idiomatização e diferenças argumentais entre pb e pe

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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas
(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana
LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora
ISBN: 978-972-99292-4-3
SLG 32 – As interfaces da gramática.
SEMÂNTICA VERBAL: IDIOMATIZAÇÃO E DIFERENÇAS ARGUMENTAIS
ENTRE PB E PE
Isabella FORTUNATO1
RESUMO: O presente estudo propõe-se fazer uma análise das possíveis estruturas
argumentais apresentadas pelo verbo de movimento “meter”, traçando um continuum de
fixação desde o seu significado pleno até a formação de fraseologias verbais. O verbo
“meter” é originalmente um verbo causativo de movimento que pressupõe o
deslocamento de um objeto de um ponto no espaço para outro, sendo que o foco da ação
é o ponto de final do deslocamento. Enquanto parece que o PE restringe o locativo ao
“interno de algo”, o PB destaca não o lugar, mas o modo da ação, que normalmente
contém traços de violência ou rapidez, o que é facilmente perceptível analisando os
lexemas que aparecem nas sentenças analisadas. No que diz respeito à formação de
construções com verbos-suporte, à medida que a combinação se fixa na língua, temos
um verbo em vias de gramaticalização, com perda dos seus traços semânticos mais
concretos, mais precisamente os traços semânticos de deslocamento espacial, rumo a
uma abstratização. Embora sua grelha argumental seja mantida, a predicação desloca-se
para a parte nominal. No ponto final da fixação, ou seja, na formação de fraseologias
verbais, verbo e parte nominal estão em total idiomatização. O estudo procura analisar
como essa fixação se dá nas duas variedades do português, verificando se estamos ou
não diante de uma diferença semântico-gramatical entre o PE e o PB.
PALAVRAS-CHAVE: estrutura argumental; verbos de movimento; lexicalização
Introdução
Pensar sobre a língua é pensar sobre nós mesmos e sobre mundo, pensar sobre
o mundo é pensar não só em como ele é fisicamente, mas em como nós o vemos e como
nos inserimos nele e como o organizamos na nossa mente. Verbalizar o pensamento, já
é outra história: é traduzir uma realidade tridimensional, colocar sentimentos e
percepções em palavras, tendo à disposição somente a linearidade dos sons e a relação
1
Universidade de Coimbra – Faculdade de Letras – Instituto de Investigação Interdisciplinar, Largo da
Porta Férrea - 3004-530 Coimbra – Portugal, [email protected]
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entre as formas lingüísticas de que dispomos e escolhemos para melhor transmitir para o
outro a mensagem que precisamos externalizar.
Falando especificamente no elemento lingüístico que escolhemos como tema
deste trabalho, ou seja, o verbo “meter”, seu uso em Portugal gera curiosidade e até
risada nos brasileiros que entram em contato com os falantes europeus da variedade.
Isso simplesmente porque esta palavrinha, tão natural e funcional para os portugueses,
tem um significado um tanto quanto marcado no português do Brasil. E marcado
sexualmente. O motivo dessa extensão semântica não é muito difícil de deduzir, já que a
partir da acepção primeira que encontramos no Houaiss “fazer entrar; enfiar, introduzir
Ex.: m. o livro na pasta; m. o pé na água” passa-se facilmente para “praticar ato sexual;
copular Ex.: o jovem casal metia incansavelmente”, que, embora seja classificado como
“regionalismo brasileiro e tabuísmo” neste mesmo dicionário, ocupa a terceira acepção
e isto nos dá talvez a noção da importância e do uso deste significado para o verbo no
português do Brasil.
Entretanto nem de sexo nem do significado tabuístico do verbo verte este
trabalho. Mencionamos essa questão para mostrar que um elemento lingüístico assim
tão marcado tem a força de mudar toda uma estrutura lingüística. É o que acreditamos
que aconteça com o verbo “meter” no Brasil: ele deixa de ser usado em prol de “pôr”,
“colocar” e “botar” para evitar constrangimentos e reações adversas do interlocutor,
principalmente sabendo que será utilizado como base para a análise aqui proposta um
corpus jornalístico com um certo nível de formalidade.
A predileção por verbos sinônimos em face do verbo “meter”, principalmente
em textos formais, como é esperado que sejam os textos jornalísticos, pode ser notada
quantitativamente: das 2708 ocorrências do verbo, somente 518 são do português
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brasileiro (doravante PB), enquanto as restantes 2190 são do português europeu
(doravante PE), o que representa aproximadamente 80% do total.
A relação entre esse uso “sexual” do verbo e o seu uso não marcado não se
reflete diretamente na diferença argumental que o verbo assume nas duas variedades,
mas faz com que o verbo deixe de ser usado pelos falantes brasileiros e deixando o seu
significado, mesmo que não marcado somente sexualmente, restrito ao uso em
contextos específicos, com traços bem definidos, os quais restringem as combinações do
verbo com seus argumentos.
A constatação dessa diferença que serviu de inspiração para o presente estudo,
mas não só isso: queremos unir tanto a vertente cognitiva que está por trás da formação
de lexemas, criação vocabular e a sua combinação por parte do falante, passando assim
da maneira com que os itens lexicais são processados no cérebro para chegar à formação
de expressões complexas constituídas de elementos outrora independentes e que com a
repetição passam por fenômenos de fixação estrutural e extensão semântica.
Metodologia
O nosso trabalho, como já foi dito anteriormente, é uma pesquisa de corpus, que
utiliza ocorrências retiradas do banco de dados online da Linguateca. A Linguateca,
acessível através do endereço eletrônico www.linguateca.pt, é um projeto de
instituições portuguesas e brasileiras que disponibilizam textos de diversa natureza – no
que diz respeito ao gênero, ao tipo textual, ao registro (formal, informal; oral, escrito),
entre outros – já digitalizados, cujas palavras foram classificadas e inseridas em um
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banco de dados ao qual o usuário pode aceder através de uma específica sintaxe de
busca. Dentro do site, escolhemos especificamente o Corpus Chave, que faz parte do
Projeto AC/DC, no qual estão disponibilizados para pesquisa todos os números dos
jornais Folha de São Paulo e Público dos anos de 1994 e 1995.
Por que a escolha de um corpus jornalístico e não de outra natureza? Por outro
lado, a escolha de um corpus jornalístico sim, foi um fator limitador na extração dos
dados, comprometendo o estudo no sentido de não fornecer o verdadeiro uso das
estruturas na linguagem falada. Mais uma vez o tempo foi de encontro a uma coleta de
dados mais ampla e mais variada quanto a registro e suporte. A escolha específica do
texto jornalístico foi por ser um tipo de texto neutro quanto ao registro, um texto que
está entre a fala e a escrita, com um nível de formalidade não muito baixo, mas que se
distancia da pompa da linguagem literária. A variedade de subtipos de texto é que dá
essa ampla gama de material, nos permitindo chegar a uma reprodução mais ou menos
fiel da realidade.
O que é estrutura argumental?
O mundo tem cores objetos, animais, plantas, pessoas que se inter-relacionam,
agem, andam, fazem e acontecem, pensam, fantasiam “recolorem” o mundo de outras
cores reais ou imaginárias, mas na hora de colocar isso em palavras, tudo muda. Os
poetas bem sabem disse que sentem a necessidade de colocar seus anseios no papel e
vivem de fazer isso. Deve ser bem difícil. Isso por uma simples razão: o mundo é
tridimensional, enquanto a língua e linear e unidirecional.
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Portanto a transferência do que vemos, ouvimos, sentimos com os nossos
sentidos, com a nossa percepção tem de ser feita de um meio para outro de maneira a
sermos o mais fiéis possível às nossas idéias e intenções para que o outro possa entender
à perfeição (ou quase) o que queremos comunicar.
Como seres envolvidos nesse contexto de mundo, interagindo com os
semelhantes, somos, de alguma forma, “pré-programados” a essa vida e convivência, ou
seja, nosso cérebro precisa comportar todas as informações necessárias a essa “estadia”
no mundo, a essa forma de vida. E através de imagens, sons, cheiros, palavras,
associamos as coisas do mundo e as armazenamos no cérebro e recorremos a essas
informações quando precisamos.
Se a necessidade for, dentre todas as outras possíveis, verbalizar uma
mensagem, isso vai ser feito através de sons, organizados uns após os outros, que,
juntos, assumem um significado previamente estabelecido pela comunidade de fala em
que a pessoa está inserida.
Explicando melhor, como já sabemos, a linguagem é composta por signos que
se organizam e se relacionam de uma determinada maneira, cada signo tem sua natureza
linguística e extralinguística e se relaciona de uma determinada forma com os outros
que compõem a enunciação, exercendo diferentes funções na sentença e,
consequentemente, na transmissão da mensagem.
Segundo a teoria gerativista de Chomsky (1999), há uma estrutura basilar no
sistema linguístico humano que é comum a todos os seres humanos predispostos à
linguagem verbal e que, portanto, possuem um cérebro configurado de uma determinada
maneira. Essa estrutura seria a gramática universal, a qual é composta por princípios de
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organização sintática que dizem respeito à linguagem2 como um todo e, a depender da
língua em questão, o falante, no momento da aquisição, vai ativar uma das
possibilidades disponíveis para aquele princípio. Um exemplo disso é a ordem do
sujeito e do objeto em relação ao verbo, que nos dão línguas SVO, como as românicas,
OVS, etc. Ou a obrigatoriedade da presença do sujeito, do objeto, entre outros
princípios que são universais.
Essa estrutura sintática, que diz respeito à organização dos elementos
linguísticos na formação do enunciado, será preenchida por itens lexicais com
informação intra- e extralinguística, previamente armazenados na mente do falante e
prontos para comporem a sentença.
Jackendoff (1997) discorda desse armazenamento prévio, já que o signo
linguístico é mais complexo do que se possa pensar. Costumamos pensar no signo como
formado por significante e significado e costumamos também associá-lo à palavra. Na
verdade, temos outros elementos na língua com significante e significado, tanto menos
do que a palavra (ou seja, o morfema), como maiores (as expressões fixas). Além disso,
sabemos que o item lexical3 possui não só o referente (conteúdo extralinguístico), mas
apresenta também, na sua constituição, informação semântica, sintática, fonológica,
categorial e discursiva.
Por isso que Jackendoff defende a teoria da licenciamento lexical, em que
todas essas informações, que são de natureza diversificada, se unem na formação do
item lexical e são unificadas e checadas pelo sistema lexical. Tudo feito em um sistema
“online”, no sentido de que nada é fixo, tudo se adéqua às intenções do falante, às
2
Linguagem aqui será tomada na acepção de linguagem verbal.
“Item lexical” será usado aqui como quaquer elemento linguístico inserido no léxico, independentemente de ele ser elxical ou
gramatical.
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possibilidades combinatórias de cada língua e às necessidades comunicativas de cada
cultura.
O verbo como item lexical
Como seria constituído, então, o verbo como item lexical? O verbo é, sem
dúvidas, um elemento com informação lexical que, à diferença de conjunções e algumas
preposições que são elementos com função relacional na sentença, transportam
informações sobre a situação descrita pelo enunciado. Se os nomes indicam e
identificam os objetos do mundo, denominando-os, os verbos descrevem as ações, os
processos, os estados, sendo fulcrais na organização do pensamento, já que os seres e
objetos, além de existirem, interagem entre si.
Ao descrever a situação em que as entidades se encontram, o verbo exerce a
função indispensável de predicar. Indispensável porque, se por um lado representa uma
informação cognitivamente central, pelo outro é o núcleo sintático da sentença a partir
do qual todos os outros constituintes vão se organizar. Em outras palavras: o predicador
tem o “poder” de abrir espaços os quais serão preenchidos por sintagmas4, categorias
sintáticas formadas por lexemas cuja natureza veicula informação semântica e
cognitiva, fazendo com que todos esses elementos, juntos e devidamente integrados,
4
Vale lembrar que “sintagma” denota uma categoria linguística: sintagma nominal, preposicional, adjetival e adverbial. Todos eles,
ao se juntarem ao verbo, formam o sintagma verbal, que também é uma categoria sintática, mas que, por se composta, é claramente
mais complexa.
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relacionem o sistema lingüístico ao universo exterior que se “sujeita” a ser traduzido
pelo falante.
Morfossintaticamente, o verbo também é bastante complexo na sua
configuração, já que ações, processos e estados, como informações mais ou menos
dinâmicas, precisam ser inseridos na linha do tempo, na situação comunicativa5, e,
através dos traços semânticos que compõem o item, são diferenciados também o tipo de
situação e o modo como o evento se dá.
Essas informações – número-pessoa, modo-tempo, aspecto e akionsart –, que
são parte inerente do evento descrito, manifestar-se-ão no verbo, através de morfemas
ou outro tipo de elementos, sintagmas que terão uma relação obrigatória ou acessória
com o predicador. No primeiro caso, o sintagma estará na posição de argumento do
verbo, na segunda, em posição de adjunto.
Há diversos tipos de eventos que serão representados pelo verbo e que
correspondem a diferentes situações em que os participantes irão atuar. Participantes
podem ser pessoas, seres animados em geral, objetos, entidades que fazem com que o
evento descrito no enunciado ocorra. Toda situação ocorre localizada em um
determinado lugar no mundo6, onde estes participantes se encontram.
Esse evento pode ser um movimento e esse movimento pode ter ou não
deslocamento de algum dos participantes; o deslocamento pode ter direção, origem,
meta; pode ser intencional ou não; pode gerar um estado consequente ou não; pode
representar um estado psicológico de um indivíduo, um fenômeno natural. Cada evento
pode ser “traduzido” linguisticamente de um ponto de vista, o que também vai
influenciar diretamente na configuração da sentença.
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Da qual fazem parte o falante, o interlocutor, a localização destes, etc.
O mundo não é necessariamente concreto, pode ser algo imaginário.
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O verbo “meter”: estrutura do movimento e a sua manifestação sintática
O verbo “meter” é um verbo de movimento que descreve, no seu significado
mais concreto e, em conseqüência, mais comum, um evento em que um sujeito, usando
suas próprias mãos como instrumento, desloca intencionalmente um objeto para o
interior de um determinado lugar.
(01) A Paula meteu um pacote de bacalhau no saco de compras.
A estrutura desse verbo seleciona como fundamentais as informações do
sujeito, do objeto e do locativo, mais precisamente a meta do movimento por ele
representado. Esses elementos são obrigatórios para a estrutura do verbo e são
representados por sintagmas que, dada essa obrigatoriedade, ocupam a posição de
argumentos. O instrumento, a origem do movimento e o modo em que a ação é
executada, não são verbalizados nem pelos traços semânticos do próprio verbo nem
pelos argumentos que compõem a sua estrutura argumental, embora sejam elementos
que constituem o evento em si. Caso seja necessário expressar essas informações, isso
acontecerá sob forma de constituintes adjuntos ao verbo.
Fica claro que cada verbo de uma língua terá sua estrutura argumental, ou seja,
cada espaço aberto pelo predicador será preenchido por determinado tipo de sintagma e
veiculará determinado tipo de informação semântico-cognitiva.
O sujeito, que age intencionalmente, causa o movimento e é responsável pelo
deslocamento do objeto que deve ter proporções adequadas para ser transportado e
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deslocado pelo próprio sujeito. Assim como o locativo, meta do deslocamento também
deve condizer, em medidas, com o sujeito e o objeto.
Sintaticamente, o que chamamos aqui de “sujeito” e “objeto” correspondem –
em se tratando do verbo “meter” na voz ativa – às posições de “argumento externo” e
“argumento interno”, ambas posições preenchidas por sintagmas nominais.
O locativo, mais precisamente a meta do movimento, em que será alocado o
objeto, é um argumento do verbo “meter”, portanto, é um constituinte obrigatório, cuja
posição é ocupada por um sintagma preposicional. Esse tipo de sintagma nada mais é do
que um sintagma nominal combinado com uma preposição. No significado do verbo
“meter” na língua portuguesa, o locativo é normalmente introduzido pela preposição
“em” que indica “o interior de algo” e contribuição da informação semântica trazida
pelo núcleo do sintagma nominal também será condizente com esse locativo denotando
espaço interior.
Analisando nosso exemplo inicial, podemos facilmente reconhecer todos os
elementos citados anteriormente:
(01) A Paula meteu um pacote de bacalhau no saco de compras.
“A Paula”, um sintagma nominal composto por determinante e nome próprio
como sujeito; “um pacote de bacalhau”, outro sintagma nominal comporto por
determinante e nome comum concreto; “no saco de compras” um sintagma
preposicional cujo núcleo é a preposição “em” combinada com o artigo do sintagma
nominal que o complementa e que tem como núcleo o substantivo “saco”, objeto que
comporta objetos no seu interior.
Tudo parece muito simples, até que nos deparamos com ocorrências como:
(02) Metemos pedra nos carros deles.
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(03) Dá vontade de eu meter o microfone na sua cabeça.
(04) Ninguém meteu o pé na porta das casas e foi atirando.
Essas são ocorrências do português brasileiro que não são produzidas no
português europeu e que, por este motivo, também são, por eles, interpretadas de
maneira diferente, perdendo o traço de agressividade e da violência que possuem no PB.
Essa nova interpretação aparece devido à ativação de um traço semântico que
Talmy (1985) identifica como manner, que é o modo de ocorrência da ação. O PB ativa
este traço, enquanto o PE não o faz, o que acaba gerando uma diferença na estrutura
argumental entre as duas variedades do português e é essa diferença que norteia o nosso
trabalho.
O modo de ação, passando a fazer parte inerente dos traços semânticocognitivos do verbo “meter”, traz como consequência o fato de o locativo deixar de ser
“no interior de” para indicar um espaço superficial, como podemos observar no
exemplo.
(03) Dá vontade de eu meter o microfone na sua cabeça.
Essa informação de violência e agressividade será reforçada pela presença de
itens lexicais com carga negativa, como:
(05) Diziam à diretoria que queriam meter porrada nos corintianos que, sem serem filiados, usa camisas
da Gaviões.
Como o PE supre a falta desse traço? Através de um sintagma preposicional
adjunto indicando modo. O que nos questionamos nesse momento é: como podem duas
informações semânticas da mesma natureza serem representadas por formas lingüísticas
diferentes, sendo que uma é obrigatória e faz parte do verbo e a outra é adjunta e,
portanto, acessória?
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Como se formam as fraseologias verbais
Unidades fraseológicas formam-se quando uma sequência de palavras são
reproduzidas juntas pelos falantes ao ponto de serem utilizadas como um item lexical
único, ou seja, buscado no cérebro de maneira automática, como fazemos com as
palavras.
Sendo a língua dinâmica e permitindo uma constante formação – através da
criação ou reutilização – de formas lingüísticas, a fixação dos elementos que compõem
as unidades fraseológicas se dá de maneira gradual e seguindo um continuum de
fixação, já que a aceitação e a institucionalização de novas formas não podem constituir
processos abruptos.
Fazem parte desse processo duas vertentes de fixação: uma sintática e a outra
semântica. Na primeira – aplicando à formação de fraseológicas verbais, que é o que
nos interessa aqui – o verbo e algum dos seus argumentos são reproduzidos juntos,
sofrendo uma aproximação lexical que faz com que o cérebro, ao buscar um, “puxe”,
automaticamente, o outro. Na segunda, essa aproximação gera uma extensão de
significado rumo a uma possível abstratização, que pode ser do significado do verbo ou
do argumento, a partir da expressão original que tende a ser concreta, livre e
transparente.
As expressões que sofrem os dois tipos de fixação, são, no continuum, as mais
fraseológicas, enquanto que as expressões que apresentam graus intermédios de fixação
(sintática e/ou semântica) serão chamadas aqui de expressões semifixas.
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Essa teoria, que parece ser muito simples de ser explicada, esbarra na
dificuldade de classificação dos itens lexicais quanto à concretude e abstração (no que
diz respeito aos nomes), agentividade/causatividade e animacidade/inanimicidade (em
relação ao papel do sujeito) e à variedade de ações, processos e estados (em relação aos
verbos) que diferem entre si, às vezes, por fios interpretativos muito difícil de serem
definidos.
Gramaticalização vs. Lexicalização
Segundo a teoria da gramaticalização, que trata da criação de formas
lingüísticas gramaticais, itens lexicais (com referente externo) passam por um processo
de perda semântica até se tornarem meros elementos gramaticais que relacionam
constituintes sintáticos e não trazem significado extralingüístico, seguindo um
continuum que vai do [+ lexical] ao [+ gramatical], o que gera processos semânticos
paralelos como a passagem do [+ concreto] ao [+ abstrato]. Questionamos
primeiramente a noção de perda semântica, que, obviamente não existe. O que parece
existir, na verdade, é uma perda de referente extralingüístico em prol de uma
funcionalidade intralingüística e não uma perda semântica, pois não há signo lingüístico
privado de significado (não seria um signo).
Quando o signo em questão é um signo plurilexical, como é o caso das
expressões (semi)fixas, o significado das partes tendem a sofrer uma extensão semântica
em conjunto, perdendo sua individualidade em prol de um todo. É o que chamamos
propriamente de idiomatização.
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Mas dúvidas começam a surgir quando os nomes que funcionam como núcleo
dos argumentos já são abstratos e não passam por algum processo de abstratização.
Então o processo de fixação tem que ser analisado caso a caso, a depender do tipo de
fixação, da classificação semântica dos núcleos e do grau da gramaticalização sofrida
pelo verbo.
Quanto à gramaticalização do verbo, como acontece normalmente com os
auxiliares, o verbo pleno perde seus traços semânticos originais, deixando de denotar
um evento e passando a contribuir com informações gramaticais como número, pessoa,
modo e tempo.
No caso específico do verbo “meter” ele perde talvez sua capacidade de indicar
um movimento concreto, passando a contribuir não só com as informações gramaticais
citadas anteriormente, mas também ganhando traços de incoatividade, ou seja, dando à
expressão que está sendo criada dados relativos ao aspecto e à akionsart. A predicação,
antes função do verbo, desloca-se para o núcleo do argumento interno.
Nas fraseologias verbais que estão totalmente idiomatizadas, a tendência é que
o verbo meter perca até mesmo essas informações relativas à akionsart, sofrendo uma
ressignificação global.
Expressões (semi)fixas formadas com o verbo “meter”
Podemos classificar as expressões coletadas para a análise em diferentes níveis.
Primeiro quanto ao argumento que sofre fixação: o objeto ou o locativo; segundo quanto
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à condição de abstrato ou concreto do nome que funciona como núcleo do sintagma
nominal do argumento fixo.
Um dos recursos que usaremos aqui para “medir” a fixidez da expressão é a
substituição por um verbo único sinônimo. Em vários momentos isso não será possível,
já que a língua portuguesa não necessariamente dispõe de um sinônimo. Quando isso
acontece, utilizamos verbos de outras línguas só par verificar a fixidez e não para
substituição total da expressão, pois não há, como bem se sabe, sinônimos perfeitos.
Núcleo concreto: Fixação do locativo
METER NA CADEIA: (06) Depois dos problemas que houve em Itália, sobretudo com os negócios
escuros que envolveram estruturas do Mundial ou realizadas para o Mundial -- o processo Mãos Limpas
já meteu diversos responsáveis na cadeia -- este Novo Mundo é uma bênção do céu para a FIFA.
“Meter na prisão/cadeia” perdem um pouco do sentido concreto de pegar na
mão e meter em no interior de um lugar, o objeto será sempre [+humano] e o locativo
ganha proporções maiores para comportar um objeto dessas proporções. A expressão
como um todo pode ser verbalizada por um lexema verbal único, como “prender”
Núcleo concreto: Fixação do objeto
METER O BEDELHO: (07) Público & Privado não meteu bedelho na conversa.
Em “meter o bedelho” é um caso interessante de idiomatização em que a
predicação não passa para o nome e o significado do verbo é mais ou menos
transparente com o sentido de “intrometer-se”. O objeto será sempre um “assunto”, uma
“conversa”, algo abstrato e que tem o traço de “não dizer respeito ao sujeito”.
Núcleo concreto: Fixação do objeto e do locativo
METER A VIOLA NO SACO: (08) Os ministros que se dizia, ou supunha, serem contra a opção
tomada, meteram a viola no saco para que a música não destoasse.
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A fixação é dos dois argumentos contemporaneamente, o sujeito será sempre
[+ humano] e o significado pode ser depreendido pelo significado das partes,
estendendo o contexto musical a qualquer situação em que alguém decida ou tenha que
recuar.
Núcleo abstrato
Podemos tomar como um dado certo o fato de o PB rejeitar construções do
“meter” com nomes de ação e processo. Dessa categoria, temos somente as ocorrências
“meter nos planos”, cujo uso justificaremos adiante, e “meter bronca” e “meter
porrada”. Fora essas construções em específico, o meter não aparece no português
brasileiro.
Núcleo abstrato: Fixação do locativo
Voltando aos locativos que se fixaram ao verbo, temos aqueles que têm como
núcleo nomes abstratos, normalmente nomes de ação/processo cuja idiomaticidade não
pode ser analisada da mesma forma daquela advinda da fixação sintático-semântica dos
locativos com nomes concretos. Isso porque, como é claramente observável que uma
fixação (gramaticalização?) como essa não pode seguir o continuum semântico concreto
 abstrato, já que os lexemas já são abstratos per se.
METER EM ORDEM: (09) Desde que decidiu meter em ordem os seus arquivos, a catedral
descobriu cerca de 150 manuscritos da Idade Média. (10) Quando vim para este lugar, o meu pai, que é
empresário, disse-me: ' Vê lá se metes os bancos em ordem
“Ordem” é um nome que tem indiscutivelmente uma leitura estativa, portanto,
combinado com o verbo “meter”, obtemos uma expressão que designa um processo,
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mais especificamente o processo de “ordenar/organizar”7, considerado e marcado no seu
ponto inicial.
O objeto, ou seja, o produto a ser organizável, caso seja concreto, deve ser
contável e ser passível de ser colocado em ordem, caso seja abstrato, é tomado como um
todo, constituído por partes organizáveis.
METER ORDEM: (11) O juiz meteu ordem na conversa.
“Meter ordem”, embora não seja uma construção “verbo + SP” é uma
expressão que constitui uma alternância na posição de papéis temáticos idênticos. O
mesmo ocorre com o verbo “carregar” nos seguintes exemplos: “O motorista carregou o
caminhão com os produtos para exportação” e “O motorista carregou os produtos para
exportação no caminhão” em que os mesmos papéis temáticos são representados em
posições argumentais diferentes a depender da construção.
Núcleo abstrato: Fixação do objeto
METER CONVERSA: (12) Talvez por isso, mas também pela sua beleza, um rapaz negro com uma
viola às costas, com ar de ser bastante mais velho que ela, começou a meter conversa.
“Meter conversa” e “conversar” são obviamente coisas distintas, pois o
primeiro é o ato de “engatar” a conversa ou “puxar conversa” como diríamos no Brasil.
Mas a expressão já está a tal ponto idiomatizada (embora o significado de conversa
permaneça transparente) que o “meter” perde seu traço de incoatividade ao ponto de
necessitar do “começar a” que, linguisticamente tem esse mesmo papel.
Núcleo abstrato: Fixação do objeto e do locativo
7
Embora “ordenar” tenha a mesma raiz de “ordem”, “organizar” tem mais a idéia de colocar coisas organizáveis em um estado de
“ordem”. “Ordenar” inclusive, puxa na mente do falante, o significado de “dar ordem”, gerando, a depender do contexto uma
ambiguidade.
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METER MÃOS À OBRA: (13) A questão não se resume em a equipe de governo, influenciada por
tal exortação, meter mãos à obra, e, por sua vez, produzir a proposta tão prometida e esperada. (14)
Quando o contrato do Locomosquito terminou, surgiu uma casa na Foz, onde meteu mãos à obra,
juntamente com o Arq.
“Meter mãos à obra” denota a aplicação de empenho e/ou esforço na execução
de algum trabalho que pode ser tanto braçal como intelectual. Quanto à estrutura
morfossintática, temos uma fixidez quanto à ausência de determinante no sintagma
nominal e no número plural.
O locativo, representado como vimos anteriormente, pelo sintagma
preposicional, cede lugar à designação de um processo que seria a “execução/realização
da obra” (e da “tarefa” na expressão seguinte). Esse fato é reforçado pela presença da
preposição “a” em vez da preposição “em”, mesmo nas ocorrências do PB que,
normalmente prefere a preposição “em”.
Conclusões
Formação de fraseologias verbais
A formação de fraseologias é uma forma de criação lexical, entre muitos outros
recursos de que as línguas naturais dispõem para expressar diferentes nuances de
significado que não são possíveis de se obter com simples palavras.
No caso da fraseologia verbal, temos uma construção peculiar, formada pelo
verbo e pelo(s) seu(s) argumento(s), normalmente internos, os quais têm uma forte
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ligação sintático-semântica, mas ainda assim permitem a interposição de modificadores,
por mais fixa que seja a sua relação.
Com essa gradual fixação, o cérebro começa a buscar as expressões formadas
(e também as expressões em vias de formação, que chamamos aqui de semifixas), como
se fossem uma palavra única, isso graças à ação da reprodução pelos falantes de dada
comunidade lingüística e ao conseqüente armazenamento na memória de longo prazo,
deixando de se formar composicionalmente na memória de longo prazo.
O processo de formação destas fraseologias – processo de fixação – se dá em
dois níveis: no nível sintático, em que os lexemas aparecem sempre juntos, restringindo
o paradigma e a livre combinação de itens. Essa fixação pode ou não ser seguida de uma
fixação semântica em que o significado da expressão como um todo deixa de ser uma
soma dos significados das partes, adquirindo traços, usos e funções novos, atribuídos à
expressão inteira.
A formação de novos itens lexicais complexos é um processo de lexicalização,
independente
dos
processos
envolvidos,
se
extensão
semântica,
derivação,
composição... No caso específico das fraseologias verbais, temos: (a) a fixação sintática
do verbo e pelo menos um de seus argumentos (a fixação dos dois é sinal de um estágio
mais avançado do processo); (b) um deslocamento da predicação ou pelo menos
aquisição de um traço semântico novo. Este fenômeno pode ser exemplificado com as
expressões “meter medo” em que a parte nominal é que irá veicular a informação lexical
e com a expressão “meter na cadeia” que não denota simplesmente o deslocamento de
uma pessoa de uma lugar para outro, mas também o seu aprisionamento por alguma
ação fora da lei; (c) com esse deslocamento da predicação o verbo deixa de ser o núcleo
e passar a transmitir informações de tempo, modo, número e pessoa (que são
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informações tipicamente verbais) mais informações de aktionsart que, no caso do verbo
“meter” parece ser sempre a de incoatividade: “meter medo em alguém” é incutir medo
em alguém, perde-se a noção de deslocamento e perde-se a estrutura inicial de verbo +
objeto + locativo ao mesmo tempo que esses elementos perdem em concretude
estendendo o seu significado a nome abstratos (como “medo”, por exemplo) através de
processos de metáfora e metonímia.
Questionamo-nos se haverá no momento deste deslocamento da predicação,
acompanhado de extensão semântica, uma gramaticalização do verbo.
O verbo “meter” no processo de formação de fraseologias
Especificamente com o verbo “meter” na formação destas fraseologias, temos
alguns fenômenos que são típicos do verbo e que, principalmente, divergem ao
ocorrerem no PB ou no PE. Antes de mais nada, o verbo pleno, já dispõe de uma
característica diferente do PE: a presença do traço “manner” que faz com que o verbo
denote uma ação que ocorre com determinada violência, agressão e automaticamente
permite que esse verbo faça combinações diferentes nas duas variedades. Isso acontece
principalmente quando a combinação envolve partes do corpo em que a agressividade
fica mais clara:” meter o pé” (no sentido de “dar um pontapé”), “meter a mão”(no
sentido de “bater”) ou em um sentido mais abstrato: “meter as caras”, “meter os peitos”
que são usados quando se quer denotar a “entrada súbita em algum desafio com
coragem, determinação”.
Observamos também a tendência de o verbo pleno apresentar um locativo que
denota espaço interior, mas logo estender seu significado para superfícies. Tanto o
locativo quanto o objeto são passíveis de abstração quando o nome predicador é abstrato
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ou se abstratiza no decorrer do processo de idiomatização. É o caso de “meter o
microfone na sua cabeça”.
Combina-se com nomes de ação no PE, veiculando somente informação de
incoatividade: “meter mudança”, “meter travões”.
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