Do que riem as pessoas inteligentes?

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Prólogo curto, ou:
“A filosofia existe quando se ri”
Ensina-se
que o pensamento está acima
da ironia e do humor, e isso é ensinado
por um pensador completamente destituído
do senso de comicidade.
Muito engraçado!1
(Sören Kierkegaard, 27 de fevereiro de 1846)
Tudo começou em haia. Diante do aguaceiro que caía
cada vez mais forte, eu me refugiei na Mauritshuis, cujo
significado, na época, me era inteiramente desconhecido.
Maurício de Nassau mandara construí-la entre 1634 e 1644
no estilo clássico para ter uma residência digna em Haia
depois de retornar do posto de governador-geral do Brasil
holandês. Desde 1822, o local é um museu que abriga a galeria de quadros da família real de Orange — uma coleção
não muito grande, mas um verdadeiro tesouro de obras-primas. Ali podem ser vistos os célebres quadros da época
de ouro da pintura holandesa e flamenga, pintados por Jan
Bruegel, o velho, por Hans Holbein, o filho, Peter Paul
Rubens e Frans Hals. Ali está exposta a Lição de anatomia
do Dr. Nicolaes Tulp (1632), de Rembrandt, aquele quadro
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escuro de uma autópsia pública em que o médico disseca o
braço esquerdo do cadáver nu, pondo à mostra músculos e
tendões. E ali também se pode admirar Moça com brinco de
pérola, a enigmática criação de Jan Vermeer.
Mas tudo isso empalideceu diante de um quadro que
subitamente me prendeu com seu encanto. O quadro mostra um jovem que ri debruçado sobre um globo. Ele parece
estar querendo colocar chifres no mundo, esticando o dedo
mindinho e o indicador num gesto ligeiramente obsceno.
Seu riso é alegre, feliz, quase jubiloso, no entanto tem também um traço irônico. Ri do mundo com uma expressão
levemente diabólica.
Eu acreditei estar descobrindo naquele riso algo da cultura
popular do riso da Idade Média e do Renascimento que
descarregava as energias acumuladas no Carnaval e nos dias
consagrados aos bobos, invertendo os valores sociais e as hierarquias.2 Mas ele ia além. Pareceu-me ser um riso filosófico
que não provinha de uma situação específica, nem visava a
um determinado objetivo. Transcendendo o tempo, dirigia-se ao mundo inteiro. Era um riso universal, representado
por um personagem cuja expressão serenamente zombeteira
contagiava o observador. Quanto mais eu olhava para ele,
menos conseguia conter o meu próprio riso.
Comprei uma reprodução daquele jovem sorridente na
lojinha do museu da Mauritshuis. Mas só fui começar a me
interessar pelo pintor e pelo seu modelo alguns anos mais
tarde. A pintura, medindo 84,5 × 73 cm, está assinada com o
monograma “JoM”. No catálogo, sob o número 705, consta
a informação de que se trata de Johannes Moreelse. A busca
por ele foi mais difícil do que imaginei. Ele não pode ser
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encontrado nas enciclopédias de história da arte com seus
muitos compêndios, e uma busca avançada no Google, na
internet, tampouco traz qualquer informação precisa. Topamos sempre com Paulus Moreelse, um pintor de Utrecht,
nascido em 1571 e falecido em 1638; e o fato de estas datas
constarem frequentemente debaixo de reproduções do filósofo que ri não torna a busca mais fácil.3 Teria o pintor
“JoM” se enganado quanto ao seu prenome?
Porém existiu um Johannes, que finalmente se revelou
como sendo filho de Paulus, nascido em Utrecht em 1602
e morto em 1634, antes do seu pai, e em cuja sombra se
encontra até hoje. Ele pode ser localizado através de um
desvio: o quadro Heráclito, que mostra um ancião debruçado
queixoso sobre o globo, as mãos postas, a fronte enrugada.
Para esse filósofo grego, o mundo parecia ser um vale de
lágrimas no qual só restava chorar.
Johannes Moreelse pintou o seu Demócrito risonho em
contraponto ao choroso Heráclito. Pois sob as vestes da
jovem figura renascentista, com sua alegria que era também um prazer físico, não se esconde ninguém menos do
que o velho pesquisador Demócrito. Este não era apenas
um philo-sophos, um amante da sabedoria, mas também um
philo-gelos, amigo do riso e do humor. Seu pensamento era
regido pelo signo do gelos divino, do riso diante das tolices
do gênero humano. Para ele, a natureza humana não se
distingue apenas por saber rir. Está também condenada ao
ridículo. E só a conjunção desses dois aspectos permite esclarecer o encanto singular do Demócrito que ri, cujo riso
é a um tempo sereno e alegre diante da vida e, por outro
lado, zombeteiramente superior.
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Assim como Johannes Moreelse desapareceu na sombra
do pai, Demócrito também se viu diante de uma figura descomunal. Pelo menos é o que afirma a história da filosofia,
o que já deixou Friedrich Nietzsche indignado, pois se com
Demócrito a cultura ocidental estava no melhor caminho
de “avaliar corretamente” a existência humana, isso acabou
nunca acontecendo “graças a Sócrates”4 e seu discípulo Platão. Com estes, entraram em cena uma seriedade moral e
um rigor gnoseológico que expulsaram o riso da filosofia.
Filósofos não riem, ao menos não na tradição inaugurada
pelas obras de Platão.
Demócrito era natural de Abdera, cidade grega na costa
norte do mar Egeu. Era o país dos trácios, e é de lá que
talvez venha esse riso que se tornou tão raro na filosofia ou
mesmo devido a razões filosóficas. A risada da jovem escrava trácia quando o sábio Tales de Mileto caiu num poço
por não ter olhado para o chão, e sim para o céu estrelado,
tornou-se proverbial. Platão descreveu essa cena onde se
encontraram o sisudo protofilósofo e a protocomediante
trácia, que, segundo dizem, era “espirituosa” e “bonita”.5
Mas ele condenou o riso zombeteiro da escrava trácia, que só
podia resultar da sua ignorância. Assim, a anedota platônica
tornou-se o exemplo canônico da simplicidade obtusa dos
incultos diante da filosofia.
“A filosofia existe quando se ri. E as pessoas riem por
incompreensão.”6 Assim Hans Blumenberg resumiu essa
longa história, que começa com a rejeição platônica do riso
sobre o tombo de um filósofo e se estende até a atualidade.
Os que riem da filosofia e seus especialistas só podem ser
estultos.
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O riso então não teria lugar na filosofia? Não existiriam
pessoas inteligentes, que se interessam pela filosofia, mas não
aceitam que se lhes proíba o riso?
Sim, existem, mas é preciso procurá-las, o que às vezes
exige visitas às correntes subterrâneas da história da filosofia,
pois ao lado do sisudo Platão e dos seus incontáveis sucessores
na filosofia acadêmica, existe também o Demócrito sorridente que iniciou uma tradição própria. Neste livro, recapitularemos essa tradição ao longo de um período superior a dois
milênios, iniciando com Demócrito e Diógenes, passando
por Kant e Kierkegaard até Karl Valentin, que potenciou o
espanto filosófico diante da linguagem numa comicidade
que nos permite vivenciar diretamente o prazer do riso.
Mas a escrava trácia também acabou encontrando seguidores e seguidoras. Em seu riso se descobre uma inteligência
com a qual os sisudos filósofos jamais sonharam. É o riso
libertador de uma mulher que, num instante fugaz, desmascara a mentira em que se baseia toda a filosofia europeia:
que o amor à sabedoria necessariamente significa precisar
se distanciar do mundo vivido. “Embora escrava, a jovem
trácia não representa aqui a miséria sofrida ou a silenciosa
obediência de uma mulher oprimida; representa, sim, a
explosão num riso que inclui de um modo evidente breves
palavras de sabedoria: os assuntos do mundo permanecem
ocultos para a filosofia, que inicia com Tales a sua empreitada
de desrealização [Entwirklichung].”7
O riso humano pertence às coisas mais belas do mundo,
se as compreendermos do ponto de vista da práxis da vida.
O riso humano e seus motivos são o tema da nossa Pequena
filosofia do humor em dois sentidos: do ponto de vista da fi11
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losofia, importa esclarecer quando e sobre o que as pessoas
riem; mas ao mesmo tempo queremos mostrar que existem
também filósofos ridentes, em cuja vida e obra o humor —
“esse talento delicioso e raro”,8 fonte à qual Sigmund Freud
conseguiu chegar — desempenha um papel importante. Não
preciso ressaltar o quanto simpatizo com eles.
Hamburgo, Sankt Pauli, 11 de novembro de 2005
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