Direito Processual Penal Principiológico

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Revista da
Escola Paulista
da Magistratura
Ano 15 – Número 1
Junho 2015
Direito Processual Penal
Principiológico
ESCOLA PAULISTA DA MAGISTRATURA
Diretor
DESEMBARGADOR FERNANDO ANTONIO MAIA DA CUNHA
Vice-Diretor
DESEMBARGADOR MANOEL DE QUEIROZ PEREIRA CALÇAS
Conselho Consultivo e de Programas
DESEMBARGADOR ITAMAR GAINO
DESEMBARGADOR ANTONIO CARLOS VILLEN
DESEMBARGADOR ANTONIO CELSO AGUILAR CORTEZ
DESEMBARGADOR LUIZ AUGUSTO DE SIQUEIRA
DESEMBARGADOR FRANCISCO EDUARDO LOUREIRO
DESEMBARGADORA MARIA DE LOURDES RACHID VAZ DE ALMEIDA
DESEMBARGADOR CLAUDIO LUIZ BUENO DE GODOY
Coordenador da Biblioteca e Revistas
DESEMBARGADOR WANDERLEY JOSÉ FEDERIGHI
Carlos Alberto Corrêa de Almeida Oliveira
Mestre em Direito Penal e Doutor em Direito Processual Penal pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).
Pós-Doutorado em História do Direito pela Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa em Portugal (FDUL). Coordenador de Primeiro Grau da
Área de Direito Processual Penal e Professor da Escola Paulista da Magistratura.
Juiz de Direito Titular I da 25ª Vara Criminal da Capital de São Paulo.
Direito Processual Penal
Principiológico
Escola Paulista da Magistratura
São Paulo, 2015
Revista da Escola Paulista da Magistratura / Escola Paulista da Magistratura.
Ano I, (1993). São Paulo, SP: Escola Paulista da Magistratura.
2001,
2002,
2003,
2004,
2005,
2006,
2007,
2009,
2011,
2012,
2014,
2015,
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2 (1-2)
3 (1-2)
4 (1-2)
5 (1-2)
6 (1)
7 (1-2)
8 (1-2)
9 (1)
10 (1)
11 (1)
12 (1-2)
13 (1)
1. Direito. I. Escola Paulista da Magistratura.
ISSN 1980-2374
Escola Paulista da Magistratura
Rua da Consolação, 1.483 - 1º, 2º, 3º e 4º andares
01301-100 - São Paulo - SP
Fones: (11) 3255-0815 / 3257-8954
www.epm.tjsp.jus.br – [email protected]
Ofereço meu trabalho para os meus filhos Camila
e Henrique, aos meus alunos e a todos que queiram repensar o Direito Processual Penal como
meio de desenvolvimento social com humanidade, além de busca por uma sociedade mais
justa e igualitária, onde acima do poder estejam
o Direito e a Dignidade da Pessoa Humana.
Agradeço aos meus pais por terem criado a base
necessária para o meu desenvolvimento, bem
como à minha família pela compreensão e incentivo constantes, em especial aos meus filhos
que trouxeram uma visão mais doce sobre a vida
e o meu trabalho como magistrado. Agradeço
ao orientador Professor Doutor Marco Antonio
Marques da Silva, pessoa responsável por permitir a percepção de um direito com base em
princípios e não apenas em normas escritas.
Agradeço aos amigos o apoio prestado em todas
as horas.
O direito, em suma, privado de moralidade, perde sentido, embora não perca necessariamente
império, validade e eficácia. Como, no entanto,
é possível às vezes, ao homem e à sociedade,
cujo sentido de justiça se perdeu, ainda assim
sobreviver com seu direito, este é um enigma, o
enigma da vida humana, que nos desafia permanentemente e que leva muitos a um angustiante
ceticismo e até a um despudorado cinismo.
Tércio Sampaio Ferraz Júnior
NOTA DO AUTOR
O presente trabalho é fruto do amadurecimento proporcionado pelo
convívio com colegas magistrados, promotores de justiça, defensores públicos, advogados, policiais, alunos e partes, durante anos de estudos e de
desempenho profissional na área.
Inicialmente, tivemos que vencer os próprios temores por tentar enxergar o Direito, em especial, o ramo Direito Processual Penal, como algo
além da norma positivada e como meio de justiça e dignificação da pessoa
humana, sem o medo do abstrato que pode parecer, inicialmente, a adoção
de princípios como balizas e norte da interpretação, composição de lacunas
e da aplicação das normas processuais penais.
Agradecemos o apoio da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
dos seus professores e do orientador das teses de mestrado e de doutorado Desembargador Marco Antonio Marques da Silva, os quais permitiram a
oportunidade e o desenvolvimento do presente trabalho, também a todos os
meus alunos na Escola Paulista da Magistratura e da Faculdade de Direito da
Universidade Presbiteriana Mackenzie, os quais me ensinaram humildade e
a ser um eterno aluno na busca do conhecimento, bem como me permitiram
um novo olhar para o Direito.
Agradecemos ainda ao nosso eterno mestre Desembargador Emeric Levai, pessoa que desde os bancos acadêmicos, e depois como colega magistrado, sempre nos chamou a atenção de que o processo penal não envolve
apenas a discussão de fatos e de ideias, mas a afetação de vidas, daí a
necessidade de sermos humanos, comprometidos com o trabalho e éticos
enquanto profissionais na área.
Agradecemos, finalmente, à Escola Paulista da Magistratura, ao seu
corpo diretivo, em especial, ao Diretor Fernando Antonio Maia da Cunha
e a todos os seus funcionários, em especial, o Marcelo Alexandre Barbosa,
pela oportunidade do presente trabalho e pelo muito que sempre fizeram ao
longo dos anos de convivência.
Esperamos que a nossa visão princípiológica do ramo Direito Processual
Penal venha a contribuir para o desenvolvimento da Justiça Criminal, contando com as críticas para o aperfeiçoamento do trabalho e o nosso.
Obrigado.
O autor
RESUMO
Direito Processual Penal Principiológico
A legitimidade social do Direito
A busca pelo denominado Direito Processual Penal Principiológico, fruto
da minha experiência profissional como magistrado e acadêmico do direito,
bem como da minha inquietação decorrente da constatação do distanciamento do Direito Processual Penal e do próprio Direito do interesse e dos
valores da sociedade, levou à pesquisa na minha ação profissional e acadêmica, dos elementos necessários para essa proposta principiológica. Para uma
reflexão sobre a relevância da adoção de princípios no Direito Processual
Penal concomitantemente e como norte para a norma positivada, será realizado um breve estudo a respeito da formação do Direito pelo homem e na
sua interação interpessoal, passando pelas ideias de sociedade e de Estado,
com exemplos de momentos históricos de diferentes civilizações, para se
chegar a um contexto de justificação de um direito processual penal baseado
em princípios. Na sequência, será realizada uma retrospectiva da evolução
histórica do Direito Processual Penal em Portugal e no Brasil, continuando
com o desenvolvimento do tema, com observações, buscando trazer uma
contribuição para que esse ramo do direito esteja em sintonia com a sociedade, decorrendo disso a sua legitimidade social e a sua validade efetiva.
Seguirão comentários sobre princípios informadores explicitados e imanentes
no texto da Constituição da República Federativa do Brasil aplicáveis direta e
indiretamente ao processo penal possibilitando o uso desses princípios como
balizadores éticos na criação e aplicação da norma processual penal.
Palavras-chave: Processo Penal; Princípios; Ética e Validade Efetiva.
SUMMARY
The Principiologic Criminal Procedural Law
The social legitimacy of the right
In order to explain the Principiologic Criminal Procedural Law, result of
my professional experience as a magistrate and a law academician, as well
as my inquietude from the evidence of the distance between the criminal
procedural law and the proper law of values and interests of the society, I
have searched the necessary elements for my proposal on my professional
and academic act to bring the reflection upon the relevance of the usage of
the principles in law. A brief study about the principles formation through
the man and his interpersonal interaction is going to take place bringing the
reflection upon the relevance of the use of the principles in law by taking
into consideration the society idea, State, with examples of moments in
different civilizations. This leads to a justifying context of a criminal procedural law based upon principles, followed by a retrospective of the historical
evolution of this law. The thesis development with my observations comes
after that; in order to bring a contribution to the criminal procedural law
to be responsive to the society, with the outcome of its social legitimacy
besides its effective legality. Next, there are comments about principles informers, expressed and permanent in the Federal Constitution text applied
to the criminal process directly or indirectly leading to the possibility of
the use of these principles as ethical limits particularly in the creation and
application of the criminal procedural norm.
Keywords: Criminal Process; Principles; Ethics and Effective Validity.
RESUMEN
Principiológico de Derecho Procesal Penal
La legitimidad social del Derecho
La búsqueda por la principiológico de la llamada Ley de procedimiento
penal, el fruto de mi experiencia profesional como un magistrado y estudioso de la ley, así como también mi preocupación surge de la realización del
destacamento del derecho procesal penal y derecho de los intereses y los
valores de la sociedad, investigado en mi acción profesional y académica,
los elementos necesarios para la principiológica de esta propuesta. Una reflexión sobre la pertinencia de adoptar principios de derecho procesal penal
al mismo tiempo y como norte a la positivada estándar, se celebrará un breve estudio sobre la formación de los derechos humanos y en su interacción
interpersonal, pasando por las ideas de estado y la sociedad, con ejemplos
de momentos históricos de diferentes civilizaciones, para llegar a un contexto de justificación de una ley de procedimiento penal basado en principios.
Como resultado, se realizará una retrospectiva de la evolución histórica del
derecho procesal penal en Portugal y en Brasil, continuando con el desarrollo del tema, con comentarios, tratando de aportar una contribución a
esta rama del derecho está en armonía con la sociedad, siendo su legitimidad social y su validez efectiva. Seguir los comentarios sobre los principios
que se explican en el texto inmanente e informantes de Constitución de la
República Federativa de Brasil aplicable directamente o indirectamente a
un proceso penal, lo que es posible utilizar estos principios como fundamento ético en la creación y aplicación del derecho procesal penal.
Palabras clave: Procesos Penales; Principios; Ética y Validez Efectiva.
SUMÁRIO
Introdução ............................................................................................. 15
1. A formação e a importância dos princípios na evolução do
homem em sociedade
1.1 O homem e o nascimento dos princípios................................................ 19
1.2 Os princípios como característica social e como uma das fontes do Direito...... 28
1.3 Os princípios como limite do poder do Estado......................................... 38
1.4 Princípios como balizadores éticos da criação e aplicação da norma jurídica.... 43
1.5 A Constituição e os princípios............................................................. 54
1.6 A formação da sociedade internacional e a necessidade de um Direito
Internacional baseado em princípios..................................................... 57
2. O Direito Processual Penal Principiológico
2.1 A evolução histórica do Direito Processual Penal...................................... 68
2.1.1 Relação histórica do Direito com valores sociais no âmbito do Direito
Penal e do Direito Processual Penal em Portugal metrópole e no Brasil... 74
2.2 O Direito Processual Penal como ciência autônoma................................... 88
2.3 A Constituição Federal de 1998 como fonte de identificação dos princípios...... 90
2.4 Princípios e a flexibilização do Direito escrito no Processo Penal................... 91
2.5 Princípios expressos e imanentes......................................................... 95
2.6 Interpretação no Direito Processual Penal Principiológico............................ 97
2.7 Direito Processual Penal Principiológico e a segurança jurídica..................... 100
2.8 Aplicação do Direito Processual Penal Principiológico................................ 104
2.9 Natureza jurídica do Direito Processual Penal Principiológico....................... 109
3. Contextualização dos princípios aplicáveis às Ciências Penais no Brasil
3.1 Princípios explicitados na Constituição da República Federativa do Brasil........ 112
3.1.1 Princípios explicitados gerais..................................................... 112
3.1.1.1 Princípio da Igualdade.................................................... 112
3.1.1.2 Princípio da Legalidade................................................... 115
3.1.1.3 Princípio da Presunção de Inocência................................... 117
3.1.1.4 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana............................ 118
3.1.1.5 Princípio da Intranscendência........................................... 122
3.1.2 Princípios explicitados específicos do Processo Penal......................... 125
3.1.2.1 Princípio da Publicidade.................................................. 3.1.2.2 Princípio do Devido Processo Legal..................................... 126
125
3.1.2.3 Princípio do Contraditório............................................... 128
3.1.2.4 Princípio da Ampla Defesa............................................... 130
3.1.2.5 Princípio Acusatório e do Juiz Natural................................. 132
3.1.2.6 Princípio da Vedação das Provas obtidas por Meios Ilícitos......... 135
3.1.2.7 Princípio da Economia Processual....................................... 137
3.1.2.8 Princípio da Duração Razoável do Processo........................... 138
3.1.2.9 Princípio da Plenitude de Defesa no Júri.............................. 138
3.1.2.10 Princípio da Soberania dos Veredictos do Júri....................... 139
3.1.2.11 Princípio “nemo tenetur se detegere”............................... 140
3.2 Princípios imanentes na Constituição Federal.......................................... 141
3.2.1 Princípios imanentes gerais....................................................... 142
3.2.1.1 Princípio da Proporcionalidade.......................................... 142
3.2.1.2 Princípio da Culpabilidade............................................... 143
3.2.1.3 Princípio da Necessidade................................................. 144
3.2.2 Princípios Imanentes Específicos do Processo Penal........................... 145
3.2.2.1 Princípio da Obrigatoriedade............................................ 145
3.2.2.2 Princípio da Verdade no Processo Penal............................... 147
3.2.2.3 Princípio da Identidade Física do Juiz.................................. 149
3.2.2.4 Princípio do Duplo Grau de Jurisdição................................. 149
3.2.2.5 Princípio da Duração Razoável da Prisão Cautelar................... 150
3.2.2.6 Princípio da Iniciativa das Partes....................................... 151
3.2.2.7 Princípio da Vedação do Duplo Processo............................... 152
3.2.2.8 Princípio do Sigilo das Votações do Júri............................... 152
3.2.2.9 Princípio da Oficialidade................................................. 152
Conclusões ............................................................................................ 155
Bibliografia consultada.............................................................................. 157
Apêndices e anexos
Apêndice A - Sentença envolvendo o réu que ficou tetraplégico.............................. 166
Anexo A - Resumo do andamento do processo envolvendo o réu que ficou
tetraplégico............................................................... 175
Apêndice B - Sentença envolvendo a aplicação do perdão judicial no caso do réu
que ficou cego........................................................................ 177
Anexo B - Resumo do andamento do processo envolvendo o réu que ficou
cego e recebeu o perdão judicial ..................................... 187
Anexo C -Cópia do acórdão referente ao recurso contra a sentença que
concedeu o perdão judicial............................................. 189
15
INTRODUÇÃO
O Direito Penal é a área do conhecimento que cuida da definição das infrações penais, das sanções e dos seus limites, cabendo ao Direito Processual
Penal informar como o Estado Juiz chegará à conclusão a respeito da existência ou não de uma infração penal em um caso concreto e a execução de
uma eventual sanção imposta, motivo pelo qual a relação do Direito Processual Penal e do próprio Direito com a humanidade e com a ética decorrente
dos valores sociais é fundamental em um Estado Democrático de Direito.
Oportuno mencionar o fato de o mundo jurídico sempre ter sido pautado por discussões acaloradas sobre o significado da palavra Direito, como
também sobre as suas fontes, a sua finalidade e o seu limite.
Tais discussões continuam contemporâneas e assumiram maior relevância após o desenvolvimento do comércio e da comunicação, através da abertura para o uso civil da chamada Rede Mundial de Computadores, conhecida
por internet.
Essas discussões e teorias para definir o significado do Direito, suas
fontes, sua finalidade e os seus limites acabam, muitas vezes, por ficarem
exclusivamente no campo da racionalidade e, em consequência, longe da
realidade social e do próprio homem, com o seu interesse por uma sociedade
que lhe permita uma vida digna.
O excesso de racionalidade acaba por influir na criação de normas jurídicas complexas, algumas vezes copiadas de outros países, sem a preocupação da verificação destas estarem em sintonia com os valores da sociedade
brasileira, resultando em um sistema jurídico confuso, objeto de uma interpretação contínua e demorada para se saber o que está vigente ou não,
repercutindo em processos judiciais penais declarados, nulos com prejuízos
para a própria credibilidade da Justiça, além de motivadores do sentimento
de impunidade.
Tal constatação leva ao questionamento sobre estar o Direito Processual Penal cumprindo o seu papel social de servir ao homem em sociedade,
como criação humana e meio de humanização da sociedade.
O Direito como ciência humana ou arte, ou até como os dois, na sua
evolução através dos tempos, precisa estar em sintonia com os interesses da
sociedade para a qual ele se destina, sob pena de não ser legítimo do ponto
de vista social e ter a sua validade efetiva prejudicada.
16
A legitimidade social decorre da agregação de valores sociais à formação da norma jurídica e à sua aplicação, representando a validade efetiva
o reconhecimento e o cumprimento social da norma jurídica com pouca ou
nenhuma necessidade de coerção.
Além disso, para o Direito de um Estado ser respeitado mundialmente,
diante das relações cada vez mais próximas entre os diversos países, com o
aparecimento de princípios internacionais de valorização do homem, precisa
estar em consonância com esses valores universais.
O Direito possui um reclamo social funcional de prevenção e solução de conflitos em uma eterna busca pelo equilíbrio entre os homens em
sociedade.
Dentro desse panorama, qual o profissional do direito que nunca se
questionou sobre estar ou não a norma escrita adequada à realidade social
e, mais ainda, aos princípios que balizam a vida em sociedade?
O Direito no século XXI continua a sua marcha pelo desenvolvimento e
pela atualização, e no cenário mundial, com a diminuição dos recursos disponíveis para a vida do homem na Terra, o aumento constante da poluição,
as crises econômicas profundas, os movimentos fundamentalistas religiosos
que utilizam a violência indiscriminada como forma de expressão, as guerras, e a comunicação quase imediata em qualquer ponto do planeta, ele
precisa ser ágil e buscar uma efetividade, sem perder a humanidade, em especial, nos ramos que cuidam diretamente das chagas sociais representadas
pela prática de infrações penais.
O Direito Processual Penal, como plataforma para a apuração de infrações penais, na maior parte dos países, e notadamente no Brasil, pelas razões
mais diversas, que vão desde uma pretensa segurança jurídica até a própria
soberania do Estado, continua divorciado dos novos tempos, permanecendo
engessado pela norma escrita e por interpretações muitas vezes vetustas.
A atualidade impõe uma conduta mais evoluída na exegese da formação
da norma jurídica no Direito Processual Penal, bem como a sua aplicação,
interpretação e limite, repercutindo em um Direito balizado por princípios.
A ideia simplista de norma jurídica como algo simplesmente posto, acabado e com poder de coerção não se sustenta no tempo e subverte o Direito no conteúdo da sua humanidade e adequação social, mormente quando
a norma escrita está desacompanhada de uma valoração social interna à
sociedade de um país e em condições de ser respeitada externamente por
estar inadequada à valoração internacional explicitada na Carta de Direitos
Humanos da Organização das Nações Unidas.
17
O Direito Principiológico, base para o desenvolvimento de um processo
penal também principiológico, busca ser pragmático, baseado e limitado em
princípios e não apenas na norma escrita e posta, tendo como influência à
correlação entre fato, valor e norma desenvolvida por Miguel Reale, estando
no valor moral a sua legitimidade social e a sua humanidade.
Entende-se por moral a valoração histórica de fatos sociais repercutindo em um comportamento pacificado na sociedade de um Estado, dando
ensejo à formação de princípios locais. Tais princípios são uma das bases
para a formação das normas, entre elas as jurídicas, que irão compor o ordenamento jurídico do Estado. Os princípios locais de cada Estado precisam
ainda ser adequados aos princípios internacionais explicitados na Carta de
Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, para que haja interrelação econômica, política e respeito entre os diversos Estados, o que está
sendo facilitado pela universalização progressiva da comunicação.
Onde nasce o sentimento da necessidade de um Direito Processual Penal
Principiológico, com a busca da legitimidade social e não apenas de direito?
Após cerca de duas décadas judicando, bem como constatando como o
Direito, em especial, o Direito Processual Penal tornou-se distante de uma
finalidade funcionalista, perdido em fórmulas racionais que o afastaram da
sociedade e diante de uma profusão de normas escritas aparentemente conflitantes, a inquietação levou à busca de um novo suporte de julgamento
e aplicação do Direito Processual Penal, o qual não podia mais se resumir
a repetir a norma escrita e a jurisprudência pertinente, sem valorar o seu
conteúdo a partir de princípios que permitem limites, eficácia e validade
efetiva, gerando o nascedouro da pesquisa desenvolvida no presente trabalho, tendo como método de pesquisa a minha ação e como objeto, o meu
fazer profissional.
A esse processo pessoal, somou-se a abordagem técnico-científica do
curso de pós-graduação stricto sensu em Direito Processual Penal da Pontifícia Universidade Católica sob a regência do Professor Doutor Marco Antonio
Marques da Silva, magistrado e acadêmico, que há muito já rompera com o
Direito Processual Penal eminentemente escrito e codificado, sem uma base
principiológica e constitucional.
Postula-se um Direito Processual Penal Principiológico e Constitucional,
orientado por princípios previstos de forma expressa e imanente na Constituição da Republica Federativa do Brasil e não apenas nas regras escritas do
Código de Processo Penal e em outras normas infraconstitucionais escritas.
Com base em tais informações, investigou-se a Constituição da República Federativa do Brasil, para chegar aos princípios e descobrir a existência
18
deles anteriormente à própria Constituição Federal do Brasil, bem como a
importância destes princípios para a formação e aplicação das normas jurídicas de Direito Processual Penal, embora o medo do relativismo de algo que
não está escrito e reconhecido como norma escrita tenha inibido, por muito
tempo, a iniciativa de invocá-los expressamente na resolução dos casos concretos por parte de alguns.
A técnica de pesquisa adotada na presente investigação científica é a
da documentação indireta, abrangida pela pesquisa documental e bibliográfica, além da documentação direta e empírica fundada na análise de casos
concretos no curso da experiência profissional dentro da judicatura.
Os métodos utilizados são: o sociológico; histórico; comparativo da
dogmática jurídica nacional e de outros povos, e monográfico.
O eixo fundamental da pesquisa é o método técnico-jurídico, apoiado
ainda na investigação social e histórica, para a compreensão de valores sociais ao longo da evolução da vida do homem em coletividade.
19
1.A FORMAÇÃO E A IMPORTÂNCIA DOS PRINCÍPIOS NA
EVOLUÇÃO DO HOMEM EM SOCIEDADE
Um estudo sobre princípios precisa começar pela análise do homem,
da sua vida em conjunto com outros homens e pelas repercussões que isto
acarreta na sua valoração do mundo.
Também necessita estabelecer a ideia de comportamento socialmente
adequado e de valor social, para se chegar a uma noção de princípios e sua
importância na criação e na aplicação das normas jurídicas que compõem o
Direito.
Direito sem princípios é uma mera sobreposição de regras jurídicas sem
uma legitimidade social de fato, o que repercute na sua validade efetiva1.
1.1 O Homem e o nascimento dos princípios
O ser humano é um animal racional classificado antropologicamente
como sendo da espécie conhecida como homo sapiens sapiens (latim: homem sábio), possui como característica um cérebro desenvolvido em relação
aos demais mamíferos, com inúmeras capacidades, destacando-se o raciocínio abstrato, a linguagem, a introspecção e a resolução de problemas2.
Tal capacidade mental, associada a um corpo ereto e ainda a capacidade de se adaptar, permitiu ao homem se desenvolver fisicamente em quase
todas as partes do planeta.
Os homens, enquanto indivíduos, podem ser estudados a partir de diversos pontos de vista, mas o seu estudo assume especial importância quando eles se ligam a outros homens, formando uma organização social, decorrendo disso a relevância da investigação sociológica.
Segundo a sociologia moderna, a organização social possui cinco formas, as quais representam graus de evolução social, conforme esclarece
Joel M. Charon:
A organização social assume cinco formas: díades, grupos, organizações formais, comunidades e sociedades. Em cada forma,
os elementos básicos da organização são os mesmos: interação
1
2
REALE, Miguel. Teoria tridimaensional do direito. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994. p.15.
LABURTHE-TOLRA, Philippe; WARNIER, Jean-Pierre. Etnologia antropológica. Tradução Anna Hartmann Cavalcante. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 54-59.
20
social que desenvolve padrões sociais. A organização torna-se
possível porque os indivíduos aceitam os padrões como guias
para o seu pensamento e ação. Essa aceitação facilita o controle social sobre o ator individual e a cooperação entre os atores
na organização social.
Quando identificamos qualquer organização social, devem evidenciar-se duas qualidades: a) interação social contínua; os
atores interagem regularmente uns com os outros; b) padrões
sociais; um conjunto de regras e perspectiva são, em certa medida, característicos dessa organização específica. Os atores na
organização são influenciados por esses padrões.3
As díades, interações entre duas pessoas, e o grupo, interação de um
conjunto de pessoas, possuem uma existência mais curta que as demais formas de organização social e representam escalas de desenvolvimento.
Os grupos quando se tornam mais numerosos, geralmente ficam
mais formais e impessoais; os padrões são mais explicitados e
formalmente declarados, para que os membros entendam com
clareza o que se espera deles.4
As organizações formais representam essa etapa de desenvolvimento.
As organizações formais e muito depois a própria sociedade formada,
com o tempo, criam valores internos que passam a representar aquilo que
é lícito ou ilícito no comportamento social de seus membros, repercutindo
no dever ser social.
Através da relação entre diversas sociedades de Estados diferentes, em
face da maior interdependência econômica do mundo moderno, acabam por
nascer valores sociais comuns ou de importância internacional que servem
de base para a verificação da adequação dos valores internos das organizações sociais aos valores internacionais, repercutindo em novos parâmetros
de lícito e ilícito.
Immanuel Kant definiu a diferença do ser para o dever ser no tocante à
permissão do comportamento em sociedade:
Ação permitida (licitum) é a que não contraria a obrigação;
e esta liberdade que não é limitada por nenhum imperativo
3
4
CHARON, M. Joel. Sociologia. Tradução Laura Teixeira Motta. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 51.
Id., p. 54.
21
contrário é chamada de autorização (facultas morallis);
consequentemente, é óbvio o que significa o proibido (illicitum).
Dever é a ação à qual alguém está obrigado. É, portanto, a
matéria da obrigação, e pode haver um único e mesmo dever
(do ponto de vista da ação), embora possamos estar obrigados
a ele de diferentes maneiras.5
Partindo-se da ideia do ser para o dever ser em sociedade, pode-se
estabelecer polaridades entre o homem socialmente adequado e o homem
socialmente inadequado para a vida em sociedade, representando, os primeiros, todos aqueles que se integraram pelo respeito ao seu traço moral,
ou seja, respeitando o padrão social da organização em que vivem, mais
precisamente os valores sociais.
O padrão social representa o costume de uma sociedade, mais precisamente, um modo regular, padronizado, de parecer ou comportar-se, considerando a vida dentro de um sistema social6.
O conjunto de valores sociais decorrentes do padrão social é revelado
pela ética7, mais precisamente a relação entre o comportamento moral, ditado pelas necessidades, interesses sociais e a bipolaridade entre o certo e o
errado decorrente da historicidade social coletiva, pontuando o valor moral
efetivo do grupo social.
Os valores sociais que se destacam na organização social, sem os quais
ela se desnatura, serão os chamados valores sociais essenciais, parte da
identificação moral daquela organização social, além do que se perpetuarão enquanto o grupo mantiver as suas características básicas, formando
um conteúdo expresso ou imanente nas gerações futuras. Observa-se que o
grupo social pode se desenvolver e até se modificar, sendo a característica
da valoração social a relação entre as diversas gerações do grupo, o que não
impede que fatos externos e até internos, como guerras, epidemias, movimentos religiosos e outros possam modificar os valores sociais essenciais da
organização social, deixando a nova organização social de ser a anterior.
A característica ética de uma organização social não é imutável e perene, mas representa a fotografia da organização social no momento em que
ela é analisada.
Logo, é possível entender uma organização social, bem como os seus
padrões éticos, ao estudarmos os seus valores sociais essenciais, os quais são
uma especialidade dentro do gênero denominado costumes.
KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. Tradução Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2008. p. 65.
JOHNSON, Allan G. Dicionário de sociologia.Tradução Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. p. 56.
7
VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética. Tradução João Dell’Anna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. p. 20.
5
6
22
A questão que surge é a de ser possível ou não estabelecer um número
necessário de valores sociais essenciais para caracterizar uma organização
social.
Entendemos não ser possível uma resposta específica, o que permitiria
dizer quando deixa de existir uma organização social e passa a existir uma
outra apenas pela análise do volume de valores sociais essenciais alterados.
Isso porque, pode ocorrer variação entre organizações sociais em face
de suas peculiaridades de complexidade, desenvolvimento tecnológico, social, econômico, religioso, de quantidade de membros, entre outros.
Também, não se pode olvidar que dentro da cultura e da historicidade
de uma organização social podem existir valores sociais com importâncias
diversas para uma outra organização social, ou seja, o que é um valor social
essencial para uma pode ser um valor social comum, um mero costume genérico para uma outra, ou ainda, um indiferente social.
O conteúdo integrado pelos valores decorrentes das regras básicas e
essenciais de formação e manutenção da organização social será uma das
principais bases para a edificação das normas escritas e consuetudinárias
das organizações sociais mais complexas, como é o caso das sociedades, e
são também chamados princípios, passando o valor social essencial a representar o chamado bem jurídico moral a ser tutelado decorrente do padrão
social da organização social estudada.
Os princípios são os valores sociais essenciais de uma organização social
que, dentro de uma metáfora, aproveitando-se a ideia de Max Scheler, citado por
Marcos Peixoto Mello Gonçalves8, poder-se-ia reduzir a uma linha reta em cujo
ponto central ficaria a indiferença social e, nos extremos opostos, um sinal
positivo e outro negativo, este último acrescentado pelo presente trabalho.
Quanto mais próximo do sinal positivo, maior é a importância do valor
social e maior é a intensidade de reconhecimento de tal valor, sendo os valores sociais essenciais aqueles mais próximos do sinal positivo. Já os valores
que ficam próximos do sinal negativo representam aquilo de maior repúdio
em uma organização social.
A formação da sociedade internacional contemporânea tem como base
a Carta de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, em reação
histórica contra o desrespeito do homem pelo próprio homem, dando origem
ao supraprincípio denominado dignidade da pessoa humana, que pode ser
colocado no ponto mais extremo do polo positivo de qualquer organização
8
GONÇALVES, Marcos Peixoto Mello. Levante a mão e fale alto. São Paulo: Quartier Latin, 2010. p. 50.
23
social que queira ser respeitada internacionalmente, o que será explicado
mais à frente.
A alegoria dos sinais positivo e negativo representa o próprio paradoxo
dos valores em sociedade, uma vez que eles admitem polaridade, mais precisamente, oposição social.
A polaridade oposta permite que os comportamentos dos homens sejam avaliados pela organização social em que vivem e externamente pelas
demais organizações sociais.
Alterar os padrões sociais, mais precisamente os valores sociais essenciais decorrentes deles, a ponto de modificar a valoração moral da organização social, é mudar a própria organização social e modificar a sua identidade
com relação à ancestral.
Os valores sociais essenciais atuam em todas as atividades internas e
externas de uma organização social e, como já foi dito, ficam próximos do
extremo da linha de importância social e formarão o núcleo moral que caracterizará aquela organização social dando a base das relações internas e
externas, bem como permitirão uma base moral para a formação das normas
escritas e consuetudinárias, do ordenamento jurídico, a sua interpretação e
aplicação, representando também o limite.
Infelizmente, também não é possível definir o que é um valor social
essencial a partir de um conceito, sem o risco de limitar a sua existência a
uma perspectiva objetiva ou subjetiva, o que representaria uma diminuição
da sua abrangência e importância, mas é possível constatar a sua existência,
delimitar o seu conteúdo e perceber a sua influência na organização social
estudada, em especial quando os princípios se encontram explicitados na
sua Carta Constitucional ou equivalente.
Dentro do panorama apresentado, princípios são os valores sociais essenciais de uma organização social, sendo uma das fontes internas do seu
Direito, em especial nas formações sociais denominadas sociedades.
Os princípios balizam a vida do ser social, sendo que, em conjunto,
representam a característica moral da organização social. Segundo nosso
entendimento, quando direcionados especialmente para determinados pontos, como ocorre no caso das ciências jurídicas, serão uma das fontes para
a criação das normas jurídicas, sua interpretação e aplicação, bem como
seu limite.
Os princípios voltados para as ciências jurídicas poderão ser de influên­
cia genérica, ou seja, para todos os seus ramos, ou, ainda, de influência
especial para determinado ramo do Direito, passando a caracterizar aquela
24
área específica, como ocorre, por exemplo, no âmbito das ciências criminais
e, mais especificamente, no Direito Processual Penal.
A proteção aos mais idosos e aos mais jovens9, a maior ou menor participação dos membros femininos nas decisões do grupo, a vida, a liberdade, a igualdade, a propriedade privada, a consideração de determinados
meios de prova, a maior ou menor possibilidade de defesa em um processo
e outros exemplos significam a materialização de valores sociais dentro das
organizações sociais. Dependendo da importância desses temas para a vida
em uma sociedade, eles formarão princípios que serão uma das bases para
o surgimento das normas sociais e jurídicas, o seu desenvolvimento, a sua
interpretação e a sua aplicação. Além disso, quanto maiores forem as interações econômicas, religiosas, sociais, políticas, culturais e outras, entre
as diversas organizações sociais, mais precisamente entre as diversas sociedades de países diferentes, maior será a possibilidade de existirem valores
essenciais comuns e até normas semelhantes.
O fenômeno da chamada globalização10, palavra muito utilizada no presente por estudiosos como Ulrich Beck11 e Zygmunt Bauman12 a respeito das
suas consequências sociais, com o significado em síntese de interação internacional, leva ao surgimento de tratados e convenções necessários para a
manutenção do equilíbrio entre os países, o que permitiu o desenvolvimento
e a aceitação do já citado valor essencial internacional, suprajurídico ao ordenamento jurídico dos diversos países e supracultural, mais precisamente
o princípio da dignidade da pessoa humana, como base para a liberdade, a
justiça e a paz no mundo, previsto no preâmbulo da Carta de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas.
A questão envolvendo a proteção dos mais idosos e dos mais jovens, bem como o que é uma pessoa idosa
e o que é uma pessoa infante, varia de um grupo social para outro, bem como de uma época para outra,
sendo que, na história do homem, já foram e são tratados como adultos pessoas menores de 14 anos de
idade e como idosas pessoas com mais de 50 anos de idade. Como também, o que se convencionou chamar
de pedofilia (atração sexual de um adulto ou adolescente por uma criança impúbere) é ainda culturalmente
aceito em determinados países, e demonstram a complexidade de um grupo social com relação a outro,
bem como a dificuldade de serem importadas normas jurídicas de um grupo para outro, sem que haja um
estudo prévio sobre a adequação delas aos valores sociais do grupo social no qual se pretende aplicá-las.
A título de curiosidade, dentro da tradição judaica considera-se como adultos (membros da sociedade) as
mulheres aos 12 anos de idade e os homens aos 13 anos de idade, sendo a cerimônia de transição chamada
Bat Mitzvah para as garotas e Bar Mitzvah para os rapazes.
10
O termo “globalização”, com a sua conotação atual, foi utilizado pela primeira vez em 1983, por Theodore
Levitt, em um artigo intitulado A globalização de mercados, publicado pela Harvard Business Review em
1º de maio de 1983.
11
BECK, Ulrich. Sociedade de risco. Tradução Sebastião Nascimento. 2. ed. São Paulo: 34, 2011.
12
BAUMAN, Zygmunt. Globalização – as consequências humanas. Tradução Marcos Penchel. Rio de Janeiro:
Zahar, 1999.
9
25
A reação internacional contra o desrespeito ao princípio da dignidade
da pessoa humana, com sanções econômicas e até com as intervenções armadas em casos extremos, demonstra a importância desse valor essencial
universal e como ele está balizando os mais diversos sistemas jurídicos do
planeta.
A aceitação da dignidade da pessoa humana como valor universal não
está sendo imposta pela força, mas pela educação, historicidade do homem
no mundo e pelas necessidades decorrentes da chamada globalização13.
Torna-se necessário esclarecer que os valores sociais essenciais, embora sejam o característico moral de uma organização social, não formam
um conjunto estanque que impeça a modificação do grupo, mormente em
tempos atuais, com aumento crescente do intercâmbio de informações.
O século XXI, com suas crises e outras importadas dos séculos passados, somadas ao fenômeno da formação de uma consciência universal de
preservação da vida humana, está revelando a formação de uma sociedade
internacional, com a alteração de alguns valores das organizações sociais
primitivas e até a criação de novas organizações sociais quando os valores
sociais essenciais são alterados14.
Como já foi dito, alterando-se os valores sociais essenciais de uma organização social, não se terá a mesma, mas uma outra em substituição à
primeira. Todas as alterações radicais, instantâneas e forçadas, ou seja, não
decorrentes de um processo social histórico, da conscientização pela educação e em razão da necessidade, segundo o nosso entendimento, possuem
a tendência de serem passageiras, voltando a organização social ao modelo
anterior ou muito próximo dele com os seus valores sociais essenciais, assim
que haja crise na força externa.
O valor social essencial comum ao sistema romano clássico, baseado na
escravidão, na ideia de poder e de autoridade e com o sentido próprio de
13
14
BECK, Ulrich. O que é globalização. Tradução André Carone. São Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 13.
Um exemplo da modificação de valores sociais pode ser facilmente percebido no processo de colonização
do Brasil. Os nossos nativos tinham como um valor comum e ritualístico nas diversas nações indígenas a antropofagia quando da época do descobrimento. Porém, considerando o fato de que a colonização do Brasil
não teve apenas um aspecto político e econômico, mas também religioso, a religião católica, através dos
seus representantes, passou a agir junto ao governo português e local, desde o Governo Geral de Tomé de
Souza, para a proibição e a punição de tal prática. Para os nativos, a antropofagia permitia a aquisição da
força e das qualidades da vítima, enquanto para os religiosos era a própria negação da humanidade e do
temor a Deus. Inclusive, a antropofagia foi usada como desculpa para a chamada “guerra justa na América
Portuguesa”, fonte para o cativeiro de índios como se observa nas normas portuguesas de 20 de março de
1570 e de 17 de outubro de 1653 (Cit em: NORONHA, Ibsen José Casas. Aspectos do direito no Brasil quinhentista. Coimbra: Almedina, 2008. p.119-126.).
26
família, sofreu um abalo com o desenvolvimento do cristianismo, mais precisamente com a noção de pecado e de equidade, ocasionando o colapso do
sistema anterior para o aparecimento de novos valores sociais essenciais e
que redundaram no padrão social comum ao sistema feudal da Idade Média,
embora com característicos próprios de cada uma das novas organizações
sociais surgidas, mesclando a historicidade com o choque de culturas das
organizações sociais que interagiram com a cultura romana15.
Uma demonstração do que foi acima exposto, pode ser observado através do apóstolo Paulo e como o cristianismo celebrado em suas cartas permitiu que gentios, judeus, escravos e homens livres pudessem ser iguais,
embora a igualdade plena entre os homens ainda não tenha sido alcançada
e é um dos desígnios, agora independentemente de fé religiosa, da adoção
do princípio da dignidade humana como supraprincípio internacional pela
Organização das Nações Unidas:
Paulo enumera em suas cartas a lista tradicional dos grupos
antagonistas – judeus e gentios, escravos e homens livres, gregos e bárbaros, homens e mulheres – para declarar que todas
as categorias foram apagadas no interior da nova comunidade.
A iniciação ao grupo, um simples banho purificador, consiste,
segundo Paulo, em despojar-se das “vestes” de todas as categorias religiosas e sociais anteriores e “revestir-se” de Cristo; com
isso Paulo entende a aquisição de uma identidade única e não
estanque, comum a todos os membros da comunidade, como
convém aos “filhos de Deus” recém-adotados “em Cristo”.16
A exemplo da sociedade romana, ao longo da história das sociedades e
do próprio homem no mundo, valores sociais essenciais foram sendo alterados em diversas organizações sociais, fazendo surgir novas organizações. O
momento atual demonstra a preocupação internacional pela dignidade do
homem, surgindo o supraprincípio da dignidade da pessoa humana, repercutindo na mudança das atuais sociedades. Compreende-se como dignidade
da pessoa humana o conjunto de direitos e de garantias que possibilitam um
tratamento igualitário e digno, no tocante à vida em sociedade e na relação
com o Estado.
ARIÈS, Philippe; DUBY, Georges (Org). História da vida privada.Tradução Hildegard Fiest. São Paulo:
Schwarcz, 2010. p. 19-242.
16
Id., p. 231.
15
27
O desenvolvimento da tecnologia da comunicação, permitindo a comparação da vida das pessoas nas diversas organizações sociais, leva o humanismo a se difundir por todo o planeta, para o homem exigir na sua
organização social dignidade equivalente à dos países mais desenvolvidos
economicamente.
O ser humano atual não representa mais o “eu”, mas o “nós”, porque o
mundo já não permite a existência de um ser isolado de uma relação social
interna e internacional, decorrendo disso a sua identificação como homem
no mundo e não mais apenas dele consigo mesmo e alheio aos fatos circundantes.
O homem social contemporâneo é internacionalizado diretamente
pela interação com a comunicação ou indiretamente por ser alcançado
por ela, muito embora o planeta ainda não esteja totalmente integrado à
tecnologia do presente, sendo necessário para o próprio desenvolvimento
e manutenção do homem preservado na sua dignidade humana e para a
plenitude do seu papel, dentro de um ponto de vista humanista, um olhar
mais próximo do desenvolvido em benefício do subdesenvolvido, deixando
as práticas exploratórias radicais de lado em nome da integração e preservação de todos.
As ideias de humanidade e de dignidade humana não devem ser pontuais e meras expressões reativas após um evento histórico de dor física infringida pela indiferença do homem pelo respeito ao seu semelhante, como
bem adverte Fábio Konder Comparato17, mas fruto de uma construção social
histórica, equitativa e solidária.
A humanidade e a dignidade da pessoa humana são indissociáveis e
necessárias para o futuro do ser humano no planeta, servindo os princípios,
em especial os de aplicação às ciências jurídicas, como fonte, meio e limite
de humanização das normas jurídicas internas e internacionais positivadas
ou não.
17
[...] Pois bem, a compreensão da dignidade suprema da pessoa humana e de seus direitos, no curso da
História, tem sido, em grande parte, o fruto da dor física e do sofrimento moral. A cada grande surto de
violência, os homens recuam, horrorizados, à vista da ignomínia que afinal se abre claramente diante
dos seus olhos; e o remorso pelas torturas, pelas mutilações em massa, pelos massacres coletivos e pelas
explorações aviltantes faz nascer nas consciências, agora purificadas, a exigência de novas regras de uma
vida mais digna para todos.(Cit. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 6.
ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 38.)
28
1.2 Os princípios como característica social e como uma das
fontes do Direito
Conforme apresentado no capítulo anterior, as organizações sociais
possuem pelo menos cinco etapas de desenvolvimento, representando as
sociedades um aspecto mais desenvolvido na vida em coletividade e, em
razão disto, necessitam de regras mais complexas voltadas não apenas para
o presente das demandas, mas para prevenir as futuras, que possam surgir e
aumentar a instabilidade da organização social.
Em face disso, os princípios assumem maior importância, uma vez que
norteiam a vida em sociedade, dando limites morais e representam uma das
fontes das normas jurídicas escritas e consuetudinárias que irão compor o
ordenamento jurídico. Observa-se que os princípios não são apenas regras
morais ou um mero costume, em face de não se limitarem a ditar um modo
de agir em sociedade, mas o próprio fundamento de como agir em sociedade. Não existe a possibilidade de conflito entre princípios, uma vez que
eles convergem dentro de uma proporcionalidade18, ocupando o princípio da
dignidade da pessoa humana o polo mais extremo dos valores sociais e de
reconhecimento internacional.
Nesse ponto, faz-se oportuno apresentar os conceitos de sociedade,
cultura e civilização, para permitir a ideia do desenvolvimento de princípios
como fruto de uma valoração social, com exemplos de diferentes sociedades, em momentos históricos distintos, demonstrando serem os princípios
decorrentes de uma evolução social, histórica e cultural, não se confundindo
com o resultado da ação da força, conforme neste trabalho se percebe a
história do homem em sociedade.
Segundo observa Allan Johnson, sob a ótica sociológica:
Sociedade é um tipo especial de sistema social que, como todos
os sistemas sociais, distingue-se por suas características culturais, estruturais e demográficas/ecológicas. Especificamente, é
um sistema definido por um território geográfico (que poderá
ou não coincidir com as fronteiras de NAÇÕES-ESTADO), dentro
do qual uma população compartilha de uma cultura e estilo
de vida comuns, em condições de autonomia, independência e
autossuficiência relativas.19
18
19
ÁVILA,Humberto. Teoria dos princípios.11.ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p.78-79.
JOHNSON, Allan G. Dicionário de sociologia.Tradução Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. p. 213.
29
O mesmo autor ainda apresenta o seu conceito de cultura como sendo:
Cultura é o conjunto acumulado de símbolos, ideias e produtos materiais associados a um sistema social, seja ele uma sociedade inteira ou uma família. Juntamente com ESTRUTURA
SOCIAL, POPULAÇÃO e ECOLOGIA, constitui um dos principais
elementos de todos os sistemas sociais e é conceito fundamental na definição da perspectiva sociológica.20
Finalmente, Allan Jonhson aponta civilização como sendo:
Uma civilização é uma sociedade cuja relativa falta de necessidade de lutar pela mera sobrevivência permite-lhe tornar-se
mais complexa em cultura e estrutura. As características típicas de civilização incluem COMUNIDADES fixas; organização política sob a forma de ESTADO; DIVISÃO DO TRABALHO complexa;
negócios e comércio em economias de mercado; instituições
religiosas formais; e arte, literatura, música e outras formas
de expressão altamente desenvolvidas.21
A organização social que consegue se compor e manter uma união prolongada formará uma sociedade, uma cultura com características próprias e
com um conjunto de valores, entre eles os essenciais que formam a sua característica moral e a irão distinguir de outras, sendo perfeitamente possível a
aglutinação de diversas díades, grupos, organizações e comunidades em torno
de uma sociedade, e que passarão a ter um universo de valores essenciais comuns, traço marcante da sua cultura, formando uma sociedade única22.
Também é possível que em uma sociedade existam subgrupos e até
subgrupos antissociais, os quais não representam uma cultura à parte, mas
uma subcultura da cultura dominante23. A nosso pensar, tais subgrupos possuem ligações em regra momentâneas, formadas por interesses econômicos,
políticos, religiosos ou outros, mas não permeados por valores essenciais em
condição de formar uma nova sociedade distinta da dominante.
20
21
22
23
JOHNSON, Allan G. Dicionário de sociologia. Tradução Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. p. 59.
Id., p. 35.
CHARON, M. Joel. Sociologia. Tradução Laura Teixeira Motta. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 56.
JOHNSON, Allan G. Dicionário de sociologia. Tradução Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. p. 223.
30
Caso haja valores sociais essenciais diversamente opostos da sociedade
matriz, os subgrupos antissociais, ao tomarem o poder, tenderão a formar
uma nova sociedade, mas esta não é a regra constatada na historicidade do
homem.
Os subgrupos, em regra, embora reconheçam os valores essenciais da
sociedade com eles relacionada, haja vista fazerem parte da mesma estrutura geral social, acabam desenvolvendo valores próprios e de existência
normalmente efêmera, uma vez que não se trata de um grupo com tendências a formar uma nova civilização, mas apenas tentar a concretização dos
seus interesses particulares na sociedade já existente24.
Um exemplo que pode melhor esclarecer o acima exposto é o de um
movimento político que congrega vários indivíduos em torno de um interesse
comum, baseado em uma ordem política e filosófica. Tal grupo, normalmente,
não quer mudar ou extinguir os valores sociais essenciais da sociedade, mas
apenas alcançar os seus interesses particulares. Visa, como regra, à modificação do poder e não propriamente da sociedade naquilo que ela possui de
essencial. Isso ocorreu na Guerra de Secessão norte-americana25 e até com
a nossa proclamação da República, a primeira visando à Independência dos
Estados do Sul da América do Norte, e a segunda, à ascensão dos republicanos e dos militares ao poder26.
Todavia, um movimento político de cunho revolucionário, normalmente,
defende a mudança radical de valores essenciais, a extinção de uma forma
de cultura e a criação de uma outra totalmente diversa, mais precisamente
uma nova sociedade, como ocorreu com a revolução francesa27, com a revo-
JOHNSON, Allan G. Dicionário de sociologia. Tradução Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Zahar, 1997, p. 223.
A Guerra de Secessão é uma das denominações da guerra civil dos Estados Unidos, travada de 1861 a
1865 entre o governo federal e 11 estados do sul do país, que afirmavam seu direito de se separarem da
União. Também chamada guerra entre estados, teve motivação econômica, política e doutrinária que se
centralizou no conflito pela manutenção ou abolição da escravatura. A tentativa de secessão dos estados
de Carolina do Sul, Mississippi, Flórida, Alabama, Geórgia, Louisiana, Texas, Virgínia, Arkansas, Tennessee
e Carolina do Norte e a deflagração das hostilidades armadas marcaram a culminância de décadas de crescentes fricções entre os estados e o governo federal sobre comércio e tarifas, escravidão e a doutrina dos
direitos dos estados (In: NOVA Enciclopédia Barsa Eletrônica. Enciclopédia Britânica do Brasil Produções
Ltda., c. 1999. CD-ROM 1.).
26
LINHARES, Maria Yedda (Org.). História geral do Brasil. 9. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 1990. p. 267.
27
A chamada revolução francesa representou uma série de acontecimentos ocorridos entre 05 de maio de
1789 e 09 de novembro de 1799, que alteraram o panorama político e social da França, com repercussões
para o mundo inteiro. A revolução francesa aboliu a servidão e os direitos feudais, proclamou os princípios
universais da liberdade, igualdade e fraternidade, bem como permitiu a ascensão da burguesia ao poder
(com base em ARIÈS, Philippe; DUBY, Georges (org.). História da vida privada. São Paulo: Schwarcz, 2009.
p. 78 e ss.).
24
25
31
lução russa bolchevista28 e com a revolução chinesa29, a primeira do século
XVIII e as outras duas do século XX.
Allan G. Johnson esclarece que uma revolução é a mudança social que
altera aspectos básicos de uma sociedade ou outro sistema social, bem como
do sistema político, motivo pelo qual elas são muito raras e difíceis de serem
mantidas pela própria reação das forças de legitimação do status quo.30
Um estudo histórico e social permite estabelecer uma relação direta
entre o sucesso ou não de um movimento político revolucionário, na busca
de alterar os valores essenciais do grupo social estável e anterior, com a sua
capacidade de difundir os seus valores sociais essenciais, o que nem sempre é conseguido pela força e dificilmente se mantém através dela, como
ocorreu na Alemanha Nacional Socialista31, na Rússia Comunista, na China
Comunista32 e no Camboja Comunista33.
Nos exemplos citados, os subgrupos dominaram a sociedade anterior e
impuseram reformas radicais, afetando a religião, a política, a economia, a
educação, as ciências, as artes, os direitos, as garantias individuais e outros,
perseguindo, matando e destruindo tudo aquilo que entendiam perigoso
para os valores que queriam impor aos demais e à nova sociedade almejada.
A revolução russa, como a revolução francesa, teve como ideal inicial a derrubada da autocracia do poder
imperial, mas de um movimento liberal de cunho republicano liderado pelos Mencheviques, passou, em
um segundo momento, para um movimento radical que mudou a própria estrutura da sociedade russa, os
seus valores e a sua cultura, pela ação dos Bolcheviques liderados pelo revolucionário Vladimir Lênin (In:
NOVA Enciclopédia Barsa Eletrônica. Enciclopédia Britânica do Brasil Produções Ltda., c. 1999. CD-ROM 1.).
29
A revolução chinesa também pode ser dividida em dois períodos. O primeiro com o final da dinastia Manchu,
em 1911, com a proclamação da República através da revolução nacionalista e o segundo momento com
a ascensão ao poder dos comunistas liderados por Mao Tse-Tung em 1949, com uma profunda modificação
social e perseguição sistemática a todos os intelectuais que tivessem ideias diversas (In. NOVA Enciclopédia
Barsa Eletrônica. Enciclopédia Britânica do Brasil Produções Ltda., c. 1999. CD-ROM 1.).
30
JOHNSON, Allan G. Dicionário de sociologia.Tradução Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. p. 199.
31
Após a ascensão do Partido Nacional Socialista na Alemanha, mais precisamente no ano de 1933, estudantes ligados ao partido, entre maio e junho do mesmo ano, promoveram a queima de livros que fossem
considerados contrários aos dogmas do partido. Foram sacrificadas obras de filósofos, poetas e de diversos
escritores.
32
A Revolução Cultural foi um movimento lançado na China, em 1966 por Mao Zedong, para combater o
surgimento de classes e categorias privilegiadas e revitalizar o espírito da revolução chinesa. Realizada
basicamente pela Guarda Vermelha, paralisou o progresso material e tecnológico do país. Seus princípios
inspiraram a constituição de 1975. A sua base estava no chamado “livro vermelho”, uma coletânea de
pensamentos de Mao Tse-Tung (In: NOVA Enciclopédia Barsa Eletrônica. Enciclopédia Britânica do Brasil
Produções Ltda., c. 1999. CD-ROM 1.).
33
Após o triunfo da revolução de 1975, o regime do Khmer Vermelho, de tendência maoísta, tratou de mudar
de um só golpe toda a estrutura econômica e social do país. Phnom Penh foi evacuada e desmantelaram-se
as instituições administrativas e educativas. Calcula-se em dois milhões o número total de mortos no período, devido a privações ou a execuções. Milhares de intelectuais, professores e pessoas com educação
formal foram executados (In: NOVA Enciclopédia Barsa Eletrônica. Enciclopédia Britânica do Brasil Produções Ltda., c. 1999. CD-ROM 1.).
28
32
Um exemplo do que está sendo apresentado, verifica-se em uma citação do líder chinês Mao Tsé-Tung, quando das Intervenções nos colóquios de
Ienam sobre literatura e arte em maio de 1942:
[O nosso objetivo] é garantir que a literatura e a arte se integrem como parte componente no conjunto da máquina da
revolução, que funcionem como uma arma poderosa para unir e
educar o povo, para atacar e destruir o inimigo, e que ajudem
o povo a combater o inimigo com um mesmo sentimento e uma
mesma vontade.34
Porém, não foi decorrente de um processo histórico de modificação de
valores essenciais, mas tendo a força como regra de submissão.
Inclusive, quando utilizada a educação sobre os mais jovens, como ocorrido na Alemanha com a juventude hitlerista35, para a imposição dos novos
valores sociais essenciais, o fizeram de uma forma radical e forçada, desrespeitando a inteligência das pessoas, os seus sentimentos e os seus costumes,
redundando em um sucesso parcial e sem o condão do fim perseguido.
Bastou o poder decorrente da força diminuir ou ser sobrepujado, para
muitos dos valores sociais essenciais combatidos voltassem a dominar36, haja
vista serem os verdadeiros valores daquelas sociedades, como se verificou
na Alemanha Ocidental após o final da Segunda Guerra Mundial e hoje com
a Alemanha unificada.
Já com a revolução francesa, as modificações dos valores sociais essenciais e da própria característica da sociedade francesa, embora tivessem o
apogeu em uma revolução, seguida pela dominação do terror, as mudanças
sociais se mantiveram porque foram frutos de um processo de decadência do
próprio sistema feudal e da ascensão da burguesia37, passando por um período
TSÉ-TUNG, Mao. O livro vermelho. São Paulo: Martin Claret, 2002. p. 210.
Juventude hitlerista foi um movimento juvenil do Partido Nacional Socialista Alemão, fundado em 1926.
A sua finalidade era a educação das futuras gerações dentro da ideologia nazista e no espírito militarista
incentivado à época (In: NOVA Enciclopédia Barsa Eletrônica. Enciclopédia Britânica do Brasil Produções
Ltda., c. 1999. CD-ROM 1.).
36
JOHNSON, Allan G. Dicionário de sociologia. Tradução Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. p. 199.
37
A Revolução Francesa, caracterizada pela queda da Bastilha, no dia 14 de julho de 1789, marca o início do
movimento revolucionário pelo qual a burguesia francesa, consciente de seu papel preponderante na vida
econômica, tirou do poder a aristocracia e a monarquia absolutista. O novo modelo de sociedade e de estado criado pelos revolucionários franceses influenciou grande parte do mundo e, por isso, a revolução francesa constitui um importante marco histórico da transição do mundo para a idade contemporânea e para
a sociedade capitalista baseada na economia de mercado. A sublevação política que teve início em 1789 e
34
35
33
de terror, império, até chegar a uma república, ou seja, houve uma evolução
social e histórica, ao contrário da Revolução Russa que passou de um período
aristocrático para um período comunista sem uma evolução histórica e social
adequadas no tocante à modificação de valores sociais essenciais38.
A Rússia e depois a própria União das Repúblicas Socialistas Soviéticas,
segundo nosso entendimento, passaram da opressão da aristocracia para a
opressão do partido comunista, mudando apenas os sujeitos do poder, com
pouca participação efetiva do povo com as diversidades ideológicas, levando
ao colapso do comunismo implantado pela crise econômica39.
se prolongou até 1815, a revolução francesa, baseada em princípios liberais, democráticos e nacionalistas,
foi a primeira das revoluções modernas. Por suas consequências e pela influência que exerceu na evolução
dos países mais adiantados da Europa, é considerada a mais importante do ciclo de revoluções burguesas da
história. A independência dos Estados Unidos e a revolução industrial iniciada na Grã-Bretanha são outras
duas grandes transformações que marcaram a transição da idade moderna para a idade contemporânea (In:
NOVA Enciclopédia Barsa Eletrônica. Enciclopédia Britânica do Brasil Produções Ltda., c. 1999. CD-ROM 1.).
38
A Revolução Russa marcou o fim de um dos últimos impérios de monarquias hereditárias e absolutistas do
mundo. Com ela, o socialismo ascendeu pela primeira vez ao poder e a ideologia comunista passou a exercer profunda influência no cenário internacional e mesmo na vida interna de todas as nações. A Revolução
Russa é a designação que se dá ao processo que, em dois momentos no mesmo ano de 1917, derrubou o
governo imperial da Rússia e instalou o comunismo no poder. O primeiro momento deu-se com a revolução
de fevereiro, que promoveu a queda do czarismo e a instalação de um governo da burguesia, democrático e
liberal; o segundo, com a revolução de outubro, marcou o momento da tomada do poder pelos bolcheviques
marxistas, início da história de um novo país que se chamou União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
(URSS). Pelo calendário gregoriano, usado na maioria dos países, inclusive no Brasil, esses movimentos
ocorreram em março e novembro de 1917, mas tornaram-se datas históricas segundo o calendário juliano,
que conta as datas com atraso de 13 dias em relação ao gregoriano e vigorou na Rússia até fevereiro de
1918. Ao longo da segunda metade do século XIX, a Rússia viveu uma crise profunda em consequência de
fatores que exerciam influências recíprocas e divergentes sobre todos os setores da vida social e política
do país. Vigorava no império um sistema político de monarquia autocrática que se chocava com o modelo
econômico de capitalismo moderno, em que as relações de produção entrelaçavam-se com as do tipo
feudal. Havia insustentáveis desigualdades econômicas e sociais entre a poderosa e privilegiada classe de
nobres proprietários de terras e uma imensa população de camponeses, grande massa de maioria analfabeta que até 1861 viveu em regime de servidão. A burguesia, numerosa e influente, estava insatisfeita com
as dificuldades para exercer suas atividades comerciais e industriais, e o crescente operariado, formado
geralmente de camponeses expulsos do campo por falta de condições de sobrevivência, estava submetido
a condições de vida e trabalho extremamente duras e que não mais existiam nos países europeus industrializados. Apenas os nobres, com seus imensos privilégios, estavam satisfeitos com a situação do país (In:
NOVA Enciclopédia Barsa Eletrônica. Enciclopédia Britânica do Brasil Produções Ltda., c. 1999. CD-ROM 1.).
39
A União Soviética herdou o império russo dos czares. Depois da revolução de 1917, criaram-se quatro repúblicas que, em 30 de dezembro de 1922, constituíram a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas com
capital em Moscou: Rússia, Ucrânia, Bielorrússia e Transcaucásia. Outras repúblicas foram incorporadas nos
anos seguintes: Turcomenistão e Usbequistão em 1924, Tadjiquistão em 1929 e Casaquistão e Quirguistão
em 1936. No mesmo ano, a Transcaucásia foi abolida e seu território dividido em três novas repúblicas:
Armênia, Azerbaijão e Geórgia. Depois de 1940, estabeleceram-se as de Moldávia, Estônia, Letônia e Lituânia, formando um total de 15 repúblicas unidas. Além dessas, até 1990 a União Soviética congregava vinte
repúblicas autônomas, oito províncias autônomas, dez distritos autônomos, seis regiões e 114 províncias.
Sob a constituição de 1936, o fundamento político da URSS eram os Sovietes (Conselhos) de Deputados do
Povo. Esses conselhos existiam em todos os níveis da hierarquia administrativa, com a União Soviética sob
34
Logo, normas, em especial as jurídicas, não fundadas em valores sociais
essenciais reconhecidos por uma organização social a que elas se destinem,
terão a tendência de não serem respeitadas espontaneamente e precisarão
ser afirmadas pela coerção para o seu cumprimento, decorrendo disso a
invalidade efetiva, bem como não resistirão ao um longo espaço de tempo
sem alterações.
No mesmo sentido Eric Hobsbawm:
[...] Quando a lei carece de legitimidade e o respeito a ela depende sobretudo do medo de ser apanhado e punido, é muito
mais difícil mantê-la vigente, além de ser mais caro.40
Apresenta-se oportuno mencionar o fato de a interação entre organizações sociais diferentes, em regra, acabar fazendo prevalecer os valores sociais essenciais da organização social principal, por força da maior
quantidade de membros ou da cultura mais desenvolvida e em condições de
influenciar. Um indivíduo apenas, mesmo com uma cultura superior, dificilmente poderá influenciar uma outra organização social com vários membros
a ponto de transformá-la radicalmente.
A questão envolvendo a superioridade de uma cultura é sempre polêmica, porque esbarra no perigo de preconceitos e no pensamento de prevalência racial, social e outros.
Afastado qualquer postulado de superioridade entre seres humanos e
o preconceito decorrente disso, acreditamos que a diferença entre duas ou
o controle nominal do Soviete Supremo instalado em Moscou. O órgão tinha duas câmaras - o Soviete da
União, com 750 membros eleitos por todo o eleitorado, e o Soviete das Nacionalidades, com 750 representantes das diversas divisões políticas: 32 de cada república da união, 11 de cada república autônoma, cinco
de cada província autônoma e um de cada distrito autônomo. Nas eleições para os sovietes, praticamente
só havia candidatos do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) que, até a emenda constitucional de
março de 1990, era a “força guia e líder da sociedade soviética e o núcleo de seu sistema político”. Em
teoria, toda legislação deveria ser aprovada por ambas as câmaras do Soviete Supremo; na prática, as decisões eram tomadas pelo pequeno grupo do comitê permanente, o Presidium do Soviete Supremo, dominado
pelo Bureau Político (Politburo) do PCUS, e aprovadas pelos deputados. Os sovietes das repúblicas e das
demais divisões administrativas limitavam-se a aprovar e executar as decisões tomadas pelo Soviete Supremo da URSS. O sistema político, autoritário e centralizado como o sistema econômico, fundamentava-se na
“propriedade socialista dos meios de produção, troca e distribuição”. A economia nacional era controlada
por planos quinquenais, que estabeleciam objetivos globais e setoriais para todas as formas de produção.
Todo esse arcabouço econômico e institucional desapareceu em dezembro de 1991, com o colapso da União
Soviética como realidade geopolítica (In: NOVA Enciclopédia Barsa Eletrônica. Enciclopédia Britânica do
Brasil Produções Ltda., c. 1999. CD-ROM 1.).
40
HOBSBAWM, Eric. Globalização, democracia e terrorismo. Tradução José Viegas. São Paulo: Schwarcz,
2011. p. 144.
35
mais culturas diversas está na capacidade de cada uma delas solucionar os
problemas naturais da vida em sociedade, do meio ambiente, da comunicação e da transmissão de conhecimentos, bem como de influenciar as demais,
sendo que neste último aspecto a quantidade de membros de um grupo
social é importante.
Em regra, a constatação empírica mostra que um indivíduo sozinho,
mesmo vindo de uma sociedade mais evoluída tecnicamente, não possui
condições de influenciar decisivamente a outra sociedade menos evoluída a
ponto de torná-la semelhante à sua, sem que haja um fator de aumento da
sua importância perante a outra sociedade.
A tendência será o indivíduo se adaptar à organização social dominante
e não desta se adaptar a ele. Normalmente, a cultura do indivíduo isolado
não exercerá influência suficiente para modificar os valores sociais essenciais da organização social dominante, como ocorreu, por exemplo, com os
europeus náufragos encontrados vivendo com os nativos no início da nossa
colonização, entre eles cita-se o caso mais famoso de Diogo Álvares Correia,
o chamado “Caramuru” (1475? - 1557), que viveu entre os Tupinambás e
casou-se com a índia Paraguaçu, inserindo-se na cultura nativa, tratado no
poema Caramuru de Frei José de Santa Rita Durão41.
Ao ser resgatado o português Diogo Álvares Corrêa, não foi encontrada
a cultura Tupinambá alterada substancialmente pela sua presença, a ponto
de existir uma nova organização social diversa da anterior, mas um europeu
vivendo como nativo e assumindo os valores daquela organização social,
pela tendência de socialização do homem como meio de sobrevivência em
comunidade.
[...] XLIV
Dizendo assim com ânsia fervorosa,
Prostrada abraça a Imagem veneranda:
Beija, aperta-a, e de gosto lagrimosa
Mil saudosos ais ao Céu lhe manda:
Aqui vos venho achar, Mãe Piedosa,
No meio (disse) desta Gente infanda!
Infanda, como eu fui, se o vosso lume
Não me emendara o bárbaro costume.42
41
42
DURÃO, Santa Rita. Caramuru. São Paulo: Martin Claret, 2003.
DURÃO, Santa Rita. Caramuru. São Paulo: Martin Claret, 2003.
36
Portanto, verifica-se que os valores sociais essenciais de uma organização
social podem ser transmitidos e até influenciar outras organizações sociais,
com a modificação dos seus valores, podendo criar novas organizações sociais
ou não, dependendo do quanto e de quais valores sociais foram alterados.
A modificação baseada na força, sem apoio na educação e nos fatos históricos, se mostra ineficiente com o tempo por não ser natural no processo
de evolução de uma sociedade.
Em um mundo afetado pela comunicação internacional em tempo quase real, com a consequente liquefação das barreiras entre um homem e
outro no planeta, o intercâmbio econômico e cultural permite às pessoas
criticarem a sua condição de vida em sociedade.
Uma mulher que tenha acesso à Rede Mundial de Computadores, conhecida pela palavra internet, em um país do Oriente Médio, com uma cultura social mais ortodoxa em relação à sua participação nas decisões em
sociedade, pode ver e criticar a sua condição e com isto buscar modificações
na sua participação social.
Outro exemplo de como a globalização afeta a vida em sociedade em
todo o planeta ocorre no Irã, país islâmico que, após passar por uma revolução fundamentalista islâmica no ano de 1979, retrocedeu a uma cultura
anterior de submissão da mulher, com a limitação de direitos e de garantias,
além de submissão a sanções severas como a morte por apedrejamento43.
A mulher, no Irã, bem como na maioria dos países árabes, não possui a
mesma importância social dos homens nas decisões da vida em sociedade, o
que é um contrassenso, uma vez que a Convenção das Nações Unidas sobre
a Eliminação de Todas as Discriminações em Relação às Mulheres, conhecida
pela sigla CEDAW, foi assinada por todos os Estados árabes após a Conferência
de Pequim em 1995, entre eles o Irã, embora alguns com restrições à legislação árabe ditada pela chamada “Sharia”, em especial a Arábia Saudita44.
Porém, em face da necessidade crescente de internacionalização das
economias e com isto os países árabes se relacionarem com outros países,
em especial o Irã, está ocorrendo uma paulatina modificação dos valores da
sua atual cultura religiosa islâmica extremista, em especial, no tocante às
mulheres, que estão passando por um processo gradual de valorização social.
Além do Irã, a partir da segunda quinzena no mês de janeiro de 2011,
ocorreram revoltas populares em diversos países do Norte da África e do
OCKRENT, Christine; TREINER, Sandrine (Org.). O livro negro da condição das mulheres. Tradução Nícia
Bonatti. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011. p. 122-137.
44
Id., p. 296.
43
37
Oriente Médio, processo batizado como “Primavera Árabe” pela imprensa internacional45, em especial, na Tunísia, Egito, Líbia, Iêmen, Jordânia e Síria46.
As mencionadas revoltas, embora seja cedo para se definir qual será o
rumo final delas no tocante aos valores sociais essenciais restantes das mencionadas sociedades, ao contrário do que ocorreu no Irã, não tiveram o seu
início com base fundamentalista islâmica, mas, sim, na ideia de humanismo
e de dignidade da pessoa humana com toda a amplitude que isto significa,
o que repercutirá nas normas que decorrerão dos novos princípios adotados
após a estabilização dos mencionados países.
Indiscutivelmente, o fenômeno da globalização permitiu a percepção
social interna, nos mencionados países, de que existem outras alternativas
de vida em sociedade que não aquelas tradicionalmente impostas com pouca ou nenhuma participação da população nos destinos do próprio país.
Inclusive, outro efeito da progressiva internacionalização das sociedades
é a universalização de princípios47, que serão a base real para um futuro Direito Internacional, aproximando-se de um ideal de uma norma hipotética fundamental48 que será a base do ordenamento jurídico internacional do futuro.
As sociedades dos diversos países do século XXI estão cada vez mais
próximas, sofrendo e exercendo influências dentro de um processo de desenvolvimento de suas culturas, sendo perfeitamente possível, em um futuro muito distante, que haja uma sociedade internacional com valores sociais
essenciais únicos e, em decorrência disto, com um ordenamento jurídico
único e universal.
O termo possivelmente tenha sido utilizado como uma alusão à chamada “Primavera de Praga”, uma reação
nacionalista da Tchecoslováquia em face da influência russa em 1968 e que terminou com a sua invasão
pelas tropas do pacto de Varsóvia (In: NOVA Enciclopédia Barsa Eletrônica. Enciclopédia Britânica do Brasil
Produções Ltda., c. 1999. CD-ROM 1.).
46
PRIMAVERA árabe. Jornal o Estado de São Paulo. São Paulo, 18 out. 2012. Disponível em: <http://blogs.
estadão.com.br/radar-global/assista-assange-entrevista-moncef-marzouki-ex-exilado-e-atual-presidenteda-tunisia/. Acesso em: 18 out. 2012.
47
[...] Note-se que os instrumentos internacionais de direitos humanos são claramente universalistas, uma
vez que buscam assegurar a proteção universal dos direitos e liberdades fundamentais. Daí a adoção de
expressões como “todas as pessoas” ( ex.: “todas as pessoas têm direito à vida e à liberdade” – art. 2° da
Declaração), “ninguém” (ex.: “ninguém poderá ser submetido a tortura – art. 5° da Declaração), dentre outras. Em face disso, ainda que a prerrogativa de exercer a própria cultura seja um direito fundamental (inclusive previsto na Declaração Universal), nenhuma concessão é feita às “peculiaridades culturais” quando
houver risco de violação a direitos humanos fundamentais. Isto é, para os universalistas o fundamento dos
direitos humanos é a dignidade humana, como valor intrínseco à própria condição humana. Nesse sentido,
qualquer afronta ao chamado “mínimo ético irredutível” que comprometa a dignidade da pessoa humana,
ainda que em nome da cultura, importará em violação a direitos humanos. (PIOVESAN, Flávia. Direitos
humanos e o direito constitucional internacional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 144).
48
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
p. 221.
45
38
A respeito do assunto discutido, Ulrich Beck observa:
[...] Se a experiência de uma sociedade mundial é um traço distintivo essencial da sociedade multicultural não é uma criança
imaginária, mas uma realidade global. Não se pode escolhê-la
ou recusá-la; ela não conduz automaticamente à tolerância e
nem também ao extermínio da xenofobia. Se as ambivalências
da sociedade mundial irrompem de forma conflitiva em locais
determinados, este não é um sinal do fracasso dos “experimentos da sociedade multicultural”, mas possivelmente o sinal do
início de uma nova época social, na qual formas de vida transnacionais e transculturais pertencerão à normalidade.49
Segundo a nossa percepção, em face do que está sendo investigado
no presente trabalho, a base para a futura existência de uma sociedade
internacional não está na norma escrita (codificação única), já iniciada com
tratados e convenções, até porque é a última etapa de sua formação, mas
na existência de princípios comuns decorrentes de padrões sociais semelhantes, processo iniciado com o chamado princípio da dignidade da pessoa
humana e facilitado pela rapidez e eficiência na comunicação decorrente da
Rede Mundial de Computadores, conhecida também como internet.
1.3 Os princípios como limite do poder do Estado
Apresentada a formação dos princípios, a sua relação com o homem
em sociedade, mostra-se necessário estabelecer a ideia de Estado, fruto
da formação, da organização e do desenvolvimento da sociedade e como os
princípios fornecem limites éticos para o exercício do poder.
O Estado é a organização política e jurídica de uma sociedade, representando um invólucro que permite a sua organização e a sua manutenção,
sendo ele meio e não fim50.
Logo, não se pode fazer uma associação direta da Carta Constitucional como base organizacional do Estado e dos valores essenciais adotados
à ideia de um Estado Forte, o que empobreceria o próprio significado de
Constituição, que é a base para a formação e desenvolvimento de um Estado
e não este um pressuposto para a sua existência.
49
50
BECK, Ulrich. O que é globalização. São Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 161.
BONAVIDES, Paulo. Teoria do estado. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 31-69.
39
A Constituição como Carta Fundamental se liga à visão de sociedade e
aos princípios desta, sendo o Estado fruto da sociedade e dos seus princípios,
os quais representam limites para o seu poder.
As colocações acima ganham especial importância e se confirmam
quando se analisam Estados Totalitários de base filosófica ou religiosa fundamentalista51 ao longo da história, que passaram a negar valores essenciais
das sociedades que eles deveriam servir, bem como a dizer quais deveriam
ser estes valores, tornando o Estado o fim e não o meio de organização e
desenvolvimento de uma sociedade.
O Estado, em especial o Democrático de Direito, existe para organizar
a vida e as relações do ser humano em sociedade, harmonizando direitos e
deveres, sem nunca deixar de valorizar a sociedade e, em última análise, o
homem.
O Estado pode ser manipulado contra os interesses da sociedade, permitindo com isto a sua utilização para a criação de normas escritas que
sejam adversas aos princípios reconhecidos pela sua Carta Fundamental,
ou através da própria manipulação do texto constitucional com o acréscimo
de dispositivos que são formalmente constitucionais, mas que representam
severas violações ao sistema jurídico, retomando a celeuma se direito e
moral podem ser desvinculados na existência de um sistema jurídico, como
se razão e sentimentos pudessem ser totalmente divorciados na vida de um
ser humano52.
A questão é de suma importância. Caso a “pirâmide legal de Kelsen”53
– a estratificação do direito em camadas, tendo a constituição federal no
seu ápice e o restante do ordenamento jurídico nas demais camadas abaixo
– seja absoluta, ela não permite discutir a própria norma fundamental, que
a maioria dos países prevê como sendo uma constituição escrita. Isso leva ao
grande risco de desvios de poder por parte do Estado, motivo pelo qual os
princípios permitem a orientação do fim social buscado na criação e aplicação da norma escrita, em especial no Direito Processual Penal.
O fundamentalismo é um movimento religioso que enfatiza a verdade absoluta de aspectos essenciais – ou
“fundamentais” – da fé, em especial os radicados em textos sagrados como a Bíblia cristã ou o Corão islâmico. Os fundamentalistas cristãos, por exemplo, acreditam que a Biblía é a palavra de Deus, cujos relatos
– como o fato de Jonas ter sido engolido por uma baleia ou a separação das águas do mar Vermelho – são
literalmente verdadeiros, e não metáforas ou alegorias. O fundamentalismo é sociologicamente importante
não só por causa de seu lugar excepcional entre as religiões, mas porque se estende com facilidade pelo
reino político. No Oriente Médio (no Irã, por exemplo) e nos Estados Unidos, o fundamentalismo religioso
desempenha um papel considerável em movimentos políticos conservadores e nacionalistas (In: JOHNSON,
Allan G. Dicionário de sociologia. Tradução Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. p.114).
52
FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 356-359.
53
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
51
40
A própria disseminação da ideia de Democracia sem a preocupação com
a formação e o respeito a princípios universais, usando-se um padrão filosófico divorciado de sociedade e de historicidade, bem como baseado na força,
por melhor que possam ser os seus argumentos e intenções, pode ser fonte
de Injustiça, quando desrespeitados os valores sociais de um povo, além de
gerar conflitos e a destruição de um país, como ocorreu com a invasão e o
domínio do Iraque pelos Estados Unidos da América no ano de 2003.
Infelizmente, o imperialismo político e econômico do passado, quando
as ações dos Estados mais poderosos sobre os mais fracos eram unilaterais,
divorciadas de princípios básicos, universais e até naturais como o respeito
pela vida humana, ou ainda decorrentes da evolução da vida do homem dentro da sociedade internacional em formação, como é o caso da dignidade da
pessoa humana, apenas muda de nome para se chamar Democracia.
Todavia, não é o nome a característica de um sistema político, mas o
respeito aos valores intrínsecos a ele.
Nesse sentido, aponta Eric Hobsbawm:
Estamos atualmente engajados no que pretende ser um reordenamento planejado do mundo, protagonizado pelos países
poderosos. As guerras do Iraque e do Afeganistão são apenas
uma parte de um esforço supostamente universal de criação
de uma nova ordem mundial por meio da “disseminação de democracia”. Essa ideia não é apenas quixotesca: é perigosa. A
retórica que envolve essa cruzada implica que tal sistema é
aplicável de forma padronizada (ocidental), que pode ter êxito
em todos os lugares, que pode remediar os dilemas transnacionais do presente e que pode trazer a paz, em vez de semear a
desordem. Não é verdade.54
Segundo nosso entendimento, os princípios funcionam como elementos
limitadores dos poderes do Estado, a nível interno e externo, existindo antes
da Carta Constitucional ou similar e do próprio Estado, nascendo de padrões
sociais decorrentes da experiência e das opções reiteradas historicamente
por uma sociedade ou pelo conjunto delas em decorrência da universalização da comunicação.
54
HOBSBAWM, Eric. Globalização, democracia e terrorismo. Tradução José Viegas. São Paulo: Schwarcz,
2011. p. 116.
41
São de suma importância em um momento contemporâneo de crises,
com a liquefação de fronteiras e de estruturas55, em face do desenvolvimento tecnológico do homem que alcança e é alcançado em todos os rincões
do planeta, independentemente da vontade e do grau tecnológico das sociedades, bem como os princípios representam a ética de fazer os Estados
servirem às sociedades e não apenas aos governantes que estejam no poder.
A interrelação da vida do homem no planeta é real a ponto do meio
ambiente e da própria sustentabilidade da vida poderem ser comprometidos
pela ação isolada de um país, sendo esta a razão pela qual precisa existir
adequação entre o comportamento do Estado e os valores sociais essenciais
nacionais da sua sociedade e os internacionais da sociedade internacional
em formação.
O desrespeito aos princípios, no âmbito interno dos países, permitirá
a discussão da constitucionalidade da norma onde for adotado um sistema
baseado em uma Carta Constitucional de base principiológica.
Já o desrespeito aos princípios internacionais poderá redundar em uma
reação internacional, dentro da ideia de universalização da proteção dos
direitos humanos56, iniciando com o isolamento do país, para em casos extremos acabar com uma intervenção armada determinada pela Organização
das Nações Unidas. Intervenções da Organização das Nações Unidas em países como a Somália, a Etiópia e o Haiti, como também na antiga Iugoslávia
e outros, na proteção da dignidade da pessoa humana, são justificadas com
base na violação de princípio internacional e são plenamente aceitas pelos
demais Estados componentes da mencionada organização, mesmo diante do
uso da força.
O mesmo se diga das intervenções em países com capacidade nuclear
que resolvam utilizar sua tecnologia com risco para o planeta, com medidas
iniciais de restrições econômicas e de isolamento, para até chegar ao extremo de intervenção militar, razão pela qual a ação de um Estado não pode
estar acima de sua sociedade e do próprio interesse da sociedade internacional em formação.
Os princípios, no panorama mundial atual das diversas sociedades submetidas a Estados, segundo nosso entendimento, representam a base do
futuro da vida social do ser humano no planeta.
55
56
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. p. 7-22.
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 7. ed. São Paulo: Saraiva,
2006. p. 144-149.
42
Inclusive, defendemos a necessidade de uma evolução para uma soberania compartilhada entre os diversos Estados, a qual não se confunde com a
disseminação da democracia57 a qualquer preço. A soberania compartilhada
está dentro de uma ideia de um Funcionalismo de Estados, em que os princípios internacionais sejam os reais parâmetros supraculturais da formação de
normas jurídicas e de respeito do homem pelo próprio homem.
A ação de fiscalização internacional ao cumprimento dos princípios internacionais e aos universais naturais de todos os homens deve ser realizada
supletivamente pela Organização das Nações Unidas, órgão internacional de
suma importância no futuro do homem no planeta.
Já, internamente aos Estados, através de Poderes livres e independentes, destacando-se o Poder Judiciário onde haja a sua independência e uma
Carta Constitucional, haja vista ser ele, em regra, o guardião natural da
carta fundamental de um Estado.
Uma tentativa de limitar o poder do Estado, no Brasil, através da norma escrita, foi o estabelecimento do que se convencionou chamar de cláusulas pétreas no artigo 60, § 4º, da Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988, que representam vedações absolutas contra a modificação
do texto constitucional.
Todavia, tal segurança, no Brasil ou em outros países que possam ter
adotado dispositivos semelhantes, não se mostra absoluta dentro de uma divisão tripartite dos Poderes do Estado, quando há o risco de controle político
através da indicação de membros que irão compor os Tribunais Superiores
e acordos econômicos e de interesses entre o Poder Executivo e o Poder
Legislativo, razão pela qual a segurança do sistema jurídico não pode estar
apenas nas normas escritas, mas também nos princípios que poderão ser invocados pelos diversos órgãos do Poder Judiciário, dentro do controle difuso
de constitucionalidade das normas quando existente.
Inclusive, a existência de supraprincípios internacionais permite a fiscalização internacional supletiva sobre a atuação dos Estados no âmbito
interno e externo, independentemente do mero direito positivado.
Em face do acima discutido, percebe-se nos princípios uma função
orientadora dos Estados no ato de gestão, de uso do poder, de legislar e de
aplicar a lei, permitindo legitimidade social e validade efetiva da norma.
57
HOBSBAWM, Eric. Globalização, democracia e terrorismo. Tradução José Viegas. São Paulo: Schwarcz, 2011.
p. 116.
43
1.4 Princípios como balizadores éticos da criação e aplicação da norma
jurídica
Conforme foi mencionado nos itens anteriores, os princípios são frutos
da existência humana em grupo, são anteriores às leis e ao próprio Estado,
formando uma base moral de informação e de orientação da vida em sociedade e seus desdobramentos.
Nesse ponto, oportuno a distinção entre princípios e regras apresentada por Robert Alexy, a qual será abaixo transcrita, embora entendemos
que as próprias regras precisam ser baseadas em princípios na busca de sua
legitimidade social, conforme será apresentado durante o desenvolvimento
do presente capítulo.
[...] A base do argumento dos princípios é constituída pela distinção entre regras e princípios. Regras são normas que, em
caso de realização do ato, prescrevem uma consequência jurídica definitiva, ou seja, em caso de satisfação de determinados
pressupostos, ordenam, proíbem ou permitem algo de forma
definitiva. Por isso, podem ser designados de forma simplificada como “mandamentos definitivos”. Sua forma característica
de aplicação é a subsunção. Por outro lado, os princípios são
mandamentos de otimização. Como tais, são normas que ordenam que algo seja realizado em máxima medida relativamente
às possibilidades reais e jurídicas. Isso significa que elas podem
ser realizadas em diversos graus e que a medida exigida de sua
realização depende não somente das possibilidades reais, mas
também das possibilidades jurídicas. As possibilidades jurídicas de realização de um princípio são determinadas não só por
regras, como também, essencialmente, por princípios opostos.
Isso implica que os princípios sejam suscetíveis e carentes de
ponderação. A ponderação é a forma característica da aplicação dos princípios.58
Apresentada a distinção entre regras e princípios, em que as normas
jurídicas representam as regras, somada à visão tridimensional do direito,
baseada em Miguel Reale, norma jurídica com legitimidade social é fruto
de fatos sociais valorados. Esse complexo de valores envolve uma realidade
58
ALEXY, Robert. Conceito e validade do direito. Tradução Gercélia Batista de Oliveira Mendes. São Paulo:
Martins Fontes, 2009. p. 85.
44
social e histórica de uma organização social, a partir de uma valoração, ou
seja, para Miguel Reale, “o direito é uma integração normativa de fatos segundo valores” (perspectiva tridimensional59). Ao passo que dentro de uma
perspectiva baseada em Kelsen, norma é fruto do poder do Estado60.
Entendemos que a norma escrita pode ter como fonte não só fatos
sociais valorados, como também o próprio poder do Estado, ou seja, não
se vê incompatibilidade nas duas visões acima apresentadas no tocante ao
nascimento de uma norma jurídica escrita.
Porém, mesmo a norma escrita e criada apenas pela expressão do poder do Estado, sem a sua relação com um fato social valorado, somente
será legítima do ponto de vista social quando a sua aplicação obedecer aos
valores sociais essenciais, os quais denominamos princípios.
O Direito, em especial o baseado em normas escritas criadas e aplicadas como mera produção do intelecto e do poder do Estado, acaba por
empobrecer o seu conteúdo, uma vez que abstrai dele a sua ética e retira a
própria identidade com a sociedade para qual ele se destina, comprometendo a validade social efetiva da norma escrita.
As normas jurídicas que compõem o Direito possuem relação com a ética, não encontrando suas razões de existir e de se desenvolver, bem como
de serem aplicadas em si mesmas, sendo os princípios a expressão da ética
social balizadora da criação e ainda mais da aplicação das normas jurídicas,
tornando-as socialmente legítimas.
As normas do Direito Penal e do Direito Processual Penal deixam bem
clara a necessidade da interdisciplinaridade e da relação com a ética, uma
vez que os tipos penais, em regra, são criados a partir de fatos que comprometem a vida harmônica em sociedade, ou seja, de fatos que foram valorados negativamente ao serem confrontados com os valores da sociedade. O
Processo Penal, ainda mais que o Direito Penal, é a expressão direta da ética
social ao representar a ideia de justiça e de julgamento justo conforme o
padrão da sociedade.
A valoração social é estabelecida através de um processo histórico social de desenvolvimento da organização social, do seu pensamento e de
como enxerga e valora as condutas dos seus membros, decorrendo disso a
ideia de legitimidade social da norma e a sua própria validade efetiva em
sociedade.
59
60
REALE, Miguel. Teoria tridimensional do direito. São Paulo: Saraiva, 2010.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
p. 67-68.
45
O Direito, na sua formação e interpretação, poderá ter normas jurídicas legítimas ou não, dentro de uma perspectiva social, conforme sua
adequação aos princípios da sociedade, decorrendo disto a maior ou menor
efetividade prática de uma norma escrita, o que chamamos de validade
social efetiva. Anota-se que, embora a eficácia jurídica decorra da lei, a
sua legitimidade social e a consequente validade social efetiva decorrem da
adequação da norma aos valores da organização social. Também, segundo
entendemos, a própria constitucionalidade de uma norma jurídica, em um
país que adota uma constituição com base em princípios, está vinculada à
obediência aos princípios no ato da criação de normas jurídicas.
A existência de maior ou menor necessidade de ser usada a força para
o acatamento de uma norma escrita está ligada ao quanto do valor social
essencial está agregado à norma, representando isso a sua validade social
efetiva.
Neste sentido, verifica-se o pensamento de Eric Hobsbawm61.
Apresenta-se oportuno mencionar que a ideia desenvolvida no presente
trabalho de serem os princípios balizas para os Estados e para o Direito Positivado, aproxima o trabalho do chamado Direito Natural e o afasta do Positivismo, pelo menos daquele mais radical defendido por Noberto Bobbio62, embora não o negue na sua importância social como forma de estruturação das
organizações sociais mais complexas como é o caso das sociedades modernas.
Inclusive, dentro da visão de sistemas sociais, aproveitando-se as lições
de Niklas Luman, o Direito tem que ser visto como uma estrutura cujos limites e cujas formas de seleção são definidos pelo sistema social63, em que
obviamente interagem outros fatores como a ética social além da norma
escrita pura.
Um exemplo marcante da relação entre norma jurídica e ética social
dentro de um sistema social encontra-se nos valores sociais e legais de família, de casamento e de direitos sucessórios.
No passado, no Brasil, não se admitiam as relações amorosas de indivíduos do mesmo sexo, existindo um valor social essencial ligado a uma
moralidade religiosa que impunha a tais pessoas uma vida paralela oculta,
sempre sob o risco de sanções e até da exclusão social.
HOBSBAWM, Eric. Globalização, democracia e terrorismo. Tradução José Viegas. São Paulo: Schwarcz,
2011. p. 144.
62
BOBBIO, Noberto. O positivismo jurídico, lições de filosofia do direito. Tradução Márcio Pugliesi; Edson Bini
e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1999.
63
LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito I. Tradução Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983.
p. 170.
61
46
A demonstração do que foi afirmado pode ser verificada junto às Ordenações Filipinas do Reino de Portugal, texto legal com vigência no Brasil até
o advento do Código Criminal do Império de 1830 e do Código de Processo
Criminal do Império de 1832.
TÍTULO XIII
Dos que commetem peccado de sodomia, e com alimarias.
Toda a pessoa, de qualquer qualidade que seja, que peccado
de sodomia per qualquer maneira cometter, seja queimado, e
feito per fogo em pó, para que nunca de seu corpo e sepultura
possa haver memória e todos seus bens sejam confiscados para
a Corôa de nosso Reinos, postoque tenha descendentes; pelo
mesmo caso seus filhos e netos ficarão inhabiles e infames, assi
como os daquelles que commettem crime de Lesa Magestade.64
Porém, com a diminuição da influência religiosa, em especial após a
separação da Igreja do Estado ocorrida com a Constituição da República
Federativa do Brasil de 1891, equiparação de direitos entre homens e mulheres ao longo do século XX, o próprio efeito da globalização já no final do
mencionado século, mostrando outras sociedades que aceitavam tais manifestações, as relações homossexuais no Brasil se tornaram uma realidade
social explícita e, devido ao volume e às consequências práticas para a vida
em sociedade, não podem mais ser excluídas do ordenamento jurídico.
Inclusive, passou a representar um valor essencial o respeito à liberdade de opção de comportamento sexual de uma pessoa, com a proteção
criminal através dos crimes contra a intolerância.
Não se trata aqui de dizer se é boa ou má moralmente tal modificação,
mas o fato de ser uma realidade social que precisa ser abarcada pelo Direito
para a estabilização da sociedade e para a prevenção de conflitos que possam existir decorrentes de tais fatos sociais que passaram a ser valorados.
Conforme demonstrado, os princípios são uma das fontes do Direito e
também balizas na interpretação, aplicação e do limite das normas jurídicas
escritas ou consuetudinárias.
O Direito, enquanto conjunto de normas organizadas, não nasce naturalmente da mera união de pessoas e de uma vontade transcendental dentro de uma visão “jus naturalista extremada”. Nasce da necessidade de as
64
PIERANGELLI, José Henrique. Códigos penais do brasil, evolução histórica. Bauru: Jalovi, 1980. p. 26.
47
pessoas permanecerem unidas, ou seja, de conviverem, bem como da organização social desenvolver-se, respeitando os seus interesses comuns e limites, tanto individuais como coletivos, dentro de um complexo de valores.
Também pode ser fruto do poder do Estado, mas sempre precisa estar em
conformidade com os valores da sociedade, em especial os essenciais, para
existir legitimidade social.
Os valores sociais não se limitam a um bom senso social e de justiça
social, sendo mais amplo que isto, abarcando este e todo o conjunto de
avaliações decorrentes das experiências históricas e sociais vividas pela organização social e as soluções reiteradas aplicadas. A importância de um
valor social para a caracterização ética de uma organização social torna-o
um valor social essencial ou princípio.
Vale lembrar, que durante o período do poder do Nacional Socialismo
sobre a Alemanha, muitas normas jurídicas, particularmente no âmbito civil
e penal, foram editadas pelo poder do Estado que já tinha modificado o sistema jurídico alemão então vigente, mas que posteriormente foram declaradas nulas desde o início por tribunais que sucederam o Tribunal do Reich.
Caso seja correta a fórmula de orientação Kelseniana e base para o
positivismo radical mais precisamente: tudo e qualquer conteúdo pode ser
direito65, como se poderia questionar as mencionadas normas jurídicas e as
suas aplicações, uma vez que foram criadas conforme o ordenamento jurídico então vigente e aplicadas pelos órgãos competentes?
Outro ponto a ser considerado, dentro de uma visão racional e pura
do Direito como norma posta destituída de valoração moral na criação ou
aplicação66, é a impossibilidade lógica de serem questionadas normas formadas e aplicadas que atenderam aos requisitos legais materiais da época,
ficando vazia a acusação de que tais normas e sua aplicação foram contra a
humanidade, conceito que envolve uma avaliação ética, perdendo-se com
isto a própria razão de terem existido os Tribunais de Nuremberg67 e de
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
p. 221.
66
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
p. 67-68.
67
O chamado Tribunal Militar de Nuremberg foi criado e instalado na mencionada cidade alemã, após a
Segunda Guerra Mundial, para o julgamento dos atos contra a humanidade praticados pelos dirigentes do
nazismo, redundando na condenação à pena de morte de doze acusados, além de pena de prisão perpétua
e por determinado tempo de outros acusados. O mencionado Tribunal e o resultado do seu julgamento
são criticados na história como sendo um tribunal de exceção, ou seja, criado para julgar determinado
caso, além do que discutível o conceito de crimes contra a humanidade aplicável a fatos anteriores ao seu
surgimento (In: NOVA Enciclopédia Barsa Eletrônica. Enciclopédia Britânica do Brasil Produções Ltda., c.
1999. CD-ROM 1.).
65
48
Tóquio68, após o fim da Segunda Guerra Mundial, e a própria criação e funcionamento do atual Tribunal Penal Internacional, sendo que este último sequer
possui a crítica de ser um tribunal de exceção como foram os anteriores.
Exemplo emblemático do que se está afirmando quanto à vinculação
entre Direito e moral, sendo os princípios os elementos balizadores que permitem tal adequação e ainda crítica, foi apresentado por Robert Alexy69,
com relação à análise de um caso concreto pelo Tribunal Constitucional Federal da Alemanha de 1968, em face do § 2 do 11º Decreto da Lei de Cidadania do Reich, de 25 de novembro de 1941, envolvendo um advogado judeu
emigrado para a Holanda um pouco antes da Segunda Guerra Mundial:
O direito e a justiça não estão à disposição do legislador. A
ideia de que um legislador tudo pode ordenar a seu bel prazer significaria um retrocesso à mentalidade de um positivismo legal desprovido de valoração, há muito superado na ciência e na prática jurídicas. Foi justamente a época do regime
nacional socialista na Alemanha que ensinou que o legislador
também pode estabelecer a injustiça (BverfGE[Bundesverfassungsgericht, Tribunal Constitucional Federal] 3, 225 (232).
Por conseguinte, o Tribunal Constitucional Federal afirmou a
possibilidade de negar aos dispositivos jurídicos nacional socialistas sua validade como direito, uma vez que eles contrariam
os princípios fundamentais da justiça de maneira tão evidente
que o juiz que pretendesse aplicá-los ou reconhecer seus efeitos jurídicos estaria pronunciando a injustiça, e não o direito
(BverfGE 3, 58 (119); 6, 132 (198)).
O 11º Decreto infringia esses princípios fundamentais. Nele,
a contradição entre esse dispositivo e a justiça alcançou uma
medida tão insuportável que ele foi considerado nulo ab initio
(cf. BGH, RzW [Bundesgerichtshof, Rechtsprechung zur Wiedergutmachungsrecht, Decisões do Supremo Tribunal de Justiça
alemão sobre o direito de reparação], 1962, 563; BGHZ [EntsO chamado Tribunal Militar Internacional para o Extremo Oriente, conhecido como Tribunal de Tóquio,
também criado e instalado após a Segunda Guerra Mundial, mais precisamente na capital japonesa, julgou
os crimes praticados por dirigentes japoneses durante o conflito mundial, contra a paz, de guerra e ainda
contra a humanidade, tendo como principal condenado o ex-primeiro ministro do Japão e general Hideki
Tojo pelos crimes de guerra praticados. Apresenta-se oportuno mencionar que a China, por conta própria,
julgou dezenas de pessoas envolvidas com as atrocidades praticadas na região conhecida como Manchúria,
sendo que o imperador japonês nunca foi processado ou acusado por qualquer violação de direitos e de
garantias pelas tropas japonesas, uma vez que ele representava para os japoneses uma imagem divina.
69
ALEXY, Robert. Conceito e validade do direito. Tradução Gercélia Batista de Oliveira Mendes. São Paulo:
Martins Fontes, 2009. p. 7.
68
49
cheidungen des Bundesgerichtshofes in Zivilsachen, Decisões
em matéria cível do Supremo Tribunal de Justiça alemão] 9,
34 (44); 10, 340 (342); 16, 350 (354); 26, 91 (93). Esse decreto
tampouco se tornou eficaz por ter sido aplicado durante alguns
anos ou porque algumas das pessoas atingidas pela desnaturalização declararam, em seu tempo, estarem resignadas ou de
acordo com as medidas nacional socialistas. Pois, uma vez estabelecida, uma injustiça que infrinja abertamente os princípios
constituintes do direito não se torna direito por ser aplicada
e observada.
A questão do que vem a ser o Direito a partir de uma análise meramente racional, destituída de valoração social, representando o valor social a
adequação do material com o moral pelo elemento balizador do sistema que
são os princípios, geraria uma perplexidade por parte de quem estuda o caso
acima, uma vez que se diz que a desnaturalização do judeu na Alemanha
nazista é legal e gera todos os seus efeitos no período de 1941 até 1945 e
depois não é sequer legal em 1968.
Uma coisa não pode ter alterada a sua essência apenas porque mudou o
interesse do observador. Norma jurídica é norma enquanto criada de acordo
com o processo legal, previsto em um sistema jurídico da época da sua criação, sendo a sua constitucionalidade outra questão.
Embora a questão envolvendo o julgamento posterior da desnaturalização de um judeu pelo nazismo tenha se prendido à própria discussão entre
lei e justiça, ela está na célebre polêmica entre Direito e moral, entendendo
esta última como adequação aos valores essenciais do povo alemão.
Talvez uma explicação jurídica mais adequada e com base no momento atual de internacionalização das relações sociais seria a declaração da
inconstitucionalidade do decreto de desnaturalização por ser contrário aos
princípios imanentes no sistema jurídico alemão, antes, durante e depois do
nazismo, por exemplo, o da isonomia e o da dignidade da pessoa humana, já
afirmados na Constituição Alemã de Weimar de 191970.
A própria intervenção internacional na Alemanha, após o final da Segunda Guerra Mundial, criando o Tribunal de Nuremberg para julgar crimes
de guerra que violaram o valor internacional da dignidade da pessoa humana, demonstra que o desrespeito ao valor essencial interno leva à inconsti70
A Constituição de Weimar reforçou, ampliou e esclareceu as bases democráticas já previstas na Constituição Mexicana de 1917, que influenciaram as Constituições do século XX, bem como a própria Carta de
Direitos da Organização das Nações Unidas.
50
tucionalidade de uma norma em países que adotam constituições com base
em princípios, como é o caso do Brasil.
Já a violação de valores essenciais internacionais, embora possa não
contrariar a ordem constitucional de um país, fere o equilíbrio internacional, legitimando, em tese, a intervenção na soberania de um país, como
ocorreu com a Alemanha nazista e o Japão imperialista, e mais recentemente na Líbia no ano de 2011, com a justificação da proteção da humanidade.
A questão envolvendo a intervenção internacional na soberania de um
país representa um dos assuntos mais polêmicos na política internacional da
Organização das Nações Unidas, precisando ser avaliado com o olhar crítico
de equilíbrio entre os países mais poderosos e os mais fracos, para que a
finalidade da Organização das Nações Unidas e a pretensão de um futuro
ordenamento jurídico internacional não tenham o mesmo fim da Liga das
Nações formada após a Primeira Guerra Mundial, que acabou em descrédito.
O valor social essencial influenciador do nascimento, interpretação e
aplicação da norma jurídica, que se reveste como elemento balizador do
sistema permitindo a coexistência entre direito e moral, poderá ter como
base uma religião, servindo como exemplos legislações como os Vedas71 e o
Código de Manu72 para os hinduístas, a Torá e o Talmude para o povo israelita, o Velho e o Novo Testamento para os cristãos, o Corão e a Suna para
os mulçumanos, como também outros livros religiosos para outras culturas.
Oportuna uma breve explicação sobre os preceitos religiosos que embasam as três principais religiões do planeta, repercutindo em padrões sociais
Os Vedas representam quatro textos, escritos em sânscrito, por volta de 1500 a.C. que formam a base do
extenso sistema de escrituras sagradas do hinduísmo, e representam a mais antiga literatura de qualquer
língua indo-europeia. A palavra Veda, em sânscrito, significa conhecer. As bases dos Vedas são os Mantras
que representam hinos, orações e fórmulas rituais diversas, sendo que os hinos e as orações são endereçados a diversas entidades (deuses), caracterizando um politeísmo religioso de grande influência na sociedade indiana, mormente após a ascensão da classe dos brâmanes, determinando uma sociedade dividida por
castas com direitos e deveres diferentes (In: NOVA Enciclopédia Barsa Eletrônica. Enciclopédia Britânica do
Brasil Produções Ltda., c. 1999. CD-ROM 1; CÓDIGO de Hamurabi: Código de Manu, excertos: (livros oitavo
e nono): Lei das XII tábuas. Supervisão editorial Jair Lot Vieira. Bauru: Edipro, 1994.
72
O Código de Manu foi adotado na Índia por volta de 1.000 A.C. Apresenta-se oportuno mencionar que a
sociedade indiana hinduísta, principal núcleo populacional da Índia, é tradicionalmente dividida em castas
que não admitem mudanças e que foram criadas conforme a determinação do deus Brahma. A principal
casta é a dos brâmanes, formada pelos principais membros da sociedade, como médicos, nobres e líderes
espirituais. A segunda casta é a dos ksatrivas (xátrias), constituída pelos guerreiros. A terceira casta é a
dos vaisyas (vaixás), formada pelos comerciantes. Finalmente a última casta e a mais baixa é a dos sudras,
representada pelas pessoas que trabalham em serviços braçais e para outras castas (In: NOVA Enciclopédia
Barsa Eletrônica: Enciclopédia Britânica do Brasil Produções Ltda., c. 1999. CD-ROM 1; CÓDIGO de Hamurabi: Código de Manu, excertos: (livros oitavo e nono): Lei das XII tábuas. Supervisão editorial Jair Lot
Vieira. Bauru: Edipro, 1994.
71
51
diferentes nas organizações sociais com influência religiosa, alguns em conflito com princípios internacionais.
A Torá73 é um conjunto de cinco livros do Velho Testamento narrativos
da criação do mundo e da própria história do povo hebreu, sendo fonte inesgotável de valores a serem observados pela sociedade israelita. O Talmude74
é uma coleção de leis, tradições e costumes aplicados ao povo judeu.
A Torá e o Talmude, bem como a sua subdivisão Mishná e o Guemará
ainda hoje, em pleno século XXI, mesmo após a existência do Estado de Israel e a modernidade que determinou a codificação de leis no âmbito civil e
criminal naquele Estado, continuam sendo o conjunto de valores essenciais
por trás das normas e da própria vida da população de Israel, princípios que
foram passados de geração para geração, formando a base do que se convencionou chamar de Direito Mosaico.
Valores essenciais semelhantes pela natureza religiosa formam a base
do direito nos países islâmicos conhecido como Sharia.
O Corão75 é a fonte mais importante da Sharia76, sendo a segunda a
Suna (narrativa da vida e dos caminhos do profeta Maomé). Não é possível o
Islã sem os dois textos e sua aplicação na vida religiosa e social dos mulçumanos, gerando verdadeira união de religião e de sociedade.
Derivados da Suna, vêm os ahadith, mais precisamente as narrações do
profeta.
Um hadith77 (singular de ahadith) é uma narração acerca da vida do
profeta ou o que ele aprovava.
O ijma78, o consenso da comunidade, também foi aceito como uma
fonte menor da Sharia.
In: NOVA Enciclopédia Barsa Eletrônica. Enciclopédia Britânica do Brasil Produções Ltda., c. 1999. CD-ROM.
O Talmude é dividido em duas partes, mais precisamente o Michmá e o Guemará. O Michmá é o compêndio
das leis orais redigidas pelo rabi Judá Há-Nassi, o Santo, por ocasião da fundação da chamada Academia de
Tibíriades (ano 459 da Era Judaica). Subdivide-se em seis partes, quais sejam: Zehaim, que trata do cultivo
das sementes e plantas e das regras para o pagamento dos dízimos e primícias; Môed, referente às festas e
tempos; Nachin, dedicado às mulheres, dissertando sobre esponsais, matrimônio e divórcio; Nizikim, sobre
contratos mercantis e outros fatos, danos e prejuízos; Dodaskim, das coisas santificadas e serviços do templo; Teharot, das coisas limpas e imundas. Já o Guemará ou Suplemento do rabi Joachanan é o comentário
de todos os assuntos do Michná. Soma-se ao Talmude de Jerusalém, o da Babilônia, redigido no ano de 504
da Era Judaica, por Ascheh e Rabina, terminado pelo rabi Jehosueh (In: NOVA Enciclopédia Barsa Eletrônica.
Enciclopédia Britânica do Brasil Produções Ltda., c. 1999. CD-ROM 1.).
75
In: NOVA Enciclopédia Barsa Eletrônica: Enciclopédia Britânica do Brasil Produções Ltda., c. 1999. CD-ROM.
76
JOMIER, Jacques. Islamismo, história e doutrina. Tradução Luiz João Baraúna. Petrópolis: Vozes, 2001. p. 86.
77
Id., p. 89.
78
Id.
73
74
52
Qiyas79, o raciocínio por analogia, foi usado pelos estudiosos da lei e
da religião islâmica (Mujtahidun) para lidar com situações em que as fontes
sagradas não providenciam regras concretas.
Algumas práticas incluídas na sharia têm também algumas raízes nos
costumes locais de cada comunidade (Al-Urf)80.
Tal influência também existe nos países de orientação cristã, uma vez
que a Bíblia81, em especial o Novo Testamento, também dita valores essenciais
que são princípios que caracterizam tais sociedades, por exemplo, o princípio
da isonomia que decorre do valor essencial do amor ao próximo82 e da aceitação dos diferentes como iguais83, estabelecidos no Novo Testamento.
Todavia, no caso das sociedades de orientação religiosa não fundamentalista, os valores essenciais não são apenas de origem religiosa e decorrem
de outras fontes, em face da influência de origem filosófica, histórico-social
e da própria internacionalização de costumes e das informações.
Os valores religiosos decorrentes de livros tidos como sagrados para
as sociedades não se confundem com o fundamentalismo que significa uma
forma radical de interpretação dos textos e dos preceitos religiosos, muitas
vezes impostos por um grupo para o restante da sociedade e que, em regra,
não se sustenta no tempo, em especial diante do fenômeno da globalização,
como já foi mencionado anteriormente.
Um exemplo moderno da transitoriedade do fundamentalismo está ocorrendo na sociedade do Irã onde, após a revolução fundamentalista islâmica
comandada pelo Aiatolá Khomeine84, sofre com críticas internas e externas,
Id.
Id.
81
A Bíblia representa um conjunto de livros escritos por diversas pessoas ao longo de centenas de anos que
são considerados de inspiração divina. As diversas correntes do cristianismo divergem quanto ao número de
livros considerados sagrados. Os livros representam uma fonte histórica e são a base comportamental ética
dos que se consideram cristãos, em especial o chamado Novo Testamento. O Novo Testamento compreende
a segunda parte da Bíblia e foi escrito após a morte de Jesus, representando uma radical mudança nos
valores com relação à primeira parte da Bíblia conhecida como Velho Testamento.
82
“Os fariseus, tendo sabido que ele tinha feito calar a boca aos Saduceus, reuniram-se; e um deles que era
doutor da lei, veio lhe fazer esta pergunta para o tentar: Mestre, qual é o maior mandamento da lei? Jesus
lhe respondeu: Amareis o Senhor vosso Deus de todo o vosso coração, de toda a vossa alma, e de todo o
vosso espírito; é o primeiro e o maior mandamento. E eis o segundo que é semelhante àquele: Amareis
o vosso próximo como a vós mesmos. Toda a lei e os profetas estão contidos nestes dois mandamentos”.
(Bíblia Sagrada. Mateus, 22 - 34 a 40).
83
“Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: amais os vossos
inimigos e orai pelos que vos perseguem; para que vos torneis filhos do vosso Pai celeste, porque ele faz nascer o seu sol sobre maus e bons e vir chuvas sobre justos e injustos...” (Bíblia Sagrada. Mateus, 5 – 43 a 48).
84
Ruhollah Mousavi Khomeini foi o líder da Revolução Fundamentalista Islâmica de 1979 que depôs o Xá
Mohammad Reza Pahlevi, lançando o Irã em um processo de radicalização de cunho religioso, modificando
79
80
53
gerando conflitos que estão sendo solucionados através da força, elemento
de manutenção de poder historicamente ineficiente e insuficiente no tempo.
O mesmo se diga de Cuba, embora o radicalismo imposto à sociedade
cubana seja de ordem filosófica e não religiosa, sofre um processo de reversão dos valores ideológicos da revolução comunista, existindo um caminho,
mesmo que lento e resistido, para uma sociedade de natureza diversa.
Será uma questão de tempo, segundo nosso entendimento, a observação do retorno a valores sociais reais das sociedades iraniana e cubana.
Talvez venham a existir sociedades diversas das anteriores e posteriores às revoluções, e depois delas, em face dos valores essenciais que estão
imanentes e de outros que foram modificados e adotados em um processo
natural de historicidade, mas não serão as atuais sociedades.
Os exemplos mencionados demonstram valores sociais essenciais que
representam princípios de origem religiosa e filosófica, mas também podem
advir de fatos puramente sociais e cotidianos desde que valorados e em condições de impor comportamentos que caracterizem uma organização social.
O estudo da evolução histórica dos valores sociais essenciais de uma
sociedade permite o entendimento da modificação da própria sociedade no
tempo.
As alterações dos valores essenciais são especialmente sentidas no âmbito do Direito Penal e do Direito Processual Penal do Brasil, deixando de
existir o crime de sodomia e mais recentemente de adultério. Também, a
própria questão da prova, mais precisamente a forma da sua obtenção e
valoração.
Passou-se de um período de obtenção de provas através da tortura,
para um momento de distinção entre provas lícitas e ilícitas, o que é uma
mostra significativa de como os valores sociais essenciais da sociedade foram
alterados.
Embora seja indiscutível a importância do Direito Civil na vida em sociedade é através da negação do “dever ser”, o que gera a necessidade do
Direito Penal e do meio da sua realização que é o Direito Processual Penal,
que se pode observar nitidamente os princípios de uma organização social,
sendo esta a razão pela qual a observação do chamado “Direito Principiológico” é mais facilmente constatada no estudo de tais ramos do direito.
valores e punindo com severidade todos que não se submetiam as alterações. Atualmente, o regime fundamentalista está sendo discutido internamente e a sociedade iraniana está clamando por mudanças que
estão sendo retardadas pelo uso da força (In: NOVA Enciclopédia Barsa Eletrônica. Enciclopédia Britânica
do Brasil Produções Ltda., c. 1999. CD-ROM 1.).
54
1.5 A Constituição e os princípios
A constituição é uma carta de organização de um Estado e, ao longo do
tempo, na maior parte dos países, passou a ter uma função cada vez mais
importante na vida em sociedade por incorporar princípios anteriores ao
Direito e a ela própria.
José Joaquim Gomes Canotilho, citando Dietmar Willoweite, apresenta
a definição de Constituição em um sentido histórico:
Constituição, em um sentido histórico, é um conjunto de regras
(escritas ou consuetudinárias), e de estruturas institucionais
conformadoras de uma dada ordem jurídico-política em um determinado sistema político e social.85
O mesmo autor José Joaquim Gomes Canotilho apresenta uma definição própria de Constituição, complementando a definição anterior:
Por constituição moderna entende-se a ordenação sistemática
e racional da comunidade política através de um documento
escrito no qual se declaram as liberdades e os direitos e se
fixam os limites do poder político.86
Apresentado o que se pode entender por uma Constituição, a questão
de fundo que surge e essencial no desenvolvimento do estudo dos princípios
está na existência ou não de um limite para o chamado Poder Constituinte
ao criar uma Constituição.
O Poder Constituinte é sempre uma expressão de poder, de força e de
autoridade política para desfazer uma Carta Fundamental existente ou elaborar uma onde não existia nenhuma.
Indiscutivelmente, criar ou desfazer uma Carta Fundamental é uma
expressão de grande poder, mormente quando se considera que em seu bojo
está toda a estrutura política e administrativa de um Estado, os seus limites,
os direitos e as garantias básicas do povo que vive sob a égide do mencionado Estado.
Dietmar Willoweit, citado por GOMES CANOTILHO, J.J. Direito constitucional e teoria da constituição. 7.
ed. Coimbra: Almedina, p. 53.
86
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2000. p. 52.
85
55
Todavia, o Poder Constituinte, de um ponto de vista de legitimidade
social, não é ilimitado e não é uma pura expressão de força extrajurídica,
mas a exteriorização de princípios de uma sociedade que encontram a sua
base em valores que foram sendo construídos e afirmados durante anos, ou
ainda, como expressão dos valores de uma revolução que tenha alterado os
valores essenciais do regime anterior e da própria sociedade.
Embora o Poder Constituinte Originário seja supralegal, entendemos
não ser ele supraprincípiológico.
Defendemos o postulado de não existir norma jurídica legítima, do ponto de vista de encontrar respaldo na vontade popular, mesmo que constitucional, que não esteja vinculada aos princípios da organização social a que
ela se destina, ou seja, o Poder Constituinte não é divorciado dos valores
sociais essenciais, motivo pelo qual uma Constituição carrega os valores sociais essenciais de forma expressa e imanente no seu texto, dando a estes
valores essenciais uma expressão normativa e impositiva.
Uma prova do que foi acima exposto é a ausência de uma Constituição
que possa abarcar, com efetividade e legitimidade do ponto de vista social,
diversos Estados-Membros que conservem diferenças de valores sociais essenciais sem qualquer afinidade entre eles.
Tal Constituição, independente da força criadora do poder constituinte,
será fadada ao insucesso do ponto de vista de estabelecer uma Magna Carta
para todos os Estados-Membros. Anota-se o fato de que a chamada Constituição Europeia de integração dos Estados-Membros do Mercado Comum Europeu não representa um exemplo típico de Constituição nos termos acima
colocados, mas a substituição de diversos tratados e do estabelecimento de
regras comuns sem comprometer a autonomia de cada um dos Estados que
conservam suas estruturas políticas e administrativas, bem como continuam
a possuir leis próprias e valores essenciais distintos.
Apresenta-se oportuno mencionar que os valores sociais essenciais não
nascem com uma Constituição, uma vez que a antecedem e a sustentam,
sendo esta a razão pela qual, no Brasil, a passagem da Constituição da República Federativa do Brasil de 1967, com a Emenda de 1969, para a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, não obstante todas as
mudanças operadas no novo texto constitucional, ainda assim, o Sistema Jurídico e a própria sociedade continuaram tendo um funcionamento normal.
Inclusive, em razão dos princípios explicitados ou imanentes no novo
texto constitucional, foi possível estabelecer quais normas jurídicas infraconstitucionais foram recepcionadas ou não, sem a necessidade de o texto
constitucional tratar expressamente deste particular.
56
Além do que foi dito, em face dos princípios antecederem a Constituição, é possível falar-se em norma constitucional porque é prevista na Constituição, mas inconstitucional na sua essência por violar princípios supraconstitucionais e supralegais87, como também é possível solucionar o conflito
aparente de direitos e de garantias constitucionais através do princípio da
proporcionalidade, o qual será esclarecido mais à frente e em outro capítulo.
Embora possa parecer estranha a proposição acima, verifica-se sua pertinência quando se percebe que a segurança de um sistema jurídico não
pode estar apenas em uma carta legal escrita, que pode ser modificada por
um governante, conforme o seu interesse, desde que ele controle os demais
poderes do Estado. Observa-se que uma ditadura pode ser disfarçada com o
manto da constitucionalidade, mas jamais se sustentará em face dos valores
essenciais de uma sociedade local ou internacional que tenha a democracia
e a humanidade como parâmetros.
Celso Lafer adverte o fato de os direitos humanos, no passado, estarem
vinculados à solução de problemas de convivência coletiva interior a uma
comunidade política, razão pela qual o cerceamento dos direitos humanos
por força da lei não acarretava a perda de legalidade88.
Com o fenômeno da globalização, a ideia de direitos humanos e sua
afirmação através do princípio internacional da dignidade da pessoa humana
passaram a representar uma questão internacional, a qual passa a permitir
a própria discussão internacional da legalidade do seu cerceamento, ainda
que dentro de um Estado soberano.
Em razão disso, entendemos que será possível, em um futuro a um
médio prazo, que as Constituições passem a ser semelhantes no tocante a
muitos valores essenciais, como é o caso da dignidade da pessoa humana,
valor balizador da vida do homem no planeta, segundo a Organização das
Nações Unidas.
Talvez em um futuro de efetividade plena de um Direito Internacional,
em um momento bem mais distante em que os valores essenciais sejam
comuns aos diversos Estados ou muito próximos, decorrente do processo iniciado com a universalização das culturas pela integração dos diversos povos
através da comunicação, poderá existir uma Constituição Mundial.
Também, poderá existir um Direito Penal e um Direito Processual Penal
Internacionais, permitindo a efetiva segurança das sociedades e o controle
dos comportamentos de risco nacionais e internacionais.
BACHOF, Otto. Normas Constitucionais Inconstitucionais? Tradução e nota prévia de José Manuel M. Cardoso
da Costa. Coimbra: Almedina, 2001.
88
LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos. São Paulo: Schwarcz, 2006. p. 147.
87
57
Porém, no momento, o que existe de concreto é uma Declaração Universal dos Direitos Humanos por parte da Organização das Nações Unidas,
bem como tratados e convenções internacionais, os quais ainda não representam um ordenamento internacional, mas já evidenciam a construção de
uma sociedade internacional, mormente com o advento da globalização já
anteriormente comentada e melhor explicitada na sequência do presente
trabalho.
1.6 A formação da sociedade internacional e a necessidade de um
Direito Internacional baseado em princípios
Conforme foi comentado anteriormente, os princípios são fruto da organização social e antecedem a existência do ordenamento jurídico.
A internacionalização das comunicações e do comércio determinam as
integrações das diversas sociedades existentes no mundo e a formação progressiva de uma sociedade internacional.
Porém, essa evolução é lenta e resistida, o que compromete o desenvolvimento e a segurança dos países, uma vez que as infrações penais e os
infratores não estão preocupados com as fronteiras políticas e com a autonomia dos países.
A criminalidade moderna já é transnacional, enquanto as normas de
Direito Penal e de Direito Processual Penal são nacionais, dependendo de
tratados e de convenções para terem alguma expressão internacional.
Os Estados procuram manter sua autonomia, em especial com relação à
Organização das Nações Unidas, o que dificulta a existência efetiva de uma
legislação internacional, em especial no âmbito das Ciências Criminais.
O primeiro passo para um controle da criminalidade transnacional está
no estabelecimento de valores sociais comuns, buscando princípios comuns,
para se chegar à ideia de sociedade internacional e, aí sim, poder falar em
um Estado Internacional, seguido, finalmente, por um ordenamento jurídico
internacional, representado por leis internacionais positivadas e não apenas
por tratados e convenções, perspectiva possível a um longo prazo e em face
da chamada globalização.
Acreditamos que a intensificação da globalização nas últimas décadas
está representando o divisor de águas entre o passado e o futuro em termos
do desenvolvimento de uma legislação internacional a partir do fomento de
princípios universais e da necessidade decorrente do aumento do risco da
vida do homem no planeta.
58
Oportuno mencionar o fato de a globalização não ser um processo novo
da última quarta metade do século XX, mas vem ocorrendo ao longo da história, com o desenvolvimento do comércio e da interligação dos povos, mesmo que de forma mais lenta do que o experimentado nas últimas décadas.
As caravanas na rota da seda e de outras especiarias levavam o homem
a terras longínquas das suas, permitindo a eles que conhecessem culturas
diversas, com valores distintos, podendo citar o caso dos Nabateus89 que em
Petra90, localizada na atual Jordânia, erigiram monumentos esculpidos na
pedra com características gregas e romanas, cerca de 300 anos a.C. muito
antes de serem dominados pelos gregos e depois pelos romanos.
A própria expansão do domínio grego com Alexandre, o Grande, e depois com a expansão dos romanos, foi uma fonte de troca cultural durante a
Antiguidade Clássica, em decorrência disso, de valores, bastando para isto
verificar que os romanos, embora dominadores, acabaram por adotar as divindades gregas com outros nomes91.
Posteriormente, a chamada Idade Moderna92, marcada pelo aperfeiçoamento dos meios de localização, com a descoberta da bússola, do astrolábio
e de outros instrumentos, lançou o homem ao mar, fomentando o contato
com outras culturas ainda mais diversas e distantes, trocando e agregando
conhecimentos.
Todavia, o processo da globalização somente foi sentido com uma rapidez maior nas últimas quatro décadas, em especial, a partir da abertura
da rede mundial de computadores para o uso civil93, difusão de um idioma
Povo de origem semita que habitava a Arábia, sul da atual Jordânia e Canaã com atuação comercial através
de caravanas e ancestral dos povos árabes (In: NOVA Enciclopédia Barsa Eletrônica. Enciclopédia Britânica
do Brasil Produções Ltda., c. 1999. CD-ROM 1.). (In: NOVA Enciclopédia Barsa Eletrônica. Enciclopédia Britânica do Brasil Produções Ltda., c. 1999, CD-ROM 1.).
90
Petra é uma cidade esculpida nas rochas em uma região que foi habitada pelos Endomitas desde 1200 a.C.
e depois pelos Nabateus que foram os responsáveis pelas construções na pedra com motivos de culturas
diversas visitadas por suas caravanas de especiarias, destacando-se a influência grega e romana (In: NOVA
Enciclopédia Barsa Eletrônica. Enciclopédia Britânica do Brasil Produções Ltda., c. 1999. CD-ROM 1.).
91
[...] São escassas as fontes que permitem reconstruir a vida da primitiva Roma, pequena cidade-estado
que se formou por volta do século VIII a.C. A descrição mais antiga é do historiador romano Marcos Terêncio
Varrão, do século I a.C., mas seu testemunho já mostra a grande influência da cultura grega, que motivou
a reinterpretação da tradição religiosa (In: NOVA Enciclopédia Barsa Eletrônica. Enciclopédia Britânica do
Brasil Produções Ltda., c. 1999. CD-ROM 1.).
92
Período de tempo de divisão da história ocidental que vai da queda de Constantinopla junto aos Turcos em
1453 até a Revolução Francesa de 1789 (In: NOVA Enciclopédia Barsa Eletrônica. Enciclopédia Britânica do
Brasil Produções Ltda., c. 1999. CD-ROM 1.).
93
A chamada internet nasceu nos anos 60 do século XX como arma de defesa dos EUA para manter as comunicações no caso de um conflito atômico. O protocolo internet e o protocolo de transmissão foram desenvolvidos em 1973 pelo norte-americano Viton Cerf, sendo que a World Wide Web foi desenvolvida em 1989
89
59
comum, aumento das relações sociais internacionais e desenvolvimento da
tecnologia da comunicação, permitindo o fluxo de informações quase em
tempo real entre pontos distantes do planeta Terra.
A modernidade atual é “leve”, “líquida”, “fluida” e infinitamente mais
dinâmica que a modernidade “sólida” que suplantou, como percebeu Zygmunt Bauman94.
A passagem de uma para a outra acarretou profundas mudanças em
todos os aspectos da vida humana, em especial nos perigos para a segurança
dos países.
A internacionalização decorrente da Rede Mundial de Computadores,
conhecida como internet, é uma realidade de comunicação, de troca cultural e de informações intensa entre os mais diversos países, gerando o aparecimento de situações novas como os contratos “on line”, vídeo conferências,
entre outras inovações.
Também permite a prática de crimes transnacionais, em relação aos
quais os sistemas legais e de justiça tradicionais são ineficazes, bastando
para isso imaginar que um ataque terrorista contra o sistema de fornecimento de energia elétrica de um país pode ser perpetrado a milhares de
quilômetros e sob a jurisdição de um outro país soberano, tornando muito
difícil a descoberta dos autores e sua responsabilização caso não exista uma
cooperação internacional e, acima de tudo, uma legislação global com uma
polícia internacional.
O mundo contemporâneo está, paulatinamente, abolindo fronteiras
através da comunicação, deixando de existir barreiras tradicionais, passando a existir uma simples interfase.
Os valores dos grupos sociais e das sociedades estão sendo atacados
e modificados com uma velocidade nunca antes imaginada, representando
com isto a alteração de princípios e comprometendo os ordenamentos jurídicos do ponto de vista de sua adequação aos valores sociais essenciais das
respectivas sociedades.
Apresenta-se oportuno mencionar que existem populações inteiras que
não possuem qualquer acesso à informática, muitas delas vivendo em locais
afastados do planeta e privadas do mínimo de dignidade esperada na vida
humana, isso não as torna imunes de sofrerem as influências da globalização,
pelo britânico Timothy Berners-Lee. A internet foi aberta para o uso civil por volta de 1992 e hoje é um dos
principais meios de comunicação (In: NOVA Enciclopédia Barsa Eletrônica. Enciclopédia Britânica do Brasil
Produções Ltda., c. 1999. CD-ROM 1.).
94
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução Plínio Dentzien.Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
60
diretamente quando acabam tendo contato com outras culturas informatizadas, ou indiretamente pelas consequências ambientais, sociais e políticas do
comportamento de comunidades informatizadas que repercutem no planeta.
A soberania deixou de ser expressa em poderes materiais de fazer a
guerra, celebrar a paz, emitir moedas e fazer leis, para representar o efetivo poder de influenciar e tentar controlar o processo da internacionalização
das organizações sociais.
O mundo atual necessita, como nunca, de uma organização internacional
que faça a mediação entre os diversos estados soberanos em todos os aspectos
da existência do homem e dos países, uma vez que, com o poder da comunicação e da tecnologia, também cresceu em muito o perigo da destruição.
O presente exige uma “Carta de Direitos e de Garantias Humanas Universais” com efetiva expressividade da realidade e não como uma mera
intenção de valores universais.
A tentativa de se criar um organismo internacional de mediação não é
nova, uma vez que a realidade da complexidade das relações entre os diversos países soberanos e os conflitos sangrentos que marcaram o século XX
redundaram no surgimento da Liga das Nações, logo após a Primeira Guerra
Mundial, e a Organização das Nações Unidas, após a Segunda Guerra Mundial, ambas na primeira metade do século XX.
Ao contrário da Liga das Nações, a Organização das Nações Unidas experimenta um sucesso maior em face do desenvolvimento do poder de destruição com o surgimento de armamentos atômicos.
O medo da destruição é a razão maior para a aceitação da Organização
das Nações Unidas pelos países signatários que precisam ter uma fonte de
intermediação permanente.
Porém, tal organismo ainda carece de uma efetiva autonomia, poder de
fazer valer as suas decisões e de independência econômica.
A Organização das Nações Unidas (ONU) foi fundada em 1945 após a
Segunda Guerra Mundial para substituir a ineficaz Liga das Nações, visando
prevenir novos conflitos e estabelecer uma plataforma permanente de diálogo entre os diversos países signatários, hoje quase todos os países soberanos
do mundo. Trata-se de uma organização internacional cujo objetivo declarado é facilitar a cooperação em matéria de direito internacional, segurança
internacional, desenvolvimento econômico, progresso social, direitos humanos e a realização da paz mundial.
Os esforços da Organização das Nações Unidas e os seus resultados, embora não sejam perfeitos, são expressivos, quando comparados com o que
61
existia no passado, sem falar na quantidade de conflitos que foram evitados
e de toda a ajuda humanitária prestada em todo o globo terrestre.
A Organização das Nações Unidas atua através de diversos órgãos,
destacando-se para o interesse da prevenção e da repressão das infrações
transnacionais a Interpol e o próprio Tribunal Penal Internacional, conhecido
como Tribunal de Roma por ter sido criado nesta cidade italiana.
A Interpol não é uma força policial internacional, mas um órgão de armazenamento e de troca de informações entre os diversos órgãos de polícia
do mundo, em decorrência da soberania resistida dos Estados.
Porém, a Interpol é o embrião de uma futura polícia internacional com
atribuição em todos os países, tendo em vista o fenômeno da expansão da
rede mundial de computadores, conhecida como internet, e dos crimes cibernéticos, em especial o terrorismo de origem fundamentalista religiosa.
O mesmo se diga do Tribunal Penal Internacional, instituído pelo Estatuto de Roma no ano de 2002, também conhecido com Tribunal de Roma,
com competência para o julgamento de infrações penais de repercussão
internacional, como os genocídios, os crimes de guerra e de agressão internacional, bem como outros que sejam definidos através de acordos internacionais. Todavia, vários Estados-Membros da Organização das Nações
Unidas não aceitam a sua jurisdição, entre eles o Estados Unidos da América,
embora seja uma questão de tempo, em face do crescimento do terrorismo
internacional, para o mencionado órgão ser aceito por todos os países signatários da Carta da Organização das Nações Unidas.
Um interesse legislativo internacional é uma realidade em determinadas infrações penais e terá a tendência de se expandir para outras, conforme se verifica no processo da intensificação da globalização, levando a
agregação de valores comuns aos diversos países.
Exemplo do que se espera no futuro dos Estados globalizados através
da Organização das Nações Unidas, dentro de uma intenção de integração
na proteção da humanidade, está na chamada Convenção das Nações Unidas
Contra o Crime Transnacional do ano de 2000, conhecida emblematicamente
como “Convenção de Palermo”, por ter três dos seus protocolos assinados
na mencionada cidade da ilha da Sicília, conhecida como berço da máfia
italiana. O Brasil adotou a “Convenção de Palermo” apenas no ano de 2004,
através do Decreto nº 5.015 de março de 2004, com força de lei ordinária.
É oportuno mencionar que o homem equivocou-se ao pensar que a Primeira Guerra Mundial e toda a sua carnificina fosse a última das grandes
guerras. Também, o ser humano se enganou ao acreditar que o final da
Guerra Fria representaria o fim das hostilidades internacionais e ainda mais
62
ao desconsiderar os crimes transnacionais como fonte de risco de destruição
mundial.
Infelizmente, a grande massa de pessoas, tecnologias e equipamentos
dispensados pelos países ao final da Guerra Fria passaram rapidamente a serem englobados por organizações criminosas envolvidas com o tráfico ilícito
de entorpecentes, armas, pessoas, pedras e metais preciosos, espionagem
industrial, bem como com a contrafação de produtos e moedas, entre outras
atividades ilícitas.
O inimigo da humanidade não possui uma bandeira ou um rosto, o que
torna ainda mais complexo o seu combate sem uma integração de todos os
países componentes da Organização das Nações Unidas e uma legislação
penal e processual penal comum.
A Terceira Guerra Mundial será travada através da informática e da
internet, entre países e grupos subversivos que tentarão desestabilizar governos e economias, pelos mais diversos interesses, gerando uma crise internacional que terminará com uma legislação penal e um processo penal
comum para coibir a ação de tais grupos, no que a chamada “Convenção de
Parlemo” é um embrião.
Oportuno mencionar que os conceitos doutrinários de direitos fundamentais de primeira, segunda e terceira gerações, substituídos pela ideia
mais abrangente de dimensão95, atualmente estão acrescidos com o conceito de direitos de quarta dimensão, que são os direitos internacionais decorrentes da globalização e do processo de aplicação de princípios universais
em contrapartida aos interesses meramente locais.
A nosso ver, a primeira semente para um Direito Internacional efetivo
começou com a consideração do homem e da sua dignidade, algo acima de
conceitos particulares e de interesses parciais, sendo um exemplo disso a reação internacional sobre os eventos contra a humanidade e a sua dignidade
em locais como Kosovo, Somália e Sudão.
O caminho foi iniciado e será uma questão de tempo até a existência de
um Direito Internacional efetivo acompanhando a evolução da tecnologia.
95
Os chamados direitos fundamentais de primeira dimensão possuem como objetivo a proteção do homem
perante o Estado e visam garantir as liberdades públicas. Os direitos fundamentais de segunda geração
estão ligados à proteção de direitos sociais, econômicos e culturais. Os direitos fundamentais de terceira
dimensão não estão mais ligados à individualidade do homem, mas à coletividade, sendo de natureza coletiva e difusa, como é o caso do meio ambiente. Já os chamados direitos de quarta geração estão alinhados
com a ideia da globalização e compreendem os direitos do homem internacionalmente, como o direito à
informação e à democracia (Cit. In: GOMES CANOTILHO, José Joaquim. Direito constitucional e teoria da
constituição. Coimbra: Almedina, 2003. p. 386).
63
O Direito Penal e o Direito Processual Penal, com certeza, por representarem também uma expressão direta do poder e da soberania dos Estados,
serão uma das últimas fronteiras legais a resistir à necessidade da adequação
à globalização, o que impõe aos governos que passem a pensar de forma globalizada em termos de um Direito Penal e um Direito Processual Penal Internacionais, a partir de valores universais e medidas coletivas, passo necessário
para uma proteção efetiva contra a ação nefasta de inimigos da humanidade.
O Direito Penal da era da globalização, enquanto não existe um efetivo
e universal Direito Internacional Público, precisa ser coletivo, enquanto o
Direito Processual Penal necessita ser mais flexível, mesmo no âmbito de
cada um dos Estados, algo no meio do caminho entre os direitos e as garantias individuais absolutas que engessam ações contra uma criminalidade
coletiva, com ação nacional e transnacional, e o chamado direito penal do
inimigo96, que estabelece um tratamento diferenciado entre o criminoso
comum, que mantém direitos e garantias no âmbito processual e o chamado
inimigo, que passa a ter a supressão de direitos e de garantias individuais
próprias de um estado democrático de direito.
O Direito Processual Penal proposto, com ações internas, é principiológico na sua formação e interpretação e se caracteriza pelo abrandamento
dos direitos e das garantias processuais individuais no âmbito do Processo
Penal em favor de interesses sociais coletivos, sem suprimi-las e sem criar a
figura diferenciada de um inimigo com direitos restritos ou sem eles.
Os princípios são elementos modeladores do sistema dando limites e
permitindo a conexão entre norma e moral social.
A criminalidade coletiva local e internacional se mostra muito efetiva
em tempos de globalização, contando com a ação retardada e inadequada
de um Direito Penal e de um Processual Penal tipicamente reativos e de ação
individualizada97, com uma proteção exacerbada do “eu” em detrimento do
“nós” social.
O crime organizado nacional ou internacional é de ação coletiva, razão
pela qual precisa ser combatido de forma coletiva, permitindo-se mandados
de busca e apreensão coletivos e medidas de eficácia coletiva, além de iniJAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito penal do inimigo, noções e críticas. Tradução André Luís
Callegari e Nereu José Goacomolli. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
97
O direito penal tradicional é tipicamente reativo, ou seja, aguarda a existência de uma infração penal mais
grave para gerar uma ação efetiva do Estado, o qual acaba por falhar ao deixar de prevenir a existência de
uma infração penal. O exemplo típico da ação reativa no direito penal brasileiro é o tratamento jurídico
do chamado crime de ameaça que é uma infração penal de menor potencial ofensivo, embora possa ser o
anúncio de um homicídio. Também, a regra é a previsão de infrações penais de conduta individual, sendo
as infrações penais coletivas e mesmo a coautoria, exceção no sistema jurídico penal brasileiro.
96
64
ciativas legais que modifiquem, em determinados casos, a inversão do ônus
da prova no Processo Penal.
Um exemplo da ação de um direito de eficácia coletiva contra o crime
coletivo foi a lei Racketeer Influenced and Corrupt Organizations, conhecida pela sigla RICO, dos Estados Unidos da América, verdadeira medida eficaz
contra o crime organizado porque permite uma responsabilização extensiva,
inversão do ônus da prova e a perda patrimonial98.
A globalização e a coletivização criminosa impõem o repensar do Direito Penal e do Direito Processual Penal que precisam ter uma interpretação
fundada em princípios que visem ao bem coletivo e não apenas ao interesse
individual, mantendo-se o equilíbrio entre os direitos e garantias individuais
e o bem comum de natureza coletiva.
Marco Antonio Marques da Silva adverte:
Assim, para tratar desta nova criminalidade, deve ser incorporado um conjunto de institutos que trabalhem com o risco,
diante da profunda diversidade, de forma a entender-se um
sistema como uma unidade. Para tanto, os caminhos proporcionados pela funcionalidade do direito penal, como ponto de
partida, não excluem que o sistema se torne um conjunto aberto, que seja integral do direito penal (gesamtes Strafrechssystem), no sentido de abranger princípios constitucionais, como
garantias indispensáveis à concretização da lei penal, as instituições processuais, a política criminal, como elemento determinante da fixação da pena e sua execução, além da análise da
responsabilidade penal, não mais individual, mas através da
imputação objetiva.99
Conforme se constatou no presente capítulo, os princípios nascem com a
união de homens em torno de uma organização social, mesmo que primitiva,
A chamada Lei de Combate a Organizações Corruptas e Influenciadas pelo Crime Organizado (no inglês,
Racketeer Influenced and Corrupt Organizations – RICO - Act), Título 18 do Código dos Estados Unidos,
artigos 1961 a 1968, entrou em vigor em 1970. A mencionada norma, em síntese, permite um tratamento
diferenciado para organizações criminosas, responsabilizando pessoas que tenham participação em crimes
característicos como de ação criminosa, mesmo que sem qualquer ação direta, com condenação a penas
privativas de liberdade e a perda de patrimônio não justificado, o qual pode ser interditado preventivamente.
99
SILVA, Marco Antonio Marques; José de Faria (Org). Direito penal especial, processo penal e direitos fundamentais.São Paulo: Quartier Latin, 2006. p. 403.
98
65
passando a ganhar maior importância com o aparecimento da sociedade,
tornando-se uma das fontes do Direito juntamente com a própria norma,
bem como balizam para a interpretação e aplicação do direito pelo Estado.
Os princípios são anteriores à Constituição da República Federativa
do Brasil de 1988, a qual passou a explicitar a maior parte deles, e estão ganhando universalidade com a crescente formação de uma sociedade
internacional, decorrente do momento de desenvolvimento tecnológico na
comunicação e nos problemas decorrentes disto, como é o caso dos crimes
transnacionais.
Também, verificou-se que já existe um princípio internacional que é o da
dignidade da pessoa humana, com repercussões sérias quando desrespeitado.
Formada a base sobre os princípios, no próximo capítulo será analisado o Direito Processual Penal Principiológico, partindo-se de uma evolução
histórica, passando pela noção de ciência para então desenvolver o tema.
66
67
2.O DIREITO PROCESSUAL PENAL PRINCIPIOLÓGICO
Após ser verificada a origem dos princípios, a sua função e a sua importância na história do homem, será desenvolvida uma breve evolução histórica do Direito Processual Penal em Portugal e no Brasil. Na sequência, será
discutida a natureza do Direito Processual Penal, para então estudarmos
o chamado Direito Processual Penal Principiológico e seu conteúdo, decorrente de uma percepção profissional e acadêmica de que há um excesso de
dependência em relação à norma processual escrita, muitas vezes ultrapassada com relação a princípios imanentes no texto constitucional e omissa
com relação aos casos concretos.
O Direito processual ou material destituído de princípios pode ser fonte
de injustiça, não obstante ser válido e eficaz perante o ordenamento.
Oportuna a lembrança do confronto entre o Direito e a Moral na obra
de Willian Shakespeare100, escrita possivelmente ao final do ano de 1500,
quando o personagem de nome Antônio é submetido ao Tribunal por outro
personagem de nome Shylock para a execução do título válido para os padrões da época, permitindo o direito de retirar uma libra de carne do corpo
do executado.
A solução jurídica, baseada exclusivamente no direito escrito e sem a
preocupação com a interpretação, esta impregnada de ética, representaria
a morte de Antônio.
A saída dada ao caso pelo escritor, mais precisamente a proibição de
retirar o sangue com a carne, uma vez que o compromisso não abrangia o
sangue junto com a carne, inviabilizando o próprio título executivo, foi principiológica para os padrões da época, demonstrando já a preocupação com
os princípios e a relação útil entre A Moral e o Direito.
[...] Pórcia
Prepara-te, pois, para cortar a carne; não derrames sangue e
não cortes nem mais, nem menos, do que uma libra de carne;
se tiras mais, ou menos, do que uma libra exata, mesmo que
não seja mais do que a quantidade suficiente para aumentar ou
diminuir o peso da vigésima parte de um simples escrópulo, ou,
100
SHAKESPEARE, Willian. O mercador de Veneza. Tradução F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros e Oscar
Mendes. São Paulo: Martin Claret, 2012.
68
então, se a balança se desequilibrar com o peso de um cabelo,
tu morrerás e todos os teus bens serão confiscados.101
O Direito Processual Penal Principiológico se amolda à necessidade de
um direito dinâmico, contemporâneo e humano.
Representa uma integração entre a norma escrita e os valores sociais
locais e internacionais, residindo nisso a sua legitimidade social local e
internacional.
Inclusive, conforme avança a formação de uma verdadeira sociedade
internacional com valores comuns, princípios supraculturais irão aparecer
para balizar a criação, aplicação e o limite do Direito Positivado e dos próprios Estados soberanos.
Este capítulo é fruto de um olhar para a vivência profissional e acadêmica, colhendo elementos para a percepção da importância dos princípios,
a ser compartilhada por outros profissionais operadores do direito.
2.1 A evolução histórica do Direito Processual Penal
O Direito Processual Penal não nasce como uma ciência autônoma e
surge como um apêndice do direito material, para depois ser considerado
uma ciência independente, motivo pelo qual as histórias dos dois ramos do
Direito se confundem inicialmente, sendo que ambos se relacionam com os
valores sociais de hoje e de cada época.
Como qualquer ramo do Direito e como o próprio Direito, o Direito
Processual Penal está baseado em valores essenciais de uma sociedade que
representam princípios genéricos e específicos, alguns de natureza universal a todas as sociedades, como é o caso da dignidade da pessoa humana,
mormente após o fenômeno da globalização e da necessidade de interdisciplinaridade das ciências, em especial as criminais, por força dos chamados
crimes transnacionais e das relações necessárias entre os diversos Estados.
A história do Direito Penal se confunde com a própria história do homem, nascendo e se desenvolvendo com a finalidade de organizar a vida em
sociedade, bem como com a intenção de limitar o poder do mais forte sobre
o mais fraco, em especial quando o mais forte exerce alguma espécie de
poder de comando sobre os demais.
101
SHAKESPEARE, Willian. O mercador de Veneza. Tradução F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros e Oscar
Mendes. São Paulo: Martin Claret, 2012. p. 97.
69
A evolução da história do Direito Penal, englobando no início o próprio Direito Processual Penal que era tratado como mero anexo, é a própria
evolução das organizações sociais, as quais sofreram influência do meio ambiente, da religião, da filosofia, das demais ciências e da própria tecnologia.
Resumidamente, o Direito Penal Primitivo pode ser dividido em pelo
menos três momentos, embora tais divisões não sejam matematicamente
separadas no tempo e, dependendo das organizações sociais que sejam analisadas, acabam se fundindo e até se confundindo.
O primeiro momento é o da vingança privada102, ou seja, o da reação
a uma agressão de forma direta de um indivíduo contra outro indivíduo, de
um grupo contra outro grupo, sendo marcado pela desproporção da reação
em face da agressão e da morte como resultado comum, o que impede o desenvolvimento e o crescimento de um grupo social e o próprio aparecimento
de uma organização social maior.
Os valores sociais eram o da preservação da união e da sobrevivência
da organização social, sem a preocupação com o valor humano interno e
externo da organização social primitiva.
Nessa fase, a chamada Lei de Talião representou uma evolução do sistema e uma tentativa de dosar a reação a uma proporcionalidade, sendo muito
difundindo o conceito:
[...] se houver dano, então pagarás vida por vida, olho por
olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura
por queimadura, ferimento por ferimento, contusão por contusão.103
A chamada Lei de Talião foi um novo valor social que se desenvolveu em
relação à fase anterior, representando um princípio em várias organizações
sociais primitivas, em face da necessidade de desenvolvimento da organização social, embora também ignorasse a ideia de preservação do homem e
da sua dignidade.
Destaca-se, nesse período, o Código de Hamurabi (século XXIII a.C.)104,
um dos textos mais antigo da humanidade, bem como o próprio Velho Testamento da Bíblia.
NORONHA, Edgar de Magalhães. Direito Penal – introdução e parte geral. 18ª. ed. São Paulo: Saraiva,
1980. p. 28.
103
Êxodo 21. Bíblia Sagrada, edição pastoral. Tradução Ivo Storniolo. São Paulo: Sociedade Bíblica Católica
Internacional: Paulus, 1991. p. 94.
104
Trata-se de um dos textos escritos mais antigos, sendo o seu conteúdo descoberto escrito em uma pedra
(Estela), datada de aproximadamente 1792 a.C, sendo um conjunto de leis com 282 artigos. O nome
102
70
O segundo momento é o da vingança divina105, qual seja, já existe um
poder organizado e em condições de impor normas de conduta e castigos,
bem como de limites, já há uma organização social mais evoluída em relação
à anterior.
Apresenta-se oportuna a lembrança da Trilogia de Orestes106, demonstrando que, para os gregos, nesse período, já estavam presentes as ideias
primitivas de consenso, proporcionalidade e até do chamado in dubio pro
reo desenvolvido posteriormente pelos romanos. Anota-se que sem proporcionalidade e a própria substituição da ideia de vingança coletiva pela de
punição é impossível o desenvolvimento de uma organização social para os
padrões de sociedade atual.
Nesse período, a infração penal, antes de uma violação de uma regra
da organização social, representava uma afronta à própria divindade ou divindades escolhidas.
A ideia dominante era o metafísico, orientador da vida dentro de uma
organização social, o que afasta a possibilidade de serem contestadas as
normas. A sua violação representava um ato de rebeldia contra uma divindade, o que continua longe do respeito ao homem e à sua dignidade.
A punição era rigorosa e era uma expressão da grandiosidade e do poder da divindade. Tratava-se de um Direito Penal de cunho religioso, normalmente aplicado por sacerdotes, em que o castigo servia como forma de
purificação do infrator.
Destacava-se, neste período, o chamado Código de Manu (Índia)107.
O terceiro período é o da vingança pública108, em que o interesse da
pena era a segurança do poder do príncipe ou do soberano.
deriva do rei Hamurabi, o qual governou a Babilônia (território envolvendo o atual Iraque e parte do Irã).
Apresenta-se oportuno mencionar que a sociedade babilônica era dividida em três classes sociais, mais
precisamente os awilum (homens livres com direitos); os muskênum (composta principalmente por funcionários públicos); e os escravos (In: NOVA Enciclopédia Barsa Eletrônica. Enciclopédia Britânica do Brasil
Produções Ltda., c. 1999. CD-ROM 1.).
105
NORONHA, Edgar de Magalhães. Direito Penal – introdução e parte geral. 18. ed. São Paulo: Saraiva,
1980. p. 29.
106
A chamada Oresteia é o conjunto de três peças teatrais de autoria do dramaturgo grego Ésquilo, de cerca
de 459 a.C e que conta a maldição da tragédia sobre a família de Atreu após o retorno da guerra de Troia,
com uma sucessão de mortes e vinganças, até que na última peça a deusa Palas de Atenas, através da ideia
de consenso e de justiça, põe fim ao ciclo de destruição e julga em favor de Orestes, entendendo que o
empate no julgamento pelo Conselho dos Sábios, em número de 12, deveria favorecer a defesa (In: NOVA
Enciclopédia Barsa Eletrônica. Enciclopédia Britânica do Brasil Produções Ltda., c. 1999. CD-ROM 1.).
107
Base do sistema legal hindu e da aplicação do sistema social de casta, escrito em sânscrito e em versos, a
partir do segundo milênio antes da era cristã (In: NOVA Enciclopédia Barsa Eletrônica. Enciclopédia Britânica do Brasil Produções Ltda., c. 1999. CD-ROM 1.).
108
NORONHA, Edgar de Magalhães. Direito Penal – introdução e parte geral. 18. ed. São Paulo: Saraiva,
1980. p. 30.
71
As penas eram severas e cruéis como um reflexo do poder do soberano
e com a finalidade de intimidação de quem ousasse desafiá-lo. O espetáculo
público acompanhava a aplicação da lei penal, mais precisamente do preceito secundário (pena).
Destacavam-se, nesse período, os Romanos na fase do império, embora
o estudo de Roma, por si só, já permitiria discorrer horas sobre o tema, o
que não é objeto do presente trabalho.
Roma foi o exemplo de uma sociedade que se estruturou através de
princípios, formando normas que até hoje influenciam o direito de muitos
países.
O direito romano foi a base para o direito canônico e juntos influenciaram o direito ocidental ao longo da sua evolução.
Apresenta-se oportuno lembrar a manifestação dada por Eduardo Vera-Cruz Pinto:
As fontes de Direito, hoje como em Roma, são elementos de
um processo de criação e instauração de modelos consensuais de comportamento a seguir por cada um dos membros de
uma sociedade, que marcam a passagem para o jurídico quando a comunidade requer, intencionalmente, a sua aprovação e
efectividade.109
À parte dos Romanos110, podem ser citadas as tribos germânicas que
tinham no combate pessoal um meio de solução dos conflitos e da própria
dúvida quanto à verdade sobre um determinado fato111.
Interessante citar que o aparecimento do cristianismo, com valores morais de respeito ao próximo, igualdade e com expressa preocupação da prática de atos positivos na vida terrena para uma vida eterna após a morte, representou um abrandamento do Direito Penal e de um início de humanização.
PINTO, Eduardo Vera-Cruz. Curso de direito romano vol. 1. Cascais: Princípia, 2009. p. 347.
Roma foi fundada em 754 a.C. O direito romano pode ser dividido em três períodos, mais precisamente o
pré-clássico; clássico e pós-clássico. O chamado período pré-clássico que durou entre os séculos VIII a.C.
até o século II a.C., foi caracterizado pela rigidez, ritualidade extremada, sendo o documento jurídico
mais importante do período a chamada Lei das XII Tábuas. A Tábua VII cuidava dos delitos. Já no período
clássico, que foi do século II a.C. até o século III d.C. o epicentro das normas jurídicas deixa de ser concentrado na família, para passar para os jurisconsultos e pretores. Os jurisconsultos eram estudiosos que
ditavam regras, derivando deles a ideia e o nome de jurisprudência. Já os pretores eram os magistrados
que realizavam os julgamentos. Finalmente, no período pós-clássico, que foi do século III a IV d.C, marcou
a fase da codificação do direito, destacando-se o Código de Justiniano, Digesto, Institutas e Novelas (In:
NOVA Enciclopédia Barsa Eletrônica. Enciclopédia Britânica do Brasil Produções Ltda., c. 1999. CD-ROM 1.).
111
NORONHA, Edgar de Magalhães. Direito Penal – introdução e parte geral. 18. ed. São Paulo: Saraiva,
1980. p. 31.
109
110
72
Porém, já na Idade Média e mesmo no início da Idade Moderna, o cristianismo deturpado permitiu a utilização inadequada do Direito Penal, distanciando-o do respeito ao homem.
O Direito Penal e o Direito Processual Penal Modernos apareceram com
o chamado período humanista112, com a crítica ao Direito Penal repressivo
de outrora, em especial a severidade das penas e o desrespeito do homem
pelo homem.
Considera-se nesta pesquisa que o marco divisor entre o Direito primitivo e o moderno é historicamente representado pela publicação do livro Dei
delitti e delle pene, no ano de 1764113.
A importância da mencionada obra foi a realização de uma crítica do
sistema criminal até então vigente, em especial na França.
Segundo Enrico Ferri, a obra de Cesare Bonesana causou repercussão
em toda a Europa, a ponto de Catarina da Rússia, nas suas instruções (1767)
à Comissão de reforma das leis penais, transcrever quase uma página inteira
da obra Dei delitti e delle pene, o mesmo se repetindo na Toscana (1786),
e na Áustria (1787), com a adoção de várias propostas do autor italiano114.
O Direito Penal passou a se preocupar com a proporcionalidade entre
conduta e castigo, bem como o seu exercício passou a ser entregue a pessoas distintas dos membros do clero e do próprio soberano. Observa-se que
com a revolução francesa de 1789, os ideais de igualdade, fraternidade e
liberdade passaram a ser valores universais de todos os homens, base do
Direito Moderno e da busca pela dignidade do homem pelo próprio homem,
culminando com o Código Penal de Napoleão de 1810.
Já no século XIX, verificou-se o aparecimento de um período criminológico115, caracterizado por uma preocupação do estudo do homem em relação ao crime e à pena, período inaugurado com os estudos do médico César
Lombroso, o qual tentou fazer uma relação direta, através da antropologia
criminal, entre fatores biológicos e a prática de infrações penais, na obra
L’uomo delinquente116 com a defesa inicial da existência de um delinquenNORONHA, Edgar de Magalhães. Direito Penal – introdução e parte geral. 18. ed. São Paulo: Saraiva,
1980. p. 32-34.
113
BONESANA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução J. Cretela Jr. e Agnes Cretella. 2. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1999.
114
FERRI, Enrico. Princípios de direito penal. Tradução Paolo Capitanio. 2. ed. Campinas: Bookseller, 1999.
p. 50.
115
NORONHA, Edgar de Magalhães. Direito penal – introdução e parte geral. 18. ed. São Paulo: Saraiva,
1980. p. 35.
116
LOMBROSO, César. O homem delinquente. Tradução Maristela Bleggi Tomasini e Oscar Antonio Corbo Garcia. 2. ed. Porto Alegre: Ricardo Lenz, 2001.
112
73
te nato. Observa-se que a obra de Lombroso foi muito criticada em face
de buscar estabelecer um perfil criminoso baseando-se, principalmente, em
uma análise de aspectos físicos e de base empírica.
Na época não existia um desenvolvimento maior da genética, da psicologia e da psiquiatria, para se ter uma ideia de que o corpo e a mente
formam um todo que reage em relação ao meio ambiente.
Porém, o trabalho de Lombroso teve o valor de inaugurar a criminologia moderna, uma das ciências que auxiliam as demais ciências criminais de
forma interdisciplinar.
No campo jurídico, destaca-se o trabalho de Enrico Ferri, permitindo a
noção de reabilitação do delinquente, um dos pilares do positivismo jurídico
do final do século XIX.117
O crime deixa de ser analisado apenas do ponto de vista jurídico e
filosófico, para ser avaliado socialmente, considerando a pessoa do infrator
como objeto necessário de estudo.
Atualmente, está em processo um período de discussão sobre a funcionalidade do Direito Penal e do Direito Processual Penal, através dos
estudos desenvolvidos por Winfried Hassemer, Claus Roxin, Günter Jakobs
além de outros, com base na chamada política criminal e não apenas na norma escrita como ocorreu na maior parte do século XX, visando a um Direito
efetivo socialmente e atual.
Conforme ensina Claus Roxin, a política criminal fornece os parâmetros
valorativos fundamentais para o estabelecimento do injusto e da culpabilidade, permitindo um equilíbrio entre a necessidade interventiva estatal e a
liberdade individual118.
Tudo indica que se caminha para os primórdios de um período de internacionalização do Direito, em especial do Direito Penal e do Direito
Processual Penal, com base em princípios e não mais em política criminal
que não consegue ser supracultural, decorrente da universalização da comunicação e do comércio entre os diversos países, tendo como consequência o
aparecimento de uma criminalidade internacional e de ação transnacional
que afeta todos os Estados conjuntamente.
A própria sobrevivência do homem no planeta está ligada a uma internacionalização da proteção do meio ambiente, independentemente de raça,
religião e de opiniões políticas.
117
118
FERRI, Enrico. Princípios de direito penal. Tradução Paolo Capitanio. 2. ed. Campinas: Bookseller, 1999.
ROXIN, Claus. Estudos de direito penal. Tradução Luís Greco. 2. ed. São Paulo: Renovar, 2012. p. 68-75.
74
Todavia, a internacionalização ainda é pequena, limitando-se a tratados e a convenções, o que não representa uma legislação internacional única
e um verdadeiro Direito Internacional Universal.
2.1.1 Relação histórica do Direito com valores sociais no âmbito do
Direito Penal e do Direito Processual Penal em Portugal
metrópole e no Brasil
Portugal, com uma história exuberante de demonstração de superação de desafios ao longo de sua evolução, foi um dos primeiros países a ser
formado na Europa em torno da figura de um rei, fato que possibilitou o
aparecimento de uma das primeiras codificações escritas no Ocidente que
receberam o nome de Ordenações.
Todavia, mesmo antes das Ordenações, existiram diversas normas de
aplicação local e algumas de aplicação geral na Península Ibérica que não
chegaram a significar um Código no sentido técnico-jurídico, ou seja, com
uma organização redacional, de âmbito geral com aplicação nacional, mas
de suma importância para o desenvolvimento do direito português e para a
demonstração de como o Direito e a sua aplicação estavam alinhados com os
valores sociais de cada época, não se justificando uma racionalização do Direito e o seu divórcio com relação aos valores da sociedade a que ele serve.
A primeira legislação mais importante para esse estudo é o chamado
Código de Eurico ou Código Euriciano, com data aproximada de 475. Representava um conjunto de normas de influência principiológica do Direito
Romano e com influência do Direito Germânico, sendo destinado aos visigodos que habitavam a Península Ibérica.119
Pode-se citar também o Breviário de Alarico ou Breviário de Aniani120,
com data aproximada de 506, destinado aos hispanos-romanos, com influência do Direito Romano121.
SILVA, Nuno J. Espinosa Gomes. História do direito português: fontes de direito. 5. ed. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 2011. p. 96.
120
O chamado “Breviário de Alarico” (lex romana visigothorum) representou uma compilação de leis romanas
vigentes no reino visigodo de Tolosa, durante o reinado de Alarico II (487 – 507d.C.), representando uma
recompilação de normas romanas, pós-clássico e vulgar, sendo considerada a mais importante construção
legal de um reino germânico e equivalente em importância, para o Ocidente, como o foi o chamado corpus
iruris civilis de Justiniano. op. cit.
121
SILVA, Nuno J. Espinosa Gomes. História do direito português: fontes de direito. 5. ed. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 2011. p. 97.
119
75
O Fuero Juzgo122 também foi outra legislação de influência romana, dividido em 12 livros, tendo a sua primeira versão para o castelhano, segundo
os historiadores, feita por determinação do Rei D. Fernando, em 04 de abril
de 1241, após a queda de Córdoba do domínio mouro.
O Fuero Juzgo foi limitado pelos Fueros Municipales123 e Cartas Pue124
blas na época de D. João II, quando Portugal já tinha conquistado a sua
independência.
Oportuno mencionar que a região de Portugal de hoje foi um condado romano, passando com o tempo para o domínio de outros povos, entre
eles os mouros e, depois da reconquista cristã, para o domínio castelhano,
acabando por conquistar a sua independência, fruto de um nacionalismo
português que se desenvolveu, redundando essa sucessão de fatos sociais e
históricos em alterações radicais para as organizações sociais existentes no
atual território de Portugal, conforme se apreende de Nuno J. Espinosa Gomes da Silva comentando a formação do Direito Português125. Isso acarretou
a modificação de valores sociais essenciais e, em consequência, da própria
legislação aplicável nos diversos momentos às populações que viveram sucessivamente no mesmo espaço físico.
No âmbito processual penal, destacam-se ainda as chamadas “Flores de
las Leyes”126 e o “Fuero Real”127.
A primeira representava um manual de direito processual, escrita por
Jácome Ruiz, mestre na Corte de D. Afonso X, o Sábio.
Fuero Juzgo foi um corpo legal elaborado em Castilha por volta de 1241, sob influência de Fernando III e
era uma tradução para o castelhano do liber iudiciorum do ano 654, promulgado na época dos visigodos.
A sua aplicação foi na qualidade de direito local. O Fuero Juzgo ainda possui aplicação, no âmbito civil,
como direito foral supletivo no País Basco, Navarra y Aragon. op.cit.
123
Os Fueros Municipales representavam um conjunto de normas aplicáveis a uma determinada localidade,
com a finalidade geral de regular a vida local, estabelecendo direitos e privilégios outorgados pelo rei
ao Senhor da Terra ou ao próprio Conselho Municipal. Foi aplicado a partir da Idade Média na Península
Ibérica e foi uma das fontes mais importantes do direito espanhol da Alta Idade Média. cit. SILVA, Nuno
J. Espinosa Gomes. História do direito português: fontes de direito. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2011.
124
Carta Puebla, Carta de Población, Privilegio de Población ou Cartas de Liberdade eram as denominações
dos documentos através dos quais os reis cristãos, senhores de terras laicos e eclesiásticos da Península
Ibérica outorgavam uma série de privilégios a grupos populacionais com o fim de repovoamento de certas
zonas de interesse econômico ou estratégico tomadas durante a reconquista do território junto aos mouros
e representou uma manifestação do direito local. op. cit.
125
SILVA, Nuno J. Espinosa Gomes. História do direito português: fontes de direito. 5. ed. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 2011. p. 55-141.
126
Id., p. 264.
127
Id., p. 265.
122
76
Destaca-se a previsão das figuras do julgador, do acusador e do réu, a
existência da formação de uma relação processual, através da citação, com
possibilidade de produção de prova em um prazo razoável, seguido de uma
decisão.
O Fuero Real foi concluído entre 1252 e 1255, ao tempo de D. Afonso X,
o Sábio, sendo aplicável onde não existissem Fueros Municipales, sendo que
as causas penais eram públicas ou particulares, com o nome de acusações,
não se utilizando o termo querela para tais demandas.
Os judeus, os mouros e os tidos como hereges não podiam apresentar
acusações públicas, restando a eles apenas as acusações particulares, ressalvada a hipótese de serem vítimas.
Os religiosos possuíam jurisdição especial.
As acusações, na época, deveriam ser feitas por escrito e era previsto
o perdão por parte do ofendido.
A legislação era escrita em castelhano e acabou caindo em desuso pela
reação do nacionalismo português, demonstrando novamente a relação direta que existe entre valor social e norma, decorrendo disso a legitimidade
social da norma e a sua validade efetiva.
No mesmo período, também se destaca a Lei das Sete Partidas128, com
procedimento mais estruturado como um processo, prevendo-se a demanda,
a postulação, a contestação, as provas e a sentença.
Como em outras legislações da época, o juramento era uma forma de
prova importante.
Os chamados Forais129 foram outra manifestação legislativa, observando-se que apareceram no século IX, e apesar de terem a mesma raiz da palavra castelhana Fuero, qual seja a palavra latina forum, possuem pequenas
variações de significado.
Os Forais, de um modo geral, eram guardados para disposições sobre
tributação, serviço militar, aproveitamento de matas comuns, penas e regras sobre a produção de provas.
A Carta de Foral ou Foral era o documento real de concessão de aforamento ou foro jurídico próprio, isolado, diverso, aos habitantes medievais de
uma povoação, no caso portuguesa, que se pretendia libertar ou manter livre
do poder do senhor feudal, elegendo um Conselho com autonomia municipal130.
SILVA, Nuno J. Espinosa Gomes. História do direito português: fontes de direito. 5. ed. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 2011. p. 265.
129
Id., p. 172.
130
Id.
128
77
Representava uma das formas de centralização do poder real através
da legislação, colocando a população sob o domínio e jurisdição exclusiva da
coroa e sob proteção direta do rei.
Cita-se, ainda, o chamado Livro de Leis e Posturas131, sem data precisa
de criação, mas com possível utilização no século XIV, que possuía disposições processuais penais, destacando-se a chamada “Lei das Injúrias”, de 12
de março de 1355, pela qual se determinava o procedimento em determinadas infrações penais.
Conforme se observa, a legislação portuguesa primitiva e a medieval
eram complexas e de difícil aplicação, carecendo de uma sistematização
e unificação, fato que prejudicava a manutenção de um poder central que
efetivamente controlasse todo o seu território, observando que a unificação
de um reino e a centralização do poder é um processo lento de força e habilidade política, representando a lei uma forma de consolidação de tal poder.
Na sequência, as Ordenações representaram não só uma forma de organização da justiça e da vida das pessoas, como a própria consolidação do
poder central do rei, vencendo o direito consuetudinário local, expressão
do poder medieval dos nobres, bem como a vingança privada que produzia
guerras e destruições que prejudicavam a manutenção da centralização do
poder. Também representaram a própria relação direta entre norma e os
novos valores sociais essenciais da organização social decorrentes do final da
Idade Média e início da Idade Moderna.
A primeira das ordenações foi a chamada Ordenações Afonsinas
(1446/1514), as quais mantinham a ideia do direito primitivo baseado na
responsabilidade objetiva e não chegou a ter utilização direta no Brasil pela
ausência de povoações na colônia.
Inicialmente, a sua compilação foi entregue ao Corregedor da Corte,
João Mendes, seguido por Rui Fernandes, acabando por ser concluída em 28
de julho de 1446, sob a regência de D. Pedro (Dinastia de Avis) e efetivada
sob o reinado de D. Afonso V, motivo pelo qual se chamou Ordenações Afonsinas, embora tenham sido iniciadas sob o governo do Rei D. João I de Portugal (1385-1433)132. A codificação recebeu influências do Direito Romano e do
Direito Canônico, tendo como característica principal o medo e o terror das
penas, como uma forma de prevenção e punição dos delitos, com profunda
diferenciação de pessoas entre nobres e peões, característica que se seguiu
nas demais Ordenações do Reino.
SILVA, Nuno J. Espinosa Gomes. História do direito português: fontes de direito. 5. ed. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 2011. p. 289.
132
Id., p. 309.
131
78
As Ordenações Afonsinas estavam divididas em cinco livros, ficando estabelecidos os delitos e as penas no Livro V, conforme informa João Mendes
de Almeida Júnior133, sendo que o processo penal era tratado como parte do
Livro V que cuidava das infrações penais.
A segunda das ordenações do reino foram as chamadas Ordenações
Manuelinas (1514/1595), as quais mantinham os mesmos princípios da Ordenação anterior, com pouca influência no direito pátrio, uma vez que o
primeiro povoamento no Brasil ocorreu em São Vicente/SP a partir de 1532,
sendo que poucos eram letrados, bem como não existia a figura profissional
de um Magistrado.
As Ordenações Manuelinas representaram uma revisão e atualização
das Ordenações Afonsinas em face do volume de legislações extravagantes e
do desuso de diversas normas, determinada pelo Rei D. Manuel I, o Venturoso, cujo projeto foi entregue ao chanceler-mor Rui Boto, ao Desembargador
do Paço e Corregedor Civil da Corte Rui da Grã e a João Contrim134, demonstrando novamente a necessidade de adequação entre norma e valor social
para a sua validade efetiva.
Os trabalhos apresentados não satisfizeram o rei, o qual formou nova
comissão com a participação de Cristóvão Esteves, entre outros, acabando
por entregar a obra que foi publicada em 11 de março de 1521.135
As Ordenações Manuelinas foram melhor sistematizadas em relação às
Ordenações Afonsinas anteriores e mantiveram os delitos, as penas e o processo no Livro V.
Na sequência histórica do desenvolvimento do direito português, encontram-se as Compilações de Leis Extravagantes de Duarte Nunes Leão
(1569/1595), que não representaram, na percepção deste trabalho, uma
outra Ordenação, mas apenas uma atualização das Ordenações Manuelinas.
Elas foram mandadas fazer por ordem do Tutor do rei, o Cardeal D. Henrique,
enquanto D. Sebastião ainda era pequeno e não podia reinar efetivamente.
O trabalho foi confiado a Duarte Nunes Leão e outros, sendo a atualização terminada em 14 de fevereiro de 1569, quando passou a ter a sua publicação e determinação de observância136. D. Sebastião assumiu o poder real
ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo criminal brazileiro vol. 1. Rio de Janeiro: Baptista de Souza,
1920. p. 119.
134
SILVA, Nuno J. Espinosa Gomes. História do direito português: fontes de direito. 5. ed. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 2011. p. 334.
135
PIERANGELLI, José Henrique. Processo penal, evolução histórica e fontes legislativas. Bauru: Jalovi, 1983.
p. 59.
136
PIERANGELLI, José Henrique. Processo penal, evolução histórica e fontes legislativas. Bauru: Jalovi, 1983.
p. 349.
133
79
com quatorze anos de idade, dedicando-se a projetos ambiciosos e bélicos,
entre eles o de tomar o atual Marrocos junto aos mouros.
Porém, acabou desaparecendo na Batalha de Alcácer-Quibir, criando o
mito, que é até hoje cultuado, do jovem rei santo que irá retornar um dia,
fato constatado pessoalmente em uma visita ao Mosteiro dos Jerônimos em
julho de 2009, ao observar pessoas rezando diante da urna dedicada a D.
Sebastião.
A vacância do trono português foi solucionada com a coroação do Cardeal D. Henrique como rei, o qual acabou morrendo pouco tempo depois,
permitindo que o rei da Espanha, sucessor direto ao trono, assumisse o governo e unificasse os reinos de Portugal e de Espanha em 1581, com consequências diretas para o Brasil que à época era uma colônia de Portugal.
A união dos reinos de Portugal e Espanha redundou em diversas mudanças de ordem econômica e social, em especial em Portugal e nas suas colônias, repercutindo em uma terceira codificação denominada Ordenações
Filipinas (1595/1830).
As Ordenações Filipinas, mandadas compor no reinado de Felipe II da
Espanha, o qual tinha o título de Felipe I de Portugal, somente foram publicadas pelo filho Felipe III da Espanha, o qual tinha o título de Felipe II de
Portugal, no dia 11 de janeiro de 1603137.
Após a independência de Portugal em relação à Espanha, as Ordenações
Filipinas foram confirmadas por Lei de 29 de janeiro de 1643, sob o reinado
de D. João IV.
A matéria criminal e a matéria processual criminal eram condensadas
no Livro V, como ocorria nas Ordenações anteriores, não existindo na época
uma ciência do Direito Processual Penal, o qual era visto como um mero
apêndice do direito material.
As Ordenações Filipinas tinham como característica a severidade do
tratamento dos ilícitos, com diferenciação de classes sociais (peões e nobres), e com o emprego generalizado da pena de morte138. As execuções
eram realizadas de formas diversas, sendo a publicidade e a intensidade
do sofrimento um meio de incutir o medo como forma de controle social e
respeito ao poder do soberano.
Nesse ponto, a pesquisa histórica da formação do Direito com a intenção de demonstrar a relação direta das normas com a vida em torno de uma
SILVA, Nuno J. Espinosa Gomes. História do direito português, Fontes de direito. 5. ed. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 2011. p. 334.
138
GARCIA, Basileu. Instituições de direito penal vol. I. 3. ed. São Paulo: Max Limonad, 1956. p. 116.
137
80
organização social, com os fatos sociais históricos e os seus valores, deixa a
evolução jurídica histórica de Portugal e passa para a evolução jurídica histórica do Brasil e a formação do seu Direito, uma vez que as Ordenações Filipinas foram a última grande codificação portuguesa a ser aplicada no Brasil.
Antes do descobrimento do Brasil pelos portugueses e a aplicação da
sua legislação atrelada aos valores da sociedade portuguesa, existiam nações nativas que possuíam normas próprias e de natureza consuetudinária,
as quais regulavam a vida dos membros dentro e fora dos grupos indígenas,
normas estas relacionadas com os valores tribais.
Porém, eram normas de uso doméstico e sem maior repercussão para
os membros de outros grupos, impedindo a possibilidade de existirem organizações sociais próximas dos moldes atuais. Observa-se que mesmo entre
as diversas tribos da mesma nação existiam diferenças, sendo característica
a existência da vingança privada, da vingança coletiva e do próprio princípio
de Talião já comentados anteriormente.
No período indígena não existia a ideia de processo como se tem hoje,
mais precisamente como sendo um conjunto ordenado de regras tendentes
a um fim, com partes, possibilidade de postulação e de defesa.
O Brasil começa a sofrer a influência de uma legislação efetiva a partir
do início da colonização com Martim Affonso de Souza em 1532.
Martim Affonso de Souza fundou pequenas vilas, com organização administrativa, com juízes ordinários, conforme as Ordenações Manoelinas então
vigentes, retornando a Portugal em 1533, deixando em seu lugar o padre
Gonçalo Monteiro.139
Já no ano de 1534, o Brasil foi dividido em capitanias hereditárias,
recebendo os donatários cartas ou foraes da doação, com poderes até de
morte natural para peões, escravos e gentios e até de 10 anos de degredo
para pessoas com maior nível, bem como para conhecer dos eventuais recursos interpostos.140
Porém, com a falência do sistema de capitanias hereditárias, repercutindo na criação de um governo-geral, com ouvidor-geral responsável pela
distribuição da justiça, as cartas ou foraes de doação acabaram por perder
o seu poder e voltou-se a aplicar as legislações portuguesas extravagantes e
as Ordenações então vigentes.
ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo criminal brazileiro vol. 1. Rio de Janeiro: Baptista de Souza,
1920. p.151.
140
Id., p.152.
139
81
Oportuno mencionar que não existia nos primórdios do Brasil uma sociedade tipicamente brasileira, sendo que os valores das pessoas que vieram
para o Brasil Colônia e aqui passaram a viver eram os da sociedade portuguesa. O panorama de formação de uma organização social tipicamente
brasileira foi modificando ao longo do tempo em decorrência das influências
de outras nações e das próprias peculiaridades da vida no Brasil, que se
diferenciava da metrópole, sem deixar o Brasil a base social portuguesa até
pelo menos a segunda metade do século XIX, já sob o reinado de D. Pedro II,
que tinha especial apreço pela França e sua cultura.
Posteriormente, com a independência do Brasil em relação a Portugal,
foram confirmadas as Ordenações Filipinas por Lei de 20 de outubro de 1823,
enquanto se aguardava uma legislação própria.
O Brasil somente teve um Código Criminal próprio no dia 16 de dezembro de 1830 e um Código de Processo Criminal próprio no dia 20 de outubro
de 1832, ou seja, vários anos após a proclamação da independência em relação a Portugal, ocorrida no dia 7 de setembro de 1822, e após a Constituição
do Império de 1824.
Indiscutivelmente, o Código Criminal do Império e o Código de Processo
Criminal do Império sofreram influências diretas do período que se classifica
como humanista do Direito Penal e da própria Revolução Francesa, seguida
do Código Penal da Napoleão de 1810.
O Código Criminal do Império de 1830 estabeleceu os primórdios da
culpabilidade, ao prever, no seu artigo 3º que:
[...] não haverá criminoso ou delinquente sem má-fé, isto é,
sem conhecimento do mal e intenção de o praticar.141
O Código Criminal do Império foi aprovado em sessão de 20 de outubro
de 1830, e foi remetido para o Senado em 16 de dezembro, acabando sancionado pelo Imperador D. Pedro I. A carta de lei que mandou executá-lo foi
publicada no dia 8 de janeiro de 1831.
O mencionado diploma legal foi muito elogiado, verificando-se forte
influência do Iluminismo e do Código Penal Francês de 1810142. Destacavam-se a abolição da pena de morte nos crimes políticos, a clareza e a concisão.
Também podem ser citados o início da preocupação da indeterminação da
141
142
PIERANGELLI, José Henrique. Códigos penais do brasil, evolução histórica. Bauru: Jalovi, 1980. p. 167.
GARCIA, Basileu. Instituições de direito penal vol. I. 3. ed. São Paulo: Max Limonad, 1956. p. 120.
82
pena e da sua individualização, a previsão da circunstância atenuante da
menoridade, a imprescritibilidade da condenação e a indenização do dano
ex delicto. Porém, nesta pesquisa considera-se, a maior conquista do novo
diploma, a previsão da responsabilidade sucessiva nos crimes de imprensa,
marco no direito pátrio e anterior à própria Lei Belga.
Um pouco depois surgiu o Código de Processo Criminal do Império de
1832, que foi determinado compor por D. Pedro I e apresentado à Câmara
em 20 de maio de 1829. Também existiu um projeto análogo, apresentado
pelo deputado José Antônio da Silva Maia.
Ocorreram diversos debates, sucedidos por vários pareceres, os quais
foram findados com a promulgação do texto pela Regência Permanente
Trina, em 29 de novembro de 1832.
O mencionado Código, como ocorreu com o Código Criminal do Império, representou uma grande evolução para o direito pátrio, consagrando os
ideais iluministas já presentes na Constituição Imperial de 1824.
Deixando de lado o patriotismo de alguns historiadores que tentaram
fazer do Código de Processo Criminal do Império uma obra única e de importância mundial, o texto apresentou várias inovações e efetivo desenvolvimento, deixando o processo penal de ser um apêndice do Direito Penal,
passando a ter uma efetiva identidade codificada, a ponto de João Mendes
de Almeida Júnior alegar que ele representou um salto para o liberalismo
quando comparado com as Ordenações Filipinas.143
Destacam-se certas inovações e que foram citadas por Roberto Tavares
Lyra144:
[...] 1) no esboço da indeterminação relativa e de individualização da pena, contemplando já os motivos do crime, só meio
século depois tentado na Holanda, e, depois, na Itália e na
Noruega; 2) na fórmula da cumplicidade (co-delinquência como
agravante), com traços do que viria a ser a teoria positiva a
respeito; 3) na previsão da circunstância atenuante da menoridade, desconhecida até então das legislações francesa e napolitana, e adotada muito tempo após; 4) no arbítrio judicial
no julgamento dos menores de 14 anos; 5) na responsabilidade
sucessiva nos crimes por meio da imprensa, antes da lei belga
ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo criminal brazileiro vol. 1. Rio de Janeiro: Baptista de Souza,
1920. p. 190.
144
LYRA, Roberto Tavares. Introdução ao estudo do direito criminal. Rio de Janeiro: Nacional, 1946.
143
83
— e, portanto, esse sistema é brasileiro e não belga, como é
conhecido; 6) na indenização do dano ex-delicto, como instituto de direito público, também antevisão positivista; 7) na
imprescritibilidade da condenação.
Ambos os códigos do império representaram a independência legal e
acima de tudo dos valores sociais essenciais portugueses, no âmbito do Direito Penal e do Processo Penal, a base para se desenvolver uma sociedade
brasileira com valores essenciais próprios.
Seguiu-se ao Código de Processo Criminal do Império a Lei nº 261 de 03
de dezembro de 1841, como reação ao liberalismo do mencionado código
em face de todos os problemas decorrentes do momento nacional vivido
com a abdicação de D. Pedro I e as regências que levaram ao aparecimento
de revoltas, algumas de cunho republicano, criando a oportunidade de uma
reforma monárquica conservadora da então codificação processual criminal
através de 102 artigos que permitiam uma maior centralização do poder, que
ao ser sancionada pelo Imperador D. Pedro II já contava com 124 artigos.
A mencionada lei estabeleceu novas posturas com relação à nomeação
de Juízes Municipais, Juízes de Órfãos e Promotores Públicos que deixavam
de ser escolhidos pela Câmara Municipal e passavam a ser escolhidos pelo
governo. As atribuições policiais e a jurisdição criminal dos Juízes de Paz
eletivos passaram a ser de delegados e subdelegados nomeados e demitidos
pelo governo. O Júri que se aplicava a uma diversa gama de ilícitos passou
a ter os seus julgamentos inspecionados e tutelados pelo Juiz de Direito que
podia anular as sua decisões145.
A Lei nº 261 foi regulamentada pelo Regulamento nº 120, com 504 artigos.
Os anseios liberais continuaram e diversas reformas legais pontuais e
parciais foram sendo realizadas nos anos seguintes, levando o imperador a
determinar uma revisão da nossa legislação, que acabou ocorrendo em 1871,
com o advento da Lei nº 2.033, de 20 de setembro de 1871, regulamentada
pelo Decreto nº 4.824, de 22 de novembro de 1871.
Como destaques da nova reforma operada, encontram-se a previsão da
nomeação dos Chefes de Polícias entre magistrados, a jurisdição dos Juízes
de Paz, Juízes Municipais e de Direito, bem como as atribuições dos Delegados e Subdelegados, além das hipóteses de prisão preventiva, a fiança e
outras medidas de interesse processual146.
ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo criminal brazileiro vol. 1. Rio de Janeiro: Baptista de Souza,
1920. p. 208.
146
Id.
145
84
Outros diplomas legais de natureza processual seguiram-se tanto na
época do Império como posteriormente durante a República.
A segunda codificação das leis criminais brasileiras surgiu após a proclamação da República, ocorrida no dia 15 de novembro de 1889, mais precisamente no dia 11 de outubro de 1890, com o título de Código Penal Brasileiro,
anterior à própria Constituição Federal Republicana de 24 de fevereiro de
1891, fruto da transformação social do império para a república e a consequente mudança de valores sociais essenciais da sociedade brasileira que já
não estavam mais alinhados com a legislação anterior, demonstrando novamente a relação entre norma e valor social, em especial os valores sociais
essenciais que são os princípios.
O Código Penal de 1890 estabeleceu as ideias de dolo e de culpa como
espécies da culpabilidade, ao prever:
Art. 24. as acções ou omissões contrárias á lei penal que não
fôrem comettidas com intenção criminosa, ou não resultarem
de negligência, imprudência ou imperícia, não serão passíveis
de pena.147
O projeto de um novo código criminal iniciou-se antes da proclamação
da República, tendo Batista Pereira sido encarregado da organização do projeto de reforma.
Após a proclamação da República, Batista Pereira continuou os estudos,
acabando o projeto por se transformar no Código Penal Brasileiro, através do
Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890, só entrando em vigor seis meses
depois, em face do Decreto nº 1.127, de 6 de dezembro de 1890148.
O novo diploma legal não primou pela mesma concisão e clareza do seu
antecedente, mas teve pontos positivos, por exemplo, a abolição da pena
de morte e outras sanções arcaicas, substituindo-as por penas mais brandas,
além de criar o regime penitenciário de caráter correcional, aproveitando
as experiências da Inglaterra. Porém, na sua Parte Geral, mais precisamente
no artigo 7º, trazia uma definição de crime pouco técnica para o momento
do desenvolvimento do direito penal. Além disso, no seu artigo 27, § 4º,
estabeleceu uma dirimente (excludente de ilicitude) que rendeu severas
críticas e foi uma das responsáveis pela adoção do instituto da actio libera in
causa, com base no direito italiano, adotado por Nelson Hungria, no Projeto
do Código Penal de 1940. O criticado artigo previa:
147
148
PIERANGELLI, José Henrique. Códigos penais do brasil, evolução histórica. Bauru: Jalovi, 1980. p. 271.
GARCIA, Basileu. Instituições de direito penal vol. I. 3. ed. São Paulo: Max Limonad, 1956. p. 125.
85
[...] Não são criminosos os que se acharem em estado de completa privação de sentidos e inteligência.149
Na época, bem como até o Código Penal de 1940, a maioria dos crimes
era julgada pelo Júri, razão pela qual, muitos criminosos se beneficiavam
com a mencionada dirimente e com o fato de serem julgados por leigos suscetíveis a serem impressionados pela retórica. Tais pessoas, visando estar
imunes à ação do Estado, ingeriam bebidas alcoólicas e depois praticavam
os crimes, para os seus defensores alegarem que eles não tinham praticado
um crime por estarem privados dos seus sentidos e inteligência. O absurdo
era tamanho, que praticamente passou a ser regra tal alegação nos casos de
homicídios, o que gerou severas críticas por parte da sociedade e a reação
no Código Penal de 1940.
O Código Penal de 1890 foi marcado por uma sucessão de legislações
esparsas, fruto de todas as modificações sociais oriundas do início do século
XX, conflitos internos e internacionais, início de uma industrialização, imigrações e outros que influenciaram a sociedade brasileira e o seu padrão
social, repercutindo em novos valores sociais.
Em face disso, o Desembargador Vicente Piragibe, no ano de 1932, organizou uma sistematização das normas vigentes, visando solucionar a confusão legal reinante no âmbito do direito penal. A sistematização foi oficializada através de decreto de 14 de dezembro de 1932 e não se tratou de um
novo código, mas, sim, de uma atualização do anterior.
A sociedade brasileira e os seus valores sociais reclamaram uma nova
legislação, sendo que, no dia 7 de dezembro de 1940 foi sancionado o atual
Código Penal, mas somente em 1º de janeiro de 1942 passou a entrar em vigor.
O Código Penal de 1940 estabeleceu claramente os conceitos de dolo
e de culpa e os inseriu como elementos da culpabilidade ao estipular no seu
artigo 15:
Diz-se o crime: I – doloso, quando o agente quis o resultado ou
assumiu o risco de produzi-lo; II – culposo, quando o agente deu
causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia.
Parágrafo único – Salvo os casos expressos em lei, ninguém
pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o
pratica dolosamente.150
149
150
PIERANGELLI, José Henrique. Códigos penais do brasil, evolução histórica. Bauru: Jalovi, 1980. p. 271.
PIERANGELLI, José Henrique. Códigos penais do brasil, evolução histórica. Bauru: Jalovi, 1980. p. 451.
86
Não definiu o conceito de culpabilidade, preferindo no “Título III – Da
Responsabilidade” informar quando não haveria responsabilidade penal.
As mudanças apresentadas representaram o alinhamento do Direito Penal com os novos padrões sociais do século XX, mais precisamente com o
Estado Novo implantado por Getúlio Vargas, provavelmente, com base no
Código Penal Italiano de Rocco.
Superada a ditadura do Estado Novo e o final da Segunda Guerra Mundial, fatos sociais marcantes na sociedade brasileira, verificou-se o ressurgimento da busca pela humanidade e solidariedade, acarretando valores
sociais de valorização da vida, redundando em uma Constituição Federal de
1946 e em diversas modificações parciais em todos os códigos, em especial
no Código Penal de 1940.
Algum tempo depois, a sociedade brasileira passou por um período de
retrocesso em termos de liberdades políticas e sociais durante o período de
cerca de 20 anos iniciado em 1964, com influência direta no direito, que não
se sustentou e acarretou a própria alteração da parte geral do Código Penal
de 1984. Anota-se que houve um Código Penal de 1969, mas não chegou a ter
vigência, motivo pelo qual cabe apenas a sua citação histórica.
Atualmente, são tantas as modificações existentes no Código Penal de
1940, que praticamente o projeto original não existe mais, motivo pelo qual
existem estudos para a sua substituição e adequação aos princípios imanentes gerais e específicos do direito penal.
Os fatos sociais que repercutiram no direito penal também influenciaram na evolução do direito processual penal, embora com algumas peculiaridades próprias no seu desenvolvimento, motivo pelo qual se apresenta
necessário um desenvolvimento à parte de sua evolução histórica e social.
Ao contrário do que ocorreu no Direito Penal, a Constituição Republicana de 1891 outorgou aos Estados-Membros a competência para legislar
em matéria de processo, acabando por gerar uma proliferação de códigos
estaduais, muitos representando meras variações do Código de Processo Criminal do Império e legislações que se seguiram.
O pluralismo legislativo em matéria processual, ao invés de representar
um avanço, gerou uma confusão legislativa e um problema para a manutenção da centralização do poder, contrária aos interesses do Estado, em
especial após a Revolução de 1930, fato que motivou a nomeação de uma comissão para a elaboração de um Código de Processo Penal Nacional. Anota-se
que não havia interesse por parte do governo federal, após a mencionada
revolução e o próprio chamado Estado Novo de 1937, na existência de codificações estaduais no âmbito do processo penal, o que representava uma
87
perda de força e de centralização de poder. Também, a própria sociedade
criticava a existência de legislações processuais díspares entre os EstadosMembros, dificultando a integração nacional.
A somatória do que foi acima exposto, mostrando a continuidade da
relação entre valor social e norma, redundou em uma nova codificação no
âmbito do processo penal.
A segunda codificação das leis processuais penais brasileiras surgiu com
o Código de Processo Penal de 3 de outubro de 1941, apesar da reforma decorrente da Lei nº 261 de 3 de dezembro de 1841, o seu Regulamento nº 120,
bem como a Lei nº 2.033 de 20 de setembro de 1871 e outras leis esparsas que
se seguiram já terem operado sérias reformas no texto do Código de Processo
Criminal do Império, mas não representaram um novo código nacional.
O Código de Processo Penal de 1941 foi promulgado no dia 3 de outubro de 1941 através do Decreto-Lei nº 3.689, sendo que em 11 de dezembro
de 1941 foi também promulgada a chamada Lei de Introdução ao Código de
Processo Penal, Decreto-Lei nº 3.931, de 11 de dezembro de 1941.
O Código de Processo Penal, ao contrário do Código Penal de 1940, não
passou por uma ampla reforma no ano de 1984, sendo que, embora tenham
existido diversas comissões de reforma, o legislador sempre optou por mudanças pontuais no seu texto, destacando-se as Leis Federais nº 11.689 e
nº 11.690 do ano de 2008 e ainda a nº 11.900 do ano de 2009.
O mencionado diploma e todas as alterações que se seguiram, em especial a preocupação com a humanização do processo, a garantia por um
contraditório efetivo na formação da prova e, acima de tudo, a mudança
de um processo com orientação inquisitiva para um processo de partes,
em que o magistrado assume a função principal de um mediador e não de
um mero investigador, ao longo de todos os fatos sociais marcantes acima
expostos, representa a prova definitiva de que Direito e, em especial, as
normas que o compõem, possuem relação com os valores essenciais de
uma sociedade.
Ao final do estudo da evolução histórica do Direito Penal e do Direito
Processual Penal, tanto em Portugal Metrópole como no Brasil Colônia e
Nação Independente, verifica-se que, sempre que o Direito é fruto do poder
sem o balizamento de princípios, valores essenciais da sociedade, ele passa
a ser confuso, discutido e possui a sua longevidade comprometida, o que
confirma a tese deste trabalho de que norma legítima do ponto de vista social, na sua criação e aplicação, é baseada em princípios.
Entendemos que o Direito, em um sentido material, significa o ordenamento jurídico abrangendo as normas positivadas e os princípios, permitindo
88
não só a legitimidade legal como a social. Já em um sentido filosófico, representa a própria ideia de Justiça.
O Direito Processual Penal, além de uma evolução histórica, também
passou da condição de um mero apêndice do Direito Penal para a condição
de ser considerado uma ciência.
2.2 O Direito Processual Penal como ciência autônoma
Apresentado o nascimento dos princípios, bem como sua relação como
uma das fontes do Direito ao longo da história e a forma como balizam o
poder dos Estados, bem como a própria anterioridade à Constituição Federal
do Brasil, qual seria a natureza do Direito Processual Penal?
O Direito Processual Penal é uma ciência ou uma arte?
O próprio Direito, do qual o Processo Penal é parte, é uma ciência ou
uma arte?
O Direito não é formado apenas por áreas dogmáticas, existindo também as zetéticas que permitem a discussão de postulados básicos, bem como
é expressão de experiência, de meditação e de humanidade.
Ciência dentro de uma perspectiva material de demonstração e imutabilidade de resultados, como as ciências exatas, não é.
Arte pura destituída de uma finalidade, de uma sistematização e de
uma valoração histórica e social também não é.
O Direito, em especial o Direito Processual Penal, é uma ciência humanista porque possui um objeto próprio e particular de estudo, através de
uma metodologia.
Todavia, não se confunde com uma ciência exata.
O Direito Processual Penal também é uma arte enquanto materialização das experiências, da evolução da sociedade e dos sentimentos humanos,
razão pela qual não pode ser mera norma posta, sob pena de ser abstraída
do Direito Processual Penal a sua legitimidade social.
A dogmática jurídico-penal do Direito Processual Penal pátrio, ou seja,
o seu objeto é o estudo das normas escritas (Direito Positivo) de cunho processual criminal e dos princípios, que são os valores essenciais aplicáveis,
matéria particular desta ciência do direito.
Logo, segundo nosso entendimento, os princípios são uma das fontes do
Direito Processual Penal e não apenas as normas escritas.
O método de estudo do Direito Processual Penal é o chamado técnico-jurídico ou lógico-abstrato com alterações decorrentes da base principioló-
89
gica ora apresentada pelo presente trabalho, representado por três etapas,
quais sejam: a exegese; a dogmática e o sistema.
A exegese é representada pela interpretação que visa estabelecer o
conteúdo exato do significado da norma escrita.
A dogmática é o início da parte científica, representada pela adequação
do conteúdo do significado da norma escrita aos princípios gerais e particulares de uma ciência do direito, solucionando conflitos e lacunas aparentes.
O sistema é a classificação e a organização dos institutos entre si e em
relação à totalidade do ordenamento jurídico, sendo que no caso do direito
processual penal principiológico o sistema não é estanque, ou seja, fechado,
uma vez que sofre a influência de valores essenciais mesmo que aplicáveis a
outras ciências, decorrendo disso a sua interdisciplinaridade.
Em um mundo dinâmico a legitimidade social do Direito Processual Penal e a sua própria atualidade dependem da adequação com o valor social
essencial da sociedade a que ele serve, bem como não há como dissociá-lo
de outras ciências no ato de execução por conta da interdisciplinaridade
necessária. O que também abrange a consideração das relações humanas e
a consideração do ser consigo mesmo.
É exatamente na atuação do conhecimento específico no Direito Processual Penal e na sua relação direta com pessoas que surgiu a oportunidade
de repensar o sentido da aplicação da norma pura e como ela é destituída
de uma dimensão necessária para solucionar todos os casos concretos que
surgem no exercício profissional do operador do Direito, tendo sido necessária a introdução de balizas principiológicas para que o resultado atenda às
finalidades de equilíbrio, de respeito e de humanidade inerentes ao princípio internacional da dignidade da pessoa humana.
Pensar e executar o Direito Processual Penal é pensar o Direito como
um todo, com humanidade, com ética e o direito com outras ciências sejam
elas dogmáticas ou zetéticas151.
151
Tércio Sampaio Ferraz Júnior esclarece que o fenômeno jurídico pode ser analisado do ponto de vista de
uma investigação zetética ou dogmática. A investigação zetética possui como característica principal a
abertura para o questionamento dos objetos em todas as direções. Já a investigação dogmática considera determinadas premissas, em si e por si arbitrariamente, como vinculantes para o estudo. A pesquisa
dogmática parte de uma proibição de negação de um ponto de partida. O aspecto dogmático e zetético é
extremamente importante para entender como os princípios representam um ponto de partida para o fenômeno direito (In: FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. São Paulo: Atlas, 2003).
90
2.3 A Constituição Federal de 1988 como fonte de identificação dos
princípios
Uma Constituição ou qualquer carta legal à semelhança, segundo nosso
entendimento, não representa apenas uma ação isolada de poder de um
governo, tendo no seu centro sempre um pouco dos valores essenciais de
uma sociedade no momento de sua criação, mesmo no caso de governos não
democráticos.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 representa
um marco no desenvolvimento democrático do Brasil, com a preocupação de
ser explicitado o maior número possível de direitos e de garantias pessoais e
sociais, sem deixar de estabelecer que a ausência de previsão expressa não
impedirá o reconhecimento de outros direitos e garantias decorrentes do
regime político e de seus princípios (valores essenciais imanentes), ou dos
tratados internacionais de que a República Federativa do Brasil seja parte
(valores essenciais internacionais), além da criação de institutos novos como
foi o caso do habeas data e do mandado de injunção, para não existirem brechas na proteção de direitos e de garantias que não pudessem ser abarcados
pelos writs tradicionais do habeas corpus e do mandado de segurança, sendo
que este último ainda foi ampliado para comportar constitucionalmente a
postulação coletiva.
Os princípios são os valores essenciais de uma organização social e
antecedem a própria norma escrita, motivo pelo qual a Constituição Federal
do Brasil não criou os princípios, uma vez que eles existiam antes da sua
promulgação.
A Constituição da República Federativa do Brasil, em razão da preocupação do legislador constituinte ter explicitado o maior número possível de
princípios e os meios para serem descobertos os que permanecem imanentes
no sistema, é a melhor fonte para conhecê-los.
As considerações acima apresentadas levam a uma nova postura por
parte do estudioso do Direito, bem como uma mudança para reconhecer a
inconstitucionalidade de uma norma em razão dela violar os princípios da
sociedade captados pelo legislador constituinte e inseridos na Constituição
Federal do Brasil de forma expressa ou imanente. Anota-se que se a Constituição Brasileira fosse a fonte dos princípios, não teria razão de ser a preocupação de estabelecer mecanismo para o reconhecimento de princípios
imanentes como ocorre no § 2º do artigo 5º da Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988.
91
O ato de criação de uma Constituição Federal não é uma gênese isolada
e independente de um legislador constituinte, mas a materialização dos valores essenciais de uma organização social, residindo nisto o fato de a sociedade não deixar de existir, bem como as normas até então vigentes não deixarem de ser respeitadas no eventual lapso temporal que possa existir entre
uma carta constitucional revogada e outra em vias de alcançar a sua eficácia.
Também, não é a mera previsão constitucional de um tema que o tornará constitucional e legítimo do ponto de vista social, caso ele venha a violar
princípios expressos e o regime adotado pelo Estado, mais precisamente os
princípios explicitados no próprio texto constitucional e os imanentes decorrentes do regime democrático de direito adotado pelo Brasil.
A presente ressalva é fundamental como garantia do sistema democrático de direito, para que não haja emendas à Constituição Federal, tornando
“constitucional” aquilo que em essência é inconstitucional, como ocorreu na
Alemanha nacional socialista, já mencionado no capítulo anterior.
Embora sem a vinculação direta da segurança e estabilidade do texto
constitucional também a princípios que antecedem à própria carta constitucional, José Joaquim Gomes Canotilho aponta:
A constituição garante a sua estabilidade e conservação contra alterações aniquiladoras do seu núcleo essencial através de
cláusulas de irreversibilidade e de um processo “agravado”das
leis de revisão. Não se trata de defender, através destes mecanismos, o sentido e características fundamentais da constituição contra adaptações e mudanças necessárias, mas contra
a aniquilação, ruptura e eliminação do próprio ordenamento
constitucional, substancialmente caracterizado. A ideia de garantia contra os próprios órgãos do Estado justifica a constitucionalização quer do procedimento e limites de revisão quer
das situações de necessidade constitucional.152
2.4 Princípios e a flexibilização do Direito escrito no Processo Penal
O Direito Contemporâneo, em especial no âmbito do Direito Processual
Penal, precisa ser flexível para atender a todas as situações que surgem no
cotidiano da vida em sociedade, com especial preocupação de um poder
152
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 888-889.
92
geral de cautela instrumentando o Estado Juiz com meios para efetivar a
aplicação de uma justiça rápida, eficiente e segura, e não apenas segura em
excesso por força de um direito escrito estático.
O poder geral de cautela é inerente a um Estado Democrático de Direitos, com um Poder Judiciário autônomo, aplicando-se a todas as áreas do
Direito, em especial, no âmbito do Direito Processual.
Isso porque, não adianta um provimento judicial tardio e sem efeito
prático quando o objeto de análise e de ação jurisdicional já desapareceu.
A colheita antecipada de uma prova, a busca e apreensão de um bem
são exemplos práticos da antecipação da tutela jurisdicional no âmbito do
Direito Processual Penal. Anota-se que existe ainda a possibilidade de medidas inominadas e pontuais a um determinado processo que poderão ser
adotadas, tendo como base princípios e não o direito positivo.
Adiciona-se ao que foi dito, que as eventuais lacunas jurídicas do processo penal, decorrentes das peculiaridades dos casos concretos e das evoluções sociais, precisam ser supridas com mecanismos que possam acompanhar
tais evoluções, atendendo a uma demanda de uma crescente internacionalização do Direito.
O Direito Processual Penal Brasileiro deve ter a mesma eficiência buscada de forma continuada e com mostras mais concretas no Direito Processual Civil Pátrio, guardadas as peculiaridades de cada área.
Infelizmente, existe, por parte do legislador e do intérprete, o reflexo
do Direito Penal no Direito Processual Penal, dando praticamente a mesma
extensão de segurança e de engessamento, confundindo direito material
com direito processual, este último de necessidade prática de agilidade e
de eficiência, tão importantes quanto é a segurança jurídica para o acusado.
Não se questiona o princípio da reserva legal e a garantia que ele empresta ao direito material, mas nos insurgimos contra a sombra deste princípio sobre o Direito Processual Penal, impedindo maiores poderes cautelares
para os Juízes, o que não se reduz apenas a prisões e a mandados de busca
e de apreensão.
Isso ocorre pelo extremo apego ao direito positivado em detrimento
dos princípios que deveriam ser a real fonte de segurança jurídica, em especial no Brasil, onde estão, em regra, explicitados na Constituição da República Federativa do Brasil, bem como pelo fato de o Direito Brasileiro, no
âmbito criminal, ter contornos reativos e não preventivos.
Nesse ponto, apresenta-se oportuno mencionar que o Direito Penal e
o Direito Processual Penal no Brasil são de características reativas, ou seja,
93
as medidas cautelares são uma exceção no sistema e o próprio tratamento
penal das infrações penais demonstra que o legislador espera o resultado
mais grave para exercer uma reação mais efetiva contra os comportamentos
que representem riscos sociais, ao invés de exercer uma proteção jurídica
preventiva. Anota-se que no caso do direito material não existe uma intervenção progressiva, mas apenas uma ausência de preocupação adequada
com as condutas que podem dar ensejo a infrações penais com resultados
sociais mais graves, destacando-se o crime de ameaça previsto no artigo 147
do Código Penal do Brasil, conduta que deveria merecer um cuidado maior
por parte do legislador com relação à sua prevenção e punição para não
banalizar a sua gravidade, em especial quando ocorre a promessa de morte.
A proteção da vida é um dos bens mais importantes para a manutenção do homem em sociedade, motivo pelo qual diante da promessa de um
mal injusto e grave, a reação preventiva do Estado e mesmo a sanção a ser
aplicada já deveriam ter a relevância proporcional à importância do bem a
ser tutelado.
Neste ponto, embora a corrente filosófica que nos filiamos seja a funcionalista, ao contrário de Claus Roxin, que funda a intervenção do Estado
e a sua necessidade na política criminal153, defendemos um funcionalismo
sistêmico baseado em princípios e na necessidade de preservação da harmonia social.
Todavia, ocorreu um excepcional desvio da opção brasileira por um Direito Penal e um Direito Processual Penal reativo com o estabelecimento da
possibilidade da medida cautelar de prisão preventiva no crime de ameaça
quando praticado com características de violência doméstica contra as mulheres, mais precisamente através da Lei Federal nº 11.340/2006.
Embora correta a medida do ponto de vista da cautelaridade e da prevenção de fatos sociais mais graves, existe incoerência por parte do legislador que não alterou o preceito secundário do artigo 147 do Código Penal do
Brasil, criando o risco de uma prisão cautelar ser superior ao total da pena
em abstrato que poderia ser aplicada pelo crime de ameaça diante de uma
condenação, gerando incoerência no ordenamento jurídico pátrio.
Também pode ser citada a reforma ditada pela Lei Federal nº 12.403
de 4 de maio de 2011, a qual trouxe especial alteração ao título do Código
de Processo Penal Brasileiro (Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941)
que cuida das prisões e da liberdade provisória, acrescentando medidas cautelares alternativas ao encarceramento, mas ainda tímidas porque não foi
153
ROXIN, Claus. Estudos de direito penal. Tradução Luís Greco. 2. ed. São Paulo: Renovar, 2012. p. 68-75.
94
estabelecido um poder geral de cautela de medidas inominadas e que não
façam parte de um rol específico a ser aplicado pelos Órgãos do Poder Judiciário, gerando a possibilidade de discussões sobre sua existência no âmbito
do Direito Processual Penal do Brasil.
A modificação inovou o antigo texto do Código de Processo Penal Brasileiro, ao explicitar princípios relacionados com tais medidas no novo texto
do artigo 282, previsto no citado diploma, base para uma aplicação principiológica das medidas cautelares e, como se propõe neste trabalho, permitindo até a analogia para abarcar outras medidas não previstas expressamente, o que fundamenta o nosso entendimento no sentido de ser possível
a adoção de medidas não especificadas desde que em conformidade com os
princípios abarcados pelo Sistema Jurídico Brasileiro.
O Direito atual precisa ser preventivo e efetivo, em especial no tocante
ao processo penal, o que é alcançado com a aplicação de princípios e não
apenas com o direito positivado.
Uma migração necessária do ordenamento jurídico para a necessidade
da realidade social, com especial preocupação do preventivo e do coletivo,
passa pela consideração de novas figuras criminais que previnam crimes que
possuem resultados mais graves e o tratamento mais severo de condutas que
já existem, como é o caso do crime de ameaça, bem como um efetivo poder
de cautela por parte dos magistrados para a preservação não só das provas e
dos seus meios, mas do próprio objeto jurídico de proteção do Direito Penal,
separando o princípio da reserva legal do direito material do direito processual com sua cautelaridade intrínseca.
O Direito Principiológico não suprime direitos e garantias individuais,
os quais permanecem intactos, bem como não propõe a defesa de exceções
ao princípio da isonomia e da ampla defesa no processo penal, criando duas
figuras díspares de réus com tratamento legal diverso, como ocorre no chamado direito penal do inimigo154 e na legítima defesa preventiva155, a segunda utilizada pelos Estados Unidos da América do Norte para justificar prisões
de supostos terroristas, apenas estende a análise para o coletivo no conflito
de interesses e para o preventivo no tocante à aplicação da analogia cautelar fundada em princípios, flexibilizando o tradicional apego ao excessivo
positivismo, aproximando a norma e sua interpretação do valor essencial da
sociedade, fazendo com que a norma e sua aplicação possuam legitimidade
social e, com isto, validade efetiva.
JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito penal do inimigo, noções e críticas. Tradução André Luís
Callegari e Nereu José Goacomolli. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
155
BYERS, Michael. A lei da guerra. Tradução Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 71.
154
95
Inclusive, tira a especial importância da pessoa do legislador que estabelece as normas escritas, a qual passa a ser dividida com os Juízes que
aplicam as normas escritas e resolvem os casos práticos, uma regra no sistema da common law que está passando para o sistema do direito continental,
por força da progressiva integração do conhecimento e das sociedades, decorrente da internacionalização da comunicação, do comércio e da própria
criminalidade.
2.5 Princípios expressos e imanentes
Os princípios são os valores sociais essenciais de uma organização social.
Considerando que o Sistema Jurídico Brasileiro é baseado em um direito eminentemente escrito e hierarquizado a partir de uma carta constitucional com preocupação principiológica, tendência que também se verifica em
outros países, os princípios, valores essenciais de uma organização social,
acabam por estar explicitados na norma constitucional.
Todavia, como já foi anteriormente exposto, os princípios não se esgotam em um rol taxativo explicitado na Constituição Federal, uma vez que
existem outros que são decorrentes do próprio sistema da sociedade e do
modelo do Estado adotado.
Nesse ponto, apresenta-se oportuno discutir o que seria um sistema.
A ideia de sistema deriva da noção de harmonia emprestada da música,
mais precisamente das sonoridades resultantes da sobreposição de diferentes notas156.
Na harmonia musical tradicional esses resultados são separados em
consonantes ou dissonantes, permitindo o estabelecimento de combinações
e repulsão.
O Sistema Jurídico representa a harmonia entre as diversas normas jurídicas que compõem o ordenamento jurídico de uma sociedade, funcionando
os princípios como elementos balizadores do sistema, permitindo adequação
entre as normas e entre as normas e a ética social.
Os princípios são expressos quando o seu conteúdo é explicitado no
texto constitucional, ao passo que serão imanentes quando o conhecimento
deles depender de uma operação de interpretação do sistema jurídico, do
Estado e da própria sociedade.
156
FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. São Paulo: Atlas, 2003. p. 66.
96
Oportuno mencionar que à exceção do supraprincípio da dignidade da
pessoa humana, reconhecido internacionalmente como tal, um princípio não
é mais importante do que o outro, seja ele expresso ou imanente, uma vez
que todos são valores essenciais da organização social, motivo pelo qual não
existe a possibilidade de um real conflito de princípios.
As normas jurídicas construídas conforme um modelo de elaboração e
tendo em vista não só o estabelecimento de direitos e de obrigações aos
membros de uma sociedade, mas derivadas de um procedimento presidido
por quem as pode estabelecer, declará-las legais, bem como modificar ou
abolir o seu conteúdo, são suscetíveis de conflitos no ato de exegese do operador do Direito. A solução dos conflitos será dada pela análise da validade de
uma perante a outra em face da aplicação dos princípios, decorrendo disso a
função balizadora do sistema jurídico que os princípios exercem, bem como
a afirmação de inexistir em um sistema jurídico um real conflito de normas.
Inclusive, dentro de uma ideia de sistema jurídico positivista fechado,
fica difícil poder entender a função dos princípios porque eles estariam dentro do sistema representado por normas escritas e, em razão disto, não o
poderiam balizar.
Porém, os princípios não estão restritos à norma escrita e posta, mas a
antecedem. Representam uma das fontes de sua elaboração, o que permite
a sua função balizadora.
A existência de um conflito aparente entre princípios é solucionada
pela interpretação sistemática e o apreço pelo coletivo sobre o particular,
tendência natural de um Estado Democrático de Direito, dentro de uma
ideia de proporcionalidade. Observa-se que a própria existência de um núcleo intransponível de direitos e de garantias é um valor essencial de um
Estado que busca ser democrático e de direito, independentemente de ser
expresso na carta magna, sendo este o motivo pelo qual o chamado núcleo
duro da carta constitucional brasileira, conhecido como cláusulas pétreas,
não pode ser relativizado, sob pena de serem comprometidas a própria segurança e credibilidade do sistema jurídico, não obstante posicionamentos
em contrário já tenham sido adotados pela Corte Suprema em data de triste
lembrança157, bem como legisladores que defendem que a emenda consti-
157
O Supremo Tribunal Federal, no dia 18 de agosto de 2004, por maioria de sete votos de onze, considerou
constitucional a cobrança de inativos e pensionistas instituída no artigo 4º da Emenda Constitucional (EC)
41/03, ferindo com isso cláusula pétrea da Constituição Federal de 1988, mais precisamente o § 4º do
artigo 60 da Constituição Federal de 1988, uma vez que considerou constitucional a instituição de cobrança previdenciária de aposentados, mesmo que com alíquota diferenciada, atuando de forma retroativa
97
tucional, por si só, permite a modificação de princípios, tornando constitucional o que é essencialmente contrário àquilo que a constituição defende
como um todo.
Ao contrário do que alguns tentam sustentar, a Constituição da República Federativa do Brasil é rígida na proteção de direitos e de garantias, possuindo limitações constitucionais ao poder de reformar através de emendas.
Conforme Alexandre de Morais observa:
A Constituição Federal traz duas grandes espécies de limitações
ao Poder de reformá-la, as limitações expressas e implícitas.
As limitações expressamente previstas no texto constitucional,
por sua vez, subdividem-se em três subespécies: circunstanciais, materiais e formais; enquanto os limites implícitos do
poder de reforma, que são os que derivam, no dizer de Nelson de Souza Sampaio, dos limites expressos, dividem-se em
dois grupos: as normas sobre o titular do poder constituinte
reformador e as disposições relativas à eventual supressão das
limitações expressas.158
As chamadas cláusulas pétreas são as limitações materiais previstas
expressamente no texto constitucional que sustentam a intangibilidade de
valores essenciais ao Regime Democrático Brasileiro, baseados em princípios
explicitados no texto constitucional ou decorrentes do próprio regime adotado pelo Brasil.
2.6 Interpretação no Direito Processual Penal Principiológico
O Direito Principiológico possui o aspecto mais importante de orientar o
poder do Estado, bem como fornece base para a interpretação das normas,
complementação e a solução dos casos de aparente lacuna legal.
e contrária ao direito adquirido dos aposentados.Votaram pela cobrança os ministros Cezar Peluso, Eros
Grau, Gilmar Mendes, Carlos Velloso, Joaquim Barbosa, Sepúlveda Pertence e Nelson Jobim. Já a ministra-relatora Ellen Gracie e os ministros Carlos Ayres Britto, Marco Aurélio e Celso de Mello votaram contra
a cobrança. Os ministros que decidiram pela constitucionalidade da cobrança seguiram o voto do ministro
Cezar Peluso, que fez ressalva quanto à instituição de alíquotas diferentes (incisos I e II do parágrafo único
do artigo 4º da EC 41/03) para a contribuição de servidores dos Estados, Municípios e Distrito Federal
(50%) e de servidores da União (60%). Para ele, o tratamento diferenciado é inconstitucional por ferir o
princípio da igualdade, esquecendo que não existe igualdade quando pessoas estão em situação material
e legalmente desigual. Também não foi considerado o risco do precedente para a própria credibilidade do
Brasil perante os outros países, além da possibilidade de outras emendas que possam restringir ou extinguir outros direitos e garantias previstos na Constituição Federal do Brasil.
158
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 637.
98
Retomando o que já foi citado em item anterior a respeito do processo
penal como ciência, tradicionalmente, a interpretação de uma norma pode
ser dividida entre a fonte de sua origem, os meios de sua execução e os
seus resultados.
Com relação à fonte, a interpretação poderá ser autêntica quando realizada por quem tem o poder de dizer o direito, no caso os órgãos do Poder
Judiciário competentes; e doutrinária quando realizada pelos estudiosos da
matéria e pelo próprio legislador dentro de uma conceituação mais moderna, uma vez que não se pode admitir a vontade de um legislador dentro de um processo democrático. Anota-se que as explicações de uma lei
que podem anteceder o seu texto representam uma forma de interpretação
doutrinária, sendo impróprio para uma democracia que o Estado Legislador
explicite o sentido e o alcance de cada instituto contido na norma, além
do que violaria a independência dos poderes ao submeter ao Estado Juiz o
controle dos seus julgados.
Apresenta-se oportuno mencionar que não obstante a chamada súmula vinculante ser uma realidade no Poder Judiciário do Brasil, fundada em
razões de ordem prática, não deixa de ser um controle perigoso dentro do
Poder Judiciário, além do que representa um risco de afastamento dos julgados do valor essencial da sociedade, mormente quando em uma súmula
vinculante pode se ir além de dizer o direito para legislar.
Exemplo do que se está afirmando ocorreu com a Súmula Vinculante
nº 11 do Supremo Tribunal Federal do Brasil, no tocante ao uso de algemas
que, além de regulamentar a utilização do dispositivo, estabeleceu consequências jurídicas para o descumprimento, fazendo as vezes de legislador,
conforme texto abaixo transcrito.
Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou
alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da
prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da
responsabilidade civil do Estado.159
Já com relação aos meios, ela poderá ser gramatical quando são observadas as regras de linguística; lógica ou racional quando a norma é exa159
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula Vinculante nº 11. In: Código penal; código de processo penal,
constituição federal; legislação penal e processual penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 1173.
99
minada no seu conjunto; ontológica quando a norma é analisada pela sua
razão de existir; histórica quando se investigam as razões que provocaram
a edição da norma; sistemática quando se compara a norma com as outras
existentes e sociológica ou teleológica quando se adapta o sentido ou a finalidade da norma às novas exigências sociais.
No tocante aos resultados, a interpretação da norma poderá ser declarativa quando a letra da lei corresponda ao exato pensamento do legislador;
extensiva quando o legislador acabou por dizer menos do que pretendia,
sendo necessária a ampliação da norma para outros fatos não previstos inicialmente e, por força do próprio sistema, e restritiva quando o legislador
acabou por dizer mais do que deveria, sendo necessária a restrição interpretativa para adequação ao próprio sistema jurídico vigente.
O Direito Principiológico possui a sua base nos princípios de uma sociedade que, no caso do Brasil, estão explicitados e imanentes na Constituição Federal, que nada mais são do que os valores essenciais da sociedade brasileira.
O legislador, no ato da criação de uma norma, deve buscar observar os
valores sociais, para que esta norma seja legítima do ponto de vista social.
Porém, precisa observar os princípios da sociedade brasileira para que
a norma seja constitucional.
A diferença fundamental entre um mero valor social para um valor
social essencial é a importância e permanência deste último na organização
social dentro da sua historicidade, representando o conjunto de princípios
aceitos um ponto de identificação daquele grupo social ou sociedade.
Como já foi dito, no Brasil, a não observância dos princípios no ato
de criação de uma norma levará à sua declaração de inconstitucionalidade, seja ela indiretamente, através da análise da sua aplicação a um caso
concreto por qualquer órgão do Poder Judiciário competente, ou abstrata
e diretamente pelo Supremo Tribunal Federal, através da declaração da inconstitucionalidade da norma.
A interpretação principiológica da norma posta é jurisprudencial, ou
seja, autêntica porque efetivada através do órgão do Poder Judiciário com
competência, sendo que a norma constitucional por ter sido criada com observância dos princípios, poderá ainda ter a sua interpretação ou aplicação
maculada pela inconstitucionalidade caso o órgão do Poder Judiciário se
desvie dos princípios que complementam a efetivação da norma no plano
material. Observa-se que a interpretação doutrinária, considerando esta
a que deriva do legislador na introdução de uma norma ou dos estudiosos
do direito, sofre com a influência de interesses, que podem não ser os da
sociedade, e com a estagnação do momento da sua realização, não permi-
100
tindo a evolução e a flexibilidade próprias dos valores essenciais que são os
princípios.
A interpretação principiológica, através da jurisprudência, é dinâmica
e, em regra, isenta.
Além disso, tem como finalidade última o bem decorrente dos princípios expressos e imanentes previstos na Constituição que nada mais são do
que os valores essenciais da sociedade. Também, representa a última palavra do Estado Juiz e com isto possui o poder de coerção no seu resultado, ao
contrário das demais, que são meramente indicativas.
No tocante aos meios da sua realização, a interpretação principiológica
é teleológica, uma vez que busca adaptar o sentido ou a finalidade da norma
às novas exigências sociais decorrentes do processo progressivo de internacionalização das sociedades.
O titular da interpretação principiológica, em essência, é o Poder Judiciário, através dos seus órgãos, formando a jurisprudência principiológica
que não será imutável, uma vez que acompanhará as modificações sociais e
a própria precisão do momento, tendo como limite os princípios essenciais
explicitados na Constituição Federal ou ainda imanentes e decorrentes do
Estado Democrático de Direito.
Os instrumentais utilizados para a composição das aparentes lacunas
legais são a jurisprudência, a analogia, os costumes e a equidade, todos
fundados nos princípios que embasam a própria Constituição e o regime de
governo adotado no país.
2.7 Direito Processual Penal Principiológico e a segurança jurídica
Não obstante o Direito Principiológico ser uma necessidade em um mundo contemporâneo com problemas e riscos constantes para a preservação
das organizações sociais, Estados e países, pelos motivos já apresentados, a
grande crítica esperada é o medo da relativização do Sistema Jurídico no ato
de serem criadas as normas e da sua aplicação, preocupação já apresentada
pelos positivistas extremados com relação ao jusnaturalismo, destacando-se
Norberto Bobbio.
Em uma só hipótese poderíamos aceitar reconhecer como direito unicamente o que é justo: se a justiça fosse uma verdade
evidente ou pelo menos demonstrável como uma verdade matemática, de modo que nenhum homem pudesse ter dúvidas
101
sobre o que é justo ou injusto. E esta, na realidade, foi sempre
a pretensão do jusnaturalismo nas suas várias fases históricas.
Com uma outra definição, poderia se dizer que a teoria do direito natural é aquela que se considera capaz de estabelecer o
que é justo e o que é injusto de modo universalmente válido.
Mas esta pretensão tem fundamento? A julgar pelas controvérsias entre os vários seguidores do direito natural sobre o que
há de ser considerado justo ou injusto, a julgar pelo fato de
que o que era natural para uns não era para outros, deveríamos
responder que não.160
O direito principiológico não se confunde com o jus naturalismo medieval, não é abstrato ou subjetivo como pode parecer em um primeiro
momento.
Isso porque ele possui regras de aplicação e de contenção que representam o próprio limite do poder de comando da organização social.
Torna-se necessário consignar ser muito pobre a dicotomia entre naturalismo e positivismo, ou seja, tudo aquilo diverso do positivismo é naturalismo, bem como não se pode classificar o positivismo apenas pela dissociação entre direito e moral.
Embora Hans Kelsen tenha estabelecido a possibilidade de qualquer
conteúdo ser direito161, tal fórmula não representa todas as vertentes do
positivismo e do pós-positivismo.
Também, entender que o direito precisa estar em conexão com a moral, representada pelos valores sociais, tendo os princípios ou valores essenciais a função balizadora do sistema, não pode ser tido como uma expressão
de jusnaturalismo apenas.
Oportuna a posição de Javier Hervada:
Ao lado dos direitos naturais e dos direitos positivos, existem
os direitos mistos; há, com efeito, direitos que são em parte naturais e em parte positivos. Dentro dos direitos mistos,
uns são direitos com título natural e medida positiva (p. ex.
o direito de livre trânsito, que pode estar limitado por lei positiva); outros têm um título positivo e uma medida natural
160
161
BOBBIO, Noberto. Teoria da norma jurídica. Tradução. Fernando Pavan Baptista e Ariani Bueno Sudatti.
São Paulo: Edipro, 2001. p. 56.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
p. 221.
102
(por exemplo, provém de eleição ou convenção a instauração
do sistema democrático puro numa colectividade, mas uma vez
eleito esse sistema, o direito de voto – cada membro um voto
– fica postulado pela própria natureza do regime eleito). Há,
além disso, direitos em que o título ou a medida – ou os dois –
são em parte naturais e em parte positivos.
De facto, dentro de um sistema jurídico vigente, o natural e
o positivo devem estar unidos, conformando conjuntamente
os diferentes direitos, de modo que a determinação de cada
um deles requer a utilização simultânea de critérios naturais e
positivos.162
O Direito pelo Direito acaba se impondo pela força e não pela aceitação
da organização social, o que poderá representar um antidireito conforme o
grau de resistência social e a necessidade da intensidade da força para a
sua aceitação e cumprimento, dentro de um ponto de vista sociológico no
tocante à sua legitimidade como instrumento de união e integração social.
Inclusive, o Direito destituído de conexão com a moral, representada
esta pelo fato valorado historicamente pela organização social, bem como
em desrespeito aos princípios, leva ao aparecimento de normas inconstitucionais. Anota-se que os valores essenciais ou princípios encontram-se, em
regra, explicitados em uma Carta Magna, a Constituição da República Federativa do Brasil, aparecendo expressamente ou de forma imanente, esta
última ainda com permissão na própria carta constitucional brasileira, ou
seja, não são meramente subjetivos.
O Direito Principiológico não representa a extinção do direito escrito,
confundindo-se com um direito consuetudinário, mas uma justa medida entre os sistemas dos codices e dos costumes, mais precisamente um direito
misto conforme já acima explicado por Javier Hervada, dentro da necessária
flexibilização decorrente do mundo contemporâneo no ato de criação de
normas e de sua interpretação dentro de um processo de globalização e de
interdisciplinaridade.
No âmbito da chamada common law, o Direito Consuetudinário possui uma base nos valores essenciais da sociedade, formado a partir de padrões sociais de comportamento, sendo aplicado há séculos sem o comprometimento de sua eficácia e segurança. Observa-se que, ao contrário do
que muitos pensam, o Direito Consuetudinário moderno não abre mão da
162
HERVADA, Javier. Crítica introdutória ao direito natural. Tradução Joana Ferreira da Silva. Porto: RÉS,
1999. p. 74-75.
103
existência de normas escritas em matérias mais complexas, como também
não é possível a existência de normas para todas as hipóteses de conflitos de
interesses na vida em sociedade, do que decorre a necessidade de um sistema misto que preveja soluções para as eventuais lacunas aparentes do Direito Positivo e uma possibilidade de autoregulamentação diante das adaptações necessárias decorrentes de uma internacionalização das sociedades
por força da globalização, em especial no âmbito do direito processual, que
precisa ser célere e eficiente.
Logo, o Direito Principiológico é sistemático, bem como baseado em
princípios expressos e imanentes em textos supralegais, no caso é a Constituição da República Federativa do Brasil, o que afasta o risco da subjetividade e com isto a insegurança jurídica.
Um exemplo disso, no âmbito do Direito Processual Penal, encontra-se
na chamada prisão cautelar.
Embora não exista um prazo máximo fixado expressamente pelo legislador para a manutenção da prisão cautelar, com base no princípio da
razoabilidade do tempo de prisão cautelar, somado ao princípio da dignidade
da pessoa humana, os Tribunais pátrios estabeleceram uma interpretação
principiológica do que seja o espaço temporal razoável, o qual não pode
ultrapassar um limite máximo, normalmente, inferior a 365 dias e nunca
superior ao prognóstico de possibilidade de tempo de prisão em um eventual
provimento condenatório de uma pena privativa de liberdade, sem se olvidar da correspondente prescrição da pretensão punitiva e executória de tal
prognóstico de pena em concreto.
0246276-28.2011.8.26.0000 habeas corpus
Relator(a): Paulo Rossi Comarca: Sumaré Órgão julgador: 2ª Câmara de Direito Criminal Data do julgamento: 05/12/2011 Data de registro: 09/12/2011 Outros números: 2462762820118260000 Ementa: a constituir novo defensor para apresentação de memoriais Excesso de Prazo Reconhecido Paciente preso há aproximadamente 01 ano e 04 meses, sem que o feito tenha sido
sentenciado. O princípio da razoabilidade não pode ser invocado para justificar a evidente ineficiência do Estado. Ordem
concedida.163
163
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Habeas corpus, Rel. Paulo Rossi, Processo nº 024627628.2011.8.26.0000. 2011. Disponível em: <http://www.tjsp.jus.br\>.
104
Com efeito, as decisões com base nos princípios, os quais estão expressos ou imanentes na Constituição Federal ou diploma equivalente, não
são meramente subjetivas, decorrendo disto a segurança jurídica, o que se
observa na questão acima colocada da prisão cautelar, que limita o maior
bem do homem depois da vida.
O mesmo se diga do Poder Geral de Cautela do Juiz, ainda tímido no
processo penal conforme já foi anteriormente exposto, mas de amplo uso no
Direito Processual Civil, permitindo medidas cautelares inominadas.
Os princípios representam segurança semelhante às normas escritas,
mormente quando existe um Poder Judiciário independente.
2.8 Aplicação do Direito Processual Penal Principiológico
O Direito Principiológico possui aplicação em todas as áreas das ciências dogmáticas do Direito, no ato de criação de normas escritas, no momento de exegese de casos práticos pelo Poder Judiciário e sempre que exista
uma aparente lacuna no ordenamento jurídico.
A questão de fundo na discussão de uma norma jurídica e da sua validade efetiva, o que difere da validade formal, está na adequação da norma
aos valores da sociedade para a qual ela se destina, ponto de moral social
da norma, derivando de tal constatação a existência de normas legítimas,
que são mais bem aceitas e cumpridas do que outras que acabam deixando
de ter validade efetiva e natural.
Inclusive, uma norma contrária aos princípios que representam os valores sociais mais importantes é norma inconstitucional.
A maior expressão da necessidade do Direito Principiológico mostra-se
quando da precisão de soluções interpretativas a casos práticos dentro de
uma ausência de normas ou inadequação das existentes por força da modificação de valores sociais e da existência de situações novas não abarcadas
pela legislação escrita, necessitando uma composição mista entre o direito
positivo e o direito natural.
Os instrumentais mais comuns da aplicação do Direito Principiológico
às lacunas do direito positivado são a analogia, os costumes e até mesmo a
equidade, sendo que no Brasil estes instrumentais já estão presentes no próprio ordenamento jurídico junto ao artigo 4º da Lei de Introdução ao Código
Civil, e são de aplicação geral a todo o Sistema Jurídico Brasileiro. Anota-se
que os instrumentais estão sujeitos à obediência a princípios explicitados e
imanentes na Constituição da República Federativa do Brasil, o que retira o
105
relativismo do direito princípiológico, fator de crítica comum ao chamado
jusnaturalismo clássico.
O Direito Principiológico nas ciências criminais, em especial no âmbito
do Direito Penal, permite a solução prática de casos que jamais uma visão
positivista extremada permitiria, como ocorre na aplicação do instituto penal do perdão judicial em situações de crimes dolosos em que não há qualquer sentido a aplicação de uma sanção, haja vista que a conduta do agente
já o atingiu de tal forma que aplicar uma punição representaria um mero
exercício de vingança, postura humanitária inadequada para um Estado Democrático de Direito.
Suponha-se o caso de uma jovem imputável que realizou um autoaborto, conduta proibida no Brasil e, em consequência de seus atos, acabou por
sofrer uma infecção, gerando risco de vida e a perda de todo o aparelho
reprodutor feminino, tornando-a irremediavelmente estéril.
Some-se ao primeiro exemplo, o caso real envolvendo um rapaz com
cerca de vinte anos de idade que após participar de um crime grave de roubo em concurso de agentes e à mão armada, acaba, depois uma resistência
armada contra a polícia, tetraplégico para o resto da sua vida e relegado a
uma vida semivegetativa em cima de uma cama.
Embora ambas as condutas representem ilícitos criminais, o fato de a
pena não possuir apenas uma finalidade retributiva pura como outrora se
defendia, visando ainda, em um Estado Democrático de Direito, prevenir
novas infrações penais e reeducar o agente na busca da construção de uma
sociedade justa, igualitária e humanista, princípios do sistema jurídico pátrio, não existe qualquer sentido em se punir com sanções penais as duas
pessoas acima citadas. Observa-se que mesmo que fosse adotada a ideia de
mera retribuição pelo mal praticado, posição já superada doutrinariamente,
ainda assim, não existiria nenhuma pena no ordenamento jurídico brasileiro
que pudesse ser mais aflitiva do que a própria consequência dos atos praticados pelos dois agentes e eternalizados por toda a existência deles.
Inclusive, no segundo caso, mesmo a pena de morte seria um alento e
não fonte de sofrimento maior para o agente e seus familiares, ou seja, nem
do ponto de vista da retribuição pura e da finalidade absurda de vingança
social existiria expiação mais tormentosa do que a que já está sendo experimentada pelo agente.
Infelizmente, por não ser possível, à época, o pensamento jurídico
transcender à norma escrita e ainda sem a percepção principiológica necessária de que não cabia pena a ser aplicada no caso do rapaz tetraplégico,
a sentença a ele atribuída foi de nove anos de pena privativa de liberdade.
106
A decisão foi escorreita do ponto de vista material da aplicação do
Direito Penal, uma vez que sequer houve recurso por parte da defesa constituída. Porém, em face de uma sensibilidade humanitária principiológica,
baseada no supraprincípio da dignidade da pessoa humana, combinado com
os princípios da proporcionalidade e da necessidade, não se mostrava satisfatória dentro de uma finalidade maior de Justiça.
A aplicação do Direito Principiológico nos casos apresentados, em que
não há a previsão expressa do instituto do perdão judicial para crimes dolosos, mediante a aplicação da chamada analogia in bonan partem, representa a adequação do sistema jurídico penal aos princípios da dignidade
da pessoa humana, proporcionalidade, necessidade e a sua humanização,
o que não é vedado na lei infraconstitucional e na própria Constituição da
República Federativa do Brasil.
O próprio processo, em especial o penal, é plataforma indispensável de
aplicação do Direito Principiológico, bastando para tal constatação a consideração da polêmica discussão doutrinária quanto à aceitação ou não de
provas ilícitas em benefício da defesa.
A aceitação das provas ilícitas em benefício da defesa é sempre um
ponto tormentoso e que enseja diversos debates profissionais e acadêmicos.
Observamos que existem várias respostas diferentes, dependendo da
perspectiva de análise, seja ela do ponto de vista pragmático, filosófico,
positivista, funcionalista e outros.
Sem enveredar para o caminho da polêmica que o assunto leva e à sua
consequente profundidade, o que não é o objeto deste trabalho, o fato é
que existe a necessidade de uma composição interdisciplinar no caso, uma
vez que a visão fragmentada não consegue solucionar o problema diante da
mera apresentação de perspectivas diversas, que acabam por não produzir
um resultado definitivo.
A resposta à pergunta sobre a validade da prova ilícita em benefício
da defesa depende de uma interdisciplinaridade que só pode ser dada pelo
Direito Processual Penal Principiológico.
O Direito Processual Penal Principiológico permite a composição de
princípios e a solução do impasse através do fim maior da busca pelo verdadeiro e justo, ou seja, se houver uma demonstração de que alguém é
inocente em relação a uma imputação de infração penal, mesmo que a
prova seja ilícita, ela deve ser utilizada porque o interesse social maior
de evitar uma condenação errada e injusta se sobrepõe à formalidade da
prova e à própria norma escrita, que precisa ter a sua interpretação em
107
conjunto com os demais princípios explicitados e imanentes no texto da
Constituição da República Federativa do Brasil.
Sensíveis à necessidade de princípios balizarem a formação e a aplicação das normas escritas, os Tribunais pátrios aplicam o Direito Processual
Penal Principiológico, mesmo de forma intuitiva, como no caso do instituto
jurídico do habeas corpus, quando dão a ele uma extensão maior do que
a do próprio texto constitucional, em situações em que existem recursos
ou ação própria, mas seriam de resultado demorado para surtir os efeitos
necessários em benefício da pessoa eventualmente presa em uma situação
incorreta diante da desconsideração de provas no julgamento, quantidade
de pena superior ao aceitável, regime prisional indevido e outras, como a
ementa de julgamento abaixo transcrita.
HABEAS CORPUS. PENAL. ROUBO CIRCUNSTANCIADO PELO CONCURSO DE AGENTES
E EMPREGO DE ARMA DE FOGO. RECONHECIMENTO DE DUAS
CAUSAS DE AUMENTO DE PENA. ACRÉSCIMO FIXADO EM 3/8. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. ILEGALIDADE. ORDEM CONCEDIDA. REGIME PRISIONAL. PENA-BASE FIXADA NO MÍNIMO LEGAL.
INEXISTÊNCIA DE CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS DESFAVORÁVEIS.
REGIME SEMIABERTO. ART. 33, § 2.º, ALÍNEA B, E § 3.ºDO CÓDIGO PENAL. ORDEM CONCEDIDA, DE OFÍCIO.
1. A presença de mais de uma majorante no crime de roubo não
é causa obrigatória de aumento da reprimenda em patamar
acima do mínimo previsto, a menos que o magistrado, considerando as peculiaridades do caso concreto, constate a existência
de circunstâncias que indiquem a necessidade da exasperação,
o que não ocorreu na espécie. Incidência da Súmula n.º 443
deste Tribunal.
2. Fixada a pena-base no mínimo legal, porque reconhecidas
as circunstâncias judiciais favoráveis ao réu primário e de bons
antecedentes, não é possível infligir-lhe regime prisional mais
gravoso apenas com base na gravidade genérica do delito. Inteligência do art. 33, §§ 2.º e 3.º, c.c. o art. 59, ambos do Código
Penal. Aplicação do enunciado n.º 440 da Súmula desta Corte.
3. Ordem concedida para reformar o acórdão impugnado na
parte relativa à dosimetria da pena e, de ofício, corrigir o regime prisional, nos termos explicitados no voto.164
164
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas corpus, Rel. Laurita Vaz, HC n° 217905/SP. Disponível em:
<http://www.stj.jus.br\>.
108
A aplicação da equidade como princípio da chamada Lei dos Juizados
Especiais Cíveis, explicitada no artigo 6º da Lei Federal nº 9.099/95, bem
como a possibilidade da desconsideração da personalidade jurídica para
atingir a pessoa dos sócios, hoje inserida no Código de Defesa do Consumidor
e no Código Civil, são de origem principiológica e visam adequar as decisões
à realidade social que o senso de justiça impõe ao caso concreto, acabando
o direito escrito por ser balizado por princípios.
Dentro da ideia de demonstrar a necessidade de aplicação do chamado
Direito Principiológico no Direito Constitucional e no Direito Processual Penal, ainda pode ser destacada a discussão acadêmica quanto à constitucionalidade do julgamento direto pelo Supremo Tribunal Federal nos casos da
chamada competência por prerrogativa de função, o que violaria a possibilidade da aplicação do princípio do duplo grau de jurisdição, como ocorrido
em data recente envolvendo pessoas ligadas à cúpula do Poder Executivo
Federal e ao Partido dos Trabalhadores na Ação Penal Originária número 470
do Supremo Tribunal Federal.
A questão é acadêmica, uma vez que há previsão constitucional expressa no artigo 105 da Constituição da República Federativa do Brasil, não
sendo aceita a tese, pela doutrina e pela jurisprudência pátrias dominantes,
da existência de normas constitucionais inconstitucionais já apresentada anteriormente165, como forma de preservação do sistema. Porém, não se pode
olvidar que a existência do foro privilegiado gera o problema do réu não
ter acesso à revisão do julgado por um outro órgão independente do Poder
Judiciário, mesmo que fosse um conhecimento parcial envolvendo apenas a
matéria constitucional.
Acreditamos que essa questão será discutida no futuro, após os efeitos
finais do julgamento que envolveu a Ação Penal Originária 470 do Supremo Tribunal Federal, conhecido popularmente como o julgamento do “Mensalão”.
Ao longo do estudo desenvolvido, percebe-se que o Direito Principiológico é universal nas ciências dogmáticas do Direito, representando fonte de
adequação do ordenamento jurídico escrito aos valores sociais e permitindo
a interdisciplinaridade dos saberes, das pessoas e da pessoa consigo mesma.
165
BACHOF, Otto. Normas constitucionais inconstitucionais? Tradução e nota prévia de José Manuel M. Cardoso da Costa. Coimbra: Almedina, 2001.
109
2.9 Natureza jurídica do Direito Processual Penal Principiológico
Conforme já foi exposto anteriormente, existe uma aparente necessidade de separar qualquer manifestação quanto à natureza jurídica das
normas em duas escolas, mais precisamente a do direito natural ou do jusnaturalismo e a do direito positivo, reduzindo o conhecimento humano a
uma bipolaridade.
O Direito Principiológico, embora possua apreço com a tradição e os
costumes, não se confunde com um direito natural tradicional porque não é
metafísico, não é ainda universal e porque pode variar no tempo, decorrendo disto a sua historicidade.
Os princípios são decorrentes das experiências da vida em sociedade e
dos padrões sociais adotados, não sendo anteriores à sua existência.
Também, embora com a chamada globalização haja uma tendência de
existirem princípios universais, como é o caso da dignidade da pessoa humana, enquanto as sociedades forem díspares, existirão valores essenciais
diversos.
Os valores essenciais de determinadas organizações sociais podem estar relacionados com a religião, não porque derivam da vontade suprema
de um Deus, mas porque aquela sociedade adotou uma religiosidade como
padrão de vida em sociedade.
Os princípios podem mudar no tempo, mudando com isto as características da organização social em relação à qual eles representam os valores
essenciais.
Logo, o Direito Principiológico não é uma forma nova de ser chamado
o direito natural.
Por outro lado, não está desvinculado da moral e não é qualquer conteúdo que pode ser uma norma legítima do ponto de vista social e, com isto,
estar em consonância com os valores essenciais de uma organização social.
Em face disso, também não se confunde com o Positivismo Jurídico, em
especial o extremado.
O Direito Principiológico é de natureza mista, decorrente da aplicação
de princípios que balizam o ordenamento jurídico, permitindo a relação entre norma escrita e valor social essencial, representando este último a ética
social, razão pela qual os princípios não decorrem da vontade do Estado,
mas da vida em sociedade valorada e dentro de uma historicidade, aproximando o Direito Principiológico do direito consuetudinário e o afastando do
positivismo tradicional.
110
O Direito Principiológico é uma nova visão do Direito, dentro de uma
perspectiva de atualidade, modernidade, legitimidade social e interdisciplinaridade, representando uma justa medida entre o Direito Natural e o
Direito Positivo, sendo as suas características mais próximas deste último
porque não é subjetivo e metafísico, é decorrente da ação do homem, mas
não se confundindo com ele.
O chamado Direito Principiológico está em sintonia com a busca da
funcionalidade ética do Direito, em especial no Direito Processual Penal,
visando à uma instrumentalidade adequada para atender às necessidades
sociais atuais decorrentes das transformações trazidas com as novas tecnologias conquistadas nas últimas décadas, sem perder o ponto de equilíbrio
dado pela ética social.
Portanto, considerando o capítulo todo, o Direito Processual Penal Principiológico representa, em síntese, a interdisciplinaridade entre norma escrita e princípios, decorrendo disto um Direito com respeito ao homem e
permitindo a criação de normas escritas e sua aplicação em consonância
com valores sociais essenciais da sociedade a que elas servem, melhor se
ajustando à busca de justiça que o caso concreto requer e à própria validade
efetiva do ordenamento jurídico.
111
3.CONTEXTUALIZAÇÃO DOS PRINCÍPIOS APLICÁVEIS
ÀS CIÊNCIAS PENAIS NO BRASIL
Ao se estudar o Direito Processual Penal Principiológico, em resumo,
estudam-se os princípios que o informam e dão a base para a sua existência,
permitindo a humanização do direito.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 procurou explicitar o maior número possível de princípios de acordo com um Estado Democrático de Direito que foi a base social para a sua criação, opção de modelo
ligado aos anseios e valores da sociedade brasileira que vivenciou períodos
de perturbação no equilíbrio entre os poderes e a liberdade da cidadania.
Todavia, o legislador constituinte não conseguiu esgotar no ato de explicitação todo o rol de princípios decorrentes do modelo de Estado escolhido, bem como condizentes com os direitos e com as garantias individuais da
pessoa e não apenas do cidadão, reconhecidos nacional e internacionalmente, motivo pelo qual alguns princípios permanecem imanentes.
As Ciências Criminais, em especial o Direito Processual Penal, em face
da sua instrumentalidade para a aplicação do Direito Penal, com consequências para a liberdade do homem, um dos maiores valores protegidos pela lei,
possui especial proteção de direitos e de garantias que visam estabelecer
um ambiente equilibrado para a apuração de imputações criminais, sendo
que abaixo serão apresentados breves apontamentos dos princípios fundamentais que se aplicam ao Processo Penal, alguns comuns a outras áreas do
Direito e outros específicos.
A organização dos princípios apresentados, os quais representam os que
são mais conhecidos e difundidos, até porque um direito principiológico não
pode ter um rol taxativo em face da própria evolução da sociedade, teve
como base a ideia de separar os princípios que estão explicitados no texto
constitucional e os que estão imanentes, bem como subdividir princípios
gerais dos princípios específicos do processo penal, aproveitando-se a esquematização de Guilherme de Souza Nucci166, bem como utilizando-a como
base doutrinária juntamente com o pensamento de Marco Antonio Marques
da Silva167 e de Humberto Ávila168.
NUCCI, Guilherme de Souza. Princípios constitucionais penais e processuais penais. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2010.
167
SILVA, Marco Antônio Marques da. Acesso à justiça penal e estado democrático de direito. São Paulo:
Juarez de Oliveira, 2001.
168
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2010.
166
112
O foco do presente capítulo é a apresentação de aspectos gerais dos
princípios mais conhecidos e aceitos pela doutrina e jurisprudência, em complementação dos capítulos anteriores, permitindo uma contextualização do
Direito Processual Penal Principiológico através dos princípios citados, a fim
de que o profissional do direito possa refletir sobre a importância do seu uso
na aplicação da norma escrita aos casos concretos.
O presente rol não é taxativo, como não poderia ser em um Direito vivo
que se transforma a todo o momento, conforme a sociedade se desenvolve,
mas permite parâmetros até para se evitar a exegese de princípios que não
passam de meras convenções ou de interesses particulares sem respaldo nos
costumes e na historicidade de uma sociedade.
Pensar o Direito através de princípios é pensar o homem social como
titular de direitos e de garantias perante o semelhante e o próprio Estado.
3.1 Princípios explicitados na Constituição da
República Federativa do Brasil
São os princípios que estão presentes de forma clara e expressa no
texto constitucional.
3.1.1 Princípios explicitados gerais
Aplicáveis não só ao Direito Processual Penal, como também a outros
ramos do direito.
3.1.1.1 Princípio da Igualdade
Explicitado no caput e no inciso I, do artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, a igualdade sempre foi um valor em discussão
e que acompanhou o desenvolvimento dos grupos sociais, embora limitado
até os dias atuais, uma vez que ainda existe escravidão e profunda diferença
de direitos e de garantias entre homens e mulheres, até mesmo no Brasil,
bastando para isso a constatação de trabalhos escravos em olarias e em fazendas afastadas e mesmo na cidade de São Paulo, a mais desenvolvida do
país, com o abuso de direitos de trabalhadores imigrantes, em especial os
oriundos da Bolívia.
O mesmo se diga das mulheres, que além de terem conseguido o direito
ao voto apenas na década de 30 do século XX, ainda continuam recebendo
salários diferenciados dos homens em várias áreas de trabalho.
113
O marco inicial do valor de igualdade para o mundo ocidental ocorreu
com o cristianismo169 e com as pregações de Jesus com relação à aceitação
dos gentios na nova igreja170, embora não tivesse alcançado a efetividade
material, haja vista a escravidão ter continuado por muitos séculos nos principais grupos sociais do mundo.
José Joaquim Gomes Canotilho anota que a diferença entre os homens
e a própria escravidão na Antiguidade, em especial a Clássica, era um valor
social comum, embora tivesse alguns defensores em contrário, como era o
caso do sofista Antifon171.
[...] O pensamento sofístico, a partir da natureza biológica comum dos homens, aproxima-se da tese da igualdade natural e
da idéia de humanidade. “Por natureza são todos iguais, quer
sejam bárbaros ou helenos” defenderá o sofista Antifon; “Deus
criou todos os homens livres, a nenhum fez escravo” proclamava Alcindamas.172
Logo, verifica-se um valor religioso no mundo ocidental para a igualdade
entre os homens, embora a igualdade possua aspectos formais e materiais.
A igualdade material ou substancial é uma utopia, uma vez que ela procura colocar todos os homens iguais em termos materiais, o que é de quase
impossível realização, uma vez que desrespeita as diferenças individuais e
as próprias oportunidades que surgem de forma diferente para cada uma
das pessoas.
BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva,
1989. p. 5.
170
Os gentios eram todos aqueles que não eram judeus e, em consequência, não seguiam a Lei de Moisés e o
ato da circuncisão como elo de ligação com Deus. Observo que nos primeiros tempos da igreja cristã, ela
era uma vertente do judaísmo e, portanto, formada quase exclusivamente por judeus. Logo, existia um
problema, uma vez que os povos não judeus que aceitavam o cristianismo, não necessariamente queriam
aceitar as Leis de Moisés e a circuncisão. Inclusive, a igreja primitiva tinha um grande problema, haja
vista a possibilidade de existirem duas classes de cristãos, o que também impediria a formação de uma
nova igreja. O problema foi solucionado na igreja primitiva através das interferências de Pedro, e o seu
testemunho com a conversão do centurião romano Cornélio, bem como pelas palavras de Paulo, Barnabé
e Tiago, gerando uma carta com a pregação de que Cristo se sacrificou pela salvação de judeus e gentios,
motivo pelo qual não existia a necessidade da aceitação da Lei de Moisés e da circuncisão, bastando a
aceitação do Cristo e dos seus ensinamentos (In: Atos dos apóstolos 10-11, Bíblia Sagrada, edição pastoral.
Tradução Ivo Storniolo. São Paulo: Sociedade Bíblica Católica Internacional: Paulus, 1991.).
171
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 381.
172
Id.
169
114
O socialismo propunha a igualdade material entre os homens, mas acabou vencido pela realidade econômica e social, como se nota com o esfacelamento da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, próximo do final do
século XX.
Já a igualdade formal é uma necessidade para se manter o equilíbrio
social em um Estado Democrático de Direito, permitindo a todos a igualdade
em direitos e em garantias, em especial no âmbito do Direito, principalmente no ramo das Ciências Criminais.
Logo, não se admitem privilégios que não estejam fundados em razões
lógicas que visam manter o equilíbrio entre as partes, em especial no tocante a prazos e custas processuais, uma vez que o princípio formal da isonomia
ascende da ideia básica Aristotélica desenvolvida por Chomé de se “tratar
igual os desiguais, respeitando-se as suas desigualdades”173, frase que pode
ser criticada na atualidade por ser apontada como tautológica, haja vista
não explicar quem são os iguais e quem são os diferentes, ou seja, exprimir
a mesma ideia várias vezes sem explicá-la, mas que ainda representa a ideia
de igualdade formal.
A igualdade não é de “ser”, mas de fazer, colocando as pessoas na mesma condição de direitos e de garantias perante a lei e o Estado.
A busca pela isonomia resume-se a proporcionar oportunidades iguais
com relação a direitos e a garantias, o que ainda não foi conseguido em
nenhuma sociedade do planeta, mas que não deixa de se um objetivo a ser
buscado a cada momento por qualquer Estado que pretende ser efetivamente democrático e de direito.
Alexandre de Moraes observa:
O princípio da igualdade consagrado pela constituição opera
em dois planos distintos. De uma parte, frente ao legislador
ou ao próprio executivo, na edição, respectivamente, de leis,
atos normativos e medidas provisórias, impedindo que possam
criar tratamentos abusivamente diferenciados a pessoas que se
encontrem em situações idênticas. Em outro plano, na obrigatoriedade ao intérprete, basicamente, a autoridade pública,
de aplicar a lei e atos normativos de maneira igualitária, sem
estabelecimento de diferenciações em razão de sexo, religião,
convicções filosóficas ou políticas, raça, classe social.174
173
174
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 35. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 213.
MORAES, Alexandre. Direito constitucional. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p.32.
115
Apresenta-se ainda oportuno mencionar o fato de o Brasil não ter adotado a distinção entre igualdade perante a lei e a igualdade na lei, razão
pela qual o legislador e o aplicador da lei são obrigados a respeitar a isonomia perante todos, independentemente de sexo, opção sexual, religião
ou qualquer outro distintivo social. Inclusive a igualdade de tratamento se
aplica aos estrangeiros que estejam sob a jurisdição do Brasil, conforme se
apreende do texto do caput do artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil.
3.1.1.2 Princípio da Legalidade
O presente princípio é de suma importância para o Direito Penal, o
mesmo não se dizendo para o Direito Processual Penal, segundo a linha desta
pesquisa, uma vez que é aceita a analogia e a interpretação extensiva. O seu
comentário, no presente trabalho, se mostra importante para demonstrar
que não obstante existir a sua aplicação no Direito Processual Penal, não é
este princípio isoladamente que empresta segurança ao Sistema Jurídico do
Brasil, mas a somatória dele com os demais princípios, em especial o princípio universal da dignidade da pessoa humana, supralegal e supracultural.
Previsto expressamente na Constituição da República Federativa do
Brasil, no artigo 5º, inciso II, através da frase ninguém será obrigado a fazer
ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei, representa um dos
princípios mais importantes em um Estado Democrático de Direito, uma vez
que estabelece uma garantia da pessoa com relação ao limite do poder do
Estado e o próprio controle através do qual são criadas as normas jurídicas,
em especial no âmbito das ciências criminais.
O princípio da legalidade não possui uma origem precisa, mas é certo
que na Magna Carta de 1215175 já aparecem os contornos do estabelecimento de limites para o poder do Estado e a vinculação a normas previamente
estabelecidas conforme um sistema legal176.
A Magna Carta Libertatum seu Concordiam inter regem Johannen at barones pro concessione libertatum
ecclesiae et regni angliae (Grande Carta das liberdades, ou Concórdia entre o rei João e os Barões para
a outorga das liberdades da Igreja e do rei Inglês), foi um documento de 1215 que limitou o poder do rei
da Inglaterra, impedindo o exercício do poder absoluto. Foi fruto do desentendimento entre o Rei João, o
Papa e os Barões Ingleses acerca das prerrogativas do soberano. Segundo os termos da Magna Carta, o rei
deveria renunciar a certos direitos e respeitar determinados procedimentos legais, bem como reconhecer
que a vontade do rei estaria sujeita à lei da terra (In: NOVA Enciclopédia Barsa Eletrônica. Enciclopédia
Britânica do Brasil Produções Ltda., c. 1999, CD-ROM 1.).
176
SILVA, Marco Antonio Marques da. Acesso à justiça penal e estado democrático de direito. São Paulo:
Juarez de Oliveira, 2001. p. 7.
175
116
Posteriormente, através de Charles-Louis de Secondat, Barão de Montesquieu177, foi reforçada a ideia da legalidade através da separação de poderes178, o que é uma característica necessária dos Estados Democráticos de
Direito e uma condição para a efetividade da legalidade.
Embora a diferenciação entre o princípio da legalidade e o princípio
da reserva legal não seja uniforme na doutrina, uma vez que tanto o inciso
II, como o inciso XXXIX, ambos do artigo 5º da Constituição da República
Federativa do Brasil, utilizam a palavra lei, o fato é que alguns doutrinadores, entre eles José Afonso da Silva, tratam as duas disposições de forma
distinta, fazendo a observação de que o inciso XXXIX trata da lei em sentido
estrito e não genérico como no inciso II179.
Logo, segundo o entendimento de quem defende a distinção, é possível
estabelecer normas sobre conduta de pessoas através de outros diplomas
legais que não sejam necessariamente uma lei com o seu trâmite específico,
como ocorre através das Medidas Provisórias. Todavia, somente através da
lei, com o seu procedimento legislativo próprio, poderão ser estabelecidos
crimes e a sua punição. Inclusive, o artigo 62, § 1º, I, alínea “b” da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 proíbe a criação de normas
processuais através de Medida Provisória, o que esvazia a importância prática da distinção, restando apenas o interesse doutrinário.
Com efeito, as normas de natureza penal, expressamente, só podem ser
estabelecidas através de uma lei, o mesmo se dizendo das normas escritas de
Direito Processual Penal. Todavia, os casos concretos, no âmbito do Direito
Processual Penal, acabam por exigir decisões específicas que não estão necessariamente previstas em um ordenamento escrito, razão pela qual o Artigo 3º do Decreto-Lei nº 3.931/41 (Código de Processo Penal Brasileiro) prevê a possibilidade da interpretação extensiva e da analogia como forma de
complementação da legislação escrita, o que não ocorre com o direito penal.
Logo, a ideia de princípios agregados ao Direito Processual Penal, funcionando como balizas para o legislador e, acima de tudo, para o aplicador
da lei que irá utilizar a interpretação extensiva e a analogia, representa uma
segurança para o sistema jurídico brasileiro que não é possível apenas com
o princípio da legalidade.
SECONDAT, Charles-Louis de (Barão de Montesquieu). Do espírito das leis. Tradução Jean Melville. São
Paulo: Martins Claret, 2005.
178
Id., p. 182-192.
179
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 35. ed. São Paulo: Malheiros, 2011.
p. 422-423.
177
117
3.1.1.3 Princípio da Presunção de Inocência
Trata-se de um princípio previsto expressamente no artigo 5º, inciso LVII
da Constituição da República Federativa do Brasil e está diretamente ligado
à existência de um Estado Democrático de Direito e se origina na Revolução
Francesa com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789,
sendo a sua ideia repetida na Declaração Universal dos Direitos do Homem
da Organização das Nações Unidas (art. 11), e na Convenção Europeia dos
Direitos dos Homens (art. 6º)180, embora Cesare de Bonesana, já mencionava
indiretamente a sua necessidade anteriormente à revolução francesa181.
Representa uma garantia do homem perante o Estado e uma reação
contra os sistemas autoritários, que partem da presunção de culpa para se
descobrir a inocência, utilizando-se de meios reprováveis e de eficácia duvidosa para apuração de infrações penais, com repercussões diretas no Direito
Penal e indiretamente no Direito Processual Penal, em especial no tocante
à utilização da restrição de liberdade e de direitos somente em casos extremos e não como uma consequência necessária do processo.
Um outro exemplo da necessidade de tal princípio também no Direito
Processual Penal encontra-se nas chamadas ordálias da Idade Média, quando
se submetia o homem a rituais e a experiências de duvidosa sobrevivência
para se testar a sua inocência, como meio de prova válida em um processo,
despreocupando-se com a possibilidade de o acusado ser inocente e não
sobreviver ao próprio processo de apuração.
A inocência é uma presunção aplicável a todo ser humano sujeito a uma
investigação ou a um processo, condição que só pode ser modificada após o
trânsito em julgado de uma sentença condenatória.
Marco Antonio Marques da Silva adverte sobre a possibilidade de uma
pessoa ser processada sem a certeza da sua culpa pela infração penal apurada, até porque essa é a finalidade do processo (apurar a culpabilidade), sem
contudo estar sujeita a ser exposta pela mídia quanto à sua culpabilidade
antes da sentença condenatória com trânsito em julgado182.
Inclusive, entendemos que o direito de informar e ser informado, previsto no artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, e a
SILVA, Marco Antonio Marques da. Acesso à justiça penal e estado democrático de direito. São Paulo:
Juarez de Oliveira, 2001. p. 25.
181
BONESANA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução J. Cretela Jr. e Agnes Cretella. 2. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1999.
182
SILVA, Marco Antonio Marques da. Acesso à justiça penal e estado democrático de direito. São Paulo:
Juarez de Oliveira, 2001. p. 31-32.
180
118
própria liberdade de imprensa, permitindo a ampla comunicação sobre fatos
criminosos, não permite a exposição de pessoas que ainda não foram julgadas e condenadas com trânsito em julgado.
Isso porque, ao lado do direito de informar e de ser informado, existe o
direito à imagem e à presunção de inocência, mormente após a opção do Brasil por um Estado Democrático de Direito, consubstanciada na Constituição
da República Federativa do Brasil de 1988 e em decorrência da atual opção
processual penal brasileira pelo sistema acusatório e não mais inquisitivo
do passado. Embora, mesmo no sistema inquisitivo do passado existisse a
reserva da dúvida e da presunção de inocência, não tinha a relevância e o
desenvolvimento alcançados com o sistema acusatório, com a ideia de partes
bem definidas e equilibradas no processo, direitos e garantias realçadas e limitação de medidas interventivas de direitos, como é o caso do cerceamento
da liberdade de deambulação durante o processo penal como exceção.
A questão discutida é de suma importância e atinge outros aspectos
da vida em sociedade, uma vez que a exposição sensacionalista pela mídia
causa repercussões sérias para a vida das pessoas acusadas em processos
penais, com a execração pública e até com o perigo do pré-julgamento nos
casos dos crimes dolosos contra a vida, os quais, no Brasil, são submetidos
ao julgamento popular pelo Tribunal do Júri.
A presunção de inocência é uma garantia necessária do sistema jurídico
que pretenda respeitar o homem como titular de direitos e de garantias em
um processo penal e na própria vida em sociedade.
3.1.1.4 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana
Trata-se de um supraprincípio internacional que orienta não só o Brasil, enquanto pressuposto básico do Estado Democrático de Direito Brasileiro (artigo 1º, inciso III, da Constituição da República Federativa do Brasil,
de 1988), como também todos os países, ao ser inserido na Declaração dos
Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (artigo 1º), do que
decorre a preocupação com o estabelecimento de um conjunto internacional de direitos e de garantias que possibilitem um tratamento igualitário e
digno, no tocante à vida em sociedade e na relação com o Estado em todas
as áreas da vida e em especial nas Ciências do Direito Penal e do Direito
Processual Penal.
Segundo aponta Jürgen Habermas, o princípio da dignidade da pessoa
humana foi fruto da reação contra a ausência de humanidade dos primeiros
lustros do século XX, nascendo da necessidade e não apenas da construção
filosófica.
119
[...] Com certeza, os documentos de fundação das Nações Unidas, que estabelecem expressamente o vínculo dos direitos humanos com a dignidade humana, foram uma resposta evidente
aos crimes da Segunda Guerra Mundial. Explica-se por isso o papel proeminente que a dignidade humana assume nas constituições pós-guerra da Alemanhã, Itália e Japão, isto é, nos regimes
que sucederam aos dos que causaram essa catástrofe moral do
século XX e dos que foram seus aliados? É somente no contexto
histórico do holocausto que a ideia de direitos humanos é depois
carregada (e possivelmente sobrecarregada) moralmente com o
conceito de dignidade humana? A carreira tardia do conceito de
dignidade humana nas discussões sobre direito constitucional e
direito das gentes tende a apoiar essa ideia.183
Acreditamos que razão assiste a Jürgen Habermas, uma vez que antes
do morticínio civil da Segunda Guerra Mundial, a humanidade como condição
natural do homem e os direitos decorrentes desta situação não tiveram a
proteção necessária que foi integrada com o termo supracultural e supralegal denominado dignidade da pessoa humana.
Inclusive, embora tenham ocorrido outros genocídios e atentados contra a humanidade ao longo da história, através de guerras que assolaram
o mundo em todas as épocas, além de outros eventos, como a matança
de populações em face do desrespeito pelas diferenças, a proteção aos
direitos humanos só foi objeto de uma efetiva preocupação internacional
quando todos passaram a conhecer e a enxergar a violência, fato apenas
possível com a tecnologia da informação do século XX, bem como quando
os Estados passaram a se preocupar com a existência de um órgão de mediação internacional.
As milhares de fotografias, as filmagens e os escombros decorrentes
da Segunda Guerra Mundial representam um patrimônio mundial contra as
guerras, a violência e o genocídio, não existindo justificativas ou perdão
para os algozes se não o próprio entendimento de que o homem é o único responsável pelo desenvolvimento ou perecimento da espécie humana
no planeta.
A proteção da dignidade humana, segundo nosso entendimento, é o
foco central de todas as atuais políticas internacionais de proteção do homem, seja ele uma vítima ou um algoz.
183
HABERMAS, Jürgen. Sobre a constituição da Europa. Tradução Denilson Luis Werle; Luiz Repa; Rúrion Melo.
São Paulo: Unesp, 2012. p. 9-10.
120
Inclusive, é essa a razão pela qual as ações negativas ao supraprincípio
redundam em críticas externas com consequências econômicas e na política
com efeitos internos aos Estados e com consequências internacionais.
Também, conforme a sociedade de um Estado avança para o processo
denominado globalização, já explicado nos capítulos antecedentes, entendemos que as críticas internas para o respeito aos direito humanos também
passam a se intensificar, fato constatado no Brasil um pouco antes da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e posteriormente com
as alterações na legislação penal e processual penal, em especial a atualmente em vigor, com a transformação do processo penal de inquisitivo para
acusatório.
A ação do Estado, interna e externamente, mesmo diante da violação de um bem penalmente tutelado local ou internacionalmente, deve
respeitar a dignidade do homem, não sendo a maldade justificativa para
a sua retribuição cega e sem limites. Também, o processo que será a
plataforma para a apuração da prática da infração penal deve respeitar
a dignidade do ser humano, o que impede tratamentos degradantes e
humilhantes por parte do Estado, mais precisamente por parte dos seus
poderes e dos seus agentes.
As sanções e as medidas aplicáveis diante da violação dos bens jurídicos
tutelados, sejam estas últimas de natureza penal ou processual penal, jamais poderão violar a constituição física e psíquica do agente infrator. Também deverão propiciar a manutenção ou a promoção da dignidade humana.
O princípio da dignidade da pessoa humana é o princípio mais importante que pode existir em um Estado que busque democracia e respeito a
direitos, aplicando-se a todas as áreas da vida em sociedade, tendo como
premissas essenciais o homem, individualmente considerado, sua personalidade e os direitos a ela inerentes, a sua condição de cidadão e a sua condição de subsistência184.
A dignidade do ser humano reafirma a passagem do mundo antigo para
o moderno, quando o homem passou a ser valorizado e ter a sua vida como
valor protegido pelo cristianismo como ensina Hannah Arrendt185, mas que
somente conseguiu uma proteção universal com o princípio internacional da
dignidade da pessoa humana.
SILVA, Marco Antonio Marques da; MIRANDA, Jorge (Org.). Tratado luso-brasileiro de dignidade humana.
São Paulo: Quartier Latin, 2009. p. 224.
185
ARENDT, Hannah.A condição humana. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 392-394.
184
121
Marco Antonio Marques da Silva, comentando sobre o princípio da dignidade da pessoa humana e a sua previsão em uma carta universal de direitos
e garantias da Organização das Nações Unidas, o que o coloca como um
princípio universal a ser respeitado por todos os Estados, aponta:
A Declaração Universal dos Direitos Humanos se constitui num
dos documentos fundamentais da civilização contemporânea,
inicia-se com a denúncia histórica dos “atos bárbaros, que revoltam a consciência da humanidade”, e afirma com valores
universais os direitos básicos, como o direito à vida e à liberdade, à segurança, à educação, à saúde e outros, que devem
ser respeitados e assegurados por todos os Estados e por todos
os povos.
O mundo vem lutando para que a dignidade humana se realize
por completo, tornando-se autêntico paradigma ético; os direitos nela inscritos constituem hoje um dos mais importantes
instrumentos de nossa civilização, visando assegurar um convívio social digno, justo e pacífico.186
Dignidade da pessoa humana é o respeito do homem pelo próprio homem, cidadão ou apátrida; bom ou mau; masculino ou feminino e até com
outras opções que possam diferenciá-lo da distinção biológica inicial.
Observar a dignidade da pessoa humana é respeitar tanto a um recémnascido como a um ancião, a vítima em um processo penal e o próprio acusado do crime que está sendo julgado.
Representa enxergar o próximo como a si mesmo material e psicologicamente e não apenas de forma ideológica, até porque o campo de
concentração do inimigo, material e psicologicamente, não é tão distante
das reações causadas nos sentimentos dos internos quando o campo de
internação dos refugiados dos amigos não preserva a dignidade do homem.
Oportuno transcrever uma citação feita por Celso Lafer, citando Hannah Arendt a respeito da condição dela de refugiada e o significado do desrespeito pela dignidade da pessoa humana pelo próprio ser humano, mesmo
que em uma modernidade mais próxima e até com a intenção de ajudar.
186
SILVA, Marco Antonio Marques da; MIRANDA, Jorge (Org.). Tratado luso-brasileiro de dignidade humana.
São Paulo: Quartier Latin, 2009. p. 225.
122
[...] Perdemos nosso lares, o que significa a familiaridade da
vida quotidiana. Perdemos nossas ocupações, o que significa a
confiança de que temos alguma utilidade no mundo. Perdemos
nossa língua, o que significa a naturalidade das reações, a simplicidade dos gestos... Aparentemente ninguém quer saber que
história contemporânea criou um novo tipo de seres humanos –
o que é colocado em campos de concentração por seus inimigos,
e em campos de internação por seus amigos.187
A dignidade da pessoa humana concentra a ideia de humanismo e funciona como um ponto de referência para a vida do homem no planeta e de
respeito por ela independentemente de restrições culturais, educacionais e
até sociais.
3.1.1.5 Princípio da Intranscendência
O princípio da intranscendência está ligado ao Direito Penal, encontrando-se explicitado no artigo 5º, inciso XLV da Constituição da República
Federativa do Brasil, como uma reação social ao que ocorria no passado
em razão do Direito Penal Arcaico permitir que as penas não só atingissem
a pessoa do agente do crime mas também os seus parentes, em especial
sob a égide do Livro V das Ordenações Filipinas do Reino, medida que hoje
representa incompatibilidade com o humanismo do Direito Penal Moderno.
Um exemplo da vinculação da pena aplicada ao condenado aos seus
parentes, próprio das Ordenações Filipinas, pode ser constatado na condenação de Joaquim da Silva Xavier (Tiradentes), conforme se encontra na
transcrição das folhas 57, 90 e Vº, do 4º Volume do Códice 5 dos Autos de
Devassa da Inconfidência Mineira.
Sentença proferida contra os Réus do Levante e conjuração de
Minas Geraes.
Acordam em Relação os da Alçada etc. Vistos estes auto, que
em observância das Reais ordens se fizeram sumários aos vinte e nove réus pronunciados, conteúdos na relação de folhas
14 verso, Devassas, perguntas, apensos e defesa alegada pelo
Procurador que lhes foi nomeado etc. Mostra-se que na Capitania de Minas alguns vassalos da dita Senhora, animados de espírito da pérfida ambição, formaram um infame plano para se
187
LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos.São Paulo: Schwarcz, 2006. p. 148.
123
subtraírem da sujeição e obediência devida à mesma Senhora,
pretendendo desmembrar e separar do Estado aquela Capitania,
para formarem uma república independente, por meio de uma
formal rebelião, da qual se erigiram em chefes e cabeças, seduzindo a uns para ajudarem e concorrerem para aquela pérfida ação,
e comunicando a outros os seus atrozes e abomináveis intentos,
em que todos guardavam maliciosamente o mais inviolável
[...] prova, que especificamente soubessem da conjuração e
dos ajustes dos conjurados, mas que somente souberam das
diligências públicas, e particulares, que fazia o réu Tiradentes,
para induzir gente para o levante, e estabelecimento da república, pelas práticas gerais que com ele teve, ou pelos convites
que lhes fez para entrarem na sublevação, suposto que não
estejam em igual grau de malícia e culpa como os sobreditos
réus, contudo a reserva de segredo de que usaram, sem embargo de reconhecerem, e deverem reconhecer a obrigação que tinham de delatar isso mesmo que sabiam, pela qualidade e importância do negócio, sempre faz um forte indício da sua pouca
fidelidade, o que sempre é bastante para estes réus ao menos
serem apartados daqueles lugares onde uma vez se fizeram suspeitosos, porque o sossego dos povos e conservação do Estado
pedem todas as seguranças para que a suspeita do contágio da
infidelidade de uns, não venha a comunicar-se e contaminar os
mais. Portanto condenam o réu Joaquim José da Silva Xavier,
por alcunha o Tiradentes, alferes que foi do Regimento pago
da Capitania de Minas, a que, com baraço e pregão seja conduzido pelas ruas públicas ao lugar da forca, e nela morra morte
natural para sempre, e que depois de morto lhe seja cortada
a cabeça e levada a Vila Rica, onde no lugar mais público dela,
será pregada em um poste alto, até que o tempo a consuma,
e o seu corpo será dividido em quatro quartos, e pregados em
postes, pelo caminho de Minas, no sítio da Varginha e das Cebolas, onde o réu teve as suas infames práticas, e os mais nos
sítios das maiores povoações, até que o tempo também os consuma, declaram o réu infame, e seus filhos e netos tendo-os,
e os seus bens aplicam para o Fisco e Câmara Real, e a casa
em que vivia em Vila Rica será arrasada e salgada, para que
nunca mais no chão se edifique, e não sendo própria será
avaliada e paga a seu dono pelos bens confiscados, e mesmo
chão se levantará um padrão pelo qual se conserve em memória a infâmia deste abominável réu; [...] (grifo nosso)188
188
AUTOS da devassa, Inconfidência em Minas - levante de Tiradentes, 1788-1792. Disponível em: <http://
www.portalan.aquivonacional.gov.br/Media/Autos%20devassa%20completo.pdf>. Acesso em: 15 nov. 2012.
124
Os rigores do passado já eram discutidos no Brasil do século XIX, em
especial após a Revolução Francesa e a influência liberal e humanista que
ela propagou pelo mundo, o que será melhor esclarecido na sequência.
A fonte inicial do princípio da intranscendência no Direito do Brasil
foi a Constituição Política do Império do Brazil de 1824, a qual estabelecia
no seu Artigo 179, inciso XX que a pena, o confisco de bens e a infâmia não
passariam para os parentes do acusado.
A previsão foi uma evolução humanista e teve a sua inspiração na Revolução Francesa de 1789, conforme aponta Galdino Siqueira.
[...] O princípio da personalidade da responsabilidade criminal, garantia salutar da liberdade individual, além de mera
traducção da justiça distributiva, proclamado pela revolução
franceza (lei de 21 de janeiro de 1790), não era então reconhecido, por isso que nos crimes de lesa-magestade e em outros
crimes graves, as penas não eram pessoaes, punindo-se ordinariamente, em França e em outros paizes, com banimento e
confisco os ascendentes, descendentes e cônjuge do delinquente. Nas Ords. de Portugal, liv. I, t. 74, pr., liv. V, t.6º §§1, 2, 4,
5, 9, 10, 11, 13 e 15, e no Alv. De 17 de janeiro de 1759, vemos
applicada a pena de confisco contra aquelles que machinassem
hostilidades contra o Estado, ou contra o imperante, e nos crimes de lesa magestade a infâmia, que segundo a Ord. Liv V, t.
6, devia ser applicada e que attingia os descendentes do delinquente, “posto que não tivessem culpa”.189
Porém, não se pode olvidar que o processo penal representa restrição e
exposição de uma pessoa, sendo certo que para uma pessoa inocente o processo, por si só, representa um sofrimento, motivo pelo qual uma pessoa que
não está envolvida com a infração penal não deve ser atingida por medidas
cautelares e outras limitações decorrentes de um processo penal.
A intranscendência no processo penal é um reflexo do princípio no âmbito do Direito Penal e está em conformidade com a finalidade de um processo penal de modelo acusatório e não mais inquisitivo como no passado.
O processo penal é a plataforma para a apuração das infrações penais,
aplicação de medidas cautelares e até das sanções cabíveis, devendo ser
restrito às pessoas e ao patrimônio daqueles que são efetivamente objeto da
189
SIQUEIRA, Galdino. Direito penal brazileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Jacynto, 1932. p. 329 e 330.
125
apuração das infrações penais, ou seja, não deve atingir a terceiros apenas
pela existência de laços de parentesco.
A única exceção possível diz respeito à aplicação de medidas cautelares
envolvendo a busca e a apreensão de bens ou de pessoas, quando terceiros
ajudam a escondê-los, podendo até gerar a imputação de uma infração penal por auxílio material, a qual será apurada em processo penal autônomo.
A ação do Estado nos casos mencionados, indiscutivelmente, atingirá os
interesses de terceiros.
Porém, não serão julgados e condenados no mesmo processo penal que
originou as medidas cautelares e poderão até fazer valer os seus direitos
patrimoniais perante a Justiça.
3.1.2 Princípios explicitados específicos do Processo Penal
Representam os princípios que estão explicitados no texto constitucional e de aplicação direta no processo penal.
3.1.2.1 Princípio da Publicidade
O princípio da publicidade está expresso no artigo 5º, inciso LX da Constituição da República Federativa do Brasil e representa uma garantia do cidadão contra processos viciados, arbitrários, além do que permite à própria
sociedade fiscalizar a ação do Estado no ato de apurar e punir as pessoas.
Anteriormente á nossa Carta Constitucional, o princípio estava relegado a um plano infraconstitucional, com previsão inicial no artigo 792 do
Código de Processo Penal de 1941.
Através do princípio da publicidade os atos são, em regra, públicos para
que todos possam conhecer e fiscalizá-los, além do que permite que a ação
do Estado seja conhecida e respeitada. Todavia, existem exceções que são
guardadas para a proteção de determinadas pessoas, uma vez que a preservação da imagem e da segurança dessas pessoas se sobrepõe ao eventual
interesse público de conhecer os atos e os fatos de um processo, como ocorre com os jurados quando reunidos no conselho de sentença, de vítimas em
processos que envolvam crimes sexuais e até mesmo do indiciado durante o
inquérito policial que ainda não é um processo.
A publicidade é uma garantia do sistema jurídico, permitindo a fiscalização do julgamento pela sociedade, impedindo com isto o desrespeito à lei
e à própria dignidade da pessoa que está sendo julgada. Além disso, permite
126
que as eventuais vítimas acompanhem a atuação da Justiça para que não
haja qualquer dúvida quanto à efetiva aplicação da lei.
Oportuna a transcrição da posição de Rogério Lauria Tucci a respeito da
importância do presente princípio.
[...] Em suma, presentando-se a publicidade como requisito
formal da realização da grande maioria de atos processuais,
num procedimento demarcado em lei, a fim de que sejam prévia e amplamente conhecidos, propiciando a participação dos
interessados; atende, por outro lado, ao reclamo de transparência da Justiça (particularmente da Criminal), serviente aos
anseios dos integrantes do processo e aos desígnios do bem comum, em que avulta a imprescindibilidade de paz social, mais
efetivamente de segurança pública.190
3.1.2.2 Princípio do Devido Processo Legal
Trata-se de um princípio expresso na Constituição da República Federativa do Brasil, mais precisamente no seu artigo 5º, LIV, e representa a
garantia de uma pessoa não ser privada da sua liberdade ou dos seus bens
sem um devido processo administrativo (transgressões militares) ou judicial
(infrações penais), ou seja, sem um procedimento legal com ampla possibilidade de fazer prova e defesa.
O mencionado princípio, também conhecido como due process of law,
completa-se com o princípio da ampla defesa.
Sua origem histórica é remota, tendo sido explicitado na chamada
Charta Magna Libertatum, conhecida como Magna Carta, com o seguinte
texto traduzido para o português: “Ninguém poderá ser detido, preso ou
despojado dos seus bens, costumes e liberdades, senão em virtude de julgamento de seus Pares segundo as leis do país”.
O termo due process of law, como é mais conhecido o instituto, foi
utilizado em 1354, na Inglaterra, pelo rei Eduardo III ao expedir uma lei denominada Statut of Westminster of the Liberties of London.191
A respeito da importância do princípio sob estudo em outros países e a
relação dele com a democracia, Celso Ribeiro Bastos observa:
TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. 3. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2009. p. 176.
191
SILVA, Marco Antônio Marques da. Acesso à justiça penal e estado democrático de direito. São Paulo:
Juarez de Oliveira, 2001. p. 16.
190
127
[...] No ano de 1791, a Constituição americana foi emendada,
introduzindo-se a avaliação de punições without due process of
law, sendo o mesmo limite imposto aos Estados pela Emenda
XIV, que reza:
“Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos
e sujeitas à sua jurisdição, são cidadãos dos Estados Unidos e
do Estado em que residem. Nenhum Estado fará ou executará qualquer lei restringindo os privilégios ou imunidades dos
cidadãos dos Estados Unidos, nem privará qualquer pessoa da
vida, liberdade ou propriedade sem processo legal regular, nem
negará a qualquer pessoa dentro de sua jurisdição a igual proteção da lei”.192
Infelizmente, a Emenda XIV da Constituição dos Estados Unidos da América, base para todos os movimentos sociais e progressistas da década de
1960, em especial a luta contra a segregação racial levada a efeito pela
Suprema Corte, como bem enfatizou Celso Ribeiro Bastos193, após os efeitos
sociais e políticos nefastos do ataque terrorista sobre as torres gêmeas do
Wolrd Trade Center, em Nova Iorque, em 11 de setembro de 2001, acabou
sendo esquecida e permitida a exceção ao princípio do devido processo legal.
Atualmente, toda a vez que há interesse por parte do Estado NorteAmericano, os direitos e as garantias de uma pessoa, em especial o do devido processo legal, é flexibilizado com a detenção em bases militares em outros países, como é o caso da Base Militar de Guantanamo em Cuba, através
da aplicação do chamado Ato Patriótico [Uniting and Strengthening America
by Providing Appropriate Tools Required to Intercept and Obstruct Terrorism (USA PATRIOT) Act of 2001]194 de limitação de direitos e de garantias
individuais. A medida adotada pelo governo norte-americano, baseada na ideia
de uma legítima defesa preventiva195, muito próxima da visão de Günther
Jakobs196 a respeito dos direitos do inimigo no processo, vem sendo objeto
de críticas internacionais contra abusos nas detenções e na prorrogação de-
BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva,
1989. p. 262.
193
Id.
194
Estados Unidos da América do Norte. Disponível em: <http://www.gpo.gov/fdsys/pkg/PLAW-107publ56pdf/PLAW--107publ56.pdf>. Acesso em: 2 nov. 2012.
195
BYERS, Michael. A lei da guerra. Tradução Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record. 2007.
196
JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito penal do inimigo, noções e críticas. Tradução André Luís
Callegari e Nereu José Goacomolli. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
192
128
las sem um processo e um julgamento, comprometendo a própria dignidade
da pessoa humana e demonstrando a necessidade da existência de uma Organização das Nações Unidas efetivamente independente e com poder até
para enfrentar os abusos da maior potência econômica e militar do mundo.
Também, com reflexos no tocante a meios de prova o que será abordado
oportunamente.
Indiscutivelmente, pelo que foi acima exposto quanto à exceção adotada pelo governo norte-americano, verifica-se que se trata de um dos princípios mais importantes do processo penal a ser preservado, uma vez que
limita efetivamente o poder dos Estados sobre o cidadão e é fundamental
para um Estado Democrático de Direito, motivo pelo qual está explicitado
na Declaração Universal dos Direitos do Homem da Organização das Nações
Unidas, na Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das
Liberdades Fundamentais.197
Além disso, não é apenas uma garantia do homem, mas da própria
seriedade do Estado, uma vez que se projeta sobre a jurisdição dando credibilidade interna e externa para as suas decisões.
3.1.2.3 Princípio do Contraditório
O princípio expresso do contraditório está previsto no artigo 5º, LV da
Constituição da República Federativa do Brasil e estabelece a possibilidade
da parte contrária ser ouvida sempre que a outra parte produza qualquer
espécie de prova.
Trata-se da segurança de um processo com o equilíbrio entre as partes,
em que uma parte possa se defender com relação às provas produzidas pela
outra, evitando-se um processo viciado e sem defesa.
O contraditório não foi um princípio que surgiu naturalmente na história da sociedade, foi fruto da revolta contra as acusações unilaterais e
secretas utilizadas no passado, em especial, anteriormente à Revolução
Francesa de 1789, destacando-se as chamadas bocca di leone da Veneza do
século XVII, imortalizada no primeiro ato da peça La Gioconda de Almicare
Ponchielli.
Uma pessoa era acusada e condenada sem a possibilidade de confrontar-se com o seu acusador e sem a condição de fazer prova da sua inocência,
ou seja, sem contraditório e sem uma ampla defesa.
197
SILVA, Marco Antônio Marques da. Acesso à justiça penal e estado democrático de direito. São Paulo:
Juarez de Oliveira, 2001. p.16.
129
O processo, quando existia, representava apenas a apresentação da
acusação e a aplicação da pena, como verificado nos chamados Tribunais do
Santo Ofício a cargo da Inquisição.
[...] O tribunal acolhia denúncias de quem quer que fosse,
mesmo feitas por carta anônima. Depois de preso, o réu era
submetido a longos interrogatórios, não lhe sendo comunicado
o motivo da prisão, nem o crime de que o acusavam ou o nome
do denunciante. O advogado de defesa era nomeado pelo Santo
Ofício. Os réus que se declaravam culpados eram “reconciliados” com a igreja. Quando absolvidos, assinavam o “termo do
segredo”, em que juravam nada revelar do que se passara a
portas fechadas. A violação do segredo era equiparada ao crime de heresia.
Os réus que se declaravam arrependidos sofriam vários tipos
de punição. A mais rigorosa era a condenação às galés, que
equivalia à pena de morte, em virtude das condições do trabalho forçado. A prisão perpétua com o tempo deixou de ser
aplicada, sendo as pessoas libertadas, em geral, depois de oito
anos. Havia o desterro para lugares distantes ou o confinamento numa aldeia por toda a vida. Era também costume mandar
arrasar a casa do herege. Uma das penas mais graves consistia
no confisco dos bens, base financeira da Inquisição. Os descendentes dos condenados sofriam por algumas gerações variadas
penalidades, como não poder usar seda, portar armas ou andar
a cavalo.
O inquisidor fazia pública a sentença, em geral no chamado
auto-de-fé. Os réus acusados de crimes mais graves, ou que
se recusassem a abjurar os próprios erros, ou reincidissem depois de alguma condenação, eram entregues ao “braço secular”
para a execução da pena capital, em geral na fogueira.
A prática da tortura para obter a confissão do réu, habitual nos
processos civis da época, foi repelida de início pelos papas, que
chegaram a encarcerar alguns inquisidores por sua crueldade.
Em 1252, no entanto, o papa Inocêncio IV autorizou o uso da
tortura quando se duvidasse da veracidade da declaração dos
acusados198.
198
Inquisição (In: NOVA Enciclopédia Barsa Eletrônica. Enciclopédia Britânica do Brasil Produções Ltda., c.
1999. CD-ROM 1.).
130
É um dos princípios que demonstram a existência de um Estado Democrático de Direito e está previsto na Declaração Universal dos Direitos dos
Homens da Organização das Nações Unidas199 e se aplica tanto aos processos
judiciais como aos administrativos, existindo uma dúvida doutrinária e jurisprudencial com relação ao inquérito policial.
A esse respeito, embora existam valiosas opiniões em contrário, destacando-se Rogério Lauria Tucci200, não existe no inquérito policial a figura das
partes, sendo ainda uma sucessão de atos administrativos inquisitivos e não
um processo, mormente com o enfraquecimento do seu poder de convencimento decorrente da reforma do artigo 155 do Código de Processo Penal Brasileiro em vigor, através da Lei Federal nº 11.690/2008, proibindo a sentença
fundada exclusivamente nos elementos colhidos durante a investigação, ou
seja, durante o inquérito policial.
Todavia, é uma questão de tempo, em face da importância do inquérito policial na realização de determinadas provas que não podem ser repetidas em Juízo, como o caso de determinadas perícias, para o legislador
regulamentar uma espécie de contraditório, mesmo limitado em relação
a um processo.
Inclusive, em um Estado Democrático de Direito, tal medida se mostra
adequada e garantidora das pessoas em face do eventual abuso do poder
público que pode iniciar na própria investigação policial e na consequente
formação das provas periciais.
3.1.2.4 Princípio da Ampla Defesa
O princípio expresso da ampla defesa está previsto no artigo 5º, LV
da Constituição da República Federativa do Brasil, completa o princípio do
contraditório e estabelece a ampla possibilidade do réu defender-se no processo, sendo uma consequência do devido processo legal.
Inclusive, a sua vinculação com o princípio do contraditório é tão estreita que alguns autores, como é o caso de Marco Antonio Marques da Silva,
tratam ambos em conjunto201.
SILVA, Marco Antônio Marques da. Acesso à justiça penal e estado democrático de direito. São Paulo:
Juarez de Oliveira, 2001. p. 17.
200
FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2010. p. 62.
201
SILVA, Marco Antônio Marques da. Acesso à justiça penal e estado democrático de direito. São Paulo:
Juarez de Oliveira, 2001. p. 17.
199
131
Também, esse princípio se entrelaça e dele decorre a livre convicção
do Juiz, relacionado com a jurisdição, como reação ao passado dos limites
da prova de defesa e a hierarquia das provas, sendo oportuno transcrever
uma parte da exposição de motivos do Código de Processo Penal do Brasil de
1941 (Decreto-Lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1941), ainda em vigor, da
lavra do então Ministro da Justiça e Negócios Interiores do Brasil Francisco
Luis da Silva Campos:
[...] nem é prefixada uma hierarquia de provas: na livre apreciação destas, o juiz formará, honesta e legalmente, a sua
convicção. A própria confissão do acusado não constitui, fatalmente, prova plena de sua culpabilidade. Tôdas as provas são
relativas; nenhuma delas terá, ex-vi legis, valor decisivo, ou
necessariamente maior prestígio do que outra. Se é certo que
o juiz fica adstrito às provas constantes dos autos, não é menos
certo que não fica subordinado a nenhum critério apriorístico
no apurar, através delas, a verdade material. O juiz, é assim,
restituído à sua própria consciência. Nunca é demais, porém,
advertir que livre convencimento não quer dizer puro capricho
de opinião, ou mero arbítrio na apreciação das provas. O juiz
está livre de preconceitos legais na aferição das provas, mas
não pode abstrair-se ou alhear-se ao seu conteúdo. Não estará
ele dispensado de motivar a sua sentença. É precisamente nisto que reside a suficiente garantia do direito das partes e do
interesse social.202
Trata-se de um baluarte em um Estado Democrático de Direito reconhecido pela Declaração Universal dos Direitos dos Homens da Organização
das Nações Unidas203, permitindo ao acusado, além da paridade de oportunidade de mostrar e demonstrar a sua tese, o meio para isto ocorrer.
Em decorrência disso, a defesa possui o direito de arrolar testemunhas,
produzir provas e até requisitar, através do Juiz, documentos e informações
úteis e necessárias para a demonstração da sua tese em um processo, desde
que fundamente os pedidos de diligências, evitando-se com isso medidas
meramente protelatórias.
202
203
AZEVEDO, Vicente de Paulo Vicente. Curso de direito judiciário penal. São Paulo: Saraiva, 1958. p. 46.
SILVA, Marco Antônio Marques da. Acesso à justiça penal e estado democrático de direito. São Paulo:
Juarez de Oliveira, 2001. p. 17.
132
Inclusive, a reforma levada a efeito no Código de Processo Penal, através da Lei Federal n° 11.719/2008, privilegiou a ampla defesa ao estabelecer uma fase preliminar de defesa antecipada ao recebimento da denúncia,
o que permite ao réu alegar os seus argumentos e, com isso, até impedir o
processo, medida salutar de economia processual e de efetivação do binômio contraditório e ampla defesa.
O presente princípio é um dos fundamentos utilizados, mesmo intuitivamente, por tribunais pátrios para justificar a concessão de liminar em
habeas corpus, nos casos em que não está estabelecido o cerceamento do
direito de deambulação e há recurso próprio contra o ato atacado, conforme
demonstrado por ementa no capítulo anterior.
3.1.2.5 Princípio Acusatório e do Juiz Natural
O princípio expresso do Juiz Natural, previsto no artigo 5º, incisos XXXVII e LIII da Constituição da República Federativa do Brasil, também decorre
da ideia do devido processo legal e representa uma garantia contra a existência de tribunais de exceção, estando previstos igualmente na Declaração
Universal dos Direitos do Homem e na Convenção Americana sobre Direitos
Humanos.204
Ainda está presente na memória histórica coletiva a criação de tribunais especificamente para o julgamento de determinadas infrações, algumas
somente estabelecidas como infrações após a prática dos atos, com amplo
controle político e de discutível autonomia para se buscar o ideal de justiça
para uma visão humanista moderna.
Pode-se destacar os chamados Tribunais do Santo Ofício, em especial
a Inquisição Espanhola da Idade Moderna, os chamados Tribunais de Nuremberg205 e de Tóquio, os dois últimos conhecidos oficialmente como Tribunais
SILVA, Marco Antônio Marques da. Acesso à justiça penal e estado democrático de direito. São Paulo:
Juarez de Oliveira, 2001. p. 21.
205
Os Tribunais Militares Internacionais foram instalados logo após o final do conflito sangrento que marcou
a Segunda Guerra Mundial, em que a população civil foi mais atingida do que os militares em conflito.
Não se respeitou nada e as maiores atrocidades da modernidade foram praticadas contra os semelhantes,
sendo que populações e cidades inteiras foram destruídas. Em decorrência disso, desde o ano de 1941 já
nascia o interesse de um julgamento dos líderes nazistas, e depois dos militares japoneses, responsáveis
pelo comando e pelos atos contra a humanidade. O problema residia no fato de que não existiam figuras
típicas anteriores aos atos, bem como não existia um órgão para o julgamento, dificuldades superadas
após o final do conflito com o estabelecimento dos chamados “crimes” e com a criação dos Tribunais.
Indiscutivelmente, os julgamentos que ocorreram na Cidade de Nuremberg e em Tóquio representaram
um revanchismo contra o mal causado pelos nazistas e pelos militares japoneses, dando-se a feição de um
julgamento para aquilo que na verdade foi uma exceção. Os crimes estabelecidos foram: a) Conspiração
204
133
Militares Internacionais, ambos após o final da Segunda Guerra Mundial já no
século XX, para o julgamento dos crimes de guerra, cujos tipos penais foram
criados apenas após a prática das condutas, violando um princípio básico de
democracia que é a irretroatividade da lei penal.
Também, destaca-se o Tribunal de Segurança Nacional do Brasil, como
órgão da Justiça Militar, criado durante o chamado Estado Novo e extinto
ao final do ano de 1945, para o julgamento de crimes políticos e contra a
economia popular.
Completa o princípio do juiz natural, o princípio da identidade física
do juiz, já adotado no Código de Processo Penal do Brasil, através da Lei Federal nº 11.719/2008, estabelecendo a obrigatoriedade do magistrado presidente da instrução sentenciar o processo que não seja da competência do
Júri, estabelecendo a relação entre colheita da prova, livre convencimento
direto e julgamento da causa.
Um questionamento que fazemos com relação ao princípio do Juiz Natural está ligado à manutenção ou não da chamada competência pela prerrogativa da função, em especial, nos crimes dolosos contra a vida, que são
tradicionalmente julgados pelo Tribunal do Júri no Brasil.
Embora a competência pela prerrogativa de função esteja prevista
expressamente na Constituição da República Federativa do Brasil, existem
pontos positivos e negativos quanto à sua manutenção.
Indiscutivelmente, a competência por prerrogativa de função, ao contrário do que os leigos possam julgar ser um benefício para o réu, representa
uma garantia do sistema jurídico, impedindo-se que haja impunidade em
face da eventual proximidade de poderes entre julgado e julgador.
Todavia, existe um prejuízo considerável para o acusado.
Isso porque, dependendo da função por ele exercida, por exemplo, um
ministro de estado, somente existirá um único julgamento pelo Supremo
Tribunal Federal, sem o direito ao reexame por outro órgão de jurisdição,
motivo pelo qual precisa ser repensada a competência por prerrogativa de
contra a paz, recorrendo para tal a um plano comum destinado a tomar o poder e instituir um regime totalitário, com o objetivo deliberado de efetuar uma guerra de agressão; b) Atentados contra a paz e atos de
agressão; c) Crimes de Guerra e violação das Convenções de Haia e Genebra; d) Crimes contra a Humanidade, perseguição e extermínio. Justificado ou não a criação dos mencionados tribunais e os julgamentos,
o fato é que a exceção é perigosa porque cria um precedente que pode ser utilizado posteriormente por
um regime de governo que não seja democrático. Atualmente, a questão foi resolvida com a criação do
Tribunal Penal Internacional, instituído pelo Estatuto de Roma em 2002, estabelecendo infrações penais
contra a humanidade a serem julgadas, como as ocorridas na ex-Iugoslávia (In: NOVA Enciclopédia Barsa
Eletrônica. Enciclopédia Britânica do Brasil Produções Ltda., c. 1999. CD-ROM 1.).
134
função de forma sistematizada para poder ser abarcada juntamente com o
princípio do duplo grau de jurisdição imanente à democracia e ao processo
de modelo acusatório buscado no Brasil, conforme já tivemos oportunidade
de mencionar em capítulo anterior.
Finalmente, oportuno mencionar que existem autores que defendem a
existência do princípio do promotor natural, destacando-se Sérgio Demoro
Hamilton e Hugo Nigro Mazzilli, conforme citação de Rogério Lauria Tucci206.
Porém, embora pareça uma garantia do sistema e até permita uma
aproximação maior do Ministério Público do Poder Judiciário, segundo nosso entendimento, viria a ferir dois princípios próprios e fundamentais no
Ministério Público no Brasil, mais precisamente o da unidade e da indivisibilidade, previstos no parágrafo primeiro do Artigo 127 da Constituição da
República Federativa do Brasil.
Respeitadas as opiniões em contrário, como as acima mencionadas,
acreditamos que o Ministério Público não precise da garantia do promotor
natural, uma vez que já há independência funcional entre os seus membros,
outro princípio institucional. Além disso, a sua força institucional está na sua
unidade e na sua indivisibilidade, razão pela qual a adoção da mencionada
garantia viria apenas a dificultar a atuação funcional sem representar um
ganho efetivo na garantia da Justiça.
A respeito dos princípios institucionais da indivisibilidade e da unidade,
bem como sobre a força que eles emprestam para a instituição, observa
Fernando da Costa Tourinho Filho citando Gaston Stefani:
[...] “Le Ministère Public est un et indivisible”, diz a doutrina
francesa, e a nossa Constituição a repete. A unidade manifesta-se porque os órgãos do Ministério Público atuam como parte
de um todo indivisível e não como órgãos isolados. É impessoal,
constitui um corpo uno. Segundo a comunis opinio, a indivisibilidade evidencia-se na circunstância de poderem os membros da
Instituição substituir-se uns aos outros em um mesmo processo.
É que eles falam pela Instituição. Essa a razão pela qual, em um
mesmo feito, podem funcionar, sucessivamente, vários Promotores de Justiça. Os membros do Ministério Publico são considerados juridicamente uma só pessoa. Aquele que age ou fala
não o faz em seu nome, mais em nome de toda a Instituição.
206
TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. 3. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2009. p. 111-112.
135
Assim, os membros do Ministério Público podem sempre substituir-se mutuamente (Gaston Stefani et al., Procédure pénale.
Paris, Dalloz, 1999, p. 111).207
3.1.2.6 Princípio da Vedação das Provas obtidas por Meios Ilícitos
O mencionado princípio consta expressamente no artigo 5º, inciso LVI
da Constituição da República Federativa do Brasil e está ligado à própria
idéia de segurança jurídica em um Estado Democrático de Direito.
Não se pode admitir, em regra, em um processo penal democrático, provas obtidas por meio ilícito, sejam elas diretas ou indiretas, sob
pena de ser contaminado o processo e dar ensejo a um reforço indireto
a atividades ilícitas por parte dos sujeitos responsáveis pela formação do
conjunto probatório.
Todavia, não se pode olvidar o fato de as provas ilícitas indiretas ou por
derivação serem de percepção mais difícil, embora não impossível se houver
uma preocupação maior com a segurança jurídica das provas.
Postula-se neste trabalho que são vedadas, em regra, as provas ilícitas
em um processo, conforme determina a própria lei (artigo 157 do Código de
Processo Penal Brasileiro).
Porém, na prática, não há como ser negado que a descoberta de uma
prova segura, mesmo que direta ou indiretamente ilícita, provando a inocência de uma pessoa em um julgamento criminal, não pode ser afastada
da formação da convicção do julgador, uma vez que existe a necessidade da
composição do presente princípio com os demais, em especial, o da busca da
verdade no processo e o da proporcionalidade, tendo em vista o fim maior,
mais precisamente a verdade e a justiça de não condenar um inocente.
A respeito do tema, Alexandre de Moraes adverte:
Salienta-se, porém, que a doutrina constitucional passou a atenuar a vedação das provas ilícitas, visando corrigir distorções
a que a rigidez da exclusão poderia levar em casos de excepcional gravidade. Essa atenuação prevê, com base no Princípio
da Proporcionalidade, hipóteses em que as provas ilícitas, em
caráter excepcional e em casos extremamente graves, poderão ser utilizadas, pois nenhuma liberdade pública é absoluta,
207
FILHO, Fernando da Costa Tourinho. Manual de processo penal. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 332-333.
136
havendo possibilidade, em casos delicados, em que se percebe
que o direito tutelado é mais importante que o direito à intimidade, segredo, liberdade de comunicação, por exemplo, de
permitir-se sua utilização.208
A percepção da necessidade da composição das normas escritas com
os princípios, a efetivação de uma interdisciplinaridade e respeito à humanidade na apuração das infrações penais representam a necessidade de um
Direito Processual Penal que não seja baseado exclusivamente em normas
escritas, mas também em princípios, base do estudo desenvolvido com a
presente tese.
O reconhecimento desse princípio não é antigo no ordenamento jurídico brasileiro e é fruto da globalização que trouxe valores próprios de
outros Estados democráticos preocupados há mais tempo com a dignidade
da pessoa humana.
Porém, os Estados Unidos da América do Norte, conhecido pelo respeito ao mencionado princípio, através da conhecida “Teoria da Árvore dos
Frutos Envenenados”209, após os efeitos nefastos do ataque terrorista de 11
de setembro de 2001, ocorrido na cidade de Nova York, no qual morreram
milhares de pessoas, passou a relativizar, paulatinamente, o mencionado princípio, o que está trazendo consequências sérias para a segurança
do seu sistema jurídico, mormente após a adoção de uma série de medidas conhecidas como USA Patriot Act of 2001210. Anota-se que, embora
os norte-americanos não utilizem os princípios apresentados por Gunther
Jakobs211 de cunho processual, preferindo a tese do “direito à legítima
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 100.
A Suprema Corte Norte-Americana, partindo de uma alegoria bíblica que foi a chamada “árvore da vida”,
que produzia um fruto que permitiria a quem comesse conhecer o bem e o mal, estabeleceu a teoria
de que de uma árvore ruim só virão frutos ruins (the fruits of the poisonous tree). Logo, de uma prova
contaminada por vícios, só poderão advir resultados injustos, sendo esta a razão principal para as provas
ilícitas serem rejeitadas de plano. Todavia, com o tempo, esse posicionamento foi minorado através da
ideia de limitação da fonte independente, ou seja, os fatos descobertos a partir da prova ilícita não seriam necessariamente ilegais, quando pudessem ser provados por fonte independente de prova. Também,
pela limitação da descoberta inevitável, pela qual a prova seria admissível se a acusação provasse que
ela seria inevitavelmente descoberta por meios legais, principalmente após o crescimento da ameaça
terrorista contra os Estados Unidos da América do Norte (Disponível em: <http://www.supremecourt.gov/
opinions/05pdf/04-1360.pdf>)
210
O nome correto da norma é Uniting and Strengthening America by Providing Appropriate Tools Required
to Intercept and Obstruct Terrorism (USA PATRIOT) Act of 2001.
211
JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito penal do inimigo, noções e críticas. Tradução André Luís
Callegari e Nereu José Goacomolli. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
208
209
137
defesa preventiva”212, conforme já dito anteriormente, o qual permite ataques preventivos e não se limita ao tratamento processual diferenciado
entre o infrator comum e o chamado “inimigo”, o fato é que na prática
as duas teorias se aproximam e representam uma perigosa exceção ao
princípio democrático da dignidade da pessoa humana e representam, em
longo prazo, o risco da própria inexistência de um Estado Democrático
de Direito.
As crises internas e as externas tornam ainda mais importante o respeito à dignidade da pessoa humana e à democracia.
Isso porque é fácil para a vítima, a qual não tem poder, criticar o seu
algoz poderoso, sendo difícil para a antiga vítima, agora com poder, não se
tornar algoz!
Talvez pareça simplista fazer tal afirmação em um país que não está
marcado pelo terrorismo interno e externo, mas é um fato que reflete uma
realidade que deve levar a uma necessária reflexão sobre o limite que deve
existir na atuação do Estado no trato do interesse coletivo e o próprio equilíbrio entre a proteção individual e a coletiva em um momento atual de
risco mundial como assinalado por Ulrich Beck213, sem perder o respeito do
homem pelo próprio homem.
3.1.2.7 Princípio da Economia Processual
O princípio da economia processual encontra-se expresso no artigo 5º,
inciso LXXVIII da Constituição da República Federativa do Brasil e está ligado
à ideia de celeridade da tramitação, mediante a utilização adequada dos
instrumentos processuais, para que haja um processo eficiente, econômico
e útil para a sociedade.
O processo, embora se manifeste como uma ciência, não pode ser fim
em si mesmo, uma vez que possui a sua instrumentalidade voltada para a
apuração das infrações penais e para um resultado que se traduz em um
provimento jurisdicional, razão pela qual o uso equilibrado dos instrumentais pelo Juízo e pelas partes permite o equilíbrio necessário para o fim de
buscar um processo econômico e eficiente.
212
213
BYERS, Michael. A lei da guerra. Tradução Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record. 2007.
BECK, Ulrich. Sociedade de risco. Tradução Sebastião Nascimento. 2. ed. São Paulo: 34, 2011. p. 7-10.
138
3.1.2.8 Princípio da Duração Razoável do Processo
O princípio da duração razoável do processo completa o princípio anterior e, como ele, está previsto no artigo 5º, inciso LXXVIII da Constituição da
República Federativa do Brasil.
O processo penal possui a finalidade de plataforma de apuração de
infrações penais e de cumprimento das eventuais penas aplicadas, não se
sustentando a sua existência com desapego a estes fins, motivo pelo qual
não pode ser perpetualizado.
Deixando de existir o direito de punir a infração penal investigada por
parte do Estado, bem como o próprio direito de executar a eventual pena
aplicada, acaba por repercutir na perda de sentido de existir um processo,
motivo pelo qual ele deve ser imediatamente extinto.
Um processo que não possua um prazo de duração razoável deixa de ser
instrumento de Justiça, tornando-se mera formalidade ou meio de injustiça,
motivo pelo qual é vedado retardar atos ou prolongá-los sem uma razão
adequada. Observa-se que o Estado, com poucas exceções previstas no artigo 5º, incisos XLII e XLIV da Constituição da República Federativa do Brasil,
possui um tempo para a apuração das infrações penais, uma vez que, no
Brasil, desde o final do século XIX, adotou-se a prescrição como princípio de
direito material, que pode impedir o exercício do direito de punir ou ainda
o exercício do direito de executar uma eventual pena por parte do Estado.
Também, superada a questão da prescrição, não se pode olvidar que o
processo penal, pelas próprias restrições e exposição que causa na vida em
sociedade, por si só, já representa uma tormentosa experiência na vida de
uma pessoa, razão pela qual a sua duração deve ser o mais breve possível.
3.1.2.9 Princípio da Plenitude de Defesa no Júri
O princípio da plenitude de defesa no júri está explicitado no artigo 5º,
inciso XXXVIII, alínea “a” da Constituição da República Federativa do Brasil.
Plenitude de defesa é mais do que ampla defesa, encontrando-se sua
finalidade na proteção integral do ser humano no Tribunal Popular, para que
o réu possa demonstrar todos os seus argumentos em face do seu julgador.
Destaca-se a plenitude de defesa ao ser garantida a palavra do defensor contra apartes sucessivos por parte da acusação com o intuito de
desestabilizar o defensor, bem como atrapalhar a compreensão da sua tese
por parte dos jurados.
Infelizmente, são práticas comuns nos debates no plenário do júri
apartes consecutivos e muitas vezes infundados, prejudicando com isto a
139
expressão e compreensão de um pensamento lógico que possa fundamentar
as decisões dos jurados, cabendo ao juiz togado, no ato de presidir o plenário do júri, garantir o direito de plenitude de defesa do réu sempre que ele
seja ameaçado pela Acusação.
Também está presente no próprio dever do juiz togado fiscalizar a existência de uma defesa técnica adequada, devendo declarar o réu indefeso
quando perceber no defensor falta de condição técnica ou argumentação
adequada em favor do réu.
3.1.2.10 Princípio da Soberania dos Veredictos do Júri
O princípio da soberania dos veredictos do Júri está explicitado no artigo 5º, inciso XXXVIII, alínea “c” da Constituição da República Federativa do
Brasil, ou seja, foi explicitado como uma garantia fundamental.
O princípio sob estudo surgiu expressamente com a Constituição dos
Estados Unidos do Brasil de 1946, mais precisamente no seu Artigo 141, § 29,
como uma garantia do resultado do julgamento pelo Tribunal Popular, mormente após um erro judiciário famoso e emblemático envolvendo as pessoas
dos irmãos Naves, os quais foram absolvidos pela acusação de homicídio pelo
Júri Popular da Cidade de Araguari, no Estado de Minas Gerais, no ano de
1938, acabando por serem condenados pelo Tribunal de Justiça do Estado de
Minas Gerais, diante da possibilidade da revisão do julgado pelo Júri Popular
pelo Tribunal de Justiça do Estado, nos termos do disposto no Artigo 96 do
Decreto nº 167 de 05 de janeiro de 1938.
Posteriormente, após terem passado vários anos presos e um deles ter
morrido, descobriu-se que a suposta vítima de crime de homicídio consumado estava viva, vindo ao conhecimento público os abusos contra a integridade física dos acusados e das testemunhas durante as investigações levadas a
efeito pela polícia214.
Com efeito, embora exista um duplo grau de jurisdição no Sistema
Processual Brasileiro, o Tribunal togado com competência para conhecer o
recurso não poderá mudar o conteúdo da decisão do Conselho de Sentença
do Tribunal do Júri, podendo, em sendo o caso, aumentar ou diminuir a
pena que é aplicada pelo Juiz de Direito Presidente do Júri e, no máximo,
anular, por uma única vez, o conteúdo da decisão dos jurados quando houver
incompatibilidade com as provas dos autos. Observa-se que, existindo no
novo julgamento o mesmo entendimento do anterior, o Tribunal togado com
214
FILHO, João Alamy. O caso Irmãos Naves – um erro judiciário. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1993.
140
competência para exercer o segundo grau de jurisdição não poderá anular
novamente o julgamento.
Uma questão interessante surge com a possibilidade ou não do Tribunal
togado, não em sede de recurso, mas através da ação originária da revisão
criminal poder ou não modificar a decisão do Conselho de Sentença do Tribunal do Júri em benefício do réu, até porque não existe revisão criminal em
prol da sociedade, e não simplesmente remeter a novo Júri.
Inexistindo previsão expressa na Constituição da República Federativa do Brasil, defende-se o entendimento de que é possível a revisão criminal sobre os veredictos do Tribunal do Júri, uma vez que não se trata de
recurso, mas de ação originária que atinge qualquer sentença condenatória com trânsito em julgado, momento em que o processo de conhecimento
deixou de existir e passou o decreto condenatório popular a constituir
um título executivo penal como qualquer outra condenação oriunda de
outros órgãos.
Inclusive, o presente entendimento está alinhado com a ideia de um
processo penal principiológico, em que acima da formalidade existe a busca
da verdade com base na aplicação de princípios juntamente com a norma
escrita, complementando-a quando não há previsão expressa como no presente caso.
3.1.2.11 Princípio do “nemo tenetur se detegere”
O princípio de que ninguém será obrigado a produzir prova contra si
mesmo encontra a sua base no próprio sistema democrático de direito que
há muito repeliu a ideia da “confissão como rainha das provas” e da própria
forma como esta confissão era conquistada à força no passado.
O legislador constituinte, na Constituição Federal Brasileira de 1988,
fez inserir expressamente o direito ao silêncio no artigo 5º, inciso LXIII, do
que decorre a ideia de que ninguém é obrigado a produzir prova contra si
mesmo, não permitindo com isso que o silêncio de uma pessoa seja interpretado contrário a ela, uma vez que não possui o dever de responder a
perguntas que possam comprometer os seus interesses.
Esse princípio, embora aceito e aplicado pela comunidade jurídica
brasileira há muitas décadas, mormente após a Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988, não era muito invocado e até lembrado, o
que mudou radicalmente após as chamadas Comissões Parlamentares de
Inquérito das casas legislativas brasileiras, com poderes equiparados aos
dos Juízes, que passaram a convocar pessoas suspeitas pela prática de
infrações penais, na qualidade de testemunhas, tentando conseguir com
141
isto confissões sob a sombra de prisões em flagrante delito por crimes de
desacato ou de falso testemunho sempre que as pessoas deixavam de responder às suas perguntas, algumas questões, muitas vezes, com nuanças
inquisitoriais.
Inclusive, com isso, intensificou-se uma maior utilização do remédio
constitucional do habeas corpus preventivo, junto ao Supremo Tribunal Federal, órgão judicial competente quando a autoridade coatora é membro do
Senado ou da Câmara dos Deputados Federais, para que as pessoas efetivamente não fossem compelidas a fazer provas contra si mesmas, bem como
que o seu direito ao silêncio não representasse confissão ou o cometimento
de infrações penais perante as Comissões Parlamentares de Inquérito do
Senado e da Câmara dos Deputados Federais.
Também, discute-se a própria constitucionalidade do artigo 277 da Lei
Federal nº 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro), o qual determina a obrigatoriedade de o motorista envolvido em acidente de trânsito ou submetido
à fiscalização administrativa se submeter a testes de alcoolemia, em especial em face do disposto no artigo 306 do mesmo diploma, que permite a
prisão em flagrante delito por crime de dirigir veículo automotor sob influência do álcool se apresentar concentração de mais de 6 (seis) decigramas
de álcool por litro de sangue.
Inclusive, a polêmica foi expressiva na sociedade brasileira que levou
o legislador a mudar o texto do artigo 277 da Lei Federal nº 9.503/97,
através da Lei Federal nº 12.760/12, estabelecendo outras formas de provas indiretas da influência do álcool no organismo do condutor de veículo
automotor terrestre.
Defendemos a posição de não ser possível a submissão forçada ao teste
de alcoolemia, embora entendamos que a legislação precisa ser alterada
para não ser exigida uma quantidade certa de álcool por litro de sangue
para ser verificada a embriaguez, bem como a adoção de meios alternativos
para a sua constatação, resultando o teste de alcoolemia como um direito
de prova do réu e não contra ele como ocorre no presente momento, sendo
a última posição adotada pela Lei Federal nº 12.760/12.
3.2 Princípios imanentes na Constituição Federal
São os princípios que necessitam de uma análise do regime político, do
ordenamento jurídico e dos tratados internacionais em que o Brasil é signatário e que passaram a fazer parte do ordenamento jurídico brasileiro para
serem constatados.
142
3.2.1 Princípios imanentes gerais
Aplicam-se a outras áreas do direito e não apenas ao processo penal.
3.2.1.1 Princípio da Proporcionalidade
O princípio imanente da proporcionalidade é de suma importância para
um Estado Moderno, mormente um Estado que tenha como objetivos a dignidade da pessoa humana, a criação de uma sociedade justa, igualitária e solidária, representando a garantia de que as eventuais sanções não sejam mais
aviltantes do que o ato praticado. Pode-se fixar as suas bases Constitucionais
no artigo 1º, inciso III, c.c. artigo 3º, inciso I e IV, todos da Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988.
A finalidade do princípio baseia-se na ideia de que a ação do Estado
deve possuir uma medida adequada de proporção entre os interesses em
conflito, aplicando-se a todas as áreas dogmáticas do direito, em especial
ao Direito Penal e no Direito Processual Penal.
Porém, em um Estado Moderno, baseado em normas e em princípios,
o aparente conflito fez surgir a necessidade da ampliação do princípio da
proporcionalidade para abarcar a colisão de interesses constitucionalmente
protegidos.
Através do presente princípio é possível a solução de um aparente conflito entre princípios e entre normas constitucionais, bem como entre elas
e princípios imanentes, tendo como base o princípio maior da dignidade da
pessoa humana e o objetivo do coletivo sobre o individual dentro de um
regime democrático de direito.
Essa concepção moderna do princípio da proporcionalidade é apontada
por Luiz Francisco Torquato Avolio, citado por Alexandre de Moraes:
[...] “é, pois, dotada de um sentido técnico no direito público
a teoria do direito germânico, correspondente a uma limitação
do poder estatal em benefício da garantia de integridade física
e moral dos que lhe estão sub-rogados (...). Para que o Estado,
em sua atividade, atenda aos interesses da maioria, respeitando os direitos individuais fundamentais, se faz necessário não
só a existência de normas para pautar essa atividade e que, em
certos casos, nem mesmo a vontade de uma maioria pode derrogar (Estado de Direito), como também há de se reconhecer
e lançar mão de um princípio regulativo para se ponderar até
que ponto se vai dar preferência ao todo ou às partes (Princípio
143
da Proporcionalidade), o que também não pode ir além de um
certo limite, para não retirar o mínimo necessário a uma existência humana digna de ser chamada assim” 215
A origem do mencionado princípio é discutível, existindo quem aponte
a antiguidade através da Lei de Talião, enquanto outros apontam o Direito Administrativo e até a Filosofia, como cita Fabiana Lemes Zamalloa do
Prado216.
Porém, a sua necessidade se mostrou ao final da Segunda Guerra Mundial, com a necessidade de serem explicitados direitos e garantias individuais, sem perder o foco sobre os interesses coletivos e difusos, às vezes
aparentemente conflitantes com os primeiros.
3.2.1.2 Princípio da Culpabilidade
O princípio imanente da culpabilidade é uma das distinções entre o
direito penal primitivo e o direito penal moderno desenvolvido após o Iluminismo. Isso porque, no passado, bastava a produção do resultado para existir
a aplicação do preceito secundário.
O mencionado princípio decorre da ideia de dignidade da pessoa humana e afasta a responsabilidade objetiva como regra, embora ela ainda exista
no direito penal, como no caso da actio libera in causa.
A culpabilidade é um fundamento da pena, mas não deixa de ser do
próprio processo, uma vez que a partir da reforma do Código de Processo
Penal Brasileiro, com o advento da Lei Federal nº 11.719/2008, a denúncia
ou a queixa-crime são rejeitadas quando não houver justo motivo para o
exercício da ação penal (artigo 395, III do Código de Processo Penal), como
também, mesmo que aceita a denúncia ou a queixa-crime, existirá a absolvição sumariamente do agente após a defesa preliminar e quando verifiquem
as circunstâncias do artigo 397 do Código de Processo Penal.
Logo, o processo penal não é uma mera plataforma inócua para a materialização do direito material, mas uma expressão do exercício da soberania
de um Estado, através da jurisdição e uma real interferência na vida das
pessoas, motivos pelos quais precisa ser amparado em um justo motivo que
representa a expressão do princípio da culpabilidade.
215
216
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 100-101.
PRADO, Fabiana Lemes Zamalloa do. A ponderação de interesses em matéria de prova no processo penal.
São Paulo: IBCCRIM, 2006. p. 177-179.
144
Não se desconhece o fato de que a mera existência de um processo já
representa limitações na vida do cidadão e uma fonte de sofrimento.
O processo penal, embora seja uma garantia do cidadão conquistada
ao longo da história, passou, com o tempo, mormente diante da existência de registros perenes dos feitos, os quais são controlados pelo Poder
Executivo e não apenas pelo Poder Judiciário, a representar uma fonte de
exclusão social.
A pessoa processada criminalmente, na prática, mais precisamente
pela maior parte da população constituída pelos iletrados quanto às questões jurídicas, já é tratada como uma pessoa culpada, bem como o gravame
se perpetua mesmo que haja a absolvição, uma vez que o registro é permanente, com exceção no caso da transação penal e da suspensão condicional
do processo cumprida, que são controladas exclusivamente pelo Poder Judiciário e cuja consulta não é facilitada, como no caso dos registros controlados pela polícia.
Inclusive, em comunidades menores, independentemente de registros
e do acesso a eles, a própria lembrança da população prorroga a mácula do
processo penal no tempo.
Uma pessoa deve ser tratada como culpada em face de elementos de
convicção seguros e após ser condenada e não apenas pelos registros de feitos anteriores, base de um Estado Democrático de Direito.
O princípio da culpabilidade só será amplo e efetivo, no processo penal, quando todos os registros envolvendo pessoas investigadas e até processadas sejam provisórios nas plataformas de dados do Poder Executivo e
apenas definitivos quando houver condenação com trânsito em julgado, mas
em uma plataforma do Poder Judiciário e com consulta controlada. Anoto
que, além do que já foi dito, muitas pessoas possuem suas expectativas de
emprego frustradas em razão de inquéritos policiais que sequer chegaram a
virar um processo.
Também, quando houver uma ética efetiva por parte da imprensa, conseguindo o equilíbrio entre o direito e dever de informar, com o respeito
pela pessoa do acusado e sem sensacionalismo.
3.2.1.3 Princípio da Necessidade
É um outro princípio próprio do Direito Penal, mas que não deixa de ter
reflexo no âmbito do Direito Processual Penal, uma vez que o processo penal
e as medidas processuais que restringem direitos devem ser utilizados desde
que haja a efetiva necessidade que vai além da mera possibilidade formal,
145
uma vez que para o homem os efeitos de um processo penal já são graves na
sua vida social e, pessoalmente, são ainda mais graves diante de uma prisão
temporária ou preventiva, bem como diante do bloqueio e da apreensão de
bens e de valores.
O princípio da necessidade é imanente e se desenvolve em paralelo à
noção de proporcionalidade, ou seja, além de equilíbrio na ação do Estado,
o Estado-Juiz deve investigar sobre a necessidade de um processo penal e
de cada medida tomada que venha a restringir direitos, seja no âmbito do
direito material como no do direito processual.
Não se pode olvidar o fato de que o processo penal em si já representa
uma fonte de restrições materiais, morais e sociais, mormente para aquele
que é inocente.
Inclusive, o eventual provimento negativo da pretensão acusatória ao
final de um processo, poderá representar uma mera satisfação solitária do
acusado e dos poucos a tomarem conhecimento do seu conteúdo.
Todavia, inócua para reconstruir a vida da vítima do processo penal,
uma vez que a mácula social intensificada pela imprensa é perene.
O processo penal é meio de busca da verdade e não base para a
emulação dos seres humanos, razão pela qual a sua existência deve ser
pontual e necessária com base na materialidade de um ilícito e de indícios reais de autoria, deixando as investigações e as presunções para
uma fase anterior.
3.2.2 Princípios imanentes específicos do Processo Penal
Juntamente com os princípios processuais penais explicitados na constituição, os princípios processuais penais imanentes aplicam-se diretamente
ao processo.
3.2.2.1 Princípio da Obrigatoriedade
O princípio da obrigatoriedade não é expresso na Constituição da República Federativa do Brasil, mas permanece imanente e decorre do sistema,
uma vez que a substituição do direito da autotutela pelo jus puniendi por
parte do Estado fez surgir como contraponto do dever do Estado punir aquele que desrespeita as suas normas e o semelhante, não se podendo esquecer
a sempre salutar lição de Jean-Jaques Rousseau, na sua obra Du contrat
social, no sentido de que o contrato entre o povo e o Estado é um pacto so-
146
cial e não um ato de submissão, do que decorre o direito do povo se rebelar
quando a outra parte não cumpre o seu dever.217
O Código de Processo Penal de 1941, no seu artigo 24, estabelece
que a ação penal pública será promovida pelo Ministério Público e no
artigo 42, do mesmo diploma, determina que o Ministério Público não
poderá desistir da ação penal, aplicando o princípio da obrigatoriedade
infraconstitucionalmente.
Todavia, discute-se se tal princípio é absoluto ou relativo, mormente
após o advento da Lei Federal nº 9.099/95 que estabeleceu os Juizados Especiais Civis e Criminais, bem como diante da jurisprudência adotando a ideia
de Bagatela” ou da “Insignificância”.
Acreditamos que sendo um princípio é absoluto e somente se fosse
mudada a lei poderia ser modificada a sua condição.
Inclusive, o afastamento do crime em razão da ideia de insignificância
não viola o princípio da obrigatoriedade, porque é decisão judicial e o Poder
Judiciário não está vinculado a tal princípio em um julgamento que aprecie a existência de um crime e os requisitos para a sua punição. Também,
a Lei Federal que instituiu os Juizados Especiais Criminais (Lei Federal nº
9.099/95), possui sistemática legal própria, ou seja, não ofende o princípio
em questão.
O melhor questionamento seria quanto à existência da atual necessidade da manutenção de tal princípio, em face do resultado obtido por outros
países que não o adotam.
Defendemos a posição de que seria melhor equacionado o problema da
punição dos atos classificados como infrações penais, bem como o volume
crescente do número de processos em trâmite, sem falar na demora no
julgamento dos feitos, caso fosse adotada a possibilidade de acordo entre a
acusação e a defesa com relação à pena a ser antecipada, instituto conhecido como pre-bargain.
Os Estados Unidos da América, por exemplo, adotam institutos que vão
desde o afastamento de qualquer imputação, em casos em que caiba tal
acordo por política de interesse na obtenção de provas em processos criminais e o acordo com relação a uma pena menor antecipada prevenindo
um processo longo (pre-bargain), até a chamada bargain, em que o Estado,
através do Ministério Público pode transigir com relação à acusação, tipifi-
217
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. Tradução Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2000.
147
cando a conduta em uma infração com sanção menos severa, sempre que
houver real interesse para a sociedade, funcionando o magistrado como um
fiscal de tal interesse.
A ideia da barganha norte-americana não afasta o medo pela punição,
não impede os direitos e as garantias individuais do acusado e não representa impunidade, como no caso do afastamento da antijuridicidade pela
suposta insignificância econômica da conduta.
O Marquês de Beccaria, Cesare Bonesana, no seu pequeno grande livro
Dei delitti e delle pene, já advertia que [...] A certeza de um castigo, mesmo moderado, sempre causará mais intensa impressão do que o temor de
outro mais severo, unido à esperança da impunidade.218
Um Direito Processual Penal Principiológico como o defendido como o
presente trabalho, poderia ser melhor aplicado caso houvesse a flexibilidade
legal e principiológica do Sistema Jurídico do Brasil, com a revogação social
e legal do princípio da obrigatoriedade e a adoção de institutos como os da
pre-bargain e bargain, segundo nosso ponto de vista.
3.2.2.2 Princípio da Verdade no Processo Penal
O princípio da verdade é voltado para a apreciação da prova, sendo
imanente à Constituição da República Federativa do Brasil, bem como decorre do sistema processual de um Estado Democrático de Direito.
Enquanto no processo civil se busca a verossimilhança, no processo
penal se busca a verdade material, mais precisamente, a certeza quanto
à existência de uma infração penal e sua autoria, uma vez que, em regra,
trabalha-se com a liberdade, um dos principais bens depois da vida.
Embora a palavra verdade seja melhor alcançada pela comparação com
a sua antítese, que é a mentira, no âmbito do Direito Processual Penal possui
o significado ampliado não só para proibir a apresentação de provas e informações inverídicas e fraudadas, como também proíbe que se omita sobre
elementos relevantes para a busca da verdade.
A primeira questão envolvendo a vedação da apresentação de elementos de convicção falsos, vincula não só as partes como o próprio órgão julgador, o qual também não pode desvirtuar as provas e demais informações
contidas nos autos para adequá-las à sua convicção no ato de julgar.
218
BONESANA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução J. Cretella Júnior e Agnes Cretella. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 87.
148
Porém, a questão envolvendo a omissão de elementos relevantes para o
julgamento e a consequente busca da verdade, embora continue vinculando
da mesma forma a acusação e o órgão julgador, acaba por ser excetuado
com relação à defesa.
Isso porque, tal obrigação é mitigada pela aplicação do princípio da
proporcionalidade em face do aparente conflito existente com relação ao
princípio da vedação da obrigação da defesa fazer prova contra o réu.
Não se trata de uma exceção ética, mas de adequação entre o interesse
e o direito de defesa e o dever de apresentar os elementos de convicção
para o julgamento.
Todavia, com relação aos órgãos do Estados, sejam eles de acusação ou
de julgamento, não há exceção, até porque a conduta dos órgãos é impessoal e em nome do Estado, do que decorre que a ética é sempre absoluta.
Melhor esclarecendo o que foi acima apresentado, todas as partes
e o próprio julgador que preside o julgamento não podem faltar com a
verdade ou apresentar documentos e outros elementos de convicção que
sejam falsos.
Porém, enquanto a acusação e o órgão julgador não podem se omitir
sobre elementos de convicção que chegarem ao seu conhecimento, mesmo
que contrários às suas convicção, a defesa não é obrigada a apresenta-los
e com isto fornecer informações e documentos que possam prejudicar o
acusado.
Essa é a razão pela qual a acusação oficial, mesmo agindo como parte
em um processo penal, em especial, no Plenário do Júri, não pode esquecer
que existe uma ética maior e acima do amor aos debates e à sua vitória
através do veredicto dos jurados.
Inclusive, Magistrados e Promotores de Justiça não atuam com interesse pessoal, como ocorre com a Defesa, mas com o interesse do Estado que
precisa ser moral.
Será que a mesma ética oficial acima apresentada se estende a acusação privada nas ações penais privadas e quando atua como assistente de
acusação?
Entendemos que mesmo nesse caso, o direito de punir e de investigar
continuam sendo do Estado e não das partes, motivo pela qual a ética pela
verdade vincula a parte privada que atue como autora de uma ação penal
privada ou como assistente de acusação em uma ação penal pública, levando a desobediência a consequências legais, no mínimo, de indenização no
âmbito civil.
149
3.2.2.3 Princípio da Identidade Física do Juiz
O princípio da identidade física do juiz é recente no direito processual
penal brasileiro e não está previsto expressamente na Constituição da República Federativa do Brasil, embora seja imanente por ser uma expressão de
um Estado Democrático de Direito.
O princípio foi explicitado, infraconstitucionalmente, no Código de Processo Penal, mais precisamente no artigo 399, § 2º, decorrente da reforma
trazida pela Lei Federal nº 11.719/2008.
A medida, embora possa parecer uma fonte de complicação, mormente quando se observa que o Código de Processo Penal não fez as ressalvas
adotadas pelo Código de Processo Civil no tocante a afastamentos e promoções dos Magistrados, representa uma garantia do sistema, uma vez que o
magistrado que colheu as provas é o mais indicado para poder analisá-las e
proferir um julgamento.
Os contatos com as testemunhas e com o acusado são úteis para a
formação da convicção de um magistrado em primeiro grau de jurisdição,
mormente quando o conjunto probatório é basicamente formado por provas orais.
3.2.2.4 Princípio do Duplo Grau de Jurisdição
O chamado princípio do duplo grau de jurisdição é imanente na Constituição da República Federativa do Brasil e não existia nos primórdios do
Direito, uma vez que as decisões se caracterizavam por ser definitivas.
Todavia, foi na Idade Média o desenvolvimento do costume de se apelar para o soberano visando com isto à comutação de penas ou à revisão de
julgados, sendo conhecidas as chamadas cartas de perdão219, normalmente
redigidas por membros da igreja em benefício dos seus congregados.
Já, no Brasil atual, o princípio decorre do nosso Sistema Jurídico.
A ideia de revisão de um julgado representa uma segurança em um
Estado Democrático de Direito, principalmente quando ela é realizada por
um colegiado composto por vários magistrados, como no Brasil, onde são
juízes mais antigos e com isso experientes, evitando-se decisões equivocadas
219
As cartas de perdão, em regra, eram comutações de penas concedidas pelo rei para pessoas que cometiam
o que eram consideradas infrações penais, transformando, normalmente, penas aflitivas e capitais em
penas menos rigorosas como a de multa. As cartas de perdão em si podem ser entendidas como uma forma
do rei reduzir o rigor das normas e com isso demonstrar a sua grandeza como soberano. In: DAVIS, Natelie
Zemon. Histórias de perdão e seus narradores na França do século XVI. Tradução José Rubens Siqueira.
São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
150
e radicais que acabem por ser piores do que os próprios fatos levados ao conhecimento da Justiça.
Inclusive, o duplo grau de jurisdição representa a própria aceitação dos
limites humanos de um magistrado que pode se equivocar na análise de uma
prova e na consequente aplicação da lei. Anota-se que não se trata de um
mecanismo derivado na desconfiança da atuação de magistrados, mas uma
forma de segurança do sistema contra erros que podem existir e com isso
venham a comprometer os direitos e as garantias individuais.
3.2.2.5 Princípio da Duração Razoável da Prisão Cautelar
Trata-se de um princípio imanente na Constituição da República Federativa do Brasil e decorrente do sistema jurídico do país, estando intimamente ligado ao princípio da dignidade da pessoa humana.
A prisão cautelar é a exceção ao sistema e, em razão disto, deve ser
decretada somente quando estão presentes os requisitos legais, sob pena de
ser fonte de injustiça.
Também, não pode persistir por tempo indeterminado, mesmo que o
legislador não tenha, expressamente, definido o tempo máximo de prisão
cautelar, até porque existe o limite ditado pela prescrição do direito de
punir ou de executar uma pena por parte do Estado.
A ausência de uma determinação expressa do tempo máximo de prisão
cautelar, ao contrário do que ocorre com o máximo de tempo permitido
para a pena privativa de liberdade no Brasil, que é de 30 anos, nos termos
do artigo 75 do Código Penal Brasileiro, em consonância com o artigo 5º,
inciso XLVII, alínea “b”, da Constituição Federal de 1988 (proíbe a prisão
perpétua), deve-se ao fato de que um processo não é igual ao outro, sendo
certo que podem ocorrer situações que justifiquem a manutenção do encarceramento de uma pessoa por prazo mais elevado do que em outro processo,
como ocorre nos casos de incidentes como a insanidade mental ou até para
diligências visando à realização de provas em outras comarcas ou países.
Porém, mesmo existindo justificativa, deve ser dado um parâmetro ditado pelo “bom senso” dos julgadores e que não pode ser superior ao prazo a
que o agente estaria sujeito a uma pena privativa de liberdade e da prescrição
em concreto da pena, dentro de um juízo de probabilidade e sempre inferior
ao prazo da prescrição em relação ao limite máximo da pena em abstrato.
Apresenta-se oportuno expressar que o sistema brasileiro prevê duas
modalidades de prazo prescricional no tocante à pretensão punitiva por parte do Estado.
151
A primeira modalidade é conhecida como prazo em abstrato, por usar o
prazo máximo da pena privativa de liberdade prevista para a infração penal
no seu preceito secundário do tipo penal, utilizando-se para isto a tabela
prevista no artigo 109 do Código Penal.
Todavia, na prática, é difícil a condenação à pena privativa de liberdade pelo prazo máximo previsto no preceito secundário do tipo penal da infração penal imputada, razão pela qual existe o chamado prazo em concreto
para a prescrição da pretensão punitiva.
Tal prazo é encontrado a partir da pena privativa de liberdade efetivamente aplicada pelo Juízo, independentemente do trânsito em julgado, permitindo a ocorrência da chamada “prescrição retroativa”, própria do Direito
Penal brasileiro, revendo para trás os períodos de interrupção da prescrição
já passados, até o recebimento da denúncia. Trata-se de uma revisão de
todos os períodos de tempo da prescrição que sofreram interrupção, considerando o novo prazo prescricional ditado pela pena aplicada em concreto,
representando uma nova revisão dos prazos em benefício da Defesa.
O limite máximo de uma prisão cautelar deve ser o que acarretaria uma
eventual pena privativa de liberdade e a chamada prescrição em concreto
da pretensão punitiva do Estado, embora o limite adotado pelos Tribunais
pátrios varie de Câmara para Câmara de um Tribunal, bem como de um Tribunal para outro, não chegando em regra a ser superior ao prazo de um ano.
3.2.2.6 Princípio da Iniciativa das Partes
Trata-se de um princípio imanente ajustado com a ideia de um processo
penal acusatório e não mais inquisitivo como outrora no direito processual
penal brasileiro.
Através desse princípio, o presidente do processo deve deixar para as
partes a formação e a apresentação das provas, evitando atos de ofício que
possam comprometer a imparcialidade necessária em uma relação processual entre Poder Judiciário e as partes.
O Órgão Julgador, praticando atividades próprias das partes, compromete o foco da sua análise, correndo o risco de tomar um partido e até de
deixar de considerar aspectos menos evidentes sobre o objeto da apuração
judicial. Além disso, causa insegurança e desequilíbrio no processo, fracassando com isto o interesse do Estado de pacificação social e de credibilidade
através de um processo penal.
A intervenção do Órgão Julgador deve ser guardada para casos extremos
e efetivamente necessários, quando a solução da dúvida impõe diligências.
152
3.2.2.7 Princípio da Vedação do Duplo Processo
Trata-se de outro princípio imanente na Constituição da República Federativa do Brasil.
A vedação de um duplo processo pelo mesmo fato é uma garantia do sistema, como também uma condição para permitir a credibilidade da Justiça.
A existência de dois processos pelo mesmo fato permite a possibilidade
de duas decisões diametralmente opostas, motivo de insegurança jurídica
para a sociedade e de descrédito para o Poder Judiciário.
Existindo dois processos pelo mesmo fato, o mais novo deverá ser extinto ou ainda reunido ao primeiro com base no instituto da listispendência
previsto no artigo 95, inciso III do Código de Processo Penal do Brasil.
3.2.2.8 Princípio do Sigilo das Votações do Júri
O princípio do sigilo das votações do Júri representa um princípio imanente no sistema jurídico brasileiro, que se contrapõe à ideia de publicidade
e discussão da votação do Júri própria do sistema norte-americano.
A ideia de fundo decorrente de tal princípio é o resguardo dos jurados
para poderem exercer com soberania o seu julgamento, sem se preocupar
com eventuais críticas ou com o fantasma de uma vingança por parte do acusado e seus familiares. Observa-se que o Júri é formado por jurados, pessoas
comuns, normalmente, sem qualquer conhecimento mais profundo sobre o
sistema judiciário e as suas normas, decorrendo disto um medo natural por
represálias.
Além disso, costumam se sentir intimidados com a possibilidade de ter
que assumir uma posição de condenar ou absolver publicamente uma pessoa.
3.2.2.9 Princípio da Oficialidade
O Estado, como titular do direito de punir e de investigar, possui o poder de iniciar as investigações e promover a ação penal, sendo este princípio
imanente no texto constitucional, uma vez que a sua constatação decorre da
interpretação de diversos dispositivos da carta constitucional em conjunto
com o sistema político adotado e com a própria lei infraconstitucional, motivo pelo qual ele é um princípio imanente.
Tal princípio é mitigado quando o interesse do particular se sobrepõe
ao interesse do Estado, ou quando ainda há omissão por parte de quem, na
representação do Estado, não promove os atos necessários para a apuração
das infrações penais.
153
Com efeito, no sistema processual penal brasileiro, a regra é a ação
penal pública incondicionada, existindo ainda a ação penal pública condicionada à representação do interessado e ainda a ação penal privada, as duas
últimas por concessão do poder do Estado.
A ação deixará de ser pública incondicionada para chegar ao extremo
de ser privada, conforme o maior interesse do particular sobre o público,
segundo o determinado na lei processual penal.
Ao final do capítulo, a apresentação do rol dos princípios conforme a
divisão acima proposta, reiterando que princípios são valores essenciais de
uma organização social, bem como tudo que foi dito nos capítulos anteriores, permite a sensibilização do legislador, do estudioso e do aplicador do
direito, em especial no âmbito do direito processual penal, sobre a necessidade de balizas que mantenham a adequação da norma escrita e sua aplicação com os valores sociais internos do país a que ele serve, e internacionais,
em um momento de formação de uma sociedade internacional através do
processo conhecido como globalização. Isso faz com que a norma aplicada
ao caso concreto seja fonte de humanidade e não apenas de razão estéril de
valores e mera expressão de poder do Estado. Também afasta a ideia de um
direito processual penal que sirva como meio para a vingança.
154
155
CONCLUSÕES
Durante a investigação acadêmica levada a efeito com o presente trabalho, foi possível analisar e concluir a respeito da proposição de um Direito
Processual Penal Principiológico:
Através das discussões desenvolvidas no primeiro capítulo, quanto à
formação dos princípios e à relação direta destes com uma organização social, verifica-se que os princípios existem antes do aparecimento das normas
escritas, bem como são formados e exteriorizados pelo conjunto de experiências de uma organização social durante a sua evolução social e histórica;
Uma norma jurídica é legítima, do ponto de vista social, quando atende aos princípios da organização social para a qual ela serve e também aos
princípios internacionais, iniciados com o reconhecimento da dignidade da
pessoa humana como valor universal, supralegal e supracultural, repercutindo na validade efetiva da norma demonstrada pela menor necessidade de
coerção para a sua execução interna dentro de um Estado e pelo reconhecimento internacional por parte de outros Estados;
Os princípios são valores essenciais que ocupam o polo mais extremado
da importância dos valores sociais, razão pela qual são essenciais para caracterizar a sociedade a que eles representam;
Não é qualquer valor social, tradição ou costume que representa um
princípio e podem variar de uma época para outra, ou de uma sociedade
para outra, dentro de uma historicidade da vida em sociedade;
Ainda no primeiro capítulo, revelou-se que os princípios representam
balizas para a atuação dos Estados nacional e internacional, em especial o
supraprincípio internacional da dignidade da pessoa humana;
A efetiva preocupação com a proteção dos direitos humanos e sua reafirmação através da universalização do princípio da dignidade da pessoa
humana ocorreram com o desenvolvimento da comunicação, através de fotografias, filmes e imprensa escrita, levando para a população das diversas sociedades do mundo, o conhecimento sobre os horrores praticados nos
campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial;
O Direito Principiológico está vinculado à ideia de ética humanitária e
aplica-se a todas as áreas do Direito dogmático, mas possui especial importância no âmbito do Direito Penal e do Direito Processual Penal, que cuidam
de bens preciosos dos seres humanos e que são os seus direitos à vida e a
liberdade;
156
O Direito baseado exclusivamente em normas escritas não atende a
todas as peculiaridades que os casos concretos apresentam no âmbito do
Direito Processual Penal, conforme exemplos históricos e pessoais contidos
no Capítulo 2, sendo necessário um processo penal principiológico para existir flexibilidade e humanidade na aplicação do Direito Penal e do Direito
Processual Penal;
O Direito Processual Penal Principiológico é de natureza mista, mais
precisamente um meio termo entre o Positivismo e o Direito Natural, situando-se dentro de uma ideia de funcionalismo jurídico sistêmico com base
em princípios e não na política criminal, permitindo com isto sua existência
independentemente do controle de quem esteja ocupando o poder dentro
de uma sociedade;
Representa uma equilibrada composição entre o Direito Consuetudinário e o Direito Escrito, funcionando os princípios como modeladores do
sistema jurídico interno e internacional em formação;
Trata-se de um Direito baseado na valorização do homem, do respeito
pela sua humanidade e dignidade, valores hoje internacionais, supraculturais e supralegais;
A seleção dos princípios no Capítulo 3 decorreu do reconhecimento
doutrinário e jurisprudencial e está de acordo com os valores da sociedade
brasileira;
O rol de princípios não é taxativo e, sim, aberto porque outros princípios podem ser formados dentro da historicidade da vida em sociedade;
Os princípios explicitados ou imanentes na Constituição da República
Federativa do Brasil servem como balizas para uma nova forma de criar,
interpretar e aplicar o Direito, com flexibilidade e adequação social, em
especial o Direito Processual Penal;
O futuro do Direito, em especial o Direito Processual Penal, tenderá
à sua internacionalização, processo iniciado no século passado, principalmente através da chamada Rede Mundial de Computadores, conhecida pela
palavra internet, sendo uma repercussão natural a adoção de princípios internacionais pelos Estados que irão balizar o futuro sistema internacional do
Direito dentro da sociedade internacional em desenvolvimento;
Ao final deste trabalho, percebeu-se que a inquietação inicial era relevante quanto à necessidade da observação de princípios na criação e na
aplicação das normas escritas dentro de um sistema jurídico que busca respeitar o homem, sua historicidade e sua dignidade.
157
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165
APÊNDICES
E
ANEXOS
166
Apêndice A
Sentença envolvendo o réu que ficou tetraplégico
4ª. VARA CRIMINAL DA COMARCA DE SÃO PAULO.
PROCESSO Nº 050.02.029220-4. CONTROLE Nº 638/03.
VISTOS etc.
VALTER LINS BATISTA DA SILVA, qualificado à fl. 23 está sendo processado como incurso nas sanções do artigo 157, parágrafo segundo, incisos I e
II (duas vezes), c.c. artigo 70, “Caput”, c.c. artigo 329, § 1º, c.c. artigo 69,
“Caput”, todos do Código Penal, c.c. artigo 10, § 1º, inciso III, da Lei Federal
nº 9.437/97.
Segundo a denúncia e o que consta nos autos do inquérito policial, em
síntese, no dia 21 de abril de 2003, por volta das 00 hora e 40 minutos, no
interior de um estabelecimento comercial denominado “Habib’s”, localizado na Avenida Professor Francisco Morato, 2.689, nesta Cidade, o réu, em
concurso de agentes com outras pessoas ainda não identificadas, mediante
grave ameaça exercida com o emprego de arma de fogo, bem como fazendo
uso de motocicletas, subtraíram, para eles, valores pertencentes à pessoa
jurídica, bem como cartões de crédito, cartão bancário e documentos pertencentes à pessoa de nome Deusdete Gomes Fernandes Vieira, gerente da
pessoa jurídica, fugindo em seguida.
Logo após, durante uma perseguição policial, o acusado efetuou disparos contra uma guarnição policial, acabando ferido e preso no revide,
enquanto que os demais fugiram com o produto dos crimes de roubo.
A denúncia foi recebida no dia 15 de maio de 2003 (fl. 38).
O acusado foi citado, interrogado e a sua defesa prévia foi apresentada.
Durante a instrução, foram juntados diversos documentos, bem como
foram ouvidas três testemunhas e uma vítima.
Encerrada a instrução, as partes apresentaram as suas alegações finais.
167
O Ministério Público, em síntese, entendendo provada a imputação,
pugnou pela condenação do acusado.
A Defesa, em síntese, entendendo que o conjunto probatório é insuficiente e que o acusado não praticou o crime, pugnou pela absolvição. Como
tese alternativa pugnou pela desclassificação para o crime de roubo simples
tentado, bem como pela aplicação do regime prisional mais brando.
Sendo este o relatório,
Decido.
I. Não é possível a suspensão condicional do processo, uma vez que a
pena mínima prevista no caso, em sendo julgada procedente a ação penal,
supera o limite do artigo 89, da Lei nº 9.099/95;
II. Inicialmente, em razão da discussão a respeito da validade ou não
das provas baseadas em declarações de vítimas, de pessoas diretamente
ligadas a elas e em depoimentos prestados por policiais, gerando discussões
acaloradas, torna-se necessário ponderar que não obstante os respeitáveis
entendimentos e argumentos sobre a eventual parcialidade que possa existir
em algumas vítimas, testemunhas e policiais, a rejeição de uma declaração
ou de um depoimento, deve ser embasada em fatos que estão além de meras
deduções aparentemente lógicas, baseadas em uma visão parcial e distante
da realidade.
Refutar a validade de um depoimento ou de uma declaração, baseando-se apenas na qualidade ou na profissão de uma pessoa, por mais bem
escolhidos que possam ser os argumentos e os eufemismos utilizados, nada
mais é do que preconceito e temor de enfrentar o fato, o seu valor e a norma
correspondente, postura temerária no direito. Se alguém é indigno de fé,
que o seja por questões mensuráveis, ponderáveis e, acima de tudo, conhecidas, sendo tão grave o preconceito contra a vítima e os policiais, como o
é se praticado contra a pessoa do acusado.
PROVA - Depoimento de Policial - Validade.
89(b) - É claro que a palavra de Policiais vale como prova. Reclama-se
a devida cautela e reserva, analisando o relato com as demais provas
carreadas, cujo conjunto resultará na verdade real autorizadora do
édito condenatório. (Apelação nº 534.371/9, Julgado em 22/03/1989,
168
5ª Câmara, Relator: - Ribeiro dos Santos, RJDTACRIM 3/119);
PROVA TESTEMUNHAL - Depoimento de Policiais - Prestabilidade: - Inteligência: art. 621, I do Código de Processo Penal.
136(b) - Impossível contestar-se, em princípio, a validade dos depoimentos de Policiais, uma vez que o exercício da função não desmerece,
nem torna suspeito seu titular, presumindo-se que diga a verdade, como
qualquer testemunha. (Revisão nº 285.050/3, Julgado em 20/03/1996,
5º Grupo de Câmaras, Relator: - Evaristo dos Santos, RJTACRIM 30/456);
PROVA CRIMINAL - Testemunhal - Hipótese de tóxico - depoimento prestado por policiais - Validade - Presunção de que, no desempenho de
suas funções, agem escorreitamente - Recurso não provido. (Relator:
Segurado Braz - Apelação Criminal n. 161.094-3 - São José do Rio Preto
- 16.05.94);
PROVA CRIMINAL - Testemunha - Hipótese de tóxico - Depoimento prestado por policial - Validade - Servidores que não estão impedidos de
depor - Testemunhos, ademais, que não foram sequer contraditados em
Juízo - Recurso provido Os policiais militares como qualquer outra pessoa não estão impedidos de deporem e seus testemunhos não podem
e não devem ser, de modo algum, de forma apriorística, considerados
suspeitos, apenas em decorrência da condição de policial. (Relator: Ângelo Gallucci - Apelação Criminal n. 153.694-3 - São Paulo - 26.09.94);
CRIME CONTRA O PATRIMÔNIO - Palavra da vítima - Valor probante:
114 - Em sede de crimes patrimoniais, os quais são praticados na clandestinidade, a palavra da vítima merece maior credibilidade que a versão sistematicamente negativa dos acusados, visto que não se concebe
que alguém possa, gratuitamente, incriminar um desconhecido. (Revisão nº 224.054/3, Julgado em 10/03/1.993, 5º Grupo de Câmaras,
Relator: - Orlando Bastos, RJDTACRIM 18/194);
PROVA CRIMINAL - Estupro - Palavra da vítima - Credibilidade - Coerência, ademais, com outros elementos dos autos, notadamente os depoimentos das testemunhas - Sentença confirmada JTJ 209/301;
III. Com relação à ausência de realização do exame residuográfico,
independentemente da impossibilidade de ser realizado nesta fase processual, uma vez que o campo de estudo já foi lavado e contaminado, cumpre
esclarecer que a metodologia utilizada pelo Instituto de Criminalística do
Estado de São Paulo apresenta-se ultrapassada e sem a condição de fornecer
resultados adequados, na maioria dos exames, diante da pesquisa de resídu-
169
os de chumbo ser feita em meio úmido. Isto porque, as munições modernas,
além de utilizarem projéteis encamisados com outras ligas metálicas (zinco,
cobre e etc.), principalmente em armas automáticas e semi-automáticas,
também utilizam, na composição dos projéteis, ligas diversas, combinadas
com o chumbo, diminuindo a possibilidade do encontro desta substância na
pele, através da mera reação química. Também, em razão da melhora na
qualidade dos materiais e na própria fabricação das armas de fogo, diminuíram a possibilidade de fragmentação dos projéteis na entrada do cano,
após saírem do tambor ou da câmara. A bem da verdade, o exame adequado
para uma conclusão segura, seria a utilização do microscópico eletrônico de
varredura, através do exame pela “via seca”, o qual não é usado normalmente. A metodologia utilizada, em regra, é uma variação da técnica conhecida como prova de Harrison-Gilroy (1959), para a identificação química
do chumbo e do bário, através do rodizonato de sódio, e do antimônio com
trifenil-arsênico, ou seja, através da “via úmida”. Portanto, o resultado do
exame residuográfico, por si só, não seria suficiente para afastar a imputação de disparo de arma de fogo;
IV. A presente ação penal, conforme ela foi proposta pelo Ministério
Público, observando-se a descrição das condutas do acusado e não propriamente a tipificação ofertada, é procedente.
Na data dos fatos, segundo consta no auto de prisão em flagrante delito (fls. 6/15), oito jovens armados, agindo em conjunto e com unidade de
propósito, utilizando-se de quatro motocicletas, abordaram o segurança da
pessoa jurídica que atua com o nome fantasia “Habib’s, anunciando o roubo.
Logo após, enquanto uma parte do grupo aguardou com as motocicletas, do lado de fora do estabelecimento, a outra parte invadiu o local,
mediante grave ameaça com a utilização de armas de fogo, acabando por
subtraírem valores e bens da pessoa jurídica e do seu gerente, o qual chama-se Deusdete Gomes Fernandes Vieira.
Após a prática da subtração, o grupo embarcou nas motocicletas e fugiu. Porém, a algumas quadras do local, uma guarnição da polícia militar, já
alertada sobre a prática do crime de roubo, iniciou perseguição, acabando
por optar pela motocicleta onde o acusado era o passageiro, uma vez que o
veículo tinha menor velocidade do que os demais.
Algum tempo depois, o acusado desembarcou da motocicleta e efetuou
disparos contra a guarnição, acabando por ser ferido, socorrido e preso,
enquanto que os demais agentes conseguiram fugir com o dinheiro e bens
roubados.
170
Junto ao acusado os policiais apreenderam uma arma de fogo e ele
foi reconhecido pelo segurança do estabelecimento, de nome Paulo Martins
Pereira, como sendo uma das pessoas que o abordou armado (fls. 7 e 16).
O réu não foi ouvido na fase policial, uma vez que ele estava impossibilitado por força dos ferimentos sofridos.
Posteriormente, em Juízo, o acusado, alegando que não se recorda do
que aconteceu, limitou-se a negar a prática do crime (fl. 49).
Ao contrário do que postula a Ilustre Defesa, não existe nos autos
qualquer indício de que o réu está sendo acusado injustamente por algo
que não cometeu, sendo certo que sequer conhecido das pessoas ouvidas
ele era, antes da prática dos crimes. Observa-se que os policiais militares,
bem como o segurança da vítima pessoa jurídica e a própria vítima pessoa
física, ao serem ouvidos, sob a égide do contraditório, foram uníssonos e
seguros em relação ao relato anteriormente apresentado, quando da lavratura do auto de prisão em flagrante delito, nos seus pontos essenciais (fls.
6/15, 222/225). Inclusive, os depoimentos e as declarações são harmônicos
entre si, afastando qualquer dúvida quanto à autoria e a materialidade dos
crimes imputados.
Neste ponto, observa-se que o acusado não trouxe qualquer informação
que pudesse comprometer a credibilidade das pessoas acima mencionadas,
bem como a defesa técnica não produziu qualquer prova neste sentido, limitando-se a apresentar dúvidas, as quais embora demonstrem a qualidade
técnica dos profissionais envolvidos, não possuem o condão de alterar o conjunto probatório existente em desfavor do acusado.
Com efeito, o conjunto probatório é suficiente e robusto para ensejar
a condenação do acusado pelos crimes de roubos, restando vencidos todos os
argumentos apresentados pela Defesa. Anota-se que não se está condenando
por indícios, mas por provas representadas por depoimentos e declarações
robustas e conclusivas contra o réu. Inclusive, eventuais detalhes secundários a respeito de como se iniciou a perseguição ao acusado, não possuem o
condão de desautorizar a prova e, estão dentro da tolerância natural em razão do tempo decorrido entre a data da prisão e a oitiva em Juízo. Também,
os laudos periciais juntados, ao contrário do que pretende a Defesa, reforçam e corroboram o que as vítimas e os policiais informaram para o Juízo.
Todavia, em que pesem os respeitáveis argumentos do Ilustre Representante
do Ministério Público, não se está diante de um crime de disparo de arma de
fogo autônomo, mas sim diante de dois crimes de roubo, com duas causas de
aumento de pena (concurso de agentes e uso de arma), seguido de um crime
de resistência qualificado, o qual absorveu o disparo de arma de fogo. Isto
171
porque, a ação do acusado contra os policiais foi posterior à consumação do
crime de roubo e teve, como finalidade autônoma, impedir a prisão dele e
dos demais, bem como a recuperação dos bens e valores roubados.
Logo, a violência representada pelos disparos de arma de fogo não se
mostra como um desdobramento da grave ameaça ou da violência empregadas durante a prática dos crimes de roubo, uma vez que não visava a apreensão dos valores subtraídos ou a garantia da sua posse, mas sim impedir
que os policiais efetuassem a prisão. Também, os disparos com arma de fogo
não representam um delito autônomo, mas sim elemento integrante do ato
de resistência mediante violência. Inclusive, graças à resistência armada, os
demais agentes conseguiram fugir com o produto dos crimes contra o patrimônio, o que qualifica o crime de resistência. É bem verdade que a sanção
penal prevista para o crime de resistência é ínfima em comparação com a
sua gravidade, mas mesmo assim foi o que de fato o acusado praticou.
Analisando casos análogos o Egrégio Tribunal de Alçada Criminal do
Estado de São Paulo já decidiu, conforme as cópias das ementas abaixo
transcritas da obra “O código penal e a sua interpretação jurisprudencial”,
Alberto Silva Franco e oos, 5º edição, p. 3110:
“Se a resistência à prisão mediante violência ocorre em momento diverso daquele em que se deu a prática do crime que motivou a perseguição policial, têm-se condutas delituosas distintas, que não podem
ser absorvidas uma pela outra” (TACRIM-SP – AC – Rel. Francis Davis
– JUTACRIM 15/207);
“Responde pelo delito de roubo próprio em concurso com o crime de
resistência, o meliante que, tendo concluído a lesão ao patrimônio
alheio, trava tiroteio com agentes de autoridade que, chegando ao
local, procuram obstar a fuga do facínora” (TACRIM-SP – AC – Rel. Onei
Raphael – JUTACRIM 35/313).
Observa-se que não se apresenta necessária a aplicação do disposto no
artigo 384, “Caput”, do Código de Processo Penal, aplicando-se o artigo 383,
do mesmo diploma legal, haja vista o fato de que os elementos que compõem as figuras criminais acima reconhecidas foram descritos pelo Ministério Público quando do oferecimento da denúncia, sendo que a tipificação, no
presente caso, representa uma questão de posicionamento jurisprudencial
e doutrinário.
172
As causas de aumento de pena dos crimes de roubo estão demonstradas, haja vista apreensão da arma utilizada na grave ameaça contra as
vítimas do crime patrimonial e o concurso de mais de uma pessoa na prática
dos crimes, conforme as declarações e os depoimentos existentes nos autos.
Finalmente, os crimes de roubo decorreram da mesma ação criminosa, embora contra vítimas diversas, o que representa o concurso formal de
crimes. Já os crimes de roubo, em relação ao crime de resistência, foram
praticados em concurso material, uma vez que são de espécies diferentes.
Também, os crimes se consumaram, sendo que os crimes de roubo, de natureza material, consumaram-se com a subtração dos bens e valores das vítimas, os quais não foram recuperados até o momento, sendo desnecessárias
maiores considerações sobre este tema;
V. Demonstrada a procedência, em parte, da imputação contra o acusado, não existindo justificativas para os seus atos, passo a dosimetria das
penas a serem aplicadas.
Não há provas de que o acusado seja reincidente, embora possua passagens pelas Varas da Infância e da Juventude por atos infracionais análogos
aos crimes de dano e de roubo, conforme se observa nos documentos existentes nos autos (fls. 77/200).
Observando-se os elementos norteadores previstos nos artigos 59 e 60,
ambos do Código Penal, em especial o fato de que existe uma intensidade
de dolo diverso do normalmente observado em casos análogos, bem como é
mais reprovável a sua conduta, uma vez que além de subtrair bens das vítimas, atirou contra os policiais militares, assumindo o risco de feri-los ou a
transeuntes inocentes fixam-se as penas básicas, 1/4 acima do mínimo legal,
ou seja, em 5 (cinco) anos de reclusão e 12 (doze) dias multa, para cada um
dos crimes de roubo e em 1 (um) ano e 3 (três) meses de reclusão para o
crime de resistência, sendo esta definitiva em relação ao último.
Não existem atenuantes a serem reconhecidas.
Diante das causas de aumento de pena, relacionadas com o uso de
arma e o concurso de agentes o que leva a uma reprovação social maior,
além de impor uma sanção especialmente majorada, em face do perigo real
para a vida e a saúde da vítima, diante da intimidação por arma de fogo,
aumentam-se as penas básicas em 3/8, não existindo uma preponderância
entre elas, as quais passam a ser de 6 (seis) anos, 10 (dez) meses e 15 (quinze) dias de reclusão e 16 (dezesseis) dias multa.
Por força do concurso formal entre os crimes de roubo, aplicam-se as
penas de um deles, aumentada em 1/6 (apenas duas vítimas), as quais pas-
173
sam a ser de 8 (oito) anos e 7 (sete) dias de reclusão e 18 (dezoito) dias
multa.
Derradeiramente, considerando-se o concurso material de delitos, somam-se as reprimendas para impor a sanção final de 9 (nove) anos, 3 (três)
meses e 7 (sete) dias de reclusão e 18 (dezoito) dias multa, as quais torno
definitivas para o acusado.
É necessário frisar que a sanção deve ser proporcional à gravidade
da conduta do agente!
Fixam-se cada dia multa, no seu valor mínimo unitário legal, em face
da ausência de informações seguras sobre a situação econômica do acusado.
O acusado, além de praticar um crime de roubo a mão armada, colocando em risco a vida da vítima, a qual é pessoa física, bem como dos prepostos da pessoa jurídica, também reagiu ao ato legal de ser preso, pondo
em risco a integridade física dos policiais militares, motivo pelo qual demonstra ser pessoa perigosa e sem a condição de iniciar o cumprimento da
pena privativa de liberdade em regime diverso do fechado, até pela própria
quantidade da pena privativa de liberdade imposta.
Segundo Mezger, citado pelo saudoso Desembargador José Frederico
Marques, na sua obra denominada Tratado de Direito Penal, “... que a pena,
como instrumento de prevenção, deve atuar social-pedagogicamente sobre
a coletividade (prevenção geral) e deve proteger a coletividade ante o condenado e corrigir a este (prevenção especial)”. O mesmo Desembargador
José Frederico Marques, desenvolvendo o raciocínio de “prevenção especial”, ensinava que “a pena influi sobre o delinquente, sobretudo na fase
executória do processo penal, pois a condenação atua, muitas vezes, sobre
a consciência do réu fazendo-o medir o mal que praticou através das consequências de seu crime advindas”. Seguindo este raciocínio e com base
nas lições do também saudoso Ministro Nélson Hungria, conclui-se que o
sofrimento, que lhe é inerente, representa, incontestavelmente, do ponto
de vista relativo, um meio de emenda e um instrumento de regeneração.
O que é periculosidade?
O criminologista italiano R. Garofalo foi o primeiro que concebeu tal
estado. Na década de 1880, sob o vocábulo “témpebilité” (temibilidade,
atitude temerária), ele procurava explicar o sentido de uma palavra grega
que quer dizer: capital acumulado. Com isso queria discernir num indivíduo
sua capacidade criminal, ou seja: “a quantidade de mal que se pode esperar de uma perversidade constante e atuante”. Tal capital ou capacidade
produziria o crime. Em 1920, a definição foi retomada por Crispigni, que se
referiu à “capacidade evidente em uma pessoa de cometer um crime” ou
174
ainda à “probabilidade de alguém se tornar autor de um crime”. Trata-se
de um potencial aleatório que Loudet, em 1950, reintroduziu em sua própria definição: “O indivíduo em estado perigoso é aquele que, em dadas
condições psicológicas, está sujeito a manifestar reações anti-sociais”. Das
formulações resulta que o estado perigoso seria predisposição às reações
anti-sociais.
O acusado encontra-se em liberdade e não existem fatos novos no processo que determinem a sua custódia cautelar, motivos pelos quais poderá
recorrer em liberdade, conforme entendimento majoritário dos Egrégios Tribunais Pátrios.
Ante o exposto, julgo PROCEDENTE a ação penal, para condenar VALTER LINS BATISTA DA SILVA, RG/SP nº 44.731.437, filho de Valdemiro Francisco da Silva e de Judite Batista Rodrigues, natural do Recife/PE, às penas
de 9 (nove) anos, 3 (três) meses e 7 (sete) dias de reclusão, com início
no regime fechado e 18 (dezoito) dias multa, no seu valor mínimo unitário
legal, como incurso nas sanções do artigo 157, parágrafo segundo, incisos I e
II (duas vezes), c.c. artigo 70, “Caput”, c.c. artigo 329, § 1º, c.c. artigo 69,
“Caput”, todos do Código Penal. Custas na forma da lei.
Em razão da natureza das condutas, bem como da periculosidade do
acusado e da quantidade de pena privativa de liberdade imposta, não cabe
qualquer benefício legal.
Considerando o fato de que os agentes não detinham a posse legítima
da arma de fogo, bem como o seu uso contra as vítimas e os policiais, nos
termos da lei, determino a sua perda em favor da União, oficiando-se o DIPO
para tanto, independentemente do trânsito em julgado da sentença, pois o
interesse público na destruição da arma de fogo se sobrepõe ao de eventuais
interessados, cuja propriedade sequer poder ser demonstrada em face da
supressão da numeração da arma de fogo.
Após o trânsito em julgado, o nome do réu deverá ser lançado no rol
dos culpados e expedido mandado de prisão.
Autorizam-se as cópias necessárias.
P.R.I.C.
São Paulo, 5 de março de 2004.
CARLOS ALBERTO CORRÊA DE ALMEIDA OLIVEIRA.
JUIZ DE DIREITO
175
Anexo A
Resumo do andamento do processo envolvendo o
réu que ficou tetraplégico
Dados do Processo Processo:
0029220-88.2003.8.26.0050 (050.03.029220-4)
Classe:
Ação Penal - Procedimento Ordinário
Área: Criminal
Assunto:Roubo
Distribuição:
Prevenção - 08/05/2003 às 15:11
4ª Vara Criminal - Foro Central Criminal Barra Funda
Autor: Justiça Pública
Réu: Valter Lins Batista da Silva
Vítima: Habbi’s
Advogado: Renato Toledo Damião
Advogado: Ricardo Toledo Damião
Testemunha/A: Deusdete Gomes Fernandes Vieira
Testemunha/A: Emilena Cavalcante
Testemunha/A: Jeferson Gomes da Silva
Testemunha/A: Paulo Martins Pereira
Testemunha/A: Rodolfo Manuel Labiapari Gomes
Movimentações
Data
19/03/2004 12/03/2004 05/03/2004 09/09/2003 Movimento
Trânsito em Julgado ao Ministério Público
Vista ao Ministério Público
1 dias
Sentença Proferida
CONDENADO em 05.03.2004, à pena de 09 anos, 03 meses
e 07 dias de reclusão, no reg. fechado, e 18 dias-multa, no
mínimo. Facultado o rec. em liberdade.
Aguardando Audiência
91 dias
176
31/07/2003
31/07/2003
12/06/2003
12/06/2003
Aguardando Audiência
35 dias
Deliberação
Por termo de deliberação, datado de 25/07/2003, foi
designado o dia 04/09/2003, às 16:20 horas, para realização
de audiência de início de instrução criminal. 1 dias
Processo Importado do SAJ
Aguardando Audiência
43 dias
Incidentes, ações incidentais, recursos e execuções de sentenças Não há incidentes, ações incidentais, recursos ou execuções de sentenças
vinculados a este processo.
Petições diversas DataTipo
05/05/2003 Cópia dos Autos Principais
Audiências Não há Audiências futuras vinculadas a este processo.
177
Apêndice B
Sentença envolvendo a aplicação do perdão judicial no caso do réu que ficou cego
1ª VARA CRIMINAL DA COMARCA DE BARUERI/SÃO PAULO.
CONTROLE Nº 1439/05.
Vistos etc.
JADIEL RODRIGUES DE ABREU, qualificado nos autos, está sendo processado como incurso nas sanções do artigo 12, “caput”, da Lei Federal nº
6.368/76.
Segundo a denúncia e o que consta nos autos do inquérito policial, em
síntese, no dia 31 de dezembro de 2004, durante a noite, na Rua Beira Rio,
s/nº, Parque Viana, nesta Cidade, o acusado foi baleado por um desconhecido e por motivos ainda não esclarecidos, oportunidade em que foi socorrido
para o Pronto Socorro local. Durante o atendimento médico, junto à cueca
do acusado, foram encontrados 48 porções de “Cocaína”, embaladas individualmente, totalizando 9,7g, as quais se destinavam ao tráfico ilícito de
entorpecente, motivo pelo qual o acusado foi preso em flagrante delito.
O acusado foi citado, apresentou a sua defesa preliminar, a qual foi
rejeitada e recebida a denúncia.
Posteriormente, foi interrogado.
Durante a instrução, foram juntados diversos documentos, bem como
foram ouvidas três testemunhas.
Ao final da instrução, o Ministério Público e a Defesa apresentaram as
suas alegações finais através de memoriais.
O Ministério Público, em síntese, entendendo provada a imputação,
pugnou pela condenação do réu nos exatos termos da denúncia.
A Defesa do acusado, em síntese, entendendo que o conjunto probatório é dúbio e que o acusado não praticou o crime, pugnou pela absolvição.
Apresentado o relatório,
178
Decido:
I. Não é possível a suspensão condicional do feito, uma vez que a pena
mínima cominada aos crimes supera o limite do artigo 89 da Lei Federal nº
9.099/95.
Não obstante a polêmica surgida com relação ao melhor rito a ser adotado em casos como o presente feito, entendo que o rito previsto na Lei
Federal nº 10.409/02 não é aplicável. Isso porque o artigo 27 da Lei Federal
nº 10.409/02 prevê que o novo rito se aplica aos crimes definidos na mencionada lei. Logo, considerando-se o fato de que os tipos penais incriminadores, da já citada norma, foram vetados pelo Presidente da República,
permanecendo os crimes previstos na Lei Federal nº 6.368/76 como sendo
os aplicáveis, é o rito desta última norma que deverá ser aplicado e não o
outro rito mencionado. Inclusive, o fato de existir uma defesa preliminar
não significa maior garantia para a defesa, até porque a decisão de recebimento da denúncia precisa ser fundamentada em qualquer um dos ritos
das mencionadas normas. Também, a concentração dos atos processuais em
uma única audiência, acaba por prejudicar a Defesa, haja vista o fato de
que ela sendo dativa, o defensor dativo não terá contato preliminar com o
acusado para tomar conhecimento de eventuais testemunhas que possam
ser arroladas e até para embasar a sua linha defensiva. Observo que seja
qual for o rito adotado, o Direito Processual Penal Moderno determina que
deva ser demonstrado o efetivo prejuízo para a Defesa para se reconhecer
uma eventual nulidade, não podendo a forma se sobrepor ao conteúdo do
ato e ao próprio interesse público de apurar a verdade.
No presente caso, o M.M. Juiz que presidia o feito adotou o rito da Lei
Federal nº 10.409/02, motivo pelo qual não existe polêmica com relação à
adoção do rito da Lei Federal nº 6.368/76.
II. Cabe ao Magistrado que preside o interrogatório aferir a necessidade ou não do exame de dependência toxicológica, em função do contexto
probatório. Anota-se que ser usuário de entorpecentes não significa, necessariamente, ser inimputável ou semi-imputável. Inclusive, no caso de tráfico
ilícito de entorpecentes, a substância não se destina ao próprio uso, bem
como a satisfação de uma necessidade pessoal e irresistível, mas ao fornecimento a terceiros, o que afasta qualquer dúvida quanto à autodeterminação
do agente, uma vez que o “narco-dependente” pensa apenas em saciar o seu
desejo e não em ter qualquer benefício com o fornecimento do entorpecente. Torna-se oportuno recordar que o Supremo Tribunal Federal já decidiu
179
que cabe ao Juiz, em cada caso, aferir da necessidade, ou não, do exame
de dependência toxicológica, em face da prova e da conduta do acusado no
processo (RTJ 146/87, 145/259, 95/570; RT 630/370, 546/450). Inclusive, no
caso sob exame, o próprio acusado declarou não ser viciado, não existindo
nenhum indício de que o seja.
CRIME CONTRA A SAÚDE PÚBLICA - Tráfico de entorpecente - Exame de
dependência do acusado indeferido - Nulidade pretendida - Inexistência - “h.c.” denegado - Inteligência do art. 12 da Lei 6.368/76 (Ement.)
RT 565/311 JUBI 2 ®;
CERCEAMENTO DE DEFESA - Prova criminal - Perícia - Crime contra a
saúde pública - Tráfico de entorpecente - Exame de dependência toxicológica não realizado - Irrelevância - Preliminar de nulidade do processo repelida - Inteligência e aplicação dos arts. 12, 19 e 29 da Lei
6.368/76 RT 614/275 JUBI 2 ®;
ENTORPECENTE - Tráfico - Prova - Exame de dependência toxicológica
não realizado - Irrelevância - Necessidade apenas justificada quando
houver fundada suspeita de ser o réu viciado - Nulidade afastada (TJSP)
RT 639/290 JUBI 2 ®;
III. Inicialmente, em razão da corriqueira discussão a respeito da validade e do valor das provas baseadas em declarações de vítimas, de pessoas diretamente ligadas a elas e em depoimentos prestados por policiais,
gerando discussões acaloradas e oportunas, como no caso em estudo, torna-se necessário ponderar que não obstante os respeitáveis entendimentos
e argumentos sobre a eventual parcialidade que possa existir em algumas
vítimas, testemunhas e policiais, a rejeição de uma declaração ou de um depoimento, deve ser embasada em fatos que estão além de meras deduções
aparentemente lógicas, baseadas em uma visão parcial e ideológica, bem
como distanciada da realidade social.
Refutar a validade de um depoimento ou de uma declaração, baseando-se apenas na qualidade ou na profissão de uma pessoa, por mais bem
escolhidos que possam ser os argumentos e os eufemismos utilizados, nada
mais é do que preconceito e temor de enfrentar o fato, o seu valor e a
norma correspondente, postura temerária no direito. Se alguém é indigno
de fé, que o seja por questões mensuráveis, ponderáveis e, acima de tudo,
conhecidas, sendo tão grave o preconceito contra a vítima, seus prepostos e
os policiais, como o é se praticado contra a pessoa do acusado.
180
PROVA - Depoimento de Policial - Validade.
89(b) - É claro que as palavras de Policiais valem como prova. Reclama-se a devida cautela e reserva, analisando o relato com as demais provas carreadas, cujo conjunto resultará na verdade real autorizadora do
édito condenatório. (Apelação nº 534.371/9, Julgado em 22/03/1989,
5ª Câmara, Relator: - Ribeiro dos Santos, RJDTACRIM 3/119);
PROVA TESTEMUNHAL - Depoimento de Policiais - Prestabilidade: - Inteligência: art. 621, I do Código de Processo Penal.
136(b) - Impossível contestar-se, em princípio, a validade dos depoimentos de Policiais, uma vez que o exercício da função não desmerece,
nem torna suspeito seu titular, presumindo-se que diga a verdade, como
qualquer testemunha. (Revisão nº 285.050/3, Julgado em 20/03/1996,
5º Grupo de Câmaras, Relator: - Evaristo dos Santos, RJTACRIM 30/456);
PROVA CRIMINAL - Testemunhal - Hipótese de tóxico - depoimento prestado por policiais - Validade - Presunção de que, no desempenho de
suas funções, agem escorreitamente - Recurso não provido. (Relator:
Segurado Braz - Apelação Criminal n. 161.094-3 - São José do Rio Preto
- 16.05.94);
PROVA CRIMINAL - Testemunha - Hipótese de tóxico - Depoimento prestado por policial - Validade - Servidores que não estão impedidos de
depor - Testemunhos, ademais, que não foram sequer contraditados em
Juízo - Recurso provido Os policiais militares como qualquer outra pessoa não estão impedidos de deporem e seus testemunhos não podem
e não devem ser, de modo algum, de forma apriorística, considerados
suspeitos, apenas em decorrência da condição de policial. (Relator: Ângelo Gallucci - Apelação Criminal n. 153.694-3 - São Paulo - 26.09.94);
CRIME CONTRA O PATRIMÔNIO - Palavra da vítima - Valor probante:
114 - Em sede de crimes patrimoniais, os quais são praticados na clandestinidade, a palavra da vítima merece maior credibilidade que a
versão sistematicamente negativa dos acusados, visto que não se concebe que alguém possa, gratuitamente, incriminar um desconhecido.
(Revisão nº 224.054/3, Julgado em 10/03/1993, 5º Grupo de Câmaras,
Relator: - Orlando Bastos, RJDTACRIM 18/194);
181
PROVA CRIMINAL - Estupro - Palavra da vítima - Credibilidade - Coerência, ademais, com outros elementos dos autos, notadamente os depoimentos das testemunhas - Sentença confirmada JTJ 209/301;
IV. As substâncias apreendidas foram submetidas a exames químicos
e toxicológicos, oportunidade em que os Srs. Peritos constataram que elas
eram “Cocaína” (BENZOILMETTILECGONINA).
A “cocaína” é um produto extraído das folhas da planta coca (“Erythroxylum Coca”), nativa dos Andes.
Sob a forma de pó (o sal “cloridrato de cocaína”), após a sua industrialização, permite a adulteração, quando misturado a outras substâncias de
aspecto semelhante (talco, pó de giz, açúcares, bicarbonato de potássio,
polvilho e etc.). Observo que tais misturas, independentemente do perigo
da substância em si, são perigosas, uma vez que aumentam os riscos de infecções e de superdosagem de “Cocaína”.
O sal “cloridrato de cocaína” pode ser cheirado, esfregado e absorvido
via mucosa ou diluído em água para ingestão endovenosa.
Seja qual for a maneira de consumo, o certo é que esta espécie de entorpecente tornou-se, perigosamente, comum na nossa sociedade, expondo
os jovens de todas as classes sociais e idades aos seus males. Infelizmente,
a “cocaína” não é um mal distante e está a um passo de todos os fracos que
buscam a sensação falsa de brilho e de destaque. Inclusive, muitos estudiosos, têm apontado a “Cocaína” e o “Crack” (derivado da pasta básica da
coca, no Brasil obtido após o adicionamento de bicarbonatos e calor ao sal
cloridrato de cocaína), como alguns dos fatores responsáveis pelo aumento
da violência nas sociedades modernas, uma vez que os viciados atacam,
com extrema agressividade e de forma indiscriminada, para conseguirem
valores para a compra do entorpecente. Também, a ingestão endovenosa
da “Cocaína” é um dos principais veículos para a disseminação da Síndrome
da Deficiência Imunológica Adquirida (AIDS), pois além das agulhas e das seringas serem compartilhadas por grupos de viciados, é um costume comum
a mistura de sangue, dentro da seringa hipodérmica, com a “cocaína” previamente diluída em água destilada, para se evitar os efeitos colaterais da
ingestão de água destilada nas veias e artérias.
Demonstrado que as substâncias apreendidas eram “Cocaína”, a materialidade do crime de tóxicos está comprovada, uma vez que tais substâncias
são catalogadas como entorpecentes de posse, uso e venda proibida;
182
V. A ação penal é procedente.
O acusado foi preso, em flagrante delito, na posse direta de farta quantidade de entorpecentes, sendo certo que as circunstâncias que envolveram
a sua prisão, ou seja, ao ser atendido no Pronto Socorro em face de uma tentativa de crime de homicídio, afastam qualquer possibilidade do crime ter
sido forjado ou preparado. Observo que quem encontrou os entorpecentes
foi o médico e a enfermeira durante o atendimento de urgência.
Ao ser ouvido pela autoridade policial, o acusado confessou o crime de
tráfico ilícito de entorpecentes.
Posteriormente, ao ser interrogado, sob a égide do contraditório, negou que estivesse na posse dos entorpecentes. Porém, a sua negativa restou
isolada nos autos, em face do que acima já foi exposto. Anoto que nenhuma
das pessoas ouvidas tinham qualquer razão para mentir ou para prejudicar o
acusado. Inclusive, se absurdamente pudesse dizer que alguma das pessoas
ouvidas tivesse interesse em fazer mal para o réu, bastava deixá-lo morrer
sem atendimento médico, o que não ocorreu.
As testemunhas ouvidas, de forma uníssona e segura, confirmaram a
posse dos entorpecentes por parte do acusado, cuja quantidade, forma de
embalagem e local de guarda não deixam dúvida quanto à finalidade de comércio ilícito de entorpecentes.
A conduta criminalmente relevante do acusado está perfeitamente
descrita na denúncia e é típica, não sendo necessário que seja observado o
comércio de drogas para ser possível prender alguém por tráfico ilícito de
entorpecentes, até porque o tipo penal possui diversos núcleos de condutas
que caracterizam o crime.
Portanto, ao contrário do que postula a Ilustre Defesa, o conjunto probatório não só é robusto como também é preciso e conclusivo para determinar a condenação do acusado pelo crime imputado, o qual ficou perfeitamente demonstrado por atos do acusado, presenciados e narrados pelos
policiais;
VI. Demonstrada a procedência da imputação contra o acusado, não
existindo justificativas para os seus atos, passo a dosimetria das penas a
serem aplicadas.
Não há provas de que o acusado seja reincidente.
Com base no artigo 68 do Código Penal, observando os elementos norteadores previstos nos artigos 59 e 60, ambos do Código Penal, fixo as penas
básicas 1/6 acima do mínimo legal para o crime de tráfico ilícito de entorpe-
183
centes, uma vez que a quantidade de entorpecentes apreendidos é expressiva e o perigo da conduta do acusado é maior e mais grave, além do que
o acusado é possuidor de péssimos antecedentes e era foragido da Justiça,
o que aumenta a sua culpabilidade, ou seja, em 3 (três) anos e 4 (quatro)
meses de reclusão e 59 (cinquenta e nove) dias multa.
Torno as penas básicas definitivas pela ausência de circunstâncias legais modificadoras e de causas de aumento e de diminuição que possam ser
aplicadas.
Fixo cada dia multa no valor mínimo unitário legal, diante da ausência
de informações seguras sobre a capacidade econômica do acusado.
O crime é equiparado a hediondo e devido as suas consequências, coloca em risco a própria existência sadia da humanidade, demonstrando uma
perversão de caráter intensa e uma periculosidade real, uma vez que o traficante vende a morte lenta e intensifica a miséria do ser humano.
Segundo Mezger, citado pelo saudoso Desembargador José Frederico
Marques, na sua obra denominada Tratado de Direito Penal, “... que a pena,
como instrumento de prevenção, deve atuar social-pedagogicamente sobre
a coletividade (prevenção geral) e deve proteger a coletividade ante o condenado e corrigir a este (prevenção especial)”. O mesmo Desembargador
José Frederico Marques, desenvolvendo o raciocínio de “prevenção especial”, ensinava que “a pena influi sobre o delinquente, sobretudo na fase
executória do processo penal, pois a condenação atua, muitas vezes, sobre
a consciência do réu fazendo-o medir o mal que praticou através das consequências de seu crime advindas”. Seguindo este raciocínio e com base
nas lições do também saudoso Ministro Nélson Hungria, conclui-se que o
sofrimento, que lhe é inerente, representa, incontestavelmente, do ponto
de vista relativo, um meio de emenda e um instrumento de regeneração.
O que é periculosidade?
O criminologista italiano R. Garofalo foi o primeiro que concebeu tal
estado. Na década de 1880, sob o vocábulo “témpebilité” (temibilidade,
atitude temerária), ele procurava explicar o sentido de uma palavra grega
que quer dizer: capital acumulado. Com isso queria discernir num indivíduo
sua capacidade criminal, ou seja: “a quantidade de mal que se pode esperar de uma perversidade constante e atuante”. Tal capital ou capacidade
produziria o crime. Em 1920, a definição foi retomada por Crispigni, que se
referiu à “capacidade evidente em uma pessoa de cometer um crime” ou
ainda à “probabilidade de alguém se tornar autor de um crime”. Trata-se
de um potencial aleatório que Loudet, em 1950, reintroduziu em sua própria definição: “O indivíduo em estado perigoso é aquele que, em dadas
184
condições psicológicas, está sujeito a manifestar reações anti-sociais”. Das
formulações resulta que o estado perigoso seria predisposição às reações
anti-sociais.
O réu cumprirá a pena privativa de liberdade, integralmente, no regime fechado.
O crime de tráfico ilícito de entorpecentes é previsto em lei especial,
com sanções peculiares, não se aplicando a substituição da pena privativa
de liberdade por multa ou medida restritiva de direitos, previstas na parte
geral do Código Penal, as quais, inclusive, são inadequadas para punir e
prevenir novas condutas análogas. Como se não bastasse, o crime de tráfico ilícito de entorpecentes é um dos mais graves, uma vez que alimenta a
prática de outros ilícitos e está se tornando um delito contra a humanidade.
Finalmente, a constitucionalidade da chamada Lei dos Crimes Hediondos está fundada no próprio artigo 5, inciso XLIII da Constituição Federal, o
que a plenária do Supremo Tribunal Federal já tinha decidido anteriormente, sendo que as últimas decisões não modificam o entendimento deste Juízo, até porque não há súmula sobre o assunto e sequer súmula vinculante.
O acusado está cego e o Juízo irá aplicar o perdão judicial, motivo pelo
qual poderá recorrer em liberdade.
Ante o exposto, julgo PROCEDENTE, a ação penal para condenar JADIEL RODRIGUES DE ABREU, RG/SP nº 51.235.464, filho de Álvaro Rodrigues
de Abreu e de Maria Nazaré de Abreu, natural de Lagoa do Ouro/PE, às penas
de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses de reclusão, no regime integralmente
fechado, sem direito a benefícios de anistia, graça e indulto, nos termos da
Lei Federal nº 8.072/90, e 59 (cinquenta e nove) dias multa, no seu valor
mínimo unitário legal, como incursos nas sanções do artigo 12, “caput”, da
Lei Federal nº 6.368/76, c.c. artigo 65, inciso I do Código Penal. Condeno o
acusado ao pagamento do valor equivalente a 100 UFESP a título de custas
processuais, ficando suspensa a exigência por ser ele beneficiário da assistência judiciária gratuita.
O acusado está cego em face de uma tentativa de homicídio contra a
sua pessoa, ato criminoso praticado em razão das suas atividades criminosas, o que representa consequência direta dos seus atos. Também, não se
pode deixar de reputar a perda da visão uma punição muito mais severa do
que qualquer outra pena prevista no Código Penal, não existindo qualquer
razão para se manter o acusado encarcerado, cego, mais precisamente sem
condição de dignidade humana dentro de uma cadeia. Anoto que a finalidade moderna da pena é a de punir, educar e a de prevenir condutas semelhantes, sendo que punido o acusado já está, educado dificilmente o será e a
185
melhor prevenção de condutas análogas é a constatação pelos semelhantes
do resultado experimentado pelo acusado com o seu passado criminoso!
Além do que já foi dito, não se pode olvidar o fato de que o Estado não
está aparelhado para cuidar de uma pessoa cega dentro da cadeia, representando o acusado, em última análise, um fardo maior para o Estado do que o
benefício de mostrar para a sociedade o poder de punir.
Como se não bastasse tudo o que já foi dito, o Direito Penal Moderno,
com o desenvolvimento de uma visão político-criminal funcionalista do Direito Penal, além do célebre trinômio da aplicação da pena, qual seja, o fato
típico (previsão da conduta no ordenamento jurídico-penal), antijurídico
(contrário ao ordenamento jurídico) e culpável (reprovável ou censurável),
passou exigir a “necessidade” (a precisão de prevenção geral e especial
representada pela pena), o que não se observa em casos em que a conduta
ilícita do agente voltou-se contra ele de tal forma que a punição criminal
seria mero exercício de vingança pública.
Com efeito, por analogia em benefício do acusado, a qual não é proibida pelo princípio da reserva legal, concedo a ele o PERDÃO JUDICIAL previsto
no artigo 121, § 5º, c.c. artigo 107, inciso IX, todos do Código Penal, observando que o disposto no artigo 107, inciso IX do Código Penal não impede
a analogia em benefício, uma vez que não restringe o benefício aos casos
“expressamente previstos em lei”.
Diante da concessão do perdão judicial, nos termos do artigo 107, inciso IX do Código Penal, JULGO EXTINTA A PUNIBILIDADE DE JADIEL RODRIGUES
DE ABREU.
PERDÃO JUDICIAL - Aplicação às contravenções penais - Admissibilidade.
119 - Admite-se a extensão do perdão judicial às infrações contravencionais, via analogia in bonan partem. (Apelação nº 580.745/1, Julgado em 14/09/1989, 8ª Câmara, Relator: - Manoel Carlos, RJDTACRIM
5/153);
CONSTRANGIMENTO ILEGAL - lnexistência - Perdão judicial concedido,
por analogia, a condenado em processo por crime doloso - Inclusão
de seu nome no rol dos culpados, embora exclui pagamento das custas - “Habeas corpus” denegado - Inteligência do art. 129, § 8º, do CP
(TACrimSP) RT 561/341
Expeça-se alvará de soltura clausulado.
186
Após o trânsito em julgado, oficie para a destruição dos entorpecentes
apreendidos e guardados para eventuais novos exames.
Deixo de lançar o nome do réu no rol dos culpados em face do disposto
na Súmula 18 do STJ, a qual adoto por ser mais adequada ao caso.
Fixo os honorários da patrona dativa no valor máximo e específico previsto na tabela OAB/PGE. Expeça-se guia oportunamente.
P.R.I.C.
Barueri, 15 de junho de 2006.
CARLOS ALBERTO CORRÊA DE ALMEIDA OLIVEIRA.
JUIZ DE DIREITO.
187
Anexo B
Resumo do andamento do processo envolvendo o
réu que ficou cego e recebeu o perdão judicial
Delegacia Delegacia de Polícia de Barueri Data do Fato
26/11/2004
Nº do Processo
068.01.2004.031161-3 Nº de Controle do Setor/Vara
002749/2005
FórumSetor/Vara
Fórum de Barueri 1ª Vara Criminal
Data da Distribuição/Redistribuição
17/11/2005 Tipo da Parte
1 Réu
Nome da Parte
JADIEL RODRIGUES DE ABREU
Situação da Parte
Data
10/01/2005
Denúncia da Parte
Oferecida em
Recebida em
03/12/200407/12/2004
Artigo(s)
Não Informado,12, Caput, da Lei 6368/76, c.c. art. 16, § único, inciso IV, da Lei
10.826/03. (Oriundo do Processo-Crime nº 636/04 da 4ª Vara Judicial de Barueri).
Qualificação da Parte
Sexo
Masculino
Cor da Pele
Branca
Estado Civil
Data de Nascimento
Casado27/05/1978
Cidade/UF
Lagoa do Ouro/PE
Nacionalidade
Brasileira
Escolaridade
1º Grau
Descrição
Preso
Motivo
Observação
Prisão Preventiva
Profissão
Servente
Outro Nome/Alcunha
JAL
Sentença da Parte
Sentença
Sentença
Tipo
Condenatória
Data
17/06/2005
Publicada em
20/06/2005
Livro, Folha(s)
81, 219/223
Descrição
sentença datada de 17/06/2005, condeno o réu como incurso no artigo 12, caput da Lei
6.368/76, à pena de 03 (três) anos de reclusão e 40 (quarenta) dias-multa; e como incur
so no artigo 16, § único, IV, da Lei 10.826/03, à pena de 03 (três) anos de reclusão e 10
(dez) dias-multa
188
Artigo(s)
Não Informado, 12, caput da Lei 6.368/76 e artigo 16, § único, IV, da Lei 10.826/03
Recurso(s) da Parte
Data
Data Prescrição
26/08/2005
Tipo
Apelação Criminal
Recorrido por
Réu Tribunal
Tribunal de Justiça
Acórdão(s) da Parte
Acórdão
Tipo
Trânsito em Julgado - RÉU Trânsito em Julgado - MP
16/08/2006
Negaram Provimento
Resultado
Acórdão
16/08/2006
Resultado
Tipo
Trânsito em Julgado - RÉU Trânsito em Julgado - MP
Negaram Provimento
Data
Data Prescrição
21/06/2005
Recorrido por
Ministério Público
Tipo
Apelação Criminal
Tribunal
Tribunal de Justiça
Acórdão(s) da Parte
Acórdão
Tipo
Trânsito em Julgado – RÉU Trânsito em Julgado - MP
16/08/2006
Negaram Provimento
Resultado
Acórdão
16/08/2006
Resultado
Tipo
Trânsito em Julgado – RÉU Trânsito em Julgado - MP
Negaram Provimento
Advogado(s) da Parte
Nome do Advogado
MARIO ANTONIO COELHO LEAL
Nº da OAB/UF
156314/SP
AUDIÊNCIA(S) DO PROCESSO
Data
1 24/05/2005 17:00
Descrição
Observação
Instrução, Interrogatório, Debates e Julgamento
Situação
Aguardando
ANDAMENTO(S) DO PROCESSO
Existe(m) 11 andamento(s) cadastrado(s). Serão exibidos os últimos 10. Para a lista completa, clique aqui.
DataDescrição Observação
0001 16/12/2008 Processo Arquivado
PACOTE: 577/08
0002 11/12/2008 Remetido ao Arquivo Geral ARQUIVO COMUNICADO
0003 13/09/2007 Aguardando Digitação/
Datilografia
mesa arquivo
0004 15/05/2007 Despacho Proferido
QUE AOS 15/05/2007, FOI COMUNICADO OARQUIVAMENTO
DOS AUTOS, EXPEDINDO-SE OS OFÍCIOS DE PRAXE.
0005 16/02/2006 Remessa ao Tribunal de
Justiça
0006 17/11/2005 Processo Redistribuído
Processo Redistribuído por Dependência p/
1ª. Vara Criminal
0007 17/06/2005 Sentença Proferida
sentença datada de 17/06/2005, condeno o réu como
incurso no artigo 12, caput da Lei 6,368/76, à pena de 03
(três) anos de reclusão e 40 (quarenta) dias-multa; e como
incurso no artigo 16, § único, IV, da Lei 10.826/03, à pena
de 03 (três) anos de reclusão e 10 (dez) dias-multa
0008 17/06/2005 Sentença Proferida
Sentença datada de 17/06/2005, ABSOLVER a ré, com
fundamento no artigo com fulcro no artigo 386, inciso VI,
do Código de Processo Penal.
0009 20/04/2005
Aguardando Audiência
Designada
0010 28/02/2005 Vista ao Ministério Público
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Anexo C
Cópia do acórdão referente ao recurso contra a
sentença que concedeu o perdão judicial
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
APELAÇÃO nº 1.104.560.3/6 VOTO Nº
Comarca: Barueri (Ação Penal nº 068.01.2005.000202-2
Juízo de Origem: 1ª Vara Criminal
Órgão Julgador: 11ª Câmara
Apelante: JADIEL RODRIGUES DE ABREU
Apelada: JUSTIÇA PÚBLICA 7494 L439/2005)
VISTOS.
JADIEL RODRIGUES DE ABREU,
inconformado com a r. sentença que o condenou às penas de três anos e
quatro meses de reclusão, em regime integralmente fechado, e pagamento
de cinquenta e nove dias-multa, no valor unitário mínimo, como incurso
no artigo 12, caput, da Lei nº 6.368/76, tendo lhe sido concedido o perdão
judicial, com a consequente extinção de sua punibilidade, nos termos do
artigo 107, inciso IX, do Código Penal, apela (fls. 183/189), postulando absolvição, sob alegada insuficiência probatória. Contra-arrazoado o apelo (fls.
193/197), em seu parecer a douta Procuradoria Geral de Justiça opinou pela
prejudicialidade do recurso (fls. 201/203).
É o relatório.
APELAÇÃO nº 1.104.560.3/6 1/ VOTO nº 7494 1/4
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
Não se pode conhecer do recurso.
Compulsada a r. sentença guerreada (fls. 157/165), apura-se que, após reconhecer a procedência dos fatos narrados na denúncia, o magistrado singular,
considerando que o réu ficou “cego em face de uma tentativa de homicídio
contra a sua pessoa, ato criminoso praticado em razão de suas atividades criminosas” (fls. 164), houve por bem conceder-lhe o benefício do perdão judicial, julgando extinta, por conseguinte, sua punibilidade, com fulcro no artigo
107, inciso IX, do Código Penal. Desde logo, insta salientar que a sentença
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concessiva do perdão judicial possui natureza meramente declaratória - de
extinção da punibilidade do agente -, razão pela qual não produz quaisquer
dos efeitos (principal ou acessórios) da decisão condenatória. Nesse sentido,
a Exposição de Motivos da Nova Parte Geral do Código Penal (Lei nº 7.209/84),
ao tratar do perdão judicial, dispõe expressamente, em seu item 98, que
“(...) a sentença que o concede não será considerada para configuração futura
de reincidência (art. 120). Afastam-se, com isso, as dúvidas que ora têm suscitado decisões contraditórias em nossos tribunais. A opção se justifica a fim de
que o perdão, cabível quando expressamente previsto na Parte Especial ou em
lei, não continue, como por vezes se tem entendido, a produzir efeitos da sentença condenatória”. Da mesma forma, o Colendo Superior Tribunal de Justiça
editou a Súmula nº 18, estabelecendo que: A APELAÇÃO nº 1.104.560.3/6 1/
VOTO nº 7494 2/4 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO sentença
concessiva do perdão judicial e declaratória da extinção da punibilidade, não
subsistindo qualquer efeito condenatório”. Assim, considerando-se que, na
hipótese vertente, o magistrado sentenciante, após condenar o acusado como
incurso nas penas do artigo 12, caput, do Código Penal, entendeu ser-lhe
cabível, por analogia in bonam partem, a concessão do perdão judicial, com
a consequente extinção de sua punibilidade, nos termos do artigo 107, inciso
IX, do Código Penal, imperioso reconhecer que o presente apelo (no qual se
busca a absolvição do réu, sob alegada insuficiência probatória) não comporta
conhecimento, por falta de interesse jurídico recursal. A propósito: “Recurso
- Falta de interesse recursal - Interposição da sentença concessiva de perdão
judicial, Decisão de natureza declaratória de extinção da punibilidade, e não
condenatória, que alcança a própria ação penal - Insubsistência dos efeitos
principais e secundários da condenação - Não conhecimento” (RT 666/318)
“ O perdão judicial, como causa extintiva da punibilidade que é, tem como
consequência jurídica absolver qualquer resquício de punição. A sentença que
o concede não produz efeito jurídico, como a reincidência, o registro no rol
dos culpados ou a APELAÇÃO nº 1.104.560.3/6, VOTO nº 7494. TRIBUNAL DE
JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO condenação as custas processuais. Em consequência, inadmissível de reexame pela segunda instância. Apelação não conhecida’ (JTAERGS 67/145) “Quem recebe o perdão judicial não tem interesse
de agir para recorrer da sentença que lhe defere a prerrogativa insculpida no
art. 107, IX, do CP, em face de inexistir sucumbência diante de uma pretensão punitiva que justifique provocar, em 2º grau, o Estado-jurisdição” (RTJE
153/224) Diante do exposto, não se conhece do recurso.
GUILHERME STRENGER
Relator
APELAÇÃO nº 1.104.560.3/6 VOTO nº 7494 4/4
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Coordenação geral
Des. Wanderley José Federighi
Coordenação editorial
Marcelo Alexandre Barbosa
Capa
Cora Hohne Golbspan
Editoração, CTP, impressão e acabamento
Páginas & Letras - Editora e Gráfica Ltda.
Revisão
Páginas & Letras - Editora e Gráfica Ltda.
Yara Cristina Marcondes
Formato fechado
150 x 210 mm
Tipologia
Trebuchet MS
Papel
Capa: Cartão revestido 250 g/m2
Miolo: offset branco 75 g/m2
Acabamento
Cadernos de 16 pp.
costurados e colados-brochura
Tiragem
3.200 exemplares
Junho de 2015
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