revista redação

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REVISTA REDAÇÃO
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PROFESSOR: Lucas Rocha
DISCIPLINA: Redação
DATA: 22/05/2015
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Entrevista – CONTARDO CALLIGARIS - O inferno é a felicidade dos outros
(CAROLINE OLINDA)
Calligaris: “Entendemos que as crianças devem ser os nossos representantes,
gozando das felicidades que não tivemos”
O PSICANALISTA italiano Contardo Calligaris – radicado no Brasil – se
tornou um observador privilegiado de dois fenômenos do nascente século 21: a
busca insana pela felicidade e a supervalorização da infância. A sombra desses dois
estímulos são a depressão e a infantilização dos adultos – que passam a projetar
nos filhos o que sonharam para si. “Temos dificuldades em falar sobre isso”,
provoca, ao tratar de um dos traços do comportamento nas redes computadores.
Ali, todos não só se mostram felizes como se entristecem com a felicidade dos
outros. Em visita a Curitiba para fazer palestra no Tribunal Regional do Trabalho,
Calligaris conversou com a reportagem da Gazeta do Povo. Confira trechos da
entrevista.
O medo da depressão e da tristeza é um problema do nosso tempo?
É muito antigo. Na Idade Média, o medo era considerado um pecado gravíssimo.
Se alguém se deprimia, estava desprezando a Criação, o que desagradava Deus.
Também havia preocupação com uma epidemia de depressão entre os monges
medievais. O que era um problema, porque os monges deviam se fechar nos
conventos para glória divina e não para ficarem tristes. Além do mais, havia um
paradoxo. Os mosteiros eram ilhas de sobrevivência, de privilégio, de proteção.
Raramente se morria de fome... Se houvesse peste, fechava-se o mosteiro, e os religiosos ficavam isolados. No fim do
século 20, voltou com força a ideia de que a depressão é um pecado capital. Esse fenômeno tem a ver com a
hipervalorização da felicidade.
Por que hipervalorizamos a felicidade?
Nos anos 1950 e 1960, em meio à euforia do pós-Guerra, se solidificou o ideal de felicidade. No caso dos americanos, o
ideal era suburbano. Tinha-se de ter uma casa própria; o que de imediato trazia a ideia do casamento. Era preciso estar
casado, ter filhos. Sexo e amor deveriam andar juntos. Esse modelo continuou dominando a segunda metade do século 20 e
permanece vivo. Quando se tem um ideal de felicidade muito forte, a depressão é malvista.
Uma pesquisa recente mostrou que as pessoas que ficam menos tempo no Facebook são mais felizes. Faz mal
a divulgação constante da felicidade nas redes sociais?
As redes sociais levam a confrontar nossa felicidade com a felicidade dos outros. A gente se sente obrigado a fingir que está
feliz, o que pode ser muito penoso. A propósito, foi nos anos 1950 que as pessoas passaram a sorrir nas fotografias.
Quando olhamos as fotografias do fim do século 19 e as do começo do século 20, os retratados aparecem seríssimos.
Deixar-se fotografar era um momento solene. Só no pós-Guerra começou o costume de parecer feliz. As fotos do Facebook
vêm dessa descendência. O problema é que ter de se mostrar feliz é um empreendimento constante e muito cansativo.
Ser feliz acaba por virar uma culpa...
Completamente. A infância – como idade separada da vida adulta – existe há pouquíssimo tempo, algo como 200 anos.
Tornou-se uma fase idealizada. Entendemos que as crianças devem ser os nossos representantes, gozando das felicidades
que não tivemos. A criança e a infância se tornaram um valor em si, por tempo indeterminado. Nós as privamos da
possibilidade de crescer.
Explica haver tantos adultos na casa dos pais...
Diria mais que isso. O ideal de felicidade projetado na infância promove nossa infantilização. Quanto mais as crianças nos
parecem ideais de felicidade, mais nos parecemos com crianças. O que torna a vida complicadíssima para elas. No século
19, uma criança sabia muito bem qual era a aparência de um adulto, pois um adulto era muito diferente dela. Hoje, uma
criança olha para os pais e acha que eles são adultos por obrigação durante a semana. Aos sábados e domingos, se vestem
e agem como crianças.
Você escreveu em uma de suas colunas que nunca protegemos tanto nossas crianças, mesmo assim elas
continuam se acidentando. Cuidado e culpa andam juntos?
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Temos o narcisismo dos adultos. Achamos que ao estar presentes e envolvidos, isso é o suficiente para que a criança se
sinta feliz. Mas a criança pode estar infeliz por uma série de outras razões, todas ótimas, como, por exemplo, ter descoberto
que todos vamos morrer, que a Terra um dia vai desaparecer... Ou apenas porque uma colega da escola não lhe dá bola. A
vida é assim.
Há pessoas que conquistaram uma boa casa, emprego, casamento estável e, mesmo assim, estão tristes e
insatisfeitas. Falta um sentido para a vida?
Acho que a gente encontra e procura sentido demais para a vida. Uma das razões para a infelicidade, eu acho, vem dessa
incapacidade de viver com leveza, de conviver com o fato de que – e esse é um segredo de polichinelo– a vida não tem
sentido.
Essa tristeza pode vir da sensação de ter conquistado tudo?
Diria que não existem arranjos felizes que não deixem um resto. Crises ocorrem sobretudo com pessoas que tiveram um
certo sucesso e alcançaram ambições comuns, como um carro importado, uma casa de praia, filhos bem encaminhados.
Olha para trás e se pergunta: “Corri tanto só por isso?” Descobre que o desejo era maior que a quantidade de clichês
conquistados. Muitos sofrem por achar que é muito tarde para mudar. E não só pelo tempo: também é difícil quebrar
alicerces. A gente avança muito pela vida por inércia. O que é normal. É cansativo quebrar, o tempo todo, o que se
construiu.
Estamos diante de uma crescente onda feminista, paralelo a uma resposta conservadora. O que dizer sobre
esses extremos?
Os homens em geral não lidam bem com o fato de que as mulheres têm desejo, o que dá a dimensão do problema.
Estamos dispostos a entender que o casamento implica em renúncias, mas vemos do lado do homem. O casamento, que
implica renúncias para os homens, é visto como um modelo ideal para a mulher. Essa cultura permanece mais de 40 anos
depois da onda feminista dos anos 1960. Continua na cabeça de muitos homens, e também de muitas mulheres.
CAROLINE OLINDA é Jornalista e escreve para esta publicação. Jornal GAZETA DO POVO, janeiro de 2016.
Saúde e produtividade, não há tempo a perder
(BRUCE RASMUSSEN)
O BRASIL segue envelhecendo rapidamente e vivendo mais. Dados de 2014, divulgados pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), mostram que as pessoas com mais de 60 anos já são 13,7% da população do país - há dez
anos, esse percentual era de 9,7%. Ao mesmo tempo, a expectativa de vida cresce ano a ano. Chegou a 75,2 anos: 29,7
anos a mais quando comparado com 1940.
Um dos principais reflexos dessa mudança na pirâmide etária é o envelhecimento da força de trabalho do país,
fenômeno já observado em países desenvolvidos. Com um contingente de jovens menor, os países dependem de
trabalhadores mais velhos e experientes. Mantê-los saudáveis e ativos se torna, assim, uma das variáveis para o
crescimento econômico e para o desenvolvimento.
Em estudo recente que elaboramos na Victoria University, "Impactos econômicos das doenças crônicas na
produtividade e na aposentadoria precoce: o Brasil em foco", constatamos que, entre os países comparados, o Brasil tinha
uma das forças de trabalho mais "jovens" no ano 2000, com apenas 12% do total tendo entre 50 e 64 anos. Até o ano
2030, essa proporção deve quase dobrar para quase 21%. O cenário brasileiro integrou um trabalho que analisou 11 países
-China, Colômbia, Índia, Japão, México, Peru, Polônia, África do Sul, Turquia e Estados Unidos.
Nesse contexto, uma das principais questões com que o Brasil terá que lidar é o crescimento das chamadas doenças
crônicas não-transmissíveis (DCNT) na força de trabalho. Fazem parte do grupo as doenças cardiovasculares, câncer,
doenças crônicas respiratórias e diabetes. A incidência dessas doenças é cada vez maior nos países em desenvolvimento e
entre os países estudados, o Brasil tem o maior nível de DCNTs, medido pelo número de anos vividos com a deficiência.
O custo dessas doenças cresce exponencialmente com a idade. No Brasil, essa despesa, aos 60 anos, é duas vezes
maior do que aos 45. O relógio está correndo e aponta que é a hora do Brasil olhar para os impactos das DCNTs na
produtividade da força de trabalho e na aposentadoria precoce da população economicamente ativa. Se projetadas até
2030, essas perdas totalizariam 8,7% do PIB, o equivalente a US$ 184 bilhões a menos, considerando mortes por doenças
crônicas e casos de absenteísmo e presenteísmo.
Tais fatores precisam de tratamento intensivo para conter o efeito negativo sobre os indicadores econômicos ao longo
do tempo. A evolução desse quadro, nos próximos 15 anos, vai afetar o crescimento dos países - por estar diretamente
relacionado à redução da capacidade para trabalhar e à perda de produtividade. Soluções possíveis exigem cooperação para
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viabilizar e disseminar ações transversais de prevenção, mas é vital quebrar um paradigma: mudar o entendimento de
Saúde, passando a considerar sua gestão um investimento em produtividade e vida mais saudável.
Mesmo em um cenário de contingenciamento, oportunidades não podem ser desperdiçadas. Essas transformações são
um processo de longo prazo, mas que precisa ser iniciado. Um primeiro passo é criar condições para uma articulação entre
sociedade, setor privado e governo, com foco no enfrentamento dos desafios que o Brasil terá pela frente com a sua saúde.
BRUCE RASMUSSEN, 54, é diretor do Victoria Institute of Strategic Economic Studies (Vises), da Victoria University em
Melbourne (Austrália). Autor do estudo "Impactos econômicos das doenças crônicas na produtividade e na aposentadoria precoce:
o Brasil em foco", patrocinado pelo Conselho Empresarial Brasil-Estados Unidos. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Janeiro de
2016.
Começo de ano
(DRAUZIO VARELLA)
EM FIM de ano é impossível resistir às tentações à mesa. De um lado, a ânsia de nos reunirmos com familiares e
amigos como se nunca mais os fôssemos ver; de outro, a farra das bebidas e comidas e a indulgência que arrebata nosso
espírito nessa época do ano. Quando a festa acaba e é preciso afrouxar o cinto da calça, bate o arrependimento e nos
enchemos de intenções frugais. Infelizmente, é respeitável a chance de que os quilos adquiridos fiquem incorporados em
nossa silhueta. Além da vida sedentária, conspiram contra a perda de peso:
1) Toda vez que os depósitos de gordura diminuem, o cérebro entende que a vida está sob ameaça e ajusta o
metabolismo para repor a gordura perdida.
2) A armadilha dos alimentos "fat free". Nos anos 1970, ganharam força os estudos sobre a relação entre dietas ricas
em gorduras saturadas, colesterol e doenças cardiovasculares. As orientações dietéticas foram resumidas na famosa
pirâmide alimentar, em cuja base ficavam os carboidratos –que poderiam ser consumidos à vontade– e, bem no topo, as
carnes e as gorduras, em relação às quais a recomendação era de parcimônia monástica.
A indústria respondeu recheando as prateleiras dos supermercados com produtos "livres de gordura". Para compensar
o gosto insípido, acrescentaram açúcar em tudo. A substituição de gordura por açúcar armou o cenário para a epidemia de
obesidade. Mais de 70% dos norte-americanos estão acima do peso ou são obesos. Caem nessa faixa 52% dos brasileiros.
No México, a prevalência já ultrapassa a dos americanos. Na esteira da obesidade, vieram as epidemias de diabetes tipo 2,
hipertensão arterial, câncer, doenças cardiovasculares problemas ortopédicos e outras enfermidades que encurtam a vida e
sobrecarregam os serviços de saúde. Os conhecimentos adquiridos nos últimos 20 anos permitem abandonar a ideia
simplificada de que gorduras fazem mal e carboidratos fazem bem.
Embora altamente calóricas (1 grama equivale a 8 kcal), há gorduras benéficas: óleo de oliva e outros óleos vegetais,
os óleos contidos em nozes, amêndoas, castanha da caju e amendoim, por exemplo, não aumentam o colesterol e protegem
o coração. As restrições recaem sobre a gordura animal, assim mesmo quando ingerida em excesso. Em relação aos
carboidratos, o problema é mais intricado. Açúcares são carboidratos simples digeridos rapidamente, enquanto os farináceos
são carboidratos complexos que sofrem digestão mais lenta. A exceção fica por conta dos carboidratos refinados: arroz
branco, farinha de trigo, pão branco, biscoitos, alimentos dos quais foram retiradas as fibras e que são digeridos como se
fossem açúcares.
Os chineses sempre comeram muito arroz, mas eram magros porque andavam a pé. Hoje, a obesidade virou agravo de
saúde pública. Sejam simples ou complexos, o produto final da digestão dos carboidratos é a molécula de glicose, que vai
servir de combustível às células. A forma de identificarmos os carboidratos mais saudáveis é por meio do índice glicêmico,
calculado pela capacidade de um alimento ser transformado em glicose, em comparação com a da glicose pura (índice 100)
ou do pão branco (71).
Apresentam níveis glicêmicos altos: batata, arroz branco, biscoitos, sucos, a maioria dos doces e dos alimentos
industrializados. Índices mais baixos são encontrados na maçã, cenoura, feijão, leite desnatado, macarrão, lentilha,
amendoim, castanha do Pará e outros. Ao lado dos índices glicêmicos que medem a velocidade de formação da glicose, há
que se considerar a carga glicêmica, que avalia a quantidade de glicose formada a partir de cada porção. Por exemplo, o
melão tem índice glicêmico alto, mas carga glicêmica baixa porque boa parte da fruta é água.
Para quem pretende perder peso, o pior dos mundos é passar os dias sentado e adotar dietas com índices glicêmicos e
cargas glicêmicas elevadas, porque para metabolizar a glicose formada o pâncreas precisa produzir insulina. Quantidades
maiores de açúcar forçam a liberação de doses excessivas de insulina, que podem causar hipoglicemia e retorno rápido da
fome. Ao contrário, refeições com cargas glicêmicas baixas e gorduras saudáveis retardam o aparecimento dela.
DRAUZIO VARELLA é médico cancerologista. Por 20 anos, dirigiu o serviço de Imunologia do Hospital do Câncer. Foi um dos
pioneiros no tratamento da Aids no Brasil e do trabalho em presídios, ao qual se dedica ainda hoje. É autor do livro 'Estação
Carandiru' (Companhia das Letras) e articulista de diversos jornais, além de ter seu próprio anal de vídeos no Youtube. Jornal
FOLHA DE SÃO PAULO, Janeiro de 2016.
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Poluição eletromagnética (EDGAR MELO)
Perigos e efeitos que a energia invisível do Wi-fi, as linhas de alta tensão, os telefones celulares e as antenas
podem causar à saúde
ELAS estão espalhadas na atmosfera e ninguém as vê, isso não quer dizer, no entanto, que as ondas eletromagnéticas
sejam inofensivas. Emitida por equipamentos elétricos e eletrônicos, esse tipo de energia ocupa o espaço, atravessa
qualquer tipo de matéria viva ou inorgânica e produz uma poluição imperceptível, capaz de influenciar o comportamento
celular do organismo humano.
O uso da energia elétrica e eletromagnética tornou-se tão arraigado no cotidiano das grandes cidades, que já não é
possível se privar do contato com elas. Além dos telefones celulares, os aparelhos eletrodomésticos e as linhas de alta
tensão estão por toda parte. “Vivemos em um micro-ondas gigante”, diz o cientista, pesquisador do Sistema Integrado da
Terra, filósofo noosférico e engenheiro de sistemas de teleautomação Boris Petrovic, ao alertar sobre o impacto da
presença dos campos e das radiações eletromagnéticas.
Petrovic explica que o corpo humano não foi preparado para lidar com as interferências das radiações e dos campos
eletromagnéticos. O engenheiro esclarece que tanto os celulares quanto qualquer outro tipo de comunicação sem o – como
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Wi-fi e bluetooth – utilizam ondas de radiofrequência para transmitir dados ou voz. Essas ondas são de comprimento muito
baixo e são chamadas de micro-ondas. Essa tecnologia é a mesma dos fornos de micro-ondas, usados para aquecer
alimentos por atrito das moléculas de água.
O enfraquecimento do sistema imunológico, segundo o engenheiro, é a consequência mais grave da poluição
eletromagnética. O efeito nocivo ocorre quando o campo elétrico dessas tecnologias interfere na bioeletricidade natural do
corpo humano. Boris explica que os sintomas variam de dores de cabeça e irritabilidade a diversos tipos de câncer. “As
consequências são mais evidentes em pessoas que apresentam eletrossensibilidade, mas, por ser de natureza cumulativa,
esse tipo de poluição afeta a todos”, explica o pesquisador.
AS ANTENAS E AS MORTES POR CÂNCER
Um estudo referência no mundo foi realizado em Belo Horizonte, pela professora da faculdade de Ciências Médicas de
Minas Gerais Adilza Dode. A tese de doutorado de Adilza evidencia mortes por câncer ao redor de antenas de telefonia
celular na capital mineira. Analisando dados entre 1996 e 2006, a pesquisadora estudou 5 mil casos de morte por câncer e
constatou que mais de 80% das vítimas moravam a uma distância de até 500 metros das antenas.
Segundo Adilza, os padrões permitidos no Brasil são os mesmos adotados pela Comissão Internacional de Proteção
Contra Radiações Não Ionizantes (Icnirp), normatizados em legislação Federal de maio de 2009. “Até hoje, ninguém sabe
quais são os limites de uso inócuos à saúde. Os padrões adotados pelo Brasil são inadequados. Eles foram redigidos com o
olhar da tecnologia, da e ciência e da redução de custos, e não com base em estudos epidemiológicos”, assegura.
"Há mais de dez anos, surgem apelos da comunidade científica para conscientização dos riscos da poluição
eletromagnética"
OMS RECOMENDA A REDUÇÃO DE USO
Em 2010, a Food and Drug Administration
(FDA), órgão de saúde dos Estados Unidos, divulgou
um comunicado afirmando que, apesar do aumento
drástico no uso de telefone celular, as ocorrências de
câncer no cérebro não aumentaram entre 1987 e
2005.
Diante da insegurança acerca dos impactos, em
2011, a Organização Mundial da Saúde divulgou um
documento
no
qual
classifica
a
radiação
eletromagnética como “potencialmente cancerígena”
e recomenda a redução das emissões “tanto quanto
possível”. –
Quatro anos antes, o grupo de trabalho criado
pela OMS para discutir o assunto publicou um
documento no qual lista recomendações sobre
exposições de curto até longo prazo. Para longo
prazo, as indicações são de que o governo e a
indústria devem monitorar a ciência e promover
programas de pesquisa para desenvolver mais
evidências sobre o tema. Segundo a OMS, há lacunas
no conhecimento do assunto. A publicação ainda
recomenda
que,
quando
construídas
novas
instalações e projetados novos equipamentos, formas
de baixo custo para a redução de campos devem ser
exploradas.
Em relação a exposições de curto prazo,
recomendações internacionais de exposição foram
desenvolvidas para proteger os trabalhadores e o
público contra estes efeitos e devem ser adotadas
pelos responsáveis pelo desenvolvimento de políticas.
Programas de proteção contra a poluição
eletromagnética devem incluir medicação de
exposição a fontes que excedam os valores-limite
recomendados.
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CIENTISTAS QUESTIONAM PARÂMETROS
Há mais de dez anos, surgem apelos da comunidade científica para conscientização dos riscos da poluição
eletromagnética. O Painel Científico de Seletun (2011), organizado em Oslo, na Noruega, contou com a participação de
cientistas de cinco países e teve como resultado uma série de recomendações para os governos. Entre outras conclusões, o
Painel desconfia dos parâmetros de exposição tidos como seguros pela Comissão Internacional de Proteção Contra
Radiações Não Ionizantes (Icnirp) e usados pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
O Painel estabelece em 0,1 μT (MicroTesla – unidade usada para medir campos magnéticos) como limite de exposição
no período de 24 horas. Dessa forma, o recomendado passa a ser 1 mil a 10 mil vezes menor do que o atual. De acordo
com os cientistas, os números da Icnirp foram definidos pelo olhar da tecnologia e redução de custos, sem ter como base
estudos do impacto na saúde humana e no ambiente.
Após tomar conhecimento dos malefícios da exposição contínua a campos eletromagnéticos, um grupo de moradores
do Alto de Pinheiros, localizado na zona oeste da cidade de São Paulo, moveu uma ação judicial contra a empresa AES
Eletropaulo. No processo, os moradores questionavam o aumento da radiação eletromagnética causado por novas torres
instaladas pela Eletropaulo. À época, foi levantada a tese de que a exposição interage com o DNA humano, podendo
provocar, entre outros males, a leucemia.
Em tramitação na justiça desde 2001, o caso já passou por duas instâncias, nas quais o ganho de causa foi dado aos
moradores. Atualmente, o processo está no Supremo Tribunal Federal (STF), aguardando a decisão final do ministro Dias
Toffoli. Nas outras instâncias, as deliberações foram embasadas no princípio da precaução, que se caracteriza pela incerteza
científica sobre o dano ambiental. "O magnetismo está por toda parte: no avião, num teatro lotado, enquanto você dorme
com a televisão ligada na tomada ou quando é acionado o despertador do celular."
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RADIAÇÃO: VILÃ OU MOCINHA?
CONHEÇA UM POUCO MAIS SOBRE SEUS EFEITOS E ENTENDA COMO É IMPORTANTE A MEDIÇÃO DESSE
FENÔMENO
Nosso planeta recebe, há mais de 4 bilhões de anos, uma energia que atravessa o espaço na velocidade da luz: a
energia solar. A radiação solar é o verdadeiro pivô da vida na Terra. Ela é responsável tanto pelo crescimento de um
pequeno broto de feijão quanto pela dinâmica que governa os movimentos da atmosfera, além das próprias características
climáticas do planeta. Atualmente, também se considera a radiação solar como uma das alternativas energéticas mais
promissoras entre as ditas “energias limpas”. Leituras dessa energia são usadas em diversos setores de atividades
humanas, e alguns deles são explicados pelos meteorologistas da Squitter Soluções em Monitoramento Ambiental, Juliana
Hermsdor Vellozo de Freitas e William Cossich Marcial de Farias.
Segundo eles, um exemplo prático disso é o planejamento diário de risco à exposição solar. Cada pessoa deveria
considerá-lo, determinando o vestuário e as medidas de prevenção à tal exposição para reduzir os riscos de problemas de
pele e de visão. “Tais informações também influenciam o custo do nosso pão de cada dia, assim como o material a ser
utilizado em uma construção civil. Além disso, a informação da quantidade de radiação que chega ao solo fornece suporte
científico ao estudo dessa energia renovável”, explicam os profissionais.
ESTUDOS
Assim, medir e analisar essa quantidade de radiação que chega à superfície da Terra tanto pode aumentar a
quantidade de sacas numa colheita como também pode subsidiar estudos determinantes sobre energia limpa. Na
agricultura, a radiação solar influencia significativamente as taxas de fotossíntese das plantas. O aproveitamento da
radiação solar pela planta depende da sua capacidade de interceptar e utilizar a luz. O total de radiação solar interceptado
e absorvido por uma camada de folhas está diretamente relacionado à radiação e à estruturação das folhas e do dossel.
“Considerando a eficiência de cada planta em fazer a fotossíntese, o rendimento de uma plantação pode variar.
Quando exposta à baixa quantidade de radiação solar, uma cultura pode apresentar diminuição da área da folha, em que
a ‘captação’ de energia é menor. Por outro lado, em condições de alta radiação solar, os índices dos tamanhos das folhas
são maiores, e essa ‘captação’ de energia pode aumentar. Logo, pode-se medir essa quantidade de energia que a planta
recebe com instrumentos meteorológicos, como o pirômetro”, completam os meteorologistas.
A escolha de um material a ser utilizado na construção civil, por exemplo, deve considerar as características
meteorológicas próprias do local. Esses fatores agem diretamente na eficiência e no conforto das construções, nas quais o
conhecimento da incidência de radiação solar permite determinar melhor as propriedades termofísicas de cada material a
ser utilizado. “Janelas, asfaltos, além de diversos outros materiais, podem ser mais bem determinados quando se tem
conhecimento sobre a radiação que chega ao local. Assim, é necessário que as medidas de radiação sejam feitas no local
de interesse, diretamente por um sensor adequado, para que se tenha uma informação precisa e adequada ao melhor
planejamento”, finalizam Juliana e William.
PROTEÇÃO AO ORGANISMO
O magnetismo está por toda parte: no avião, num teatro
lotado, enquanto você dorme com a televisão ligada na tomada ou
quando é acionado o despertador do celular. Embora a vida moderna
tenha evoluído a tal ponto que não haja um caminho de volta para
abdicar desses recursos de comunicação, existem formas de
minimizar seus impactos na saúde. Uma das formas, segundo Fábio
Cardoso, especialista em clínica médica, é ter uma boa nutrição,
capaz de fornecer as vitaminas e os minerais necessários para
manter o corpo equilibrado. Isso passa também por reduzir o
máximo possível o consumo de alimentos industrializados e com
agrotóxicos.
Segundo Cardoso, os impulsos naturais da energia corporal são
de variação inconstante, pulsando de forma biológica. Já os impulsos
de energia eletromagnética provenientes de aparelhos eletrônicos e
tecnológicos têm pulso fixo, o que se torna um fator irritante para o
corpo. De acordo com o médico, esse tipo de impulso é um campo
de interferência à nossa saúde, causa desequilíbrio e,
consequentemente, é responsável por diversas doenças.
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A poluição eletromagnética é uma realidade e, mesmo que as autoridades ainda não tenham chegado a um consenso,
é de extrema importância a população buscar formas de se proteger, garantindo a integridade de sua saúde. Esse assunto e
outros relacionados à Terapia Frequencial, alicerçada à medicina quântica alemã e russa, foram apresentados no Brasil em
novembro, durante o 1 Congresso Internacional Fronteiras da Saúde Quântica (I CIFSQ), que aconteceu de 5 a 8 de
novembro, em São Paulo, e traouxe ao País dois renomados cientistas internacionais: Konstantin Korotkov (Rússia) e
Alexander Popp (Alemanha), filho do criador da teoria biofotônica, Fritz-Albert Popp, além do cientista Boris Petrovic e de
outros dez médicos que atuam no Brasil nessa área prática.
RADIAÇÃO NOCIVA PODE SER AMENIZADA NO DIA A DIA
Estudos científicos revelam que regiões próximas a torres de transmissão de energia e de telefonia são carregadas de
energia negativa, em razão das radiações eletromagnéticas, com efeitos nocivos, que podem se alastrar por grandes áreas.
Da mesma forma, os estudos mostram que, nos ambientes onde estão ligados muitos aparelhos elétricos ou
eletroeletrônicos, como escritórios, centros de processamento de dados e outros, as pessoas também sofrem com essas
emanações negativas. E, mesmo no dia a dia, estamos expostos a radiações eletromagnéticas negativas, por causa do uso
indiscriminado de celulares, fones de ouvido ou até de fornos de micro-ondas. Essas radiações, denominadas “poluição
invisível”, segundo os mesmos estudos, podem provocar distúrbios como insônia, estresse e tontura, além de doenças
como catarata, glaucoma e mal de Parkinson, entre outras.
PESQUISA
As radiações eletromagnéticas (REM) são estudadas há vários anos por cientistas de diversos países, como Suíça,
Alemanha, França, Rússia, Espanha e Polônia. O mais importante pesquisador brasileiro da área, o comendador José
Barbosa Marcondes, há mais de 50 anos dedica-se a desvendar e a esclarecer as causas e os efeitos dessas emanações
negativas. Ele é reconhecido pelos cientistas internacionais pelos seus trabalhos e pesquisas nessa área. Marcondes
desenvolveu técnicas com as quais é possível proteger desde grandes áreas, como indústrias, empresas e fazendas. Há
também modos simples, por meio dos quais podemos nos prevenir e nos proteger das REM, sem abrir mão do conforto e
das facilidades que os avanços da tecnologia nos proporcionam nos dias atuais. Existem métodos específicos para detecção
dessas áreas, mas, a princípio, hastes metálicas que podem ser improvisadas com objetos caseiros, como arame de cabide,
pode ser usado para detectar os pontos negativos de um ambiente. Com mais de 80 anos de idade, José Barbosa
Marcondes ensinou todas as técnicas à sua filha Elys Marcondes. Ela sugere, como antídoto para essas radiações, a simples
mudança na disposição dos móveis no ambiente, até a alternativa de recorrer ao sal grosso da seguinte forma: empilhar
três copinhos pequenos (de café) de plástico, cada qual com uma colher de café rasa de sal grosso; deixar os copinhos nas
áreas de maior radiação; substituir os copinhos regularmente. Elyz Marcondes dá ainda as seguintes dicas para prevenção
às radiações eletromagnéticas:
• Evite usar por tempo prolongado o telefone celular. Sempre que possível, use-o com fones de ouvido.
• Procure levar o celular longe do corpo e, principalmente, o mais distante possível da cabeça.
• Menores de 14 anos e pessoas que usam marca-passo ou aparelhos de audição devem utilizá-los com moderação.
• Ao operar o forno de micro-ondas, não que em suas proximidades, pois pode haver fuga de radiação acima do limite
estabelecido pelos fabricantes. A radiação emanada do forno de micro-ondas atinge principalmente o fígado.
• Nos monitores de computador, dê preferência para os que têm o selo Low Emission do EPA e procure manter- se sempre
a distância de, pelo menos, 90 cm da tela. Para TV, a distância é proporcional ao tamanho do tubo.
• Não permaneça ou trabalhe próximo da parte de trás de monitores e TVs. A radiação eletromagnética nesse local é mais
elevada do que na parte frontal.
• Não trabalhe, tampouco more a uma distância inferior a 150 m das linhas de transmissão de alta tensão ou de
subestações da rede elétrica. Estudos comprovam que as radiações emanadas pelos campos eletromagnéticos de baixa
frequência (ELF) desses locais são indutoras de câncer e de leucemia (principalmente para crianças).
• Use com moderação secadores de cabelo, escovas de dente e barbeadores elétricos.
EDGAR MELO é Jornalista e escreve para esta publicação. Revista GEOGRAFIA, Janeiro de 2016.
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A arte de envelhecer (DRAUZIO VARELLA)
ACHEI que estava bem na foto. Magro, olhar vivo, rindo com os amigos na praia. Quase não havia cabelos brancos
entre os poucos que sobreviviam. Comparada ao homem de hoje, era a fotografia de um jovem. Tinha 50 anos naquela
época, entretanto, idade em que me considerava bem distante da juventude. Se me for dado o privilégio de chegar aos 90
em pleno domínio da razão, é possível que uma imagem de agora me cause impressão semelhante.
O envelhecimento é sombra que nos acompanha desde a concepção: o feto de seis meses é muito mais velho do que o
embrião de cinco dias. Lidar com a inexorabilidade desse processo exige uma habilidade na qual nós somos inigualáveis: a
adaptação. Não há animal capaz de criar soluções diante da adversidade como nós, de sobreviver em nichos ecológicos que
vão do calor tropical às geleiras do Ártico.
Da mesma forma que ensaiamos os primeiros passos por imitação, temos que aprender a ser adolescentes, adultos e a
ficar cada vez mais velhos. A adolescência é um fenômeno moderno. Nossos ancestrais passavam da infância à vida adulta
sem estágios intermediários. Nas comunidades agrárias o menino de sete anos trabalhava na roça e as meninas cuidavam
dos afazeres domésticos antes de chegar a essa idade.
A figura do adolescente que mora com os pais até os 30 anos, sem abrir mão do direito de reclamar da comida à mesa
e da camisa mal passada, surgiu nas sociedades industrializadas depois da Segunda Guerra Mundial. Bem mais cedo, nossos
avós tinham filhos para criar. A exaltação da juventude como o período áureo da existência humana é um mito das
sociedades ocidentais. Confinar aos jovens a publicidade dos bens de consumo, exaltar a estética, os costumes e os padrões
de comportamento característicos dessa faixa etária tem o efeito perverso de insinuar que o declínio começa assim que essa
fase se aproxima do fim.
A ideia de envelhecer aflige mulheres e homens modernos, muito mais do que afligia nossos antepassados. Sócrates
tomou cicuta aos 70 anos, Cícero foi assassinado aos 63, Matusalém sabe-se lá quantos anos teve, mas seus
contemporâneos gregos, romanos ou judeus viviam em média 30 anos. No início do século 20, a expectativa de vida ao
nascer nos países da Europa mais desenvolvida não passava dos 40 anos.
A mortalidade infantil era altíssima; epidemias de peste negra, varíola, malária, febre amarela, gripe e tuberculose
dizimavam populações inteiras. Nossos ancestrais viveram num mundo devastado por guerras, enfermidades infecciosas,
escravidão, dores sem analgesia e a onipresença da mais temível das criaturas. Que sentido haveria em pensar na velhice
quando a probabilidade de morrer jovem era tão alta? Seria como hoje preocupar-nos com a vida aos cem anos de idade,
que pouquíssimos conhecerão.
Os que estão vivos agora têm boa chance de passar dos 80. Se assim for, é preciso sabedoria para aceitar que nossos
atributos se modificam com o passar dos anos. Que nenhuma cirurgia devolverá aos 60 o rosto que tínhamos aos 18, mas
que envelhecer não é sinônimo de decadência física para aqueles que se movimentam, não fumam, comem com parcimônia,
exercitam a cognição e continuam atentos às transformações do mundo.
Considerar a vida um vale de lágrimas no qual submergimos de corpo e alma ao deixar a juventude é torná-la
experiência medíocre. Julgar, aos 80 anos, que os melhores foram aqueles dos 15 aos 25 é não levar em conta que a
memória é editora autoritária, capaz de suprimir por conta própria as experiências traumáticas e relegar ao esquecimento
inseguranças, medos, desilusões afetivas, riscos desnecessários e as burradas que fizemos nessa época.
Nada mais ofensivo para o velho do que dizer que ele tem "cabeça de jovem". É considerá-lo mais inadequado do que
o rapaz de 20 anos que se comporta como criança de dez. Ainda que maldigamos o envelhecimento, é ele que nos traz a
aceitação das ambiguidades, das diferenças, do contraditório e abre espaço para uma diversidade de experiências com as
quais nem sonhávamos anteriormente.
DRAUZIO VARELLA é médico cancerologista. Por 20 anos, dirigiu o serviço de Imunologia do Hospital do Câncer. Foi um dos
pioneiros no tratamento da Aids no Brasil e do trabalho em presídios, ao qual se dedica ainda hoje. É autor do livro 'Estação
Carandiru' (Companhia das Letras) e articulista de diversos jornais, além de ter seu próprio anal de vídeos no Youtube. Jornal
FOLHA DE SÃO PAULO, Janeiro de 2016.
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Um mosquito cada vez mais perigoso (RAUL MONTENEGRO e FABÍOLA PEREZ)
A incapacidade do governo em conter a epidemia transformou o Aedes aegypti em um supermosquito que
ultrapassou fronteiras, se espalhou pela América Latina, amedrontou o mundo e irá comprometer a próxima
geração de brasileiros
NAS ÚLTIMAS semanas, decisões da
União Europeia e dos Estados Unidos
deram a exata dimensão da força que
ganhou no mundo o mosquito Aedes
aegypti, um pequeno inseto que mede
menos de 5 mm, pode ser reconhecido
pelo seu corpo listrado em preto e branco e
leva em sua picada o vírus zika, associado
aos casos de microcefalia em recémnascidos. A Europa fez um alerta
recomendando vigilância de seus estadosmembros diante da proliferação de casos
da infecção no Brasil. Entre outras
medidas, o bloco recomenda que países
não permitam a doação de sangue por
pessoas que passaram pelas áreas
afetadas. Já o Centro de Controle de
Doenças americano (CDC, na sigla em
inglês) foi além e sugeriu, na sexta-feira
15, que grávidas que planejem visitar locais
da América Latina com surtos de zika
adiem a viagem. Para o Brasil, mais do que
um duro recado, as notificações mostram
como a incapacidade do governo em
debelar uma epidemia que há anos é uma
realidade em nossas terras transformou o
Aedes em um supermosquito que
ultrapassou fronteiras. Agora, somos os
responsáveis pelo avanço da doença no
mundo.
Diante dessa vergonhosa situação,
que ameaça toda a população e
compromete as futuras gerações, vide as
centenas de bebês nascendo com
microcefalia, o País enfrenta também mais um revés econômico, às vésperas do Carnaval e de sediar o maior evento
esportivo do planeta, a Olimpíada, em agosto, no Rio de Janeiro. Muita gente está desistindo de vir para cá, principalmente
as mulheres grávidas. Caso da brasileira Ana Paula Lima de Oliveira, 31 anos, moradora de Dublin, na Irlanda. Com 14
semanas de gestação e passagem comprada para 19 de fevereiro para Natal (RN), ela viria com o esposo e o filho de 2
anos. “Penso em cancelar, principalmente depois que soube que nos Estados Unidos os médicos desaconselham mulheres
gestantes a ir ao Brasil”, diz. “Meu marido está bem inseguro, por ele já teríamos desistido.”
Não é novidade que o Aedes represente um grande perigo, mas as autoridades e a população negligenciaram o risco
por décadas no passado. Ano após ano, o País registra aumentos recordes de dengue, com 2015 alcançando o patamar
mais alto da série histórica: 1,6 milhão de casos. Hoje, o vírus transmitido pelo mosquito que causa mais medo é o zika,
cuja infecção em grávidas pode fazer com que bebês nasçam com o cérebro menor do que o normal. Chamado de
microcefalia, o mal causa deficiências motoras e mentais nas crianças atingidas. No verão, quando o calor e as chuvas se
intensificam, cria-se a condição ideal para o Aedes, e as transmissões se multiplicam. Sempre foi assim, mas poucas
medidas efetivas foram feitas para melhorar o quadro. “Para barrar esse avanço, precisamos do desenvolvimento de novas
tecnologias e da adoção de ações continuadas, que não parem no frio”, afirma o infectologista Francisco Ivanildo de Oliveira
Júnior, supervisor médico do ambulatório do Hospital Emílio Ribas, de São Paulo (SP). “Temos que declarar guerra ao
mosquito.”
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RISCO - A mãe teve zika e o filho nasceu com microcefalia: 80% de possibilidade de passar a vida tendo
convulsões, entre outras sequelas
O que se esperava com os anos de experiência é que o Brasil estivesse minimamente preparado para o combate, agora
que a situação se agravou. Infelizmente, não foi o que se viu. As ações colocadas em prática martelam fórmulas gastas e
burocráticas. Infectologista e ex-diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Marcos Boulos considera
que as campanhas feitas até hoje para combater a dengue não tiveram impacto na população. Prova disso é que, segundo
levantamentos, nos últimos nove anos os criadouros continuam nos mesmos lugares: 80% estão dentro das casas. “Não
conseguimos atingir as pessoas”, diz ele, que está à frente da Coordenadoria de Controle de Doenças da Secretaria de
Saúde de São Paulo. “Temos que fazer campanhas mais individuais, não adianta somente a presença do Exército, é preciso
recrutar voluntários das comunidades”, diz. Para piorar ainda mais o quadro, o ministro da Saúde, Marcelo Castro, que é
médico e deputado pelo PMDB do Piauí, fez feio ao mostrar profundo desconhecimento sobre o zika e a realidade científica
dos nossos dias. Disse, por exemplo, “torcer” para que mulheres peguem o vírus antes da idade fértil e que “sexo é para
amador, engravidar é para profissional”. As gafes e a incapacidade de resolver o problema fizeram o Palácio do Planalto
começar a transferir responsabilidades da pasta para outros setores da administração nacional, como a Casa Civil e a Defesa
Civil.
E, infelizmente, o cenário só deve piorar daqui para frente. Recém-nascidos com microcefalia já estão lotando os
hospitais da região Nordeste. Cerca de 80% viverão com convulsões, mas podem apresentar níveis de comprometimento
muito diferentes no futuro, dependendo do tratamento ao qual tiverem acesso – que inclui neurologistas, oftalmologistas,
fonoaudiólogos e fisioterapeutas, entre outros profissionais. A maioria dos especialistas consultados por ISTOÉ não acredita
que o sistema de saúde dê conta do recado. “Alguns bebês devem morrer mais rápido, mas os que forem tratados podem
viver muitos anos, pois um cérebro agredido, se estimulado precocemente, se recupera”, diz Maria Ângela Rocha, do setor
de infectologia pediátrica do Hospital Universitário Oswaldo Cruz, em Recife (PE). “Se o SUS não se organizar, crianças de
famílias ricas vão ter respostas melhores do que as de famílias mais pobres.”
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Outro horizonte sombrio é o das pesquisas em ciência básica, que poderiam oferecer portas de saída através da criação
de vacinas e medicamentos. No entanto, falta investimento e sobra burocracia para os cientistas brasileiros buscarem o
conhecimento necessário para vencer o zika (leia entrevista ao lado). “É importante que o combate ao mosquito seja feito,
mas como política de redução de danos, já que nossas cidades são extremamente adequadas ao Aedes”, afirma o médico
Artur Timerman, presidente da Sociedade Brasileira de Dengue e Arboviroses. “Como a zona urbana é caótica, conta com
saneamento precário e coleta de lixo inadequada, focar energias no mosquito é como enxugar gelo.” O desenvolvimento de
vacinas demorará no mínimo de três a cinco anos, de acordo com o diretor do Instituto Butantan, que desenvolve a
tecnologia mas ainda está na fase de testes com roedores. Apesar de investimentos pontuais feitos pelo governo durante a
crise, laboratórios que deveriam estar operando a todo vapor estão sucateados e recebendo cada vez menos verbas para
financiar seus estudos. “Não há no País uma cultura de se produzir grandes projetos em vigilância de saúde”, diz Boulos. “O
que temos por enquanto são pesquisas muito básicas.” Com isso, os índices da doença tendem a disparar, atingindo entre
50 e 100 mil casos em cinco anos, de acordo com Timerman.
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O descaso no passado, no presente e
no futuro, somados à incapacidade de a
população de cuidar de seu próprio quintal,
forneceram as condições ideais para que o
Brasil se tornasse um paraíso para o Aedes.
O risco representado pelo inseto é altíssimo
por se tratar de uma espécie de
supermosquito capaz de transmitir várias
doenças em diferentes ambientes, incluindo
dengue, zika e chikungunya. Para piorar, ele
é um animal cosmopolita que consegue
habitar praticamente toda a faixa tropical da
Terra, onde vive quase metade da
população mundial. Até meados de 2015, os
vírus passados pelo Aedes que causavam
mais preocupação eram a dengue e o
chikungunya, que podem ser fatais para os
infectados. O zika era o primo pobre da
família. Como em 80% dos casos não
provoca sintomas, foi considerado inofensivo
e não causou alarde à comunidade médica
nem ao Ministério da Saúde ao ser
identificado no Brasil, em maio.
Meses depois, em novembro, diante da
explosão de casos de microcefalia no
Nordeste, região mais afetada pelo zika, o
vírus virou a principal hipótese pela má
formação dos bebês e também foi associado
à Sindrome de Guillan Barré (doença autoimune que ataca o sistema nervoso). Desde
então, as pesquisas avançaram e na útlima
semana o Instituto Carlos Chagas, da
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) do
Paraná, revelou que ele é capaz de
atravessar a placenta durante a gestação. A
análise foi feita com material de uma mulher
do Nordeste que sofreu um aborto após
relatar sintomas da infecção. Desde que se
tornou o inimigo público número um do
Brasil, cientistas de todo o País têm
avançado para colocar um ponto final na
trajetória do Aedes e do zika, mas as
pesquisas avançariam mais rápido caso as
condições fossem mais favoráveis. Por
exemplo, poderiam dar um empurrão nos
experimentos com mosquitos transgênicos
sendo feitos no interior paulista e descobrir
de uma vez por todas se leite materno,
sêmen e sangue são difusores do vírus,
como se suspeita (confira outros estudos em
desenvolvimento na entrevista ao lado).
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PRECAUÇÃO - A brasileira Ana Paula de Oliveira, grávida de 14
semanas, moradora na Irlanda: passagem de férias comprada para
Brasil e medo de viajar
Soma-se ao prejuízo incalculável representado pelas vidas perdidas e
pelas famílias destroçadas a perda financeira representada por mais uma
mancha na imagem do País em ano de Jogos Olímpicos. Como Ana Paula, a
mãe que pensa em cancelar a viagem ao Brasil neste verão, outros
mudarão seus planos após os alertas das regiões mais influentes do mundo.
Aliado ao carnaval, que costuma reunir multidões de foliões em áreas
dominadas pelo Aedes, como as capitais do Nordeste, o Rio de Janeiro e
demais cidades litorâneas, o evento esportivo tem o potencial de espalhar a
doença para os confins do Brasil e do mundo. “O zika se tornou um produto
tipo exportação do Brasil”, diz o farmacêutico Gúbio Soares, da
Universidade Federal da Bahia, um dos primeiros a identificar o vírus. “Ele
pode contaminar turistas que venham para cá ou se espalhar por brasileiros
no exterior.”
RAUL MONTENEGRO e FABÍOLA PEREZ são Jornalistas e escrevem para
esta publicação. Revista ISTO É, Janeiro de 2016.
Que jovens correm mais risco no sexo? (JAIRO BOUER)
Como as emoções e o álcool influenciam o comportamento sexual dos jovens
ESTUDO recente da Universidade de Illinois, nos Estados Unidos, sugere uma forte ligação entre instabilidade
emocional em estudantes universitários e maior risco no sexo. Fases de transição como ingresso na faculdade, saída da casa
dos pais, vida em repúblicas, novas redes de amizade, início de namoro e entrada no mercado de trabalho tendem a ser
mais complicadas para quem tem pouca experiência com novos desafios.
As mudanças podem impactar profundamente as emoções de muitos desses jovens. A pesquisa, que avaliou cerca de
400 estudantes de duas universidades americanas, todos com idades inferiores a 21 anos, mostrou que aqueles que
experimentaram maior instabilidade emocional tinham mais chances de se expor a riscos no momento do sexo. Os
resultados foram divulgados pelo site Medical News Today.
A maior sensação de liberdade e a exploração de novas possibilidades introduzem situações de estresse adicionais na
vida dos jovens. Os comportamentos de risco podem atingir diversas áreas da vida, não apenas a atitude em relação ao
sexo. Assim, acidentes, violência e abuso de droga também podem ser mais comuns.
Em relação à sexualidade, os riscos avaliados incluíram sexo com parceiros eventuais, sexo com estranhos e
comportamento sexual impulsivo. Já as oscilações emocionais observadas foram sintomas depressivos, solidão, problemas
de autoestima e beber para ser aceito pelo grupo. Aliás, sabe-se que o álcool tem um peso importante na vida dos
universitários e nos riscos que eles correm.
Um novo trabalho da Universidade da Flórida, nos Estados Unidos, publicado no periódico Journal of Preventive
Medicine, sugere que aumentar o preço das bebidas poderia ajudar a diminuir as doenças transmitidas pelo sexo (DSTs).
Avaliando dados do Estado de Maryland, que aumentou os impostos sobre venda de álcool de 6% para 9% em 2011, os
pesquisadores perceberam uma diminuição de quase 25% nas taxas de gonorreia nos 18 meses seguintes. No mesmo
período, outros 13 Estados que não fazem fronteira com Maryland e que não elevaram impostos sobre bebida foram
avaliados.
A incidência da doença não teve uma queda significativa. Para os pesquisadores, aumentar o preço do álcool pode ser
tão significativo como distribuir gratuitamente camisinhas. Mas, neste caso, o Estado arrecada em vez de gastar. Seria
interessante ampliar o estudo para checar possíveis impactos em outros comportamentos de risco que cercam a vida dos
mais jovens.
JAIRO BOUER é médico e especialista em adolescentes. Escreve semanalmente nesta coluna. Revista ÉPOCA, Fevereiro de
2016.
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EPIDEMIA GLOBAL? - Europa se prepara contra o zika (VIVIANE VAZ)
Mosquitos vetores ainda são escassos no continente, mas OMS sugere prevenção
A PRIMAVERA e o verão costumam ser as estações do ano mais esperadas pelos europeus, principalmente nos países
onde o inverno é rigoroso e com poucos dias de luz do sol. Mas, este ano, os europeus iniciam uma corrida contra o tempo
para prevenir a disseminação do vírus zika nos períodos mais quentes do ano.
“Vários viajantes infectados com zika entraram na Europa, mas o ciclo de transmissão da doença não continuou,
porque o mosquito ainda está inativo. Com a chegada da primavera e do verão, aumenta o risco de o vírus zika se
espalhar”, afirmou nesta quarta-feira a diretora regional da OMS para a Europa, Zsuzsanna Jakab. Apesar de não haver
ainda indícios de infecções contraídas na Europa, vários países registraram casos de cidadãos europeus que foram
infectados em viagens: Alemanha, Bélgica, Dinamarca, Portugal, Espanha, Grécia, Itália, Irlanda e Reino Unido. Jakab
considera que “agora é a hora para os países se prepararem para reduzir o risco à população”. “Todos os países nos quais
há mosquitos do gênero Aedes podem estar em risco”, alertou a diretora regional.
Um estudo publicado em junho de 2015 por Moritz U.G. Kraemer, da Universidade de Oxford, com a participação de
uma rede de pesquisadores, inclusive de Roberta G. Carvalho, da Universidade de Brasília, fornece previsões sobre a
distribuição de duas espécies de mosquitos “Aedes” ao redor do globo: Aedes aegypti e Aedes albopictus. Os dois são
vetores do vírus da dengue, da febre amarela e do vírus chikungunya. O Aedes aegypti transmite também o vírus zika e
pesquisadores da Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz) ainda estão estudando se o Aedes albopictus também poderia transmitir
o zika.
“Os mapas atualizados mostram que estes mosquitos Aedes agora são encontrados em todos os continentes, incluindo
a América do Norte e Europa”, explica o estudo liderado por Kraemer. “Mas as distribuições das duas espécies diferem
acentuadamente em um número de lugares”, detalha a publicação. No que se refere à Europa, o Aedes aegypti apresenta
relativamente poucas áreas de adequação, como na Espanha e na Grécia. Por outro lado, a distribuição de Aedes albopictus
se estende para o sul da Europa.
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Aedes Aegypti e Aedes Albopictus no mundo
Aedes Aegypti na Europa
Aedes Albopictus na Europa
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Plano de prevenção
A OMS indicou que ainda não existe vacina ou tratamento para a doença, por isso a estratégia para o continente
europeu se baseia no controle e eliminação dos locais de reprodução do mosquito, na aplicação de inseticidas e na morte
das larvas. Em dezembro do ano passado, a Comissão Europeia (braço executivo da União Europeia) também apresentou
uma lista de conselhos para os cidadãos do bloco tomarem precauções individuais, principalmente no sentido de evitar a
contaminação por picadas de mosquitos em viagens, sobretudo as mulheres grávidas.
No entanto, o plano de prevenção ainda não foi discutido no Comitê de Segurança da Saúde (CSS) da Comissão
Europeia. A assessoria de imprensa de Saúde Pública do bloco informou à reportagem que os membros do CSS devem se
reunir no próximo 9 de fevereiro para discutir os últimos desenvolvimentos do surto zika e as opções para mitigar a ação do
vírus. Por outro lado, a Comissão Europeia já pediu aos Estados-membros para aprovarem um fundo emergencial no valor
de 10 milhões de euros para ajudar nas pesquisas contra o vírus.
VIVIANE VAZ é jornalista e escreve de Bruxelas, Bélgica. Revista ISTOÉ, Fevereiro de 2016.
Evolução de crianças com microcefalia depende de repetição e
paciência (REDAÇÃO ESTADO DE SÃO PAULO)
Rotina de meninas com a má-formação é marcada por série de exercícios e estímulo pela família
O CAMINHO não é fácil, e ninguém
diz que é, mas para quem tem a sorte de
receber o tratamento e os incentivos
adequados desde o nascimento, a vida com
microcefalia pode ser longa, saudável e,
por que não, feliz. Na semana passada um
executivo das Nações Unidas sugeriu o
aborto nesses casos e o Ministério da
Saúde confirmou 404 casos da máformação no País, a maioria no Nordeste.
Aos 6 anos, Micaelly tem uma rotina
de estudos e brincadeiras, como qualquer
criança na sua idade. Aos poucos, aprende
a identificar as letras e escrever o nome,
hoje seu principal desafio. Da síndrome,
diagnosticada aos 12 dias de vida, Micaelly
só sabe que tem a “cabeça pequena”,
condição que não a impede de ter uma
vida social ativa ao lado da mãe, Fernanda
Silva Santos, de 23 anos. Casada com o
primo de primeiro grau, ela acredita que a
filha desenvolveu a microcefalia em função
da consanguinidade ou depois de uma
batelada de exames de raio X que fez no
primeiro mês de gestação, quando ainda não sabia da gravidez.
Dedicada nos exercícios, a menina só evolui. Corre, pula, toma banho, se veste, escova os dentes, faz as refeições,
penteia o cabelo, dança. Tudo sozinha. “Eu aprendi a deixar ela fazer, deixar tentar. Esse é um dos segredos do tratamento.
Se sempre tomamos à frente das coisas, eles não aprendem, não desenvolvem”, ensina Fernanda.
No dia a dia, repetição e paciência são palavras-chave. As orientações repassadas pela equipe multidisciplinar da Apae
São Paulo, onde Micaelly aprende a ter autonomia, são levadas para casa e repassadas à exaustão. “A grande estimulação
não ocorre no consultório, mas no meio da família, a partir das tarefas mais simples, como segurar um lápis, um garfo ou
um copo d'água”, explica a fonoaudióloga Angela Tampellini. As sessões de estímulo, muitas realizadas em conjunto com a
terapeuta ocupacional Monaísa de Lima, trabalham também a interação, por meio do contato com outras crianças.
Na sexta-feira, a companheira de Micaelly no setor de estimulação e habilitação da Apae foi a pequena Maria Victória,
de 4 anos. Com diagnóstico de microcefalia derivada de infecções graves desenvolvidas ainda no útero - a toxoplasmose e a
citomegalovirose -, ela enfrenta mais dificuldades para se desenvolver e, por isso, surpreende pelos resultados.
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“Até os dois anos de idade ela não sentava, não engatinhava, não ficava de pé. E chorava muito, o tempo todo.
Morávamos em Minas e viemos para cá atrás de respostas. Só recebi a confirmação da microcefalia em São Paulo. Foi
quando conseguimos iniciar o tratamento e a nossa vida mudou. A evolução dela é incrível”, conta a mãe, Kelly Francisca de
Oliveira, de 28 anos.
Sem a visão completa de um dos olhos, Maria Victória demora mais a completar as atividades repassadas por Monaísa,
mas as realiza com concentração e cautela, sem qualquer sinal de irritação. “O choro sumiu depois que a pediatra receitou
Dramin à noite. O remédio funcionou como um calmante e, aos poucos, reduziu a dor de cabeça que ela sentia em função
da calcificação precoce dos ossos do crânio”, diz Kelly. Evolução. Os médicos afirmam ser impossível ou mesmo
irresponsável prever como se dará o desenvolvimento de crianças com microcefalia, ainda mais nos casos derivados do zika
vírus, com consequências ainda pouco conhecidas. Como cada caso é um caso, a única regra é iniciar os estímulos o mais
precocemente possível, mesmo em bebês recém-nascidos. O tratamento considerado ideal é multidisciplinar, realizado por
profissionais especializados, como fisioterapeutas, fonoaudiólogos, psicólogos, terapeutas ocupacionais, pediatras,
neurologistas e geneticistas, além de assistentes sociais.
Quem tem a oportunidade de receber estímulos de toda natureza pode ter esperança, diz o médico geneticista da Apae
Theoharis Efcarpidis. “É possível e necessário ter esperança. A gente precisa investir nessas crianças porque elas
surpreendem. Na triagem, os pais ficam desesperançados, ninguém dá nada para elas, mas com o tempo podem haver
avanços surpreendentes”, diz. A busca por uma melhora na vida dos pacientes independe do grau da doença. “Mesmo
aquela criança que é mais comprometida tem o direito de ser estimulada, de receber as terapias, os cuidados médicos
necessários. No fim, o que buscamos diariamente aqui é qualidade de vida. Quem tem microcefalia pensa, sente, tem
vontade de viver, como todos nós.”
O agora. Lado a lado, Micaelly e Maria Victória não demonstram sofrimento, apesar de todas as barreiras que ainda
terão de enfrentar ao longo da vida. Com quadros leves de microcefalia, em comparação à síndrome gerada pelo zika vírus,
as meninas sobem devagar cada degrau. As mães acompanham com olhar atento cada passo, tentando focar no presente.
“Não adianta ficar pensando no futuro. Se a gente fizer isso, ficamos doidas. O importante é agora e agora elas estão bem,
muito bem.”
REDAÇÃO ESTADO DE SÃO PAULO, publicado no site da Revista ISTO É, Fevereiro de 2016.
Zica (DRAUZIO VARELLA)
ATÉ 1947 ninguém sabia da existência do vírus zika. Naquele ano, pesquisadores do Yellow Fever Research Institute
prenderam um macaco-sentinela numa jaula, no meio da floresta Zika, em Uganda, como parte de um estudo para
monitorar a circulação do vírus da febre amarela. A amostra de sangue colhida assim que o macaco teve febre permitiu
isolar o vírus zika.
No começo de 2015, os serviços de saúde brasileiros detectaram os primeiros casos da doença no Nordeste. Em menos
de um ano, o vírus se espalhou para a maior parte das Américas do Sul e Central, do Caribe e chegou ao México. Aqui,
ninguém sabe onde a epidemia vai parar. Já temos mais de 4.000 bebês com suspeita de microcefalia, a face mais trágica.
A constatação de que algumas dessas crianças nascem com comprometimento da visão e da audição faz pensar que
microcefalia seja apenas parte de uma síndrome neurológica muito grave e incapacitante.
Além dessa síndrome, o que mais assusta são as características da disseminação. Embora tenham sido descritas
transmissões ocasionais por transfusão e por sexo, o Aedes foi capaz de levar o vírus do Nordeste brasileiro ao México em
velocidade vertiginosa. Que outra virose transmitida por mosquito se disseminou tão depressa na história recente da
humanidade?
Poderíamos supor que a viremia na fase aguda fosse tão elevada que, ao picar, o mosquito engolisse sangue com
grande quantidade de partículas virais. Ou, então, que o vírus se multiplicasse freneticamente nas glândulas salivares do
Aedes. Nenhuma das duas hipóteses foi confirmada: a concentração do vírus no sangue permanece relativamente baixa
durante a fase aguda, e assim se mantém nas glândulas salivares do vetor. Outro entrave é a falta de testes sorológicos
para diagnosticar quem está ou já foi infectado: os anticorpos contra o zika dão reação cruzada com os da dengue, da febre
amarela e dos vacinados contra ela.
O único exame disponível é a detecção de partículas virais no sangue por métodos moleculares – realizado apenas em
laboratórios de referência–, com a agravante de que a positividade só é detectada no sangue nos quatro ou cinco dias
iniciais da sintomatologia. Passado esse período, o vírus desaparece da circulação, embora ainda persista na urina por duas
ou três semanas.
Não fossem as grávidas, o agravo seria menor. Descontados os casos raros da síndrome de Guillain-Barré, que provoca
paralisias musculares, a doença é de evolução benigna: exantema (vermelhão no corpo), dor de cabeça, conjuntivite, febre
baixa (ao contrário da dengue), dores articulares e prurido, sintomas que desaparecem em menos de uma semana. Um
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estudo feito na Polinésia estima que 75% a 80% dos infectados permanecem assintomáticos, números repetidos à
exaustão. Sinceramente, desconfio que essa estimativa tenha pouco valor científico: como diagnosticar com precisão casos
assintomáticos numa enfermidade em que o único teste existente só dá resultado positivo por período tão curto, a partir da
instalação do quadro clínico?
As mulheres em idade fértil vivem um drama à parte. É arriscado engravidar agora? Além de fugir do mosquito como o
diabo da cruz, as grávidas querem saber se fazem parte da legião de infectados que não apresentou sintomas. Nessa
eventualidade, correriam risco de malformação? As que já tiveram zika, precisam aguardar quantos meses para engravidar
com segurança? Tudo faz crer que o vírus seja eliminado em algumas semanas pelo sistema imunológico, e que a
imunidade seja duradoura, mas como ter certeza numa doença que apareceu entre nós há menos de um ano? No meio de
tantas dúvidas, só nos resta recomendar cautela. Esperar o inverno, quando as condições climáticas dificultam a proliferação
do mosquito, para ganhar tempo e entendermos melhor o que se passa.
Estamos no epicentro de uma epidemia de consequências gravíssimas que exige mobilização popular, ações
governamentais ágeis e eficazes e recursos financeiros. Num país com baixa escolaridade, em crise econômica, com níveis
vergonhosos de saneamento básico e serviços de saúde que lidam com a falta crônica de financiamento e dificuldades
gerenciais não há uma razão sequer para otimismo.
DRAUZIO VARELLA é médico cancerologista. Por 20 anos, dirigiu o serviço de Imunologia do Hospital do Câncer. Foi um dos
pioneiros no tratamento da Aids no Brasil e do trabalho em presídios, ao qual se dedica ainda hoje. É autor do livro 'Estação
Carandiru' (Companhia das Letras) e articulista de diversos jornais, além de ter seu próprio anal de vídeos no Youtube. Jornal
FOLHA DE SÃO PAULO, Fevereiro de 2016.
O poder da nova meditação (FABÍOLA PEREZ e CAMILA BRANDALISE)
No momento em que cada vez mais pessoas vivem sob pressão e estresse constantes, ganha força no Brasil o
Mindfulness, técnica criada nas universidades, que pode ser praticada em casa e até no trabalho e auxilia em
tratamentos de saúde
HARMONIA - A meditação pauta a vida da
apresentadora Fernanda Lima: ''Minha
prioridade é olhar o céu, o sol, pisar na
areia, ficar com meus filhos. Depois vem
todo o resto''
VOCÊ já lavou a louça prestando atenção
somente no movimento das mãos? Ou tomou
banho experimentando a sensação do sabonete
ao tocar sua pele? Caminhou sentindo os pés
pisarem no solo? A grande maioria das pessoas
certamente responderia não a essas questões –
e provavelmente as achariam tolas. Em um
mundo cada vez mais acelerado, que exige
respostas instantâneas, e onde ninguém tem
tempo para nada, práticas cotidianas como as
citadas acima são feitas no “piloto automático”.
Em contrapartida, médicos e psicólogos
confirmam que nunca houve tanta gente
sofrendo de estresse, ansiedade e depressão.
Número que cresce de forma assustadora, à
medida que o mundo acelera, as demandas aumentam e o dia continua com as mesmas e insuficientes 24 horas.
Com isso, estar atento ao momento presente se tornou quase impossível. Em busca de aliviar o estresse opressivo ou
até não entrar em colapso, cada vez mais pessoas têm lançado mão da meditação. Mas de um novo tipo, diferente daquela
associada a denominações religiosas, praticada em ambientes imaculados e tranquilos. Nascido em prestigiosas
universidades dos Estados Unidos e da Europa, o Mindfulness, chamado também de consciência ou atenção plena, está
causando uma revolução no jeito de se meditar. Por meio de exercícios de respiração e concentração, a técnica ajuda a
combater os males da nossa época de uma forma simples e pode ser adotada em todas as ações do cotidiano. Além disso,
pesquisadores confirmam seus efeitos positivos à saúde. Já famoso internacionalmente, o Mindfulness ganhou força no
Brasil e começa a ser estudado e aplicado em universidades, consultórios e também no Sistema Único de Saúde (SUS).
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Ao contrário das meditações que exigem posições específicas, o Mindfulness tem como objetivo estimular o cérebro a
perceber os movimentos do corpo e as sensações em qualquer situação. A apresentadora Fernanda Lima, 38 anos, medita
há 16, desde que começou a praticar ioga. O dia a dia corrido não a impede de meditar. Ela conta que antes de dormir, tira
o travesseiro da cama, fica com o corpo reto e faz os exercícios de respiração. Essa é uma das técnicas mais utilizadas pelo
Mindfulness. Trata-se do “escaneamento corporal”, quando uma pessoa fica na posição horizontal e é estimulada a sentir
todas as partes do corpo por meio da mente e da respiração. Segundo ela, os brasileiros precisam desmistificar a meditação.
“Tento explicar que o objetivo é entrar em contato com os pensamentos, manter a respiração e organizar pensamentos por
prioridades.” Fernanda também adotou o hábito de meditar pela manhã, antes de começar suas atividades. “Comprei um
banquinho e fico respirando por 10 minutos, depois disso me sinto renovada.”
As pesquisas sobre Mindfulness começaram em 1979, na Universidade de Massachussets, nos Estados Unidos. O
médico Jon Kabat-Zinn desenvolveu um programa para reduzir o estresse baseado na prática. O método também foi
estudado na Universidade de Oxford, na Inglaterra. “Foi o avanço científico que permitiu o boom que estamos vendo hoje”,
afirma o psicólogo clínico Marcelo Batista de Oliveira, do Centro Paulista de Mindfulness. Aos poucos, conforme os estudos
avançavam, os especialistas percebiam que esse tipo de meditação, que surgiu no meio acadêmico e era desvinculado de
qualquer religião, conseguia reduzir os níveis de estresse e ansiedade dos pacientes. O segredo era colocar na rotina
práticas diárias para exercitar o “estar presente”. Pioneira nos estudos dos benefícios do Mindfulness no cérebro, a
neurocientista norte-americana Sara Lazar detectou, em 2005, que o córtex pré-frontal – a área do cérebro responsável pela
concentração, memória e tomada de decisões – era mais estimulada no grupo de pessoas que faziam meditação. Em 2011,
um segundo estudo revelou que as práticas meditativas provocam um aumento de volume em regiões da mente
relacionadas à regulação emocional, à empatia e à cognição. Logo, o método avançou para outros países e chegou ao Brasil
em 2006. Um dos primeiros nomes a investigar os efeitos do Mindfulness aplicado à saúde foi a neurocientista Elisa Kozasa,
pesquisadora do Hospital Israelita Albert Einstein. “Hoje existem diferentes estudos para redução de estresse, ansiedade,
dor crônica e prevenção de recaídas para usuários de drogas”, diz ela.
Com isso, a nova meditação
também ganhou força como técnica
integrativa aos tratamentos de saúde
convencionais.
Desde setembro de 2015, as
práticas de Mindfulness começaram a
ser oferecidas pelo programa de
extensão da Universidade Federal de
São Paulo, em parceria com o SUS, no
Centro Brasileiro de Mindfulnes e
Promoção da Saúde. O coordenador
do programa, Marcelo Demarzo
explica que a principal aplicação da
técnica é prevenir recaídas em casos
de
ansiedade,
dor
crônica
e
depressão. “As práticas diminuem em
até 50% a chance de voltar a sentir
esses males”, diz.
“A pessoa se coloca como
observador de si mesmo e faz uma
espécie
de
desintoxicação
do
pensamento.” Funciona assim: as
Unidades Básicas de Saúde enviam
pacientes para fazer exercícios da
prática. Eles passam por uma análise
inicial, na qual é avaliado o grau de
ansiedade, o estilo de vida e o uso de
medicamentos. Com isso, eles podem
ou não começar o curso de oito
sessões.
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A psicóloga Malu Favarato, 51 anos, conheceu o Mindfulness no ano passado. Ela trabalha como voluntária na triagem
de pacientes para o curso. “Para quebrar a rotina de estresse e sair do piloto automático faço algumas práticas por 20
minutos”, diz ela. “No começo era mais difícil, hoje me concentro na respiração com mais facilidade, levo a atenção para
onde tenho dores.” A irmã e artista plástica, Milene, de 46 anos, tem transtorno bipolar e crises de depressão. Com a ajuda
de Malu, fez o curso em outubro. “Em 2014, fui diagnosticada com artrose cervical, tomava antidepressivo, estabilizador de
ânimo e ansiolítico”, afirma. Hoje a medicação já foi reduzida pela metade. “Mudou meu estilo de vida”, diz. A pesquisadora
da Unifesp, Isabel Weiss, explica que esse é o objetivo da técnica. “São exercícios de respiração para acalmar. Os pacientes
conhecem suas necessidades por meio do próprio corpo.”
No Brasil, Isabel foi a primeira a estudar os efeitos do Mindfulness para a prevenção de recaídas em usuários de drogas
e fumantes. Nesses casos, foram desenvolvidas práticas específicas como o exercício “surfando na fissura”, no qual o
usuário é conduzido a uma situação de desconforto e aprende a lidar com a onda de emoções do momento até passar.
“Tendemos a reagir negativamente sempre”, diz. Atraída pelas práticas de atenção plena, a dermatologista Carolina Marçon
fez o curso da Unifesp em novembro. “Nossas reações ocorrem baseadas na memória que temos de um fato e não no fato
em si”, afirma. “Essas técnicas nos ancoram no momento presente.” Para ela, a meditação ajudou a tomar decisões sem
uma carga emocional tão elevada, a ter mais discernimento e clareza. Hoje, recomenda o Mindfulness em seu consultório
para ampliar os efeitos do tratamento convencional. “A pele está totalmente ligada às questões emocionais e ao sistema
nervoso”, afirma. Nos EUA, existem casos de pacientes com psoríase que responderam melhor ao tratamento com a
meditação. O Mindfulness também está sendo adotada no universo corporativo. “Para garantir a qualidade de vida, prevenir
o burnout (ponto máximo de estresse) e desenvolver estratégias de liderança, a meditação é muito eficiente”, diz Demarzo,
da Unifesp. Embora ainda precise ser mais difundido, o método praticado nas empresas, e mais disseminado entre
profissionais da saúde, ajuda a desenvolver habilidades cognitivas importantes. Com um dia corrido, que exige ir de uma
academia à outra para dar aulas, a personal trainer e professora de fitness Lara Magnet Dias, 41 anos, conta que a rotina de
trabalho sempre lhe gerou ansiedade. “Me cobrava muito”, diz. Ao conhecer o Mindfulness, a maneira de lidar com a rotina
mudou. “O meu dia é tão agitado quanto antes, mas lido de maneira diferente, com menos cobrança”, afirma. Lara também
conta que dá mais valor aos momentos em que está com a filha, Isabela, de 2 anos.
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Para o relações públicas Mateus Furlanetto, 37 anos, conhecer o método também ajudou no trabalho, mas ele aponta
outro viés. “O que mais senti foi que consegui tirar de mim o sentimento de culpa por não estar fazendo e produzindo mil
coisas”, diz. “Também acredito que hoje consigo dar uma dimensão real aos problemas, sem ampliá-los.” Para a empresária
Fernanda Prando Godoy, 47 anos, meditar é tão essencial que ela tira um tempo no próprio escritório para a prática. “Sou
uma pessoa ansiosa, lido com prazos e com pressão. Tento meditar duas vezes por dia, por 30 minutos.” Mas a experiência,
claro, teve reflexos além da área profissional. “Hoje presto mais atenção na comida, coisa que nunca tinha feito. Noto a cor,
o cheiro.” O bom da técnica é que não são necessários cursos dispendiosos e demorados para aprendê-la. Há uma série de
aplicativos bastante didáticos disponíveis (leia ao lado).
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Por ter nascido em universidades e longe de um contexto religioso, o Mindfulness não impõem condições aos novos
adeptos da prática. Não há contra-indicação e a experiência, dizem os especialistas e praticantes, é única e individual. Os
benefícios surgem quando menos se espera. “Percebi o efeito da prática num dia que tive uma discussão com um cliente
por telefone. Eu desliguei e o problema foi desligado junto. Em outros tempos, ficaria ruminando aquela situação por horas”,
diz a empresária Fernanda Godoy. Ainda que as práticas de meditação sejam inúmeras e existam há milhares de anos,
entender os mecanismos de como elas funcionam, a partir do espectro neurocientífico, é o que tem feito a nova meditação
prosperar. “A ciência do Mindfulness avançou de uma tradição misteriosa para uma prática secular, benéfica e tão simples
quanto escovar os dentes pela manhã”, afirma a neurocientista Claudia Aguirre, do aplicativo Headspace.
FABÍOLA PEREZ e CAMILA BRANDALISE são Jornalistas e escrevem para esta publicação. Foto: Ale de Souza, João
Castellano/Istoé; Airam Abel, Airam Abel; João Castellano/Istoé. Revista ISTO É, Fevereiro de 2016.
Como garantir a nova licença-paternidade (LUDMILLA AMARAL e CAMILA BRANDALISE)
Um grande avanço nas relações familiares, extensão do período para 20 dias precisa do comprometimento dos
empregadores
A PEQUENA Maitê pode nascer a qualquer momento. Fruto do relacionamento do advogado Thomas Ampessan, 27, e
da dentista Karina Sayad, 27, ela virá ao mundo ainda em fevereiro e com a sorte que poucas crianças recém-nascidas têm
no Brasil: ser cuidada pelo pai e pela mãe juntos em tempo integral durante os primeiros 30 dias de vida. O escritório
Souza, Schneider, Pugliese e Sztokfisz Advogados, onde Ampessan trabalha, em Brasília, ampliou a licença-paternidade de
seus funcionários para 30 dias em 2014. Thomas é o primeiro a utilizar o benefício. “Eu estarei inteiramente voltado à Karina
e à Maitê”, diz. A boa notícia é que em breve, assim como essa família brasiliense, muitos brasileiros terão o direito de
exercer a paternidade de forma integral no começo da vida de seus filhos. No início do mês, o Senado aprovou o projeto
que institui o marco legal da primeira infância que, entre as novas regras, determina que as empresas ampliem de 5 para 20
dias a duração da licença-paternidade. Para que passe a valer, a presidente Dilma Rousseff ainda precisa sancionar.
Também será necessário que as empresas respeitem a regra e não pratiquem sanções veladas aos funcionários ‘grávidos’,
tal qual acontece com muitas mulheres gestantes ou em idade para engravidar em diversas organizações do País.
BENEFÍCIO - Thomas Ampessan acaricia sua mulher Karina, grávida de Maitê:
a empresa já lhe dá 30 dias de licença
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A licença-paternidade de 20 dias só valerá para as empresas que aderirem ao Programa Empresa Cidadã. Esse é um
grande avanço para o País, que mesmo tendo sido um dos pioneiros a tornar lei a licença-paternidade em 1943, ainda
oferecia apenas cinco dias para os homens. Um estudo realizado pela Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, instituição que
promove pesquisas e projetos relacionados à primeira infância, revelou que o benefício promove um maior envolvimento dos
pais no cuidado dos filhos, que se estende para além do período e tem reflexos importantes na vida das crianças. “A ligação
do pai e da mãe nos seis primeiros anos do bebê é fundamental para que a criança cresça com segurança e estrutura”, diz
Eduardo Marino, gerente de Conhecimento Aplicado da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal.
Os avanços no direito de família do País se intensificaram quando a guarda compartilhada se tornou a primeira opção
no caso de separação do casal, o que se tornou regra em 2014. Mas nesse caso o progresso ainda é prejudicado por alguns
juízes, que optam por deixar a criança apenas com a mãe. Por esse risco não passará a licença-paternidade, acredita
Analdino Rodrigues Paulino, presidente da ONG Apase, e um dos maiores críticos de como o judiciário trata a guarda
compartilhada. “A licença-paternidade não depende da interferência do judiciário, que aqui no Brasil acha que também é
legislador”, diz Paulino.
RELAÇÃO - Estar presente no início tem reflexos importantes na vida da criança.
A ligação do pai é fundamental para que ela cresça com segurança
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A ampliação do benefício para os pais também é um passo importante para uma possível igualdade de gênero no
Brasil, já que pode diminuir a diferença entre homens e mulheres no mercado de trabalho e mudar o comportamento das
famílias quanto à divisão de tarefas domésticas. “Esse projeto é fruto de uma mudança de mentalidade e cultura, em que o
pai é uma parte fundamental na vida da família e da criança”, afirma a psicóloga Andreia Calçado.
LUDMILLA AMARAL e CAMILA BRANDALISE são Jornalistas e escrevem para esta publicação. Fotos: BETO BARATA; Ruslan
Dashinsky. Revista ISTO É, Fevereiro de 2016.
Uma década de avanços em biotecnologia
(WALTER COLLI)
AO LONGO de 2015, uma silenciosa revolução biotecnológica aconteceu no Brasil. Neste ano a Comissão Técnica
Nacional de Biossegurança (CTNBio) analisou e aprovou um número recorde de tecnologias aplicáveis à agricultura,
medicina e produção de energia.
O trabalho criterioso dos membros da CTNBio avaliou como seguros para a saúde humana e animal e para o ambiente
19 novos transgênicos, dentre os quais 13 plantas, três vacinas e três microrganismos ou derivados. A CTNBio, priorizando o
rigor nas análises de biossegurança e atenta às necessidades de produzir alimentos de maneira mais sustentável aprovou,
no ano passado, variedades de soja, milho e algodão tolerantes a herbicidas com diferentes métodos de ação.
Isso permitirá que as sementes desenvolvam todo seu potencial e que os produtores brasileiros tenham mais uma
opção para a rotação de tecnologias no manejo de plantas daninhas. Sem essa ferramenta tecnológica, os agricultores
ficariam reféns das limitações impostas pelas plantas invasoras. As tecnologias de resistência a insetos proporcionam
benefícios semelhantes. Na área da saúde, a revolução diz respeito aos métodos de combate a doenças que são endêmicas
das regiões tropicais. Mais uma vez, mostrando-se parceira da sociedade, a CTNBio avaliou a biossegurança de duas vacinas
recombinantes contra a dengue em regime de urgência e deu parecer favorável a elas.
Soma-se a estes esforços a aprovação do Aedes aegypti transgênico. O mosquito geneticamente modificado aprovado
em 2014 tem se mostrado um aliado no combate ao inseto que, além de ser vetor da dengue, também está associado a
casos de transmissão dos vírus Zika, Chikungunya e da febre amarela. Nos últimos 10 anos, até o momento, o advento da
nova CTNBio pela Lei 11.105 de 2005 - a Lei de Biossegurança - proporcionou a aprovação comercial de 82 Organismos
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Geneticamente Modificados (OGM): 52 eventos em plantas; 20 vacinas veterinárias; 7 microrganismos; 1 mosquito Aedes
aegypti; e 2 vacinas para uso humano contra a Dengue. Essas liberações comerciais são a maior prova de 9,5 que o Brasil
lança mão da inovação para encontrar soluções para os desafios da contemporaneidade.
Entretanto, é necessário enfatizar que assuntos não relacionados com Ciência também se colocaram, como em anos
anteriores, no caminho do desenvolvimento da biotecnologia em 2015. Manifestantes anti-ciência invadiram laboratórios e
destruíram sete anos de pesquisas com plantas transgênicas de eucalipto e grupos anti-OGM (organismo geneticamente
modificados) chegaram a interromper reuniões da CTNBio, pondo abaixo portas com ações truculentas.
Diversas inverdades foram publicadas na tentativa de colocar em dúvida a segurança e as contribuições que a
transgenia vem dando para a sociedade. A ação desses grupos preocupa, pois, se sua ideologia for vitoriosa, tanto o
progresso científico quanto o PIB brasileiros ficarão irreversivelmente prejudicados.
Hoje, a nossa Lei de Biossegurança é tida internacionalmente como um modelo de equilíbrio entre o rigor nas análises
técnicas e a previsibilidade institucional necessária para haver o investimento. O reconhecimento global, o diálogo com a
sociedade e a legitimidade dos critérios técnicos mostram que esses 10 anos são apenas o início de uma longa história de
desenvolvimento e inovação no Brasil.
WALTER COLLI é professor do Instituto de Química da USP. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Fevereiro de 2016.
A resposta ao zika
(CHRIS ELIAS AND TREVOR MUNDEL)
A DISSEMINAÇÃO do vírus zika nas Américas nos mostra que uma crise de saúde em qualquer lugar do mundo pode
rapidamente se tornar um desafio global. Este surto demanda uma resposta urgente, coordenada e colaborativa da
comunidade internacional para combater o vírus e sua disseminação.
A história nos lembra que nossa resposta também deve ser racional e solidária. Os primeiros anos da epidemia de
HIV/Aids demonstraram os perigos de deixar que o medo ditasse políticas públicas. Enquanto a população lida com
incertezas diante dessa nova ameaça, devemos nos guiar por fatos, evidências científicas e também pelas lições de outras
epidemias. O Brasil, que rapidamente detectou o zika e estabeleceu possíveis associações com a microcefalia, é um exemplo
do que sistemas de saúde podem fazer quando são bem equipados para a detecção, monitoramento e registro de doenças
infecciosas. A vigilância ágil garantiu a ação do Brasil e do mundo.
No entanto, como a crise do ebola em 2014-15 demonstrou, nem todos os países têm esses sistemas estabelecidos.
Por isso, é essencial fortalecer o monitoramento e notificação de casos em todos os lugares para que o mundo responda
rapidamente a potenciais pandemias. Outra lição que aprendemos com o ebola é que organizações internacionais precisam
agir de maneira rápida e articulada, como a OMS (Organização Mundial da Saúde), a Opas (Organização Pan-Americana da
Saúde) e o CDC (Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA) estão fazendo agora.
Ainda há muita coisa que não sabemos, como, por exemplo, a relação entre o vírus e a microcefalia. Embora o vírus
zika não constitua uma ameaça significativa para a maioria das pessoas, há evidências que indicam sérios riscos a gestantes
e a recém-nascidos, além de danos ao sistema nervoso de uma pequena parcela dos infectados. A OMS classificou o
aumento dos casos de microcefalia nas Américas como uma emergência internacional em saúde pública. Isso demanda um
aumento da vigilância em saúde no mundo todo para detectar os casos de zika e a identificação de microcefalia.
Em resposta à crise, o Brasil e outros países afetados têm trabalhado para reduzir as populações de mosquitos e
educar as pessoas sobre como se proteger. Isso inclui a adoção de novas ferramentas, como testes rápidos de diagnóstico e
formas mais efetivas de se evitar que o mosquito dissemine o vírus. Também vamos precisar de uma vacina, mas isso pode
levar alguns anos. Nós, da Fundação Bill & Melinda Gates, estamos comprometidos em assegurar que todos tenham a
oportunidade de ter uma vida saudável e produtiva, e portanto, apoiamos o desenvolvimento e o acesso a melhores
soluções de saúde, principalmente para os mais pobres.
Nós temos apoiado pesquisas epidemiológicas para identificar os prováveis padrões de disseminação do vírus zika e as
populações sob maior risco de infecção. Além disso, vários países, como Brasil, Indonésia e Vietnã, estão desenvolvendo
testes de campo com a bactéria Wolbachia, que ocorre naturalmente em mosquitos, para reduzir a transmissão de dengue e
possivelmente zika e outros flavivírus. Nossas discussões com parceiros e governos têm se focado em maneiras
responsáveis de acelerar e ampliar ações para o controle de mosquitos tendo como o alvo o zika.
A experiência com outras doenças transmitidas por mosquitos, como malária, dengue, febre amarela e chikungunya,
mostra que não podemos esperar que uma crise global apareça para fazer investimentos em vigilância em saúde e em
pesquisa e desenvolvimento em doenças emergentes e negligenciadas. O surto de zika nos oferece um importante alerta
sobre a necessidade de nos prepararmos agora para as futuras crises de amanhã.
CHRIS ELIAS e TREVOR MUNDEL são presidentes de desenvolvimento global e saúde global da Fundação Bill & Melinda Gates.
Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Fevereiro de 2016.
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Não existe uma pílula para cada problema da vida (MICHELLE MILLER)
Líder da equipe que elaborou o manual usado ao redor do mundo para diagnosticar transtornos neurológios (DSMIV), o psiquiatra americano Allen Frances questiona o que chama de "epidemia de TDAH"
O psiquiatra Allen Frances afirma que a natureza humana é
bastante estável, mas os sistemas de diagnósticos não são
QUALQUER mudança no Manual Diagnóstico e Estatístico de
Transtornos Mentais (DSM), referência mundial da Psiquiatria, pode
tirar milhões de pessoas do campo da normalidade. Consciente disso,
o psiquiatra americano Allen Frances, líder da equipe que elaborou a
redação da quarta e mais importante revisão da publicação, o DSMIV, recusou praticamente todas as sugestões de transtornos a serem
incluídos no manual. Mas com relação ao déficit de atenção e
hiperatividade (TDAH), achou pertinente afrouxar um pouco os
critérios para facilitar sua identificação entre as meninas.
Com as mudanças nos critérios do diagnóstico, em 1994,
Frances calculava que a incidência de casos fosse aumentar de forma
muito discreta, mantendo-se dentro dos 2% a 3% da população
infantil. Mas os ajustes na definição somaram-se a uma combinação
de fatores sociais e culturais que as garras oportunistas da indústria
farmacêutica não deixaram escapar. E o índice de diagnósticos do
transtorno disparou no mundo todo, chegando a quadruplicar nos
Estados Unidos. Frances não nega sua parcela de culpa. Por isso foi
incapaz de observar passivamente o fenômeno do hiperdiagnóstico do qual o TDAH é um bom exemplo, mas não o único.
Abandonou a tranquilidade da aposentadoria para sair em
defesa da normalidade. Lançou-se a um trabalho de conscientização
da necessidade de repensarmos os limites que separam o normal do
patológico. Limites que ficaram ainda menos nítidos com o
lançamento da quinta revisão do manual (DSM-5), em 2013, trazendo uma série de novos distúrbios e, no caso do TDAH,
critérios ainda mais frouxos e subjetivos.
Suas considerações e críticas sobre o atual sistema de diagnóstico e a influência
da indústria farmacêutica na formação de uma sociedade cada vez mais dependente
das pílulas estão no livro Saving Normal - ainda não encontrado no Brasil, mas com
lançamento previsto para março de 2016 pela Versal Editores.
Ele ressalta que, uma vez fechado um diagnóstico psiquiátrico - o que
lamentavelmente é feito, na maioria das vezes, em uma única e rápida consulta -, é
difícil livrar-se do estigma que ele traz: muda-se o futuro, mudam-se as expectativas do
paciente. E, salvo raras exceções, a informação fatalmente vem acompanhada de uma
receita médica, o que explica o aumento catastrófico na venda de psicotrópicos nos
últimos anos.
Ao criar a necessidade das pílulas, tira-se da pessoa o poder de acreditar na
própria capacidade de superação, ignorando que a resiliência sempre foi uma das
grandes virtudes da humanidade. "À medida que somos levados mais e mais em
direção à medicalização da normalidade, vamos perdendo contato com nossas
capacidades de autocura e esquecemos que a maioria dos problemas não é doença, e
que apenas raramente a melhor solução para eles está nas pílulas", escreve em seu
livro.
Não que Frances seja absolutamente contra a medicação. Pode fazer uma grande
diferença na vida das pessoas que realmente precisam, costuma dizer. Mas enfatiza
que esses casos são raros e que as diferenças que separam a normalidade do
Os idosos costumam fazer uso
transformo severo - seja qual for - são geralmente bastante evidentes. A maioria das
excessivo das benzodiazepinas,
pessoas que utilizam os psicotrópicos, crianças inclusive, está recorrendo à medicação
que causam confusão mental e
para enfrentar preocupações cotidianas e problemas sociais que apenas recentemente
problemas de memória
deixaram de ser normais.
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Em entrevista à Psique, o psiquiatra, que esteve à frente da elaboração do DSM-IV, critica as investidas bemsucedidas da indústria farmacêutica e os problemas do mau uso do manual de diagnósticos psiquiátricos, resultando em
uma explosão de diagnósticos e na inevitável medicalização dos problemas cotidianos.
Como a indústria farmacêutica estimula a venda de medicações psicotrópicas em países onde a propaganda
direta ao consumidor é proibida, como no Brasil?
Allen Frances: Não sei se isso vale para o Brasil, mas nos Estados Unidos a indústria ainda gasta uma fortuna com
marketing dirigido a psiquiatras, pediatras, clínicos gerais, além de pais e professores. E os problemas que criamos nos EUA
geralmente são rapidamente espalhados ao redor do mundo.
Em Saving Normal, com lançamento no Brasil previsto para março do ano que vem, Frances faz um apelo pela
busca da normalidade perdida: questiona o fato de estarmos transformando problemas sociais em distúrbios
psiquiátricos tratados com pílulas
Você acredita que a popularidade da teoria do "desequilíbrio químico", reforçando a falta de uma substância
no cérebro, que só pode ser "reposta" com medicação, afasta as pessoas de soluções que dependem mais de
suas próprias capacidades de cura?
Frances: A indústria farmacêutica gasta bilhões divulgando sua teoria do desequilíbrio químico e lançando uma pílula para
cada padrão de problema. Mas não há um orçamento para o marketing da resiliência humana.
Você acredita que o estilo de vida moderno é, de alguma forma, responsável pelo aumento nas taxas de
doenças mentais?
Frances: A vida sempre foi difícil e nós sempre respondemos às diferentes dificuldades com resiliência. A natureza humana
é bastante estável, mas os sistemas de diagnósticos não são. Pequenas mudanças em como distúrbios mentais são
definidos resultam em grandes mudanças nos índices - que na verdade não significam nada.
Sobre o DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), você já mencionou que "o livro como
foi escrito é diferente do livro como é interpretado". Esse mau uso do manual pode ser considerado como a
principal causa da inflação diagnóstica ou a expectativa dos pacientes também mudou e eles hoje pressionam
mais os médicos a prescrever psicotrópicos?
Frances: A indústria farmacêutica é a maior responsável pela inflação dos diagnósticos. Ela transforma doença em
marketing, vende problemas mentais e pressiona o consumo de pílulas até para situações que não respondem a
tratamentos fármacos. Os médicos com frequência prescrevem medicamentos rapidamente e displicentemente para tratar
problemas que eles não compreendem em pacientes que mal conhecem. E, sim, os pacientes realmente querem uma
solução rápida para tudo. Mas não existe uma pílula para cada problema da vida.
Há 25 anos, a indústria de tabaco estava na mesma posição que hoje está a indústria farmacêutica - exercia
grande influência sobre autoridades e ficou iludindo a sociedade durante décadas
O grupo etário que mais consome medicamentos psicotrópicos é o da terceira idade, certo? Poderia explicar o
que está por trás desse fato?
Frances: As pessoas dessa faixa etária fazem uso excessivo das benzodiazepinas (ansiolíticos normalmente usados para
ajudar no sono) que causam, entre outros problemas, quedas, confusão mental e problemas de memória. E muitos também
recebem antipsicóticos, que reduzem a expectativa de vida. Na maioria dos casos, as drogas que são receitadas como forma
de acalmar a agitação poderiam ser evitadas se mais tempo fosse dedicado a eles e com mais contato humano.
Gostaria de abordar o impacto do efeito placebo no tratamento psiquiátrico. Qual o papel da expectativa do
paciente na sua recuperação?
Frances: O placebo é a melhor medicação que já existiu, com o maior e mais favorável custo-benefício. É o que melhor
funciona em problemas mais leves. O paradoxo é que, enquanto a maioria das pessoas acredita que precisa de medicação
sem na verdade precisar, aqueles com problemas mais severos, que, de fato, se beneficiariam dos remédios, não são
tratados.
O índice de adolescentes e pré-adolescentes medicados com antidepressivos é muito alto. Esse tratamento é
seguro e eficaz nessa fase?
Frances: Na maioria das vezes eles não são eficazes na infância e adolescência e podem causar agitação e irritabilidade,
aumentando o risco de suicídio e violência.
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Que alternativa a esses tratamentos você recomendaria a adolescentes com alto nível de ansiedade?
Frances: A Psicoterapia está sendo muito pouco usada e pode ser muito eficaz. Exercício físico e envolvimento em esportes
também trazem ótimos resultados.
Muitas escolas exigem um diagnóstico psiquiátrico para
fornecer adaptações às necessidades das crianças com
dificuldade. Essa sistematização no lugar da diferenciação
contribui para o exagero dos diagnósticos?
Frances: É um fator importante, mas não a causa primária da
epidemia de falsos TDAH (transtorno de déficit de atenção e
hiperatividade). Ao invés de encarar problemas no sistema
educacional causados por salas de aula com muitos alunos e
pouca atividade física, a sociedade está rotulando indevidamente
crianças ativas e com frequência tratando-as com estimulantes. O
melhor preditor do diagnóstico de TDAH é o mês do aniversário: o
mais novo da sala tem uma chance muito maior de ser rotulado
que o mais velho. É ridículo tornar a imaturidade na infância uma
doença e medicá-la. Nos Estados Unidos, nós gastamos quase U$
10 bilhões ao ano com drogas para TDAH - recurso que seria
muito mais bem gasto se fosse investido em melhorias nas
escolas.
Os fabricantes dos estimulantes conhecem os efeitos de A indústria farmacêutica gasta bilhões divulgando sua
teoria do desequilíbrio químico e lançando uma pílula
longo prazo do uso da medicação na infância?
para cada padrão de problema. Mas não há um
Frances: Ninguém sabe os efeitos, em longo prazo, de mergulhar orçamento para o marketing da resiliência humana
cérebros ainda imaturos em estimulantes poderosos por vários anos. Sem querer e de forma irresponsável, estamos fazendo
uma experiência mundial descontrolada com as crianças, usando-as como ratos de laboratório sem seu consentimento e
sem que seus pais sejam devidamente informados antes de concordar. E como você disse, estimulantes são usados quase
como doces. Eu defendo uma avaliação lenta e muito cautelosa do TDAH e o uso do tratamento farmacológico apenas como
último recurso.
É comum a prescrição de estimulantes por clínicos gerais ou pediatras?
Frances: Nos Estados Unidos, 60% das drogas para tratar TDAH são prescritas por médicos de "cuidados primários", que
geralmente têm pouco tempo e pouco conhecimento em relação a transtornos psiquiátricos. Não fazem o acompanhamento
sistemático e são frequentemente influenciados pelos
representantes das marcas de medicamentos.
Os médicos com frequência prescrevem medicamentos
rapidamente e displicentemente para tratar problemas
que eles não compreendem em pacientes que mal
conhecem. E os pacientes realmente querem uma
solução rápida para tudo
De que forma o DSM -IV contribuiu para o aumento
dos diagnósticos de TDAH e qual era a real intenção
da sua equipe?
Frances: Afrouxamos um pouco os critérios para facilitar o
diagnóstico entre as meninas, que geralmente apresentam
mais problemas de desatenção sem a hiperatividade. Uma
pesquisa de campo muito cuidadosa previu o aumento de
cerca de 15% na quantidade de diagnósticos. Mas a
incidência quadriplicou, especialmente por causa do
Na avaliação de Frances, os grandes fabricantes de
marketing da indústria farmacêutica. Em 1997, três anos
medicamentos
são os maiores responsáveis pela inflação dos
após a publicação do DSM-IV, as companhias surgiram com
diagnósticos
novas drogas caras e patenteadas e coincidentemente
também ganharam o direito de fazer propaganda diretamente ao consumidor (nos Estados Unidos). Isso deu à indústria os
meios e métodos para vender o TDAH como doença, para que pudesse divulgar suas pílulas de estimulantes.
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PARA SABER MAIS
FEITO POR QUEM JÁ ESTEVE DO OUTRO LADO
Lançado em 2013 nos Estados Unidos, Saving Normal ("salvando o normal", em tradução livre) é o que o autor Allen
Frances define de uma revolta contra o descontrole dos diagnósticos psiquiátricos, o DSM-5, a indústria farmacêutica e a
medicalização da vida cotidiana. Não se trata de um desabafo qualquer. É feito por quem já esteve do outro lado - fez parte
da construção do sistema de diagnóstico, ao assumir a frente da redação do DSM-IV - e acompanhou de perto as investidas
da indústria para conquistar e até comprar médicos e enganar pacientes.
Um dos mais respeitados nomes da Psiquiatria no mundo todo, Frances, que também comandou o Departamento de
Psiquiatria da Universidade de Medicina de Duke, mostrou que não deve nada a ninguém ao expor alguns absurdos dos
bastidores da Medicina. Ao relatar as falhas do sistema de diagnóstico, que acabam favorecendo a ação da indústria em
fazer todos acreditar que estão doentes, ele mostra o que está por trás da explosão de diagnósticos de diversos transtornos
psiquiátricos.
Ainda antes da publicação da quinta revisão do DSM, ele sabia que a sociedade estava sob o risco de se expor ainda
mais à medicação desnecessária, pois já havia vivenciado essa experiência, que ele chama de "dolorosa". "Apesar dos
nossos esforços para evitar a exuberância de diagnósticos, o DSM-IV vem desde então sendo usado de forma errada,
estourando a bolha dos diagnósticos. Mesmo tendo sido modestos em nossos objetivos, meticulosamente obsessivos em
nossos métodos, e rigidamente conservadores com nosso produto, nós falhamos em prever e prevenir três novas falsas
epidemias de transtornos em crianças - autismo, déficit de atenção e hiperatividade e bipolaridade", narra em seu livro.
Como consequência desse descontrole, diz, as pessoas estão confiando, e dependendo de forma excessiva, em
antidepressivos, antipsicóticos, ansiolíticos e remédios para dormir. "Estamos nos tornando uma sociedade de viciados em
comprimidos. Um em cada cinco americanos consome pelo menos uma droga para problemas psiquiátricos", completa.
Saving Normal já foi traduzido para 12 idiomas e será lançado em português pela Versal Editores. A previsão de
lançamento é março do ano que vem.
Depois da publicação do DSM -5, em 2013, podemos dizer que as mudanças nos critérios de diagnóstico do
TDAH favoreceram o aumento ainda maior da incidência?
Frances: Os critérios foram afrouxados ainda mais, facilitando particularmente o diagnóstico indevido em adultos. Isso é
inacreditavelmente estúpido e leva ao abuso massivo de diagnóstico como um meio de se conseguirem drogas estimulantes
para uso recreativo ou aumento de performance.
Você defende que a prevalência real de
TDAH flutua entre 2% e 3%. Já que não
existe
comprovação
biológica
do
distúrbio, o que deveria ser levado em
consideração para se certificar de que a
criança pertence a esse pequeno grupo?
E para esses, a medicação é sempre
necessária?
Frances: Severidade,
cronicidade,
início
precoce, prejuízos, histórico familiar. Ainda
assim, apenas uma parte dos que se encaixam
nessa categoria severa e clássica pode se
beneficiar do estimulante. Para essas crianças
não existe uma regra geral sobre quanto
tempo deve ser mantida a medicação depende da severidade dos sintomas. Mas
deve-se testar a retirada do estimulante de
tempos em tempos.
Inúmeros problemas psiquiátricos podem piorar com
estimulantes, como ansiedade, psicose e problemas do sono
o
uso
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de
Que tipos de problemas psiquiátricos podem piorar com o uso de estimulantes?
Frances: Transtornos de humor, ansiedade, psicoses, problemas do sono e desordens relacionadas ao uso de substância.
Os antipsicóticos também estão ficando muito populares entre crianças e adultos com diferentes
diagnósticos. Existem estudos suficientes sobre a eficácia e segurança dessas drogas?
Frances: Antipsicóticos devem ser usados apenas em casos psiquiátricos seveseveros. Ao invés disso, eles são prescritos
com frequência e sem muito critério, sendo que, além de reduzir a expectativa de vida, podem causar aumento de peso e
diabetes.
O placebo é a melhor medicação que já existiu, com o maior e mais favorável custo-benefício. É o que melhor
funciona em problemas mais leves
Como podemos saber quando confiar nos dados de uma pesquisa relacionada a saúde mental e tratamento
farmacológico?
Frances: O melhor é ficar cético com relação aos dados de todas as pesquisas. A maioria não se confirma. Apenas aquelas
que atestam a eficácia dos medicamentos - as positivas - são publicadas. E os estudos promovidos pela indústria valem
menos do que nada.
Sobre o uso excessivo de psicotrópicos, você enxerga alguma mudança nesse cenário em curto prazo?
Frances: Há 25 anos, a indústria de tabaco estava na mesma posição que hoje está a indústria farmacêutica - exercia
grande influência sobre autoridades e ficou iludindo a sociedade durante décadas. Mas a consciência do público levou a
grandes e rápidas mudanças. Acredito que o mesmo pode acontecer em relação aos fármacos. Como disse Abraão Lincoln,
"você pode enganar todas as pessoas por algum tempo e algumas pessoas por muito tempo, mas não pode enganar todas
as pessoas por muito tempo".
Você está planejando o lançamento de seu próximo livro?
Frances: Sim. Será sobre a felicidade e seu lado sombrio.
MICHELLE MILLER é especialista em Neurociência Cognitiva e autora do blog http://neurocienciasesaude.blogspot.com.br.
Revista PSIQUE, Fevereiro de 2016.
CRISPR
(DRAUZIO VARELLA)
A GENÉTICA vive nova revolução, desta vez tão radical que seu alcance é imprevisível. Há 30 anos, foram descritas
em bactérias sequências repetitivas de DNA, no meio das quais existiam fragmentos de genes estranhos ao genoma
bacteriano. Esse tipo de configuração recebeu o nome de CRISPR. Em 2007, uma empresa fabricante de iogurtes identificou
nas bactérias usadas na fermentação do leite um sistema de defesa imunológica contra vírus predadores que envolvia
exatamente as sequências repetitivas CRISPR.
Em 2012, as pesquisadoras Jill Banfield, Jennifer Doudna e Emmanuelle Charpentier demonstraram que CRISPR é
capaz de orientar o corte (clivagem) de alvos específicos de qualquer gene. Para tanto, partiram de uma observação
surpreendente: bactérias conseguem "lembrar" dos vírus que as infectaram no passado, às custas da persistência de restos
do DNA viral incorporados no meio das sequências CRISPR do genoma bacteriano anteriormente descritas. Esses resíduos
genéticos arquivados na intimidade das sequências repetitivas funcionam como bancos de memória. Em caso de novo
ataque do mesmo agente, a bactéria sintetiza rapidamente moléculas-guia de RNA que localizam com extrema precisão
sequências específicas do DNA invasor, para que uma enzima (geralmente a nuclease Cas9) se desloque pelo interior da
célula, corte, inative os genes e impeça a replicação do vírus.
Em outras palavras: CRISPR é uma coleção de sequências capazes de indicar em que posição de um DNA intruso a
enzima Cas9 deve efetuar a clivagem para desativá-lo. A publicação de Banfield, Doudna e Charpentier foi o ponto de
partida para uma enxurrada de trabalhos científicos, bilhões de dólares investidos em companhias de biotecnologia e a
inclusão das três na lista das cem pessoas mais influentes do mundo da revista "Time". CRISPR foi considerado pela
"Science" o maior avanço científico de 2015. Um dia receberá o Nobel.
CRISPR/Cas9 é a ferramenta mais barata e simples para manipulação de genes que vão das bactérias às plantas e aos
animais. Tem sido comparada ao Ford T dos primórdios da indústria automobilística, que, pela simplicidade, custo e
facilidade de produção, revolucionou a sociedade. A técnica permite manipular qualquer gene de interesse. Basta acessar na
internet os bancos de dados que descrevem as sequências de bases do gene-alvo e encomendar on-line os dois
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componentes essenciais da CRISPR: o RNA-guia e a enzima "cortadora" Cas9. Em alguns dias, a ferramenta chegará pelo
correio.
A descoberta recente de técnicas que permitem inativar a enzima Cas9 criou a possibilidade de CRISPR localizar o gene
procurado sem cortá-lo ao meio. CRISPR com Cas9 ativa ou inativada é agora o método mais empregado para "desligar" ou
"ativar" a expressão de qualquer gene de interesse científico ou comercial. Essa tecnologia permitiu obter, com 97% de
eficácia, drosófilas com pigmentações esquisitas, mosquitos resistentes ao parasita da malária e fêmeas estéreis para
competir com as demais, porcos resistentes a viroses, trigo imune a fungos, tomates de vida longa e amendoins livres de
alérgenos, entre outras modificações genéticas.
Manipular sequências de DNA sem introduzir no organismo genes alienígenas mantém a tecnologia à margem do
debate apaixonado que atrasa os estudos com os transgênicos. Nos Estados Unidos, Feng Zhang ligou e desligou um por
um os 20 mil genes humanos presentes em células de melanoma maligno, com o objetivo de elucidar o mecanismo de
resistência do tumor a uma droga antineoplásica. Estão em teste novos tratamentos para câncer, infecções e outras
doenças. A possibilidade de silenciar genes causadores de enfermidades genéticas que afligem a humanidade há milênios
nunca esteve tão próxima.
As pesquisas com embriões inviáveis de uma clínica de fertilização "in vitro", realizada na China, motivaram a
convocação de uma conferência internacional em dezembro passado para discutir os limites éticos das modificações
genéticas. Um dos participantes comentou: "Era fácil dizer o que não deveríamos fazer enquanto não podíamos". Tem toda
razão. E agora que a tecnologia nos permite alterar a expressão de qualquer gene?
DRAUZIO VARELLA é médico cancerologista. Por 20 anos, dirigiu o serviço de Imunologia do Hospital do Câncer. Foi um dos
pioneiros no tratamento da Aids no Brasil e do trabalho em presídios, ao qual se dedica ainda hoje. É autor do livro 'Estação
Carandiru' (Companhia das Letras) e articulista de diversos jornais, além de ter seu próprio anal de vídeos no Youtube. Jornal
FOLHA DE SÃO PAULO, Fevereiro de 2016.
Bomba-relógio
(DRAUZIO VARELLA)
A MEDICINA de hoje custa os olhos da cara. Na contramão de outros ramos da atividade econômica, na assistência
médica a produção em escala e a incorporação de novas tecnologias encarecem o produto final. Até os anos 1960, os
medicamentos eram relativamente baratos e dispúnhamos de poucos recursos laboratoriais. Os exames de imagem ficavam
praticamente restritos ao eletrocardiograma e ao raio-X simples ou contrastado.
Nos últimos 50 anos, surgiram exames que nos permitem analisar detalhes da fisiopatologia humana e das
características dos germes que nos atacam. Ao mesmo tempo, a automatização e a informática possibilitaram acesso aos
resultados das análises de sangue e de outros líquidos corporais em algumas horas. Ultrassons, tomografias
computadorizadas, ressonâncias magnéticas, PET-CTs, cintilografias, endoscopias, cateterismos e outras tecnologias que
fornecem imagens anatômicas nítidas e dão ideia do funcionamento dos órgãos internos revolucionaram nossa capacidade
de fazer diagnósticos e avaliar a eficácia dos tratamentos.
No mesmo período, a indústria farmacêutica soube aplicar os conhecimentos gerados na academia para desenvolver
drogas e agentes biológicos de toxicidade baixa, capazes de curar infecções graves e controlar doenças crônicas por muitos
anos. Ao lado desses avanços técnicos que tiveram enorme impacto na qualidade de vida e longevidade da população estão
os custos exorbitantes trazidos por eles.
Os 150 milhões de brasileiros que dependem exclusivamente do SUS convivem com a falta de recursos e os problemas
crônicos de gerenciamento do sistema público. Os 50 milhões que pagam planos de saúde queixam-se das mensalidades e
dos entraves burocráticos para marcar consultas, exames e internações. A pobreza do SUS todos conhecem. O que poucos
sabem é que a saúde suplementar trabalha com margens de lucro perigosas. Contabilizando os planos mais lucrativos e os
deficitários, as operadoras têm, em média, 2% a 3% de lucratividade.
No Brasil, a faixa da população que mais cresce é a que está acima dos 60 anos -justamente a que demanda os
cuidados médicos mais dispendiosos, que o sistema público não tem condições de suportar e as operadoras não conseguem
transferir para seus usuários sem levá-los à inadimplência. Não é necessário pós-graduação na Getúlio Vargas para
constatar que a persistirem os custos crescentes, nosso sistema de saúde ficará inviável: o SUS em crise permanente por
falta de verbas; a saúde suplementar, pelo risco de falência.
Não existe saída, senão deslocar o foco das políticas públicas da doença para a prevenção. É insano esperar que as
pessoas adoeçam para então nos preocuparmos com elas. Se 52% dos brasileiros estão com excesso de peso, metade das
mulheres e homens com mais de 50 anos sofre de hipertensão, o diabetes se acha instalado em mais de 10% dos adultos e
a dependência do fumo corrói em silêncio o organismo de quase 20 milhões, haveria alternativa?
A responsabilidade é de todos, inclusive dos médicos. Saem de nossos receituários as requisições de exames
desnecessários, medicamentos caros e condutas que contradizem evidências científicas.
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As faculdades de medicina têm que ensinar noções de economia e de gerenciamento. É um absurdo nababesco
prescrevermos remédios e exames sem ter ideia de quanto eles custam. O sistema de saúde brasileiro vai quebrar se não
criarmos estímulos para que cada cidadão assuma a responsabilidade de cuidar do próprio corpo, conscientizarmos os
médicos e a população de que exames desnecessários consomem recursos e trazem riscos, exigirmos que hospitais e
centros de atendimento apresentem indicadores que permitam avaliar a qualidade e o custo/benefício dos serviços
prestados, negociarmos com a indústria os preços abusivos de algumas drogas, próteses e equipamentos, e estabelecermos
critérios rígidos para impedir que a judicialização errática de hoje se perpetue em benefício dos que podem contratar
advogados.
Uma população sedentária que fuma, engorda e envelhece é uma bomba-relógio para um sistema de saúde perdulário
e subfinanciado como o nosso.
DRAUZIO VARELLA é médico cancerologista. Por 20 anos, dirigiu o serviço de Imunologia do Hospital do Câncer. Foi um dos
pioneiros no tratamento da Aids no Brasil e do trabalho em presídios, ao qual se dedica ainda hoje. É autor do livro 'Estação
Carandiru' (Companhia das Letras) e articulista de diversos jornais, além de ter seu próprio anal de vídeos no Youtube. Jornal
FOLHA DE SÃO PAULO, Março de 2016.
Armadilhas do amor patológico (ANDREA LORENA DA COSTA)
Quando os cuidados e a atenção dispensados ao parceiro se tornam exagerados e excessivos é o momento de ligar
o sinal amarelo e procurar ajuda profissional
Cuidar e dar atenção ao parceiro são atitudes
completamente normais e esperadas num
relacionamento amoroso. Quando esses
cuidados se tornam excessivos, repetitivos e
sem controle temos o quadro do que
chamamos de amor patológico (AP) (Sophia
et al., 2007).
LOGO, o amor patológico é caracterizado
pelos cuidados excessivos ao parceiro, em que
o indivíduo passa a viver completamente em
função desse parceiro. Vale ressaltar que o
amor patológico acomete tanto homens
quanto mulheres, e apresenta-se da mesma
maneira. Para identificar o AP, existem seis
critérios diagnósticos:
1- Sinais e sintomas de abstinência
ocorrem quando o parceiro distancia-se física
ou emocionalmente, ou ainda perante
ameaças de abandono ou rompimento. Tais
sintomas
podem
ser:
insônia,
dores
musculares, taquicardia, alteração do apetite;
2- O comportamento de cuidar do
parceiro ocorre em maior quantidade do que a
pessoa gostaria, ou seja, a pessoa
frequentemente prefere manifestar mais atenção e cuidados com o parceiro do que havia planejado;
3- Atitudes para reduzir ou controlar o comportamento são malsucedidas. Normalmente, a pessoa com amor patológico
queixa-se de estar tentando, sem obter sucesso, interromper o comportamento de dar atenção e cuidados excessivos ao
parceiro;
Pessoas que apresentam o quadro de amor patológico demonstram baixa autoestima. Segundo Bowlby,
os tipos de apego são desenvolvidos na infância
4- Despende-se muito tempo para controlar as atividades do parceiro. Muita dedicação e energia são destinadas a
pensamentos e comportamentos numa tentativa de controlar o parceiro;
5- Abandono de interesses e atividades anteriormente valorizados: a pessoa vive em função do parceiro, deixando de
lado família, amigos, filhos, vida profissional e lazer em prol de passar mais tempo com o parceiro;
6- O quadro é mantido, a despeito dos problemas familiares e sociais.
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A insônia é um dos sintomas mais marcantes identificados na pessoa doente quando o parceiro se afasta física ou
emocionalmente
Ágape
A palavra Ágape significa amor e tem origem grega. Pode ser considerado o amor que se
doa, aquele incondicional, que se entrega. A expressão foi utilizada de diferentes formas
entre os gregos, em passagens da Bíblia e em cartas. Filósofos da Grécia Antiga, como
Platão, também usaram muito a palavra Ágape, com o significado, por exemplo, de amor à
esposa, esposo, ou amor aos filhos, à família ou, ainda, ao trabalho.
PARA SABER MAIS
O AMOR PATOLÓGICO NO CINEMA
O tema amor patológico é tão atraente para estudos, pesquisas e pessoas, em geral, que o cinema não se cansa de criar
produções sobre o assunto. Tramas e dramas psicológicos são frequentemente levados à tela, mostrando a face mais
obscura da mente humana, por meio de roteiros emocionantes e relacionamentos doentios. Um dos filmes mais famosos
com esse perfil obsessivo é Atração Fatal (1987), de Adrian Lyne. Trata-se de uma história que discorre sobre o amor
patológico em um nível bem exagerado, mas que dá uma nítida demonstração de como funciona o amor desmedido, que se
caracteriza muito mais por ser um vício do que propriamente um sentimento. Essa obsessão, presente nos filmes, trata de
como muitas pessoas chegam à loucura e ficam cegas, passando a perseguir outra pessoa e a cometer atos de violência. O
filme, estrelado por Michael Douglas, Glenn Close e Anne Archer, conta a história de um advogado que aproveita o fato de
sua mulher estar viajando para ter um rápido relacionamento com uma executiva, que demonstra ser totalmente
desequilibrada emocionalmente, inclusive perigosa, e que resolve fazer parte da vida do amante de qualquer maneira.
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Pessoas que apresentam o
quadro de AP demonstram baixa
autoestima,
também
mostram
características importantes do tipo de
apego ansioso-ambivalente e estilo de
amor Mania e Ágape. De acordo com
Bowlby, os tipos de apego são
desenvolvidos na infância. São eles:
apego seguro - os pais/cuidadores
eram disponíveis na infância e
passavam segurança e confiança para
a criança; rejeitador - em situações
semelhantes, ora os pais/ cuidadores
estavam
disponíveis,
ora
não
estavam, deixando a criança mais
propensa à insegurança; ansiosoambivalente - os pais/cuidadores
normalmente
não
estavam
disponíveis, gerando sentimentos de
ansiedade
de
separação
e
insegurança. Alguns autores afirmam
que o tipo de apego desenvolvido na
infância é preditor dos tipos de apego
desenvolvidos
na
vida
adulta.
Portanto, os adultos caracterizados
pelo
apego
ansioso-ambivalente
teriam mais medo do abandono. Um
exemplo de um paciente: "Não
consigo suportar as viagens do meu
Pessoas que apresentam o quadro de AP podem ter tido o tipo de apego chamado marido... são sempre muito sofridas
ansioso-ambivalente, no qual os pais não estiveram disponíveis, gerando
para mim, fico achando que ele não
insegurança
vai voltar mais, que sempre será o
último adeus e que nunca mais vamos nos ver. Daí, fico ligando o tempo inteiro para saber se ele está com saudade e
pensando em mim, ele reclama, diz que eu sou louca e o sufoco, mas só de ouvir a sua voz já me sinto mais tranquila...".
O ciúme patológico é caracterizado por pensamentos, sentimentos e comportamentos voltados para o medo
da traição. Nesse contexto, é importante diferenciar o ciúme patológico do tipo delirante e excessivo
Amor demais
MADA é um programa de recuperação para mulheres que buscam aprender a se relacionar de forma saudável consigo
mesma e com os outros. Geralmente chegam com histórico de relacionamentos destrutivos. O grupo foi criado sob a
influência do livro Mulheres que Amam Demais, de 1985, da autora Robin Norwood, Ed. ARX. A psicóloga e terapeuta
familiar escreveu a obra baseada em sua própria experiência e na experiência de centenas de mulheres envolvidas com
dependentes químicos. Ela percebeu um padrão de comportamento comum em todas elas e as denominou de "mulheres que
amam demais". No final do livro ela sugere como abrir grupos para tratar da doença de amar e sofrer demais.
Marcas de personalidade
Com relação às marcas de personalidade, os indivíduos são caracterizados por alta impulsividade. Essa impulsividade
pode ser exemplificada através da vinheta a seguir: "...Doutora... eu tento várias vezes não ligar para ela, tento segurar
minha vontade, mas é quase impossível, acabo ligando umas dez mil vezes, pergunto o que ela quer jantar, se está
precisando de alguma coisa ou se quer que eu a busque no trabalho!". Esse é um traço característico do amor patológico e
um relato comum em consultório. A percepção do problema é um passo importante, pois há casos em que o parceiro nem
reconhece o efeito da patologia na relação.
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PARA SABER MAIS
ESTILO DE AMOR
Os estilos de amor classificam a forma como a pessoa ama. Algumas se apaixonam ou se importam mais com as
características físicas, outras demoram mais para se apaixonar. Essas características ajudam a entender as necessidades e
anseios num relacionamento amoroso.
ESTILOS
CARACTERÍSTICAS
Eros
sente atração física imediata pelo parceiro; não é possessivo; é seguro; não teme se entregar ao amor
Ludus
amor vivido como um jogo momentâneo e que ocorre com vários parceiros; ênfase na sedução e na
liberdade sexual
Estorge
amor nasce de uma amizade e leva muito tempo para acontecer; baseado em interesses e pensamentos
em comum
Ágape
Eros+Estorge
preocupação em ajudar o parceiro a resolver seus problemas; ausência de egoísmo; incondicional;
religiosos
Pragma
antes de se envolver, examina os pretendentes para verificar se atendem às expectativas; shopping list
Ludus+Estorge love
Mania
Eros+Ludus
amor vivenciado como emoção obsessiva e que domina o indivíduo, que se sente forçado a atrair
continuamente a atenção do parceiro; ciúme e possessividade
O ciumento excessivo tem, basicamente, medo da infidelidade. Durante o curso do relacionamento,
se permite flertar e até se relacionar com outros parceiros. mas seu companheiro, alvo do ciúme, em
momento algum pode ter esse tipo de conduta
Codependência
O amor patológico é um quadro que se diferencia da codependência. Esta é mais bem
compreendida como a tendência do parceiro a se focar no dependente químico, em que o
codependente minimiza os problemas, tenta controlar e proteger e ainda acaba assumindo as
responsabilidades e as consequências do comportamento do dependente químico. Nesse tipo de
relação, o codependente tenta reduzir o uso de drogas por parte do dependente químico,
porém, na maioria dos casos, o efeito é completamente contrário.
Existem dados comparativos para melhor entendimento: Semelhanças - fixação e cuidados
destinados a um parceiro distante e/ou problemático; Diferenças - codependência é apresentada
por esposa, filhos, marido e namorados, ou seja, parceiros dependentes químicos. AP acontece
somente no relacionamento amoroso, independentemente se o parceiro for dependente químico
ou não.
Ciúme patológico
O ciúme patológico é caracterizado por pensamentos, sentimentos e comportamentos
voltados para o medo da traição. Nesse contexto, é importante diferenciar o ciúme patológico
do tipo delirante e excessivo. No ciúme delirante, a pessoa tem certeza absoluta de que está
Às vezes, o quadro
sendo traída, é uma ideia irremovível, uma crença incontestável.
obsessivo chega a um
Por outro lado, o ciúme excessivo é caracterizado por sentimento de culpa e habilidade de
criticar a situação. São respostas impulsivas diante de uma ameaça de traição. Logo, o ciumento estágio tão intenso que a
pessoa luta contra, mas
se engaja em comportamentos para tentar achar qualquer coisa que comprove a traição, e
não consegue deixar de
mesmo quando não encontra, não fica satisfeito. Os pensamentos ficam tomados por essa ideia telefonar seguidamente
da infidelidade, assim como os sentimentos, associados ainda a tristeza e raiva. Quando o
para o parceiro
ciumento é confrontado, ou quando evidências mostram que sua suspeita era infundada, há um
arrependimento. Contudo, tal arrependimento não quer dizer que da próxima vez que houver desconfiança o ciumento
conseguirá se controlar.
Pessoas com ciúme excessivo também são muito impulsivas, tendem a agir sem pensar. A maioria apresenta o tipo de
apego ansioso-ambivalente e estilo de amor Mania. Ainda apresentam sintomas de depressão e ansiedade comumente
associados.
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Teoria do apego
O psicólogo, psiquiatra e psicanalista britânico Edward John Mostyn Bowlby (19071990) se notabilizou pelo interesse no desenvolvimento infantil e por seu trabalho
pioneiro em relação à teoria do apego. Seu estudo a respeito de crianças delinquentes
e sem afeto e os efeitos do cuidado institucionalizado, elaborado em 1949, fizeram
com que fosse contratado para escrever um relatório sobre saúde mental de crianças
de rua na Europa pós-guerra para a Organização Mundial da Saúde.
Em alguns casos, tanto para o tratamento do amor patológico quanto para o tratamento de ciúme excessivo,
hánecessidade do acompanhamento psiquiátrico e uso de medicação para os transtornos ansiosos
O ciumento excessivo tem, basicamente, medo
de ser traído. Durante o curso do relacionamento,
se permite flertar e até se relacionar com outros
parceiros (relacionamentos extraconjugais). No
entanto, o seu parceiro alvo do ciúme em momento
algum pode ter esse tipo de conduta. A pessoa com
amor patológico tem medo de ser abandonada, o
que faz com que muitas vezes permaneça no
relacionamento apesar dos prejuízos e insatisfação.
Tratamento
No tratamento do AP, o mais indicado é a
psicoterapia. Nessa modalidade, o indivíduo vai
trabalhar questões como a vinculação, autoestima,
insegurança, sintomas depressivos e ansiosos, caso
existam. Irá desenvolver formas mais saudáveis de
amar e de se relacionar com o parceiro romântico.
Em alguns casos, há a necessidade do
acompanhamento psiquiátrico e uso de medicação
para o tratamento dos transtornos ansiosos e
depressivos, os quais podem estar associados aos A codependência se caracteriza pela tendência do parceiro a se focar
no dependente químico, em que o codependente minimiza os
quadros de AP.
Assim, fica o alerta. Amar é divino, mas amar problemas, tentando protegê-lo
demais pode se transformar em doença e esta precisa ser tratada com atenção e cuidado.
REFERÊNCIAS
Sophia, E. C.; Tavares H.; Zilberman , M. L. Pathological love: is it a new psychiatric disorder? Revista Brasileira de
Psiquiatria, v. 29, n. 1, p. 55-62, 2007.
Sophia, E. C. et al. Pathological Love: impulsivity, personality, and romantic relationship. CNS Spectrums, v. 14, p. 268274, 2009.
LEE, J. A. A typology of styles of loving. Personality and Social Psychology Bulletin, n. 3, p. 173-82, 1977.
COSTA, A. L. et al. Pathological jealousy: romantic relationship characteristics, emotional and personality aspects, and
social adjustment. Journal of Affective Disorders, p. 38-44, 2015.
Marazziti, D. Normal and obsessional jealousy: a study of a population adults. European Psychiatry, n. 18, p. 106-111,
2003.
ANDREA LORENA DA COSTA é psicóloga, doutoranda e mestre pela FMUSP, especialista em Dependência Química pela Unidade
de Álcool e Drogas (Uniad) da Unifesp e especialista em Terapia Comportamental-Cognitivo pelo Ambulatório de Ansiedade (ProAmban) do Instituto de Psiquiatria do HC-FMUSP. Colaboradora dos setores de pesquisa e tratamento do amor patológico e ciúme
excessivo do Ambulatório Integrado dos Transtornos do Impulso (Pro-Amiti) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da
Faculdade de Medicina da USP. Revista PSIQUE, Março de 2016.
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A difícil escolha do melhor hospital (CRISTIANE SEGATTO)
Até quando o Ministério da Saúde vai negar aos brasileiros o direito à informação sobre os indicadores de qualidade das
instituições de saúde?
NO INÍCIO de cada semana, tenho uma única certeza: até o final dela, algum leitor ou colega pedirá a indicação de
um bom médico ou de um bom hospital. Não me surpreendo quando vários pedidos surgem no mesmo dia. Acontece com
todo jornalista da área de saúde.
Tento ajudar da melhor maneira possível, mas lamento não poder me guiar por parâmetros objetivos. A escolha de
médicos sempre será subjetiva, mas é inadmissível que a seleção de hospitais também seja. Até quando o Ministério da
Saúde vai negar aos brasileiros o direito à informação sobre os indicadores de segurança e desempenho dos hospitais?
Podemos escolher hotéis e restaurantes a partir de critérios técnicos, mas somos impedidos de comparar as diferentes
instituições de saúde.
Qual é o índice de infecção do hospital A? E as taxas de complicação do B? Qual é a sobrevida de quem faz uma
cirurgia cardíaca ou um transplante aqui ou ali? Esses dados existem - pelo menos no grupo de hospitais privados que
passam por longos processos de avaliação internacional para receber selos de qualidade. As informações seguem guardadas
a sete chaves. Ainda que um hospital divulgue um ou outro parâmetro (em geral, o mais favorável a ele), o cliente não pode
comparar as diferentes instituições.
Meu sonho de consumo é um ranking. Uma ferramenta que me permita escolher o melhor hospital a partir de critérios
que realmente façam diferença quando o assunto é saúde. Enquanto essas informações não se tornarem públicas, os
pacientes continuarão a escolher hospital da forma mais idiota que existe: pela decisão (muitas vezes, mal informada) das
celebridades, pelo piso de mármore e pela decoração elegante.
Saúde é o mais precioso dos bens. Não pode
ser delegada a qualquer um. Há coisas que os
hospitais não contam, como revelamos nesta
reportagem de capa e nesta outra coluna. Os
brasileiros precisam acordar para isso e exigir o
respeito ao seu poder de decisão. “De forma
geral, os pacientes ainda são muito passivos”, diz
Antonio Lira, superintendente técnico-hospitalar
do Sírio-Libanês, em São Paulo. “Precisamos
educar a população para que ela nos vigie mais e
nos ajude a melhorar aquilo que não vai bem.”
Não sonho com algo impossível. Nos Estados
Unidos, o governo criou um site para ajudar a
população a avaliar os indicadores de segurança e
qualidade de 3.300 hospitais. O cidadão seleciona
hospitais de interesse em determinada região e o
sistema fornece gráficos com a comparação das
instituições com base em indicadores como
“complicações
cirúrgicas”,
“óbitos”,
“reinternações” e “infecção hospitalar”.
Enquanto as autoridades brasileiras não
atendem a essa necessidade, cabe aos hospitais
levar a sério o discurso da transparência. O SírioLibanês é um dos que passaram a divulgar alguns
indicadores importantes, mesmo quando eles são
desfavoráveis à instituição. Ao acessar o site, o
cliente pode ver o desempenho do hospital em
relação a metas internas de qualidade e em relação aos índices recomendados internacionalmente. Fica sabendo, por
exemplo, que o índice de infecção hospitalar piorou ligeiramente no ano passado em relação a 2013.
“Não dá para brincar de ser transparente e mostrar só o que é favorável à instituição”, afirma Lira. Segundo ele, os
fatores que levaram ao aumento dos casos de infecção hospitalar estão sendo investigados. “Talvez isso tenha ocorrido
porque recebemos mais pacientes já infectados com bactérias resistentes aos medicamentos”. Se um hospital disser que
tem índice zero de infecção ou de erros cirúrgicos ou de medicação, fuja dele correndo. É mentira - ou a instituição não está
registrando e investigando as ocorrências.
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Por mais zeloso que um hospital seja, erros acontecem. Um paciente do Sírio-Libanês procurou a instituição para fazer
um checkup. Um tumor inicial no rim foi descoberto e a cirurgia, agendada. Lira conta que todo o ritual de cuidados
preconizados pelo hospital para garantir uma cirurgia segura foi realizado. Quando abriu o paciente e olhou o rim, um
cirurgião dos mais experientes não observou lesão alguma. Pediu para ver a imagem do exame e, surpreso, notou que o
tumor era no outro rim – o esquerdo.
O que deu errado? O cirurgião havia se guiado pelo laudo do radiologista (e não pela imagem) para fazer o corte. Só
que o laudo estava errado. Por que o radiologista errou? Mais um caso de falha induzida pela alta tecnologia... O software
sofisticado permitia ao radiologista rodar a imagem do exame na tela para observar o órgão em detalhes antes de escrever
o laudo. O radiologista rodou a imagem e saiu da sala. Quando voltou, esqueceu que havia feito a inversão e escreveu o
laudo como se o tumor fosse no rim direito – exatamente como o enxergava na tela do computador. Um pequeno deslize
que expôs o paciente a um risco desnecessário e o hospital, a um enorme constrangimento.
O resultado: o corte foi fechado e o paciente voltou para o quarto. A equipe, orientada por Lira, explicou a falha ao
cliente e assumiu o erro. O caso levou à mudança do software e à adoção de uma dupla conferência da imagem e do laudo
antes das cirurgias. Um mês depois, a operação no rim certo foi feita no próprio hospital. O paciente se recuperou e, a
convite de Lira, contou sua história publicamente num congresso de tecnologia e cuidados hospitalares.
“Precisamos falar sobre nossos erros para nunca esquecermos que somos falíveis”, diz Lira. “A questão não é tentar ser
infalível. Todo mundo erra. A questão é como devemos agir depois de uma falha”. Ouvir isso de um médico que ocupa um
alto cargo na gestão de um dos maiores hospitais privados do país é sinal de uma louvável mudança cultural. Muito mais
ainda precisa acontecer nas instituições de saúde para que a transparência deixe de ser apenas um discurso conveniente.
CRISTIANE SEGATTO é Repórter especial, faz parte da equipe de ÉPOCA desde o lançamento da revista, em 1998. Escreve
sobre medicina há 17 anos e ganhou mais de 10 prêmios nacionais e internacionais de jornalismo. Revista ÉPOCA, Janeiro de
2015.
“Intercorrência é o eufemismo que os médicos usam para não assumir erros”
(CRISTIANE SEGATTO)
A luta do presidente da Sociedade de Anestesiologia do Estado de São Paulo para acabar com o silêncio em torno
das cirurgias inseguras
Há duas semanas, o vice-presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, fez uma declaração assustadora durante um
evento sobre segurança do paciente na Califórnia. “O sistema de saúde americano mata mais gente de eventos adversos a
cada ano do que o câncer de mama, o de próstata e o de pulmão”, afirmou. Eventos adversos são descuidos, muitas vezes
fatais, ocorridos em clínicas e hospitais. É aquilo que antigamente era chamado de “erro médico”.
O conceito foi ampliado para englobar todo tipo de dano à saúde ocorrido em instituições pagas para cuidar dela. Os
erros de diagnóstico ou de medicação, o uso de material inadequado, a falta de segurança em cirurgias e outros
procedimentos são alguns dos problemas que provocam 400 mil óbitos por ano nos Estados Unidos.
O Brasil, além de não dispor de bons registros de eventos adversos, convive com o silêncio que favorece a omissão.
Falar abertamente sobre erros ocorridos em hospitais (leia a reportagem na sequência desta) é um tabu entre os
profissionais de saúde. Uma das vozes dissonantes é a do médico Enis Donizetti Silva, presidente da Sociedade de
Anestesiologia do Estado de São Paulo (Saesp). Há 15 anos, Silva coordena os anestesistas do Hospital Sírio-Libanês. Em
2009, coube a ele o desafio de manter o vice-presidente José Alencar (1931-2011) anestesiado durante 22 horas em uma
das mais complexas cirurgias às quais ele foi submetido durante a longa batalha contra o câncer.
À frente da Saesp, Silva está empenhado em fazer um mapeamento dos eventos adversos ocorridos nos hospitais
públicos e privados paulistas e de outros Estados. Para isso, convidou os 3,6 mil associados da entidade e anestesistas de
outras regiões do país a registrar os casos anonimamente num banco de dados. Silva também prepara o lançamento,
previsto para agosto, da Fundação de Segurança para o Paciente. Nesta entrevista, ele conta o que os profissionais e
instituições de saúde não costumam assumir.
ÉPOCA - Os hospitais privados são mais seguros que os públicos?
Enis Donizetti Silva - Não tenho nenhuma dúvida de que a segurança do paciente está em risco tanto nos hospitais
públicos quanto nos privados. Não sei onde está pior. Enquanto as pessoas não reconhecerem a existência desse problema,
vamos continuar no jogo de cena de sempre. Precisamos criar uma consciência coletiva. Não podemos fingir que está tudo
bem e ficar esperando que novas tragédias aconteçam. As sociedades de especialidades médicas se esconderam durante
anos e anos. É hora de mudar.
ÉPOCA - O paciente não dispõe de nenhum recurso para saber se um hospital é mais ou menos preocupado
em garantir a segurança dos procedimentos. Qual é a realidade que os anestesistas conhecem?
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Silva - Muitos deles não dispõem dos instrumentos necessários para cuidar do doente com segurança. O Conselho Federal
de Medicina e a Sociedade Brasileira de Anestesiologia estabeleceram critérios mínimos de monitorização que deveriam ser
seguidos em todo o país. Se você deitar numa mesa de clínica ou hospital para ser anestesiada (mesmo que seja uma
sedação leve), a sala precisa ter um cardioscópio (aparelho que permite a observação eletrocardiográfica contínua durante
uma operação), um oxímetro de pulso e um aparelho de pressão. Se for anestesia geral, é necessário também um aparelho
chamado de capnógrafo. Ele fornece informações sobre os padrões de respiração e a eliminação de gás carbônico.
ÉPOCA - Os hospitais não seguem essa norma?
Silva - Fizemos uma enquete informal com membros da diretoria e da comissão científica da Saesp. Por alto, detectamos
que mais de 30% dos hospitais onde eles trabalham ou que eles conhecem não têm requisitos mínimos de segurança. Isso
ocorre tanto em hospitais públicos quanto nos privados. É um absurdo. Estou falando de um estado onde a medicina é
desenvolvida e de um grupo mais próximo da elite. Imagine o que vamos encontrar se pudermos pesquisar o que acontece
em hospitais pequenos e em clínicas.
ÉPOCA - Como o paciente pode se proteger?
Silva - As pessoas precisam se informar. Os pacientes são muito passivos. Eles precisam saber que têm direito a uma
consulta pré-anestésica. Não é consulta feita no corredor, quando o paciente já está na maca a caminho da sala de cirurgia.
O anestesista encontra o paciente na maca e pergunta se ele está de jejum ou se tem alguma alergia. Isso não basta. Em
vários hospitais em São Paulo, mesmo no circuito da Avenida Paulista, o paciente entra no centro cirúrgico sem ter sido
visto pelo profissional responsável pela anestesia.
ÉPOCA - Não basta o paciente preencher aquele questionário antes da cirurgia?
Silva - De jeito nenhum. Isso aconteceu com a minha mulher na Avenida Paulista. Não foi no interior do Piauí. Mandaram o
formulário de consentimento informado para ela assinar no quarto. Perguntei pelo anestesista e deram aquela enrolada.
Informei que ela era mulher do presidente da Sociedade de Anestesiologia do Estado de São Paulo e disse: “Pede para o
anestesista dar uma olhadinha nela aqui no quarto antes da cirurgia, por favor?”.
ÉPOCA - Isso é imprudência, imperícia ou negligência?
Silva - Para mim, é negligência. Não tenho dúvida. O paciente precisa conhecer todos os riscos que ele pode enfrentar ao
entrar num hospital. O meu papel como presidente da sociedade é decodificar a linguagem médica e fazer com que ela
chegue ao maior número possível de pessoas. A saúde suplementar tem a obrigação de suprir informação. O governo tem o
dever de fazer isso. O Ministério da Saúde não pode pegar 7% dos milhões que ele gasta por ano com comunicação e falar
sobre segurança do paciente? Não pode colocar um alerta claro nos maços de cigarro do tipo: “Cuidado, podem operar a
sua perna errada”. Todo mundo já sabe que cigarro dá câncer. Por que não usar os maços para colocar outras informações
de saúde? Há mil formas de fazer isso. Falta disposição para assumir o problema. Se o registro dos danos causados ao
paciente não é exigido, não temos a informação. Se não temos a informação, parece que o problema não existe. Fica tudo
camuflado.
ÉPOCA - O governo americano publicou os indicadores de segurança e de desempenho de milhares de
instituições. A população entra num site e escolhe o melhor hospital a partir de critérios objetivos. Qual é a
chance de termos uma medida semelhante no Brasil?
Silva - Se a sociedade civil trabalhar para isso, ela consegue. O legislador pode até criar uma obrigação, mas ninguém vai
cumprir. O consumidor que percebe que o hospital vende gato por lebre pode exigir a mudança. A pessoa entra num
hospital privado achando que vai ser bem tratado e operam a perna errada. Ou dão Novalgina apesar dele ter avisado que
era alérgico. Se o consumidor ficar consciente de que entrar num hospital é hoje algo muito inseguro, ele vai exigir
garantias antes do procedimento. Vai perguntar ao anestesista: “O sr. vai mesmo ficar ao meu lado o tempo todo ou vai
ficar em três salas de cirurgia ao mesmo tempo?”.
ÉPOCA - O sr. acredita que os hospitais podem reagir de forma positiva à pressão dos clientes?
Silva - Se o consumidor tiver consciência desses direitos e passar a exigir o cumprimento deles, o mercado responde. O
mercado é capitalista. Antigamente, só havia carro ruim no Brasil. Quem aceita hoje pagar caro por um modelo sem cinto de
segurança, airbag e tantos outros equipamentos? O consumidor ficou mais exigente. O mercado tomou consciência de que o
cliente não aceitaria mais qualquer coisa. Na saúde, o nível de exigência do consumidor brasileiro ainda é muito baixo. Esse
é o problema.
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ÉPOCA - Em outros países, a discussão sobre os danos provocados pelos tratamentos de saúde é muito mais
clara e direta?
Silva - Sem dúvida. Enquanto não temos sequer o registro dos eventos adversos (antigamente chamados de “erros
médicos”), os americanos discutem isso há muito tempo e de forma transparente. Em janeiro, estive num evento sobre
segurança do paciente em Irvine, na Califórnia. O vice-presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, estava lá e fez um
discurso muito claro. Disse que o sistema de saúde americano mata mais gente de eventos adversos a cada ano do que o
câncer de mama, o de próstata e o de pulmão. No final da década de 80, os eventos adversos eram a sétima causa de
morte no país. Hoje é a terceira. São cerca de 400 mil óbitos por ano.
ÉPOCA - No Brasil, quando a família aponta um erro é comum o médico alegar que foi uma intercorrência. O
que isso significa?
Silva - Antigamente, quando o paciente morria, os médicos diziam que ele não havia resistido à anestesia. Durante anos,
essa era a desculpa clássica. Depois, passaram a dizer que o doente teve uma reação alérgica. Agora dizem que houve uma
intercorrência. São eufemismos que a classe médica e os hospitais usam para dizer que um erro foi uma fatalidade. O
cliente ouve essa desculpa e pensa: “Coitadinha da mamãe, ia mesmo acontecer isso com ela”.
ÉPOCA - Qual é a principal causa desses erros?
Silva - Quando fazemos uma análise de um evento adverso qualquer, encontramos o mesmo fato: de 60 a 70% deles
ocorrem por falhas humanas. Ponto final. O índice é semelhante na indústria nuclear e na aviação. Só que na aviação,
ocorre um acidente grave a cada 100 milhões de decolagens. Na saúde, temos muito mais que uma parada cardíaca
provocada por um erro a cada 100 milhões de pacientes. O vice-presidente americano disse que as mortes por eventos
adversos equivalem à queda de 33 a 37 Boeings por dia. Se a aviação convivesse com a quantidade de mortes provocadas
por erros que temos na saúde, o sistema entraria em colapso. Nenhum avião seria autorizado a levantar voo. Enquanto isso,
as cirurgias inseguras continuam acontecendo. Se nos Estados Unidos, a tragédia é desse tamanho, podemos imaginar que
no Brasil o problema é bem mais grave. Calculamos que aqui ocorra uma parada cardíaca a cada 3 mil cirurgias. No Brasil,
temos o dado de uma pesquisa realizada nos hospitais-escola. A média é de uma parada cardíaca ocorrida a cada 4 mil
cirurgias. Em instituições que não são referência de ensino, o índice deve ser muito pior.
ÉPOCA - Por falar em ensino, como as falhas de formação médica comprometem a segurança dos pacientes
durante a cirurgia?
Silva - A formação deficiente dos médicos e a falta de atualização são dois dos maiores problemas. Terminei a residência
em anestesia em 1989. Se de lá para cá eu não tivesse feito nenhum curso, nenhuma atualização, ninguém iria me impedir
de trabalhar. Nem os hospitais nem as entidades de classe como o Conselho Federal de Medicina me obrigam a prestar
contas sobre os cursos que fiz durante todos esses anos. A quantidade de conhecimento produzida na área médica dobra a
cada cinco anos. Muitas das coisas que aprendemos na faculdade e na residência vão cair no vazio. Deixam de ter
sustentação científica. Se o médico passa 20 anos sem se atualizar, como ele pode continuar habilitado a trabalhar? Quem
sofre é o paciente.
ÉPOCA - O Conselho Regional de Medicina de São Paulo divulgou na semana passada o resultado da prova
aplicada aos médicos recém-formados no estado. Dos 2,9 mil novos médicos, 55% não acertaram mais 60%
da prova de múltipla escolha. Uma pneumonia em bebê não foi diagnosticada por 67%. A formação dos
anestesistas é igualmente ruim?
Silva - Os programas de residência, na grande maioria, estão dissociados da realidade. Alguns desses programas foram
criados há 35 anos e nunca passaram por uma revisão. A parte teórica do programa de formação de especialista em
anestesiologia cabe em três brochurazinhas. São três cadernos fininhos. O obrigatório é só isso. A parte prática é a chamada
supervisão médica. Estou lá fazendo o meu procedimento e o residente fica olhando. Isso não atende às necessidades
atuais da medicina porque hoje lidamos com pacientes mais idosos e fazemos procedimentos mais complexos.
ÉPOCA - O ensino médico brasileiro precisa passar por uma completa revisão, a exemplo do que aconteceu
em outros países?
Silva - Sim e o quanto antes. Na década de 40, os Estados Unidos chegaram a ter mais de 400 escolas médicas. Era um
descalabro. Fizeram uma ampla revisão no programa de ensino e fecharam mais de 50% das escolas. De lá para cá, a
formação médica passou por quatro reformulações profundas nos Estados Unidos. No Brasil, não houve nenhuma desde a
fundação da Faculdade de Medicina da Bahia, a primeira do país, em 1808.
ÉPOCA - E a Fundação para a Segurança do Paciente? Qual será o papel dela?
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Silva - Vamos levantar o problema no Brasil. Dar todas as informações, publicar os dados disponíveis. Quem se interna num
hospital precisa saber, entre outras coisas, que erros de medicação são frequentes. Se um paciente passar sete dias
internado, ele sofrerá, em média, de três a sete erros de medicação. Dose errada, horário errado, medicação que era para
outra pessoa. Toda vez que alguém vier injetar alguma coisa na veia do paciente, ele precisa perguntar: “Que remédio é
esse”, “Que dose é essa?”, “Tem certeza que é para aplicar na veia mesmo?” Quero colocar essas informações não apenas
num site. Vou colocar em outdoors, dar visibilidade ao problema. Se o prefeito deixar, vou botar um letreiro na Avenida 23
de Maio para todo mundo ver. Vamos mostrar os casos de sucesso de hospitais brasileiros que conseguiram melhorar a
segurança do paciente.
ÉPOCA - Com que dinheiro a Fundação será mantida?
Silva - Vamos receber doações de empresas e de pessoas físicas e garantir a transparência de todas as movimentações
financeiras. Se gastarmos R$ 500 para comprar um computador, vamos ter nota fiscal. Tudo estará declarado no site para
quem quiser checar. Vamos ver se assim conseguimos influenciar pessoas, melhorar as práticas nos hospitais e evitar tantas
mortes. Se a sociedade civil se organizar, vamos conseguir.
DÚVIDAS SOBRE ANESTESIA? TEMOS AS RESPOSTAS - O que é anestesia ?
É um conjunto de medicamentos que geram um efeito de sedação no seu corpo, permitindo a ausência de dor e de outras
sensações durante uma cirurgia ou exame. É importante dizer que esse resultado é obtido por meio de drogas que possuem
efeitos colaterais.
Quais são os tipos de anestesias? Existem basicamente três tipos:
• Geral: usada em cirurgias mais longas, deixam o paciente totalmente inconsciente
• Regional: atinge apenas a região a ser operada, como no caso da ráqui, em uma cesárea
• Sedação: apresenta diferentes níveis de intensidade. Desde ficar acordado e tranquilo até profundamente sonolento. É
usada em um exame de endoscopia, por exemplo.
Quanto tempo dura uma anestesia?
O tempo de duração de uma anestesia depende da necessidade do trabalho do cirurgião. Ou seja, o tempo suficiente para
que seja feito o procedimento, permitindo também que o paciente não sinta dor no pós-operatório.
Quem aplica a anestesia?
O responsável pela anestesia é o médico anestesista. Ele é quem aplica a anestesia e também controla a sua pressão
arterial, o seu ritmo cardíaco, a sua temperatura e outras funções orgânicas durante e após a cirurgia. Além de cursar seis
anos da Faculdade de Medicina, esse médico precisa estudar mais três anos de especialização.
Quem pode esclarecer minhas dúvidas sobre anestesia?
Quem pode tirar as suas dúvidas sobre o procedimento é o médico anestesista, que é o profissional capacitado para
esclarecer qualquer questão que não esteja bem entendida. Existem muitos mitos, histórias a respeito de anestesia. Por
isso, procure o médico anestesista e tenha a informação correta para sua própria segurança.
Devo informar se uso algum medicamento, antes de uma cirurgia?
Sim. Qualquer tipo de medicamento, mesmo os chamados naturais, fitoterápicos ou homeopáticos. Eles parecem
inofensivos, mas possuem efeitos anticoagulantes e, em caso de cirurgias, há riscos de ocorrerem sangramentos
prolongados.
Há riscos envolvidos com a anestesia?
Sim. De modo geral, os riscos estão concentrados em dois momentos da cirurgia. No início, na chamada fase de indução da
anestesia e quando o paciente é acordado. A incidência de situações adversas nessas etapas pode ser maior em razão do
quadro clínico e do histórico do paciente. Daí a importância de uma consulta pré-operatória com o anestesista.
Há diferença de risco entre um paciente e outro?
Crianças e idosos constituem os grupos mais suscetíveis a complicações durante a anestesia. Por isso, recomendamos que
as cirurgias nesses dois casos sejam feitas apenas em caso de real necessidade.
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Em que momento devo consultar um médico anestesista?
Quando seu médico indicar uma cirurgia com data marcada, você deve procurar um médico anestesista em seu hospital.
Analisando seu prontuário médico, ele também, se necessário, irá indicar exames e avaliará se o seu corpo está em
condições de ser submetido a um procedimento cirúrgico. Essa consulta é muito importante. A avaliação de suas condições
de saúde pelo anestesista contribuiu para o aumento da segurança da cirurgia.
Fonte: Programa Conheça a Anestesia, da Sociedade de Anestesiologia do Estado de São Paulo
CRISTIANE SEGATTO é Repórter especial, faz parte da equipe de ÉPOCA desde o lançamento da revista, em 1998. Escreve
sobre medicina há 17 anos e ganhou mais de 10 prêmios nacionais e internacionais de jornalismo. Revista ÉPOCA, Janeiro de
2015.
Curar ou parecer: as duas faces da indústria farmacêutica (QUENTIN RAVELLI)
Para compreender a natureza versátil da mercadoria médica, seguimos a vida do antibiótico Pyostacine, um
medicamento comum produzido pela quarta maior farmacêutica no mundo, a Sanofi, desde os laboratórios de
pesquisa até os representantes farmacêuticos, passando pela fábrica que produz o princípio ativo
"PERCEBIA que estava sendo ‘rastreada’, que sabiam exatamente aquilo que eu receitava”, diz indignada uma médica
instalada num bairro chique de Paris. “Eu era ingênua, não sabia. [Um dia], uma representante farmacêutica me disse:
‘Você não receita muito!’. Eu me perguntei: ‘Como é que ela pode saber disso?’” Essa prática de “rastreamento”, que choca
muitos pacientes, é orquestrada pelos serviços de marketing dos laboratórios. Para aumentar ou manter suas fatias de
mercado, os grandes grupos farmacêuticos criam tesouros de engenhosidade. Eles não hesitam, por exemplo, em modificar
as indicações de seus medicamentos para ganhar novos clientes.
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Considerado por certos médicos “o Rolls-Royce dos antibióticos de aplicação cutânea” e fabricado pela Sanofi – o
quarto maior grupo farmacêutico mundial em volume de negócios (30,4 bilhões de euros em 2011) –, o Pyostacine
conheceu um destino desse tipo. Por muito tempo reservado ao uso dermatológico, o antibiótico operou uma “virada
respiratória”: ele é hoje maciçamente utilizado em casos de infecções broncopulmonares.
Para compreender a natureza versátil da mercadoria médica, seguimos a vida desse medicamento comum, desde os
laboratórios de pesquisa até os representantes farmacêuticos, passando pela fábrica que produz o princípio ativo. 1 A cada
etapa, a mercadoria muda de nome: os biólogos falam da bactéria Pristinae spiralis; os químicos, da pristinamicina fabricada
pela bactéria; representantes farmacêuticos elogiam os méritos do “Pyo” para os médicos; os operários o apelidam
afetuosamente de “Pristina”. Ao longo dessa cadeia, o antagonismo entre as necessidades do doente e os lucros do
industrial, entre o valor de uso e o valor de troca,2 não para de crescer. As três vias do medicamento – comercial, industrial
e científica – misturam-se constantemente
Vender
Um imenso bloco de vidro de 37 mil metros quadrados, a sede da Sanofi evoca a transparência e o respeito aos
pacientes, cujas silhuetas estilizadas estão entronizadas no alto do edifício, rodeadas por um coração azul. No terceiro andar
desse prédio situado no sul de Paris encontram-se os serviços de marketing, onde ficam os funcionários que trabalharam,
desde os anos 1990, para introduzir o Pyostacine no mercado das infecções respiratórias. Com um sucesso evidente, já que,
do inverno francês de 2002 ao de 2010, o número de vendas do produto para tratar infecções broncopulmonares saltou
112%, enquanto a progressão foi de apenas 32,6% no campo dermatológico.
Esse aumento não corresponde a uma explosão do número de doentes ou a uma epidemia devastadora, mas a uma
estratégia comercial: o mercado de infecções respiratórias apresenta um volume de prescrições muito mais significativo que
o de infecções dermatológicas. “Nos germes que infectam os brônquios, o pulmão, os sínus, tudo funciona superbem”,
lembra um médico da empresa. “Em vista disso desenvolveu-se essa indicação.” Da pele ao pulmão, o valor de troca
metamorfoseou o valor de uso, quando se deveria esperar que a utilidade de um produto determinasse seu preço.
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Os ourives desse gênero de virada terapêutica são os gerentes de produto, assalariados especializados na promoção de
um único medicamento ou de alguns medicamentos com indicações próximas. Temos o “gerente Pyostacine”, o “gerente
Tavanic”, o “gerente antalgia” e mesmo o “gerente psicóticos”. Célia Davos, 3 a gerente de produto Pyostacine, descreve o
conteúdo de sua profissão: “O jobé acompanhar o desempenho do produto, é ver para onde ele vai, segundo os
concorrentes, segundo o mercado, segundo a patologia, e colocar tudo isso em ação para maximizar o volume de negócios”.
Esse cargo, situado no coração do serviço de marketing, funciona como um centro nevrálgico a que os funcionários chegam
de diversos serviços e podem em seguida ser redistribuídos para outros horizontes, como gerentes responsáveis pelo serviço
de marketing, comunicação, negócios públicos, vendas.
O papel do gerente de produto consiste em colocar em evidência a utilidade de um medicamento preparando o
material dos representantes farmacêuticos, os funcionários do setor comercial que se deslocam aos consultórios para
convencer médicos a receitar seus produtos. Entre o arsenal do Pyostacine está o ADV (aide de visite/ajuda de visita),
espécie de manual com base no qual o representante constrói seu discurso seguindo os argumentos que o marketing
elaborou; o Elim (élément léger d’information médicale/ elemento resumido de informação médica), que sintetiza os pontos
mais importantes; e o TAP (tiré à part/encarte), número de uma revista científica como a Infectiologie, patrocinada pela
Société de Pathologie Infectieuse de Langue Française (Spilf) e que apresenta unicamente os resultados de testes clínicos
bem-sucedidos relativos ao Pyostacine. Além disso, existe um monte de gadgetsparamédicos: pequenas lâmpadas de
plástico dotadas de um abaixador de língua para olhar fundo na garganta do paciente, caixas de lenços que permitem
enfeitar o escritório do médico, canetas Pyostacine, pen drives Pyostacine. Esses textos e objetos, que se podem notar em
todos os cantos dos escritórios da sede, vão reaparecer nos porta-malas dos representantes farmacêuticos, depois nos
consultórios médicos.
Nem todos os médicos interessam aos laboratórios da mesma forma. Aqueles que têm um significativo “potencial de
prescrição” são motivo de atenção particular. Para identificá-los, os laboratórios usam os serviços do Groupement pour
l’Élaboration et la Réalisation de Statistiques (Gers), que dispõe dos totais de vendas aos atacadistas e das vendas diretas
em farmácias, e do Centre de Gestion, de Documentation, d’Informatique et de Marketing (Cegedim), que fornece os dados
provenientes dos softwares de prescrição dos médicos. A essas fontes oficiais se juntam as redes de informação informais,
como os questionários dos representantes de laboratório junto aos farmacêuticos ou colegas. Para os serviços de marketing,
qualquer informação relativa às práticas dos médicos é importante, porque permite estabelecer “uma escolha dos clientesalvo” em potencial. Assim, os “pequenos atb, pequenos Pyostacine” (pequenos “receitadores” de antibióticos, pequenos
“receitadores” de Pyostacine) e os “pequenos atb, grandes Pyostacine” (que já prescrevem abundantemente o produto
promovido) serão menos visados que os “grandes atb, pequenos Pyostacine”, porque estes últimos podem converter uma
parte importante de suas prescrições de antibióticos em prescrições de Pyostacine.
É claro que essas estratégias comerciais não se traduzem automaticamente em vendas. Ainda é necessário que sejam
postas em prática em campo pelos representantes. Na França, em 2014, havia 16 mil representantes de laboratório,
funcionários das empresas farmacêuticas, que passavam seu tempo conversando com os médicos. Se considerarmos 213
dias trabalhados por ano e seis visitas por dia, serão, portanto, mais de 20 milhões de conversas mantidas com os médicos.
Esses encontros são minuciosamente preparados. Para melhorar a eficiência deles, funcionários do comercial redigem, por
exemplo, brochuras que apresentam diversos “perfis típicos” de médicos: a “mulher médica sindicalista”, o “médico
econômico”, o “médico da família”, o “médico substituto”, o “médico colega”, o “médico cientista”, o “médico estressado”...
Essas brochuras são utilizadas em seminários de formação para ajudar os representantes a colocar em prática “percursos de
fidelização” e assim conhecer melhor seus alvos. Aprende-se, ao longo dessas “oficinas de produtos”, que o médico da
família – 55 anos, clientela extensa – é mais “sensível à abordagem humanista do paciente” que o médico cientista
“instalado no campo”, de “contato muito frio”. Uma vez a par desse jogo, o representante farmacêutico deve ir a campo e
empenhar-se em melhorar a “elasticidade” dos médicos. Quanto mais um médico é chamado de “flexível”, mais receptivo
ele é ao discurso da indústria farmacêutica.
No entanto, os médicos se tornam cada vez mais críticos, a ponto de fechar as portas aos representantes, cujo número
vem caindo há dez anos. Essa resistência crescente leva a empresa a procurar outras formas de lobby, mais científicas e
menos perceptíveis, dirigindo-se particularmente aos formadores de opinião – chamados KOL (key opinion leaders/lídereschave de opinião) –, ouvidos e respeitados por milhares de médicos. Assim, a Sanofi procura influenciar os decanos
universitários, por vezes vistos como responsáveis pelo espírito crítico dos jovens médicos.
Quando estávamos fazendo estágio na Sanofi, que organiza há vinte anos concursos de residência médica, tivemos,
por exemplo, de construir “conjuntos de argumentações para decanos” a fim de convencer os mais reticentes a acolher a
empresa em seus anfiteatros. Os maus resultados de certas faculdades eram utilizados como forma de convencimento,
sobretudo em relação à Paris-V, que experimentou uma queda espetacular da proporção de estudantes classificados para a
residência. Esse resultado se explicava, segundo a Sanofi, pela personalidade do reitor, considerado um dos mais
recalcitrantes em relação à organização das provas classificatórias nacionais (ECN, espécie de vestibular para a residência) e
que não autorizava a circulação livre de brochuras, cartazes e outros produtos publicitários disfarçados.
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Produzir
Disponível em:< https://publicidadebizarra.wordpress.com/tag/tirinhas/>.
A fábrica onde é feito o princípio ativo do Pyostacine, a partir de bactérias postas para fermentar, encontra-se perto de
uma curva do Sena, ao sul de Rouen, onde estão espalhadas inúmeras indústrias, como a Total e a ASK Chemicals. Na
fábrica da Sanofi, atingida pela redução dos efetivos, alguns locais foram substituídos por retângulos de relva que se
alternam com os edifícios em atividade, ligados entre si por feixes de canos que levam oxigênio, água purificada, solventes,
ácidos. Quando ali se entra pela primeira vez, um odor atinge as narinas: é o dos dejetos agrícolas que as bactérias
colocadas para fermentar consomem em quantidade antes de secretar os princípios ativos. O perfume entontecedor do
melaço de beterraba-açucareira que chega ao lugar por vagões-cisternas impregna o ar.
Na oficina de fermentação, é o barulho que atinge: como hélices de avião girando devagar, as longas pás de dezenas
de fermentadores de 220 metros cúbicos rodam sem parar. É aqui que nasce a molécula pristinamicina encontrada nos
milhões de caixas acondicionadas na Espanha, depois vendidas nas farmácias com o nome comercial de Pyostacine.
Segundo os operários, o trabalho em si é até interessante e com frequência imprevisível, porque lida com organismos vivos,
mas as condições são claramente penosas. Os operários da fábrica trabalham em regime de “5 × 8”, o que significa que são
divididos em cinco equipes que trabalham dois dias das 5h às 12h, depois dois dias das 12h às 20h e por fim dois dias das
20h às 5h.
Oficialmente, eles desfrutam em seguida quatro dias de descanso. Mas onze vezes ao ano um desses quatro dias é
suprimido, sem o que o tempo de trabalho seria inferior a 35 horas por semana. Só restam, portanto, três dias de repouso,
na verdade bastante encurtados pela noite do último ciclo ou pela manhã do seguinte. Quem acompanha esse ritmo não
dorme nunca três vezes em sequência na mesma hora. “O cérebro não consegue mais retomar os ritmos de despertar e de
sono”, conta Étienne Warheit, que está há 34 anos trabalhando no esquema 5 × 8. “Há dois anos, eu perdi o sono: não
conseguia mais fazer uma noite de seis horas. Eu ficava cansado às 22h, cochilava, mas meia-noite estava desperto e não
tinha jeito de dormir antes das 2h. E depois o contrário... Eu chegava ao trabalho, estava cansado, então tomava café. Você
fica o tempo todo sem condições de fazer seu trabalho.”
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Quando os trabalhadores se cansam desse ritmo extenuante e querem passar a trabalhar de dia, a direção na maior
parte das vezes nega, porque ela não tem outros postos para oferecer a eles. O objetivo é de início rentabilizar as
máquinas, que funcionam o tempo todo. Para justificar essas cadências infernais, a direção se esconde por trás de uma
forma de determinismo técnico: os ritmos biológicos de fermentação e extração das bactérias tornam os 5 × 8 inevitáveis.
“É evidente que, numa empresa como essa, com produções contínuas e que não podem ser de outra forma, não é possível
fazer de outro jeito”, justifica o médico da fábrica. Essa explicação científica desencoraja qualquer pesquisa de organização
coletiva do trabalho.
Existe, portanto, um abismo entre as práticas concretas do grupo industrial e seu discurso – “O essencial é a saúde”,
proclama o slogan escrito na entrada da fábrica. Mas os protestos, que dão a um dos responsáveis pela área de recursos
humanos a impressão de estar “sobre um barril de pólvora” e que faziam o diretor da fábrica ter medo de “descer” até as
oficinas, estão integrados à estratégia industrial da empresa. Propondo a vários trabalhadores que se tornem técnicos e
utilizando o discurso das biotecnologias como meio de mascarar a realidade da fábrica, a empresa conseguiu transformar a
reivindicação coletiva em desejos individuais de promoção profissional. Essa recuperação repousou principalmente no medo:
durante vários anos, do fim da década de 1990 a 2005, a direção do grupo fez planar a ameaça da revenda da fábrica. Esse
cenário, que por fim nunca se realizou, permitiu sobretudo que fosse aceita uma reestruturação e a supressão de postos. De
ameaçada, a fábrica se viu promovida ao status de “planta-piloto” do grupo Sanofi.
Tal desvio de situação – que não mudou as condições de trabalho nem os salários – reflete a forte utilidade industrial
das bactérias. O “boom das biotecnologias” marca até mesmo uma orientação geral do capitalismo industrial desse início do
século XXI, que desenvolve biotecnologias chamadas verdes (agricultura), brancas (indústria), amarelas (tratamento das
poluições), azuis (a partir dos organismos marinhos) e vermelhas (medicina). Para todas essas aplicações, mercados se
desenvolvem, e com frequência as taxas de lucro deles são excepcionais, o que explica por que a indústria farmacêutica tem
comprado nos últimos anos empresas de biotecnologia. Dessa forma, em abril de 2011, a Sanofi passou a controlar, por US$
20 bilhões, a Genzyme, empresa norte-americana especializada em biomedicamentos para esclerose múltipla e doenças
cardiovasculares. Essa atração se explica sobretudo pelo fato de que as novas moléculas utilizadas no tratamento de várias
doenças não provêm da química de síntese clássica, mas da utilização de materiais vivos, quase sempre geneticamente
modificados, que permitem fazer significativas economias de produção.
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Nas Jornadas Nacionais de Infectologia, nas quais fizemos nossas investigações em 2011, dois “espaços” se defrontam.
De um lado, o “espaço das marcas”, onde os comerciantes falam do Pyostacine: 56 estandes de laboratórios farmacêuticos,
dispostos em sete fileiras, segundo uma lógica de blocos desalinhados que impõe um deslocamento em zigue-zague aos 1,5
mil médicos inscritos. Do outro, o “espaço das moléculas”, onde não se fala mais de Pyostacine, mas de pristinamicina: dois
auditórios, batizados de Einstein e Pasteur, onde acontecem simpósios científicos. Assim, paralelamente a um
desinvestimento na pesquisa privada – a Sanofi fechou, em 2004, seu centro de pesquisa anti-infecciosa de Romainville –,
os laboratórios exercem certo controle sobre a pesquisa pública: eles financiam os congressos médicos e influenciam, em
contrapartida, a organização científica, material e espacial deles.
Para chegar ao espaço científico das Jornadas de Infectologia, que se encontra do lado oposto da entrada do
congresso, os médicos devem passar, no mínimo, diante de treze estandes, cujo aspecto reflete o peso e a influência do
expositor. Aos deliciosos petits foursda transnacional Boehringer-Ingelheim, degustados em meio a assentos com design e
sob a luz azul de grandes lâmpadas halógenas verticais, responde o suco de maçã, servido sobre uma grande mesa de
fórmica coberta de objetos em desordem, oferecido pelo StudioSanté, uma rede francesa de coordenação de cuidados
médicos especializada na perfusão em domicílio...
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Apesar da aparente separação dos espaços, as ligações entre o universo comercial e o mundo científico são sólidas.
Durante o congresso, o principal objetivo das empresas é mostrar a superioridade científica de seus produtos. Os simpósios
exibem, portanto, o nome de seus patrocinadores – “Simpósio Bayer”, “Simpósio GSK”, “Simpósio Sanofi” – nos quais se
enfrentam os KOLs de cada laboratório. Para assegurar os serviços de médicos influentes, os lobistas dos grandes grupos
conduzem um trabalho de fôlego que passa principalmente pela organização de viagens com vocação pseudocientífica. Uma
“médica de produto” da Sanofi conta como constituiu o grupo de especialistas de um medicamento apoiando-se sobre os
médicos cuidadores que influenciavam os outros “receitadores”. “Eu disse: tenho dez lugares, só quero aqueles que ganham
1 milhão de euros ou mais [em volume de negócios]. No primeiro ano, eu os levei para Cingapura. No segundo, aconteceu
de serem no geral os mesmos. Aonde fomos? A Durban [África do Sul]! Um ano depois, estávamos em Cancún [México] e,
no seguinte, na Birmânia. É desnecessário dizer – isso não se diz porque não se tem o direito –, mas é assim que você cria
parceiros de verdade.”
Reencontramos, na organização dos testes clínicos, uma imbricação similar do valor de troca e do valor de uso. Um dos
KOLs do Pyostacine, o doutor Jean-Jacques Sernine, responsável por alguns testes clínicos, é um dos infectologistas mais
renomados da França. Sua carreira foi construída em torno de duas práticas profissionais: a coordenação de testes clínicos
para a indústria farmacêutica (sobretudo para o Pyostacine na Sanofi) e a expertise junto às agências públicas do
medicamento. Ainda que ele não avaliasse os mesmos medicamentos nos dois casos – senão haveria um flagrante conflito
de interesses –, ele fazia parte de um pequeno grupo de especialistas que, tomados coletivamente, passava de uma
margem para a outra, da indústria à medicina pública. “O conflito de interesses é permanente. O principal deles, quando se
está lá dentro, é se interessar pelos antibióticos!”, justifica. “As coisas só são possíveis se há uma troca entre os avaliadores
que somos no nível administrativo e a indústria farmacêutica.” Juiz e, em parte, condenado ao conflito de interesses, o
grupo social dos especialistas fica dessa forma prisioneiro de sua própria competência.
Tal situação repercute na Agence Nationale de Sécurité du Médicament et des Produits de Santé (ANSM), cujo trabalho
se baseia inteiramente na expertise. Situada na periferia norte de Paris, ela fica em um imponente prédio com vidros que
não têm a graça e a leveza da sede comercial da Sanofi: quando chegamos ali, a porta giratória da agência,
temporariamente travada pelas intempéries, estava cercada por uma fita de construção vermelha e branca. Foi, portanto,
por uma porta clássica que tivemos de passar para chegar a uma sala de espera à qual várias plantas de plástico, com
folhas cheias de poeira, davam um ar de gabinete de taxidermista.
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Essa desigualdade estética reflete uma profunda ausência de simetria social e econômica, que torna difícil acreditar que
a ANSM exerça um contrapoder eficaz. Com efeito, ela muitas vezes não tem tempo nem os meios de ler e analisar o
conjunto dos dossiês de pedidos de autorização de colocação no mercado (AMM) que as empresas fazem chegar a ela.
Sernine ironiza sobre um pedido de AMM para o qual ele contribuiu: “Eram 57 volumes de seiscentas ou setecentas páginas
cada um, que pesavam 110 quilos e atingiam 2 metros de altura. E era apenas uma parte do dossiê”. Essa situação está
longe de ser nova. A crônica jurídica de Bertrand Poirot-Delpech no Le Monde, durante o escândalo sanitário do Stalinon em
1957, já a mencionava como um problema fundamental: “Mestre Floriot, por exemplo, dedicou-se a um cálculo indiscreto.
Sabendo que 2.276 vistos tinham sido concedidos em 1953 e que os comissários reuniram-se oito vezes por ano à razão de
algumas horas a cada vez, ele chegou ao tempo recorde de 40 segundos por exame de dossiê”. 4
Hoje, os testes clínicos sobre os antibióticos se desenrolam em condições opacas, sobre um fundo de divisão seletivo e
mesmo com manipulações de dados. Um teste sobre a utilização do Pyostacine nos casos de pneumonia ilustra o problema:
havia, segundo Sernine, sete fracassos do tratamento para o grupo de pacientes tratados com o Pyostacine e somente
quatro no grupo de controle. Segundo o especialista, que partilha a opinião da diretora médica do laboratório, ter-se-iam
incluído doentes em situações a tal ponto severas que requereriam outro tratamento diferente daquele com o Pyostacine:
“Portanto, a conclusão a que cheguei sobre isso é que se trata do fracasso não do antibiótico, e sim da estratégia”. Um
argumento surpreendente do ponto de vista lógico: como julgar a eficácia de um medicamento se os pacientes que ele não
cura não são imediatamente desqualificados, se se parte do princípio de que ele só é eficaz quando é eficaz?
É difícil para a ANSM desentocar esse tipo de raciocínio circular no seio de dossiês estatísticos complexos, que hoje
substituíram a argumentação baseada no olhar médico que percorre os casos clínicos individuais. Com frequência, essa
manipulação dos números conduz a falsificações. Em 2007, o caso do Keteksuscitou várias mortes de pacientes por causa
de problemas hepáticos e levou um dos responsáveis pelos testes a purgar uma pena de prisão de dois anos nos Estados
Unidos, por ter “inventado” pacientes para inflar artificialmente a eficácia do medicamento. Longe de ignorar o problema,
certos dirigentes científicos lembram, vários anos após o escândalo, que para esse medicamento “havia cadáveres nos
armários”.
Essa expressão, utilizada por uma das diretoras médicas do grupo, testemunha certo cinismo no interior da empresa,
cujos altos executivos interiorizaram profundamente os códigos. Para eles, os interesses do grupo vêm antes daqueles da
saúde dos pacientes, desde que um conflito apareceu entre esses dois sistemas de valores. De maneira geral, nos escritórios
do serviço médico e nos do marketing reina uma forma de amnésia seletiva do medicamento. A história dos efeitos
colaterais imprevistos, dos testes clínicos deturpados e dos escândalos sanitários não é memorizada, e o fracasso clínico não
tem o mesmo status do sucesso.
Toca-se aqui num dos problemas de fundo da indústria farmacêutica: o fato de os testes clínicos, ou seja, a prova da
eficácia dos medicamentos, serem estabelecidos por aqueles que produzem esses mesmos medicamentos. Alguns
chamaram esse fenômeno de dependência de “captura regulamentar” do Estado pelas empresas. Essa engrenagem
ressurge a cada novo escândalo: Stalinon (1957), talidomida (1962), Distilbène (1977), Prozac (1994), cerivastatina (2001),
Vioxx (2004)... A cada onda daquilo que os tribunais chamam de “homicídios involuntários”, a questão da independência dos
testes clínicos volta à tona, mas nunca as reformas que se seguem questionam o regime de propriedade comercial do
medicamento.
O problema está profundamente enraizado no sistema econômico, que não é mais moral para o medicamento que para
o petróleo ou os cosméticos. Não somente porque são os mesmos acionistas que se encontram nos comandos – a L’Oréal
continua sendo a principal acionista da Sanofi, desde a recente saída da Total –, mas também porque a possibilidade de
lucrar com os medicamentos aguça os velhos antagonismos entre o valor de uso e o valor de troca.
1 Conduzida no âmbito de um doutorado em Sociologia, esta pesquisa durou quatro anos, durante os quais o autor foi
contratado para vários cargos, por exemplo, o de estagiário nos serviços comerciais da Sanofi, operário nas fábricas do
grupo etc.
2 A economia clássica distingue o valor de uso e o valor de troca de uma mercadoria. Adam Smith distingue, por exemplo,
o diamante, com alto valor de troca e fraco valor de uso, da água, com fraco valor de troca e alto valor de uso.
3 Os nomes dos funcionários foram modificados para preservar seu anonimato.
4 Bertrand Poirot-Delpech, Le Monde, 1o nov. 1957
QUENTIN RAVELLI é pesquisador do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) e autor deLa stratégie de la bactérie
[A estratégia da bactéria], a ser lançado na França pela editora Seuil em janeiro deste ano. Ilustração: Reuters/Robert Pratta.
Jornal LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL, Fevereiro de 2015.
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Hospitais: o que eles não contam e como se proteger (CRISTIANE SEGATTO)
Até os melhores cometem erros grosseiros, revela o médico americano Martin Makary. Como escolher nas mãos de quem
entregar seu patrimônio mais precioso – a saúde
(Foto: VikaValter/Getty Images/Vetta)
QUANDO atravessamos a recepção elegante de um hospital de
boa reputação, somos encorajados a pensar que ele funciona como
um território vigiado. Cada funcionário em seu lugar, trabalhando de
acordo com padrões, atento ao fato de que deslizes serão notados,
anotados e corrigidos. Quem conhece os bastidores das mais
respeitadas instituições tem outra visão. “A realidade é mais
parecida com o Velho Oeste”, diz o médico americano Martin
Makary, um observador privilegiado das entranhas dos mais
badalados hospitais dos Estados Unidos. Sem meias palavras,
Makary expõe verdades incômodas no livroUnaccountable: what
hospitals won’t tell you and how transparency can revolutionize
health care (em português,Sem prestar contas: o que os hospitais
não contam e como a transparência pode revolucionar a assistência
à saúde). É hora de quebrar o silêncio.
A obra de Makary, comentarista das redes de TV CNN e
FoxNews, recém-lançada nos Estados Unidos e ainda sem editora
brasileira, não passou despercebida. “A cada colega que me
considerou um traidor por escrever esse livro, cinco me
agradeceram”, disse Makary a ÉPOCA. “É um sinal de que o tempo
da transparência chegou.” Cirurgião especializado em aparelho
digestivo, Makary trabalhou em várias das mais respeitadas
instituições médicas dos Estados Unidos. Fez pesquisas sobre saúde
pública na Universidade Harvard, em Boston, e atualmente atende
no Hospital Johns Hopkins, em Baltimore. Ele não está sozinho. Há
um movimento crescente, observável também no Brasil, em defesa
de uma medicina mais transparente. Essa corrente acredita que
qualquer cidadão deveria ter acesso a informações objetivas sobre a
qualidade dos hospitais.
COMO ESCOLHER UM HOSPITAL?
Saber se ele tem um selo de qualidade internacional é um bom parâmetro. No Brasil, apenas 21 instituições
conquistaram o certificado mais valorizado no mundo. Ainda assim, não existe hospital 100% seguro
SÃO PAULO
Hospital
Hospital
Hospital
Hospital
Hospital
Hospital
Hospital
Hospital
Hospital
Hospital
Hospital
Hospital
Hospital
Hospital
Hospital
Albert Einstein
Sírio-Libanês
Samaritano
Alemão Oswaldo Cruz
do Coração/HCor
Paulistano
Total Cor
São José/Beneficência Portuguesa
Nove de Julho
São Camilo Pompeia
Santa Paula
do Câncer I/ Instituto Nacional do Câncer
do Câncer II/ Instituto Nacional do Câncer
São Vicente de Paulo
Copa D’Or
PORTO ALEGRE
Hospital Moinhos de Vento
Hospital da Criança Santo
Misericórdia
Hospital Mãe de Deus
Antônio/
Santa
Casa
RECIFE
RIO DE JANEIRO
Hospital Memorial São José
Hemorio/Secretaria Estadual de Saúde
Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia/ Ministério
da Saúde
Fonte: Consórcio Brasileiro de Acreditação/ Joint
Commission International
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60
de
Qual é a parcela de pacientes que contrai infecção em determinada instituição? Qual é o índice de complicações
cirúrgicas? Qual é a sobrevida dos doentes depois de um transplante ou operação cardíaca? Quantos recebem medicações
erradas durante a internação? No Brasil, os melhores hospitais são avaliados periodicamente nesses quesitos e em muitos
outros – num total de 1.300 itens. Eles fazem parte de uma elite de 21 instituições ( leia a lista ao lado) num universo de
6.500 hospitais do país. Só elas dispõem do selo de qualidade emitido pela Joint Comission International (JCI), uma espécie
de norma de controle de qualidade da área da saúde. Esse é o selo mais prestigiado do mundo. Além dessas, 180
instituições têm certificados emitidos por outras entidades.
Nos Estados Unidos e no Brasil, as informações detalhadas sobre cada hospital existem, mas são guardadas a sete
chaves. Raras são as instituições que divulgam um ou outro indicador de qualidade. Makary defende a divulgação desses
dados. Uma forma simples e objetiva de dar poder aos consumidores do bem mais precioso do mundo: a saúde. Se
podemos escolher um hotel ou um restaurante a partir de critérios técnicos, por que não temos o direito de fazer o mesmo
por nossa vida?
25% dos pacientes internados sofrem algum tipo de dano, revelou um estudo da Universidade Harvard
Esse é um debate que faz cada vez mais sentido no Brasil. Nos últimos dez anos, o número de brasileiros que dispõem
de planos de saúde privados cresceu 50%. São hoje 47 milhões. Nas grandes cidades, as obras de expansão dos hospitais
particulares avançam em ritmo acelerado. Mal são inauguradas, as novas alas se mostram insuficientes para atender tanta
gente – principalmente nos prontos-socorros. “Há filas de quatro horas e reclamações por todos os lados”, diz Francisco
Balestrin, presidente do conselho da Associação Nacional dos Hospitais Privados. “A pressão dessa demanda exacerbada tira
a qualidade do atendimento.” O excesso de doentes é um complicador, mas não explica todas as falhas.
Um estudo feito por pesquisadores da Universidade Harvard em dez bons hospitais americanos expôs um fato
conhecido no meio médico: 25% dos pacientes internados sofrem algum tipo de dano. Mesmo nos centros americanos de
alta tecnologia, pequenas falhas ou erros gravíssimos ocorrem rotineiramente. Esponjas cirúrgicas são esquecidas no corpo
dos pacientes, membros errados são operados, crianças recebem excesso de medicação por causa da terrível caligrafia dos
médicos.
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A CULTURA DO CHECKLIST - Miguel Cendoroglo Neto,
superintendente do Hospital Albert Einstein, em São
Paulo. Um checklist parecido com o dos pilotos de avião
reduz o risco de erros. “Foi difícil mudar a cultura dos
médicos, mas hoje eles gostam” (Foto: Marcelo
Min/Fotogarrafa/ÉPOCA)
O excesso de confiança dos profissionais, a falta de
comunicação entre os integrantes da equipe e o
descuido em relação às normas de segurança (parece
incrível, mas muitos médicos não lavam as mãos antes e
depois de atender um paciente no quarto ou na UTI)
expõem os pacientes a riscos desnecessários. No Brasil,
o diagnóstico é semelhante. Os avaliadores de hospitais
flagram erros de identificação, falta de pessoal
qualificado, desleixo em relação à estrutura física (leia o
quadro ao lado). O cenário é hostil, principalmente
porque escolhemos hospital da forma mais subjetiva
possível. Somos influenciados pelo marketing, pela
decoração e pela opção das celebridades. Esta, por
sinal, pode ser a pior maneira de eleger um médico.
Makary relembra um caso exemplar. Trocando o nome
dos envolvidos, poderia ser uma história bem brasileira.
Em 1980, Mohammad Reza Pahlavi, o xá do Irã,
era um dos aliados mais importantes dos Estados
Unidos. Quando um câncer no sistema linfático (linfoma)
o fez adoecer de repente, Washington fez questão de
oferecer o que havia de melhor na medicina americana.
Michael DeBakey, o mais famoso cirurgião do mundo,
chegou rapidamente ao Oriente Médio. Recomendou
uma cirurgia imediata de remoção do baço. Nesse tipo
de operação, há o risco de perfurar o pâncreas
acidentalmente. Para evitar complicações, uma
precaução básica é instalar um dreno cirúrgico. Ele evita
que o fluido pancreático fique acumulado no corpo do
paciente e provoque uma infecção. Confiante em sua
habilidade, DeBakey não colocou o dreno. Ao final da
cirurgia, declarou que a operação fora um sucesso.
Recebeu medalhas e virou um herói no Oriente Médio.
Pouco tempo depois, o xá começou a ter febre e
vômitos. A infecção, combinada ao agravamento do
linfoma, debilitou-o até a morte.
O erro do governo americano, do xá e de sua
família foi não ter percebido que DeBakey era um
excelente cirurgião cardíaco – não de abdome. Dos 479
artigos científicos que DeBakey assinara, mais de 95%
eram sobre cirurgia cardiovascular. Apenas um
mencionava o baço, e, ainda assim, ele não era o autor
principal. A aura de superstar ofuscou a razão de todos
os envolvidos. DeBakey errou duplamente. O excesso de
autoconfiança o impediu de fazer o básico. Ou de pedir
a ajuda de um especialista. Se até os poderosos erram
ao escolher cuidados médicos, como o cidadão comum
pode se defender? Eis um guia para desarmar as
principais armadilhas:
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Escolha com cuidado os médicos do hospital
Excesso de autoconfiança não é bom para ninguém. No caso dos médicos, esse comportamento pode ter
consequências catastróficas. Desconfie das superestrelas que se acham capazes de resolver tudo. Basicamente, há três tipos
de médico: os que são bons de diagnóstico; os que são bons de procedimento; e os que não são bons em nada. Para fazer
diagnósticos corretos, o profissional precisa saber ouvir, observar, conversar sem pressa. O bom executor de procedimentos
não precisa, necessariamente, ter essas qualidades. O que interessa é o conhecimento e a habilidade técnica. A medicina
pressupõe treinamento ultraespecializado. No caso da remoção de um tumor, não basta encontrar um cirurgião oncológico.
É preciso saber quantos cânceres iguais ao do paciente ele já extraiu. Médicos e hospitais que realizam maiores quantidades
de um mesmo procedimento erram menos.
Como se proteger
Pergunte a opinião dos enfermeiros. Ninguém passa mais tempo com os médicos e com os pacientes. Uma boa forma
de conhecer a realidade de um hospital é saber se os funcionários gostariam de ser atendidos lá. A Universidade Johns
Hopkins fez essa pergunta aos profissionais de saúde de 60 hospitais americanos de boa reputação. Em mais de 50%,
metade dos participantes respondeu um sonoro “não”.
Ao escolher um médico, é preciso ir além das indicações ou do livreto do plano de saúde. Para saber se ele exerce
alguma atividade acadêmica ou de pesquisa na área que lhe interessa, levante o currículo dele na Plataforma Lattes
(www.lattes.cnpq.br), uma base de dados científicos. Verifique, também, se há ações judiciais contra ele ou o hospital.
Basta consultar o site dos Tribunais de Justiça, como o de São Paulo (www.tjsp.jus.br). “Aconselho os pacientes a gravar
as consultas médicas, para evitar dúvidas posteriores”, diz a advogada Rosana Chiavassa, especializada em direito à saúde.
“Se o médico não gostar da ideia, é melhor se levantar e procurar outro.”
Verifique se as equipes médicas do hospital funcionam como "times"
Médicos e hospitais que valorizam o trabalho em equipe costumam oferecer assistência de melhor qualidade. Para
reduzir a chance de erros, os hospitais precisam valorizar o diálogo. Quando o médico humilha ou despreza uma enfermeira
que notou uma falha (como um refletor cheio de poeira no centro cirúrgico), quem perde é o paciente. A falta de
comunicação produz erros trágicos. Os avaliadores dos melhores hospitais (aqueles que pretendem obter o selo de
qualidade de padrão internacional) deparam com casos gravíssimos. “Um paciente foi amputado duas vezes
desnecessariamente”, diz Heleno Costa Jr., diretor de relações institucionais e educação do Consórcio Brasileiro de
Acreditação (CBA), entidade que avalia os hospitais interessados em se enquadrar nos padrões exigidos pela JCI. O paciente
tinha uma necrose gravíssima numa das pernas. Precisou amputá-la. Quando acordou, entrou em desespero ao perceber
que estava sem as duas. Como isso aconteceu? Na sala de cirurgia, o técnico de enfermagem deixou descoberta a perna
errada. Sem perguntar nada, o cirurgião amputou o membro sadio. “Se o médico tivesse levantado o lençol completamente,
teria visto que a perna necrosada era a outra”, diz Costa Jr.
Como se proteger
Procure saber se o hospital realiza pequenas reuniões antes de cada cirurgia e se adota checklists. Assim como fazem
os pilotos de avião antes do voo, os profissionais conferem os detalhes que garantirão a segurança da operação. Em voz
alta, checam se os equipamentos necessários para aquele procedimento estão na sala e se funcionam bem. Conferem o
nome do paciente e se o local da cirurgia foi marcado corretamente. Cada integrante da equipe diz seu nome e sua função.
Parece simplório, mas os hospitais que adotam essas práticas erram menos.
Peça uma segunda opinião antes de fazer um procedimento desnecessário
Em todos os campos da medicina, há excesso de prescrição de algum produto. Isso acontece com remédios, cirurgias,
implantes ortopédicos, cesarianas, stents (próteses metálicas para desobstrução de vasos). “A história demonstra que nós,
os médicos, raramente resistimos à tentação de uma nova tecnologia – principalmente se lucrarmos com ela”, afirma o
americano Makary. Nem tudo o que é novo é melhor para a saúde. Num momento de fragilidade e sem condições técnicas
de avaliar o tratamento proposto, muita gente se submete a riscos desnecessários.
Em junho de 2000, Camila Oliveira Menezes tinha 19 anos e se preparava para fazer um intercâmbio na Austrália. Os
exames exigidos não apontaram qualquer problema de saúde. Dez dias antes da viagem, sentiu uma forte dor de ouvido.
No livrinho do plano de saúde, a mãe encontrou o especialista mais próximo: Francisco Garrafa Neto, sócio do Hospital
Paulista, especializado em otorrinolaringologia. Ele diagnosticou adenoide (acúmulo de tecido linfático na ligação entre os
canais nasais e a garganta) e indicou uma cirurgia. “Ele disse que ela precisava ser operada se não quisesse ter problemas
no avião”, diz a corretora de seguros Sonia Maria Oliveira Menezes, mãe de Camila. Segundo Sonia, alguns minutos depois
do início da cirurgia, Garrafa Neto se despediu dela dizendo que tudo estava correndo bem e Camila ficaria aos cuidados da
equipe. Algum tempo depois, ele voltou às pressas ao hospital, pôs o avental e mandou chamar Sonia ao centro cirúrgico.
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63
Camila estava morta. Segundo o laudo do Instituto Médico-Legal (IML), Camila sofreu hemorragia e choque
hipovolêmico (morte por falta de sangue). Uma artéria foi perfurada durante a cirurgia, sem que os assistentes de Garrafa
Neto tivessem notado e tentado estancar o sangramento, diz o laudo. O hospital contestou o laudo do IML. Depois de uma
disputa de 12 anos, os médicos e o hospital foram condenados a indenizar a família. Procurado pela reportagem, Garrafa
Neto não quis se manifestar. Segundo o Hospital Paulista, a morte pode ter sido causada por parada cardíaca, uma
“fatalidade” inerente a qualquer tipo de cirurgia. “É impossível que o rompimento de um grande vaso não tenha sido
percebido durante a cirurgia”, diz Braz Nicodemo Neto, diretor presidente do hospital. “Seja como for, foi uma vida que se
perdeu. Isso é irreparável.” A morte da filha levou Sonia a procurar vários especialistas capazes de ajudá-la a entender o
que aconteceu. “Eles concluíram que a obstrução nasal era de 50%, e, nessas condições, minha filha nem sequer precisava
daquela cirurgia”, afirma Sonia. “Fomos vítimas do comércio que existe na medicina.”
Como se proteger
Ouvir uma segunda opinião médica e desconfiar de diagnósticos apressados é o melhor que as famílias podem fazer –
pelo menos nos casos em que não se trata de uma cirurgia de emergência. Algumas operadoras de planos de saúde
firmaram parcerias com hospitais para coibir o excesso de cirurgias. Os clientes são estimulados a procurar uma segunda
opinião no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, quando apresentam problemas de coluna. Se os médicos concluem que
não é caso de cirurgia, o paciente é encaminhado para a reabilitação. Em muitos casos, ela é suficiente para garantir
redução de dor e ganho de mobilidade – sem expor o doente a riscos desnecessários. “Apenas 30% dos pacientes que
chegam aqui com indicação de cirurgia de coluna realmente precisam dela”, diz o superintendente Miguel Cendoroglo Neto.
CIRURGIA SEM NECESSIDADE - Sonia Menezes segura uma foto da filha Camila. Aos 19 anos, Camila sentiu dor de ouvido
e foi convencida a se submeter a uma cirurgia de adenoide. Morreu na mesa. “Fomos vítimas do comércio da medicina”,
diz Sonia (Foto: Marcelo Min/Fotogarrafa/ÉPOCA)
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Verifique o risco de complicações - e a estrutura do hospital para lidar com elas
Na grande maioria dos casos, a forma como os planos de saúde remuneram os hospitais favorece a ocorrência de
complicações. “Se invisto em gel alcoólico para reduzir o risco de infecção hospitalar, os convênios não me reembolsam”, diz
Cendoroglo Neto. “Eles remuneram pela complicação, pelos dias a mais de internação, pelo antibiótico que o paciente
consome se a situação dele complicar.” É um sistema que incentiva a doença – não a saúde.
A cabeleireira Welzita de Jesus Correia Silva internou-se em 2003 no Hospital Montreal, em Osasco, para remoção do
útero. Aos 35 anos, mãe de dois adolescentes, ela imaginava que receberia alta em dois dias. Depois de uma complicação
cirúrgica, passou 17 meses em coma e morreu. “Não acreditava no que aconteceu. Passei um ano dormindo no hospital
todas as noites, até que o médico me disse que eu também corria risco de pegar uma infecção”, diz o viúvo, João Santana
Martins da Silva. Segundo a ação judicial, o intestino de Welzita foi perfurado. Ela foi submetida a uma segunda cirurgia,
sofreu infecção e parada cardíaca. Os equipamentos de emergência não funcionaram, e a oxigenação do cérebro ficou
prejudicada. No início deste mês, o hospital foi condenado a indenizar João e os dois filhos, mas ainda pode recorrer.
Procurado por ÉPOCA, não se manifestou.
Como se proteger
A informação é a melhor arma. O paciente ou a família precisam perguntar sobre – e entender – todos os riscos
envolvidos no procedimento médico. A lei garante livre acesso a todos os documentos médicos: prontuários, exames etc. Ao
escolher um hospital, é preciso observar se ele tem a estrutura e a capacidade técnica necessárias para realizar o
tratamento. “Se a paciente se submeterá a uma cesárea, deve escolher um hospital com UTI adulta e UTI neonatal. E nunca
aceitar se submeter a cirurgias plásticas, ortopédicas ou qualquer outra em clínicas”, diz a advogada Renata Vilhena Silva,
especializada em direito à saúde.
EQUIPAMENTOS QUE NÃO FUNCIONARAM - João Martins da Silva passou um ano dormindo no hospital, ao lado da mulher,
Welzita. Complicações numa cirurgia de útero a deixaram em coma durante 17 meses. Ela morreu com 37 anos (Foto:
Marcelo Min/Fotogarrafa/ÉPOCA)
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Verifique se o hospital tem checagem de medicamentos
Eventos adversos são as complicações graves provocadas pelo cuidado que o paciente recebeu no hospital – e não pela
evolução natural da doença. Um dos problemas mais comuns é a administração de remédios errados ou de substâncias que
nem sequer são medicamentos, como ocorreu recentemente com uma idosa que recebeu café com leite na veia, num
hospital fluminense. “Os erros acontecem quando o hospital não tem um sistema seguro de controle da medicação. Não
adianta culpar só o auxiliar de enfermagem que aplicou o remédio”, afirma Ana Tereza Cavalcanti de Miranda, coordenadora
de acreditação de serviços de saúde do Consórcio Brasileiro de Acreditação (CBA).
Como se proteger
Nas áreas em que é permitida a
presença de um acompanhante, ele
deve ficar atento à movimentação dos
auxiliares de enfermagem e verificar o
que injetam no paciente. O familiar pode
e deve verificar os rótulos e as etiquetas
dos produtos e fazer perguntas, sempre
que achar necessário. O cuidado para
reduzir erros deve ser uma obsessão do
hospital e
começar nas etapas
anteriores. Uma solução é a adoção das
prescrições
eletrônicas.
A
receita
digitada pelo médico vai direto para a
farmácia. O farmacêutico faz a primeira
checagem: avalia se o médico não errou
o nome ou a dosagem do medicamento.
Se a receita lhe parecer estranha, tem
obrigação de entrar em contato com o
médico.
A
farmácia
envia
o
medicamento ao setor onde está o
paciente.
Quem
recebe
é
a
enfermagem, que faz uma nova
checagem. Antes de aplicar a droga, o
profissional verifica a prescrição pela
terceira vez e confere a pulseira com o
nome do paciente. Além de zelar pela
segurança dos doentes, os hospitais que
adotam o sistema reduzem custos.
“Perdíamos 30% dos medicamentos por
prazo de validade vencido, furtos ou
porque os pacientes recebiam doses
mais altas do que precisavam”, diz
Vanderlei Timbó, coordenador de
qualidade do Hospital São Vicente de
Paulo, no Rio de Janeiro. “Esse índice
baixou para 0,3%. Hoje temos certeza
de que os pacientes recebem o
medicamento necessário.” As melhorias
ocorreram desde 2008, quando o
hospital filantrópico recebeu o primeiro
selo de qualidade da JCI. “Desde 2011,
não tivemos nenhum evento indesejável
provocado por falha de identificação do
paciente”, diz Timbó.
As melhorias de desempenho
poderiam ser ainda mais notáveis se as
informações se tornassem públicas. Nos
Estados Unidos, a Sociedade dos
Cirurgiões Torácicos saiu à frente.
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Quem precisa de uma cirurgia cardíaca entra no site da entidade (www.sts.org) e confere os índices de complicação, as
taxas de sucesso e outros parâmetros de cada hospital. Eles recebem estrelinhas de acordo com a qualidade dos serviços. É
um primeiro passo. “Se qualquer um pode entrar na internet e ver onde Bill Gattes e Warren Buffett colocam o dinheiro, por
que não podemos conhecer o desempenho dos hospitais?”, afirma Makary. Para ele, pode demorar, mas a cultura da
transparência acabará se estabelecendo por pressão dos que usam hospitais. “Precisamos educar o paciente para que ele
saiba usar os dados a seu favor”, diz Costa Jr., do CBA. Chegará o dia em que entraremos num hospital sabendo
exatamente nas mãos de quem entregaremos nosso patrimônio mais precioso: nossa saúde e de nossos familiares.
CRISTIANE SEGATTO é Repórter especial, faz parte da equipe de ÉPOCA desde o lançamento da revista, em 1998. Escreve
sobre medicina há 17 anos e ganhou mais de 10 prêmios nacionais e internacionais de jornalismo. Revista ÉPOCA, Janeiro de
2015 (matéria reeditada e originalmente publicada em 01/12/2012).
Chega de descaso na saúde (LEANDRO FARIAS)
MEU NOME é Leandro Farias, tenho 25 anos, e há cinco meses enterrei minha jovem mulher, Ana Carolina Domingos
Cassino, 23. Ela foi mais uma vítima de descaso neste país: morreu por causa de uma apendicite - em pleno século 21 após esperar 28 horas por essa simples cirurgia em um hospital particular da Barra da Tijuca, no Rio.
Ana Carolina, como outros 50 milhões de brasileiros, tinha um plano de saúde na falsa certeza de que quando
precisasse teria um atendimento digno e humanizado. A grande mídia detona a saúde pública em seus noticiários e, em
seguida, nos empurra goela abaixo propagandas de planos privados, buscando nos fazer acreditar que essa é a solução para
todos os nossos problemas. Ledo engano. O governo, por sua vez, incentiva ainda mais a adesão aos planos de saúde --seja
por meio de isenções e incentivos fiscais, seja através de uma agência reguladora.
Essa agência sempre deixou bem claro que tem por objetivo defender os interesses dos grandes empresários da saúde.
Basta observar a composição da sua diretoria, formada a partir de indicações do governo, com aprovação do Senado,
ocupada por diretores de hospitais particulares, administradoras de benefícios (Qualicorp, por exemplo), entre outros. Sem
contar a falta de fiscalização em relação à modalidade dos planos coletivos por adesão. Os órgãos e instituições públicas da
saúde estão contaminados pelos interesses dos grandes empresários. Ministério da Saúde, ANS (Agência Nacional de Saúde
Suplementar), Conselho Regional de Medicina, Vigilância Sanitária, entre outros, não cumprem com o seu papel e, com isso,
cabe ao Judiciário fazer valer o direito à saúde, como consta do artigo 196 da Constituição Federal.
A Justiça fica, com isso, sobrecarregada por demandas que poderiam ser facilmente resolvidas. Faça uma visita ao
plantão judiciário de sua região e entenderá do que estou falando. A judicialização da saúde demonstra sua importância,
porém não é a única solução. Apenas punir exemplarmente os responsáveis por praticar crimes é enxugar o gelo.
Precisamos conscientizar a sociedade e saber que todos nós temos direitos e deveres.
Nesse sentido surgiu o movimento Chega de Descaso (www.chega dedescaso.com.br), organização da sociedade civil
que visa estimular a consciência crítica na sociedade, de maneira a retomarmos a vertente da participação social que vem
diminuindo desde a construção do SUS (Sistema Único de Saúde). Queremos promover um grande debate e uma maior
interação entre profissionais de saúde e usuários. Acreditamos que a solução para o problema da saúde está em um SUS
público, 100% estatal, universal e de qualidade. Precisamos valorizar a defesa do direito à saúde por meio do fortalecimento
das lutas contra a mercantilização desta.
Sabemos que saúde se produz com acesso a recursos, mas para que haja desenvolvimento econômico precisamos de
uma população saudável e com qualidade de vida. Nesse cenário, o movimento Chega de Descaso se apresenta como um
novo movimento sanitário e convidamos a todos a fazerem parte dessa luta.
LEANDRO FARIAS, 25, farmacêutico da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), é um dos integrantes do movimento Chega de
Descaso. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Janeiro de 2015.
Obesidade, antibióticos e o microbioma (DRAUZIO VARELLA)
AS CAUSAS da obesidade são mais complexas do que sonha nossa vã filosofia. Fatores genéticos e exageros à mesa
guardam relação direta, mas não explicam inteiramente o fenômeno. Nos últimos anos, diversos pesquisadores têm
estudado os efeitos metabólicos e a influência no aproveitamento de energia exercidos pelos trilhões de micro-organismos
que residem em nossos intestinos. São tantos que o número deles é maior do que o total de células existentes no corpo
humano.
Um dos grupos mais ativos é o de Laurie Cox, da Universidade de Nova York, o primeiro a demonstrar que doses
baixas de penicilina administradas a camundongos jovens alterava-lhes a flora intestinal e a quantidade de tecido gorduroso
acumulado no corpo. No ano passado, o mesmo grupo publicou um artigo na revista "Cell", mostrando que os primeiros
meses de vida são períodos críticos para a formação do microbioma intestinal e das características metabólicas do indivíduo.
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A questão, entretanto, é saber se a idade em que a terapia com antibióticos foi administrada tem influência específica
no aparecimento da obesidade e se esta persiste por mais tempo. Cox e seus colaboradores demonstraram que existe uma
janela ao redor do nascimento, na qual os camundongos são vulneráveis à ação obesogênica da penicilina. Animais cujas
mães receberam o antibiótico durante a gravidez e a amamentação apresentaram aumento do peso corpóreo e da massa de
gordura na vida adulta.
O grupo procurou identificar se o tratamento com penicilina na fase pré-natal aumenta o risco de obesidade em
camundongos alimentados com dietas gordurosas. Descobriram que os dois fatores exercem efeitos seletivos e
independentes na composição da flora intestinal e na porcentagem de gordura corpórea. Finalmente, os autores
questionaram se a flora intestinal dos camundongos tratados provocaria efeitos semelhantes ao ser transferida para os
intestinos de camundongos criados em ambientes estéreis.
Os resultados revelaram que animais com três semanas, criados livres de germes, ao receber a flora intestinal do grupo
tratado com penicilina ganhavam peso e gordura com mais facilidade. Esses resultados deixam claro que as alterações
metabólicas não são causadas diretamente pelo antibiótico, mas por modificações do microbioma intestinal. A identificação
dos fatores que modificam a flora do aparelho digestivo pode esclarecer as diferenças individuais na vulnerabilidade às
dietas de alto teor calórico.
Em seres humanos, os estudos epidemiológicos sugerem que o risco de obesidade infantil estaria ligado a intervenções
associadas à composição do microbioma intestinal - como o tratamento com antibióticos nos primeiros anos de vida e o
parto cesariano, que impede o contato com os microrganismos maternos presentes no canal de parto. Até o momento, no
entanto, não há evidências diretas de uma relação de causa e efeito entre a composição da flora intestinal e a obesidade de
seres humanos. Além do mais, transferir para o homem dados obtidos em camundongos é um desafio científico
considerável.
Embora o tratamento com antibióticos nas mais tenras idades possa guardar relação com a obesidade futura, a janela
crítica e a duração dos efeitos certamente serão diferentes em camundongos e homens. Há que considerar ainda o impacto
da descoberta dos antibióticos na redução da mortalidade infantil. No caso de uma infecção grave, quem deixaria de
prescrevê-los por medo de que a criança se tornasse obesa mais tarde? Podemos também especular que, nas famílias com
grande número de obesos, antibióticos administrados logo após o nascimento poderiam reverter os efeitos obesogênicos da
flora materna transferida para o bebê no parto vaginal.
A obesidade é fenômeno de alta complexidade associada a fatores evidentes, como o excesso de aporte calórico, a
hereditariedade e a outros ainda nebulosos, como os descritos nesta coluna. Atribui-la exclusivamente à glutonaria dos
obesos é ignorância. Como disse o jornalista H. L. Mencken: "Para todo problema complexo existe sempre uma solução
simples, elegante e completamente errada".
DRAUZIO VARELLA é médico cancerologista. Por 20 anos dirigiu o serviço de Imunologia do Hospital do Câncer. Foi um dos
pioneiros no tratamento da Aids no Brasil e do trabalho em presídios, ao qual se dedica ainda hoje. É autor do livro 'Estação
Carandiru' (Companhia das Letras). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Janeiro de 2015.
Para mudar a cultura de cesarianas (ARTHUR CHIORO E MARTHA OLIVEIRA)
O BRASIL vive uma epidemia de cesarianas. A taxa, que é de 40% no SUS, chega a 84% nos planos de saúde. Esse
índice está muito acima do recomendado pela OMS (Organização Mundial de Saúde) e do que é praticado em outros países
com assistência obstétrica qualificada.
Transformou-se em um problema que vem se agravando ano a ano. A cesárea feita sem necessidade aumenta em 120
vezes a probabilidade de surgimento de problemas respiratórios para o recém-nascido, em 25% os óbitos infantis neonatais
e triplica o risco de morte materna. Por isso, demos prioridade a esse tema. O Ministério da Saúde e a ANS (Agência
Nacional de Saúde Suplementar) adotaram medidas para valorizar o parto normal e dar à mulher o seu direito de escolha
por meio do acesso à informação, assegurando uma escolha consciente.
Para a elaboração da resolução nº 368 de 7 de janeiro, foi feita uma consulta pública que permitiu o envio, durante um
mês, de contribuições de todos os setores da sociedade civil, inclusive de operadoras e entidades representativas. Uma das
ações mais importantes previstas na normativa é a possibilidade de as mulheres solicitarem às operadoras os percentuais de
cirurgias cesarianas e de partos normais por médico, estabelecimento de saúde e operadora. Com isso, as mulheres estarão
mais bem informadas na hora de tomar decisões relativas ao seu pré-natal, parto e pós-parto.
A resolução também determina a obrigatoriedade do preenchimento do partograma, documento que registra tudo o
que ocorre durante o trabalho de parto, trazendo mais segurança e induzindo a qualificação do parto. Medida que protege a
gestante, mas também o obstetra e o hospital, inclusive para justificar a adequada indicação de uma cesárea. Isso não
significa que estamos demonizando a cesariana e os obstetras. O parto cesáreo é uma conquista científica, que, quando
indicado corretamente, salva vidas. O que não podemos aceitar é o excesso.
Sem a indicação técnica adequada, a cesárea é um procedimento cirúrgico que traz riscos à saúde da mulher e da
criança. Portanto só deve ser feita quando há indicação para isso ou solicitação expressa, prévia e consciente da gestante.
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Infelizmente o que se vê hoje, principalmente na saúde suplementar, é o agendamento de cesarianas sem indicação
segura, antes mesmo de a mulher entrar em trabalho de parto e do período de maturidade do bebê. Não queremos com
essas ações intervir no direito de escolha das mulheres. Pelo contrário. A decisão deve ser consciente dos riscos e vantagens
e sempre tomada no âmbito da relação médico-paciente. Mas o parto deve ser encarado como uma questão de saúde.
As medidas são parte de diversas ações que estão sendo adotadas por entidades públicas e privadas para reforçar o
incentivo ao parto normal. No SUS, por exemplo, a estratégia Rede Cegonha incentiva o parto normal humanizado desde o
planejamento familiar, já na atenção básica, e beneficia, com incentivos financeiros, as maternidades que aderem ao
programa. Investimos no aprimoramento da formação médica e das obstetrizes e desenvolvemos instrumentos para
informar e conscientizar a mulher sobre as vantagens do parto normal.
Garantir o direito das mulheres a uma escolha consciente é um desafio não só do Ministério da Saúde e da ANS, mas
de todos os envolvidos nesse processo: os gestores de saúde, as operadoras de planos de saúde, os hospitais, os médicos,
os enfermeiros e, principalmente, as gestantes. Mudar a cultura de cesariana no Brasil é uma prioridade para a sociedade
brasileira.
MARTHA OLIVEIRA, 39, é diretora-presidente interina da ANS - Agência Nacional de Saúde Suplementar. ARTHUR
CHIORO, 51, é ministro da Saúde. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Janeiro de 2015.
“Quer dizer que médico pode chorar?" (CRISTIANE SEGATTO)
Como um professor da
Faculdade de Medicina da
Unicamp ajuda os alunos a
trocar o cinismo pela
capacidade de se colocar no
lugar do paciente
O quadro Udslidt (algo como
“desgastado”, em
dinamarquês), do pintor Hans
Andersen Brendekilde (18571942) retrata uma mulher
que chora a morte do pai num
campo recém-arado por ele
(Foto: Reprodução)
O
CARIOCA
Marco
Antonio
de
Carvalho-Filho,
professor da Faculdade de
Medicina da Universidade de
Campinas, é uma daquelas
figuras boas de conversa que
cativam os alunos sem fazer
força. Aos 40 anos, ele entende
e fala a língua dos jovens. Nos
últimos anos, Carvalho-Filho
trabalha para reverter um
fenômeno cruel detectado na
Unicamp.
Os calouros de medicina
escolhem a profissão movidos
por sentimentos nobres (como
entender o ser humano e aliviar o sofrimento), mas são deformados ao longo da experiência universitária. Para enfrentar o
problema, o professor criou uma série de atividades baseadas em recursos das artes e da psicologia. O objetivo é
desenvolver nos futuros médicos a chamada empatia – a capacidade de compreender o sentimento ou a reação de outra
pessoa imaginando-se nas mesmas circunstâncias.
No primeiro ano, Carvalho-Filho usa obras de arte e textos literários nas aulas. O quadro Udslidt (algo como
“desgastado”, em dinamarquês), do pintor Hans Andersen Brendekilde (1857-1942) retrata uma mulher que chora a morte
do pai num campo recém-arado por ele. É o pretexto para falar sobre a morte e os sentimentos relacionados a ela.
“Discutimos a impotência e as fantasias de poder que o médico pode ter como mecanismo de defesa”, diz Carvalho-Filho.
“Isso pode levá-lo a indicar tratamentos fúteis que apenas prejudicam os pacientes”.
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Durante uma pesquisa acadêmica orientada por ele e realizada pelo médico Marcelo Schweller, alunos do quarto e do
sexto anos foram convidados a atender pacientes fictícios, representados por atores profissionais de forma bastante realista.
Os níveis de empatia antes e depois das atividades foram avaliados por meio de uma escala internacional de empatia
médica. O desempenho dos alunos do quarto ano aumentou de 115 pontos para 121. Entre os do sexto ano, o crescimento
foi de 117 pontos para 123. O trabalho, publicado na revistaAcademic Medicine, tem sido apresentado em vários congressos
médicos internacionais. A seguir, Carvalho-Filho explica como exemplos negativos recebidos durante a faculdade moldam o
caráter dos futuros médicos.
ÉPOCA - O ensino de medicina provoca nos alunos uma espécie de antipatia em relação ao pacientes?
Marco Antonio de Carvalho-Filho - Não é exatamente antipatia. Entrevistei os calouros durante três anos consecutivos.
Queria saber por que eles haviam escolhido a profissão. Mais de 70% diziam que a principal motivação era ajudar o
próximo. A segunda era conhecer o ser humano. Citavam exatamente as virtudes que esperamos que um médico tenha.
Infelizmente, a tendência ao longo do curso é que eles percam aquelas motivações iniciais e se distanciem dos pacientes.
ÉPOCA - Por que isso acontece?
Carvalho - Filho - Pense na realidade desses alunos. Para entrar numa universidade como a Unicamp, eles precisam ser
alunos de alto rendimento. Vivem em famílias pequenas, têm pais graduados, nunca trabalharam na vida e são solteiros.
São garotos privilegiados.
ÉPOCA - De que forma essa condição privilegiada dificulta a adaptação deles à nova realidade?
Carvalho-Filho - Os alunos chegam superprotegidos, com pouca experiência de fracasso ou perda. A maioria nunca
perdeu ninguém – nem um tio, uma avó. A sociedade produziu uma geração que cresce confinada em casa, sem a vivência
da rua. Isso leva à perda de capacidade de comunicação. Quando esses garotos entram na faculdade de medicina, são
expostos à pobreza e à doença. Os pacientes sofrem, perdem funções, morrem. Quando o aluno está diante do sofrimento e
não tem instrumentos para lidar com ele, cai na armadilha de usar o cinismo. É natural que isso aconteça. O cinismo – ou
distanciamento afetivo – é um mecanismo de defesa.
ÉPOCA - Os estudantes não têm oportunidade de refletir sobre esses sentimentos?
Carvalho-Filho - Falta esse espaço nas escolas médicas, tanto no Brasil como no Exterior. A medicina se desenvolveu de
forma tão tecnológica a ponto de suplantar o conhecimento dos últimos 5 mil anos. Nesse processo de especialização, ela se
aproximou da doença e se afastou do doente. O aluno tem que estudar tanto que se esquece da dimensão humana do
paciente. Quando percebemos isso na Unicamp, decidimos criar um núcleo para lidar com essa questão.
ÉPOCA - Que tipo de intervenção vocês fizeram durante a pesquisa?
Carvalho-Filho - Criamos pacientes fictícios com a ajuda de uma companhia de atores formados na Unicamp. Construímos
pacientes extremamente densos afetivamente. Uma mulher que recebeu o diagnóstico de câncer de mama e não quer se
submeter à cirurgia. Um rapaz que imagina ter uma doença cardíaca e, na verdade, enfrenta um tremendo sofrimento
porque perdeu o emprego e é arrimo de família. Vários outros casos. Os atores usam uma técnica de realismo. Todos sabem
que são atores, mas 96% dos alunos dizem que se sentem diante de pacientes reais. Os alunos atendem esses “pacientes”
e depois fazemos um debate. Discutimos os sentimentos e as habilidades de comunicação que cada um demonstrou.
ÉPOCA - Eles se emocionam?
Carvalho-Filho - É espetacular. É a redescoberta da pureza. Olham para mim e perguntam: “Quer dizer que médico pode
chorar? Não preciso virar um robô?”. Claro que médico pode chorar. Às vezes, uma lágrima expressa mais que qualquer
palavra. Os alunos adoram a atividade. Fazemos das 14 horas às 18 horas. Tem dia que ficamos até às dez horas da noite.
Não querem ir embora. Preciso dizer que tenho filho me esperando em casa.
ÉPOCA - É possível treinar a empatia?
Carvalho-Filho - Empatia é a capacidade de se colocar no outro, de entender o outro e ajudá-lo. Alguns estudos sugerem
que há um componente cognitivo nessa história -- algo que pode ser ensinado e praticado. Mas acredito que o lado afetivo
também pode ser treinado. Ensinamos relação médico-paciente com recursos das artes, da poesia, da música, do teatro. Na
Unicamp, esse curso faz parte do currículo obrigatório do primeiro ano. Na maioria das faculdades, há uma disciplina de
habilidades de comunicação. Ensinam que o médico deve dizer “bom dia” e olhar nos olhos do paciente.
ÉPOCA - Isso basta?
Carvalho-Filho - De jeito nenhum. O aluno precisa perceber que o médico é um especialista na espécie humana. Tanto no
lado afetivo como biológico. Falamos sobre técnicas de comunicação. Como eles devem começar uma conversa, como
deixar o paciente à vontade. O que determina a boa consulta não é o tempo. É a capacidade de ouvir. Quando era
estudante, passa visita no hospital, ia para um bar e só ficava falando sobre os pacientes com os meus amigos. Falava o
tempo todo. É uma forma de elaborar as sensações. Queremos ajudar nossos alunos a aprender a amar esse amor. Se não
aprende isso, faz uma medicina ruim. Não é fugir do sentimento. É aprender a sentir esse sentimento.
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ÉPOCA - Está cada vez mais difícil encontrar um médico que tenha uma boa dose de empatia?
Carvalho-Filho - Se eu chegar à minha casa e perguntar quem teve uma experiência positiva com algum médico no último
ano, vai ser aquele silêncio. Médicos que demonstram empatia são raros. Acho que sempre foram. A medicina deveria ser
uma bandalheira quando o grupo de Hipócrates achou, lá na Grécia Antiga, que era necessário formalizar certas virtudes em
forma de juramento. Hoje, falar em virtude virou tabu na nossa sociedade. O médico bem-sucedido é o médico valorizado
pelo mercado.
ÉPOCA - Por tudo isso, a sociedade perdeu a confiança na classe médica?
Carvalho-Filho - Perdeu. Isso é ruim para a classe médica e para a sociedade. O paciente sofre duplamente: pela doença
e pela falta de confiança. A situação de trabalho da maioria dos médicos está muito difícil. Baixa remuneração, falta de
estrutura, acúmulo de empregos. Com tudo isso, o médico fica reativo. Surge uma série de conflitos nos serviços de saúde.
Eles acabam explodindo no colo do paciente. Acho que se tivermos médicos mais preparados afetivamente, do ponto de
vista humano, vamos conseguir proteger mais o paciente.
ÉPOCA - O que você chama de currículo oculto na medicina?
Carvalho-Filho - São algumas experiências informais que o aluno acumula na faculdade e que ajudam a moldar o caráter
do médico. Boa parte do aprendizado de valores acontece nas festas, no bar, dentro do centro cirúrgico. Um exemplo é o
trote. Estou feliz com toda a discussão sobre o trote. Esse debate precisa crescer. O trote é uma forma de perpetuar o
poder que não tem nada a ver com o bom exercício da medicina.
ÉPOCA - Isso significa que o aluno chega bem intencionado à faculdade e vai sendo deformado ao longo do
curso?
Carvalho-Filho - Na medicina, reproduzimos modelos. Que futuro médico nós teremos se ele vê o melhor cirurgião
destratar a enfermeira corriqueiramente? As demonstrações de poder exercido de forma unilateral são modelos negativos. É
a educação pela humilhação. Um professor que gosta de um aluno e, mesmo assim, o humilha ensina a esse aluno que a
humilhação é uma forma normal de se comunicar. Esse futuro médico vai humilhar a secretária e o paciente.
CRISTIANE SEGATTO é Repórter especial, faz parte da equipe de ÉPOCA desde o lançamento da revista, em 1998. Escreve
sobre medicina há 17 anos e ganhou mais de 10 prêmios nacionais e internacionais de jornalismo. Revista ÉPOCA, Janeiro de
2015.
O que é um bom médico? (CRISTIANE SEGATTO)
Todo hospital tem um Dr. Hodad. Mantenha distância
EM SEU primeiro dia como residente da Universidade Harvard, o cirurgião americano Martin Makary ouviu uma frase
que o marcaria para sempre. “Esse paciente é do Hodad”, disse um dos residentes. O jovem Makary, encantado por receber
treinamento num dos centros médicos mais respeitados do mundo, mal podia esperar o momento de avistar o astro e, se
tudo corresse bem, ser aceito como discípulo.
Mais tarde, envergonhado, confessou ao colega que nunca tinha ouvido falar no cirurgião Hodad. O amigo respondeu:
“Dr. Westchester é Hodad. É assim que nós, os residentes, o chamamos. H-O-D-A-D significa Hands of Death and
Destruction (mãos de morte e destruição)”. O médico era um perigo ambulante. O excesso de autoconfiança o levava a
cometer sucessivos erros cirúrgicos. Hodad se achava bom em tudo. Arriscava-se e colocava os doentes ao risco ao
realizar operações que não eram sua especialidade.
Os pacientes nem desconfiavam. Agradeciam pelo tratamento recebido e o recomendavam aos amigos. O jovem
Makary não entendia como os pacientes podiam ter uma percepção tão equivocada de um cirurgião que, sob o julgamento
técnico dos colegas, era ruim. Conseguiu entender quando passou a acompanhar o médico mais velho nas visitas aos
pacientes. Hodad era simpático, divertido, caloroso, bom de conversa. Os pacientes o adoravam. Até quando uma
complicação ocorria, o que não era raro, Hodad era capaz de arranjar uma desculpa. Os doentes iam para casa convencidos
de que ele não errara e felizes por terem estado em boas mãos.
Do ponto de vista técnico, Hodad era uma fraude. Do ponto de vista de popularidade, era um espetáculo. No mesmo
hospital, trabalhava outro cirurgião. Um grandalhão, de cara amarrada e péssimos modos. Grosseiro, na maior parte das
vezes. Sempre pronto a humilhar as enfermeiras e outros funcionários. Os alunos o chamavam de Raptor. Tinham medo
dele. Os pacientes também. Raptor acumulava queixas de maus modos no departamento de atendimento ao cliente. Muitos
pediam para ser operados por Hodad, o picareta com fama de excelente médico.
Os observadores bem informados ficavam intrigados com a ironia da situação. Apesar de seu comportamento terrível,
Raptor tinha qualidade técnica muito acima da média. A incrível precisão cirúrgica e a insistência de se aproximar da
perfeição a cada procedimento fizeram dele o cirurgião de melhor reputação entre os colegas. Até os que odiavam seus
modos eram capazes de reconhecer sua superioridade técnica. Ao longo da carreira, Makary viu chefes de Estado,
celebridades, CEOs e outros poderosos caírem nas mãos de gente como Hodad, sem ter a menor ideia do risco que corriam.
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Viu também moradores de rua operados por brilhantes Raptors, sem desconfiar de que eles eram a elite da profissão. Essa
é uma história universal. Quase todo hospital tem um Hodad e um Raptor. E profissionais de todo tipo entre esses dois
perfis extremos. No Brasil, é exatamente assim – sobretudo naqueles que são considerados os melhores hospitais.
Se até os poderosos estão sujeitos aos Hodads, como o cidadão comum pode saber se o profissional e o hospital
escolhido é bom mesmo? Podemos escolher hotéis e restaurantes a partir de critérios técnicos, mas somos impedidos de
comparar as diferentes instituições de saúde a partir de parâmetros objetivos. Qual é o índice de infecção do hospital A? E
as taxas de complicação do B? Qual é a sobrevida de quem faz uma cirurgia cardíaca ou um transplante aqui ou ali? Esses
dados existem. Pelo menos no grupo de 21 hospitais brasileiros que dispõem de um selo de qualidade emitido por uma
entidade chamada Joint Commission International. Por enquanto, porém, essas informações são guardadas a sete chaves.
Ainda que um hospital divulgue um ou outro parâmetro (em geral, o que lhe é favorável), não podemos comparar as
diferentes instituições. Makary defende a divulgação desses dados. E acha que, mais cedo ou mais tarde, ela vai acontecer.
Por exigência da sociedade. Hoje o americano é um cirurgião reconhecido e comentarista de redes de TV americana como
CNN e Fox News.
Ele defende essa ideia no livro Unaccountable: What Hospitals Won’t Tell You and How Transparency Can Revolutionize
Health Care (em português, Sem prestar contas: o que os hospitais não contam e como a transparência pode revolucionar o
atendimento à saúde). A obra recém-lançada nos Estados Unidos ainda não tem editora no Brasil. “Muitos médicos estão
tão frustrados com as perversidades do sistema de saúde quanto os pacientes. Um estudo recente demonstrou que 47%
dos médicos americanos sofrem de síndrome de burnout (stress crônico provocado pelas condições de trabalho)”, disse
Makary a ÉPOCA. “Acho que meu livro se conecta com essas frustrações."
Na complexa e controversa área da saúde, o livro de Makary é um dos melhores que li recentemente. Uma discussão
que faz todo sentido no Brasil. Nos últimos dez anos, a parcela de beneficiários de planos de saúde cresceu 50% no país.
Hoje somos 47 milhões. Nas grandes capitais, as obras de expansão dos hospitais estão por todo lado. Ainda assim, as
novas alas são insuficientes para atender tanta gente. Há filas de quatro horas nos pronto-socorros e reclamações
constantes. Nesse cenário, a qualidade fica comprometida. Saber qual hospital zela por ela e qual investe apenas em
aparência deveria ser um direito do cidadão. Divido com vocês algumas das observações de Makary: Operar o paciente
errado ou um membro errado é o tipo de coisa que nunca deveria acontecer. Ainda assim, descobrimos que ocorrem 80
erros desse tipo toda semana apenas nos Estados Unidos. Mesmo nos melhores hospitais. O médico que atende as
celebridades não é, necessariamente, melhor que os outros. Alguns se tornam famosos porque executam bem algum tipo de
procedimento. São bons em alguma coisa específica. Isso não significa que eles sejam bons em tudo. Um médico pode ter
muita experiência em cirurgia cardíaca, mas ele não será a melhor opção se o paciente precisar de uma cirurgia de abdome.
Muitos médicos constroem uma reputação, ficam famosos e depois não se atualizam. É péssimo para o paciente. A
melhor forma de escolher um médico é se informar sobre a doença e buscar uma segunda opinião. Há um movimento para
tornar a medicina mais transparente. Sou otimista. Chegará o dia em que os hospitais terão de prestar contas sobre seus
resultados (taxa de infecção hospitalar, erros de medicação, complicações etc), do mesmo jeito que prestam contas sobre
suas finanças. Segundo Makary, a nova geração de estudantes pensa diferente da velha guarda da medicina. Insistem em
saber, com objetividade, o que de fato ocorre atrás das portas fechadas. Que a informação e o anseio por transparência
contamine toda a sociedade. É questão de vida ou morte.
CRISTIANE SEGATTO é Repórter especial, faz parte da equipe de ÉPOCA desde o lançamento da revista, em 1998. Escreve
sobre medicina há 17 anos e ganhou mais de 10 prêmios nacionais e internacionais de jornalismo. Revista ÉPOCA, Janeiro de
2015.
Do apagão ao clarão na saúde (CLAUDIO LOTTENBERG)
UM DIAGNÓSTICO do Brasil neste momento mostra um paciente em estado grave. Sinais vitais da economia, como
inflação, juros, taxa de desemprego e índice de crescimento recomendam cuidados.
O maior patrimônio empresarial está debilitado pelo cancro da corrupção. A síndrome do apagão causa perturbações
no cotidiano das famílias, das instituições que prestam serviços, da indústria e do comércio. A falta de ética contamina
relações políticas e sociais. A ganância fiscal aumenta a obesidade de órgãos públicos esclerosados. A descrença na classe
política dissemina uma apatia quase generalizada na sociedade brasileira.
Na saúde, que já apresenta problemas crônicos, o prognóstico é preocupante. Embora o setor seja responsável pela
movimentação de 9,3% do PIB nacional, o investimento per capita é proporcionalmente muito inferior ao que é gasto em
outros países, chegando a pouco mais de US$ 1.000 por ano. Isso num cenário em que as despesas de saúde registram
altas superlativas. De 2004 a 2013, por exemplo, cresceram 133,7%, mais que o dobro da variação do IPCA no mesmo
período (60,1%). Pior que a escassez de recursos é o desperdício. Milhões e milhões de reais que deveriam servir para
melhorar a assistência médica, a saúde e o bem-estar das pessoas, são drenados para sistemas viciados como gestão
perdulária, ineficiência de processos, judicialização, corporativismo e regulação anacrônica. O aumento da população com
mais idade, advento de novas drogas, mudanças no estilo de vida e inovações tecnológicas tornam mais complexa a gestão
da saúde e sua sustentabilidade financeira.
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Em todo o mundo, autoridades públicas e representantes do setor privado buscam fórmulas para alcançar um modelo
saudável. O Brasil, no entanto, persiste no erro de ministrar os paliativos programas compensatórios. Há outros sintomas
graves, como o resultado do recente exame de avaliação do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. De
2.411 formandos de 28 escolas médicas do Estado, 54,5% foram reprovados porque não conseguiram responder ao menos
60% das questões em nove áreas básicas sobre medicina.
Como todo paciente em estado grave, o Brasil precisa de terapia intensiva com o apoio de todos que possam colaborar
para sua recuperação. O hospital Albert Einstein, com 60 anos de história e liderança em saúde no Brasil, não poderia deixar
de contribuir, e atua em várias frentes. No campo da formação, onde já mantém cursos técnicos, graduação, pós-graduação
e MBA, com 3.500 alunos, o Einstein lançará em breve a sua faculdade de medicina.
No âmbito de parcerias públicas, no primeiro semestre deve ser aberto um hospital público de alta complexidade em
São Paulo para atuar, principalmente, na realização de transplante hepático para pacientes do SUS (Sistema Único de
Saúde) - será o segundo sob gestão do Einstein na periferia da cidade. Os desafios presentes na área da saúde exigem
visão multidisciplinar e novas abordagens. Neste sentido o Einstein, desde o ano passado, tem reunido alguns líderes e
visionários de várias partes do mundo, para repensar saúde, debater a medicina do amanhã e, à luz de experiências
internacionais bem sucedidas, encontrar novos elementos para oxigenar as discussões no nosso país.
São iniciativas importantes que, isoladamente, não vão resolver os problemas de saúde no Brasil, principalmente
considerando a conjuntura desfavorável do momento. Mas representam mais uma contribuição em busca de um cenário
onde a sociedade brasileira possa vislumbrar algum clarão. Sob essa perspectiva é importante o compromisso com a atitude
coerente de quem deseja melhorar o nosso país.
CLAUDIO LUIZ LOTTENBERG, 54, é presidente da Sociedade Beneficente Israelita Albert Einstein. Jornal FOLHA DE SÃO
PAULO, Fevereiro de 2015.
Ignorante com poder e sem poder - um problema no âmbito da legalização
do aborto (MÁRCIA TIBURI)
Eduardo Cunha, o presidente da
Câmara dos Deputados
A FRASE de Eduardo Cunha “aborto
e regulação da mídia só serão votados
passando por cima do meu cadáver”
pronunciada esta semana no clima
truculento que caracteriza a má política
brasileira atual (salvo exceções, nunca é
demais dizer) provocou muitas críticas.
Regulação da mídia é assunto para outro
texto. Mas a questão do aborto é urgente
enquanto a truculência passa por cima de
mulheres que morrem, vítimas da
ilegalidade.
Militantes da questão do aborto
voltaram a levantar argumentos em nome
da legalização com a maior seriedade.
Quem defende a legalização do aborto
sempre toma o cuidado de deixar claro
que ninguém é a favor do aborto puro e
simples. Que a questão do aborto é a do
direito das mulheres à saúde e ao seu
próprio corpo, bem como à sua escolha de
vida. Quem fala em nome da legalização
do aborto põe em cena a exigência de respeito própria ao desejo de democracia que ainda nos permite viver em sociedade.
Penso nisso bastante perplexa com o fato de que a ignorância prepotente e truculenta não se cansa de falar sobre o
aborto. É de estarrecer o sucesso de grosserias que parlamentares vem dizendo há tempos. O sucesso que fazem entre
eleitores igualmente grosseirões. Por que não se calam? Podemos nos perguntar, mas não podemos perguntar a eles. Seria
uma grosseria do mesmo nível. E, pior: não seria escutada. Problema é que aqueles que falam contra a legalização não
ouvem o que dizem aqueles que a defendem. Não ouvem as próprias mulheres enquanto legislam sobre elas.
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E falam demais. E por que falam pensando que dizem verdades, não se calarão. Consideram a si mesmos, como
qualquer personalidade autoritária, donos do outro a quem tomam por “ninguém”. São atualmente os donos do Brasil e
agem como donos dos corpos e mentes das brasileiras que, de algum modo, eles levam à morte, no contexto do aborto
ilegal. É o mesmo caso do que acontece com a ilegalidade das drogas. A ilegalidade mata. Ela é a garantia de que os
abandonados pelo Estado não incomodarão nunca mais.
Ignorante com poder e sem poder
Enquanto mulheres morrem, a fala estúpida do deputado reverbera em mentes ignorantes que se regozijam com
clichês. Quem ama os clichês (como Eichmann, Hitler e Eduardo Cunha) deve se pensar o mais inteligente dos homens
como só os canalhas pensam acerca de si mesmos.
Certamente o papel de um parlamentar não é uma questão para quem se pronuncia dessa maneira. Certamente quem
se pronuncia dessa maneira não foi ensinado a escutar. A palavra diálogo certamente não faz parte da gramática da
agressividade que é o jogo de linguagem no qual parlamentares dessa linhagem alimentam seu espírito autoritário.
Penso nessas pessoas que, sendo vítimas de uma cultura irreflexiva em que a ignorância sempre foi mais elogiada que
a escola, concordam com a estupidez de Eduardo Cunha. Mas penso que há uma diferença entre os ignorantes. Entre
aquele que vota e aquele que é eleito. Um é simples, sem poder; o outro é complexo, com poder.
Eduardo Cunha não é evidentemente um ignorante simples. Ele é um ignorante complexo porque tem poder. Hoje ele
tem ainda mais poder como presidente da Câmara. O que se pode fazer para deter os efeitos da ignorância complexa que é
a de quem tem poder? O que se pode fazer para evitar que a ignorância prepotente, essa ignorância que se constitui em
comunidade, tome o poder?
Podemos partir de uma autorreflexão crítica, sempre é bom antes de votar. E é bom também na hora de defender
verdades supostas. Seria bom que as mulheres tomassem mais espaço no poder. Continuo pensando que esse não é um
assunto de quem não engravida. Enquanto isso, a mentalidade ignorante quanto à questão do aborto tem vencido. Nós,
mulheres, seguimos abortando.
As pessoas não sabem o que dizem quando falam contra o aborto
É bom divulgar argumentos relativos à saúde das mulheres, ao direito sobre o corpo, ao preconceito religioso e de
classe que impera na mentalidade geral sobre o tema do aborto. Mas é bom também levantar o sentido dessa ignorância
comum, pois as pessoas não sabem o que dizem quando essa é a questão. Na falta de expressão elas usam a frase feita, a
ideia construída pela ignorância. É a falsa expressão o que está em cena quando se fala preconceituosamente sobre aborto.
As pessoas não falam o que realmente pensam, elas simplesmente repetem discursos a partir do que é transmitidos por
igrejas e meios de comunicação de massa comprometidos com o poder na sua forma de opressão. Oprimir as mulheres não
é novidade nenhuma. O ódio no discurso contra a legalização do aborto defende ocultamente a morte das mulheres pobres
ou desamparadas legalmente no seu ato comum de abortar.
Lastimando
Por fim, gostaria de dizer que a frase grosseira e agressiva do mau deputado é um estímulo à ignorância da nação.
Qualquer coisa que se diga de Eduardo Cunha não escapará ao lamento: seus projetos de lei fascistas, seus
pronunciamentos vergonhosos. Em clima de piada politicamente incorreta (ando lendo muito Nelson Rodrigues que sempre
ajuda em certas guerras) podemos dizer que sua frase é de lastimar, bem como que, na época de sua mãe, o aborto…
Mas falando bem seriamente, sinto muita vergonha de viver em um país com políticos desse tipo e de não poder deixar
de escrever sobre um personagem como esse ignorante com poder.
* Sugiro um texto simples que apresenta argumentos e questões sobre o tema do aborto para qualquer tipo de leitor,
porque é preciso acender as luzes contra o apagão ético e político atual no que concerne ao aborto:
http://catolicas.org.br/destaques/mulheres-cadaveres/
MÁRCIA TIBURI é graduada em filosofia e artes e mestre e doutora em filosofia. É professora do programa de pós-graduação
em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Mackenzie e colunista da revista Cult. Publicou diversos livros de filosofia,
entre eles “As Mulheres e a Filosofia” (Ed. Unisinos, 2002), “Filosofia Pop” (Ed. Bregantini, 2011) e Sociedade Fissurada (Record,
2013). Publicou também romances: Magnólia (2005), A Mulher de Costas (2006) e O Manto (2009), Era meu esse Rosto (Record,
2012). É autora ainda dos livros Diálogo/desenho, Diálogo/dança, Diálogo/Fotografia e Diálogo/Cinema (ed. SENAC-SP). Revista
CULT, Fevereiro de 2015.
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Médico que atende paciente que abortou e a denuncia comete crime de
quebra de sigilo? SIM
Médico ou carcereiro? (JULIANA GARCIA BELLOQUE E GUILHERME MADI REZENDE)
O SIGILO profissional existe para garantir a confiança na relação entre o profissional e a pessoa que o procura,
conferindo eficiência a atividades de interesse público. É da própria essência dessas atividades. Assim é que, desde a
primeira comunhão, os católicos ouvem que o que contam ao padre em confissão é inviolável. Os advogados também
sabem que não podem revelar o que seus clientes lhes confidenciam. Entre a revelação dos segredos e a plenitude da
assistência, a opção democrática sempre foi pela última.
A área de saúde também não prescinde da relação de confiança. E esta não é possível sem o sigilo médico. "Aquilo que
no exercício e fora do exercício da profissão e no convívio da sociedade, eu tiver visto ou ouvido, e que não seja preciso
divulgar, eu conservarei inteiramente secreto", diz o milenar juramento de Hipócrates. O preceito ético incorporou-se na lei
brasileira pelo artigo 154 do Código Penal que diz ser crime "revelar alguém, sem justa causa, segredo de que se tem
ciência em razão de função, ministério, oficio ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem". Constitui crime
a conduta do médico que transforma em caso de polícia sua atenção profissional à paciente em situação de abortamento.
O atendimento adequado exige que se relate exatamente o que aconteceu. Jamais o fará a paciente que correr o risco
de ser presa pelas mãos do médico; pior, temerá a própria procura de auxílio, o que geraria um sério problema de saúde
pública. O compromisso do médico é com a saúde da mulher, assim ele jurou. Médico não é --e não pode querer ser-agente de segurança pública. Não se argumente que haveria justa causa nessa hipótese. Não há.
A justa causa que autoriza a revelação do segredo é aquela que se coaduna com a função social da profissão; a quebra
do sigilo pode ocorrer para salvar vidas, quando o médico tem a informação de que seu paciente provocará danos à saúde
de outrem, podendo intervir para evitar esse mal. Não se pode enxergar causa legítima na atitude persecutória do médico
em relação a condutas pretéritas daqueles que dele se socorrem. Outras normas auxiliam na compreensão do referido
artigo. Durante um procedimento criminal, o médico jamais poderá ser testemunha contra o seu paciente, exceto se por
este expressamente desobrigado do dever de sigilo (artigo 207 do Código de Processo Penal). Parece óbvio que a proibição
de relatar o que sabe sobre um crime abrange o ato de dar origem a uma investigação contra o paciente.
Por outro lado, a contravenção penal de "omissão de comunicação de crime" apenas traz esse dever ao médico quando
a comunicação "não exponha o cliente a procedimento criminal", evidenciando que, neste caso, prevalece o sigilo. Pensar o
contrário seria atingir o âmago do sigilo médico, sua razão de ser. Ele existe especialmente para que aqueles que estejam
em delicada situação - seja do ponto de vista moral, seja do ponto de vista jurídico - não deixem de procurar assistência à
saúde por receio de perseguição pelo Estado.
A que tipo de sociedade interessa que a persecução prevaleça sobre a vida e a saúde de seus integrantes? Não se
duvida que o sigilo médico tenha como objetivo resguardar um interesse público maior. Sendo o abortamento inseguro a
quinta causa de mortalidade materna no país, obstaculizar o acesso da mulher à assistência à saúde, pelo medo de que o
hospital se transforme em prisão, significaria acumular mais e mais cadáveres.
JULIANA GARCIA BELLOQUE, 37, é defensora Pública do Estado de São Paulo. GUILHERME MADI REZENDE, 42, é
advogado criminalista. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Fevereiro de 2015.
Médico que atende paciente que abortou e a denuncia comete crime de
quebra de sigilo? NÃO
Quando a regra não é clara (JANAÍNA CONCEIÇÃO PASCHOAL)
O SIGILO é um dos temas mais carentes de estudo, na atualidade. Casos momentosos, como o de Edward Snowden,
constituem evidência disso. Em regra, condiciona-se o apoio à quebra de sigilo à concordância, ou discordância, com a
temática envolvida. Snowden é considerado herói por uns e terrorista por outros.
Esse início pode soar descabido, mas o caso em análise não diz respeito ao sigilo profissional. A indignação que a
conduta do médico gerou deve-se ao entendimento de que o aborto seria um direito da mulher. Não é raro médicos
notificarem ferimentos por arma de fogo e facadas, que podem resultar em inquéritos contra seus pacientes, sem que haja
tamanha reação.
Deve-se lembrar que o aborto, salvo situações específicas, constitui crime. É bem verdade que o artigo 66, inciso II, da
Lei de Contravenções Penais diz que o médico não está obrigado a notificar crime de ação penal pública, expondo seu
paciente a procedimento criminal. Não estar obrigado, porém, é diferente de estar proibido. Igualmente, é certo que o
Conselho Regional de Medicina de São Paulo já proferiu pareceres no sentido de que o médico que notifica o aborto
provocado comete infração ética. Ocorre que, em muitos desses pareceres, ao falar de outros crimes, aduz-se apenas que o
médico não está obrigado a informá-los. Em nenhum ponto se explica o que diferencia o aborto dos demais delitos.
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Em 2010, o Ministério da Saúde publicou o caderno "Atenção Humanizada ao Abortamento", que fala claramente na
necessidade de mudança de atitude, frisando que cabe ao médico acolher, e não julgar. Uma vez que se requer uma
mudança na abordagem, concluo que a situação não seja líquida e certa.
Em 2014, o Ministério da Saúde editou a Portaria 1.271, que em seu artigo 2º, inciso I, define como agravo, para fins
de notificação compulsória, "qualquer dano à integridade física ou mental do indivíduo, provocado por circunstâncias
nocivas, tais como acidentes, intoxicações por substâncias químicas, abuso de drogas ou lesões decorrentes de violências
interpessoais, como agressões e maus tratos, e lesão autoprovocada". Ora, não seria o aborto, em regra, decorrente de
uma lesão autoprovocada?
Entendo firmemente que médicos que notificam abortos provocados por pacientes não procedem da melhor forma. A
prática pode desestimular a busca de ajuda. Salvo quando haja riscos a terceiros, médicos nunca deveriam ser obrigados a
notificar situação envolvendo pacientes, inclusive quando se trate de abuso de drogas, suicídio tentado e envolvimento em
crime. No entanto, dada a falta de clareza das normas vigentes, mesmo que se admita infração ética, é impossível
reconhecer o crime de quebra de sigilo profissional. A responsabilidade penal exige mais do que a administrativa para se
caracterizar. Deve-se, ainda, ter em mente que situações como a de que ora se trata ocorrem em prontos-socorros, onde o
profissional encontra-se pressionado pelo número de pacientes, pela carência de recursos e pelo pouco tempo para decidir.
Não se pode, ademais, desprezar o temor de vir a ser implicado na provocação do aborto, dada a frequente necessidade de
curetagem.
Por óbvio, a paciente, já fragilizada, foi submetida a constrangimento incompatível com o acolhimento buscado por
quem se dirige a um hospital. Mas é preciso considerar a insegurança do médico. Que sejam editadas normas claras. Que se
criem procedimentos-padrão. Que se cultive a boa prática de manter equipes multidisciplinares nos hospitais, evitando
decisões solitárias. Pelo bem da saúde pública, não podemos permitir que o exercício da medicina se transforme em
atividade de alto risco jurídico, sobretudo, penal.
JANAINA CONCEIÇÃO PASCHOAL, 40, advogada, é professora livre docente de direito penal na Faculdade de Direito da USP.
Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Fevereiro de 2015.
Aborto ilegal, uma forma de feminicídio? (JOSÉ GOMES TEMPORÃO e LENA LAVINAS)
A verdade encoberta pela hipocrisia é que o aborto inseguro e a clandestinidade são fatores de morbidade e de
mortalidade materna no país
AS CONTRADIÇÕES presentes no campo da regulamentação dos direitos individuais e sociais e a ampliação de
iniciativas que ferem os princípios dos direitos humanos mostram-se ainda mais exacerbadas quando o tema diz respeito às
mulheres. O Congresso acaba de aprovar a Lei 8.305, que tipifica o crime de feminicídio. Significa dizer que a antiga
reivindicação do movimento de mulheres e feministas foi, finalmente, validada pela sociedade brasileira. Quando mulheres
são assassinadas por serem mulheres, configura-se crime hediondo, a partir de agora inafiançável. Portanto, aqui há o que
comemorar!
Por outro lado, a cada dois dias morre no Brasil uma mulher vítima de abortamento. O que pensar quando um médico,
desrespeitando o código de ética ao qual prestou juramento, infringe a lei que estabelece que toda mulher em processo de
abortamento deve ser atendida e acolhida com respeito e humanidade? Essa é a postura indutora da morte de mulheres
que ousaram contestar um destino definido por outros — sem sequer o benefício da empatia que deve sustentar o cuidado
em saúde. Essa postura, que leva mulheres a morrer apenas por serem mulheres, não significaria uma prática deliberada de
extermínio daquelas que ousaram contestar seu destino de mulher?
A ONU já recomendou que fosse revista a legislação que criminaliza o aborto no Brasil e em outros países latinoamericanos, por ser absolutamente incompatível com o direito à vida, à dignidade e à segurança das mulheres. Existem
cerca de 30 projetos de lei no Congresso, contrários à descriminalização do aborto, com o intuito de aumentar a punição das
mulheres ou mesmo proibir os casos hoje acolhidos na lei. Diante do não acesso a métodos seguros de interrupção da
gravidez em prazo recomendado inclusive pelo Conselho Federal de Medicina (até 12 semanas), muitas mulheres já buscam
outros países para praticar um aborto seguro. Estamos voltando a uma situação que prevalecia na Europa dos anos 60,
quando somente alguns poucos países tinham legalizada a prática.
A criminalização do aborto no Brasil não impede que ele seja realizado e não reduz a sua incidência, mas impede que
os casos sejam devidamente notificados e aumenta o risco para a saúde e a vida das mulheres, sobretudo das negras e
mais pobres. A Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) de 2009 mostrou que uma em cada cinco mulheres até os 40 anos já fez
pelo menos um aborto. Em metade dos casos, utilizaram medicamentos para a indução do último aborto. Em cerca da
metade desses, houve internação pós-aborto.
Enquanto o debate se mantém restrito ao âmbito religioso, moral e filosófico, o Sistema Único de Saúde atende a mais
de 220 mil mulheres por ano em razão de complicações oriundas de curetagens pós-aborto, sejam elas resultantes de
abortos espontâneos ou inseguros. A verdade encoberta pela hipocrisia é que o aborto inseguro e a clandestinidade são
fatores de morbidade e de mortalidade materna no país entre adolescentes e jovens, de todas as raças e etnias, atingindo,
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sobretudo, aquelas em situação de pobreza. Não fosse crime no Brasil, médicos e hospitais fariam o procedimento com
tranquilidade e mulheres pobres teriam acesso a um serviço seguro, longe de métodos cruéis que, quando não matam,
deixam sequelas irreversíveis, físicas e psíquicas.
Ademais, aumenta também a desinformação. Métodos simples, baratos e seguros já estão disponíveis em muitos
países, mas não entre nós. Todos os dias, a imprensa divulga, com alarde, notícias sobre o comércio ilegal de drogas
abortivas, fechamento de clínicas e prisão de profissionais de saúde envolvidos nesses processos. Todos os que estudam o
tema sabem que essas medidas são absolutamente inócuas e que o aborto continua sendo praticado em larga escala neste
país, que parece ter optado por fechar os olhos para essa grave questão de saúde pública e de cerceamento a um direito
individual das mulheres. Até quando?
JOSÉ GOMES TEMPORÃO é sanitarista e foi ministro da Saúde; LENA LAVINAS é professora do Instituto de Economia da UFRJ.
Jornal O GLOBO, Março de 2015.
A doença da saúde suplementar (MAURICIO CESCHIN)
O CHAMADO escândalo das próteses é um tema importantíssimo, mas constitui apenas um dos sintomas nefastos de
uma doença maior: o modelo de remuneração de prestadores de serviços médicos, principalmente hospitais. É caso de
polícia a indicação que alguns médicos fazem de órteses, próteses e materiais especiais (OPME) sem a devida indicação
clínica com o simples propósito de aumentar seus ganhos financeiros.
A lógica por trás dessa prática, no entanto, é a mesma que incentiva a indicação de uma enorme quantidade de
exames e procedimentos médicos: o modelo atual de remuneração, que estimula o consumo de OPME, de materiais em
geral, de medicamentos e de tecnologia como fonte de receita. É importante dizer que, ao concentrar seu ganho no
almoxarifado, os hospitais buscam compensar a perda que têm com os valores de diárias, taxas e serviços que vêm sendo
comprimidos nas negociações com as operadoras de saúde.
Esse modelo cria graves distorções, como a redução do ganho da maioria dos médicos --que age com lisura--,
comprimido por gastos crescentes com insumos, que respondem às vezes por 60% de uma conta hospitalar, e a realização
de procedimentos desnecessários ou sem a devida comprovação de indicação clínica. Ademais, não há alinhamento com o
propósito do sistema, que deveria ser o de alcançar o melhor desfecho clínico com a melhor equação custo-qualidadeefetividade e incentiva o desperdício em um setor que tem uma carência crônica de recursos.
Para o consumidor de plano de saúde, essa situação se traduz em mensalidades maiores e insegurança clínica. É um
sistema que se alimenta do aumento das receitas pagas pelos beneficiários, e não da racionalidade no uso dos recursos. Se
não mudarmos esse modelo de remuneração, as distorções podem até ser minimizadas, mas serão substituídas por outras
mais elaboradas. Vão continuar alinhadas a incentivos econômicos que atendem aos interesses de alguns atores da cadeia
produtiva, mas não aos daqueles de quem se pretende cuidar. Tanto para hospitais como para operadoras, a mudança de
modelo é também desejável.
O que sistemas de saúde mais desenvolvidos praticam é a chamada remuneração por pacotes e diárias globais, em que
são negociados valores fixos atrelados à condição clínica do paciente e a protocolos balizadores de tratamento. Alguns mais
avançados já envolvem um percentual de remuneração condicionado ao sucesso efetivo alcançado para o paciente. O nome
do jogo passa a ser o da eficiência: ganha mais quem tem melhor desempenho, e não quem gasta mais.
No Brasil, essa mudança no modelo de remuneração ainda encontra resistências. Vem sendo desvirtuada pela
discussão a respeito de o governo estender ou não a regulamentação na saúde suplementar para os prestadores de serviço,
como hospitais, uma vez que a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) só regula as operadoras de saúde. A própria
ANS já tentou patrocinar essa mudança e, por mais de dois anos, manteve um grupo de trabalho para a discussão do tema
com representantes de hospitais e operadoras. Esse esforço, infelizmente, não atingiu objetivos práticos.
Interesses à parte, é difícil acreditar que o mercado, por si só, será capaz de promover essa mudança. Urge que o
Ministério da Saúde, em conjunto com as agências reguladoras e demais órgãos envolvidos, conduza esse processo vital
para maior eficiência e sustentabilidade do setor. Essa é uma ação imprescindível e estruturante que irá melhorar a saúde (e
o bolso) de mais de 50 milhões de brasileiros.
MAURICIO CESCHIN, 56, clínico-geral e gastroenterologista, é presidente do Grupo Qualicorp e coautor do livro "A Saúde dos
Planos de Saúde" (editora Paralela). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Março de 2015.
Menos médicos e menos saúde (CARLOS VITAL TAVARES CORRÊA LIMA)
A POPULAÇÃO carente é dependente do SUS (Sistema Único de Saúde), que não possui financiamento compatível
nem competência administrativa, é desprovido de controle, de avaliação e de planejamento adequados, submetido ao
descaso. Os projetos governamentais na área da saúde são elaborados com apriorística atenção ao "tempo político",
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imprescindível ao êxito eleitoral. Não há políticas de Estado, apenas fragmentadas políticas de governo, sem continuidade
nem reverência a princípios fundamentais.
O resultado da auditoria do TCU (Tribunal de Contas da União) sobre o programa Mais Médicos, apresentado no início
de março, não surpreendeu o CFM (Conselho Federal de Medicina). A primeira crítica dos auditores do TCU foi à fragilidade
do sistema de supervisão e de tutoria do programa. Apesar da resistência do governo em fornecer os dados, concluiu-se
que dos 13.790 inscritos, 4.375 (31,7%) não possuíam supervisores indicados.
Observe-se que, em limites acima dos parâmetros legais, 10% desses supervisores acompanhavam mais de dez
participantes e outros 10% tinham carga de atividades acima de 81 horas semanais, em alguns casos com decorrente
encaminhamento dos relatórios de supervisão de forma intempestiva e sem amplitude de aspectos clínicos, mais voltados a
questões administrativas.
As referências de maior gravidade surgiram quando 17,7% dos "supervisionados" admitiram que a falta de
conhecimento dos protocolos clínicos conturbou diagnósticos e terapêuticas ao entrarem em contato com seus supervisores
para dirimir dúvidas sobre o atendimento. Por outro lado, 34,3% dos "supervisores" afirmaram que os médicos formados no
exterior enfrentaram obstáculos devido ao desconhecimento desses protocolos, inclusive com relatos de dificuldades para
definição dos nomes de medicamentos e de suas dosagens corretas.
O TCU apontou também problemas nos módulos de acolhimento destinados aos intercambistas do programa, com a
inclusão de 95 pessoas que deveriam ter sido reprovadas por não atingirem os critérios mínimos exigidos nos eixos de
língua portuguesa e de saúde. No âmbito do acesso à assistência e do combate às desigualdades regionais, o relato também
aponta que o Mais Médicos ficou longe das suas metas. A auditoria mostra que em 49% dos primeiros locais atendidos pelo
programa, ao receberem os bolsistas, ocorreu a dispensa de médicos contratados anteriormente.
Em agosto de 2013, nesses municípios com redução da oferta de serviços médicos havia 2.630 médicos, que, somados
aos 262 profissionais que chegaram pelo Mais Médicos, totalizavam 2.892 médicos. Em abril de 2014, porém, contabilizou-se
apenas 2.288 médicos. Os paradoxos foram superpostos, posto que houve uma diminuição das consultas médicas em 25%
dos municípios cadastrados e uma distribuição sem prioridade às áreas de pouca ou nenhuma assistência.
As soluções para os dilemas da saúde no Brasil não serão encontradas na importação de médicos com diplomas obtidos
no exterior e sem revalidação ou com a formação em massa de médicos em escolas sem docência e sem decência. As
respostas a esses desafios têm consistência em uma carreira de Estado e em boas condições de trabalho para os
profissionais da área, financiamento pela União e por demais entes federativos de pelo menos 70% das despesas sanitárias,
bem como planejamento, gerenciamento, controle e avaliação eficazes.
Enquanto esses requisitos não forem consolidados, a maioria dos dependentes do SUS continuará morrendo de causas
evitáveis. As conclusões do TCU reforçaram o posicionamento crítico do CFM em relação ao Mais Médicos. Expõem a
necessidade de revisão do programa para que haja a extinção dos prejuízos aos cofres públicos, a promoção do bom
exercício da medicina e, mormente, a preservação da vida e da saúde dos brasileiros que se encontram na camada social
mais vulnerável e desfavorecida, agora com menos médicos e menos saúde.
CARLOS VITAL TAVARES CORRÊA LIMA, 64, clínico geral, é presidente do Conselho Federal de Medicina. Jornal FOLHA DE
SÃO PAULO, Abril de 2015.
A depressão pode levar ao crime? (JAIRO BOUER)
Boa parte da mídia apontou a depressão como uma das causas para Andreas Lubitz, de 27 anos, ter provocado
o acidente do avião da Germanwings. Lubitz teve de se afastar por seis meses do curso de formação de pilotos, em 2009,
para tratar um episódio grave da doença. Desde então, fazia acompanhamento. Em princípio, a promotoria alemã negou
que ele ainda enfrentasse tendências suicidas recentemente.
Depressão é um problema bastante comum, que afeta até 20% da população em algum momento da vida. As pessoas
podem ficar desanimadas, tristes, lentas, sem apetite, com insônia, ter dificuldade de concentração, irritabilidade, entre
outros sintomas. Pode ser necessário afastamento do trabalho e até internação. Depressão é o principal fator de risco para
o suicídio. Será que alguém deprimido jogaria um avião com 150 passageiros contra os Alpes? É pouco provável.
Muitas suspeitas foram aventadas. Lubitz teria uma namorada atual, professora em Düsseldorf, com quem estaria em
crise e que estaria grávida dele. Ele teria tido um diagnóstico recente de descolamento de retina (com risco de perda da
visão), o que prejudicaria sua carreira de piloto. Foram descartadas motivações políticas ou religiosas.
Outra ex–namorada, aeromoça, conta que ele tinha alterações de comportamento. Segundo ela, Lubitz dizia que seu
nome seria lembrado para sempre. Isso poderia sugerir um delírio de grandeza, uma necessidade desmedida de se
destacar, presente em várias alterações psiquiátricas.
Não é incomum que profissões extenuantes, como comandar um avião, levem à depressão. Tratados e acompanhados,
a maioria dos pilotos segue sua rotina normal. Lubitz teria uma série de atestados de licença médica em seu apartamento,
inclusive um que cobriria o dia do acidente. Ele rasgou os documentos e não comunicou a empresa de sua condição médica.
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Na hora do acidente, teria encorajado o comandante a ir ao banheiro e trancado a porta da cabine. Suas atitudes sugerem
intenção e até planejamento. Por outro lado, ele não deixou carta de despedida nem qualquer outra pista.
Lubitz poderia estar enfrentando algum tipo de delírio de perseguição ou de grandeza (ser lembrado para sempre),
talvez estivesse sob efeito de algum tipo de droga ou, ainda, pressões em sua vida poderiam ter acentuado algum
traço antissocial de sua personalidade. Faltam informações para fechar esse quebra-cabeça. Parece arriscado e impreciso
afirmar que a depressão teria feito o copiloto provocar um crime tão grave. Há certamente outros elementos, possivelmente
mais importantes.
JAIRO BOUER é médico Hebiatra e comunicador. Escreve semanalmente para esta publicação. Revista ÉPOCA, Abril de 2015.
O incrível avanço da medicina para salvar o início da vida
(CILENE PEREIRA e PAULA ROCHA)
Como cirurgias em fetos, novos tratamentos e equipamentos para prematuros estão elevando a chance de sobrevivência
dos bebês brasileiros
NO DOMINGO, 10, dia das mães, a
empresária paulistana Aline Scullion, 28 anos,
grávida de 17 semanas, decidiu dar um presente
diferente para sua mãe, Maria: um ultrassom das
gêmeas Luna e Bella. No exame, ela descobriu que
as bebês sofriam de síndrome de transfusão
intergemelar,
quando
há
a
formação
de
comunicações vasculares anormais entre os fetos. A
confirmação do diagnóstico veio na terça-feira, 12.
No dia seguinte, Luna e Bella passaram por uma
cirurgia intrauterina no Hospital Israelita Albert
Einstein, em São Paulo, na qual o laser foi usado
para fechar os vasos sanguíneos que as ligavam.
Cada uma agora tem sua rede de abastecimento
sanguíneo. “Sem essa cirurgia, a saúde delas estaria
em risco. Agora sigo tranqüila na gestação, sabendo
que elas estão bem”, diz Aline.
Há alguns anos, em uma situação como a de
Luna e Bella, o risco de morte de pelo menos um
feto era de 95%. Nesta síndrome, um feto recebe parte do sangue do outro, o que resulta em acúmulo, e o outro acaba
ficando com pouco sangue. Hoje, com o diagnóstico precoce e tratamento, essas crianças têm 85% de chance de
sobreviver. Em casos de hérnia diafragmática fetal – órgãos abdominais como fígado, estômago e intestino desenvolvem-se
na região torácica, pegando o lugar dos pulmões -, o feto tem 50% de possibilidade de sobreviver se tratado a tempo.
Antes, sem opção, a chance de vida era menor do que 10%. Em situações graves, próxima do zero. Aqueles que nasciam
prematuros (abaixo de 37 semanas) pesando menos de um quilo tinham 50% de chance de viver. Atualmente, quando
assistidos do modo correto, 90% deles deixam o hospital, crescem, tornam-se adultos. Esses índices são alguns resultados
do formidável avanço da medicina especializada em salvar aqueles que estão bem no começo da vida, ainda dentro do útero
ou fora dele antes do tempo certo.
Por trás do salto entre o que era possível oferecer para o que se dispõe atualmente há uma combinação de fatores que
inclui o maior conhecimento do desenvolvimento fetal e dos recém-nascidos, a sofisticação dos aparelhos de imagem e o
treinamento preciso de médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde envolvidos no atendimento. A primeira etapa
na qual é possível enxergar a qualidade que isso resultou é a do diagnóstico. “A maior parte dos problemas significativos
com o bebê é detectável na fase intrauterina”, afirma Javier Miguelez, assessor médico em medicina fetal do Gestar, do
Fleury Medicina e Saúde, de São Paulo. “Com os exames, é possível dar tranquilidade aos pais com relação a malformações
graves, como a anencefalia, e a cerca de 90% das cromossomopatias, como a Síndrome de Down”, explica.
No que se refere às enfermidades causadas por anomalias nos cromossomos (abrigam os genes), os destaques são os
exames de sangue para detectar boa parte delas. “A vantagem é fazer a detecção precoce dessas síndromes sem realizar a
punção na placenta, que oferece 1% de risco de aborto”, diz Miguelez. “É o melhor método de rastreamento e não coloca a
gestação em risco”, diz Fábio Peralta, cirurgião ginecológico e que atua na área de medicina fetal do Hospital e Maternidade
São Luiz e no Hospital do Coração (Hcor), em São Paulo. Em relação às malformações, os grandes aliados são os exames de
imagem. “O ultrassom evoluiu muito. As gestantes podem optar se desejam fazer o ultrassom morfológico em 3D ou 4D” diz
Márcia da Costa, coordenadora da Maternidade São Luiz, de São Paulo. O ecocardiograma fetal, por sua vez, identifica
malformações que afetam o coração.
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Algumas das doenças identificadas ao longo da gestação contam hoje com tratamentos feitos ainda na etapa
intrauterina da vida (leia no quadro abaixo). Entre os que mais chamam a atenção estão os que corrigem problemas
cardíacos. No Hcor, funciona um centro de referência nesse tipo de procedimento. Em média, eles realizam de cinco a seis
por ano, com ótima taxa de sucesso. Uma das anomalias cardíacas lá tratadas é a estenose pulmonar crítica, que consiste
no estreitamento na válvula pulmonar que pode levar à hipoplasia do ventrículo direito (redução do tamanho do ventrículo)
e à estenose aórtica crítica (estreitamento na válvula aórtica que pode resultar na síndrome de hipoplasia do coração
esquerdo). A intervenção não dura mais do que uma hora. Os movimentos do cirurgião são guiados pelas imagens do
ultrassom. Primeiro, a mãe recebe anestesia peridural (analgesia do abdome para baixo). Depois, o feto é anestesiado (em
uma das coxas). Em seguida, uma agulha de quinze centímetros de comprimento atravessa a barriga da mãe, a placenta e
punciona o coração do feto. Por meio desta agulha introduz-se um balão, inflado no lugar que precisa ser dilatado para
permitir o desenvolvimento correto do coração.
Perícia e delicadeza extremas são indispensáveis para o sucesso de procedimentos como esses. Só para se ter uma
ideia do que se trata o alvo com o qual os médicos estão lidando: por volta da 24a semana de gestação, um feto pesa em
torno de um quilo. Seu coração mede cerca de dois centímetros, os ventrículos, quando normais, dez a quinze milímetros
(os reduzidos de tamanho por causa da doença, oito milímetros), e a válvula pulmonar, quatro milímetros. Antes da opção
de correção no útero, o bebê era obrigado a passar por pelo menos três estágios cirúrgicos. “A primeira operação é feita
logo após o nascimento, a segunda entre quatro e seis meses e a terceira quando a criança está próxima dos três anos”,
explica a cardiologista pediátrica e fetal Simone Pedra, coordenadora da Unidade Fetal do Hcor.
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Uma modalidade de operação na etapa uterina que também impressiona é a cirurgia a céu aberto. No procedimento, o
útero é exteriorizado, feita uma incisão, o feto operado e recolocado dentro do órgão, reposicionado no corpo da mãe. A
intervenção é oferecida em hospitais das redes particular e pública.
O Brasil já contabiliza mais de 170 cirurgias do tipo, incluindo uma recente traqueostomia executada pelo pioneiro em
intervenções do gênero no País, o médico Antonio Fernandes Moron, responsável pelo Serviço de Medicina Fetal do Hospital
e Maternidade Santa Joana, em São Paulo. A operação é indicada em casos de obstruções de vias aéreas, tumores
pulmonares, encefalocele (defeito no tubo neural que causa a herniação do cérebro e das meninges) e mielomeningocele,
conhecida como espinha bífida (malformação caracterizada pelo fechamento incompleto da espinha dorsal e do canal
espinhal antes do nascimento, e cuja principal sequela é a hidrocefalia).
O País foi o primeiro na América Latina a realizar a cirurgia a céu aberto para correção de mielomeningocele, pelas
mãos de Moron. A intervenção representa um avanço importante para a manutenção da qualidade de vida dos bebês, pois
evita o acúmulo de líquor no cérebro. “Antes da cirurgia era necessária a implantação de uma válvula cerebral, que devia ser
substituída em média quatro vezes ao longo da vida, para drenar o líquor para a cavidade abdominal”, explica o médico. A
operação pode ser feita somente entre a 24ª e a 26ª semanas de gravidez. O parto ocorre, em geral, por volta da 35ª
semana – o normal é entre a 38ª e a 40ª semana.
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Apesar do sucesso das operações a céu aberto, desde 2013 uma nova técnica é capaz de corrigir a mielomeningocele
sem a necessidade de retirar o bebê do útero. Portanto, é menos invasiva. Trata-se de uma intervenção endoscópica criada
pela médica Denise Pedreira, cirurgiã fetal do Centro de Terapia Fetal e Neonatal do Hospital Albert Einstein, ligado à clínica
de especialidades pediátricas da instituição. Na operação, são feitas três pequenas incisões na barriga da mãe, por onde
passam uma câmara e os instrumentos cirúrgicos. Dentro do útero, parte do líquido amniótico é drenado e é injetado gás
carbônico. No local em que a coluna do bebê está aberta, a pele é cortada e a medula, restaurada. O corte então é coberto
com biocelulose (curativo biocompatível), e fecha de forma mais natural. Até hoje, 21 bebês brasileiros foram operados
desta forma. “Essa técnica se tornou um marco na medicina fetal. Vários médicos internacionais me procuram para levar
essa cirurgia a outros países”, conta Denise.
No serviço do hospital Albert Einstein, há opções de terapias clínicas quando a situação assim exige. Infecções, como a
toxoplasmose, são tratadas por meio da administração de antibióticos. “Os remédios são dados via oral para a mãe em
doses altas o suficiente para atravessar a placenta”, explica Rita Sanchez, coordenadora médica do Departamento MaternoInfantil da instituição.
Além dos avanços nos exames e nos procedimentos cirúrgicos intrauterinos, os cuidados com bebês prematuros
também evoluíram muito. Um marco nessa história foi a indicação no Brasil de surfactante para prematuros. O remédio
expande os pulmões ainda em formação desses bebês. “Só essa substância já foi determinante para o ganho de vidas de
prematuros”, diz a neonatologista Graziela Lopes del Bem, do Hospital São Luiz.
A essa inovação, somaram-se a chegada ao país das incubadoras umidificadas. Elas garantem que o bebê não perca
calor e que sua pele mantenha-se hidratada. Mais recentemente, mantas térmicas mais leves e sofisticadas evitam a
hipotermia. A nutrição desses bebês também melhorou. “Foram produzidas sondas mais apropriadas e produtos que
fornecem nutrientes importantes ao bebê”, explica Alice Deutsch, coordenadora médica da Unidade Neonatal do Hospital
Albert Einstein. “Hoje temos cada vez mais armas para garantir a vida.”
CILENE PEREIRA e PAULA ROCHA são jornalistas e escrevem para esta publicação. Fotos: Frederic Jean/Ag. Istoé; Gariel
Chiarastelli, João Castellano/Ag. Istoé; Airam Abel. Revista ISTO É, Maio de 2015.
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Mil dias para construir um futuro melhor (CRISTIANE SEGATTO)
Como aproveitar a janela de oportunidade ideal para influir na saúde da vida inteira
Campanha Pastoral da Criança (Foto: Reprodução)
A QUEDA da mortalidade infantil ocorrida no país nas duas últimas décadas é um dos poucos acontecimentos positivos
da saúde brasileira em tempos recentes. O passo seguinte – garantir que essas crianças tenham um futuro – é um desafio
muito maior. Por isso é tão importante aproveitar a janela de oportunidade na qual é possível influir diretamente sobre o
destino de qualquer pessoa. Os preciosos mil dias que vão da gestação até os dois primeiros anos. Nessa fase é tramada a
saúde da vida inteira.
O maior patrimônio que uma mãe pode deixar ao filho é zelar para que ele receba os nutrientes necessários durante a
gestação. Isso não se resume a manter uma alimentação saudável ao longo dos nove meses. Envolve também controlar a
pressão arterial. A hipertensão da mãe pode reduzir a quantidade de sangue que o feto recebe e, com isso, roubar
nutrientes essenciais para o pleno desenvolvimento. As crianças que sofrem desnutrição dentro do útero ou nascem antes
da hora correm risco mais elevado de desenvolver doenças cardiovasculares na idade adulta – entre outras graves
consequências.
Esse não é um problema relacionado exclusivamente à falta de acesso à saúde e à educação. Enfrentamos hoje uma
epidemia de bebês quase prematuros, como revelou a maior pesquisa sobre parto já realizada no Brasil, divulgada no ano
passado nesta coluna. A quantidade de brasileiros nascidos com baixo peso (menos de 2,5 kg) cresce tanto no SUS quanto
na rede privada. No estudo, 35% das crianças nasceram com 37 ou 38 semanas de gestação. Não são consideradas
exatamente prematuras, mas poderiam ganhar mais peso e maturidade se tivessem a chance de chegar a 39 semanas ou
mais de gestação.
Para chamar atenção para esse problema e informar sobre a importância fundamental dos cuidados até os dois anos
de vida, a Pastoral da Criança e a TV Globo lançaram ontem (10) a campanha “Toda gestação dura 1000 dias”. O título faz
referência à soma dos 270 dias de gravidez, mais os 730 dos dois anos seguintes. Neste vídeo, o ator Malvino Salvador fala
sobre as consequências do uso de cigarro, álcool e drogas durante a gestação. Outros profissionais do elenco, como
Carolina Dieckmann, Murilo Rosa e Fernanda Machado participarão com mensagens exibidas na TV e nas redes sociais.
Qualquer mãe com acesso à internet poderá baixar gratuitamente o aplicativo “1000 dias”, com conteúdo desenvolvido
pela equipe técnica da Pastoral da Criança. Ele estará disponível a partir do dia 18 nas lojas das plataformas Android e IOS.
Com ele, as gestantes poderão receber mensagens de acordo com o tempo de gestação ou a idade do bebê e acompanhar,
semana a semana, o desenvolvimento da criança.
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O aplicativo tem dupla função. Além de distribuir informação, ele será usado pela Pastoral da Criança para monitorar as
gestantes em áreas socialmente vulneráveis. “Trabalhamos essencialmente com a população de baixa renda, mas a
campanha da TV vai nos permitir atingir todos os públicos”, diz a nutricionista Caroline Dalabona, da Pastoral da Criança. “É
fundamental que o público entenda a repercussão que esses primeiros mil dias podem ter no futuro de cada pessoa.” Um
exemplo? Que tal sete? Conheça alguns problemas de adulto que começam na gestação.
DOENÇAS CARDIOVASCULARES
Bebês com baixo peso (menos de 2,5 kg) ao nascer correm risco mais elevado de desenvolver doenças
cardiovasculares na idade adulta. A nutrição da mãe molda a placenta e a placenta molda o coração do bebê. Quanto maior
o tamanho da placenta, melhor será para o coração do bebê. A desnutrição dentro do útero apressa a maturação do bebê.
O coração de bebês nascidos antes do tempo possui menor quantidade de células. Isso pode afetar a capacidade de
regeneração do órgão na idade adulta.
COLESTEROL ALTO
O crescimento insatisfatório do fígado do bebê ainda no útero materno contribui para os níveis elevados de colesterol
no sangue na idade adulta. Com a medida do tamanho do fígado ao nascer pode-se prever o nível de colesterol que a
pessoa terá quando completar 60 anos.
DIABETES
Antes do nascimento, a insulina comanda o crescimento do bebê. A sensibilidade à insulina é estabelecida no útero.
Bebês que nasceram com baixo peso têm mais resistência à insulina que os nascidos com peso adequado. Isso aumenta o
risco de diabetes na fase adulta.
OBESIDADE
O bebê que passa fome na barriga da mãe adapta-se para sobreviver à condição de falta de nutrientes. Depois do
nascimento, a tendência do organismo dessas crianças é armazenar energia. Assim começa o excesso de peso na infância.
Uma criança que estava desnutrida aos dois anos tem risco mais elevado de se tornar um adulto obeso.
HIPERTENSÃO ARTERIAL
Placentas pequenas têm vasos sanguíneos mais estreitos. Por isso é preciso uma maior pressão para manter o fluxo de
nutrientes e oxigênio para o bebê. Depois do nascimento, esses bebês de baixo peso continuam a ter pressões sanguíneas
mais elevadas. O risco de hipertensão na velhice é duas vezes mais elevado em pessoas que nasceram com baixo peso.
DOENÇA RENAL
Pessoas nascidas com baixo peso têm três vezes menos células nos rins. Como consequência, cada célula do rim tem
que trabalhar mais. Com o tempo, o órgão passa a não dar conta de sua função. A pressão arterial sobe e o prejudica ainda
mais.
OSSOS
Bebês pequenos têm menos cálcio nos ossos. Também têm menos músculos devido à alteração em dois hormônios:
cortisol e hormônio do crescimento. Esses problemas levam a uma reserva de massa óssea mais baixa e a uma perda rápida
no processo de envelhecimento. O resultado é a osteoporose. Gostou das informações? Compartilhe e ajude a construir uma
geração mais saudável. Quem está chegando ou acabou de chegar agradece.
CRISTIANE SEGATTO é Repórter especial, faz parte da equipe de ÉPOCA desde o lançamento da revista, em 1998. Escreve
sobre medicina há 17 anos e ganhou mais de 10 prêmios nacionais e internacionais de jornalismo. Revista ÉPOCA, Maio de
2015.
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Infância domada a pílulas (HELENA BORGES)
Cresce o uso infantil de remédios tarja preta contra transtornos psiquiátricos. Quais os riscos e como saber se a
medicação é necessária
A ORGANIZAÇÃO Mundial de Saúde (OMS) estima que 20% das crianças e adolescentes do mundo sofrem de
transtornos comportamentais ou mentais. Por isso, há algum tempo a ciência investiga de que modo estes males estão
sendo tratados. As conclusões revelam aos especialistas um panorama extremamente preocupante. Em todo o planeta,
observa-se um número assustador de meninos e meninas sendo medicados com remédios tarja preta, que afetam o sistema
nervoso central e têm a venda regulada. Eles vivem uma infância tratada a pílulas.
Embora se trate de um fenômeno entendido pelos especialistas como algo real e inquestionável, a super medicalização
das crianças ainda é difícil de ser mensurada com bastante precisão. Há dados às vezes mais contundentes e outros apenas
indicativos. No Brasil, uma ideia da dimensão do problema pode ser vista pelo aumento na venda de ritalina, medicação
usada para o tratamento do Transtorno de Déficit de Atenção e de Hiperatividade (TDHA). Segundo dados do Sistema
Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, em outubro de 2009
foram vendidas 58,7 mil caixas do medicamento. Três anos depois, no mesmo mês, as vendas somaram 108,6 mil caixas. É
verdade que a droga é usada também por adultos portadores do transtorno, mas sabe-se que a maior parte dos usuários é
de crianças e adolescentes.
Outro recorte – resultado de uma pesquisa feita pela Universidade Potiguar, no Rio Grande do Norte – ajuda a
entender a gravidade do problema por aqui. Estagiários da instituição que atendem turmas de alunos de ensino básico
observaram que vários estudantes tomavam psicofármacos. Especialistas do Serviço de Psicologia resolveram investigar o
que estava acontecendo. “Recebemos crianças e adolescentes com prescrições de Ritalina (psicoestimulante), Rivotril
(usado como ansiolítico) e remédios para dormir”, afirma Vania Calado, doutoranda em psicologia pela Universidade Federal
do Rio Grande do Norte e coordenadora do Serviço. Nada menos do que 36% dos alunos atendidos têm menos de 11 anos.
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A questão em torno do abuso na prescrição de remédios psiquiátricos a crianças tornou-se uma das principais
preocupações de psiquiatras, pediatras e psicólogos. Tanto que obrigou entidades da importância da Associação Americana
de Pediatria, por exemplo, a se posicionar publicamente alertando para o problema. A discussão principal é como evitar o
hiper e o sub diagnóstico. No primeiro caso, um jovem que passa, por exemplo, por uma tristeza normal, dessas que todo
ser humano experimenta, pode ser equivocadamente diagnosticado como depressivo e passar a tomar remédio sem a
menor necessidade. Na segunda, um garoto realmente portador do transtorno de déficit de atenção, que lhe rouba a
capacidade de seguir o ritmo dos colegas na escola, pode acabar avaliado apenas como desatento ou desinteressado. E
passar anos e anos sem receber a ajuda que precisa.
A habilidade de diferenciar a normalidade da patologia é o maior desafio para os especialistas. “Todos passamos por
situações de tristeza e de desatenção em algum grau, mas só algumas pessoas são portadoras de depressão ou de TDAH,
por exemplo”, afirma o psiquiatra Paulo Mattos, coordenador do Grupo de Estudos do Déficit de Atenção do Instituto de
Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro. No caso das crianças, a dificuldade em reconhecer o que está
havendo muitas vezes pode ser maior do que a experimentada em relação aos adultos. “O diagnóstico de um transtorno
infantil pode criar uma zona de conforto para a aceitação dos problemas”, afirma o psiquiatra Moises Groisman, autor do
livro Terapia Familiar Breve na Infância e na Adolescência. “Várias vezes demonstro que o comportamento considerado
anormal não é um transtorno. É mimo”, diz.
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Porém, muitas vezes a avaliação é feita por profissionais não qualificados. O resultado é desastroso. “Há jovens que
deveriam tomar os remédios e não o fazem e outros sendo medicados sem necessidade”, diz o psiquiatra Mattos. No
documento “Manifesto por uma melhor saúde mental”, institutos de psiquiatria e psicologia da Inglaterra revelam o que
pode acontecer, por exemplo, quando a criança precisa de ajuda e não a recebe. Eles estimam que até 2020 cem mil
crianças e adolescentes ingleses sejam hospitalizados anualmente por auto-mutilação por não receberem tratamento para o
transtorno. Na Nova Zelândia, um levantamento feito pelo Ministério da Saúde mostrou que vinte mil adolescentes daquele
país consumiram antidepressivos em 2013.
A carioca Solange Brito, 52 anos, passou por quatro especialistas até que seu filho, Rafael, 12 anos, recebesse o
diagnóstico de transtorno de humor e TDAH. Hoje medicado, leva uma vida normal. “Agora, se concentra. Antes, isso era
impossível”, atesta a mãe. Já Denise de Oliveira, 48 anos, resistiu em dar medicação a seu filho Diego, 13 anos, portador de
um transtorno do desenvolvimento. Mas cedeu. “Medicação não é fórmula mágica, mas ajuda”, diz. Experiência diferente
viveu a contadora baiana Rosana Paulo, 50 anos, cujo filho mais velho, Rafael, chorava muito e chamava atenção da
professora pelos problemas motores que atrapalhavam a escrita. Após ouvir alguns médicos, parou de trabalhar por dois
meses, tirou o menino da escola e passou a dedicar-se prioritariamente a ele. Descobriu que ele era canhoto. Por isso só
produzia garranchos ao tentar escrever com a mão direita. Hoje, aos 18 anos, Rafael se prepara para o vestibular.
HELENA BORGES é jornalista e escreve para esta publicação. Revista ISTO É, Junho de 2015.
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