunidade nosso agradecimento
especial ao Professor Doutor Laerte Ramos de Carvalho, pelo profundo
estímulo intelectual e pessoal que nos vem dando desde o início de
nossas atividades na Universidade de São Paulo, na qual ingressamos na
qualidade de assistente da antiga cátedra de História e Filosofia da
Educação, em virtude de seu convite e de sua confiança. O presente
trabalho é indubitavelmente um produto dessa confiança; esperamos
que o resultado não esteja muito aquém da expectativa.
No mesmo sentido, e com a mesma ênfase, cabe também aqui um
agradecimento ao Professor Doutor Roque Spencer Maciel de Barros:
seu incentivo constante tem sido um dos motivos fundamentais de nossa
disposição em progredir em nossa carreira. (Antunha, 1971:10)
A Ideia de Universidade em dois momentos fundamentais da USP
O título da tese de livre-docência de Antunha antecipa de forma cabal uma parte
de suas intenções, qual seja, construir uma explicação a respeito de dois momentos da
história da Universidade: sua fundação, datada de 1934, com a criação da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras e a reforma de seus estatutos, gestada na segunda metade da
década de 1960 e concluída no ano de 1969. Tal explicação, entretanto, não se esgota na
descrição desses dois acontecimentos, mas estabelece entre eles uma espécie de
identidade e de continuidade, calcadas numa espécie de missão ou ideal de
Universidade que a Universidade de São Paulo, ao olhar de nosso autor, parecia
encarnar:
3
Julgamos encontrar uma inflexível constância nas concepções
predominantes no seio da Universidade de São Paulo desde a sua
fundação, a propósito das ideias e dos princípios superiores que devem
orientar a vida da instituição, isto é, de sua filosofia universitária,
embora encontremos uma notável descontinuidade nos meios
empregados para pô-los em prática, ou melhor, nos modelos de
estrutura universitária adotados. Não nos parece ser de todo incorreto
afirmar-se que, desde a sua instalação como universidade, a USP esteve
sempre em busca de uma estruturação que lhe permitisse organizar-se e
funcionar como uma autêntica "universidade liberal”. Com esta
expressão, apesar de sua relativa dose de ambiguidade e imprecisão,
queremos significar a concepção de nítidas influências europeias
(alemãs, francesas, sobretudo), sob cuja inspiração a USP foi criada e
se desenvolveu até o presente, apesar das oposições e resistências, tanto
externas quanto originárias da própria intimidade da instituição
(Antunha, 1971: 14-5)
A “autêntica universidade liberal” assinalada por Antunha é longamente
debatida na primeira parte de sua tese, nomeada de “Considerações sobre o problema
das concepções de universidade”, no qual o autor introduz o leitor numa análise de
diferentes propostas explicativas a respeito dos objetivos e dos formatos ou modelos de
universidade. Para tanto, Antunha faz escolhas específicas em torno de intelectuais que
se debruçaram sobre a questão:
A partir da fundação da Universidade de Berlim por Wilhelm von
Humboldt, a “ideia de universidade” passaria a ser uma preocupação
constante de certos espíritos, a tornar-se mais aguda e urgente
sobretudo nos instantes de transição e de crise, isto é, nos momentos de
organização inicial ou de reestruturação das universidades. Os trabalhos
clássicos do Cardeal Newman (“A ideia de uma Universidade”,
“Origem e Progresso das Universidades”), de Abraham Flexner
(“Universities: American, English, German”), de Ortega y Gasset
(“Missão da Universidade”), Whitehead (“Os fins da educação”) e de
Karl Jaspers (“A ideia da Universidade) demonstram o continuado
interesse e a permanente atualidade do problema dos objetivos e
valores universitários, bem como a diversidade de formas pelas quais
pode ser concebida a instituição universitária. (Antunha, 1971:14)
Esses autores são longamente explorados para sustentar as considerações de
Antunha sobre duas concepções que parecem orientar as ideias de universidade: uma
concepção idealista ou interna e uma concepção modelo funcional ou externa. Para tal
distinção, convoca os autores Jacques Drèze e Jean Debelle, em sua obra “Conceptions
de l Université”, publicada anos antes da escrita de sua tese de livre docência. Segundo
Antunha, naquela obra os autores
Chamam de ponto de vista interno ou idealista ao que preside àquelas
concepções que desenvolvem uma ideia de universidade a partir de
normas próprias da instituição e selecionam para caracterizar essa
posição idealista ou interna as concepções dos seguintes autores:
Cardeal Newman, Karl Jaspers e Alfred Norton Whitehead, nas quais a
ênfase é colocada sucessivamente no ensino, na pesquisa e na simbiose
entre pesquisa e ensino. Em oposição, o ponto de vista externo ou
funcional é característico daquelas concepções (eles estudam a
napoleônica e a soviética, consideradas como típicas) que surgem em
decorrência da necessidade de prestação de serviços à nação ou à
sociedade: as normas aplicadas à instituição vêm do exterior, elas
procedem mais de uma preocupação de unidade coletiva que das
exigências autônomas da instituição (Antunha, 1971:23)
Após essa distinção, Antunha anuncia que, embora seja útil compreender esses
dos modos de orientar a construção da ideia de universidade, o modelo presente de
universidade mais hegemônico (o norte-americano) parece superar essa dicotomia e
ordenar, no mesmo modelo universitário, aspectos da concepção idealista e aspectos da
concepção funcional de universidade. Segundo o autor:
A típica universidade norte-americana de nossos dias tornou-se uma
instituição “compreensiva” que aceita, integra e assimila, adaptando à
nova situação industrial e de massa da sociedade contemporânea, tudo o
que foi concebido “unilateralmente” como objetivo e função da
universidade. Trata-se, sobretudo, de uma instituição que procura
associar estreitamente aspectos ideais (ensino e pesquisa,
principalmente) aos funcionais (serviços), estruturando-se de tal
maneira que possa ajustar-se às necessidades da presente sociedade de
consumo, na qual a educação passa a ser uma “mercadoria” altamente
valorizada e intensamente procurada. (Antunha, 1971:24)
Segue o autor numa descrição diacrônica bastante longa sobre a construção do
sistema universitário norte-americano e do processo de diversificação das modalidades
de universidade presentes naquele país até aquele momento histórico, concluindo que
5
Fica claro que um conjunto universitário como esse não pode deixar-se
aprisonar pelos esquemas e conceitos tradicionais a respeito dos
objetivos e funções universitárias (...)
Na verdade, a extraordinária abundância norte-americana permite aos
EUA manter diferentes tipos de instituições universitárias para os mais
diversos propósitos, desde os estabelecimentos de massa, destinados a
receber todos os jovens que possuam curso de nível médio e que
desejam prosseguir seus estudos, até a universidade altamente seletiva,
portadora de um nome profundamente respeitável (...) preocupada
sobretudo com a manutenção dos padrões de excelência das atividades
que realiza e que se distingue pela severa seleção de seus alunos, pelo
alto nível de seu corpo docente, pela importância de seu programa de
investigações de ponta e pela sua Escola de Pós-Graduação. (Antunha,
1971:42)
É sobretudo comparando essa configuração universitária norte-americana com a
história da construção da universidade no Brasil que Antunha inicia sua defesa sobre
qual seria o sentido presente nos momentos de fundação e reforma da Universidade de
São Paulo. O autor argumenta que, ainda que a Universidade brasileira em geral e a
Universidade de São Paulo, em particular, não tenha atingido o grau de complexidade e,
portanto, não tenha que se haver com as mesmas dimensões da questão universitária que
se coloca para o modelo norte americano,
(...) de qualquer maneira, a dificuldade de conciliação dos aspectos
ideais e funcionais pode ser claramente percebida nos dois momentos
fundamentais da vida da USP: o de sua fundação e o presente, de sua
reestruturação. Encontramos, nesses dois instantes, os elementos
essenciais do conflito: de um lado, ideias superiormente formuladas a
respeito dos objetivos essenciais e da maneira de organizar uma
universidade e de outro, pressões externas, bem como resistências e
obstáculos a impedir a implantação integral da nova concepção.
Em ambos os casos é, antes de mais nada, em nome de uma concepção
liberal de universidade que se procura implantar um novo modelo
estrutural e de funcionamento, novas formas de convívio intelectual e
de atuação integrada. Por outro lado, em ambos os momentos, porém
mais agora do que na época de sua fundação, é ressaltado o papel da
universidade como um dos instrumentos fundamentais a serviço do
desenvolvimento do país e de sua estabilidade social. Em consequência,
a Universidade se coloca, mais do que nunca no centro de divergências
de natureza doutrinária e se faz necessário que ela tome consciência de
sua própria razão de ser e de seus objetivos mais altos. (Antunha,
1971:43)
Para Antunha, essa “razão de ser” está ancorada em três fundamentos que, em
sua avaliação, estiveram presentes na inspiração dos fundadores e que permaneceram no
horizonte da vida uspiana até então: (a) o princípio da universalidade, que faz com que a
autêntica universidade se oponha à “concepção de instituições universitárias com campo
limitado, especializado ou vertidas para objetivos específicos e fechados” (p. 44), (b) a
ideia de integração, entendida de forma ampla e aplicando-se “não apenas às
necessidades pragmáticas de administração e utilização comum de dependências e
laboratórios” (p. 47), mas principalmente “à necessidade intelectual de busca da unidade
dos conhecimentos e portanto das exigências de contato e comunicação constante entre
os diversos campos do saber” (p. 48) e (c) a autonomia universitária, que, segundo
Antunha “não deve ser absoluta e ilimitada como muitos pedem, não transcendendo
pois a esfera de seus objetivos e funções próprias” (p. 49) e que deve se sustentar na
autonomia administrativa e técnica (de gestão e de operação) e na liberdade de
expressão e manifestação do pensamento.
Antunha finaliza essa primeira parte da sua exposição afirmando que:
Estas parecem-nos ser, em síntese, algumas das ideias fundamentais que
julgamos encontrar à base do desenvolvimento histórico da
Universidade de São Paulo, através da interpretação das decisões
tomadas em seus momentos históricos mais importantes. No entanto, se
esses podem ser considerados os princípios predominantes, sempre
presentes na vida da USP, não se pode negar que tenha havido
oposições e resistências, de início por parte de professores e unidades
conservadoras e tradicionais (por sentirem seus privilégios históricos
ameaçados) e mais recentemente por parte de grupos minoritários de
alunos professores que procuram levar a Universidade a uma atuação
“partisanne” e politicamente engajada. Poderíamos assim, concluir,
resumidamente, que a história da USP aparece-nos como a das
tentativas para transformá-la numa autêntica “universidade liberal” e
das resistências opostas a esse projeto.
Se são esses os princípios e as ideias permanentemente diretoras, as
formas de aplica-los, no entanto, variaram significativamente, sobretudo
nos dois momentos decisivos da vida da Universidade: o de sua
organização e o da Reforma. Os estilos de universidade adotados num e
noutro momento, refletem a passagem de uma mentalidade mais
“idealista”, mais ambiciosa e confiante nas virtuais possibilidades de
uma universidade para uma mentalidade mais pragmática, mais realista
e talvez mais consciente das verdadeiras possibilidades da instituição.
(Antunha, 1971:51).
7
Fundação e Reforma da Universidade de São Paulo e o lugar dos estudos de
educação
Uma vez situados na chave analítica de Antunha para a história da Universidade
de São Paulo, podemos nos concentrar na preocupação que nos guiou durante o estudo
de sua obra: os traços fundamentais a respeito da trajetória dos estudos de educação
dentro da Universidade de São Paulo e a interpretação desta trajetória na ótica deste
autor.
Importa asseverar que o próprio Antunha não enuncia esse como um dos
objetivos de seu trabalho de livre docência. Uma espécie de relato histórico desse tipo
será feito pelo autor, quatro anos depois, no primeiro número da então “Revista da
Faculdade de Educação”, num artigo em que, sob o título de “As origens da Faculdade
de Educação: introdução dos estudos pedagógicos de nível universitário no estado de
São Paulo”, o autor discorrerá sobre o que chama de “pré-história” da Faculdade de
Educação da Universidade de São Paulo, descrevendo com minúcia os principais
eventos que marcaram a constituição do campo de formação de professores e
especialistas em educação no nível superior em São Paulo até 1970. Entretanto, a tese
de livre docência de 1971 organiza uma reflexão importante a respeito do lugar dos
estudos de educação no projeto ou modelo uspiana, na leitura de Heládio Antunha.
Duas ex-alunas de Heládio Antunha sustentam que, nas aulas que ministrava,
essa preocupação com uma visão compreensiva a respeito da história dos estudos de
educação na Universidade de São Paulo e com o que se poderia considerar a
“identidade” deste campo era substantiva:
Eu penso que essa coisa de defender a Faculdade de Educação, de
afirmar que ali era o espaço privilegiado para estudar a educação era
uma coisa muito forte no professor Antunha. Eu me lembro que ele
falava com orgulho da criação da FEUSP e dizia que isso era um
acontecimento, um divisor de águas mesmo na vida da USP. A gente se
sentia como se fosse assim, uma geração privilegiada. Ele falava muito
do tempo que ele e outros professores brigaram para que a Educação
fosse vista como uma ciência também e que isso era uma conquista.
(entrevistada 1)
Era uma verdadeira fixação. Ele e o professor Roque [Spencer Maciel
de Barros] falavam e escreviam muito sobre o que era uma
Universidade ideal, sobre qual seria o sentido da Universidade. Mas o
professor Heládio tinha uma coisa com justificar a importância de uma
Escola Normal, de uma Faculdade específica de Educação dentro da
USP. Isso era algo muito forte que a gente nele. (entrevistada 2)
Na segunda parte da tese de livre docência, que trata da Fundação da
Universidade de São Paulo, Heládio Antunha reserva longo trecho para discutir aquilo
que considera os principais antecedentes da ideia de Universidade que guiou a
construção da USP: os inquéritos realizados pelo jornal O Estado de São Paulo e pela
Associação Brasileira de Educação e o Estatuto das Universidades Brasileiras (decreto
federal 19.851, de 11 de abril de 1931. Segundo o autor, o processo de construção
desses três documentos e sua circulação nos meios políticos e intelectuais da época são
marcas inequívocas da orientação que a fundação da USP seguiu.
Heládio assinala o Estatuto como uma peça jurídica fundamental na história da
educação brasileira e acusa sua longevidade (a permanência de diversos de seus
dispositivos até a Reforma Universitária de 1968). Afirma ainda que o texto final do
Estatuto é produto de um processo de intensa discussão societária que se tornou mais
contundente no final dos anos de 1920 e sinaliza que “os marcos mais significativos
desse movimento, pelas repercussões que tiveram e pela influência direta que exerceram
sobre as reformas da Revolução de 30, foram, sem dúvida, as discussões, os estudos e
os inquéritos promovidos pelo jornal ‘O Estado de São Paulo’ e pela Associação
Brasileira de Educação”. (Antunha, 1971:61)
Analisando o inquérito promovido pelo OESP e o inquérito promovido pela ABE,
Antunha conclui que quatro elementos são consensuais entre a maior parte dos
entrevistados num e noutro momento: (a) a urgência da criação de Universidades no
Brasil; (b) a necessidade de colocar a Universidade “a serviço do país seja através da
formação de dirigentes, profissionais e professores secundários”, o que transformaria o
Brasil “de produtor e consumidor de cultura (que buscava principalmente em fontes
europeias) em criador e produtor de conhecimentos”; (c) A rejeição de um tipo único ou
padronizado de Universidade para todo o Brasil. A questão fundamental centrava-se na
“criação de estabelecimentos de pesquisa científica e de cultura livre e desinteressada,
predominando em geral a ideia de criação de faculdades de filosofia, à maneira
europeia, entendidas como elemento integrador de toda a universidade”. Discutia-se,
9
entretanto, se se deveriam instituir várias ou apenas uma instituição desse tipo em uma
dada universidade (faculdades de filosofia, de humanidades, de letras e de ciências e (d)
a morada da formação de professores secundários na Universidade, especialmente
nesses novos institutos de altos estudos e cultura desinteressada.
Nos interessa aprofundar especificamente esse último consenso visto por
Heládio entre os respondentes dos dois inquéritos. Para Heládio, trata-se de uma ideia
equivocada considerar que tais institutos deveriam responsabilizar-se pela formação
integral dos professores secundários. Afirma o autor:
Nota-se alguma confusão a propósito dos objetivos específicos das
faculdades de filosofia, ciências e letras, julgando alguns que elas
deveriam também encarregar-se da formação integral (inclusive sob o
aspecto pedagógico, profissional) dos professores secundários,
concentrando-se num só estabelecimento, hibrido portanto, objetivos
que corresponderiam normalmente a uma faculdade de filosofia,
ciências e letras e os de uma escola normal superior ou de um Teacher’s
College (Antunha, 1971:71)
Na nota de rodapé da mesma página, o autor aprofunda essa sua posição:
Na verdade confundiram-se diferentes objetivos e funções, ao se
conceber a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras: 1º o de uma
faculdade de cultura, isto é, uma escola de artes liberais (artes, ciências,
humanidades) ao modelo dos antigos colégios ou faculdades de artes ou
dos atuais ‘colleges of arts and sciences’ norte-americanos. 2º uma
escola de educação em nível superior (uma faculdade de educação, uma
escola normal superior; ou um ‘teacher’s college’); 3º uma escola de
altos estudos, ou de estudos pós-graduados (‘graduate school),
destinada a formar pessoal de alto nível e desenvolver pesquisa.
(Antunha, 1971:71)
Antunha segue sua argumentação afirmando a anterioridade dos estudos de
educação e da formação de professores no estado de São Paulo e descreve
pormenorizadamente a trajetória do curso normal no Estado até a criação da Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras. A partir deste momento, em 1934, Heládio aponta dois
momentos distintos: um primeiro momento (de 1934 a 1938), em que a Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras não se responsabilizava pela formação profissional e/ou
pedagógica dos professores secundários (estando essa função a cargo do Instituto de
Educação) e um segundo momento (de 1938 em diante) em que a formação profissional
e/ou pedagógica dos professores secundários torna-se mais um entre os objetivos da
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras.
Precisamos distinguir, nos primórdios da história da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras, dois períodos fundamentais: (a) os
primeiros tempos, logo após sua fundação, em que se procurou realizar,
de forma pura, o “modelo paulista” e se constituir uma escola sem
qualquer compromisso de ordem profissional, prática ou técnica; (b)
uma fase que se inaugura com a incorporação, à Faculdade de Filosofia,
ciências e Letras, do Instituto de Educação, até então independente, e
que passa a constituir a Secção de Educação (4ª Secção) da Faculdade.
(Antunha, 1971:97)
Assegura Antunha que as finalidades do Instituto de Educação e as finalidades
da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras emergem de diferentes demandas. Para ele
“Um abismo separa a formas pelas quais foram criadas as duas escolas”. Ao Instituto de
Educação cabia uma formação estritamente pedagógica dos professores secundários que
deveriam adquirir os saberes específicos da disciplina em que pretendia se licenciar “em
grande parte por sua própria conta e das formas mais variadas, dirigindo-se ao Instituto
de Educação com a finalidade específica de adquirir a formação pedagógica e a licença
(certificado) ou autorização que lhe permitiria lecionar no nível secundário” (Antunha,
1971:104). O “modelo paulista” original distinguia o espaço de formação profissional
dos professores secundários do espaço da Faculdade de Filosofia:
A circunstância de já se achar organizado e em funcionamento o
Instituto de Educação, como escola independente, de nível superior e de
caráter profissionalizante, de uma certa forma, facilitou os planos dos
reformadores paulistas tendentes a eliminar completamente da
Faculdade de Filosofia todos os componentes utilitários e práticos. As
duas escolas poderiam, solidária, porém independentemente, colaborar
para a formação de professores de nível secundário ou superior: a
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras proporcionaria a cultura e o
conteúdo especializado e o Instituto de Educação a formação
propriamente pedagógica. (Antunha, 1971: 110)
A incorporação, portanto, do Instituto de Educação à Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras, significou, segundo Antunha, um desvio de finalidade, uma
contaminação da ideia pura de um centro de estudos e pesquisas de caráter
11
desinteressado e também, pela quebra da moratória do regime de cátedras que se
instalara pelo regime especial de contratação:
O decreto estadual nº 9.268-A, de 25 de julho de 1938 extinguiu o
Instituto de Educação, criando ao mesmo tempo a Secção de Educação
da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras e transferindo os
catedráticos do Instituto para a nova Secção. O decreto nº 9.403, de 10
de agosto do mesmo ano adotou ainda medidas complementares para a
transferência do acervo do Instituto para a Faculdade.
Os dois decretos tiveram, entre outras as seguintes consequências
decisivas: (1º) a Faculdade de Filosofia passou a ser uma escola de
caráter profissional, encerrando-se a experiência com a “variante
paulista”, sendo que a finalidade eminentemente cultural e universitária
da escola foi relegada a um plano secundário e adjetivo, na mesma
medida em que se avultava seu caráter profissionalizante; (2º) deu-se a
transferência dos professores catedráticos do antigo Instituto de
Educação para a nova Faculdade, como seus titulares de pleno direito, o
que não deixaria de influir sobre o regime especial de provimento de
funções da Faculdade. (Antunha, 1971: 112)
Quanto ao momento da reforma universitária, Heládio realiza uma análise bem
mais econômica dos debates e documentos que antecederam sua efetivação, com a
publicação dos novos estatutos. Assinala, entretanto, os pontos fundamentais do modelo
universitário adotado pela USP com a vigência da nova regulamentação a partir de 1º de
janeiro de 1970: (a) a manutenção do sistema de governo universitário em moldes muito
próximos àqueles que já vigoravam, “com a rejeição da participação maciça dos
estudantes nos conselhos e assembleias de caráter decisório”; (b) o abandono da
concepção original da USP, isto é, sua organização à base da Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras, com o desmembramento da F.F.C.L em diversos institutos e
faculdades (c) a distinção entre os institutos (unidades dedicadas sobretudo à pesquisa e
ao ensino básico nas áreas fundamentais dos conhecimentos humanos) e as faculdades e
escolas, onde se ministraria cursos de caráter específico, técnico e profissional e onde se
realizaria a pesquisa aplicada; o que reservaria aos Institutos um papel de “integração
inicial” dos estudantes, isto é, antes da vinculação às diversas habilitações profissionais;
(d) a abolição do regime de cátedras e a adoção definitiva do modelo departamental; (e)
a institucionalização dos cursos de pós-graduação com dispositivos básicos e uniformes
para toda a Universidade e (f) a manutenção do sistema de seleção por vestibular, com
compromisso de, ao longo do tempo, diminuir ou retirar-lhe o caráter de excessiva
especialização e conferindo-lhe caráter unificado.
Entretanto, o que significou o desmembramento da Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras para quanto ao “lugar” dos estudos de educação na USP? Heládio
Antunha assevera que, com a Reforma Universitária, os estudos de educação adquirem
independência e lhes é reconhecida a importância e centralidade no tocante à questão
Universitária em geral e no tocante ao seu tamanho na Universidade de São Paulo, já
que os cursos de licenciatura abrigavam uma quantidade bastante significativa de
estudantes.
A Faculdade de Educação que nasce com a Reforma Universitária, compõe-se,
segundo Heládio de “três escolas diferentes e relativamente independentes”: (1) a
Escola de Graduação (curso de Pedagogia ou de Educação e que leva o estudante ao
grau de Bacharel em Pedagogia ou em Educação e às diversas habilitações profissionais
da área): (2) a Escola de Pós-Graduação, que leva aos graus acadêmicos de mestre e
doutor em Educação e (3) a Escola de Professores (curso de licenciatura, que leva os
estudantes ao grau de licenciado em uma ou mais áreas do conhecimento). Heládio
pontua, quanto a esta última escola que,
por ser um Curso de Licenciatura que recebe alunos de praticamente
todas as faculdades e institutos da USP, essa Escola de Professores deve
sofrer, por um lado os efeitos da massificação e, de outro lado, exercer
funções de integração universitária, tornando-se, nesse sentido uma das
escolas-chave da Universidade.
Na chave analítica de Antunha, portanto, a Reforma Universitária, de uma só
vez, elimina, em grande medida, os ideais que inauguraram o “período heroico” da USP
(segundo o autor, de 1934-1938) e atualiza o “lugar” dos estudos de Educação,
reposicionando-o em relação à Faculdade de Filosofia Ciências e Letras (agora,
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas).
Considerações Finais
Heládio Antunha descreve uma trajetória singular para os estudos de Educação
no âmbito da Universidade de São Paulo. Num primeiro momento, a incorporação
13
desses estudos e da formação dos professores secundários à Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras é compreendida, por Heládio, como um desvio de finalidade, uma
contaminação da concepção pura de Universidade que teria guiado os fundadores da
USP, na medida em que transformando a célula mater da Universidade (seu instituto de
altos estudos) numa escola de caráter misto e com forte vínculo à formação profissional
de professores.
Com a Reforma Universitária e o desmembramento da Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras, os estudos de educação se organizam numa unidade autônoma (a
Faculdade de Educação), que combinará tanto a formação pedagógica dos professores
secundários quanto à formação de quadros para a área de educação (pedagogos) em
nível de graduação e pós-graduação. Tal transição conferiu à nascente Faculdade de
Educação um espaço estratégico na consolidação da nova Universidade, na medida em
que a coloca como lugar integrador de uma boa parte de seus acadêmicos (aqueles que
buscam, além de uma formação básica ou geral de bacharel, o direito de lecionarem no
ensino secundário).
BIBLIOGRAFIA
BONTEMPI Jr., Bruno. (2007). O Ensino e a Pesquisa em História da Educação
Brasileira na Cadeira de Filosofia e História da Educação (1933-1962). In História da
Educação (UFPel), v. 11, p. 77-104.
BONTEMPI Jr., Bruno (2001). A Cadeira de História e Filosofia da Educação da USP
entre os anos 40 e 60: um estudo das relações entre vida acadêmica e grande imprensa.
Tese de Doutoramento em Educação: História, Política, Sociedade. Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo.
ANTUNHA, Heládio Cesar Gonçalves. (1971) Universidade de São Paulo: Fundação e
Reforma. Tese de Livre Docência. Faculdade de Educação da Universidade de São
Paulo.
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