a filosofia e o restante da cultura

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Em cima das árvores:
a filosofia e o restante da cultura
Marcos Carvalho Lopes 
Data de submissão: 19 nov. 2010
Data de aprovação: 19 mar. 2011
Resumo
O artigo trata da relação entre a filosofia e o restante da cultura. Desenvolve uma
narrativa que parte da interpretação que Rorty faz de Platão e sua reivindicação de
um acesso privilegiado por parte do filósofo a uma forma de saber que descreve o
realmente real (uma forma de conhecimento que se impõe verticalmente). O artigo
separa as disputas entre filósofos e poetas e filósofos e sofistas, destacando o
desenvolvimento da idéia de uma separação ontológica entre aparência e realidade.
Como conseqüência de tal distinção, a Filosofia tentaria se afastar do diálogo e da
finitude de todas as obras humanas. Por fim, defende uma evasão da Filosofia
(com letra maiúscula e sabor teológico) para a filosofia (de letra minúscula e parte
da cultura ordinária).
Palavras-chave: Metafilosofia; Richard Rorty; Platão; literatura; epistemologia;
cultura.
Abstract
The article explores the relationship between philosophy and the rest of culture. It
develops a narrative that is based on Rorty’s interpretation of Plato and his claim
of philosopher’s privileged access to a form of knowledge that describes the really
real one (a form of knowledge that is imposed vertically). The article distinguishes
the disputes between philosophers and poets and philosophers and sophists,
highlighting the development of the idea of an ontological separation between
appearance and reality. As a consequence of this distinction, Philosophy would try
to move away from dialogue and the finitude of all human works. Finally the paper
defends an evasion of Philosophy (with a capital letter and theological flavor) to
philosophy (with a lowercase letter and part of common culture).
Keywords: Metaphilosophy; Richard Rorty; Plato; literature; epistemology;
culture.

Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), bolsista
CAPES, com Mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás (UFG).
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“Internalizar poemas de Shakespeare, Milton, Whitman
ensina a pensar de maneira mais abrangente
do que Platão será capaz de fazê-lo.
Não podemos todos nos tornar filósofos,
mas podemos seguir os poetas,
em sua velha rixa com a filosofia,
que pode ser um meio de vida,
mas cujo estudo é a morte.”
(Harold Bloom, Onde encontrar a sabedoria?, p. 79)
Uma imagem que me agrada para descrever a posição do filósofo em
relação à sociedade e à história é a que fornece Ítalo Calvino em seu
romance O barão nas árvores: o jovem nobre Cosme Rondó, em um
rompante, resolve subir em uma árvore e por obstinação permanece toda
sua vida vivendo de galho em galho sem voltar ao solo. O interesse na
narrativa de Calvino está no fato de que o personagem não busca o exílio
nas árvores para fugir da humanidade, mas sim para servi-la e preservar sua
própria singularidade: o barão Cosme se recusa a voltar ao solo não por
misantropia,
mas sabendo sempre que, para estar de fato com os outros, o único
caminho era permanecer separado dos outros, impondo teimosamente a si,
e aos demais, aquela sua incomoda singularidade e solidão em todas as horas
e momentos de sua vida, assim como é vocação do poeta, do explorador, do
revolucionário. (Calvino, 1997, p. 14)
A narrativa de Calvino foi animada pela idéia de pensar “o papel que
podemos ter no movimento histórico, enquanto novas esperanças e
amarguras se alternam” (Calvino, 1997, p. 13). A história de Cosme carrega
a ambigüidade de ser ao mesmo tempo romântica e platônica: por um lado,
existe a escolha de uma forma de vida que traz desafios árduos e exige
disciplina e vontade, por outro lado, isso parte de alguém que
platonicamente procura se distanciar do “solo comum” da vida cotidiana.
A validade desta imagem é parcial, já que nem todos os que
pretendem possuir a designação de filósofos nela se reconheceriam. Esta
mesma parcialidade não a invalida, já que, em debates sobre a natureza da
Filosofia, o que há de interessante advém de posições que se mostram
radicalmente parciais e excludentes (Rorty, 2001). A imagem de Cosme
Rondó multiplicada dá uma boa idéia do absurdo da “desconversação” que
cordialmente (Margutti, 2000) reina nos Departamentos de Filosofia: cada
filósofo em sua árvore (que fornece as raízes de sua razão, sustentando sua
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posição privilegiada de espectador) desenvolvendo trabalhos que são
suficientemente “diferentes” para justificar a ausência de diálogo e a
“irrelevância comparada”.1
Então, para tentar construir alguma possibilidade de comunicação
nessa estranha floresta, sigo Richard Rorty, excluindo da categoria de
“filósofos” os técnicos (que tomam problemas filosóficos – que consideram
perenes – como exercícios de ginástica mental) e os filólogos (que se prendem
a um autor canônico, tentando construir uma descrição que dê coerência
para as suas obras, sem se questionar sobre a utilidade ou a justificação da
posição de autoridade deste autor). Assim, Rorty propõe que
restrinjamos essa categoria aos intelectuais do século XX que tenham se
sentido intrigados ou iludidos com a obra de Platão e Kant e que decidiram
interessar-se pela filosofia para poder responder as perguntas que a leitura
da obra destes autores havia lhes suscitado. (Rorty, 2001, p. 48)
Os filósofos teriam se inspirado em Platão e/ou Kant, mas nem por
isso seriam platônicos ou kantianos. As questões que emergem da leitura
destes pensadores seriam uma espécie de perspectiva paradigmática que
marcou a Filosofia, pelo menos no último século. O próprio Rorty (2000, p.
153) não foge desta regra, já que procurou na Filosofia encontrar algum
modo de conciliar virtude e conhecimento em uma única teoria, numa visão
unificada. A busca por “encontrar um jeito de ser, ao mesmo tempo, um
esnobe espiritual, e um amigo da humanidade – um pensador recluso e um
lutador pela causa da justiça”, parece-me semelhante à tentativa do barão
Cosme Rondó do romance de Calvino, de procurar um modo de vida por
meio do qual poderia preservar seus gostos idiossincráticos e servir ao
mesmo tempo ao bem comum. A fuga do “solo comum” foi, para Rorty, a
tentativa de acreditar em universais platônicos. Nesse sentido, procurava se
alinhar a definição que Platão oferece do filósofo no Livro IV da República:
“são filósofos aqueles que podem chegar ao conhecimento do imutável ao
passo que os que não podem, mas erram na multiplicidade dos objetos
variáveis, não são filósofos” (484 a).
Rorty se desiludiu com as promessas da Filosofia e passou a caminhar
em uma direção antiplatônica: para ele, lidar com o que é múltiplo e variado
O “projeto” de uma Faculdade de Irrelevância Comparada foi desenvolvido por Umberto
Eco (com a colaboração de Ezio Raimondi e GiorgioSandri) durante uma longa reunião do
conselho da universidade em que trabalhava. Temos então a proposta de fundação de
disciplinas como “Instituições revolucionárias”, “estática heraclitiana”, “dinâmica
parmenidiana”, “urbanismo cigano” etc. Tal “projeto” tornou-se uma secção de sua obra
Segundo diário mínimo (Eco, 1993).
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seria o caminho para tornar a atividade dos filósofos mais útil socialmente,
deixando de lado a pretensão kantiana de fundamentar a cultura. Rorty
defendia a transformação da Filosofia em filosofia, assumindo uma
dimensão finita e falibilista para qualquer conhecimento possível.
Neste artigo quero examinar esta proposta de Rorty, contrapondo-a à
posição de Platão (1) quanto à relação da Filosofia/filosofia com o restante
da cultura e (2) a questão de como ambos vêem o conhecimento. A
primeira interrogação envolve a disputa entre filósofos e poetas. A segunda
trata do embate entre filósofos e sofistas.
*
O que diferencia a Filosofia do restante da cultura? A postulação de
alguma diferença com “cheiro teológico” pode ser percebida na grafia do
nome com letra maiúscula: a Filosofia com “F” maiúsculo tentaria herdar o
poder sobre a Verdade, o Bem e a Justiça que possuíam o sábio, o vidente e
o poeta (Conford, 1989). Estes eram tidos como Mestres da Verdade, sua
palavra tinha o poder de criar a Verdade, era uma palavra sagrada. Já os
guerreiros tinham direito à palavra de um modo diferente, a palavra pública
de sua assembléia era marcada pela isegoría (o direito de falar e emitir
opiniões) e isonomia (a igualdade de direitos perante a lei do grupo, feita pelo
próprio grupo). De seu diálogo leigo e humano advém a polís e com ela a
política e o consequente enfraquecimento dos tradicionais mestres da
Verdade (Detienne, 1983). A palavra-Verdade (alethéia) e a palavra política, a
palavra persuasão (doxá), são utilizadas de modo indistinto pelos primeiros
pensadores pré-socráticos. Pitágoras de Samos e, principalmente,
Parmênides de Eléia irão se afastar da posição de persuasão e fortalecer a
dimensão de Verdade de sua fala. Nesse sentido, se o Sócrates histórico se
desinteressou totalmente do tipo de conhecimento que uma inspiração
poética poderia fornecer, Platão demonstra ter maiores pretensões
religiosas, sendo que, com ele, a sabedoria intuitiva do filósofo pode ser
aproximada da loucura divina que dá asas à alma na direção da Verdade
(Ghiraldelli Jr., 2008). A atividade contemplativa do filósofo e o exercício
do logos lhe dariam a posse de uma teoria que fundaria seu poder, assim
como a força do mito daria poder teológico aos poetas. Platão tentaria, com a
Filosofia, substituir a influência dogmática que Homero tinha na formação
dos gregos, assim como o relativismo da doxá dos sofistas. Para tanto, era
necessário que redescrevesse o lugar das narrativas na atividade de aquisição
de conhecimentos. O movimento do pensamento de Platão vai do nomos
para a physis, adaptando uma perspectiva cosmológica para a visão da ética e
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da política, privilegiando, assim, a harmonia e a estabilidade como
princípios.
A identificação socrática de virtude e conhecimento é alargada em
sentido pitagórico, sob influência também de Parmênides. A idéia do
conhecimento como reminiscência, tal como descrita no Menón (anamnese), e
a crença na imortalidade da alma, exposta no Fédon, apontam para a idéia de
que a Virtude não poderia ser conhecida por nenhum sentido corporal, e
que o desprendimento da alma do corpo nos elevaria à percepção dos
universais, na medida em que os interesses particulares fossem
abandonados. O estudo da matemática já surgia como um exercício que
ajudaria a educar a alma e apontaria para o tipo de saber universal e
atemporal que a Teoria das Formas reivindica para a Justiça, o Belo, o Bem
etc.
Para nossos objetivos, cabe observar como, na República, Platão
fundamenta o lugar da Filosofia em relação ao restante da cultura e, a seguir,
observar como o conhecimento é definido no Teeteto, e como tal descrição
repercute na história da filosofia.
Seguindo a idéia de Christopher Rowe (2006) de que a República de
Platão teria como temática geral o pagamento da justiça, mostrando que a
virtude de ser justo daria ao homem uma vida mais feliz que a de qualquer
outro, podemos ter uma perspectiva que liga o início de sua narrativa
(quando o rico e idoso Céfalo é interrogado por Sócrates sobre sua velhice e
como a riqueza serve de consolo neste momento de sua vida, o diálogo se
desloca para o tema da justiça e o interlocutor se retira com a desculpa de
que deveria ir fazer sacrifício aos deuses) e sua conclusão (com o
escatológico mito de Er, que mostra que a forma de vida e política descrita
na República salvam a felicidade do homem não apenas dentro do tempo,
mas também na eternidade).
Para demonstrar isto, Platão pressupõe um paralelismo entre a
“psicologia” do indivíduo e a política da polis, de tal forma que descrevendo
uma cidade justa mostraria também como deveria se portar o homem justo.
Como princípio geral de seu projeto de uma cidade justa, Platão pensa no
tipo de educação que as pessoas deveriam receber para manter sua ordem.
Por isso mesmo, lembra os exemplos de ações não virtuosas que os deuses
geralmente cometiam na obra dos poetas clássicos da Grécia Antiga e os
condena: tais exemplos contaminariam a educação dos jovens e deveriam
ser repelidos da polis que se quer justa.
As crianças não possuiriam ainda discernimento suficiente para
perceber o aspecto alegórico dos mitos, contudo, Platão não deixa de
considerar necessário o uso das narrativas no processo educativo. Uma
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alegoria, quando não é reconhecida como tal, toma proporção de mito e
gera um modo de vida. Por isso mesmo, Platão constrói uma “nobre
mentira” que teria por fim servir de mito fundador para sua cidade, sabendo
que este, passado de geração em geração, criaria uma crença, mas que não
haveria nenhum meio de convencer os homens, a princípio, da veracidade
de sua narrativa (República, III, 415 c-d). A “nobre mentira” teria uma
função política conservadora e uma função epistemológica revolucionária
(Lear, 2006), ao servir para fundar uma cidade onde a relação entre
conhecimento e virtude fundariam a hierarquia social; de tal forma que a
hegemonia de uma das partes da alma indicaria a posição social de cada
qual: os trabalhadores, governados pelos desejos; os guerreiros, pela paixão;
e os governantes e conselheiros, pela razão. Como, para Platão, qualquer
mudança indicava “pervertibilidade”, sua cidade estaria fechada a influências
externas e deveria ser governada por uma elite que fosse educada na busca
do que é eterno e imutável, em outras palavras, por filósofos. Para tanto, na
República, Platão fala em dois objetos de saber distintos: as crenças seriam
falíveis e se baseariam em impressões sensíveis particulares, elas seriam o
que procuram os amantes dos espetáculos, das artes, os homens de ação; já
o filósofo procuraria o que é em si mesmo, universal e imutável, por isso
infalível. Enquanto as pessoas comuns ficariam presas a opiniões (doxá), o
filósofo buscaria o conhecimento (episteme).
Para os adultos que não poderiam sem convencidos pela “nobre
mentira”, seria necessário contar outra história que lhes convencesse, por
um lado, da posição privilegiada do filósofo, e, por outro, de que a
existência cotidiana seria marcada pela crença em falsas opiniões, sombras e
ecos do realmente real.
Nesse sentido, a alegoria da caverna, narrada no livro VII da República,
é a metáfora central que funda a Filosofia ocidental (Rorty, 2008) e sua
pretensão de autoridade e poder (Heidegger, 2010).
A alegoria da caverna é uma imagem poderosa que Platão utiliza para
mostrar o poder que teria a Filosofia de separar realidade e aparência. Para
tentar se livrar da influência dos poetas, que se prendem a imitações de
imitações e não alcançam nada de verdadeiro, Platão tem que recorrer a
recursos poéticos e, desta forma, criar uma narrativa que funcione como
uma sombra que denuncia o mundo das sombras cotidianas.
Athur C. Danto (1984, p. 10 [tradução nossa]) esclarece bem este
ponto, explicando que:
Tudo o que conhecem os prisioneiros são sombras e imagens projetadas na
parede da caverna. Estas compõem sua realidade. As sombras são a pedra
de toque da inteligibilidade para as criaturas que se encontram em suas
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circunstâncias, porque, como a única coisa que conhecem são as sombras,
não terá significado para eles nenhuma afirmação salvo as que se referem as
sombras. Isto é o que dificulta, ou, quem sabe, torna impossível que
conheçam os limites do seu mundo e inclusive que seu mundo tem limites,
porque, como fazer inteligível a expressão “somente sombras” em termos
que se referem somente a sombras? Está é uma afirmação sobre a realidade
feita a partir de fora dela e alguém que compreenda a realidade somente de
dentro não pode saber que o está fazendo assim. Haja visto que não cabe
que nos lhes expliquemos, a liberação deve ser uma espécie de milagre
lógico e, assim, Platão recorreu à poesia e à metáfora, dado que a explicação
literal estava excluída.
O filósofo seria aquele que consegue se libertar das sombras e
aparências e segue o caminho ascendente para fora da caverna,
contemplando as coisas como são em si mesmas, e, por fim, a totalidade do
Bem.
De posse da autoridade do saber de quem contemplou a Verdade, de
quem possui uma teoria, o filósofo volta à caverna para corrigir o olhar dos
acorrentados (ortótes), onde seu saber não seria reconhecido pelos que se
acostumaram a tomar o aparente pelo real. O filósofo correria inclusive o
risco de ser assassinado pelas pessoas que se deixam governar por sombras
(como aconteceu com Sócrates, condenado a morte pela cidade de Atenas).
Este caminho de iluminação garantiria ao filósofo a conjunção de
Virtude e Conhecimento, assim como a posse da Verdade. Tal caminho de
educação nos levaria a seguir por nossa própria razão e não por “ouvir
dizer”, como se dava a educação proporcionada pelos poetas. Nesse
sentido, cada qual deveria fazer o seu caminho. Contudo, Platão acreditava
que na alma de cada um existiria uma impressão das Formas universais, que
poderiam ser descobertas por cada qual, abstraindo-as dos entes
particulares, ou seja, na medida em que a pessoa se afastasse das
idiossincrasias pessoais se aproximaria da Razão universal. Mas qual seria
este caminho?
*
A alegoria da caverna serve para dar uma imagem do que seria o
processo de aquisição de conhecimento, ilustrando a trilha que seria
necessário percorrer para se alcançar a visão das Formas. Por isso mesmo, a
aptidão para ver seria análoga à capacidade de conhecer. O caminho que
parte das sombras teria seu equivalente nas impressões sensíveis confusas,
ilusórias (eikasia), que seriam aos poucos superadas, tendo como escopo a
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visão do sol da Verdade, com o domínio de raciocínios puros, abstratos e
dialéticos, até a intuição dos primeiros princípios (noesis). A matemática
surge como um recurso para se passar das crenças que se ligam a
sensibilidade para as formas mais abstratas de raciocínio. A dianóia seria a
razão discursiva ligada a esse tipo de dedução hipotética e raciocínio
utilizado nos cálculos. A passagem da dianóia para a noesis ocorreria por um
tipo de inspiração que seria conseguido após muitos anos de estudo, sendo
que poucos alcançariam essa possibilidade de visão da totalidade.
No Teteteto, Sócrates conversa com um jovem que dá nome ao diálogo
e que é discípulo no estudo da matemática de Teodoro. Este último, por sua
vez, foi seguidor de Protágoras, o sofista que afirmava ser o homem a
medida de todas as coisas. Teodoro, apesar de sua capacidade reconhecida
na área da matemática, não demonstra no diálogo capacidade de
desenvolver o jogo de pedir e dar razões, que seria próprio do saber
filosófico: ele se abstém de argumentar com Sócrates, e quando o faz não se
sai muito bem. Enquanto seu mestre se esquiva da conversação, o jovem
Teeteto investiga com Sócrates o que seria o conhecimento (Xavier, 2007).
Embora o diálogo termine em aporia, já que Sócrates não aceita nenhuma
das definições oferecidas pelo jovem, a descrição do conhecimento como
crença verdadeira justificada tornou-se paradigmática. O ponto importante é
que com ela Platão refuta a idéia de que uma crença verdadeira seja já
conhecimento, dando exemplo de um tribunal, onde a persuasão e o “ouvir
dizer” tomam lugar da verdade: por mais evidências que tenhamos contra
um suspeito, como podemos dizer que temos “conhecimento” sobre a
culpa de alguém? O importante aqui é o contraste entre o tipo de saber que
podemos ter de fatos empíricos e o tipo de conhecimento que a matemática
proporciona. Nesta última, sempre podemos justificar nossas afirmações,
“tirando a prova” etc. Como Platão faz uma distinção forte entre os objetos
de crença e os objetos de conhecimento, sua descrição aponta para certo
ceticismo em relação à possibilidade de conhecimento dentro do cotidiano e
indica uma perspectiva mística de apreensão da totalidade.
É difícil saber se tal perspectiva de uma visão da totalidade nos daria
um poder de argumentação capaz de convencer qualquer pessoa, ou se, com
ele, entraríamos num estado de plenitude incomunicável; como também é
difícil conciliar a identificação de beleza com racionalidade de Sócrates e a
forma como o mesmo se relaciona com Diotima, ou como se contagia
poeticamente pela paisagem no Fedro. Isso acontece porque, na perspectiva
de Platão, tomando o conhecimento como crença verdadeira justificada, é
impossível saber exatamente o que seria este complemento de justificação
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que nos faria da terceira para a quarta divisão da linha segmentada, ou seja,
avançar da dianóia para a noesis.
Este algo mais que se deve acrescentar à crença verdadeira para fazêla conhecimento tornou-se objeto de disputa entre os filósofos que
pretendiam construir uma teoria fundacionista. A tentativa foi de encontrar
um ponto arquimediano inquestionável, ou que se fundamente em sua
efetividade, para, a partir dele, chegar a uma visão da realidade como ela é.
O discurso da Filosofia pretendia alcançar uma dimensão não
contextualizável em algum ente privilegiado ou nalguma certeza ou
evidência incondicional. Como afirmou Donald Davidson, os problemas
que a noção de justificação lança para as perspectivas fundacionistas
antecipam as dificuldades enfrentadas pelas teorias modernas do sujeito
(Davidson, 2002, p. 109-110). A pergunta pelo tipo de justificação
necessário para que haja conhecimento tornou-se então a principal
interrogação da epistemologia, era preciso desvelar a Razão que
fundamentaria o saber objetivo.
Platão inventou a Filosofia e a Razão e, na busca de seguir suas
pegadas, muitos filósofos tentaram propor sua visão da totalidade,
pressupondo possuir o poder de separar aparência e realidade. Nesse
sentido, dizer que a Filosofia ocidental é uma série de notas de pé de página
na obra de Platão (como fez Whitehead) não é exagerar a importância deste
pensador: a cultura ocidental herdou dos gregos sua forma de pensar e, por
isso mesmo, vale dizer, como Heidegger, que toda metafísica é platonismo e
todo platonismo é metafísica.
Mas o que é metafísica? Gosto de uma definição irônica encontrada
em no conto de Jorge Luis Borges (1998), “Tlön, Ucbar: Orbis Tertius”:
Os metafísicos de Tlön não buscam a verdade, nem seguir a
verossimilhança: buscam o assombro. Julgam que a metafísica é um ramo de
literatura fantástica. Sabem que um sistema não é outra coisa que a
subordinação de todos os aspectos do universo a um deles. Até a frase
“todos os aspectos” é inaceitável porque supõe a impossível adição do
instante presente e dos pretéritos. Nem é lícito o plural “os pretéritos’,
porque supõe outra operação impossível... (Borges, 1998, p. 481-482)
A metafísica seria um tipo de literatura fantástica que passou a ser
vista como possuindo os fundamentos do realmente real. Podemos
encontrar em Platão o discurso que deu origem à idéia de Filosofia com
letra maiúscula. Neste sentido, cabe levar em conta as palavras provocativas
de Harold Bloom: “Talvez Platão (ou o Sócrates por ele registrado) tenha
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sido o primeiro e último filósofo, assim como Jesus foi o primeiro e último
cristão” (Bloom, 2005, p. 80).
A descrição do conhecimento como crença verdadeira justificada
sofreu um golpe decisivo com um pequeno artigo de Edmund Gettier,
publicado em 1963. Nele, o filósofo mostrava que a justificação para se crer
em algo não se conecta de modo certo, e talvez de modo nenhum, com a
verdade deste conteúdo. A descrição de Gettier apontava para algo que
alguns filósofos deviam intuir, como o “segundo” Wittgenstein (1990,
§205), quando afirmou que “se verdadeiro é o que é fundamentado, então o
fundamento não é verdadeiro nem falso”. O artigo criou sérios problemas
para teorias fundacionistas do conhecimento e reforçou enormemente os
que defendiam teorias causais. A possibilidade de encontrar algum “gancho
celeste” não-relacional que pudesse servir de fundamento para avaliação das
outras áreas da cultura tornou-se uma quimera. A aceitação de uma
perspectiva causal para o conhecimento leva a uma necessidade de pensar
de modo mais sério a historicidade do saber. Com a contribuição de
Thomas Khun e sua idéia de paradigmas, essa dimensão mutável do saber
passa a ser encarada de modo mais aceitável.
Para Richard Rorty, essa nova situação pedia uma redescrição da
Filosofia, onde a esperança estaria em tomar a filosofia como gênero
literário, em não fazer Filosofia no sentido platônico, ou seja, levar a sério a
idéia de que “pensar sobre a Verdade não ajuda a dizer algo verdadeiro, nem
pensar sobre o Bem ajuda a agir bem, nem pensar sobre a Racionalidade
ajuda a ser racional” (Rorty, 1999, p. 15). Deste modo, a filosofia, pensada
com letra minúscula, não abandona sua dimensão historicista e leva a sério a
indicação de Hegel de tentar traduzir seu próprio tempo em pensamento.
Como não seria mais possível construir “teorias” que permitissem chegar a
uma descrição da realidade como ela é, a tarefa da filosofia passaria a ser
ajudar no processo de mudar nossas crenças e nossa forma de vida. As
perguntas platônicas sobre essências deveriam ser abandonadas por
questões que apontem para um futuro utópico, uma realidade diferente da
atual: a imaginação, assim, tomaria o lugar que hoje é dado para a razão.
A disputa entre Filosofia e poesia e entre a Filosofia e a Sofística
precisaria também ser reavaliada. Para tanto, é necessário esclarecer o que
está em jogo em cada embate. A luta com os poetas coloca a questão do que
é melhor para o homem: guiar-se pela razão, na tentativa de descobrir a
realidade como ela é, ou se deixarem levar pela imaginação, buscando a
transformação de si mesmo. Este confronto, para Rorty, perde parte do seu
interesse quando não temos mais nada que justifique o acesso privilegiado
de nenhuma área da cultura à realidade como ela é. Assim, a razão
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aproximar-se-ia das formas de discurso usuais e a poesia seria uma forma de
discurso não-usual, que traz consigo novas descrições do mundo e aponta
para novos hábitos. Isso indica uma “guinada geral contra a teoria e a favor
da narrativa” (Rorty, 2007, p. 21).
No ringue da luta entre filósofos e sofistas, entra em cena a utilidade
do tópico “verdade”. Neste embate, a Filosofia apresenta duas perspectivas
horizontais: o racionalismo, com suas metáforas de elevação e veneração do
consenso racional, e o romantismo, com sua exaltação dos sentimentos e
suas metáforas de profundidade. As duas perspectivas procuram alcançar
uma posição privilegiada e de lá descrever “a realidade como ela é”. Rorty
rejeita ambas as alternativas e afirma um antropocentrismo protagoriano,
substituindo a noção de legitimidade (invocada tanto por racionalistas
universalistas, quanto por românticos) pela utilidade de curto prazo, ou seja,
tentar equilibrar demandas por consenso com a busca por novidades (Rorty,
2005, p. 265).
Na medida em que “o romance, o cinema e o programa de televisão,
de forma paulatina mas sistemática, vêm substituindo o sermão e o tratado
como veículos de mudança e progresso morais” (Rorty, 2007, p. 20), a
filosofia deve se aproximar do cotidiano e os filósofos devem tentar descer
de suas árvores teóricas para dialogar. Fica a interrogação sobre até que
ponto a criatividade precisa deste tipo de isolamento, pois todo saber deve
ser mais uma voz na conversação da humanidade, mais uma forma de vida.
A filosofia existe para propor diálogo. A filosofia só serve para quem está a
caminho, por isso é bom pensar que podemos unir o otimismo da vontade
e o pessimismo da razão, como pede uma canção: “sentir com inteligência,
pensar com emoção” (Gessinger, 2001), tentar equilibrar sentimento e
razão... e seguir viagem.
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Trilhas Filosóficas
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