I CONGRESSO DE GEOGRAFIA E ATUALIDADES 10 E 11 de Julho de 2015 - UNESP – Rio Claro, SP. Considerações acerca da gentrificação. Uma breve discussão sobre o uso e implicações do conceito em Geografia André FUNARI Universidade Estadual Paulista (UNESP), Rio Claro 1. INTRODUÇÃO E OBJETIVOS O presente escrito se refere à parte de nossos trabalhos de pesquisa sobre as “atividades urbanísticas” na metrópole de São Paulo. Nos últimos anos desenvolvemos e realizamos um projeto de Iniciação Científica intitulado “Estado e Capital na metrópole de São Paulo: o projeto ‘Nova Luz’. Estudo sobre a produção capitalista do espaço urbano” sob orientação da professora doutora Silvana Maria Pintaudi (UnespRio Claro) e financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Nossos trabalhos fazem uma reflexão sobre o projeto “Nova Luz” na perspectiva da análise crítica da (re)produção do espaço. O “Nova Luz” se trata da última tentativa efetiva de reestruturação espacial de parte do distrito da República, no chamado centro histórico. O estudo específico deste projeto urbanístico teve como objetivo analisar as relações entre Estado e Capital. Entretanto, trouxe à tona diversas novas reflexões pelas quais tivemos que nos aprofundar. Uma delas apresento-lhes neste artigo e diz respeito ao termo “gentrificação”, seus usos e implicações nos estudos de Geografia Urbana com foco no entendimento das questões da produção espacial capitalista. 2. MÉTODOS Este estudo se fundamenta na escola crítica da Geografia, ou seja, trabalha com termos e conceitos orientados a uma leitura crítica do mundo e, sobretudo, dialética. Fazendo uma comparação entre o método positivista e o dialético Harvey nos coloca o seguinte: I CONGRESSO DE GEOGRAFIA E ATUALIDADES 10 E 11 de Julho de 2015 - UNESP – Rio Claro, SP. “A dialética, por outro lado [ao invés do método positivo, da lógica bivalente aristotélica], propõe um processo de entendimento que implica na interpenetração dos contrários, nas contradições e paradoxos incorporados e indica o processo de resolução. (…) O método dialético leva-nos a inverter a análise, se necessário, para encarar as soluções como problemas, para tomar as questões como soluções.” (HARVEY, 1980, p. 111/112) 3. RESULTADOS E DISCUSSÃO Durante nosso trabalho de pesquisa a questão da gentrificação foi recorrente como possível meio de entendimento das dinâmicas recentes do centro histórico da metrópole de São Paulo, mais especificamente nas imediações da Estação da Luz onde foi aprovado o “Projeto Nova Luz”. Atualmente este encontra-se paralisado, mas os novos projetos propostos continuam com o mesmo ideal de reforma urbana, a saber, o da mercantilização de todos os espaços da metrópole (públicos e privados, coletivos e individuais). Gentrificação é um conceito difundido, principalmente ao nível de graduação em Geografia, para uma explicação generalizada das situações de “espoliação” social no espaço urbano. O processo que ocorre no centro de São Paulo tem origem na motivação econômica do Estado em ocupar de capital os espaços centrais pretéritos, hoje “degradados” e a implementação de um projeto urbano de reestruturação espacial (já que as funções, os conteúdos, estruturas e usos do/no espaço seriam alterados) faria esse “retorno do capital”, dotando a cidade de novos conteúdos e novas funções na busca da revalorização do espaço (de incremento de valor de troca). Seria este um caso de gentrificação? O que significa, afinal, a palavra gentrificação? O fenômeno social “gentrification” foi observado pela socióloga britânica Ruth Glass em 1964. Em seu trabalho, relatava uma transformação sócio-espacial na cidade de Londres em que bairros antes fundamentalmente operários eram invadidos por classes médias. O capital fixo era pouco modificado. Segundo Rubino (2004), como apontou Glass, podemos, enfim, entender a especificidade do conceito: “(…) O habitante que se muda para a área em questão aceita e aprecia o local como ele é, ou imagina que seja, devido às virtudes - materiais e simbólicas, históricas, I CONGRESSO DE GEOGRAFIA E ATUALIDADES 10 E 11 de Julho de 2015 - UNESP – Rio Claro, SP. estéticas; narrativas e pontos de referência – que identifica naquele lugar. Esse aspecto, que talvez tenha passado despercebido para alguns autores que se apropriaram do termo, pode ser retomado para sugerir um uso mais circunstanciado, analiticamente mais rentável e, sobretudo, mais preciso.” (P. 288, grifo nosso) Com o desenvolvimento dos estudos sobre a gentrificação apareceram “diferenças sutis” no entendimento do fenômeno. Entretanto, as abordagens identificam a modificação de um lugar através da substituição da classe que consome aquele espaço: alteram-se a composição social (quem se apropria) e o uso do espaço, com baixa manutenção dos elementos estruturais da cidade (construções, vias de tráfico, meios de transporte). Duas abordagens principais debatem sobre as raízes da gentrificação. Uma valoriza a esfera da produção, em boa parte representada pelos estudos de Neil Smith, e outra dá enfoque maior a esfera do consumo. Na primeira temos como principal o movimento de retorno de capital para uma antiga área central da cidade em que se encontram imóveis obsoletos. Estes imóveis têm uso não lucrativo e não necessariamente não contém uso, já que muitos deles podem se referir a cortiços ou ocupações por moradia. Há, portanto a tendência do capital em fluir para espaços deste tipo e tornar-se finalmente lucrativo. Já a abordagem pelo viés do consumo aponta para a necessidade de um “pool of gentrifiers”, ou seja, um grupo de pessoas capaz de realizar o processo de transformação sócio-espacial pelas suas próprias “práticas e demandas de consumo”. De acordo com a autora, essas abordagens são complementares e podem variar de acordo com cada caso específico. 1Porém há uma singularidade: a substituição de uma classe de renda mais baixa por outra de renda maior, com mudanças principalmente dos usos e da função da área mais do que de estrutura urbana em si. Neil Smith expõe que a essência do fenômeno da gentrificação “(…) implica no deslocamento dos moradores das classes populares dos centros.” (SMITH, 2006, P. 63). Esse deslocamento pode acontecer da seguinte maneira: há um movimento de valorização abrupta de um pedaço de solo urbano (donde aflora mais o viés da 1 As abordagens são complementares pelo fato de que o processo de produção é uma generalidade que engloba quatro momentos: a produção de fato, a distribuição, a troca e o consumo. As abordagens teóricas sobre o processo de gentrificação que diferem entre produção ou consumo são, na verdade, faces de um mesmo problema. Karl Marx nos orienta, nos Grundrisse (2011), por questão de método, a abordar a produção no sentido dos quatro momentos. Entendemos, deste modo, que consumo e produção são ligados indissociavelmente: um condiciona o outro. I CONGRESSO DE GEOGRAFIA E ATUALIDADES 10 E 11 de Julho de 2015 - UNESP – Rio Claro, SP. produção) por conta do incremento de capital naquele recorte da cidade. Os aluguéis sobem a níveis muito altos, ao ponto das pessoas de classes de renda mais baixa, majoritariamente residentes ali, ter de transferir-se para bairros de aluguéis mais baratos. As pessoas mudam pela relação entre seus poderes de consumo (estabelecidos pela relação da sua posição na divisão metropolitana do trabalho e o valor do solo urbano). O espaço revalorizado começa a ser ocupado por classes mais ricas (os gentrys, ou pioneiros. Esse fenômeno aponta mais para a esfera do consumo). Acreditamos não ter sido possível observar esse tipo de processo no recorte do “Nova Luz”, já que a valorização do solo não foi expressiva (mesmo com investimentos em infraestrutura, como a implementação da Sala São Paulo na Estação Ferroviária Júlio Prestes), não havendo sequer ocupação do lugar por uma classe média de “gentrys”. A gentrificação pode vir a ocorrer como resultado das propostas políticas de produção espacial neoliberais para o centro, mas não se constitui de forma efetiva atualmente. Preferimos, como fizeram alguns autores que trataram do Nova Luz (SILVA, 2010, SOMBINI, 2013), entender o caso como refuncionalização, revalorização, requalificação ou até mesmo modernização, de acordo com cada fenômeno e abordagem particular do problema. Deste modo, acreditamos que se mantém a precisão dos termos, não banalizando-os ou confundindo os processos. Como propõe a professora Ana Fani: “(…) a revitalização é, antes de mais nada um processo de revalorização do solo urbano que muda o uso do espaço pela imposição do valor de troca, expulsando aquele que não está apto a pagar por ele, como pode ser visto, por exemplo, em São Paulo, Salvador ou mesmo em Paris. A revitalização, por sua vez, também produz a assepsia dos lugares, pois o ‘degradado’ é sempre o que aparece na paisagem como pobre, o sujo, o feio, exigindo sua substituição pelo rico, limpo, bonito; características que não condizem com a pobreza. O combate ao degradado no centro das metrópoles – pelos processos de revitalização – ao revalorizar os lugares dentro da metrópole ‘revitalizam a propriedade’ com a erradicação da pobreza e do pobre, que é expulso para outras áreas – o que gera o fenômeno da explosão da cidade – com estratégias dissimuladoras” (CARLOS, 2007, P. 89) 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS I CONGRESSO DE GEOGRAFIA E ATUALIDADES 10 E 11 de Julho de 2015 - UNESP – Rio Claro, SP. A escola crítica da Geografia estabeleceu certas reflexões epistemológicas que possibilitaram entendimentos de método, de leitura sobre a realidade e visões de mundo incorporados pelos geógrafos. A revisão constante das teorias é uma premissa da escola crítica elementar na construção do conhecimento geográfico. O raciocínio é o seguinte: a realidade é histórica, ou seja, dinâmica no tempo. As definições cunhadas devem acompanhar tal movimento histórico. Se não forem sempre revistas, as interpretações do mundo ficam fadadas ao anacronismo e de nada servem para intervenções revolucionárias da realidade. As definições e teorias “dissimuladas” (aquelas que mascaram e naturalizam o sentido das relações sociais) servem mediocremente para fins de manutenção do sistema econômico e social capitalista. A revisão do conceito de gentrificação tem como proposito avaliar a sua validade na análise da realidade brasileira. O termo foi cunhado tendo como embasamento realidades bem diferentes das nossas, todas de países líderes da divisão internacional do trabalho (Inglaterra e Espanha são os maiores “exemplos” utilizados na elaboração de projetos de “revitalização”). Quando esmiuçada, a teoria do ocidente norte sobre gentrificação deixa de corresponder às realidades terceiro-mundistas do Brasil. Devemos, portanto, indagar sempre se as questões teóricas correspondem às práticas e não adotar modelos explicativos de imediato. 5. AGRADECIMENTOS Agradeço à minha orientadora Silvana Maria Pintaudi, aos colegas mais próximos de graduação, aos meus familiares. Agradeço também o financiamento pela Fapesp. 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CARLOS, A. F. A. - O lugar no/do mundo. São Paulo: FFLCH, 2007. HARVEY, D. - Justiça Social e a Cidade - São Paulo: HUCITEC, 1980. MARX, Karl. – Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2011. I CONGRESSO DE GEOGRAFIA E ATUALIDADES 10 E 11 de Julho de 2015 - UNESP – Rio Claro, SP. RUBINO, S. - “Gentrification”: notas sobre um conceito incômodo. In: SCHICCI, Maria Cristina; BENFATTI, Denio. Urbanismo: Dossiê São Paulo-Rio de Janeiro. Campinas: Puc-Campinas, 2004, pp. 287-296 SILVA, C. A. - Apropriação dos espaços públicos pela iniciativa privada: estudos sobre a Nova Luz na cidade de São Paulo/SP/ Carolina Altenfelder Silva - Rio Claro: [s.n.], 2010. SMITH, N. A gentrificação generalizada: de uma anomalia local à regeneração urbana como estratégia urbana local. In: BIDOU-ZACHARIASEN, C. (coord). De volta à cidade. Dos processos de gentrificação às políticas de revitalização dos centros urbanos. São Paulo: Annablume, 2006. p. 59-87. SOMBINI, E. A. W. - A revalorização contemporânea do centro de São Paulo: Agentes, concepção e instrumentos da urbanização corporativa (2005-2012). Campinas, SP, 2013