A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO GENTRIFICAÇÃO: EM BUSCA DE CONCEITUAÇÃO NOS PAÍSES PERIFÉRICOS1 MICHELLY LIMA REINA2 ARTHUR MAGON WHITACKER3 Resumo: O termo gentrificação vem sendo utilizado no Brasil para designar mudanças no conteúdo socioeconômico de determinadas áreas, notadamente em áreas de moradia operária ou de segmentos mais baixos de renda, áreas centrais e antigos espaços industriais, atacadistas ou de modais de transporte que tenham perdido funções originais. Questionamo-nos sobre a adequação de seu uso em países periféricos e em que medida se estaria frente a uma generalização conceitual ou a uma ampliação do termo, necessária a sua ressignificação, frente a novas realidades. Neste texto buscamos apresentar a conceituação original e mudanças no termo gentrification e, propomos procedimentos de investigação que podem resultar numa análise crítica deste quadro, bem como formulamos questões postas ao debate a partir do caso da cidade de São Paulo. Palavras-chave: gentrificação; centro da cidade; São Paulo. Abstract: Gentrification has been used in Brazil to denote changes in the socioeconomic content of specific areas, notably in areas of workers or lower-class housing, downtown and old industrial buildings, wholesale activities or transportation’s nodes that have lost primary functions. We wonder about the appropriateness of its use in peripheral countries and to what extent they would be facing a conceptual generalization or an extension of the term, required its redefinition, facing new realities. In this paper we seek to present the original concept and changes in the term gentrification and propose research issues that can result in a critical analysis of this framework and formulate questions to the debate from the case of São Paulo. Keywords: gentrification; downtown; São Paulo; Brazil. 1 Este trabalho foi desenvolvido partindo-se dos dados e análises sobre São Paulo presentes na dissertação de mestrado da primeira autora (REINA, 2013) e das reflexões e estudos empreendidos pelo segundo autor no desenvolvimento das pesquisas “Lógicas Econômicas e Práticas Espaciais Contemporâneas” e “Centro e Centralidade Intraurbana”, estas duas financiadas pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, Fapesp, e ainda em andamento. 2 Mestre em Planejamento e Gestão do Território pela Universidade Federal do ABC (UFABC) campus de Santo André. Graduada em Geografia pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Presidente Prudente. E-mail de contato: [email protected]. 3 Doutor, Mestre e Graduado em Geografia pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Presidente Prudente. Professor no Departamento de Geografia desta mesma instituição. E-mail de contato: [email protected]. 1072 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO 1. Apresentação O termo gentrificação (do inglês gentrification) vem sendo utilizado no Brasil, por geógrafos, arquitetos, urbanistas e também em estratégias de city marketing e de promotores imobiliários, para designar mudanças no conteúdo socioeconômico de determinadas áreas (o que implicaria num foco em processos espaciais) notadamente em áreas de moradia operária ou de segmentos mais baixos de renda, áreas centrais e antigos espaços industriais, atacadistas ou de modais de transporte que tenham perdido funções originais. Esse termo, por sua vez, aparece com frequência associado a outros, tais como reabilitação, readequação, refuncionalização, regeneração, renovação, requalificação e revitalização urbanas4. Nesse caso, a relação se dá mais com as formas espaciais, mantidas, embelezadas ou substituídas por outras. Parece-nos válido questionar se vem se apresentando mais o resultado pontual de um processo mais amplo do que o próprio processo em si. Ou seja, a exposição de ações, mais ou menos orquestradas, públicas e/ou privadas em determinadas áreas da cidade, mais que a investigação ampla da reestruturação espacial, o que denunciaria outra faceta da gentrificação que implicaria no seu entendimento no bojo da clivagem social que se assevera nos espaços urbanos e se relaciona à produção capitalista da cidade. Assim, a gentrificação seria não um processo, mas um fenômeno que, para seu entendimento, exigiria o rebatimento em escalas e ações mais amplas. Seria seu uso adequado aos países periféricos, notadamente, aos espaços urbanos brasileiros? Em que medida se estaria frente a uma generalização conceitual? Ou se observaria uma ampliação do termo, necessária a sua ressignificação, frente a novas realidades? Sem intentarmos esgotar tal assunto, essa discussão será por nós enfrentada neste texto buscando sua proposição original e, a partir do caso da cidade de São Paulo, avaliando sua adequação. Em seguida, propomos procedimentos de 4 Aqui a polissemia é evidente. Muito embora cada termo desses carregue significados subliminares ou associações evidentes com uma ou outra corrente teórica (WHITACKER, 2011; REINA, 2013), não estabelecemos neste artigo tais distinções. Quando aqui comparecem associados a um determinado autor ou obra, foram transcritos como lá estavam (ou apenas traduzidos, conforme o caso). 1073 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO investigação que podem resultar numa análise crítica deste quadro, bem como formulamos questões postas ao debate e às quais não temos respostas definitivas. 2. O conceito de gentrificação e sua ressignificação Smith (2010) aponta alguns elementos importantes para se estabelecer o conteúdo do termo gentrificação e, portanto, para toma-lo como conceito. Primeiramente, Smith (2010: p. 31) situa a emergência da gentrificação nas cidades do pós-guerra do capitalismo avançado. Embora identifique, na literatura, exemplos do que ele chama de “proto-gentrificação” na Paris pós reforma de Haussmann, na Manchester, descrita por Engels, por exemplo (SMITH, 2010: p. 31-32), faz aquele autor uma distinção clara: “It would be misleading to consider this gentrification, however, insofar as such redevelopment was an integral part of the outward geographical expansion of the city and not, as with gentrification, a spatial reconcentration. ” (SMITH,2010 p. 32) [grifos nossos]. Assim, tem-se dois primeiros elementos à discussão: i) a localização no tempo e no espaço, ainda que com alguma generalização, do surgimento da gentrificação, considerando-se, no entanto, a ocorrência de processos a ela precursores; ii) o entendimento de que a gentrificação não se caracteriza pelo espraiamento rumo às periferias geométricas das cidades dos segmentos mais abastados, num processo de suburbanização (se tomarmos as cidades norteamericanas como um exemplo) ou compreendendo os atuais desenhos da segregação socioespacial nas cidades brasileiras, caracterizadas mormente pela eclosão de espaços residenciais fechados nestas mesmas porções exteriores da cidade. Trata-se, como frisado, de um processo de reconcentração espacial de segmentos médios e altos de renda que ocorrem no seio do espaço urbano (innercity) e não em seus espaços alargados. Uma importante consideração é feita por este autor ao estabeler que, a partir dos anos de 1970 a gentrificação começa a se tornar um fenômeno não apenas observado e descrito nas grandes cidades capitalistas, mas também em cidades de dimensão demográfica menor nos países capitalistas centrais e em algumas metrópoles como São Paulo e Rio de Janeiro (SMITH, 2010: p. 33-34) passando a 1074 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO correlaciona-la a uma combinação de fatores locais com elementos globais próprios a um processo de reestruturação capitalista (SMITH, 2010, p. 34-35). O termo gentrification5 aparece pioneiramente num estudo centrado em Londres e elaborado no âmbito do planejamento urbano por Glass (1964). Esta autora assim estabeleceu o quadro que denominou de gentrificação: One by one many of the working class quarters of London have been invaded by the middle class – upper and lower. Shabby, modest mews and cottages – two rooms up and two down - have been taken over, when their leases have expired, and have become elegant, expensive residences. Larger Victorian houses, downgraded in an earlier or recent period – which were used as lodging houses or were otherwise in multiple occupation – have been upgraded once again […] Once this process of “gentrification” starts in a district, it goes on rapidly until all or most of the working-class occupiers are displaced and the whole social character of the district is changed. (GLASS, 1964, p. 18-9). Há, assim, claro entendimento de que o fenômeno estava circunscrito, naquela análise, à dimensão da substituição de uma população residente mais pobre por outra mais rica, implicando em novos usos às formas habitacionais renovadas. Smith (1979), talvez um dos geógrafos que mais tenham se dedicado à discussão desse tema, acolhe esse significado restrito ao mercado de moradias, estabelecendo, porém, uma importante distinção entre gentrificação e redesenvolimento: o primeiro se referiria à reabilitação do estoque de moradias já existente; o segundo envolveria exclusivamente novas construções. Porém, em publicação mais recente (SMITH & WILLIAMS, 1986), o próprio autor questiona a validade desta distinção num quadro mais amplo de reestruturação em que se observaria profundas mudanças na paisagem central das cidades, em que se combinariam os dois elementos. Esse quadro seria mais abrangente e complexo, constituindo-se numa característica marcante das grandes cidades (SMITH, 2010, p. 34-6). Questiona o autor: 5 Não seria inoportuno avaliar se o próprio aportuguesamento da expressão inglesa gentrification é adequado. No Brasil, a utilização mais frequente é a translação que resulta no termo que empregamos neste artigo, gentrificação. Em Portugal, embora uma alternativa tenha sido proposta por Salgueiro (2001), nobilitação urbana, também emprega-se largamente a expressão gentrificação. Em francês, o termo embourgeoisement concorre com outros como gentilhommisation e ennoblissement (sendo o primeiro defendido por BOURDIN, 2008), no entanto, também se faz corrente uso do termo gentrification (ESPACES ET SOCIÉTÉS, 2008). 1075 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO How, in the larger context of changing social geographies, are we to distinguish adequately between the rehabilitation of nineteenth-century housing, the construction of new condominium towers, the opening of festival markets to attract local and not so local tourists, the proliferation of wine bars – and boutiques for everything – and the construction of modern and postmoderns office buildings employing thousands o professionals, all looking for a place to live [...]? (SMITH, 2010, p. 35). Há, assim, uma transição nos escritos de Smith que redunda numa ampliação do conceito original de gentrificação, apliando-o para retratar não apenas as mudanças observadas nas práticas que elvolviam a moradia, mas também em práticas de consumo nos ditos espaços gentrificados e destes próprios, compreendendo-se este fenômeno como atinente ao quadro geral da reestruturação econômica e espacial: Gentrification is no longer about a narrow and quixotic oddity in the housing market but has become the leading residential edge of a much larger endeavor: the class remake of the central urban landscape. It would be anachronistic now to exclude redevelopment from the rubric of gentrification, to assume the gentrification of the city was restricted to the recovery of an elegant history in the quaint mews and alleys of old cities, rather than bound up with a larger restructuring (Smith and Williams, 1986).Smith (2010, p. 35). Essa relação entre gentrificação e esse quadro mais amplo, em síntese, se daria porque a revalorização das áreas centrais6 estaria fundamentalmente associada a uma dinâmica de revalorização do capital imobiliário, inclusive, via algumas denominadas ações de planejamento urbano (d’ARC, 2006; ROUSSEAU, 2008); porque essa dinâmica se estabeleceria num contexto mais amplo de transformações que envolvem a própria reprodução hodierna do capital; porque se trataria não mais de um fenômeno local, raro ou excepcional, mas global (SMITH, 2010; SMITH, 2002; SMITH, 1996; SMITH & WILLIAMS, 1986)7. Nossa leitura do que, então, passou-se a estabelecer como gentrificação se apoia firmemente em Neil Smith, muito embora os estudos de Hamnett (2003a, 2003b) estabeleçam questões importantes a se considerar que não são valorizadas, 6 Estamos utilizando neste texto uma abordagem mais ampla ao denominarmos as áreas que possuem centralidade e onde ocorreria a gentrificação como “áreas centrais”. Em outros trabalhos, tivemos por objeto e tema essa própria conceituação, denominando todas as áreas que expressam centralidade como áreas centrais e distinguindo o que chamamos de centro consolidado e centro principal (WHITACKER, 2015). 7 Observar, também: Davidson (2007); Lebreton & Mougel (2008). 1076 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO ou centrais, na abordagem de Smith. Muito embora Hamnett possua abordagem a partir de um viés que podemos denominar “culturalista” (REINA, 2013) e que em alguns estudos denota uma leitura com forte influência das chamadas dinâmicas de acomodação próprias à Escola de Chicago, deve-se considerar que os processos culturais, ou de motivação oriunda de grupos e segmentos sociais também podem se relacionar às práticas espaciais que culminam tanto na valoração, quanto na desvalorização de determinados espaços, seja para as escolhas de moradia, seja para as escolhas de consumo. Se nas obras de Smith o foco está na produção capitalista da cidade, no preço e renda da moradia, ideia formulada em sua teoria do rent gap (Smith, 1996) (o que ampliaríamos para preço e renda do imóvel, considerando-se a hipótese de uma gentrificação com outros usos que não apenas o da habitação), em Hamnett a gentrificação se estabelece, em primeiro lugar, pela “escolha”. Consideramos oportuna esta distinção, mas compreendemos que os elementos de escolha, portanto associados à matizes culturais na obra de Hamnett, estão em posição subjacente àquelas estabelecidas por Smith. Tanto um autor como outro, no entanto, estabelecem pouca relação entre a gentrificação e o que pode se mostrar como um elemento a ser sopesado no estudo deste fenômeno nas cidades brasileiras e que parece ser determinante: trata-se da acessibilidade das áreas centrais e da mobilidade dos moradores e trabalhadores. Para Smith uma teoria da gentrificação tem que explicar o processo histórico de desvalorização do capital no centro da cidade e de que modo essa desvalorização produz a possibilidade de reinvestimento lucrativo. (SMITH, 1996). Em seus estudos sobre gentrificação, Smith (2006, p.74) afirma que em São Paulo até 2006 "o processo é espacialmente isolado e se encontra praticamente no início", indicando que São Paulo, não havia conhecido nem a primeira nem a segunda fase da gentrificação, ou seja, para ele, primeiramente um processo que ocorre de forma pontual e esporádica, promovido em parte, por artistas que instalam seus ateliês e passam a viver em bairros centrais, e posteriormente, a promoção desses bairros é assumida pelos promotores imobiliários. Com relação ao centro de São Paulo, poderíamos arriscar que alguns bairros já vivenciam a primeira fase da gentrificação, 1077 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO outros já entraram na segunda fase e outros ainda estão prestes a entrar na segunda fase. Além disso, cabe ressaltar que o poder público tem tido um papel importante e contraditório, ora promovendo políticas de inclusão e proteção social (no mais das vezes, em atendimento a demandas e pressões de grupos organizados e movimentos populares urbanos), e ora adotado o discurso pró-elitização e promovendo políticas de incentivo à atração de investidos privados para inflar o ambiente de negócios na cidade. 3. Gentrificação em São Paulo A história recente da cidade mostra que o processo de abandono e desinteresse de atuação no centro, promovido tanto pelo poder público, quanto pelo mercado imobiliário, constitui-se direta ou indiretamente na formação de uma reserva de território, de localização, mais do que apenas e simplesmente, um processo demográfico, de transferência populacional. Foi durante a gestão da prefeita Luiza Erundina (1989-1992) do PT, que ocorreu a aprovação da primeira Operação Urbana na cidade de São Paulo, a Operação Urbana Anhangabaú, buscando atrair investimentos privados no melhoramento da infraestrutura dos espaços públicos. Na área da habitação, considera-que a política implementada superou a produção tradicional de unidades novas para venda em grandes conjuntos periféricos produzidos por empreiteiras, ampliando-se o leque de políticas por meio da: construção de unidades novas (em conjuntos pequenos) através de mutirões em co-gestão em parceria com associações de moradores e movimentos de moradia (FELIPE, 1995; COMARU, 1998). Na gestão do prefeito Paulo Maluf (1993-1996) do PP, em relação a habitação desarticulou-se o papel das estruturas administrativas8 e os procedimentos relacionados com as políticas urbanas e sociais do governo anterior; paralisou-se os empreendimentos por mutirão; deu-se continuidade às obras por empreiteira, fortalecendo a terceirização dos serviços técnicos (IKUTA, 2008; FELIPE, 1995). A 8 Particularmente no que se refere a Habi – Superintendência de Habitação Popular da Secretaria de Habitação da Prefeitura de São Paulo. 1078 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO gestão do prefeito Celso Pitta também do PP (1997-2000) não apresentou nenhuma política expressiva para o centro da cidade. Na gestão da prefeita Suplicy (2001-2004) do PT, o Programa Morar no Centro9, buscava, entre outras ações, realizar a "recuperação e requalificação de edifícios que se encontram vazios, subutilizados e degradados, para uso residencial, destinados a famílias com renda entre 0 e 6 salários mínimos", através de ações de "melhoria ambiental no Perímetro de Reabilitação Integrada do Habitat (PRIH -Luz)", na estruturação de um Programa de Locação Social, "mediante a construção de pequenos edifícios em lotes intersticiais para uso residencial, tendo como públicoalvo famílias e pessoas sós com renda inferior a 3 salários mínimos", além da melhoria das condições de vida em cortiços e moradias coletivas e urbanização e regularização fundiárias de favelas, como no caso da favela do Gato. Já na gestão dos prefeitos José Serra (2005-2006) e Gilberto Kassab (20062008) a iniciativa mais expressiva foi referente ao programa “Nova Luz”, com um destaque também para a Lei de Incentivos Seletivos. O Programa visou incentivar a implantação de novas atividades comerciais e de prestação de serviços, mais sofisticados que as existentes como: galerias de arte, shopping centers, escritório de marketing e propaganda, entre outras, com o objetivo “de promover e fomentar o desenvolvimento adequado da região”10. Cabe-nos esclarecer ainda, que o Programa de Incentivos Seletivos, parecia ser uma tentativa do poder público em valorizar a região transformando a paisagem do centro, com a oferta de novas atividades de comércio e serviços, voltadas aos consumidores de renda média, em contradição às atividades que lá se encontram, bem como, ao perfil popular dos consumidores. Em junho de 2012, o Projeto Nova Luz foi paralisado por ação judicial da Defensoria Pública que evidenciou a falta de participação popular na aprovação do projeto, e inexistência de um cadastro de moradores que seriam atingidos no 9 A Programa fazia parte da Ação Centro, programa da PMSP, que tinha como objetivo reverter o processo de degradação e abandono do centro da cidade, através da implementação de projetos sociais e intervenções urbanas capazes de qualificarem os espaços públicos e restabelecerem suas potencialidades. 10 Projeto Nova Luz. Disponível em: http://www.novaluzsp.com.br/proj_hist.asp?item=projeto. Acessado em 30/05/12 1079 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO perímetro de intervenção, mostrando descomprometimento do poder público com a população da região. 4. Procedimentos e questões à investigação Neste contexto, a atuação do mercado imobiliário, como uma das molas propulsoras do retorno populacional e de ocupação de regiões dotadas de infraestrutura urbana e serviços, pela presença de novos lançamentos imobiliários, configura-se como uma hipótese importante a ser checada. Para esta análise, utilizamos informações do banco de lançamentos imobiliários residenciais da Empresa Brasileira de Estudos do Patrimônio (EMBRAESP). Esses dados são referentes aos distritos do centro de São Paulo entre 1990 e 2010. O banco de dados é composto por empreendimentos verticais e horizontais, que foram objeto de comercialização e propagandas nos meios de comunicação (jornais, revistas, panfletos, e aprovados pela Secretaria da Habitação do Município de São Paulo). No período analisado, identificamos o lançamento de mais de 55 mil novas unidades habitacionais na área central de São Paulo, correspondente a 22% de toda produção imobiliária do município. Realizamos também um mapeamento das informações dos lançamentos imobiliários, utilizando o Código de Endereçamento Postal-CEP e o endereço completo, por meio de uma técnica chamada de adressmatching.11. Na década de 1990, notamos que os distritos do Bom Retiro e Brás, não foram alvo de nenhuma produção imobiliária nova. Já os distritos de Santa Cecília, Consolação, Bela Vista, Liberdade e Mooca, apresentam grande concentração dessa produção. Na década de 2000, em números absolutos, os distritos que mais apresentaram lançamentos foram respectivamente: Mooca, Barra Funda, Bela Vista, Liberdade e Santa Cecília, evidenciando a atuação do mercado no que chamamos de anel imobiliário, como podemos observar nos mapas 1 e 2 abaixo. 11 Um processo que compara um endereço ou uma tabela de endereços para o endereço de atributos de um conjunto de dados de referência para determinar se um determinado endereço cai dentro de um intervalo de endereços associado com um recurso no conjunto de dados de referência.Se um endereço cai dentro da faixa de endereços de um recurso, que é considerado um jogo e uma localização pode ser devolvido. Fonte: http://support.esri.com/en/knowledgebase/GISDictionary/term/address matching Acessado em 06/08/2013 1080 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO Mapa 1: Lançamentos imobiliários nos distritos centrais (1990-1999) Fonte de dados: EMBRAESP Organização: REINA e WHITACKER, 2015. Mapa 2: Lançamentos imobiliários nos distritos centrais (2000-2010) Fonte de dados: EMBRAESP Organização: REINA e WHITACKER, 2015. 1081 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO Os dados da Embraesp mostram que o capital imobiliário ora dedicou seus investimentos em regiões já consolidadas e de presença constante do mercado, ora dedicou-se a promover lançamentos em regiões também consolidadas, mas com pouca produção imobiliária recente (1990-2000). Consideramos que, as ações, programas e projetos de intervenção que previram investimentos privados na região central, ainda não geraram alterações profundas na paisagem urbana, mas foram fundamentais na promoção e divulgação de um “discurso potencializador de especulação” sobre as possíveis transformações no uso e ocupação dessa porção do território. Propostas de sofisticação e especialização tecnológica na região da Luz por meio do programa Nova Luz e por meio de incentivos fiscais, proporcionados às empresas que se transferissem para a região, são exemplos deste tipo de intervenção pública e intenção política e econômica. Por fim destacar que o processo de desinvestimento público e privado por que passou o centro de São Paulo nas últimas décadas, pode ser considerado um ingrediente importante do processo de gentrificação, como apontado por Smith. Na medida em que esta região se torna suficientemente desqualificada e desvalorizada, sobretudo na relação entre o valor da propriedade e o valor da terra, como nos explicou Smith (1996) esta ampla diferença garantirá ao capital imobiliário sobre taxas potenciais de lucros e pode estimular o retorno ao centro de alguns investidores e parte de velhas e novas elites interessadas em investir e residir no centro. O padrão dos imóveis lançados no distrito da Mooca, em específico, sobretudo na década de 2000 reforça os indícios de um potencial processo de gentrificação, onde 70% da produção de imóveis é destinada para extratos de renda média e renda média alta. De acordo com a revisão teórica e conceitual realizada na primeira parte do artigo, estes se constituem ingredientes básicos de um processo de gentrificação em região consolidada: valorização imobiliária, lançamentos imobiliários para públicos com renda mais alta, elitização do comércio e dos serviços, discurso oficial do poder público com intenção de transformação/revitalização/requalificação da região. 1082 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO Referências Bibliográficas BOURDIN, A. Gentrification: un “concept” à déconstruire. Espaces et sociétés, v.1, n° 132-133, p. 23-37, 2008. COMARU, F. A; ABIKO, A. K. Intervenção habitacional em cortiços na cidade de São Paulo: o Mutirão Celso Garcia. Boletim Técnico da Escola Politécnica da USP. BT/PCC, v. BT/PCC/205, p. 1-20, 1998. d'ARC, H. R. Requalificar o século XXI: projeto para o centro de São Paulo. In: BIDOUZACHARIASEN, C. (coord.) 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