AMP 1992 251

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INFECCIOLOGIA
ACTA MËDICA PORTUGUESA 1992; 5:251-254
TÉTANO. Revisão de 54 casos*
JORGE NARCISO, PEDRO ABECASIS, JOAQUIM RIBEIRO, J. CASTEL-.BRANCO MOTA
Unidade de Cuidados Intensivos. Hospital Curry Cabral. Lisboa.
RESUMO
O tétano continua a ser uma doença frequente e de mortalidade elevada que envolve particularmente os doentes mais idosos. Em face desta realidade, estudaram-se 54 casos tratados em cuidados
intensivos entre 1983 e 1991. Concluí-se ter sido fundamental para a redução da mortalidade verificada
neste período, além do uso de medidas de suporte ventilatório, a utilização de novos fármacos q~uc
permitiram uma sedação e um relaxamento muscular mais eficaz e também um melhor controlo da
hiperactividade do sistema nervoso autónomo.
SUMMARY
Tetanas. a review of 54 cases
Tetanus continues to be a frequent illness with a high rate of mortality which mainly affects the
elderly. In view of this, 54 cases treated in the ICU between 1983 and 1991 were studied. The clinical
support with mechanical ventilation and the use of new drugs, which allowed for a more satisfactory
sedation and muscular relaxation, and which permitted the control of the autonomic overactivity. were
the most determinant factors in the reduction of mortality verified in the late years of our practice.
INTRODUÇÃO
O tétano é uma doença rara nos países desenvolvidos,
matendo-se, no entanto, frequente a nível mundial, sendo
descrita uma incidência de cerca de 300000 casos ano com
uma taxa de mortalidade estimada em 45% -7• Em Portugal
o número de casos notificados entre 1985 e 1989, provavel
mente abaixo da realidade, é de, aproximadamente, 61 casos
por ano, envolvendo particularmente os indivíduos de idade
avançada8.
O panorama desta doença, com uma mortalidade, ainda,
muito elevada, começou no entanto a mudar com a prática
generalizada da vacinação e o prognóstico alterou-se com o
internamento dos doentes em Unidades de Cuidados Intensi
vos 6.7,9• Nestas, as medidas de suporte ventilatório permiti
ram uma redução significativa da mortalidade precoce,
sendo possível a instituição de relaxamento muscular total.
Mais recentemente começou a dar-se mais atenção á monito
rização e controlo das pertubações provocadas pela toxina
tetânica e, possivelmente pela medicação, nomeadamente ao
nível do sistema nervoso autónomo, tendo-se conseguindo
uma melhor estabilização dos doentes, com ganhos evidentes
em termos de morbilidade intercorrente e de mortalidade.
Neste trabalho faz-se uma revisão, nos seus vários aspec
tos, dos doentes com tétano internados na nossa unidade nos
últimos anos, tentando relacionar algumas modificações no
tratamento, recentemente introduzidas, com a evolução da
mortalidade verificada.
Cabral, entre 9 de Abril de 1983 e 1 de Julho de 1991. com o
diagnóstico de tétano.
Foram revistos os seguintes parâmetros: idade, sexo, pro
fissão, proveniência, distribuição anual e mensal, duração do
período de incubação e do período de instalação, porta de
entrada, duração de internamento, gravidade da doença.
medidas de suporte necessárias (entubação endotraqueal e
ventilação mecânica), mortalidade, terapêutica efectuada e a
sua eventual relação com a mortalidade.
RESULTADOS
Dos 54 casos estudados, 30 (55,5%) eram do sexo femi
nino e 24 (44,4%) do sexo masculino; a idade média foi de
62,3 anos, estendendo-se desde os 4 aos 88 anos, com 46
casos (85,2%) acima dos 50 anos (Quadro 1). A maioria dos
doentes era constituida por trabalhadores rurais (69,7%) e
provinham predominantemente da zona sul de Portugal
(Quadro 2), a que corresponde a área de assistência do nosso
hospital.
QUADRO 1
Distribtilção etária
Anos
1-10
11-20 ~
MATERIAL E MÉTODOS
Efectuou-se um estudo retrospectivo de 54 doentes inter
nados na Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital Curry
* Trabalho apresentado no 11.0 Congresso da Associação Europeia de
Medicina Interna, em Novembro de 1991 em Lisboa.
Recebido para publicação: 16 de Janeiro de 1992
5
10
15
20
25
251
QUADRO 2
QUADRO 3
Origem dos doentes
Distribuiçio anual
N~
14
12
10
8
6
4
2
o
1983
1984
1986
1986
1987
1988
1989
1990
1991
Anos
QUADRO 4
Distribuiçio mensal
Meses
Açores
=
1
14
N~
QUADRO 5
Porta de entrada
N. de casos
NUMERO DE CASOS POR DISTRITO
A distribuição anual foi relativamente constante, com uma
média de 6 doentes por ano (Quadro 3) e a distribuição men
sal evidenciou uma maior prevalência durante a Primavera e
Verão, com 37 casos (68,9%) surgindo entre Maio e Outubro
(Quadro 4).
O período de incubação foi reconhecido em 40 doentes,
sendo em 27 (68%) menor ou igual a 10 dias e com uma
duração média de lO dias. O periodo de instalação foi defi
nido em 47 casos, com uma duração média de 3 dias e sendo
menor que 5 dias em 85,1% (40 doentes) e menor ou igual a
1 dia em 29,7% (14 casos). A porta de entrada estava com
major frequência localizada nas extremidades (Quadro 5)~
sendo de realçar a particularidade de em 7 doentes a região
glútea ser’ referenciada como origem provável, como conse
quência de injecções intramusculares.
A durãção média do internamento foi de 29.9 dias e a
grande maioria pertencia ao grau III de gravid~sde (92,5% —
50 casos), com uma mortalidade global jie 37% (.20 casos),
tendo havido necessidade de entubação endotraqueal em 50
doentes (92,5%), sendo efectuada traqueostomia em 26. ~
ventilação mecânica foi usada em 43 doentes (79,6%), com
uma duração média de 21 dias.
252
Membros superiores
Membros inferiores
Cabeça e pescoço
Tronco e abdómen
Região glútea
Localizações múltiplas
Desconhecida
15
20
3
2
7
2
5
Em todos os doentes foi feita imunoterapia activa e pas
siva (imunoglobulina antitetânica humana — 5000Ul IM e
toxóide adsorvido
0,5 ml IM), limpeza cirúrgica da porta
de entrada, antibioterapia durante pelo menos lO dias, com
penicilina G sólida (2M. Ul de 6/6h EV) associada em
alguns casos ao metronidazol(500mgde 6/6h EV)’°e profi
laxia dos acidentes tromboembólicos com heparina (5000 Ul
de 12 12h SC).Todos os doentes foram sedados e a maioria
foi curarizada, em média durante 3 e 4 semanas (Quadro 6).
Numa primeira fase este objectivo foi alcançado com um
esquema que incluía a administração de bolus de diazepam
(dose média
l0mg/h), de fenobarbital (dose média
200mg 6 6h) e pancurónium (dose média
I-2mg h).
Mais recentemente este esquema foi alterado, passando a ser
empregue o midazolam (dose média
2Omg h) e o atracu
num (dose média
30 mg h) em infusão continua. No final
de 1985 introduziu-se o uso de sulfato de magnésio em infu
são .contínua, na dose média dc 1 g h, visando a estabiliza
ção do sistema nervoso autónomo e como adjuvante da
terapêutica relaxante muscular.
QUADRO 6
Terapêutica
QUADRO 8
N.° de
cas~
46
38
30
7
8
Diazepam
Fenobarbital
Pancuronium
Midazolam
Atracurium
Sulfato de Mg
27
Dose
média
lOmg h
200mg 6 6h
l-2mg h
2Omg h
3Omg h
1g h
Dose
Máxima
diária
600mg
l200mg
144mg
720mg
l700mg
Mortalidade vs terapêutica
$
o
1983
1984
1985
1986
1987
1988
1989
/~
/1
38 g
Nos doentes medicados com diazepam e pancurónium (46
casos) a mortalidade foi de 41,3% (19 casos), sendo de notar
que neste grupo após a associação do sulfato de magnésio
(19 casos) houve uma redução da taxa de mortalidade para
3 1,5% (6 casos). Em 1989, após a introdução do midazolam
e do atracurim, a mortalidade nos 7 doentes estudados des
ceu para 14,2% (1 caso) (Quadro 7).
QUADRO 7
N.° casos notificados em Portugal
1990
1091
Anos
DISCUSSÃO
O tétano continua a ser uma doença relativamente fre
quente em todo o Mundo. Em Portugal a sua incidência é
apontada no Quadro 8, atingindo em especial os grupos etá
rios mais avançados 8• Esta preferência é explicável pelo
facto de, frequentemente, os mais idosos nunca terem sido
submetidos a um programa completo de vacinação contra o
tétano e de, presumivelmente, as regiões, de onde estes doen
tes provêm serem aquelas onde existem piores condições
higieno-sanitárias e maior possibilidade de contágio (zonas
rurais).
A maioria dos doentes correspondiam ao grau máximo de
gravidade, o que se compreende visto que, a U.C.1. do H.
Curry Cabral é considerada um centro de referência para a
região sul de Portugal relativamente a esta patologia, rece
bendo de outros hospitais, apenas, os casos mais graves.
Justifica-se assim que a maioria dos doentes necessitasse de
entubação traqueal e, frequentemente, traqueostomia, sendo
submetidos a ventilação mecânica durante períodos
prolongados.
O controlo medicamentoso das contracturas musculares e
uma sedação adequada constituem actos terapêuticos indis
pensáveis para garantir uma ventilação eficaz e para corrigir
o quadro hipermetabólico resultante da hiperexcitabilidade
muscular.
Os esquemas de tratamento descritos na literatura são
vários 11-13 e ainda sujeitos a controvérsia. Na U.C.I. do H.
Curry Cabral numa primeira fase foram utilizados o diaze
pam e o pancurónium, mas desde 1989 estes fármacos foram
substituídos, respectivam6~ite, pelo midazolam e o atracu
num, parecendo que esta mudança contribuiu para a quebra
na taxa de mortalidade que, embora ainda com um número
limitado de doentes, desde então se verifica.
O midazolam apresenta várias vantagens relativamente ao
diazepam, medicamento deste grupo classicamente
utilizado 4-17 Em primeiro lugar, por poder ser administrado
em infusão contínua, possibilita uma melhor estabilidade clí
nica e ajuste posológico, pois com o uso de bolus de diaze
pam era mais difícil atingir uma sedação constante. Em
segundo lugar, dado ser uma benzodiazepina de semivida
curta, permite uma recuperação mais rápida da consciência
após a sua suspensão, facilitando deste modo, o desmame da
ventilação. Finalmente, é de destacar a pouca frequência dc
efeitos acessórios, nomeadamente alterações hemodinâmicas.
apesar de ser administrado durante pelo menos 3-4 semanas
em doses elevadas.
O atracunium é, tal como o pancurónium um bloqueador
neuromuscular não despolarizante, mas que, em relação a
este, representa um claro progresso 8-22, pois é metabolizado
espontaneamente no plasma. não dependendo do fígado e do
rim para a sua eliminação e apresentando uma semivida
mais curta. Para além disso, é um fármaco que se pode
administrar em infusão contínua sem os efeitos cumulativos
que se obtêm com o pancurónium, mesmo se administrado
sob a forma de bolus, principalmente em doentes com insufi
ciência hepática ou renal e que condicionam um desrname
mais prolongado da ventilação. A infusão continua, tal
como praticada com os sedativos, permite uma maior efi
ciência, dado possibilitar um relaxamento muscular cons
tante. Finalmente, como o atracurium normalmente não
parece provocar alterações cardiovasculares, alérgicas ou
outras, e porque depois da sua suspensão, mesmo após uso
prolongado, se dá uma rápida recuperação neuromuscular,
parece ser o relaxante de eleição em doentes com tétano e, de
uma forma geral, em doentes de cuidados intensivos.
Por último, é de referir a existência, em particular nos
doentes com tétano severo, de uma síndrome de hiperactivi
dade do sistema nervoso autónomo 23-25, que se tornou evi
dente com o advento das modernas técnicas de tratamento
em cuidados intensivos que permitiram evitar a morte por
asfixia. Esta síndrome está associada a uma elevada mortali
dade 12.23.26 e é caracterizada por uma combinação de sinais
clínicos que incluem taquicardia, hipertensão ou hipotensão,
arritmias, palidez periférica, sialorreia e sudação abundantes.
A terapêutica desta situação é motivo de controvérsia
quanto à sua eficácia ~ e as medidas habituais como o uso
de alfa ou beta bloqueantes 26-29 ou ainda de sedação
intensa 23.27.30 não parecem controlar satisfatoniamente a ins
253
tabilidade cardiovascular nos doentes com tétano grave.
Alguns autores defendem a utilização do sulfato de magné
sio 31 pois este fármaco inibe a libertaç~ de catecolaminas e
reduz a sensibilidade dos seus receptores, contrariando assim
a hiperactividade simpática. Na U.C.l. do H. Curry Cabral
emprega se. desde finais de 1985, o sulfato de magnésio em
infusão contínua durante 3-4 semanas nos doentes com
manifestações da síndrome de hiperactividade do sistema
nervoso autónomo, com evidente beneficio no controlo da
instabilidade cardiovascular e consequentemente com impli
cações ao nível da taxa de mortabilidade 32~
Em conclusão, embora o tétano possa ser evitado por um
programa correcto de imunização, continua a haver uma
incidência significativa em Portugal, especialmente entre os
idosos, condicionando períodos prolongados de interna
mento em unidades de cuidados intensivos, o que implica
custos muito elevados. Em segundo lugar, quase todos os
doentes necessitam de ventilação mecânica para evitar a
morte por asfixia, permitindo evidenciar a existência nos
casos graves de um síndrome de hiperactividade autónoma
com importantes repercuções na taxa de mortalidade. Neste
contexto, a nossa experiência com a utilizaçâo do sulfato de
ma~ nésio permitiu um melhor controlo destas alterações.
Finalmente, com a introdução de midazolam e atracurium
em crfusã~, continua conseguiu-se uma sedação e curariza
ção nais constantes e uma melhor estabilização clínica a que
se a’~ ociou uma diminuição importante da mortalidade.
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