UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO CAMPUS DIADEMA PEDRO CREPALDI CARLESSI "NESSAS MATAS TEM FOLHAS!" UMA ANÁLISE SOBRE 'PLANTAS' E 'ERVAS' A PARTIR DA UMBANDA PAULISTA Diadema 2016 PEDRO CREPALDI CARLESSI "NESSAS MATAS TEM FOLHAS!" UMA ANÁLISE SOBRE 'PLANTAS' E 'ERVAS' A PARTIR DA UMBANDA PAULISTA Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Análises Ambientais Integradas do Instituto de Ciências Ambientais, Químicas e Farmacêuticas da Universidade Federal de São Paulo - Campus Diadema, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Ciências. Orientador: Prof. Dr. Eliana Rodrigues Coorientador: Prof. Dr. Vagner Gonçalves da Silva Diadema 2016 Carlessi, Pedro Crepaldi "Nessas matas tem folhas!": uma análise sobre 'plantas' e 'ervas' a partir da umbanda paulista / Pedro Crepaldi Carlessi - - Diadema, 2016. 93f. Dissertação de mestrado (Programa de Pós-Graduação em Análises Ambientais Integradas) - Universidade Federal de São Paulo - Campus Diadema, 2016. 1.Etnobotânica. 2. Ervas. 3. Natueza-Cultura. 4.Religiões afrobrasileiras. 5. Umbanda Nome: Carlessi, Pedro Crepaldi Título: "nessas matas tem folhas": uma análise sobre 'plantas' e 'ervas' a partir da umbanda paulista. Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Análises Ambientais Integradas do Instituto de Ciências Ambientais, Químicas e Farmacêuticas da Universidade Federal de São Paulo - Campus Diadema, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Ciências. Aprovada em 29 de abril de 2016. BANCA EXAMINADORA _______________________________________ Prof. Dr. Joana Cabral de Oliveira Universidade Estadual de Campinas _______________________________________ Dr. Priscila Matta Universidade de São Paulo _______________________________________ Prof. Dr. Zysman Neiman Universidade Federal de São Paulo Para Murí e Dona Cida, por terem me ensinado a falar com as folhas, com os pássaros e com os santos. Para Lenita e suas crianças. AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente às plantas e os muitos agenciamentos que possuem sob mim. Agradeço imensamente à comunidade do templo de umbanda Círculo de Irradiações Espirituais de São Lázaro que carinhosamente aceitou e permitiu a realização desta pesquisa. Não serei capaz de listá-los todos, mas em especial, agradeço a Pai Alexandre e Pai Agostinho, Exú Sete Sepulturas e Caboclo Pena Branca, Mãe Izildinha, Iabá Carmelita, Mãe Zizi, Mãe Beth, Mãe Janice, Rosa, Mãe Rosa, Rosa Vermelha, Ogã Richard, Iabá Betinha, Mãe Solange, Baiana Jacobina, Vovó Maria, Pai Dudu, Pai Bento, Quinzão, Maria Padilha, Solange Ciavatta e seu pé de café, Cris Boog, Luis, Quelma, Mãe Paula, Exú Caveira, Pai André, Mãe Sônia, Caboclo Sete Flechas, Iabá Vera, Zé do Coqueiro, Mirim, Sete Saias. À Eliana Rodrigues, agradeço pelas portas sempre abertas, sua atenção e orientação nesta pesquisa. Vinícius de Moraes já bem alertava sobre os encantos de Ossanha e eu lhe agradeço por ter permitido que eu caísse em muitos deles. À Vagner Gonçalves da Silva sou muito grato por ter aceitado o difícil desafio de coorientar um não antropólogo seduzido pelos encantos desta disciplina. Agradeço o investimento em minhas ideias, sua dedicação, respeito e ensinamentos. Bernardo Lewgoy falou, Patrícia Ferreira concordou e eu reitero: Vagner é realmente bom demais para esse mundo. Agradeço à Universidade Federal de São Paulo pelo apoio institucional e ao Herbário Municipal de São Paulo pela parceria nesta pesquisa. À Sumiko Honda, Ricardo Garcia, Graça Maria, Ricardo Tameirão, Felipe Pascalicchio, Eduardo Barreto, Luara Granato, Maria Fernanda, Simone Sordi, Gislaine Giraldo e Osmar Neto, agradeço por tornarem as minhas idas e vindas ao herbário uma experiência sempre enriquecedora. Aos professores do PPGAAI, especialmente Zyman Neiman e Décio Semensatto, por terem partilhado suas inquietudes sobre ciências e cientistas, quais muito motivaram a construção desta análise. Agradeço Joana Cabral de Oliveira pelo incentivo e boas conversas que tivemos sobre plantas e antropologia e à Stelio Marras pelos comentários e críticas ao relatório de qualificação. A eles agradeço também a oportunidade de monitoria e discussões que, sem dúvida, foram fundamentais em minha formação. Aos bons encontros que as plantas me proporcionaram brindo à: Juliano Florczak Almeida, Leonardo Vieira, Leonardo Almeida e Marina Moura pelas discussões e risadas que nem as distâncias estaduais nos impediram de ter. Aos farmacêuticos às avessas Thiago Braz e Priscila Yasbek. Aos colegas do departamento de Ciências Ambientais da Universidade Federal de São Paulo, Lucas Gonçalves, Gabriel Izar, Mayana Fontes, Felipe Moutinho, Georges Kharlakian, Aline Vecchio, Rafaela Freitas, Marco Silva. Agradeço ainda aos colegas do CERNe e do departamento de Antropologia Social da Universidade de São Paulo que muito bem me acolheram e tornaram deste ambiente minha segunda casa: Rosenilton Oliveira, Yumei Morales, Marcello Muscari, Olavo Souza, Bruna Amaro, Lucas Lima, Patrícia Ferreira, Jacqueline Teixeira e Leonardo Braga. Aos meus familiares, Lenita e Vitor, serei sempre grato por terem aceitado a troca injusta que a pós-graduação impôs em nossa relação: doaram amor e receberam ausência. Aos sambas e amigos bambas dessa vida também só tenho a agradecer. Ao pessoal do Alves Cruz e a jaqueira que sempre me inspirou, ao samba-reggae do Vuco e ao ijexá gostoso do Coletivo. Sempre que eu pensava em não pensar, eram eles que me davam fôlego para seguir em frente. À Olívia, agradeço o sorriso, a paciência e o amor. Agradeço também por ter aceitado que alguns autores tomassem parte em nossos cafés da manhã, almoços e jantares. Certamente, são todos estes coautores da pesquisa que apresento. ________________________ OROZCO, Gabriel. Mi Oficina II. 1992. Edição A.P 1/1-5. Colorido. 32,1 x 47,6 cm. (Disponível online em http://www.guggenheim.org/new-york/collections/collection-online/artwork/5438). Acesso em 01/02/2016. "Para entrar em estado de árvore é preciso partir de um torpor animal de lagarto às 3 horas da tarde, no mês de agosto. Em 2 anos a inércia e o mato vão crescer em nossa boca. Sofreremos alguma decomposição lírica até o mato sair na voz. Hoje eu desenho o cheiro das árvores." (Manoel de Barros) RESUMO Esta dissertação é composta por uma coleção de três artigos, elaborados a partir de um trabalho de campo de caráter etnográfico associado a atividade de coleta botânica realizado em um terreiro de umbanda da cidade de São Paulo-SP-Brasil. Embora cada artigo tenha objetivos, resultados e conclusões específicos, nesta pesquisa procura-se evidenciar o protagonismo do universo vegetal na umbanda paulista a partir de um estudo em interface com as ciências botânicas e a antropologia. Primeiramente apresenta-se o inventário das plantas que puderam ser conhecidas durante os nove meses de trabalho de campo, composto por setenta e sete espécies botânicas, coletadas majoritariamente no interior do próprio terreiro e utilizadas no preparo de banhos de ervas, amacís, chás e defumações. Em seguida são grifadas algumas dissensões entre o termo sintético planta e a categoria nativa utilizada pelos membros do terreiro para se referir aos vegetais (mas não só) utilizados em suas praticas religiosas, ervas, condição que se faz acompanhada por uma análise do próprio estatuto ontológico deste material. Ao passo que as diferenças que particularizam plantas e ervas se evidenciam, abre-se espaço para pensar na importância de se criar modelos analíticos comprometidos em resguardá-las, condição que torna esta dissertação, em suas entrelinhas, um exercício reflexivo a respeito dos modos científicos de produção de conhecimento. Palavras-chave: Etnobotânica; Ervas; Natureza-Cultura; Religiões Afro-Brasileiras; Umbanda. ABSTRACT This thesis consists on a collection of three articles drawn up as a result of a ethnographic fieldwork associated to a botanical collection activity that took place in an umbanda temple in the city of São Paulo-SP-Brazil. Although each article has specific purposes, results and conclusions, this research seeks to highlight the role of the universe of the plants in the umbanda religion of São Paulo from a study interfaced with Botany and Anthropology, Firstly it presents the inventory of the plants which could be known during this nine-monthfieldwork, consisted of seventy-seven botanical species predominantly collected inside the temple and used in the preparation of "banho de ervas" (ritual plant bath), "amacís", teas and "defumação" (smoking). Then, some disagreements between the synthetic term "plants" and the native category mentioned by members of the temple when talking about the plants (but not only) used in their religious practices, "ervas", a topic analyzed by the ontological status of this material. While the differences that customize the "plants" and "ervas" become apparent, it makes room for thinking about the importance of developing analytical models to preserve them, a condition that implies in this thesis a reflexive exercise about the scientific ways to produce knowledge. Key words: Ethnobotany; Herbs; Nature-Culture; Afro-Brazilian Religions; Umbanda. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1: Fachada do terreiro CIESL. Fotógrafo: Pedro Carlessi. Set/2014. ........................... 21 Figura 2: Sobre a diluição da categoria círculo. Detalhe do portão do terreiro CIESL. Fotógrafo: Marcelo Dalla. Abr/2014. ....................................................................................... 25 Figura 3: Iabá Betinha e iabá Carmelita separando ervas para amací. Fotógrafo: Pedro Carlessi. Abr/2014. ................................................................................................................... 29 Figura 4: Localização geográfica da atual sede do terreiro CIESL. Rua Nazaré Rezek Farah, 30 - Vila Santa Catariana - São Paulo - SP - Brasil. Localização geográfica 23o38.990'S 46o40.002'O. ............................................................................................................................. 38 Figura 5: Plantas e religiosos umbandistas no Mercadão da Lapa-SP. Fotógrafo: Pedro Carlessi. Set/2014. .................................................................................................................... 39 Figura 6: Vista panorâmica da atual cede do terreiro CIESL (em destaque). Imagem obtida através do aplicativo 'Google Earth' em 17/09/2015. Editado pelo autor. ............................... 42 Figura 7: Povoamento das plantas na 'firmeza dos caboclos' (1), 'cruzeiro' (2) e na 'firmeza das pombogiras' (3). ........................................................................................................................ 44 Figura 8: Ponto riscado. A seta indica a bacia contendo o guaraná de caboclo: continuidade da fruta amazônica através do fluxo dos materiais. Fotógrafo: Jardel Filho. Mai/2014. .............. 51 Figura 9: Frascos de álcool cheiroso (em recipiente de álcool etílico) e perfume de alfazema (frascos com líquido verde) no estoque do terreiro, juntamente com outras ervas na condição seca (ao fundo). Fotógrafo: Pedro Carlessi. Nov/2014. ........................................................... 53 Figura 10: Tabletes para defumação. Fotógrafo: Pedro Carlessi. Out/2014. ........................... 54 Figura 11: Banho 'Cosme e Damião'. Fotógrafo: Pedro Carlessi. Out/2014. ........................... 56 Figura 12: Defumação "Mãe Maria". Fotógrafo: Pedro Carlessi. Out/2014. ........................... 56 Figura 13: Defumação "7 misturas da Bahia". Ervas em cores diferentes, cada qual para um dia da semana. Fotógrafo: Pedro Carlessi. Fev/2016. .............................................................. 57 Figura 14: Ervas em diferentes apresentações. Fotógrafo: Pedro Carlessi. Out/2014. ............ 60 Figura 15: Ervas comercializadas na loja 'Axé Orixá', bairro Santo Amaro-SP. Fotógrafo: Pedro Carlessi. Out/2014. ......................................................................................................... 61 Figura 16: "Box 58" - Mercadão da Lapa - São Paulo. Fotógrafo: Pedro Carlessi. Set/2014. . 62 Figura 17: "Asé Box" - Mercadão da Lapa - São Paulo. Fotógrafo: Pedro Carlessi. Set/2014.63 Figura 18: Cruzeiro de Obaluaê. CIESL. Fotógrafo: Pedro Carlessi. Abr/2014. ..................... 67 Figura 19: Detalhe do jardim do terreiro CIESL. Fotógrafo: Pedro Carlessi. Abr/2014. ........ 75 1 SUMÁRIO 1. Introdução: dos caminhos da pesquisa .................................................................... 3 2. Estrutura da dissertação ........................................................................................... 8 3. Notas de campo ........................................................................................................ 11 4. Ambientação teórica e etnográfica ......................................................................... 18 5. Primeiro artigo ......................................................................................................... 29 Levantamento etnobotânico realizado em um terreiro de umbanda da cidade de São Paulo-SP ............................................................................................................................ 29 6. Segundo Artigo ......................................................................................................... 39 Encontros e trajetórias de religiosos umbandistas e ervas pela cidade de São Paulo ....... 39 7. Terceiro artigo .......................................................................................................... 67 Desnaturalizando a natureza: dimensão e fluxo material das plantas em um terreiro de umbanda da cidade de São Paulo ...................................................................................... 67 8. Conclusão: a experiência que não cabe na prensa ................................................ 82 9. Referências Bibliográficas ....................................................................................... 86 10. Anexos ....................................................................................................................... 93 2 1. Introdução: dos caminhos da pesquisa Esta dissertação é composta por uma coleção de três artigos, elaborados a partir de um trabalho de campo de caráter etnográfico associado a atividade de coleta e taxonomia botânica realizado em um terreiro de umbanda da cidade de São Paulo-SP. Embora cada artigo tenha objetivos específicos, nesta pesquisa procuro evidenciar o protagonismo das plantas em uma comunidade religiosa afro-brasileira alocada em um terreiro de umbanda da capital paulista a partir de um estudo em interface entre as ciências botânicas e a antropologia das religiões. De antemão devo dizer que este é o resultado de um trabalho orientado por um desiderato maior, um certo esforço de irredutibilidades analíticas frente aquilo que observei em campo. Digo isso pois, sendo eu um pesquisador que desde minha formação inicial têm se inclinado à botânica e suas subdivisões acadêmicas, durante esta pesquisa tive a oportunidade de analisar certos vegetais a partir de uma linguagem radicada nos modos de ser e viver das religiosidades afro-brasileiras. Para além de um exercício de alteridade, esta condição se fez pertinente pois, ao passo que me propus à procurar um modo de descrição e análise destes vegetais que permitisse apresentá-los pela perspectiva de seus anunciantes (digo, os religiosos umbandistas), fui posto também a seguir alguns desdobramentos do pensamento contemporâneo que têm questionado certas fronteiras analíticas das quais as plantas se mantém reféns ora da natureza, ora da cultura, dicotomias que estruturam o pensamento ocidental moderno mas que, como pretendo apresentar, mostram-se pouco precisas quanto tomadas em função das religiosidades afrobrasileiras. Desse modo, aquilo que o leitor encontrará nas próximas páginas emerge de uma revisita que faço à minha própria formação, acompanhada de uma certa luta contra alguns automatismos intelectuais que me foram postos em cheque pelo trabalho de campo. Esta pesquisa surge em meados de 2014, onde inicialmente dois interesses norteavam minha prática: o primeiro, conhecer a flora envolvida nas práticas da umbanda paulista e, no momento seguinte, analisá-las em função dos rituais observados. Para isso, uma prerrogativa presente desde o delineamento do estudo, tanto por parte dos acadêmicos como dos religiosos que me acompanhavam, era proceder a identificação e classificação dos vegetais coletados através dos modos científicos de produção do conhecimento. Naquele período o terreiro Círculo de Irradiações Espirituais de São Lázaro (CIESL), que gentilmente cedeu espaço para o desenvolvimento desta pesquisa, passava por um processo de salvaguarda de sua história em decorrência de uma dupla comemoração: a 3 celebração de sessenta anos de fundação do templo (também a mudança de endereço, ocupando uma nova sede) e as homenagens ao dirigente deste templo, que completara 18 anos como liderança religiosa nesta comunidade. Conduzindo este registro, um grupo de trabalho foi criado pelos próprios membros do terreiro e eventuais colegas externos, convidados a integrar a tarefa que se fez extensa. Foram produzidos diversos materiais audiovisuais e também encadernações, como livretos com as cantigas entoadas nas cerimônias, calendários levando imagem dos pais e mães-de-santo trajados com as vestes de seus orixás, entrevistas com antigas e novas personalidades da comunidade, exposição fotográfica de cerimônias e momentos marcantes desta trajetória, além de um documentário (não finalizado) e uma plataforma virtual1 para abrigar o material produzido e divulgá-lo aos interessados. Como título deste projeto adotou-se o nome a teia pelo fato do grupo entender que a trajetória que desejavam registrar, na verdade, contemplava diversos outras trajetórias, que se entrecruzavam e compunham assim um emaranhado de histórias conduzidas por pessoas, mas não só. Digo isso porquê a vida religiosa umbandista considera que além dos humanos, outros seres também desempenham um papel social ativo no cotidiano. Assim são as arvores, plantas, mares, rios, oceanos, cemitérios, florestas, além do próprio chão, e paredes do terreiro. Como me foi reportado logo nos primeiros meses de trabalho de campo: "no terreiro de umbanda tudo fala". Meu ingresso junto a este grupo de trabalho nunca ocorreu efetivamente pelo fato de ter-me envolvido com a atividade de pesquisa sobre plantas já em um segundo momento do registro por eles conduzido. Todo modo, ao apresentar a proposta de estudo às lideranças do terreiro, foi-me solicitado disponibilizar ao grupo os nomes científicos das plantas que seriam por mim estudadas. Já passados os festejos e agora sediada em novo endereço, mais amplo e tendo um grande jardim a sua disposição, o interesse da comunidade era utilizar esta nomenclatura para a elaboração de uma apostila destinada aos membros ingressantes na religião, bem como para a produção de filipetas para as plantas do jardim, relacionando o nome religioso e seu correspondente científico para cada um dos vegetais ali presente. Para além de sustentar as informações e saberes próprios do terreiro, a busca por alianças com as ciências ocidentais modernas é uma marca presente na trajetória da umbanda paulista, que tem sua origem segundo os padrões atualmente predominantes por volta da década de 1920 e 1930, quando kardecistas da classe média das metrópoles emergentes do 1 No momento desta pesquisa o endereço virtual mantinha-se ativo em http://www.docateia.blogspot.com.br. Acesso em 23/08/2015. 4 sudeste passam a mesclar suas práticas com elementos da religiosidade afro-brasileira (Silva, 2005). Neste movimento, os elementos de culto até então marginalizados, como o uso de bebidas alcoólicas, fumo, o preparo de oferendas e sacrifício animal, por exemplo, foram excluídos ou justificados segundo a moral das classes dominantes da época, utilizando o potente discurso cientificista para compor seu regime de enunciação. Por outro lado, os biólogos que acompanhavam minha trajetória de pesquisa viam no serviço de coleta e taxonomia botânica um pressuposto indispensável à atividade científica, sem a qual minha prática seria fadada ao fracasso pelo fato de não oferecer uma referência válida e segura cientificamente sobre os materiais que me eram apresentados, as plantas. Visto que os "nomes científicos" referidos por ambos alude à uma denominação que busca ser universalista, este empenho me exigiu adotar além do caderno de campo companheiro de longa data dos aprendizes a etnógrafo - os métodos de coleta botânica, dos quais optei pelo método seco (Alexidades, 1999), em que plantas são coletadas, prensadas em tamanho padronizado e levadas a desidratação em estufa. De um lado a subjetividade do registro em caderno de campo que busca apreender particularidades da "cultura" humana, de outro, um método padronizado para conhecer e descrever a "natureza". Através deste procedimento, sempre que um novo vegetal era incluído em meus registros de campo, me organizava junto aos membros do terreiro para conhecer as plantas citadas e proceder a coleta do vegetal ou de suas partes, que em seguida eram levados por mim ao Herbário Municipal de São Paulo (PMSP2) para a atividade de identificação e classificação taxonomia. Não há dúvidas que o conhecimento científico é hegemônico, afinal, emerge mesmo nos discursos e solicitações dos religiosos. Esta hegemonia é marcada pelo próprio termo comum, "ciência", que faz referência direta aos saberes ocidentais modernos ao passo que para referir-se às demais formas de saber é utilizado o prefixo etno-. Como indica Oliveira: Poderíamos dizer que toda ciência é necessariamente etnociência, a nossa inclusive. Contudo, este qualitativo continua sendo empregado para alimentar a cisão nós/eles, onde só o eles é marcado pelo etno- que carrega em seu sentido mais popularizado uma carga semântica diminuta. (Oliveira, 2012:17). 2 Como praxe entre estas instituições, o Herbário Municipal de São Paulo utiliza a sigla PMSP em referência à esfera do estado qual é vinculado, na caso, a Prefeitura Municipal do Estado de São Paulo. Durante a análise manterei esta abreviação. 5 Na senda deste apontamento, posso dizer que a demanda de cientistas e religiosos por incluir o referencial cientificista nesta pesquisa conduziu minha prática à um cenário teóricometodológico perigoso: ao considerar o trabalho e empenho dos botânicos, minha referência para a categoria nativa "erva" passaria à noção deste termo outorgada pelos cientistas. Desse modo, caberia à minha análise o serviço de "tradução" do termo em função dos significados dados a este referencial por parte dos umbandistas. Entendo que o problema desta condição está em ratificar os saberes e modos de ser do terreiro em função dos saberes científicos, de modo a torná-los comparáveis sempre a partir destes últimos, condição ao menos antropocêntrica e limitadora. Além disso, concederia à ciência o direito de definir a noção de realidade sem que antes eu pudesse questionar os enunciados próprios dos saberes científicos, condição que certamente não figura entre os objetivos de uma análise que se propõe a ser honesta com as muitas e diferentes formas de ser no mundo. O movimento entre o terreiro e o laboratório, porém, se mostrou interessante pois a cada nova planta apresentada aos botânicos, muitas trocas eram estabelecidas e logo aglomerava-se ali uma porção de cientistas interessados nos santos, nos banhos, em todo aquele novo mundo que as plantas transportavam para dentro do herbário. Como aponta Webb Keane (2008:230): "material things have an inherent and irreducibly open-ended character". Este era meu momento sublime, o deslumbramento dos cientistas botânicos pelo universo do terreiro, que viam naquele pedaço de vegetal algo muito diferente das demais plantas que completavam suas coleções. Foi assim com os ramos da "árvore de pombogira", por exemplo, passaram a ser delicadamente manuseados ao passo que eu descrevia algumas particularidades da divindade. Devo revelar que em decorrência da espessura do vegetal, os ramos da "árvore de pombogira" foram os únicos a ter os jornais utilizados para modelar plantas entre as prensas de madeira que dão o tamanho e formato padronizado pelos herbários substituídos por almofadas, privilégio que embora os botânicos desconhecessem, a divindade muito preza. Ao mesmo tempo, conforme avançavam as coletas, os membros do terreiro também muito se interessavam pela minha prática. Primeiro, pela minha necessidade em coletar os vegetais preferencialmente equipados de flores ou frutos, estruturas indispensáveis ao trabalho dos botânicos, mas que raramente eram consideradas pelos umbandistas, que valem-se essencialmente de folhas para classificação e uso. Além disso, e certamente mais importante, pelo fato das minhas coletas não darem conta de apanhar os vegetais tais quais eram-me apresentados. Isso porque, no terreiro as ervas possuem aura, deuses que as acompanhavam, 6 realidades que a prensa e as folhas de jornal utilizadas na coleta botânica não davam conta de suportar. Digo 'realidades' pois a experiência é irrefutável: o universo invisível que costumeiramente é apontado como próprio da cultura, aos umbandistas, é parte integrante daquilo que os cientistas entendem por "natureza". Como lidar com este paradoxo sem cair nas armadilhas do reducionismo biológico ou cultural? Mantido em meu objetivo inicial (o de indicar diferentes “representações” do elemento vegetal), jamais fugiria da dicotomia que o próprio campo me levou a abandonar. 7 2. Estrutura da dissertação Para responder a pergunta da sessão anterior, esta análise se elabora a partir de três artigos independentes, que apesar de suas particularidades teóricas e metodológicas, guiam o leitor por um caminho argumentativo que percorre minha leitura e análise sobre plantas e ervas neste momento. O primeiro artigo apresenta e discute o inventário de plantas que puderam ser conhecidas ao longo dos nove meses de trabalho de campo junto aos membros do terreiro CIESL. São apresentadas as partes vegetais e os usos mais preponderantes destas plantas, as famílias e hábitos botânicos e as nomenclaturas científicas dadas pelo PMSP a estes vegetais. Para elaboração deste artigo adotou-se um modelo de comunicação científica mais próximo das ciências biológicas, especialmente a partir da disciplina atualmente conhecida como 'etnobotânica', que em termos gerais têm se mostrado interessada ora nas nuances culturais atribuídos às plantas, ora nas particularidades biológicas de vegetais utilizados por diferentes grupos humanos (Ford, 1978; Schultes e Reis, 1995). Desta forma, o material apresenta, tanto no estilo narrativo como na argumentação teórica, o compromisso em relativizar as particularidades das culturas em função da natureza, tratando especificamente sobre plantas3. Visto que esta dissertação se elabora a partir de diálogos interdisciplinares, sobretudo em interface com as ciências botânicas e a antropologia, os dois artigos subsequentes são construídos através de uma estrutura mais comprometida com as diretrizes editoriais desta segunda disciplina. Se o primeiro artigo discute sobre plantas, utilizando para isso uma linguagem radicada nos modos de saber próprios da ciência botânica moderna, o segundo lança um empenho inicial para desubstancializar este termo em função da categoria nativa erva, utilizada pelos membros do terreiro CIESL para se referir às plantas (mas não só) que fazem parte da rotina desta comunidade. O argumento deste artigo caminha, no primeiro momento, focado no deslocamento dos citadinos em busca destes materiais pela cidade de São Paulo. Em paralelo são apresentadas as influências que estas mesmas ervas exercem na dinâmica da cidade. Dois são os interesses em apresentar este artigo. O primeiro, para indicar uma certa extensão da categoria nativa erva em função de seu análogo sintético de modo que, se as 3 Complementar à análise aqui apresentada, em Carlessi e Rodrigues (2015) indico algumas particularidades sobre este empenho relativista. 8 plantas fornecem uma referência para o estudo das ervas na umbanda paulista, argumento que esta referência mostra-se eminentemente repetitiva (por vezes equívoca) caso seja tomada essencialmente em função do corpo enquanto substância vegetal. Não menos importante, ao grifar a influência destes vegetais na dinâmica da cidade, saliento que as plantas não são meros objetos ao aguardo dos significados que os homens lhes são capazes de atribuir, mas justamente, são seres que, assim como os homens, participam ativamente na edificação da cidade, condição que lança um empenho sutil, porém importante, para diminuir as cisões sujeito-objeto que fundamentam o pensamento moderno e que me interessa reaver para construir uma análise descritiva comprometida com os saberes e modos de ser próprios do terreiro. O compromisso teórico da análise neste momento é tímido e bastante restrito, visto que meu intento foi elaborar uma narrativa passível de ser acompanhada por leitores de diferentes áreas. Contudo, devo dizer que os aportes fornecidos pelo antropólogo britânico Tim Ingold, sobretudo no que se refere à ideia de 'fluxo de materiais' (Ingold, 2000; 2012), se fizeram muito pertinentes e norteiam meu olhar sobre o trabalho de campo. Isso porque, ao passo que acompanhava religiosos e plantas terreiro afora, paulatinamente era posto a redimensionar algumas antinomias próprias de minha formação cientificista, das quais Ingold lança um olhar crítico e bastante apurado (Ingold, 1990; 2004; 2013). Neste entrecruzamento entre teoria e prática, notei que muitos termos presentes nos discursos do terreiro dialogavam com pertinência e coesão com certas categorias adotadas pelo autor. Atento a esta condição, passei a utilizá-las de modo mais pragmático, condição que me pôs em matrimônio com algumas ideias deste autor. Contudo, não figura entre meus objetivos construir uma análise essencialmente ingoldiana. Lanço mão de certos conceitos deste autor, sobretudo em situações pontuais, tão somente interessado em fortalecer a apresentação dos argumentos sucedidos do registro etnográfico. É apoiado neste encontro que apresento, no terceiro artigo desta dissertação, uma análise sobre a dimensão material dos vegetais que compõe o jardim do terreiro CIESL. Apoiado em uma narrativa essencialmente etnográfica, apresento algumas dinâmicas que operam entre a cidade metafísica Aruanda (indicada pelos membros do terreiro como morada dos orixás e guias espirituais) e o próprio terreiro, de modo que ambas são vistas pelos religiosos como espaços interconectados através das plantas ali dispostas. Posso então dizer que abdicar dos vegetais em si(ência) para, paulatinamente, construir uma análise radicada nos modos de ser do terreiro CIESL foi uma emergência e uma exigência empírica, resguardada, é claro, pelos conflitos e negociações que caracterizam um 9 empenho interdisciplinar. Manter-me fixado na análise dos dados botânicos ou exclusivamente nos registros em caderno de campo certamente seria mais conveniente, tanto pela categorização da minha própria área de estudo, como pelo diálogo facilitado, quer fosse com biólogos ou antropólogos. Contudo, entendo que esta pesquisa se insere num meio fio, um terreno híbrido entre a prática e a reflexão, a biologia e a antropologia, condição desconfortável, mas igualmente privilegiada. Primeiro, pelo fato de me permitir descrever certas plantas através de uma linguagem radicada nos modos de ser da umbanda paulista. No mais, pelo fato das plantas que acompanhei terem travado relações também cientistas botânicos, pude tornar esta pesquisa como um exercício reflexivo sobre minha própria área de estudo. É apoiado nas diferenças que particularizam os saberes botânicos e aqueles próprios do terreiro CIESL que ao longo da narrativa procuro não indicar as correspondências entre os nomes das ervas e seus análogos científicos. Reservo esta condição essencialmente à exigência metodológica do primeiro artigo como um posicionamento político frente às dissensões existentes entre ambos. Na sessão seguinte trago outras informações que complementam as opções descritivas e analíticas que dão corpo a esta análise. 10 3. Notas de campo Reconhecer agências e habilidades nas plantas, confesso, é algo que aprendi com os umbandistas em momentos anteriores da pesquisa se fazer profissão. Primeiramente, devo indicar que nos templos das religiões afro-brasileiras as plantas transportam segredos dos mais valiosos. Adentrar nesta ceara, mesmo nos espaços em que as relações com as plantas se dão de forma menos pragmática, requer ao menos duas intimidades: a primeira com os detentores deste conhecimento, que geralmente pouco falam a este respeito de forma espontânea e aberta. Muitas vezes meus colegas do CIESL me indicavam pouco saber a respeito das ervas, mesmo aqueles reconhecidos pela comunidade por seus conhecimentos profícuos. Muito além da modéstia, percebi que os guias espirituais - nome dado aos espíritos manifestos via processo de transe, a incorporação - são tidos como os verdadeiros especialistas no terreiro de umbanda, seja sobre esse ou qualquer outro assunto. Dessa forma, além da aproximação com os médiuns, pais-de-santo, iabás4, e ogãs5, me foi necessário tecer alguma intimidade com seus respectivos pretos velhos, caboclos, baianos, boiadeiros, erês, e exus – estes sim, uma vez ganhado confiança, me desenovelavam histórias, banhos, chás e amuletos à toda sorte de plantas. Neste grupo há uma abrupta distinção entre as figuras que ocupam, em momentos distintos, o mesmo corpo. Sempre que procurava retomar alguma conversa que havia tido anteriormente sobre ervas era preciso diferenciar o ator da fala por mim registrada, condição imposta pelos próprios médiuns: "essa conversa você teve com a pessoa física ou com a jurídica6? (risos)", distinguindo em tom de brincadeira o próprio médium que comigo conversava dos guias espirituais que ganhavam voz a partir de seus corpos. 4 neste terreiro, cargo estritamente feminino. Entre outros, é responsável pelo preparo das comidas votivas, oferendas, banhos, amacís e outros cuidados com os orixás e guias espirituais. 5 neste terreiro, cargo estritamente masculino. Entre outros é responsável pelo toque dos instrumentos de percussão e despachos. 6 devo ressaltar que a utilização destas categorias foi um modo bem humorado, e em uma situação pontual, de indicarem a distinção qual me refiro. O terreiro CIESL possui um discurso incisivo sobre o voluntariado do seu exercício, ressaltando em todas as sessões que não opera através de remuneração financeira. Julguei oportuno fazer referência a este quesito para que o termo "jurídico" não seja lido como uma tentativa de aproximar o exercício do grupo com uma atividade economicamente remunerada. 11 Em função desta distinção ontológica, optei por proceder conforme os próprios entrevistados apontavam: entrevistei "atores", no sentido que Bruno Latour dá ao termo 7. Desse modo, figuraram entre os meus entrevistados, de modo igual, pessoas e espíritos. Atividade que se fez extensa pelo fato de que, para cada humano, havia em média dez guias espirituais diferentes8. Visto que muitos espíritos neste terreiro recebem a mesma alcunha (como "Caboclo Sete Flechas", que pude registrar mais de cinco diferentes na mesma cerimônia), procedi em meus registros de campo anotações que pudessem remeter a aquele específico caboclo. Para isso, usei artifícios diversos sem manter necessariamente o vínculo com o humano que o "carregava" - para usar aqui um termo nativo relativo ao processo de incorporação. Dessa forma, meus registros mantém um elo preciso com o entrevistado, operando entretanto através de agências variadas. Exemplos: "Caboclo Ubiratão (Solange)", "Vó Maria que não usa banquinho", "Exú Sete Encruzilhadas que assopra as mãos quando chega". Para me ambientar com o trabalho de campo, a princípio estabeleci conversas informais com membros do grupo e notei que costumeiramente alguns nomes-chave eram citados (de ervas, humanos e guias espirituais), ampliando desta maneira o meu quadro de atores, que era complementado com as observações realizadas por mim ao longo das sessões. Nos meses iniciais do trabalho de campo me mantive ao lado dos primeiros-cambonos, cargo hierárquico que goza de uma posição privilegiada quanto a visão geral da cerimônia observando e administrando a dinâmica das sessões. Interrompi esta atividade quando as informações observadas saturaram. No segundo momento, já com um certo mapa de médiuns, espíritos e plantas quais eu trabalhava, procurei ocupar a posição de cambono, espécie de auxiliar dos médiuns em processo de transe, que busca tomar nota das informações e indicações dos guias espirituais auxiliando assim a compreensão com os consulentes. Neste terreiro os cambonos utilizam um espécie de formulário padrão (anexo A) em que registram todo conteúdo prescritivo recomendado pelos guias espirituais, entregando-o ao final da conversa aos consulentes. Me vali muito desta peça técnica para compor meus registros e observações etnográficas, tanto por parte do conteúdo de prescrição (as plantas e o modo como eram utilizadas) como a respeito da transmissão de conhecimento neste grupo (guia 7 aquele que executa uma ação, como no caso do terreiro de umbanda, os humanos que colhem plantas, os espíritos que benzem seus consulentes com ramos de arruda, as plantas que afastam mau-olhado (Latour, 2012). 8 Neste templo existem treze "linhas" (castas) de guias espirituais mais preponderantes: caboclo, preto velho, erê (ou criança), boiadeiro, baiano, marinheiro, malandro, cigano, médico, grande oriente, exú, pombogira e exúmirim 12 espiritual-cambono-papel). A posição de cambono também foi bastante frutífera, já que pude completar e aprofundar muitas das observações feitas indiretamente, quando me posicionava ao lado do primeiro-cambono. Nesta função notei que tratando-se de plantas, um setor específico do terreiro era frequentemente consultado sempre que havia dúvida ou necessidade de parecer mais apurado a respeito das ervas e seus usos: a cozinha. Para adentrar neste território, em que a presença masculina é muito pouco bem vinda, precisei além de autorização, demonstrar absoluto comprometimento com as diretrizes que me eram postas. Contudo, foi neste momento, estágio mais longo e igualmente prazeroso do trabalho de campo, que imergi nas conversas das iabás e mães-de-santo que muito prazer tinham em falar sobre ervas. Com elas tive acesso a cadernos já amarelados pelo tempo, com anotações e dicas para agradar qualquer santo; fui introduzido a receitas infalíveis, colhi e plantei muita coisa na companhia de quem percebe as minúcias do menor traço de verde meio ao grande cinza da cidade. Se os humanos e os guias espirituais do CIESL me levavam às ervas, devo dizer que as elas próprias cumpriam a função de me apresentar seus pares. Na procura por vegetais a serem utilizados nos rituais e também para a coleta botânica, percorri muitos caminhos da cidade em jornadas que chegavam a durar semanas. Nestas expedições um mundo de plantas foi crescendo em mim, de modo que se torna difícil dizer se eu é quem as procurava ou se elas é quem me davam testemunhos de sua presença pelo mundo. Foi assim com o quebra-pedra rasteiro, planta de Iemanjá, que cresce em meio às fissuras das calçadas. Certamente já havíamos cruzado um o caminho do outro em minhas andanças pela cidade, mas a partir do momento que fomos apresentados pela iabá Carmelita, o quebra-pedra rasteiro me mostrou que entre todo aquele cimento, um grupo infinito de plantas crescia e com elas, muitos santos e religiosidades9. Foi assim que me tornei íntimo do também da serralha, da tiririca, do picão branco e muitas outras ervas. Certamente este trabalho não floresceria sem o interesse e afinidade com esta forma de vida, afinal, como bem diz Manoel de Barros, para entender as plantas "é preciso sofrer alguma decomposição lírica até o mato sair pela voz”. Prazer peculiar que além de nortear o meu olhar pelo estudo das religiões, me rendeu bons encontros, conversas e presentes sobre (e com) os vegetais. De orquídeas a urtigas, fui aos poucos introduzido em um universo que embora estivesse sempre próximo, não me era íntimo. 9 Almeida amplia esta discussão ao estudar plantas e catolicismo a partir da cidade de Guarani das Missões-RS (Almeida, 2014). 13 Embora a minha iniciação botânica tenha ocorrido ainda durante a graduação, onde mantive um horto de plantas medicinais na universidade e monitorei um modesto herbário, durante a pós-graduação nossa relação se enraizou. Passei a observá-las de perto, porém com a permissividade de plantar no meu jardim de ideias não apenas fitoterápicos - como em outrora - mas também divindades, feitiços, redes de sociabilidade, receitas para descarrego e banhos de limpeza. Algumas destas plantas me exigiram certos caprichos, "coisa de orixá", como dizia Mãe Izildinha. Pela ausência de estado fértil no momento das coletas, mantive muitas plantas em minha casa, cuidando para que florescessem e permitissem o trabalho dos biólogos do PMSP incumbidos de identifica-las taxonomicamente. Logo meu pequeno apartamento se transformou numa continuidade do próprio terreiro, trazendo nos vegetais seus fluxos de religiosidade. Assim foi com a samambaia do brejo, planta de caboclo que pouco se deu em minha casa pelo fato de caboclo ser um espírito livre, que "não gosta de viver em poleiro", como foi chamado meu apartamento pelo Caboclo Sultão das Matas ao explicar o desgosto que passavam as plantas. Algumas vieram de longe, dadas como presente, e não tive coragem de entregá-las por completo ao herbário, mantendo assim alguns brotos para me lembrar do sacrifício qual fui obrigado a cometer. Com outras mantive um verdadeiro namoro, geralmente pela dificuldade de encontrá-las (neste caso um namoro platônico), como foi com a carobinha e o cururu, não coletados pelos desencontros que tivemos. Com outras, me relacionei mais intimamente pelo interesse em melhor compreendê-las, como o trevo de quatro folhas, a goiabeira, o limoeiro, o bálsamo, o fumo e a losna. Nestes casos, procurei cultivá-las, mas quando não era possível, me restringia a cultuá-las sempre que cruzávamos um o caminho do outro. Visto que indiquei na abertura desta sessão que o ambiente do terreiro CIESL já me era familiar10, o desconhecimento que aqui relato a respeito das ervas, dos guias e dos religiosos deve ser lido como uma falta de intimidade, afinal, como diferencia Otávio Velho (1978), nem tudo que é familiar, necessariamente, é também íntimo. De certo, o terreiro, as ervas e os rituais do CIESL me eram familiares, e em graus diferentes de familiaridade. Já havíamos quase todos estabelecido contato e tecido certa proximidade, entretanto, esta condição não implica uma direta intimidade. Por mais que conhecesse o banho de ervas, jamais o havia avaliado enquanto suas controvérsias. Jamais havia se quer questionado tal 10 No qual ocupo desde2009 o cargo de ogã. 14 ritual, embora fizesse parte da minha rotina. É como tivesse um quebra-cabeças qual conhecesse as peças, mas jamais tivesse visto a imagem formada pela junção de todas elas. Do mesmo modo, se indico que a observação participante é a ferramenta que empreguei na condução deste trabalho, neste período fui convidado (por vezes intimado) a abandonar o caderno de campo e integrar o corpo religioso, num processo onde observação e participação mantiveram-se em matrimônio. Em uma certa sexta-feira, enquanto me desdobrava para dar conta de acompanhar meus entrevistados que, por ironia do destino, ficaram tempos sem aparecer no terreiro e retornaram todos na mesma data, fui convidado sem muitas opções de recusa à participar de um trabalho. Nesta ocasião me foi solicitado pelo Exú Sete Sepulturas, um dos dirigentes do templo: "você vai refazer a cartilagem da perna dela. Vai no jardim e pega as plantas vai usar. Não pensa...só sinta". Nesta passagem, talvez minha atenção já tivera sido educada pela pesquisa de modo que se tornou difícil atender o desejo do exú, todo modo, meu registro aponta que coletei folhas de samambaia, folha-da-costa, melissa, alfazema e boldo miúdo, recursos que por algum motivo me chamaram a atenção durante uma visita rápida ao jardim do CIESL. Tentar não pensar sobre esta coleta, confesso que foi um exercício único - coisa de exú, que gosta mesmo é de pregar peças - e me fez revisitar o caderno de campo centenas de vezes. Nesta ocasião, explicitamente, eu havia sido afetado de forma súbita. Meu envolvimento chegou a ponto de eu ser o protagonista e o autor do relato de campo do dia 09/05/2014. Favret-Saada (2005) vivencia também esta condição ambígua ao relatar seu trabalho sobre a feitiçaria praticada no vilarejo Bocage, na França. A autora relata a experiência de tornar familiar aquilo que inicialmente lhe era estranho, levando esta condição ao extremo. Ao assumir a condição de "ser afetada" pelas práticas de feitiçaria observadas, Favret-Saada comenta quão paradoxal é pensar na observação como uma ação ausente de participação e vice-versa, e provocantemente aponta que 'observar participando' ou 'participar observando' é quase tão paradoxal quanto tomar um sorvete fervente. *** O esforço de manter um estudo que preservasse ao máximo a vitalidade dos saberes e os modos de ser de meus colegas do terreiro, no entretanto, se enfraqueceu ao passo que esta pesquisa acessa aquilo que o Estado denomina por "conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético" (CTA), nomeado e resguardado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), órgão que precisei solicitar autorização prévia para condução desta pesquisa em função de meus objetivos envolver a coleta de material vegetal em uma comunidade religiosa afro-brasileira. Ainda nos primeiros meses de 2013, ano anterior ao 15 início do estudo, a proposta foi apresentada ao dirigente do Círculo de Irradiações Espirituais de São Lázaro discutindo as nuances do estudo proposto, delineados e acordados via Termo de Anuência Prévia (TAP). Todo modo, a chancela final que me permitiu iniciar o trabalho de campo foi outorgada pela Pombogira Maria Padilha, que embora não seja reconhecida pelo Estado, para o terreiro CIESL, é tão importante quanto o dirigente do terreiro. Em uma de nossas reuniões para assinatura do TAP, o pai-de-santo chefe deste templo comenta sobre as permissões para o estudo: Alexandre: Você já falou disso com o Seu Sete? [ se referindo ao Exú Sete Sepulturas, que compõe o quadro de lideranças neste terreiro]. Pedro: Ainda não. Mas falei com a sua Maria Padilha. Alexandre: E o que ela disse? Pedro: Disse que se eu não fizer [a pesquisa] bem feito ela me mata...(risos). Alexandre: Então já tá mais do que autorizado (risos)! Anterior ao pedido para acesso ao CTA via IPHAN, o projeto de pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) da Universidade Federal de São Paulo, solicitando autorização da universidade para início do estudo (parecer substanciado no 610.407). Para isso, me foi necessário desenvolver e aplicar um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) para que os participantes da pesquisa tomassem conhecimento dos direitos e compromissos resguardados à participação neste estudo. Todo modo, estes 'direitos e responsabilidades' mostram-se como segurança apenas aos religiosos, embora tenha havido necessidade de negociações também com os guias espirituais, desconsiderados pela política que outorga direito a este estudo. Contudo, enquanto acompanhava o trabalho dos guias espirituais, procurava também ambientá-los sobre a pesquisa da mesma maneira como procedia com os religiosos. Nestes casos, meu TCLE sempre à mãos foi majoritariamente substituindo pelos acordos impostos pelos próprios guias espirituais, suas regras e políticas de cooperação, salvo raros casos, em que me indicavam pouco entender de "papel", sugerindo uma conversa posterior com o médium que lhe dava voz. Todo trâmite IPHAN se fez bastante moroso, com muitas visitas e revisitas tanto ao terreiro, quanto a reitoria da universidade, situação que o ano de trabalho antecedente ao início da pesquisa mostrou-se indispensável para a obtenção da autorização expressa no 16 processo no 01450.004819/2014-14, protocolada no Diário Oficial da União em 29 de maio de 2014. De modo complementar, optei por realizar junto ao Ministério do Meio Ambiente (via sistema SISBio) o registro voluntário de coleta botânica, evitando assim qualquer contratempo no transporte das plantas entre o terreiro e o PMSP. Paralelo a esta autorização, também recebi muitas recomendações por parte dos umbandistas sobre pedidos de 'licença' anteriores à coleta, que também trataram de ser cumpridos. 17 4. Ambientação teórica e etnográfica A Umbanda é talvez a mais urbana das religiões afro-brasileiras. Constituída e legitimada como culto organizado meio aos grandes centros urbanos do início do século (Silva, 2005), hoje se faz presente em todo o Brasil - sobretudo nas metrópoles do sul e sudeste. Seu culto remete aos santos do catolicismo popular, à deuses africanos diretamente ligados a elementos da natureza e espíritos que, segundo os umbandistas, outrora estiveram entre os homens e hoje retornam com aprendizados adquiridos em vivencias passadas, geralmente, em espaços e tempos anterior ao mato rarear em prol do "progresso". Entre eles, destacam-se os caboclos, espíritos ameríndios conhecedores dos "segredos da selva", os pretos velhos, arquétipo do velho escravo que carrega rezas e plantas medicinais infalíveis, os boiadeiros, representantes do homem do campo e sua sabedoria como bom raizeiro, além dos exús, pombogiras e exús-mirins, verdadeiras modulações de continuidade e hibridismo entre o sagrado e o profano, "direita" e "esquerda", entre humanos e orixás, figuras emblemáticas que compõe o cenário da umbanda paulista. Embora a importância das plantas entre as comunidades-terreiro seja notoriamente conhecida, trazida pela grande maioria dos autores que imergiram no universo dos cultos afrobrasileiros, um esforço ainda inicial foi empreendido na particularidade das relações destes grupos com as plantas. Nesta linha de pesquisa, nota-se que o candomblé - especialmente as nações jêje-nagô11 - apresenta o maior número de investigações (Barros, 1993; Voeks, 1997; Barros e Napoleão, 1999; Serra et al., 2002; Barros, 2011). Entre estes, torna-se imprescindível destacar os subsídios de José Flávio Pessoa de Barros -especialmente sobre os sistemas de classificação botânica nos candomblés da Bahia- e a contribuição de Pierre Verger (1987) sobre o intercâmbio vegetal entre África e Brasil. Ao certo privilégio dado ao candomblé pelos pesquisadores, sobretudo às casas Jeje-Nagô da Bahia - destaca-se o fato de terem sido estas as primeiras organizações religiosas afro-brasileiras consideradas no cenário acadêmico, artístico e político quando, a partir de meados de 1920, passa-se a ressaltar as culturas historicamente marginalizadas na expectativa de formação de uma identidade 11 como aponta Silva (2005), o termo nação alude aos agrupamentos das casas de Candomblé que remetem a identidade daquele grupo. Embora as etnias que dão origem a religião sejam difusas, a nação indica a prevalência de determina característica cultural, como tronco linguístico, panteão, organização do culto, etc. Dessa forma, o grupamento jeje-nagô remete aos ritos que abrangem as nações nagôs (ketu, ijexá, etc.) e as jejes (jeje-fon e jeje-marrin). 18 nacional, espaço em que o candomblé preenchia o arquétipo de uma “brasilidade autêntica”. Este pioneirismo culminou na constituição de um modelo analítico sustentado até os dias de hoje. Entretanto, no panorama multicultural das religiões afro-brasileiras não há um modelo singular que abarque a imensa diversidade de concepções e relações com plantas, tão pouco um arsenal botânico restrito. Em seus trabalhos, Pereira (1979) e Ferreti (1996) falam sobre o papel dos vegetais na Casa das Minas, culto de origem daomeana praticado no Maranhão. Motta (1986) faz referência às plantas do sítio de Pai Adão, Xangô Pernambucano. Cascudo (1988; 1999) inventaria as plantas ligadas ao Catimbó, predominante no nordeste brasileiro. Além desses, Figueiredo (1983), Cacciatore (1977), Pires & Andrade (1986), Camargo (1990; 2005), Anthony (2001), Rodrigues e Carlini (2004), Silva e Andrade (2005), Albuquerque (2011), e Antonio et al. (2011) empenham esforços para colaborar com as investigações deste segmento. Bastide (1946) em seu estudo sobre a macumba paulista traz notas que indicam a pluralidade de influências que futuramente constituiriam a umbanda no estado de São Paulo. O autor aponta a congruência das práticas de cura e religiosa negras, sobretudo banto, com a magia e medicina popular dos imigrantes europeus e trabalhadores do campo, dando origem a um exercício reprimido e perseguido pela Polícia de Costumes. Segundo o autor, a macumba (ou "curandeirismo") não se tratava de uma prática organizada, se pulverizava pelo estado paulista onde cada curador aplicava seus saberes e técnicas utilizando do comércio para se abastecer de plantas, partes animais, favas e pedras incomuns meio à cidade, que já tomava ares de metrópole. Silva (2005) complementa que nestas sessões procurava-se cultuar o maior número possível de "linhas" (termo nativo para agrupamentos de divindades), sugerindo assim, trabalhos mais poderosos. Na mesma obra, o autor ainda aponta que na macumba paulista o termo “umbanda” por vezes designava o líder religioso, sugerindo que pela popularidade, a linha de umbanda pode ter adquirido autonomia em relação às demais, passando a designar um culto à parte. Na senda de Roger Bastide, Ortiz (1976) e Negrão (1996) notam que a formação da umbanda segue as linhas traçadas pelas mudanças da sociedade brasileira do século XIX, ressaltando que no processo de legitimação da religião, as práticas afro-brasileiras, católicas e kardecistas fundiram-se dando origem ao um novo culto. Nesse processo, elementos de até então marginalizados, como o uso de bebidas alcoólicas, fumo e o preparo de oferendas foram excluídos ou justificados segundo a moral das classes dominantes da época. 19 À amálgama sugerida por Roger Bastide, retomada por Concone, Ortiz e Negrão (op. cit.), somam-se também as novas práticas de esoterismo urbano (Magnani, 1996; 1999), como o neo-xamanismo no caso do CIESL, e os diálogos que cada templo estabelece - ora mais próximos do candomblé, ora do kardecismo e do catolicismo, principalmente - formando dissidências dentro da própria religião: quimbanda, umbanda-branca, umbanda-canjerê, umbanda-esotérica, umbanda-kardesista, umbanda-mística, umbanda-omolokô, umbandomblé (Pinheiro, 2012), denominações que embora confiram identidade própria a cada segmento, por vezes é rejeitada pelos próprios adeptos. Como certa vez reportou Pai Agostinho, membro do terreiro CIESL: “dizem por ai que existem vários tipo de umbanda. Eu não concordo com isso. Umbanda é amor. Onde existir amor, o conforto dos bons guias e a força dos orixás, existe umbanda. Não importa o nome que o pai-de-santo dê...umbanda é umbanda, é fé, amor, caridade e alegria”. Este hibridismo pode ser vivenciado também nos enredos que levam plantas como protagonistas. Vegetais vindos de África ganham nomes católicos, europeias contam histórias xamânicas, especiarias encontradas na sessão de temperos dos supermercados recuperam saúde, alegria e carreiras profissionais em declínio. Esta particularidade talvez tenha sido um empecilho para os pesquisadores inclinados às relações das religiões afro-brasileiras com as plantas, visto a ausência de investigações desta natureza sobre a umbanda. Os trabalhos existentes concentram-se nas produções de caráter doutrinário elaborados por líderes religiosos, com exceção do ensaio botânico de Guedes et al. (1985) que encarregaram-se de identificar os espécimes botânicos apontados por Chico Birosca, que na época da publicação era mateiro aposentado do Parque da Tijuca (Rio de Janeiro), reconhecido filho de Ossaim que como aponta Varella (apud Albuquerque, 1999), “[...] dava-se ao luxo de ter na cabeça uma enormidade de classificações científicas...”. Dessa forma, o trabalho descritivo dos artigos apresentados nesta dissertação procuram suprir uma importante lacuna no estudo das plantas utilizadas no contexto das religiosidades afro-brasileiras, da qual a umbanda paulista ainda não conta com investigações. *** 20 O Círculo de Irradiações Espirituais de São Lázaro: sobre uma comunidade que não cabe em um círculo As páginas que seguem tratam de uma sensibilidade absurda que podemos encontrar esparsa no século - e não de uma filosofia absurda que o nosso tempo, para dizer com propriedade, não conheceu. É então de uma honestidade elementar enfatizar, logo de início, o que elas devem à certos espíritos contemporâneos. [...] Mas vale a pena notar, ao mesmo tempo, que o absurdo, encarado até aqui como conclusão, é considerado neste ensaio como ponto de partida. (Camus, 2014 [1942]). Figura 1: Fachada do terreiro CIESL. Fotógrafo: Pedro Carlessi. Set/2014. Fundado no início da década de 50 por um casal imigrante europeu vindo do interior de São Paulo, o Círculo de Irradiações Espirituais de São Lázaro possui cerca de 60 anos de atividade, com um período de fechamento ocorrido após o falecimento de seus fundadores. 21 Em sua história mais recente, o terreiro foi reaberto em 1996 por Alexandre Meirelles da Silva, antigo médium e atual pai-de-santo chefe12 deste terreiro. Alexandre foi iniciado como pai-de-santo aos 25 anos de idade e assumiu consigo o compromisso da reabertura do terreiro, que completou no ano 2016 vinte anos sob sua tutela. No decorrer desta transição, a incorporação lenta e contínua de elementos que remetem à práticas religiosas vindas especialmente do candomblé e do tambor de mina se fazem presentes, visto a coroação13 de Alexandre como pai-de-santo através de Mãe Carmem, yalorixá do candomblé ketu paulista, sua passagem e significante relação com Toy Francelino de Xapanã, já falecido e referência do culto maranhense na cidade de São Paulo. Cito apenas como exemplo destas influências a inclusão de instrumentos de percussão (atabaques e mais recentemente agogô e xequerê), aumento do panteão de orixás cultuados (incluindo Logun Edé, Oxumaré e Ossaim, pouco presentes na umbanda paulista) e a organização sócioreligiosa estabelecida a partir de cargos iniciáticos14. Não bastante, outras muitas mudanças foram promovidas através do novo pai-desanto. Após sua coroação, Alexandre por muitos anos dedicou-se ao estudo daquilo que têm sido chamado na literatura acadêmica como xamanismo urbano (Magnani, 1999; 2005). Aluno de estima de Carminha Levy, precursora da prática na cidade de São Paulo, Alexandre tornou-se mestre xamã e atualmente ministra cursos de iniciação e capacitação nesta prática espiritualista. Nesta modalidade de xamanismo, os iniciantes são convidados a descobrir o que chamam de um 'outro mundo', o mundo xamânico, geralmente invisível aos olhos dos adeptos, mas que é absolutamente conectado e atuante neste mundo em que vivemos habitualmente. Embora existam também humanos no mundo xamânico (geralmente caricatos de um imaginário indígena romântico), a forma predominante de vida neste mundo é de animal não-humano, sobretudo predadores, animais com presa e outros de grande porte. Através de um longo processo de aprendizado, os praticantes exercitam "entrar", "sair" e "fazer coisas" no mundo xamânico. Para isso, valem-se de suas quatro contrapartes animais: "animal sagrado", "animal de poder", "animal de cura" e "animal de sabedoria", diferentes 12 categoria utilizada neste terreiro para diferenciar o dirigente do templo dos demais pais-de-santo que integram este coletivo. 13 neste terreiro, nome dado ao rito de iniciação neste cargo hierárquico. 14 A este respeito, vide as notas de Gustavo Chiesa a respeito da confluência entre as experiências pessoais e a construção de práticas religiosas a partir da umbanda carioca (Chiesa, 2012). 22 devires-animais15 (Deleuze e Guattari, 1997) que integram a condição de sujeito dos praticantes. Aprender esta modalidade de xamanismo não é obrigatório no terreiro CIESL. A atividade é oferecida pelo pai-de-santo em um outro círculo, chamado 'Aldeia Círculo das Tradições' e diferente das atividades promovidas no terreiro, na "aldeia", os cursos, vivências e demais atividades não são gratuitos. Todo modo, há um trânsito bastante intenso de adeptos do terreiro CIESL que frequentam o espaço e vice-versa, de modo que o xamanismo deste outro círculo, constantemente integra as práticas promovidas no terreiro. Logo, os animais também são evocados e se fazem presentes na rotina do templo, agindo juntamente com os humanos, pretos velhos, caboclos, exús e orixás ali presentes. Descreverei alguns detalhes deste intercruzamento entre xamanismo e umbanda no terceiro artigo desta dissertação. Por hora meu interesse é indicar o povoamento daquilo que estou aqui chamando de círculo, em referência ao pronome utilizado para compor o nome do terreiro. Não obstante, além de humanos, espíritos, orixás e animais xamânicos, neste grupo o próprio terreiro é tido como um organismo vivo, que age e reage aos estímulos do mundo. Um organismo que não só comporta, mas também integra e participa da comunidade-terreiro. Quero dizer que o terreiro CIESL não é tido como um mero espaço de culto, mas sim como um ser vivente, autônomo e que expressa seus constantes desejos aos dirigentes, que devem ser ávidos em percebê-los (digo 'dirigentes', no plural, porquê o trabalho de coordenação de um terreiro de umbanda se faz em um processo de constante coautoria: juntamente com o paide-santo, tomam posse nas decisões espíritos que dividem a responsabilidade de administrar a comunidade religiosa, como são, neste caso, o Caboclo Pena Branca e o Exú Sete Sepulturas, principalmente). O terreiro CIESL não conta, até o momento, com uma sede própria. Para atender às demandas e desejo de crescimento do templo, por muitos anos Alexandre buscou pela Vila Mascote, bairro em que a comunidade sempre se manteve, um espaço adequado às exigências e desejos do terreiro. Em primeiro lugar, era necessário um espaço que comportasse o grande número de pessoas que frequentava o templo e por vezes chegava a impedir a fluidez do 15 a categoria deleuzeana de devir fundamenta algumas ideias e abordagens teóricas que farão parte desta análise, como a ideia de linhas e fluxos proposta pelo antropólogo britânico Tim Ingold. Para uma compreensão pontual e precisa, por hora, entendo ser suficiente indicar que a categoria sinaliza à coexistência de elementos : “tudo coexiste em perpétua interação”, como indicam os autores na obra Mil Platôs (Deleuze e Guattari, 1997:119). O devir-animal que refiro, seria então uma continuidade do animal através do humano, que o torna, assim, um "humano com devir-animal". 23 tráfico de veículos e pessoas pela rua em que se localizava. O próprio Exú Sete Sepulturas era muito atuante nesta atividade: descrevia lugares, dava coordenadas e solicitava às pessoas que buscassem pelas indicações. Muitas vezes os adeptos chegavam aos locais indicados pelo exú, porém alguns inconvenientes atravancavam a mudança, que postergou-se por anos. Além de amplo, os dirigentes do templo exigiam uma área à céu aberto, principalmente para que o cultivo de plantas fosse realizado, condição que o galpão que se instalavam até 2013 não oferecia. Muito tempo se passou até que a mudança de endereço de fato acontecesse. Neste período, o terreiro, manifesto na estrutura do antigo galpão, dava seus sinais de desagrado: o sistema elétrico mostrava-se constantemente ineficiente, as paredes e pisos quebravam a todo momento, muitos ratos passaram a povoar o terreiro e o mal cheiro do córrego localizado ao lado do antigo galpão impunha-se até mesmo ao forte cheiro de perfume de alfazema e da mistura de plantas aromáticas da defumação. "A casa está expulsando vocês daqui", explicava o Exú. A atitude, entretanto, não é de personificar o espaço, mas sim de reconhecer que além de humanos, outros seres integram este coletivo agindo de modo ativo. Embora o termo 'círculo' sugira um certo halo distintivo, que supostamente limita o que é e o que não é o terreiro, o que é ou o que não é uma "comunidade" ou ainda, uma "prática de umbanda", estas categorias se mostram imprecisas quando tomadas pelos seres e pelas ações das coisas que compõe o grupo. Na fala de Alexandre: "quando vocês pensarem que fazem parte do Círculo de Irradiações Espirituais São Lázaro vocês tem que pensar que não estão sozinhos. Vocês são muitos...muitos! Cada um aqui tem uma imensidão de espíritos que acompanha vocês dias e noite. Cada pessoa que bate cabeça neste congá16, não importa quem seja, está protegido por Obaluaê, senhor do cemitério e dono dessa casa. Além disso, está protegido pela própria ancestralidade, pelos guias espirituais desse terreiro, por todos os protetores, exús, anjos de guarda, por todas as orações que fazemos diariamente, pelas pessoas, por todas as boas intenções desse lugar." A ideia de círculo como adjetivo para instituição religiosa, indica, em primeiro plano, justamente a unidade que estabelece e define a comunidade. Partilha-se dentro do circulo ensinamentos, regras, métodos de administração de um templo, éticas, tabus e uma série de outros atributos que justamente caracterizam a individualidade de uma religião que se estabelece a partir de doutrinas e diretrizes determinadas in situ. Quando tomados pelos seres que o compõe, a ideia de comunidade implícita nesta categoria se alarga, afinal, a 16 "altar". 24 sociabilidade que caracteriza este grupo se dá a partir de relações interespecíficas: homens que falam com espíritos, espíritos que se comunicam a partir de um estado de humanidade efêmera (chamado incorporação), casas que agem e expressam seus desejos e plantas que determinam a mudança ou não de um grupo de humanos para um novo endereço. Na fala reportada acima, por exemplo, o pai-de-santo contra-argumentava um grupo de médiuns que se queixava de um ano dificilmente conturbado e que, agradeciam, pois chegava ao fim. A fala do pai-de-santo evidencia o povoamento do terreiro de umbanda, em que as ações humanas somam-se à muitas outras que também desempenham um papel ativo neste coletivo. Sendo assim, estar "protegido" contra um ano difícil é estar permeado por anjos, orações, espíritos, boas intenções e tantos outros. Se esta condição alarga a ideia de círculo, um olhar atento aos movimentos, às dinâmicas e àquilo que fazem os seres que o compõe, não só alarga, mas também dilui a suposta contenção imbuída ao termo. Figura 2: Sobre a diluição da categoria círculo. Detalhe do portão do terreiro CIESL. Fotógrafo: Marcelo Dalla. Abr/2014. 25 A imagem acima ilustra o adjetivo circulo tal como articulado no terreiro CIESL, e que aqui a utilizo em consonância com a teoria ingoldiana de teia17 (Ingold, 2012), que neste momento ambienta meu olhar para o trabalho de campo e também a abordagem que faço nos artigos dois e três desta dissertação. Trata-se de uma estrela de seis pontas cujos vértices se sobrepõem e se multiplicam em outras estrelas do mesmo tamanho e formato, que extrapolam o halo dourado que circunscreve a estrela central. Postas desta forma, as estrelas formam uma grande tessitura em dourado, prata e branco. Justamente o branco, que serve aqui como plano de fundo para o desenho e cor base do portão do terreiro, também integra a figura e não se limita a apenas suportá-la: embora seja bidimensional, a precisão dos contornos desta imagem sugere que a cor branca está também nos meandros de cada estrela de modo que o "meio ambiente" do desenho é, se não, o encontro e a ação, uma na outra, destas três cores, bem como da tinta e da madeira que compõe o portão. Entendo que esta ideia de círculo subjaz antes à um jogo de relações, visto que os seres que compõe esta comunidade são sempre muito variados e, igualmente, articulam relações sempre novas e para além dos muros do terreiro. No limite, a categoria círculo, como utilizada pelos meus colegas do terreiro CIESL, não deve ser vista como algo que define o que está dentro ou fora dele (e nisso a imagem acima é precisa), mas é justamente um convite à relação e que remete ao constante emaranhamento (op. cit) de seres que caracteriza esta comunidade-terreiro. 17 Ingold aposta justamente em aberturas e continuidades ao invés de contenções e distinções para romper algumas fronteiras intelectuais do pensamento moderno. Emerge dai o diálogo truncado que o autor estabelece com Bruno Latour, antropólogo que como Ingold é também interessado em desestabilizar o estatuto de "social" como algo exclusivo aos humanos. Ao passo que Latour investe na ideia de redes (actor network theory), na agência distribuída e no transporte de informações entre atores, Ingold prefere pensar em fluxos que não ligam, mas perpassam os seres do mundo. Os pressupostos teóricos que se apoiam são bastante distintos, de certo, bem como os motes de suas investigações: Latour mais próximo da antropologia da ciência e da técnica, e Ingold em diálogos mais próximos da percepção e meio ambiente. Contudo, a proposta dos autores supostamente converge ao passo que apresentam, entre outros, um certo modelo gráfico em comum. Neste sentido, Ingold é ferrenho em apresentar as distinções (inclusive gráficas) entre suas ideias e as de Latour (Ingold, 2008). Para sinalizar as continuidades ininterruptas e incontinentes que dão forma ás suas ideias, Ingold rechaça em várias publicações a ideia de círculo como contentor dos movimentos do mundo (Ingold, 1993; 2007a; 2012; 2013). Utilizo a discussão entre os autores e as metáforas gráficas sobre círculos sempre apresentadas por Ingold justamente para desestabilizar a ideia de círculo, que compõe o nome do terreiro CIESL, como algo redutível e contentor de relações entre humanos e não humanos no terreiro CIESL. 26 [...] as vidas são vividas não em mundos sociais fechados, mas no espaço aberto. Estas vidas são sociais não porque estão enquadradas, mas porque estão entrelaçadas. Toda vida é social neste sentido, uma vez que é fundamentalmente multifacetada, um entrelaçamento de muitas linhas correndo concomitantemente. (Ingold, 2015:317). O antropólogo britânico Tim Ingold utiliza a ideia deleuzeana de 'linhas de devir' para construir seu argumento sobre meio ambiente (Ingold, 2000; 2013) e recentemente também a utilizou para revisitar a ideia de social/sociedade, qual reporto acima18. Sua teoria busca justamente abolir as fronteiras de um organismo -seja um indivíduo ou um coletivoindicando-o como o encontro de muitos fluxos, ou ainda, como um nó, feito a partir do encontro de muitas linhas. O autor aposta então na ideia de continuidade e movimento para romper algumas dicotomias e invólucros característicos do pensamento moderno, tais como 'objeto e sujeito', 'organismo e meio ambiente', 'natureza e sociedade'. O resultado destas interações, contínuas e numerosas, seria então uma tessitura, qual o autor nomeia como teia ou malha ('meshwork'). Ingold possui um diálogo produtivo com as ciências biológicas e em sua antropologia assume o compromisso de "trazer as coisas de volta a vida". O intuito do autor é então chamar a atenção para aquilo que a modernidade tratou de subtrair do mundo: a condição de sujeito de plantas, bichos, pedras. O caminho argumentativo que elabora para apresentar estes seres em pé de igualdade enquanto sujeitos é deslocar o foco, até então polarizado nos corpos, para 18 Nesta breve passagem, retirada da recente tradução para português do livro Been Alive, Ingold metaforiza dois diferentes modos de pensar a categoria "sociedade" a partir de dois diferentes modos de fazer arte: um, através do desenho, outro, através da pintura a óleo. Neste argumento, o autor recupera Norman Bryson, historiador da arte, para pensar justamente no instante em que ambos, desenhista e pintor, iniciam seu trabalho sob superfície em branco. O autor argumenta que na pintura a óleo, assim como na forma historicamente predominante de pensar "sociedade", os limites do quadro e do grupo antecedem o trabalho, respectivamente, do pintor e do sociólogo. Propõe então que ao contrário, no desenho - que muito o autor paraleliza com seu argumento de fluxos e linhas-, o encontro do lápis com o papel tende à um certo subterfúgio desta contenção. Entendo que no argumento do autor, pensar em "sociedade" sem evocar invólucros está muito distante de uma suposta ideia de globalização, tampouco induz pensar que o termo é um mero falsete epistemológico. A primazia do movimento, tão presente na obra de Ingold, me leva a crer justamente que as linhas de devir não são acionadas pelo autor no intuito de definir grupos, mas assim como o papel para o desenhista, sugerem algo em que os grupos se desenvolvem. As linhas seriam então algo que atravessa e perpassa todo e qualquer limite de grupo ou de corpo. É a partir deste mote que argumento o vazamento da categoria círculo, indicando nas páginas seguintes o devirplanta como subterfúgio à algumas contenções e relativismos. 27 aquilo que os seres do mundo fazem, suas trajetórias, trilhas e fluxos. Decorre dai a possibilidade de desfazer as fronteiras entre processos naturais e culturais, ao mesmo tempo em que aproxima as humanidades da biologia e das abordagens contemporâneas sobre o meio ambiente. A primazia do movimento, que dá corpo a grande parte das teorias de Tim Ingold muito me ajuda a pensar em termos das relações com plantas que são constantemente evocadas no terreiro de umbanda. Do modo como leio meu trabalho de campo, pensar em Ogum, por exemplo, se mostra evidente pensar em ferro, em guerra, em fogo, na planta Espada de São Jorge, fluxos que se encontram e se emaranham para compor os enunciados sobre Ogum e que também seguem terreiro afora, inundando outros templos, tempos e discussões. Do modo como leio estas relações, mostra-se imprescindível não analisá-las isoladamente, mas sim a partir de seus imbricamentos. Foi seguindo os movimentos e relações que as plantas do terreiro estabelecem com o mundo que me permiti, ao invés de conter-me no suposto halo distintivo que as ciências biológicas categorizam plantas, tomá-las a partir da perspectiva de seus anunciantes, digo, os próprios religiosos umbandistas. É interessado em apresentá-las do modo que são vividas no terreiro que concentro meu esforço analítico. Por fim, se Ingold está certo em dizer que "não há um ponto em que a história termina e a vida começa" (Ingold, 2007b:90), as próximas páginas são, para além de uma análise, mais uma dimensão da vida das ervas de umbanda. 28 5. Primeiro artigo Levantamento etnobotânico realizado em um terreiro de umbanda da cidade de São Paulo-SP Figura 3: Iabá Betinha e iabá Carmelita separando ervas para amací. Fotógrafo: Pedro Carlessi. Abr/2014. 29 LEVANTAMENTO ETNOBOTÂNICO REALIZADO EM UM TERREIRO DE UMBANDA DA CIDADE DE SÃO PAULO-SP Pedro Crepaldi Carlessi19,20, Sumiko Honda21, Eliana Rodrigues20 [email protected] RESUMO Nesta pesquisa apresenta-se um levantamento etnobotânico realizado em uma comunidade religiosa afro-brasileira alocada em um terreiro de umbanda da cidade de São Paulo-SP. O trabalho de campo que dá corpo a esta análise foi realizado durante nove meses, acompanhando as cerimônias de passe e consulta do Círculo de Irradiações Espirituais de São Lázaro (CIESL), localizado na zona sul da capital paulista. Metodologicamente a pesquisa foi norteada por entrevistas informais e observação participante com registros em caderno de campo, associados à atividade de coleta botânica através do método seco. Do material levantado, apresenta-se 77 espécies botânicas (em que 10 não puderam ser identificadas até o nível de espécie) utilizadas em 7 usos, sendo predominantes o banho de ervas, o amací, chás e defumações. O trabalho descritivo desta análise procura suprir uma importante lacuna no estudo das plantas utilizadas no contexto das religiosidades afrobrasileiras, da qual a umbanda paulista ainda não conta com investigações. Palavras-chave: etnobotânica, ervas, religiões afro-brasileiras, umbanda. ABSTRACT This research presents an ethnobotanical survey conducted in an afro-Brazilian religious community placed in an umbanda temple in the city of São Paulo. The fieldwork used in this analisys has been done for nine months in the rituals of healing touch and consultations at “Circulo de Irradiações Espirituais de São Lázaro" (CIESL), located in the south area of São Paulo. Methodologically, the research was guided by informal interviews and participant observation registered in a field notebook, associated to the botanical collection activity through dry method. From the material gathered, 77 botanical species are presented (which 10 could not be identified up to the level of species) applied in seven uses, predominantly in plant baths ritual, amací, teas and defumações – a kind of smoking”. The descriptive work of 19 Mestrando em Ciências pelo Programa de Pós Graduação em Análises Ambientais Integradas - Universidade Federal de São Paulo. 20 Centro de Estudos Etnobotânicos e Etnofarmacológicos (CEE-UNIFESP). 21 Herbário Municipal de São Paulo (PMSP). 30 this analisys tends to supply an important gap in the study of the plants used in the afroBrazilian religious ritual contexts which the umbanda of São Paulo does not count on a deep study. Key words: ethnobotany; ritual plants; afro-Brazilian religions; umbanda INTRODUÇÃO O papel das plantas entre as comunidades-terreiro é notoriamente conhecido e trazido pela grande maioria dos autores que imergiram no estudo das religiosidades afro-brasileiras. Embora a importância das plantas entre estes grupos seja preeminente, um esforço ainda inicial foi empreendido na particularidade das plantas que compõem estas práticas. Das investigações existentes, o candomblé (sobretudo as nações jêje-nagôs) têm contado com o maior volume de publicações (Voeks, 1997; Barros e Napoleão, 1999; Serra et al., 2002; Barros, 2011). Contudo, no panorama multicultual das religiões afro-brasileiras não há um modelo singular de culto, tampouco um arsenal botânico restrito. Embora seja expressiva e se faça presente em todo o Brasil, as investigações que consideram a umbanda em suas relações com as plantas ainda são pouco muito conhecidas (Guedes et al., 1985). A umbanda é uma religião afro-brasileira que têm sua origem segundo os padrões atualmente predominantes por volta da década de 1920 e 1930, sobretudo a partir das metrópoles emergentes do sul e sudeste brasileiro, como Rio de Janeiro, Porto Alegre e São Paulo (Silva, 2005). Nos templos desta religião, as plantas desempenham um papel de grande importância e mostram-se indispensáveis à manutenção das próprias práticas religiosas. Esta pesquisa procura dar seguimento ao estudo das plantas em interface com o estudo das religiosidades afro-brasileiras e apresenta um inventário etnobotânico realizado entre os membros de uma comunidade religiosa alocada em um templo de umbanda da capital paulista. METODOLOGIA O trabalho de campo que dá corpo a esta pesquisa foi desenvolvido entre os meses de março e novembro de 2014 por um dos autores deste estudo (Pedro Carlessi), em visitas regulares ao terreiro Círculo de Irradiações Espirituais de São Lázaro - CIESL (imagem 1), sobretudo durante as sessões semanais de passe e consulta. Para isso contou-se com a autorização do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) - processo no 31 01450.004819/2014-14 - que autoriza acesso ao conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético brasileiro. Em campo, o trabalho foi conduzido através de entrevistas informais e da observação participante nestas cerimônias (Bernard, 1988), acompanhando o trabalho dos guias espirituais, mães/pais-de-santo e primeiros-cambonos, bem como através da participação ativa durante as cerimônias, ocupando a posição de cambono. Durante as entrevistas e acompanhamentos, procurou-se levantar quais os usos e as respectivas plantas mais utilizadas neste templo, bem como as relações que estabelecem com os consulentes e com panteão cultuado. Foram entrevistados 10 guias espirituais, 2 iabás, 5 mães/pais-de-santo e 1 primeiro-cambono indicados pela comunidade religiosa (sobretudo a partir do pai-de-santo chefe do CIESL) como especialistas no uso das plantas nas práticas deste terreiro. Destes acompanhamentos, pode-se inventariar as plantas apresentadas nesta análise, que trataram de ser coletadas na presença daqueles que às indicaram, seguidas de confirmação via check list (Bhandary, Chandrashekar e Kaveriappa, 1995). Para as coletas adotou-se o método seco de coleta botânica (Alexiades, 1996). Tais coletas foram guiadas pelo preenchimento de uma ficha de dados botânicos enfocando: hábito, floração, frutificação, origem e local de coleta, conforme recomenda Lipp (1989). Estas informações foram compiladas e enviadas ao Herbário Municipal de São Paulo para identificação, classificação taxonômica e acervo do material botânico. O trabalho de identificação realizado pelos botânicos, apresentado na discussão a seguir, se fez orientado pelo sistema APG III - Angiosperm Philogeny Group (Bremer et al., 2009). RESULTADOS E DISCUSSÃO As plantas são amplamente utilizadas na rotina das sessões de passe e consulta do terreiro CIESL. O emprego que fazem destes vegetais, independente da forma como são preparados, caminha no sentido de promover estados de equilíbrio entre o espírito, o corpo e a vida social dos consulentes. Como indicam, são utilizadas para "descarregar/equilibrar energia", "trazer boa sorte/afastar a inveja", "harmonizar corpo e espírito". Esta ideia está fundamentalmente ligada à noção de axé, energia vital sem a qual não há vida nem movimento, das quais as plantas são indicadas como transportadoras. A falta de axé caracteriza a doença, o desemprego, a falta de amor, que são entendidos como desordem ou desequilíbrio, seja de ordem biológica ou em qualquer domínio da vida social. Dessa forma, a utilização que fazem destes vegetais está atrelada ao beneficiamento através desta energia, da qual cada planta (ou grupo de plantas) é relacionada à modulações específicas de 32 axé, de acordo com as divindades que se relacionam. As plantas que transportam o axé de Ogum, por exemplo, geralmente são aquelas de folhas puntiformes, empregadas para "proteger/descarregar" os consulentes e "afastar os inimigos". Já que levam o axé de Oxum ou dos ciganos, geralmente cujas folhas são arredondadas e aromáticas, estão relacionadas à fartura e prosperidade e empregadas para "trazer boa sorte" e "aproximar o amor". Entre aqueles que indicam plantas aos consulentes estão, de igual modo, os guias espirituais, que manifestam-se nos médiuns através do processo de transe denominado incorporação, bem como as mães/pais-de-santo de templo, que desincorporados também realizam atendimentos, sobretudo voltados ao desenvolvimento e iniciação dos adeptos. Nesta pesquisa foram entrevistados os guias espirituais e religiosos indicados como especialistas em ervas por parte da comunidade, principalmente a partir do pai-de-santo chefe do terreiro (apresentados na tabela 1). Ente elas estão especialmente as mães-de-santo com grande tempo de iniciação na religião e os guias espirituais mais próximos do universo botânico, em que se destacam os caboclos, tidos como espíritos ameríndios conhecedores dos "segredos da selva", os pretos velhos, arquétipo do velho escravo que carrega rezas e indicações de plantas para todos os males, baianos e boiadeiros, representantes do homem de vida simples e sua sabedoria como bom raizeiro. Nomenclatura e classificação Nesta pesquisa foram identificadas 77 espécies botânicas. As plantas identificadas distribuem-se em 36 famílias botânicas, sendo as mais representativas Lamiaceae (dez espécies), Asteraceae (oito espécies), Araceae, Asparagaceae, Euphorbiaceae, Melastomataceae e Poaceae (cada família com quatro espécies). Entre os vegetais levantados, 11 não puderam ser classificados até o nível de espécie e 1 até o nível de gênero em função da ausência de estruturas reprodutivas ou nível de fragmentação do material coletado. Quanto ao sistemas de nomenclatura de plantas adotados neste terreiro, o levantamento realizado (tabela 1) demonstra que são muito heterogêneos. Predominam nomes genéricos, conhecidos popularmente para além das práticas religiosas afro-brasileiras. Contudo, uma parte significativa destes nomes sinaliza aos atributos do sensível que compõe as estruturas do sistema classificatório destes vegetais. Ora são nomeados em função da cor, do aspecto e textura, ora sinalizam os locais de coleta. Também fazem referências ao panteão cultuado e ao emprego ritual. Os sistemas de classificação de plantas próprios do terreiro CIESL mostram-se muito variados e se elaboram sobretudo a partir do imbricamento entre os atributos referidos acima. 33 Neste aspecto, a categorização de plantas enquanto "terra/fogo/ar/água" é preeminente pelo fato de serem estes elementos sincrônicos presentes na ordenação de diversos outros sistemas de classificação no terreiro (como das divindades, das doenças e partes do corpo, dos sentimentos, entre tantas outras - a este respeito vide Amaral, 2002:68), que se desdobram para outros, análogos: "quentes/frias", "masculinas/femininas", "positivas/negativas", "fortes/fracas". Hábitos e ambientes de coleta Entre os hábitos encontrados, predominam as espécies herbáceas (42%), seguidas de arbustos (35%) e arvores (23%). Estes vegetais foram coletados majoritariamente no próprio terreiro (48%), que goza de um amplo espaço para cultivo de plantas. Como já grifado pela literatura, no que confere ao contato das religiões afro-brasileiras com o verde, por mais que disponham de espaço privilegiado para o contato com plantas, esta interação não se limita aos muros dos terreiros, sinalizado à certas continuidades entre os territórios de prática do sagrado (Silva, 1995; Rêgo, 2006; Moutinho-Da-Costa, 2012). Nestes espaços, como são as praças e vias públicas, foram coletadas 18% das plantas que compõem este levantamento. Para certos vegetais, mais específicos ou dificilmente encontrados, a rede de comércio próprio do circuito religioso afro-brasileiro também fornece um volume expressivo de plantas (17%). Entre esses, outros foram encontrados sob cultivo doméstico (15%) ou adquiridos durante viagens do grupo (2%). Usos e partes vegetais mais frequentes. Foram levantados 7 diferentes usos de plantas neste terreiro: banhos de ervas (71 espécies empregadas neste uso), amacís - espécie de banho destinado a lavagem exclusiva da cabeça dos médiuns durante o processo de iniciação (34), chás (9), defumações (8), batefolhas (4), confecção/preparo de fundamentos (2), trabalhos e oferendas (10). Tratando-se precisamente do banho de ervas, o mais expressivo entre estes usos, é importante destacar que as plantas que os compõem variam de acordo com o consulente, seu enredo de orixás pessoais e as queixas por eles trazidas. Embora existam receitas fixas (como é mais observado no caso dos amacís), nos banhos o estado de equilíbrio é promovido através de associações particulares entre estas plantas, de modo que o consulente (e não precisamente as queixas por ele trazidas) é o foco do atendimento. As partes vegetais predominantes foram os ramos e folhas, como já indicado por outros autores que tratam desta temática (Serra et al., 2002; Barros, 2011), prevalecendo o uso 34 de flores e frutos exclusivamente no preparo de trabalhos e oferendas, bem como na decoração do templo em dias de festividade. Outras partes vegetais, como caules, sementes e rizomas possuem emprego diminuto e quando carecem utilização, geralmente são adquiridos na rede de comércio na forma desidratada ou fragmentada, invalidando assim o serviço de taxonomia, problema também referido em Guedes et al. (1985). CONCLUSÃO A exemplo de outros trabalhos realizados junto às comunidades religiosas afrobrasileiras que levam o estudo das plantas como temática central, esta pesquisa apresentou um levantamento etnobotânico realizado a partir da umbanda paulista, ainda pouco estudada em suas relações com as plantas. Pode-se então lançar um empenho inicial a respeito das plantas que fazem parte desta prática religiosa na cidade de São Paulo, grifando também os rituais em que tais plantas são mais comumente empregadas. No que diz respeito ao estudo das religiosidades afro-brasileiras, a escassez de estudos no campo da etnobotânica serve como mote para ações interdisciplinares no sentido de preencher as lacunas existentes no entendimento destas práticas. 35 Espécie botânica (família) voucher Nome popular Hábito Ambiente de coleta Usos Intermediário Justicia gendarussa Burm.f (Acanthaceae) PCC-016 Sambucus sp. (Adoxaceae) PCC-036 Schinus terebinthifolius Raddi (Anacardiaceae) PCC-067 Mangifera indica L (Anacardiaceae) PCC-021 Foeniculum vulgare Mill (Apiaceae) PCC-014 Aglaonema commutatum Schott (Araceae) PCC-020 Cf. Dieffenbachia (Araceae) PCC-066 Philodendron bipinnatifidum Schott (Araceae) PCC-059 --- (Araceae) PCC-055 Sansevieria trifasciata Prain (Asparagaceae PCC-063 Sansevieria trifasciata Prain (Asparagaceae) PCC-017 Abre Caminho / Vence Demanda Sabugueiro Aroeira Manga Erva doce / Funcho Comigo-ninguém-pode / Café de Salão Comigo-ninguém-pode Costela de Adão/ Banana de macaco Taioba Espada de Iansã / de Santa Bárbara Espada de Ogum / de São Jorge Her Arv Arv Arv Arb Her Her Arb Her Her Her CIESL C C VP CIESL CIESL C CIESL CIESL CIESL CIESL B/D B B B/T B/C B/T B B B B/A B/A Exú Sete Sepulturas Mãe Izildinha Mãe Izildinha Mãe Izildinha Preta Velha Vó Maria Preto Velho Pai Bento Pai Alexandre Mãe Izildinha Mãe Izildinha Pai Alexandre Mãe Izildinha Sansevieria cylindrica Bojer ex Hook (Asparagaceae) PCC-019 Cordyline fruticosa (L.) A.Chev (Asparagaceae) PCC-007 Dracaena fragrans (L.) Ker Gawl (Asparagaceae) PCC-052 Dracaena fragrans (L.) Ker Gawl (Asparagaceae) PCC-001;003 Dracaena fragrans (L.) Ker Gawl (Asparagaceae) PCC-022 Artemisia camphorata Vill (Asteraceae) PCC-081 Baccharis crispa Spreng (Asteraceae) PCC-048 Ageratum conyzoides L (Asteraceae) PCC-032 Chrysanthemum morifolium Ramat (Asteraceae) PCC-062 Artemisia absinthium L (Asteraceae) PCC-084 Galinsoga parviflora Cav (Asteraceae) PCC-025a Galinsoga quadriradiata Ruiz & Pav (Asteraceae) PCC-025b Sonchus oleraceus L (Asteraceae) PCC-037 Spathodea campanulata P.Beauv (Bignoniaceae) PCC-010 Brassica oleracea Grupo Acephala (Bignoniaceae) PCC-083 Coronopus didymus (L.) Sm (Bignoniaceae) PCC-080 Terminalia catappa L (Combretaceae) PCC-038 Costus spiralis (Jacq.) Roscoe (Costaceae) PCC-073 Crassula ovata (Miller) Druce (Crassulaceae) PCC-018 Kalanchoe pinnata (Lam.) Pers (Crassulaceae) PCC-015 Cyperus meyenianus Kunth (Cyperaceae) PCC-065 Equisetum hyemale L (Equisetaceae) PCC-047 Euphorbia milii Des Moul (Euphorbiaceae) PCC-041 Ricinus communis L (Euphorbiaceae) PCC-006 Jatropha gossypiifolia L (Euphorbiaceae) PCC-033 Lança de Ogum Peregún Roxo Peregún Verde Peregún Verde e Amarelo Peregún Verde e Branco Cânfora Carqueja Erva de São João Flor do campo / crisântemo Losna Picão branco Picão branco Serralha Arvore de Pombogira / Tulipeira Couve Manteiga Mentruz Chapéu de Sol Cana do brejo Bálsamo Folha da Costa Tiririca Cavalinha / Cavalinha do brejo Coroa de Cristo Mamona Pião Roxo Her Arv Arv Arv Arv Arb Arb Her Arb Arb Her Her Her Arv Her Her Arv Arb Her Her Her Her Arb Arb Her CIESL PP PP CIESL ACT C J C CIESL CD VP VP CIESL CIESL CD C PP ACT CIESL CIESL VP CIESL CIESL VP C B BF BF BF BF C B C B/A/T B B/C B/C B B A B/A B B B/A B/A B C B B B Mãe Izildinha Pai Alexandre Mãe Izildinha Pai Alexandre Pai Alexandre Mãe Solange Mãe Izildinha Mãe Beth Mãe Izildinha Mãe Izildinha Caboclo Ubiratão Caboclo Ubiratão Pai Alexandre Pombogira Maria Padilha Mãe Izildinha Mãe Izildinha Mãe Izildinha Exú Sete Sepulturas Mãe Izildinha Mãe Izildinha Pai Alexandre Pai Alexandre Exú Sete Sepulturas Mãe Izildinha Pai Alexandre 36 Espécie botânica (família) voucher Euphorbia prostrata Aiton (Euphorbiaceae) PCC-082 Bauhinia variegata L (Fabaceae) PCC-040 Cajanus cajan (L.) Huth (Fabaceae-Faboideae) PCC-027 Heliconia rostrata Ruiz & Pav (Heliconiaceae) PCC-058 Rosmarinus officinalis L (Lauraceae) PCC-072 Lavandula dentata L (Lauraceae) PCC-053 Plectranthus barbatus Andrews (Lauraceae) PCC-049 Plectranthus sp (Lauraceae) PCC-050 Mentha sp.1 (Lauraceae) PCC-028 Mentha sp.2 (Lauraceae) PCC-079 Ocimum americanum L (Lauraceae) PCC-035 Ocimum basilicum L (Lauraceae) PCC-054 Origanum vulgare L (Lauraceae) PCC-012 Mentha pulegium L (Lauraceae) PCC-069 Nome popular Quebra-Pedra Rasteiro Pata de Vaca Feijão / feijão gandú / gandú Helicônia Alecrim Alfazema Boldo / Tapete de Oxalá Boldo miúdo / Boldinho Hortelã Levante / Elevante Manjericão Manjericão roxo Orégano Poejo Hábito Her Arv Arb Arb Her Her Arb Her Her Her Her Her Her Her Ambiente de coleta VP VP C CIESL CD CIESL CIESL CIESL CD C C CIESL CIESL C Usos B/A B B/A B B/A/D B/A/D/C B/A/C/F B B/A/T B B/A B B/D B Intermediário Iabá Carmelita Mãe Izildinha Mãe Izildinha Mãe Zizi Mãe Izildinha Mãe Izildinha Mãe Izildinha Baiana Jacobina Pai Alexandre Pai Alexandre Baiana Florinda Mãe Izildinha Mãe Izildinha Baiana Jacobina Persea americana Mill (Lauraceae) PCC-039 Marsilea sp (Marsileaceae) PCC-004;74 Leandra aurea (Cham.) Cogn (Melastomataceae) PCC-034 Tibouchina heteromalla (D.Don) Cogn (Melastomataceae) PCC-071 Morus nigra L (Moraceae) PCC-024 Eucalyptus cf. tereticornism Sm (Moraceae) PCC-031 Psidium guajava L (Moraceae) PCC-009 Plinia cauliflora (Mart.) Kausel (Moraceae) PCC-029 Eugenia uniflora L (Moraceae) PCC-051 Oxalis sp. (Oxalidaceae) PCC-085 Phyllanthus tenellus Roxb (Phyllanthaceae) PCC-008 Petiveria alliacea L (Phytolaccaceae) PCC-005 Bambusa tuldoides Munro (Poaceae) PCC-076 Cymbopogon citratus (DC.) Stapf (Poaceae) PCC-086 Coix lacryma-jobi L (Poaceae) PCC-002 Zea mays L (Poaceae) PCC-064 Rosa sp.2 (Rosaceae) PCC-060 Rosa sp.1 (Rosaceae) PCC-013 Coffea arabica L (Rubiaceae) PCC-056 Ruta graveolens L (Rutaceae) PCC-026 Citrus sp (Rutaceae) PCC-030 Nicotiana tabacum L (Solanaceae) PCC-068 Abacate Trevo / Trevo de 4 folhas Erva de Fogo / Folha de Fogo Folha de Xangô Amora Eucalipto Goiaba Jabuticaba Pitanga Trevo / Trevo de 4 folhas Quebra-Pedra Guiné / Amansa-senhor Bambu Capim Santo / Erva Cidreira Lágrima de Nossa Senhora Milho Rosa Rosa Manã /Rosa Branca Manã Café Arruda Limão Fumo Arv Her Her Arb Arv Arv Arv Arv Arv Arb Her Arb Arb Arb Arb Arb Arb Arb Her Arb Arv Arb VP CIESL C CIESL ACT VP VP PP VP CD CIESL CIESL ACT CIESL CIESL PP CIESL CIESL CIESL C CD C A/C/T B/A B B/A A/A B/A/D B/A/T B B B/A B/A B/A/D B/A B/A/D B/A B/A/T B/A/ T B B/A B/A/D B/A/T B/A/T Mãe Izildinha Mãe Izildinha Mãe Izildinha Pai Alexandre Pombogira Maria Padilha Primeiro-cambobo Luis Mãe Izildinha Baiana Florinda Pai Alexandre Baiana Jacobina Mãe Izildinha Preto Velho Pai Bento Pai Alexandre Mãe Solange Mãe Izildinha Mãe Izildinha Pai Alexandre Baiano Zé do Coqueiro Baiano Zé do Coqueiro Mãe Izildinha Mãe Izildinha Mãe Izildinha 37 Espécie botânica (família) voucher Solanum scuticum M. Nee (Solanaceae) PCC-023 Thelypteris hispidula (Decne.) C.F.Reed (Thelypteridaceae) PCC-042; 43; 44; 46; 70 Thelypteris sp.1 (Thelypteridaceae) PCC-045 Thelypteris sp.1 (Thelypteridaceae) PCC-070b Aloe arborescens Mill (Urticaceae) PCC-078 Urera caracasana (Jacq.) Gaudich. ex Griseb (Urticaceae) PCC-077 Lantana camara L (Verbenaceae) PCC-061 Lippia alba (Mill.) N.E.Br (Verbenaceae) PCC-011 Alpinia zerumbet (Pers.) B.L.Burtt & R.M.Sm (Zingiberaceae) PCC-057 Nome popular Jurubeba Samambaia do Brejo Samambaia do Brejo Samambaia do Brejo Babosa Urtiga Lantana / Cambará Melissa Colônia Hábito Arv Her Her Her Arb Arb Her Arb Arb Ambiente de coleta CIESL ACT CIESL CIESL CIESL M CIESL CIESL CIESL Usos B/F B/A B/A B/A B B B B B Intermediário Malandro Bira Mãe Izildinha Caboclo Ubiratão Iabá Betinha Pai Alexandre Mãe Izildinha Preto Velho Pai Bento Mãe Zizi Pai Alexandre Tabela 1: levantamento das 77 espécies botânicas indicadas pelos guias espirituais, pais/mães-de-santo do terreiro CIESL para uso ritual Figura 4: Localização geográfica da atual sede do terreiro CIESL. Rua Nazaré Rezek Farah, 30 - Vila Santa Catariana - São Paulo - SP - Brasil. Localização geográfica 23o38.990'S 46o40.002'O. 38 6. Segundo Artigo Encontros e trajetórias de religiosos umbandistas e ervas pela cidade de São Paulo Figura 5: Plantas e religiosos umbandistas no Mercadão da Lapa-SP. Fotógrafo: Pedro Carlessi. Set/2014. 39 ENCONTROS E TRAJETÓRIAS DE RELIGIOSOS UMBANDISTAS E ERVAS PELA CIDADE DE SÃO PAULO Pedro Crepaldi Carlessi22 [email protected] RESUMO A partir de um trabalho de campo de caráter etnográfico realizado em um terreiro de umbanda da cidade de São Paulo e outros equipamentos urbanos, esta pesquisa tem como objetivo central as interlocuções entre ambiente urbano e as "ervas", categoria utilizada pelo grupo acompanhado para se referir aos vegetais (mas não só) utilizados em suas práticas religiosas. Desde o cultivo no próprio terreiro até a busca por ervas vindas de outros estados, o argumento desta análise caminha, no primeiro momento, focado no deslocamento dos citadinos em busca destes materiais. Em paralelo são apresentadas as influências que estas mesmas ervas exercem na dinâmica da cidade de modo que, se o meio urbano modela as relações entre religiosos e plantas, é ele mesmo forjado a partir destas relações. Palavras-chave: Ervas; Mercado Religioso; Religiões afro-brasileiras; Umbanda. ABSTRACT From an ethnographic fieldwork in an umbanda temple of São Paulo city and other urban facilities, this research aimed at the dialogues between the urban environment and ervas, category used by the religious group to refer to plants (but not only) used in their practices. Since the cultivation in their own yard to search for plants from other states, the argument of this analysis goes, at first, focused on the movement of city dwellers in search of these materials. At the same time, it shows the influences that these same ervas have on the dynamics of the city, so that the urban environment mold the relations between religious and plants, it is itself forged from these relationships. Keywords: Afro-Brazilians religion; Ervas; Religious Market; Umbanda. 22 Mestrando em ciências pelo Programa de Pós Graduação em Análises Ambientais Integradas da Universidade Federal de São Paulo. 40 INTRODUÇÃO Nos templos das religiões afro-brasileiras as plantas desempenham um papel de grande importância. São utilizadas para lavar e sacralizar objetos, nos processos de cura e iniciação dos adeptos, no preparo de banhos, defumações e outros compostos indispensáveis à manutenção das próprias práticas religiosas. Neste contexto, embora o contato entre homens e plantas se faça indispensável, nem sempre o encontro entre religiosos e plantas acontece com facilidade visto o verde raso dos grandes centros urbanos. Para suprir esta demanda, uma rede de comércio trata de abastecer os terreiros com toda sorte de plantas, pedras, penas e bichos que se façam necessários aos cultos. Através de uma série de equipamentos urbanos algumas distâncias entre a cidade e a floresta são encurtadas. Esta mediação mercadológica certamente não é recente e se faz presente em São Paulo desde o início do século vinte (Bastide, 1946:209), acompanhando assim a própria trajetória da umbanda23 neste estado. Durante o ano de 2014, em parceria com o Herbário Municipal de São Paulo, pude inventariar grande parte do arsenal botânico que integrava as práticas religiosas de um grupo alocado em um terreiro de umbanda da capital paulista24. Para que eu pudesse conhecer estes vegetais, além de visitas ao terreiro -que goza de um amplo espaço para cultivo de plantas- acompanhei meus colegas umbandistas por expedições atrás de certas ervas, fato que me pôs a trilhar a cidade orientado por um certo itinerário de religiosidades que se faziam presentes através destes materiais. Contudo, ao passo que me deslocava, percebia que a carência de verde na cidade era suprida, se não, pelo florescimento de uma paisagem orientada por esta demanda, que levava homens, comércios e equipamentos da urbe à atenderem as exigências destes materiais. Meu empenho foi então deslocar (ou educar) minha atenção, anteriormente orientada essencialmente por plantas e seguir as trilhas daquilo que meus colegas do terreiro constantemente me apresentavam, ervas, suas demandas e exigências. Dessa forma, convido o leitor para seguir estes itinerários nas páginas seguintes e "ouvir o que 23 Segundo Silva (2005), a umbanda enquanto culto organizado nos padrões atualmente predominantes emerge dos grandes centros urbanos da virada do século, sobretudo a partir de Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo, espaços em que, nesta época, o mato já rareava em prol do "progresso", dando espaço para as cidades que tomavam ar de metrópoles. 24 Templo de umbanda Círculo de Irradiações Espirituais de São Lázaro (CIESL) , localizado na Zona Sul da cidade de São Paulo. 41 as plantas têm a dizer" sobre o ambiente e a religião que cotidianamente ajudam a construir. O JARDIM SAGRADO DA UMBANDA O Círculo de Irradiações Espirituais de São Lázaro (CIESL) é um templo de umbanda que até o momento não possui cede própria, sendo este um dos grandes esforços da comunidade religiosa. Em sua atual localização, o terreiro conta com uma área verde de grande destaque e prestígio por parte dos adeptos: trata-se de um amplo jardim, que circunda toda área interna e fachada do terreiro. Ter uma área para cultivo de plantas era um desejo antigo do dirigente do templo, que pessoalmente planejou e executou a construção deste espaço. Durante a reforma do atual prédio que abriga a comunidade-terreiro (que até 2012 instalava-se em um galpão muito próximo da atual sede, sem espaço para cultivo de plantas), foi esta a última e mais aclamada obra inaugural. Primeiramente, vale descrever o conjunto arquitetônico do terreiro para melhor compreensão do espaço qual pretendo discutir. Figura 6: Vista panorâmica da atual cede do terreiro CIESL (em destaque). Imagem obtida através do aplicativo 'Google Earth' em 17/09/2015. Editado pelo autor. Como mostra a imagem, o CIESL ocupa uma área totalmente cimentada, tendo ao centro uma casa que abriga a secretaria da instituição religiosa e as salas temáticas que cediam grande parte das cerimônias. No caso, as salas recebem nomes relativos às atividades nelas realizadas, como "sala de medicina", onde encontram-se macas, frascos 42 com álcool e algodão, quadros pedagógicos de corpos humanos com denominações anatômicas e equipamentos voltados ao universo das terapias holísticas, "sala do congá" - sendo este o salão principal - "sala da desobsessão", "sala dos marinheiros" e "camarinha", destinada aos processo de iniciação deste terreiro. Externo a casa central encontram-se outras edificações que prestam serviço direto ao culto - como "cozinha", "estoque", "sala de banho", além das chamadas firmezas, como são a "trunqueira", o "cruzeiro", a "capela", a "fonte das iabás" e a "casa de fogo". De modo bastante geral a categoria "firmeza" se refere a edificações que através do processo de sacralização tornam-se protetores do terreiro contra inimigos, sejam eles humanos ou não. É o caso da "trunqueira", pequena construção de alvenaria localizada ao lado esquerdo da porta de entrada do templo em que são assentados objetos veiculados a exú, neste terreiro, espírito protetor que zela pela porta do templo e pela guarda dos fieis, ora também referido como "guardião". A firmeza possui ainda o caráter de trazer para dentro do terreiro determinado atributo ausente ou enfraquecido sem sua presença. Como o próprio nome refere, o CIESL tem São Lázaro como patrono, correspondente católico para o orixá Obaluaê, cultuado na umbanda paulista sobretudo nos cemitérios pelo fato de estar ligado aos processos de vida/morte e saúde/doença. O cruzeiro é então a "firmeza" que remete ao cemitério, criando dentro do terreiro uma espécie de elo entre ambos os espaços25. Retomando ao jardim, a categoria corresponde à área externa edificada para o cultivo de plantas e abriga a grande maioria dos vegetais utilizados pela comunidade religiosa. Do modo como é construído, no limite, este é um jardim temático: cada área é dedicada à determinada divindade ou a determinado grupo de divindades. Os vasos de 'folha de Xangô', por exemplo, são encontrados em frente ao vaso que suporta um 25 Neste grupo há uma grande distinção entre "fundamento" e "firmeza". O primeiro, já bastante apresentado pela literatura antropológica, refere-se precisamente aos objetos elaborados (construídos/sacralizados) durante os processos de iniciação que tratam de dar corpo e forma para a divindade que é "feita". Logo, o fundamento materializa a divindade. À "firmeza" atribui-se outro sentido, mas ligado ao passaporte e ao trânsito dos guias espirituais e orixás, que através de pequenas edificações, transitam entre o terreiro e outros territórios. Com Marilyn Strathern eu poderia dizer que, se a firmeza permite o fluxo e a continuidade entre tempos e espaços, o fundamento faz justamente o contrário: "corta a rede" (Strathern, 2011) e faz deste objeto, o próprio corpo e ambiente de morada das divindades feitas. 43 pequeno exemplar de 'peregún verde', que neste terreiro é associado ao orixá Iansã26, fazendo referência ao casal mitológico. Vegetais ligados a Ogum e Oxossi são dispostos lado a lado, remetendo ao parentesco dos irmãos guerreiros. Permeando esta área de cultivo encontram-se as firmezas, que dialogam diretamente com a composição e ornamento do jardim: o canteiro próximo ao 'cruzeiro' abriga um pé de café e outras plantas que remetem ao orixá Obaluaê, como o bálsamo e o milho. A 'firmeza dos caboclos' é formada pro um jardim vertical composto essencialmente por samambaias, em referência à uma certa habilidade destas plantas em trazer a divindade para dentro dos terreiros27. A firmeza das pombogiras é instituída ao redor de uma grande tulipeira em que as paredes do entorno são pintadas na cor vermelha com detalhes em dourado e adornada com leques, fitas, taças e joias em reverência à divindade. Figura 7: Povoamento das plantas na 'firmeza dos caboclos' (1), 'cruzeiro' (2) e na 'firmeza das pombogiras' (3). 26 No terreiro CIESL diferencia-se quatro tipos de "peregùn": peregùn verde, peregùn roxo, peregùn verde e amarelo e peregùn verde e branco, todos atribuídos ao orixá Iansã. 27 Duas cantigas ("pontos cantados") de caboclo indicam esta condição: "Samambaia na beira da praia onde tem caboclo ela vai buscar / Samambaia vai rastejar, vai buscar caboclo no Juremá" e "Que lindo capacete de pena / Que tem a Cabocla Jurema / Mas ela vem na raiz da samambaia ela vem trabalhar / Ê êê êá!" 44 Manter esta ordenação é uma atividade que exige empenho e dedicação da comunidade religiosa. Constantemente mutirões de manutenção são convocados para substituir as plantas já enfraquecidas ou mortas por outras novas, geralmente mudas produzidas na própria comunidade ou adquiridas na rede de comércio paisagista. Contudo, o jardim do terreiro não é um mero espaço de contemplação e, embora desfrute de toda sorte de plantas, também não se restringe à alguma serventia que possa ter aos humanos que frequentam o terreiro CIESL. Muito pelo contrário, o uso, manipulação e manutenção do jardim é bastante restrito e quando carecem utilizar as plantas ali dispostas, os médiuns não o fazem sem antes consultar alguma mãe-de-santo que esteja presente. Mesmo elas, quando pouco familiarizadas com a lida do jardim, procuram pouco utilizá-lo, buscando as áreas externas do templo para abastecerem-se das plantas que mais utilizam. Mãe Izildinha, grande zeladora deste jardim, certa vez argumentou comigo a respeito desta restrição indicando que as plantas que ali se fazem presentes, assim como os humanos, também estão "a serviço dos guias e orixás" e não ao aguardo do uso e das necessidades que os humanos possam fazer delas: "as plantas que tão aqui trabalham também, ou você acha que não? Chega uma pessoa no terreiro precisando de ajuda, as vezes mal de saúde, as vezes obsediada, e mesmo antes de conversar com os guias já está sendo trabalhada. As plantas puxam tudo de ruim pra limpar a pessoa...agora você acha que é essa a planta que o médium tem que usar? Cheia de coisa ruim dos outros? Essas aqui não são pra mexer, já avisei eles [aos médiuns], mesmo assim tem uns que teimam...vou fazer o que? Cada um sabe o que faz...". O relato da mãe Izildinha indica o jardim como um lugar de (com)vivência, o encontro das ações, trajetórias e ações dos humanos, guias espirituais, orixás e, não menos importante, das próprias plantas. Além disso, ressalta a participação ativa destes vegetais no cotidiano da comunidade-terreiro. Neste sentido, para além de um espaço em que a "cultura" reina sobre a "natureza" (refiro-me à atividade de cultivo), o jardim é um território de domínio mútuo e que justamente põe em cheque esta antinomia. Mesmo a ordenação do jardim me foi apresentada não apenas como uma atividade de domínio humano, mas como algo que emerge dos encontros e trajetórias dos seres que ali se fazem presentes. A este respeito, relatei uma passagem interessante nos primeiros meses de trabalho de campo. Nesta ocasião, um botão floral na cor vermelha surgiu na 'rosa 45 branca manã' mantida na área do jardim dedicada à Iemanjá, cuja cor vermelha não é atribuída. No primeiro instante Mãe Izildinha muito se incomodou, indicando que algum intruso havia se atrevido a plantar no "cantinho de Iemanjá" uma rosa vermelha. Pela importância que atribuiu a este fato, a mãe-de-santo levou a questão ao exú Sete Sepulturas, um dos dirigentes deste templo, para quem as questões de pequena ordem, definitivamente, não são levadas. Percebendo a seriedade que a mãe-de-santo dava ao fato, o exú respondeu ao seu modo: às gargalhadas indicou que aquela planta "servia" tanto à Iemanjá como a seu filho mitológico, Ogum, e por este motivo floria tanto em branco como em vermelho. O exú ainda ressaltou que a 'rosa manã' era erva muito boa para "problemas de vista", sendo que neste terreiro Ogum é tido como orixá patrono da visão. O exú ressaltava, dessa maneira, o diálogo entre Ogum e Iemanjá tranquilizando a mãe-de-santo que zelava pela boa diagramação do jardim. Em uma das conversas que tivemos a respeito do jardim, pai Alexandre me relatou que sua ideia inicial era construir uma "horta" capaz de fornecer os sucedâneos mais utilizados pelos médiuns, condição que também favoreceria interação entre os adeptos do terreiro e as plantas. Contudo, ao ser construído, o jardim passou a desempenhar muitas outras ações nesta comunidade religiosa, superando o feito e os objetivos de seu criador. Uma delas diz respeito à continuidade da floresta para dentro do terreiro, condição realizada através do jardim. Assim como outros autores já trataram de apresentar, nos grandes centros urbanos, espaços em que o verde teima em rarear em prol do "progresso", as comunidades-terreiro encontram alternativas para manter o contato íntimo com as áreas de vegetação, tidas como morada mítica dos antepassados e indispensáveis à manutenção das práticas religiosas (Santos, 1977; Barros, 1993; Silva, 1995; Rêgo, 2006). Para além do jardim, o CIESL conta com sua "floresta particular", um sítio localizado nas mediações da cidade de Juquitiba, que encontra-se em fase de construção para futuramente sediar os trabalhos do grupo meio à mata. Contudo, o acesso a este local se faz difícil, tanto pela distância como pela condição da estrada que dá acesso sítio, por vezes acessível apenas a veículos com tração nas quatro rodas. Como me disse a iabá Patrícia, quando necessita despachar uma oferenda aos seus guias e orixás e tem possibilidade, prefere levá-las ao sítio do CIESL, mas como o deslocamento até lá não é fácil, opta por realizar as entregas na própria cidade. Segundo a iabá: "eu procuro uma 46 praça que esteja bem cuidada, que não esteja suja, sabe? Deixo as oferendas numa clareira ou aos pés de uma árvore bonita". A iabá Carmelita também faz uso das praças, entretanto, quando necessita entregar algo especial em função do pedido, procura por áreas em que possa vivenciar o verde de forma mais intensa: "até no parque Ibirapuera eu já deixei [oferendas]! Era uma pra cigano....uma cesta grande, linda. Fui de branco no ônibus, parei lá na frente e fiz a entrega na frente daquele lago". Contudo, na rotina de trabalhos dos CIESL o próprio jardim cumpre as vezes de floresta sagrada e recebe as oferendas e comidas votivas dedicadas aos deuses28. Embora epistemologicamente seja clara a distinção entre os espaços de mata vivenciados pelos umbandistas, entendo que sítios, parques, praças e jardins se articulam não como representações da floresta; pelo contrário, ontologicamente a floresta sagrada se faz presente nestes espaços de forma latente, que vaza para além de suas árvores, bichos, pedras, rios e inunda a cidade no menor fragmento de verde que possa existir. Se por um lado a fragmentação dos espaços de vegetação vividos pelos umbandistas é descontínuo quanto sua territorialidade, posso dizer que esta descontinuidade é "costurada" por linhas de religiosidade (Ingold, 2012), independentemente da forma que assumam. Nesse sentido, as plantas e o jardim do terreiro são eles mesmos uma firmeza, elos entre cidade e a floresta que criam uma ruptura na homogeneidade espaço-tempo. Contudo, esta condição pode ser percebida somente abandonando a ideia estática de plantas e paisagem, como procurei argumentar até então. No mais, um falsete conceitual se deixou passar nesta sessão e pretendo apresentá-lo adiante. Me refiro à algumas dissensões entre a o termo sintético "planta" e a categoria utilizada pelos membros do CIESL para se referir aos vegetais (mas não só) utilizados nas atividades do terreiro: "ervas". 28 De acordo com a mitologia umbandista, orixás e guias espirituais habitam o mundo dos humanos tendo como morada aquilo que se chama de ponto de força. Os marinheiros, por exemplo, por estarem diretamente associados ao portos, estuários e todo universo marítimo têm como ponto de força a própria praia. Exús, Pombogiras e Exús-Mirins habitam principalmente o cruzamento de ruas, avenidas e também cemitérios pelo fato destes espaços cumprirem, no cenário urbano, a mesma atribuição destas divindades: a intersecção entre dois ou mais caminhos. Logo, as oferendas dedicadas a cada um deles costuma seguir esta "geografia do sagrado". Contudo, a floresta (aqui vivenciada através dos equipamentos urbanos) me foi apresentada como um espaço de comunhão entre os seres do panteão umbandista, e por este motivo recebe oferendas dedicadas à todos. 47 GUARANÁ DE CABOCLO: INTRODUÇÃO À CATEGORIA ERVA. Folheando algumas literaturas que fazem referência aos vegetais do universo religioso afro-brasileiro, pude grifar duas categorias que se referem às plantas utilizadas por estes grupos: "folhas" e "ervas". Na obra de Barros (1993; 1999; 2011), talvez a mais robusta a respeito das plantas utilizadas nos candomblés jêje-nagô - ambos os termos são encontrados, todo modo, noto que ao transcrever falas e relatos de campo o autor privilegia a categoria "folha", sugerindo ser esta a categoria mais habitual entre os candomblés baianos estudados pelo autor. Além de Barros, percebi que falar sobre "folhas" predominava em outras referências que tratam sobre o candomblé (Santos, 1977; Silva, 1995; Albuquerque, 1997; Serra et al., 2002; Prandi, 2005; Boaes, 2006; Rêgo, 2006), prevalecendo também nos escritos de Verger (1995), a respeito dos babalossain iorubás que acompanhou em África. Porém, bem se sabe, a distinção de categorias empíricas observadas em campo, sempre a partir do contexto que se estuda, mostra-se imprescindível para isolar algumas noções abstratas, que no meu caso, dizem respeito aos vegetais utilizados na umbanda paulista, mais precisamente no terreiro CIESL. Neste terreiro, "erva" é a categoria predominantemente empregada para se remeter às plantas envoltas nas atividades religiosas. Posso ilustrar com algumas cantigas: oi com incenso e benjoim, alecrim e alfazema oi defumá os filhos de fé com as ervas da jurema oi corre gira pai Ogum filhos quer se defumar oi umbanda tem fundamento é preciso preparar *** defuma com as ervas da jurema defuma com arruda e guiné com alecrim, benjoim e alfazema vamos defumar filhos de fé 48 Embora também tenha observado a categoria folha durante as cerimônias do CIESL, seu uso é muito diminuto. Das vezes que busquei utilizá-la percebi um certo estranhamento por parte dos meus colegas do terreiro. Mesmo porque, neste templo o termo folha é carregado de outro sentido e indica, geralmente, uma parte específica da erva. Das vezes que me mantive na cozinha ao aguardo do início das sessões, tive a oportunidade de coletar, preparar e utilizar algumas ervas. Certa sexta-feira, ao aguardo do início de uma das sessões por mim acompanhadas, apareceu por ali o marinheiro Tumbaraí, divindade que incorpora no pai Alexandre e que muito raramente caminha pelo terreiro, devido a dificuldade de se locomover, mesmo usufruindo das pernas do pai-de-santo, que não sofre de qualquer mal neste sentido. Na ocasião, a aparição repentina e deslocamento custoso do marinheiro até a cozinha se deu em função de uma recomendação que desejava dar à mãe Izildinha, que ali estava comigo. O marinheiro pediu para que a mãe-de-santo preparasse e tomasse um banho de ervas com 'alecrim', 'alfazema' e 'boldo'. Dessa indicação a mãe-de-santo me solicitou: "você pode pegar as ervas pro meu banho? Não gosto muito de boldo, então traz só uma folha e já tá bom...mas pode caprichar nas outras ervas....". Uma conclusão precipitada poderia sugerir que o termo "folha" estaria mais ligado aos vegetais de grande porte, em que é possível observar ou separar as partes vegetativas com facilidade e, na contramão, "erva" remeteria às plantas de porte reduzido. De fato, grande parte das plantas que pude conhecer no jardim deste terreiro atingiam menos de um metro. Entretanto, quando eram evocados os vegetais de grande porte, como a 'mangueira', a 'aroeira', o 'sabugueiro' e a 'arvore de pombogira', essas eram também ervas. Voeks (1997) colabora neste sentido indicando a equidade entre vegetais de pequeno e grande porte nos terreiros de candomblé da Bahia, espaços em que Barros (op. cit) acenou à categoria "folha". Ressaltando a distinção entre o que é e o que não é erva, remeto à outra passagem do caderno de campo. Certa tarde havia combinado uma visita ao jardim do terreiro com a mãe Zizi, indicada pelo dirigente do terreiro como grande especialista em ervas. Havíamos nos aproximado meses antes pela afinidade com as plantas, mas também pelo fato de eu, anualmente, visitar o interior da Bahia e conhecer parte dos rios e algumas das plantas que a mãe-de-santo convivia enquanto ainda criança. Busquei neste encontro desfrutar uma conversa menos pretensiosa quanto aos meus objetivos de pesquisa. Conversávamos sobre as plantas de lá e de cá, os nomes que tinham na Bahia, 49 suas correspondências com as serras, com os morros, com os santos, os rios. Contudo, durante a agradável conversa, avistei um cardo ainda muito pequeno que crescia próximo à trunqueira. O cardo não havia sido apresentado por mim no terreiro, mas eu já o conhecia, da Bahia e de outros encontros. Aproveitei para indicar a pequena flor roxa que surgia nele, me atentei às folhas pontiagudas e urticantes, certo que encontraria ali um excelente exemplar de uma erva de exú, mas pra minha surpresa, a resposta da mãe Zizi, que depois também se confirmou pela mãe Izildinha foi "isso não é erva não...é mato". Destaco então a articulação de três importantes categorias do terreiro CIESL para as plantas: "erva", "folha" e "mato". Se "erva" é sinônimo das planta rituais desse grupo, "mato" é o oposto, e indica tudo aquilo que não possui utilidade ritual. Entre esta oposição, a categoria "folha", embora menos comum, também indica as plantas ligadas à religião, porém geralmente acena à uma parte específica do vegetal. Contudo, meu interesse nesta tipologia não é criar um halo distintivo entre o que é e o que não é um vegetal utilizável neste grupo, mas justamente o contrário. Meu interesse é indicar que, se nem todas as plantas são ervas, nem toda erva é planta. O CIESL mantém as giras29 de sábado fechadas ao público, espaço destinado aos cuidados e formação dos médiuns, cerimônia chamada "gira de desenvolvimento". Em uma destas giras tive a oportunidade de acompanhar um trabalho para melhora do quadro de saúde de sete membros desta comunidade-terreiro. Na ocasião, desenhou-se um ponto riscado30, utilizando sete pratos brancos contendo cada um deles uma bolinha de barro, indicadas cada qual como um dos sete enfermos. Durante o ritual conduzido pelo Caboclo Sultão das Matas, divindade que junto com Mãe Janice se encarrega das atividades da 'gira de sábado', outros elementos compuseram o desenho: ali foram postos copos contendo água, mel, dendê, cachaça e um maço com ramos de diferentes plantas, gradativamente adicionados enquanto cantigas dedicadas ao orixá Obaluaê eram entoadas. Ao término das cantigas e já desincorporada, a mãe-de-santo solicitou a um dos médiuns do terreiro que trouxesse uma bacia branca e dois litros de refrigerante 29 Como são denominadas as cerimônias. 30 Espécie de desenho, geralmente feito no chão, em que diferentes símbolos são grafados utilizando uma espécie de "giz" ritual, chamado pemba (devo dizer que no terreiro de umbanda a pemba possui diversas outras utilidades. Indico-a como "giz" em referência à atividade que desempenha na elaboração dos pontos riscados). 50 guaraná. Solicitou que fosse cantada uma cantiga para caboclo e, em seguida, que os médiuns retornassem ao salão principal do terreiro para finalizar as atividades daquele dia. Aproveitei os momentos finais da cerimônia para questionar os elementos postos no ponto riscado. Em outra oportunidade mel, água, dendê e cachaça já me haviam sido apresentados respectivamente como "terra", "água", "fogo" e "ar", elementos sincrônicos que compõe a noção de equilíbrio dos seres na cosmologia religiosa afrobrasileira (Amaral, 2002:68). Meu interesse estava precisamente no refrigerante, que diferente dos demais elementos, não foi adicionado dentro do círculo que delimitava o ponto riscado. A resposta me foi dada pela mãe-de-santo: "guaraná é a erva do meu caboclo. É que aqui na cidade não tem a planta guaraná, então ele pede pra eu usar o refrigerante....traz a força dele do mesmo jeito e ele vai ficar ai, cuidando do trabalho". Figura 8: Ponto riscado. A seta indica a bacia contendo o guaraná de caboclo: continuidade da fruta amazônica através do fluxo dos materiais. Fotógrafo: Jardel Filho. Mai/2014. 51 MAS AFINAL, O QUE É UMA ERVA? Além do guaraná do Caboclo Sultão das Matas, muitas outras ervas tiveram vida no terreiro graças à continuidade das plantas para além da matéria e forma vegetal. Inventariá-las, como outrora procurei fazer com os vegetais, certamente seria uma atividade infindável devido à variedade de corpos que assumem, portanto apresento-as através da descrição etnográfica, acompanhada por algumas imagens que ilustram e norteiam o leitor através destes materiais. Foi seguindo estas ervas em seus estados ontológicos mais variados que pude chegar à frascos de perfumes comercializados em lojas de artigos religiosos, plantas desidratadas, resinas, pós aromáticos e também ao álcool cheiroso, que é preparado no próprio terreiro CIESL. O álcool cheiroso é um macerado de plantas em álcool etílico, utilizado pelo pessoal do terreiro em diversas ocasiões. Ao término da defumação, costuma-se distribuir uma pequena quantidade para os médiuns esfregarem as mãos e inalarem o odor das plantas postas ali dentro. Também se usa muito o álcool cheiroso nos trabalhos de medicina espiritual. Nessas sessões, o álcool geralmente é passado pelo corpo do assistido ou, menos comum, lhe dão de beber em pequeníssimas quantidades. Certa vez tive a oportunidade de acompanhar Exú Caveira, que coordenava a sessão daquela noite incorporado no Pai André e também atendia uma jovem com problemas de insônia. Na ocasião o exú falava com sua consulente sobre a importância de regularmente preparar e utilizar banhos de ervas. Comentava que pelo fato da jovem ser "filha de santo", era muito importante que não deixasse de "se cuidar", lembrando da importância da composição médium-planta nos terreiros de umbanda. Em determinado momento da conversa, já um pouco fatigado com as justificativas dadas pela jovem, o exú disse: "quer saber? leva aqui esse álcool cheiroso pra você passar pelo corpo. Não é banho de erva mas funciona também. Se deixar por tua conta não vai sair banho nenhum mesmo...então leva o álcool!". O exú comentava então que independentemente da apresentação (quer em banho ou em álcool) as ervas se faziam presentes para além da matéria e forma vegetal e agiam no mundo por caminhos sempre novos. O Caboclo Ubiratão, que incorpora na mãe Solange, também já precisou se valer de ervas não-vegetais para dar seguimento ao seu trabalho. Certa vez a entidade pediu a um de seus consulentes que utilizasse 'sementes de alfazema' para preparar um determinado banho de ervas. Vejamos que por mais profícuas que fossem as habilidades do consulente em agronomia ou botânica, conseguir sementes de alfazema meio à 52 cidade não é uma tarefa fácil. Contudo, para obter estas sementes não era necessário conhecer sobre plantas, tampouco sobre cultivo. Talvez sabendo que o ambiente urbano exige outras relações, o próprio caboclo tratou de indicar: "suncê compra [as sementes de alfazema] nessas lojas de umbanda". Acompanhei na semana seguinte o retorno da consulte, que informou ao caboclo que não havia feito o banho pois não tivera tempo para procurar a erva. Bastante incomodado, o caboclo indicou que o banho deveria ser feito de qualquer maneira e com urgência, pois o "estado emocional" da consulente era crítico. Me pediu, então, que buscasse pelo terreiro alguns ramos de alfazema para que fosse feito o banho. Para azar do caboclo e sorte do etnógrafo, naquela ocasião o terreiro também não dispunha de nenhum pé de alfazema para o banho. Porém este infortúnio não invalidou a indicação da divindade, que tratou de preparar o banho para sua consulente utilizando perfume de alfazema. Figura 9: Frascos de álcool cheiroso (em recipiente de álcool etílico) e perfume de alfazema (frascos com líquido verde) no estoque do terreiro, juntamente com outras ervas na condição seca (ao fundo). Fotógrafo: Pedro Carlessi. Nov/2014. Diferente do álcool cheiroso, o perfume de alfazema não é preparado no terreiro, tampouco contém plantas em sua composição. Contudo, esta questão não se apresentou como um problema para o caboclo utilizá-lo como erva. Procurei reaver este assunto com alguns dos meus colegas do terreiro. 53 Logo após retornar de uma loja de artigos religiosos, em que acabara de comprar um pouco de ervas secas para a defumação daquela noite, um dos médiuns do terreiro conversava comigo a este respeito. Nesta ocasião eu lhe contava que há poucos dias havia visitado um outro terreiro de umbanda da cidade em que as defumações, diferente do terreiro CIESL, eram feitas essencialmente com plantas frescas. Interessado pelo assunto, nos tivemos a respeito da defumação. Embora tenha me ouvido muito bem, já nas minhas primeiras palavras meu amigo demonstrava ter sua opinião formada a este respeito. Mal eu terminara de contar minha experiência, Irineu logo rebateu que era muito difícil utilizá-las dessa forma em função da combustão dificultada e, por este motivo, dava preferência às plantas secas nas defumações. Durante a conversa ele argumentou: "vê só esse aqui que eu comprei, tá escrito 'queima sem brasa' [lia o rótulo do produto enquanto argumentava]...como é que pode queimar sem brasa? Pra mim isso aqui é serragem, isso sim!". Perguntei então se o fato do produto lhe parecer "serragem" ao invés de "mistura de ervas", como indicava o rótulo, seria um problema. Sua resposta foi que não: " é tudo erva! (risos)". Em tom de risada conversávamos então sobre os produtos que ele havia visto pela loja. Bem deve-se imaginar, lojas de artigos religiosos costumam trazer pouco estranhamento aos religiosos que as frequentam, entretanto, meu colega comentava sobre os rótulos dos produtos que ali estavam dispostos, sempre muito criativos. Em uma saída de campo, procurei visitar a loja indicada pelo meu colega e registrar em imagem sobre aquilo que conversávamos: Figura 10: Tabletes para defumação. Fotógrafo: Pedro Carlessi. Out/2014. 54 "Falange do mar", "Tira Teima", "Antioquia", "Desencanto", "Luz da Lua", são alguns exemplos daquilo que conversávamos naquela noite. Meu interesse se deu, primeiramente, a respeito da leitura que o médium fazia a respeito destes produtos. Independente da matéria ou da forma que assumiam, meu colega (assim como fez o Exú Caveira e o Caboclo Ubiratão) indicava que embora as ervas tomem vida através de uma variedade muito grande de materiais, eram todos eles acompanhados implicitamente por uma certa continuidade das plantas para estes produtos, condição que as caracterizavam como ervas mesmo na ausência de plantas. Ao enfatizar perfumes de alfazema, tabletes de incenso e tantos outros produtos comerciais, estou propondo que para seguir e conhecer as ervas do terreiro de umbanda é preciso tomar o mundo não como um amontoado de matéria, distinto e organizado em diferentes corpos. Tomando a perspectiva dos meus colegas do CIESL como horizonte especulativo, argumento que no terreiro de umbanda aquilo que une diferentes "coisas" na categoria de erva não é, fundamentalmente, o corpo enquanto substância vegetal, mas sim sua capacidade de socializar, de criar relações (Ingold, 2012). Porém, não quero grifar um halo de "desubstancialização" ingênuo em meus colegas do terreiro. O corpo vegetal enquanto matéria-forma é absolutamente considerado pelo grupo, e justamente predispõe uma certa hierarquia existente na escolha das ervas utilizadas nas práticas religiosas: primeiro, vegetais frescos colhidos pelos próprios membros da comunidade, seguido daqueles comercializados ainda na condição fresca. À estes sequenciam as plantas desidratadas e os extratos vegetais, seguidos (por vezes com certas restrições) dos perfumes, essências e uma gama extensa de produtos próprios destes seguimento comercial. E a este respeito, devo dizer, os produtos comercializados que intercambiam com as plantas na qualidade de ervas são muito variados e parecem se adequar muito bem às dinâmicas da cidade: são econômicos31, práticos, de fácil acesso e diferente dos 31 Digo "econômicos" em dois sentidos: um, em relação ao valor mercantil do produto, geralmente de baixo custo; outro, no sentido de oferecerem uma "economia da relação" médium-planta bastante adaptada à vida urbana. Como argumenta Silva (1995:215) estes produtos atuam entre a floresta e a cidade em um nível que prevalece a cidade, pois sem sair dela é possível obter uma infinidade de produtos próprios da floresta, condição que grifa os agenciamentos do mercado sobre citadinos e plantas em detrimento de outras relações entre homens e plantas, como plantio, cultivo e colheita. 55 vegetais dispersos pelas praças e vias públicas da cidade, que exigem uma certa atenção dos citadinos para serem percebidos e classificados, estas modalidades de ervas trazem em si testemunhos de um mundo povoado pelas plantas, pelos orixás, pela boa sorte e proteção contra inveja: Figura 11: Banho 'Cosme e Damião'. Fotógrafo: Pedro Carlessi. Out/2014. Figura 12: Defumação "Mãe Maria". Fotógrafo: Pedro Carlessi. Out/2014. 56 Figura 13: Defumação "7 misturas da Bahia". Ervas em cores diferentes, cada qual para um dia da semana. Fotógrafo: Pedro Carlessi. Fev/2016. Além de vegetais desidratados, o "banho Cosme & Damião", por exemplo, possui 'açúcar' entre seus ingredientes, sinalizando aos traços de doçura (de sabor e de afeto) próprios da divindade que ali se fazem presentes. Neste caso, 'sagu' e 'grãos de soja' também complementam o produto e evocam à cores e formatos de confeitos, tão apreciados pelos santos infantes. Diferente do banho de Cosme e Damião, a defumação 'Mãe Maria' (figura 7) não apresenta detalhes sobre as plantas ali presentes. Ao abrir o produto na companhia de meus colegas do terreiro também não fomos hábeis em reconhecer qualquer traço visível de planta, mas sim um pó amorfo, defectível. Contudo, esta condição não invalida o status de erva que os médiuns do terreiro atribuem à mercadoria: as insígnias do rótulo, em referência às "raízes do Brasil", bem como a imagem da preta velha e uma oração posta abaixo da imagem, dão cabo de ambientar aos agenciamentos próprios das plantas utilizadas nas defumações, benzimentos e passes aplicados por esta divindade, que muito se faz presente nos terreiros da umbanda paulista. Já a defumação "7 misturas da Bahia" é composta por sete pequenas embalagens, fracionadas e em cores diferentes, para que sejam usadas individualmente em cada dia da semana (figura 8). Visto que na cosmologia afro-brasileira cada dia da 57 semana é dedicado a certa divindade (ou grupo de divindades32), cada pequeno saquinho colorido oferece modulações específicas de ervas e deuses relacionados aos calendário religioso. Se grifo algumas continuidades entre ervas de diferentes formas e materiais não é para equipará-las (digo, negar a tensão e alteridade entre ambas), mas sim para indicar que no terreiro de umbanda uma erva assume estados ontológicos sempre muito variados, todos eles intercambiáveis entre si, porém resguardados pelos conflitos e negociações próprios desta relação. A preeminência desta continuidade, para além de uma certa desnaturalização do termo sintético "planta", caminha em grifar a primazia da relação vegetal - não vegetal sobre aquilo que é (ou não é) uma erva. E justamente tratando-se de relações, sobretudo das plantas com o ambiente urbano, destaco que além de suprirem uma demanda do circuito religioso afro-brasileiro na cidade, estas ervas são também agentes de construção do próprio espaço. Seus agenciamentos sobre religiosos e cultos vaza para além dos muros do terreiro e percorre a malha urbana dando origem à uma rede de comércio complexa, forjada, se não, nas demandas e exigências destes próprios vegetais. São elas que apresento a seguir. O CIRCUITO COMERCIAL DE ERVAS NA CIDADE DE SÃO PAULO. Ao indicar a existência de um comércio de ervas próprio ao universo religioso afro-brasileiro em São Paulo, estou sugerindo por consequência a existência de sistemas de circulação e troca, além da produção e consumo desta mercadoria pela cidade, sendo esta uma investigação já realizada em outros territórios em que o espaço urbano impõe tal necessidade à estas religiões, como em Salvador (Serra et al., 2002), Rio de Janeiro (Arjona, Montezuma e Silva, 2007; Maioli-Azevedo e Da Fonseca-Kruel, 2007; Leitão et al., 2009; De Azevedo e Silva, 2013) e Recife (Albuquerque, 1997). Como ponto de partida, indico a existência de um "circuito comercial", utilizando a categoria trazida por Zelizer (2009), que faz uma abordagem ampliada deste termo e grifa não apenas o mero intercâmbio de mercadorias, mas também a circulação de ideias, saberes, conversas e outros aspectos interpessoais envolvidos nas 32 No terreiro CIESL, por exemplo, a semana se dá desta maneira: segunda-feira (Obaluaê), terça-feira (Ogum), quarta-feira (Xangô), quinta-feira (Oxossi), sexta-feira (Oxalá), sábado (todas as divindades femininas), domingo (todas as almas). 58 relações mercantis, que no caso que apresento, envolve religiosos, ervas e equipamentos do ambiente urbano. Um espaço importante na aquisição de ervas em São Paulo, pelo seu dinamismo e força de presença, se dá entre as muitas feiras livres que operam semanalmente em todos os bairros da cidade. Entre as barracas de condimentos, especiarias e temperos é possível encontrar um leque amplo de ervas que intercambiam com aquelas utilizadas na alimentação e culinária. De modo semelhante, o comércio informal de plantas medicinais pelas ruas da capital paulista também se mostra como alternativa à aquisição daquelas que operam entre práticas religiosas e médicas. Foi visitando estas barracas que pude conhecer outras facetas das plantas ali dispostas. Certa vez, na companhia de Mãe Janice, procurávamos pela feira da Vila Mascote alguns punhados de orégano; não para temperar as comidas de santo, em que o condimento tem pouca valia, mas sim para trazer felicidade para a iabá Patrícia, que passava por uma semana de grandes aborrecimentos. Foi também através destes espaços que pude conhecer o 'chapéu de couro' indicado pelo Caboclo Ubiratão, que me solicitara uma boa quantidade para preparar um banho de Oxum. Precisamente nesta ocasião, fui surpreendido pelo fato da pequena banca de plantas medicinais (que além de plantas comercializava uma grande variedade de cápsulas para emagrecimento, estimulantes sexuais e boas doses de garrafadas) localizada nos arredores do largo de Pinheiros, estar atenta também aos itinerários religiosos que perpassavam o 'chapéu de couro': "é pra banho? se quiser eu consigo fresca pra você...mas ai é só pra amanhã porque eu tenho que buscar", me indicava o vendedor enquanto separava uma pequena embalagem contendo alguns gramas da erva desidratada. Bem pude perceber, nas plantas comercializadas nestes espaços não predominam os empregos litúrgicos. Contudo, os vendedores não deixam de estar atentos às peregrinações que os religiosos fazem atrás de certas ervas e logo tratam de adequar seus comércios à estas demandas. Seu Fernando, feirante há mais de trinta anos no bairro Vila Carbone já era meu conhecido desde tempos anteriores ao início desta pesquisa, mas foi a partir do momento que me atentei para as trajetórias e encontros entre plantas e religiosos que pude perceber um pequeno galinho de arruda trazido atrás de sua orelha. Me disse: "é bom porque espanta olho gordo. Mas tem outra coisa...é uma malandragem minha: o pessoal de santo vê o galinho e já sabe que eu sou do babado (risos), ai passa aqui pra ver se eu tenho uma erva ou outra e acaba comprando uma 59 coisinha...na feira a gente tem que ser esperto!". O galinho de arruda atrás da orelha de Seu Fernando tratava de sinalizar aos clientes da feira um comércio que transitava nos bastidores da venda de alho, cebola e especiarias que ali estavam. Mais do que isso, modificava a própria natureza do comércio, que passava a se expandir a partir do comércio de ervas. Contudo, a demanda por plantas na metrópole não se limita ao comércio informal, tampouco à pouca venda que Seu Fernando faz de plantas para uso religioso. Uma rede bastante articulada e específica para o comércio destas mercadorias se faz presente pelos quatro cantos da cidade e se estende também para as localidades vizinhas e até outros estados. Como indiquei anteriormente, a utilização de folhas desidratadas (bem como dos perfumes e extratos vegetais) é sempre um assunto polêmico nos terreiros. Embora eventualmente se valham da comodidade deste material, nem sempre seu emprego é bem visto pelos religiosos. Parte destes partilham da opinião que o axé das ervas encontra-se na seiva vegetal e, logo, a condição desidratada seria desprovida desta qualidade. Uma visão mais flexível entre os religiosos indica que as folhas secas podem ser empregadas em determinadas ocasiões e apenas em certos rituais. Embora seja controverso, a condição desidratada favorece e movimenta um comércio específico, estabelecido principalmente nas lojas de artigos religiosos da cidade. Figura 14: Ervas em diferentes apresentações. Fotógrafo: Pedro Carlessi. Out/2014. 60 Figura 15: Ervas comercializadas na loja 'Axé Orixá', bairro Santo Amaro-SP. Fotógrafo: Pedro Carlessi. Out/2014. Segundo Mãe Sonia, proprietária de uma loja no Largo Treze de Maio (bairro Santo Amaro), o público umbandista é o principal consumidor desta mercadoria: "quem compra [plantas desidratadas] mesmo é o pessoal da umbanda. Compram bastante dessas ervas em saquinho e até uns banhos que já vem prontos, numas garrafinhas, mas desses eu vendo pouco...”. Contudo, pude perceber que mesmo entre aqueles que lançam mão destes produtos, a utilização se mostra sempre como segunda opção, uma alternativa à ausência de plantas frescas. Por este motivo, grande parte das lojas voltadas ao comercio próprio das religiosidades afro-brasileiras trata de revender também ervas frescas, que transitam entre os estados da Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo, abastecendo inúmeros terreiros da capital paulista. A loja da Mãe Sonia, por exemplo, utiliza do serviço dos Correios para viabilizar o fornecimento: "quando o pessoal encomenda alguma folha, eu peço para um fornecedor do Rio de Janeiro, que me manda por Sedex. Mas isso é um problema, porque as vezes o Correio abre e confisca a mercadoria, ou então a entrega atrasa e ai, como eu faço se a iniciação da pessoa tiver data marcada? É complicado...". Silva (1995) reporta uma questão semelhante ao 61 transcrever a fala de Pai Cássio, proprietário de uma loja de artigos religiosos no centro de Diadema-SP: "tem determinadas ervas que nós não vendemos, porque tem um tempo de durabilidade depois de colhida e tem uma determinada maneira de colher, pois colher a erva não significa nada, tem que ter as rezas certas para tirar as folhas com o axé que ela tem. Ainda assim as lojas procuram ter o máximo que pode...". (apud Silva, 1995:215). Como apontam, a logística exigida por estas ervas dificulta o comércio entre estados, favorecendo a produção e comércio local que, em São Paulo, se estabelece principalmente no Mercadão da Lapa, zona oeste da cidade. Figura 16: "Box 58" - Mercadão da Lapa - São Paulo. Fotógrafo: Pedro Carlessi. Set/2014. 62 Figura 17: "Asé Box" - Mercadão da Lapa - São Paulo. Fotógrafo: Pedro Carlessi. Set/2014. Fundado na década de cinquenta com o intuito de atender a demanda de imigrantes europeus por produtos de sua terra natal, o Mercado Municipal Rivaldo Rivetti, mais conhecido como Mercadão da Lapa, hoje se faz referência no comércio religioso afro-brasileiro de São Paulo, principalmente no que diz respeito à aquisição de produtos de origem natural, onde predominam não só as plantas, mas também carnes, flores, cabaças, balaios de palha, potes de barro, conchas, mandiocas e outros tubérculos, fumo de corda, pimentas, grãos variados e animais, embora atualmente este último se faça de forma discreta33. Há mais de vinte anos o Mercadão da Lapa conta com dois boxes dedicados ao comércio de "plantas de axé", como denominam os vendedores. Neste espaço, sobretudo nos boxes 57 e 58 (vide imagens acima) é possível encontrar uma arsenal botânico bastante diversificado, que é renovado três vezes por semana, dando cabo de 33 Embora não sejam expostos no mercado, coelhos, pombos, galinhas, galos, patas e preás podem ser adquiridos a partir do contato direto com os vendedores do setor granjeiro. Durante visita realizada em agosto/2014, uma galinha branca e uma pata custavam respectivamente R$ 20,00 e R$ 40,00, sem necessidade de encomenda. Segundo o próprio vendedor de um dos boxes: “vou ali buscar e trago pra você em cinco minutos...”. 63 oferecer produtos sempre na condição fresca. No mais, os boxes abastecem-se também com uma quantidade reduzida de plantas desidratadas e tímidas outras mercadorias. Ali os vegetais são comercializados em maços. No caso das plantas de pequeno porte, os maços são formados por folhas, galhos, eventualmente raízes e flores. Para os vegetais de grande porte ou demasiadamente rígidos, os maços são formados exclusivamente por folhas, diferente dos primeiros, comercializados em ramos. Embora o público dos boxes seja predominantemente religioso, o comércio também atende aos que buscam predicados de cura nestas plantas, visto que outros boxes do mercado que atendem a esta demanda comercializam exclusivamente plantas desidratadas. Durante as visitas que fiz ao Mercadão da Lapa34 foi possível registrar inúmeros clientes buscando informação quanto às propriedades medicinais das espécies ali comercializadas, tanto para uso humano quanto para animais domésticos. Diferente das lojas de artigos religiosos, que importam vegetais vindos de outros estados e concentram suas vendas em ervas desidratadas e não-vegetais, os boxes do Mercadão são abastecidos por sítios do interior de São Paulo, gerenciados pelos proprietários destes estabelecimentos. Neste comércio, o emprego de técnicas agrícolas para a produção de plantas que pouco se desenvolvem no solo e clima paulistano se fazem presentes, proporcionando aos terreiros da urbe vegetais difíceis de serem cultivados: "você tem que ver o sítio do patrão. Tem uma estufa só plantar oriri35!". Embora façam parte do mesmo circuito, os adeptos dos diferentes seguimentos religiosos que frequentam este espaço se diferenciam pela variedade e, por vezes, grau de especificidade das plantas adquiridas, como aponta um antigo vendedor do Box 57: "a gente vende folha de fundamento mesmo [referindo-se a rituais mais voltados ao candomblé], mas ai tem que encomendar, no dia a dia não é sempre que tem porque não vende muito. As vezes o pessoal passa por aqui e pede informação, "eu quero uma folha de Oxum", e a gente mostra qual tem. Pra você ver, se for comprar em outro lugar, lá no CEAGESP36, por exemplo pode ser que a pessoa encontre a folha, mas ninguém vai saber te dizer pra que serve, aqui a gente conhece porque todo mundo [referindo-e aos vendedores] é da religião". 34 Totalizaram oito visitas de campo, entre os meses de março e novembro de 2014. 35 Peperomia pellucida, de acordo com Arjona, Montezuma e Silva (2007:47) e Voeks (2000:155). 36 Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo. 64 O CEAGESP, indicado pelo vendedor do Box 57, oferece na madrugada de quinta-feira uma imensa feira de flores, que comercializa desde produtos de decoração e apetrechos de jardinagem até árvores frutíferas de grande porte. Durante a pesquisa de campo realizei três visitas a esta feira, sobretudo acompanhando meus colegas do CIESL, que buscavam neste espaço a aquisição de folhagens e flores em grande volume para a decoração e ornamento do terreiro em dias de festa. Motivado pelo comentário do vendedor do Mercadão, procurei entre as milhares de plantas ali expostas algumas que me servissem como sinalizadores de um comércio próprio das religiosidades afrobrasileiras. Minha tentativa foi em vão. Mesmo quando me deparava com plantas de grande valia aos universo religioso afro-brasileiro e de difícil acesso meio à cidade, os compromissos destes vegetais eram outros. O òsíbàtá37, por exemplo, comercializado em um aquário adornado com pedras coloridas ao fundo, me foi apresentado por um comerciante nipônico como "ninféria", e nada soube me dizer sobre os orixás que vez ou outra povoam a planta. O mesmo ocorreu com o ojuorô38, que batizado como "alface d'água" por uma vendedora apressada, pouco me dizia sobre seus compromissos religiosos. Embora não seja segmentária, a feira de flores do CEAGESP é também forjada pelo encontro de pessoas e plantas, que ali se amalgamam entre folhagens e flores para suprir a carência de verde dos terreiros. Minha experiência caminhando por estas lojas, feiras e mercados, foi perceber que a confluência de itinerários dos religiosos, comerciantes e das próprias ervas borram as fronteiras e códigos individuais destes expoentes, cedendo lugar à cruzamentos e encontros sempre novos que justamente colaboram para o desenvolvimento tanto da cidade, como da umbanda paulista, que se elabora e modifica a cada novo encontro. 37 Nymphaea alba L., de acordo com Barros (2011:146). Utilizo a mesma grafia adotada pelo autor. 38 Pistia stratiotes L., de acordo com Barros (Barros, 2011:155). Utilizo a mesma grafia adotada pelo autor. 65 CONCLUSÃO Nesta análise procurei guiar o leitor por alguns percursos que percorri juntamente com meus colegas do terreiro CIESL interessado em conhecer as ervas empregadas em suas práticas religiosas. Inicialmente apresentei as dinâmicas que operam no jardim mantido pela comunidade religiosa, interessado em sinalizar que para além de meros vegetais, as plantas ali dispostas encarregam-se de diminuir as distâncias entre a floresta e a cidade. Busquei indicar nas sessões seguintes os espaços em que estes vegetais são adquiridos quando o espaço que dispõem para cultivo não se mostra suficiente. Foi caminhando por feiras livres, lojas de artigos religiosos e mercados municipais que pode-se grifar uma certa desnaturalização do termo sintético "planta" a partir da categoria nativa "erva", indicando haver aberturas e continuidades entre vegetais e produtos sintéticos comercializados em lojas de artigos religiosos que justamente permitem seu emprego nas práticas da umbanda paulista. Por fim, o resultado desta peregrinação foi vislumbrar os movimentos e transformações que estes materiais promovem na própria paisagem urbana, forjada pelo encontro e trajetórias de religiosos umbandistas e ervas. 66 7. Terceiro artigo Desnaturalizando a natureza: dimensão e fluxo material das plantas em um terreiro de umbanda da cidade de São Paulo Figura 18: Cruzeiro de Obaluaê. CIESL. Fotógrafo: Pedro Carlessi. Abr/2014. 67 DESNATURALIZANDO A NATUREZA: DIMENSÃO E FLUXO MATERIAL DAS PLANTAS EM UM TERREIRO DE UMBANDA DA CIDADE DE SÃO PAULO Pedro Crepaldi Carlessi39 [email protected] RESUMO Esta pesquisa discute sobre a dimensão material das plantas e das áreas de vegetação que integram o cotidiano de um grupo religioso alocado em um terreiro de umbanda da cidade de São Paulo-SP. A partir de um trabalho de campo de caráter etnográfico, apresenta-se duas situações empíricas vividas em campo em que pode-se perceber que, do modo como são vivenciadas no terreiro, as plantas não finalizam na superfície de suas folhas, mas justamente caminham no sentido de um certo transbordamento que perpassa e se estende para além do universo (ou "reino") vegetal. Propõe-se então pensar nas plantas em seu sentido relacional e a partir dos engajamentos que lhes caracterizam, condição que permite revisitar a ideia de 'cultura material', da qual as plantas mantém-se reféns ora da natureza, ora da cultura. Palavras-chave: Ervas; Natureza-Cultura; Religiões Afro-brasileiras; Umbanda. DESNATURALIZED NATURE: MATERIAL DIMENSION AND FLOWS OF PLANTS IN AN UMBANDA’S TEMPLE ABSTRACT This paper discusses about the material dimension of plants and vegetation areas that make up the daily life of a religious group allocated in an umbanda’s temple of São Paulo city (Brazil). From an ethnographic fieldwork, the study presents two empirical situations in which it may be seen that plants do not finalize on the surface of their leaves, but they precisely go toward a certain overflow that permeates and extends beyond the plant’s universe (or "kingdom"). It is proposed, then, to think about the relations of the plants and the engagements that characterize them, a condition that 39 Mestrando em Ciências pelo Programa de Pós Graduação em Análises Ambientais Integradas da Universidade Federal de São Paulo. 68 allows revisiting a certain idea of 'material culture', which keeps plants either prisoners of culture or nature domains. Keywords: Afro-Brazilian religions; Herbs; Nature-Culture; Umbanda. INTRODUÇÃO Neste artigo meu objetivo é dividir algumas observações que tenho feito em uma comunidade religiosa afro-brasileira alocada em um terreiro de umbanda da cidade de São Paulo. Os resultados aqui apresentados fazem parte de um estudo mais amplo, em que tenho procurado questionar alguns dos empenhos cientificistas calcados em modelos comparativos a respeito do termo sintético "natureza" (ou, mais precisamente, "planta"). Se meu empenho sobrecai à alguma desnaturalização deste termo junto aos meus colegas biólogos e cientistas botânicos, julgo oportuno dividi-los também com os antropólogos inclinados aos estudos das religiões. Isso por que a materialidade, que me foi posta em cheque no terreiro de umbanda a partir da relação com as plantas, estabelece um importante campo reflexivo para pensarmos nas dinâmicas que envolvem humanos e artefatos em função de práticas religiosas. A partir de um trabalho de campo de caráter etnográfico, procuro apresentar como o pensamento relativista apoiado em dicotomias como material-imaterial, realimaginário, profano-sagrado, físico-mental, variações da clássica dicotomia naturezacultura, não dá conta de apresentar as relações dos umbandistas com as plantas sem os eminentes riscos do reducionismo cultural ou biológico. Como linha de fuga para este problema, apresento minhas observações de campo a partir de dois casos específicos, um ritual de 'desobsessão' seguido de um processo de cura com ervas e uma breve descrição da cidade mítica Aruanda, utilizando para isso os aportes teóricos da chamada 'virada ontológica', especialmente a partir da ideia de 'fluxo dos materiais', articulada pelo antropólogo britânico Tim Ingold (2012). 69 ERVA DE PODER, PLANTAS E COISAS PLASMADAS Plasmar é uma atividade bastante comum no terreiro CIESL40. Trata-se de um ato geralmente breve conduzido pelos médiuns41 do terreiro e que consiste no transporte de objetos do mundo dos espíritos para o mundo dos humanos, fazendo-os presentes naquela situação, por mais distante ou desconhecidos que sejam. Explico melhor esta habilidade através do ritual de desobsessão para, em seguida, apresentá-la no sentido que me interessa neste momento, a respeito das plantas. Desobsessão é um dos rituais mais emblemáticos neste terreiro, envolto de técnicas, ferramentas e práticas adquiridas após longos períodos de treinamento, sobretudo nas 'giras de desenvolvimento', cerimônia fechada ao público e dedicada ao ensino e exercício das chamadas 'atividades mediúnicas'. De modo bastante geral a desobsessão consiste em um ritual de exorcismo, porém, em que o diálogo e negociação prevalecem à expulsão. Parte-se da ideia de que em certas circunstâncias, determinados espíritos podem aproximar-se dos humanos em um quadro de verdadeira obsessão: acompanham o humano dia e noite em suas atividades rotineiras, alimentam-se daquilo que o sustenta e, além disso, promovem discórdias, injúrias e outras maledicências. Pode-se dizer que a obsessão espiritual está para os umbandistas assim como o parasitismo está para os ecólogos (sobre este paralelismo de conceitos sem sobreposição, vide Cássia, Santos e Barros, 2014). Nesta interação entre dois seres diferentes um deles - a parasita ou os espíritos malfeitores - mantém-se vivo à custa de outra - a hospedeira ou humanos obsediados -, prejudicando-a. Segundo me foi relatado neste terreiro, diversos são os motivos que levam à um quadro de obsessão espiritual, maiores ainda os males que podem ser causados por esta relação: dores, doenças, alucinações, perda de recursos financeiros, brigas e maus entendimentos afetivos, má sorte, violência, quadros depressivos; quanto maior a interação entre ambos, maiores os agravos. Nestes casos, a solução está em afastar o agente obsessor, atividade que 40 Abreviação para Círculo de Irradiações Espirituais de São Lázaro, terreiro de umbanda localizado na cidade de São Paulo, SP, Brasil. 41 Neste terreiro corresponde tanto à uma denominação genérica, que se refere a todos os humanos hábeis no contato com espíritos, como também uma específica posição na estrutura sócio-religiosa, que organiza-se hierarquicamente a partir de "mães ou pais de santo" (que subdividem-se em "grandes" ou "pequenos"), "primeiros cambonos", "iabás", "ogãs" e "médiuns", sendo este último o mais expressivo em número de adeptos. 70 acontece pelo ritual de desobsessão espiritual. Os médiuns incumbidos desta tarefa possuem a missão de, através de um breve contato físico realizado através de suas mãos com o corpo da pessoa obsediada, peças de roupa, joias ou mesmo o nome completo escrito em pedaço de papel, remover o agente causador das queixas trazidas pelo assistido. Embora bastante empregada, no CIESL a desobsessão é tida como "último recurso", utilizada apenas em condições extremas em que as demais tentativas de diálogo e afaste destes agentes oportunistas já não se mostram mais suficientes. Nestas tentativas, os banhos de ervas são muito comuns, porém, como me disse o Exú Sete Sepulturas, "tem situações que erva não resolve mais, e ai não adianta ficar passando banho e defumação, tem é que tirar o obsessor que está com a pessoa!". Vale me adiantar e dizer que 'erva' remete à categoria nativa desta comunidade para as plantas utilizadas em contexto ritual e que não envolve exclusivamente plantas no estado material mais comumente conhecido. Percebe-se pela fala do exú um dos motivos que levam os umbandistas ao contato íntimo e constante com as plantas: visto que os vegetais são tidos como transportadores de axé, energia vital sem a qual não há vida ou movimento, a interação com estes não-humanos, ao oposto do que é com os obsessores, aumenta e alimenta a vitalidade dos médiuns. Na concepção deste grupo, não é só aos humanos que os obsessores podem prejudicar. Animais, imóveis, automóveis e outros bens materiais, seja qual for sua natureza, uma vez obsediados, também estão a mercê das maldades causadas pelos obsessores. Do mesmo modo, não é apenas na forma humana que os maus espíritos se manifestam. Ao entrar em contato com o assistido42, muitas vezes os médiuns relatam encontrar facas, punhais, adagas, correntes, algemas, coleiras, armas de fogo e mais uma variedade de artefatos sádicos apontados como agentes manifestos e responsáveis pelo quadro obsessivo diagnosticado. Das conversas que tive com os médiuns aptos a esta atividade, pude perceber que poucos enxergam tais artefatos com o recurso da visão; aliás, por vezes a aptidão de enxergar elementos de outros mudos com os olhos foi-me colocada como rara e também desnecessária. Isso porquê embora os artefatos não sejam vistos pelo recurso oftálmico, são percebidos em riqueza de detalhes por uma série de outros atributos em que é possível indicar com precisão o local em que se encontram, 42 Nome dado aos membros externos da comunidade religiosa, visitantes do terreiro, também chamados 'filhos-de-fé'. 71 bem como o tamanho e a forma que possuem, prática desenvolvida ao longo do tempo. Como Mãe Sônia disse à um grupo de médiuns neófitos deste terreiro: "a espiritualidade está em tudo. Nós estamos nela e ela está em nós. Meu objetivo como mãe de santo desta gira43 de desenvolvimento é dar os primeiros passos com vocês neste treino e começar a desenvolver as faculdades que vão permitir vocês tomarem contato com a espiritualidade". A partir do momento em que os artefatos-obsessores são percebidos, os médiuns envolvidos na desobsessão tratam de plasmá-lo, dar a ele certa vida e removê-lo de uma vez por todas do corpo daquele que apresenta-se obsediado. Para tanto, corporeamente o médium que realiza esta atividade empenha grande concentração e esforço físico: no primeiro momento, através de um movimento circular das mãos, realizado na região em que pode perceber tal artefato, o médium sugere moldá-lo, levando certo tempo para isso; na sequência, já plasmado e transposto ao mundo dos humanos, o médium trata de removê-lo, geralmente em um gesto bruto - por vezes seguido de quedas ao chão, grunhidos, gritos sufocantes, escarros e vômito, indicando a remoção do artefatoobsessor. "Dar vida" a tais artefatos acredito não ser o termo mais adequado, uma vez que o agente obsessor já encontra-se vivo, afinal, foi capaz de promover importunos. Talvez seja mais adequado dizer que ao plasmar coisas o médium umbandista permita o vazamento (Ingold, 2012) dos artefatos-obsessores, intensificando o elo entre os dois mundos. Isso porque, como mostrou a fala da Mãe Sônia, na concepção umbandista não há uma barreira entre o mundo espiritual e o mundo humano. Humanos, não-humanos e todas as coisas que existem transitam entre estes dois universos de modo que ambos, embora distintos, estão contidos um no outro de forma indissociável. Embora invisíveis, os artefatos-obsessores são percebidos pelos humanos, que logo tratam de removê-los. É bastante certo que os umbandistas do terreiro CIESL distinguem ambos os mundos. O mundo espiritual é tido como ausente de forma estabilizada; já o mundo humano é descrito pelo grupo essencialmente em função da matéria. Por este motivo, no instante em que desejam permitir a continuidade do mundo espiritual para o mundo humano, tais objetos necessitam de uma forma, elaborada pelas mãos dos médiuns e materializada nas secreções aqui apresentadas. Todo modo, pude 43 Como chamam-se as cerimônias religiosas neste templo. 72 perceber que no terreiro de umbanda a forma é uma condição efêmera e quiçá importante, visto que a "vida", de fato, é tida como uma vida espiritual, sendo a condição humana, uma breve passagem. No caso dos materiais em trânsito durante a desobsessão, a materialidade44 não é, ao menos, bem vinda: quando toma forma, geralmente através das secreções expelidas pelos médiuns que a trouxeram, as coisas plasmadas precisam ser queimadas; isso porque neste terreiro o fogo é tido como um portal entre os dois mundos. Munidos com um pouco de álcool, ateia-se fogo ao artefato expelido em forma de escarro, eliminando-o do terreiro e rompendo a continuidade entre os planos por este agente. Com um pouco de treino e prática, materializar artefatos parece fazer parte da rotina deste grupo. O recurso foi acionado em diversas e inusitadas situações, desde procedimentos médicos nas sessões de 'medicina espiritual', em que toda a parafernália cirúrgica é acionada, até para fugir de paradas policiais no trânsito da cidade, onde uma "capa de inviabilidade" nos permitiu a continuidade da viagem sem empecilhos. No que diz respeito às ervas, não diferente, estas também são passíveis de serem plasmadas. Sobretudo nas sessões de xamanismo praticadas pelo grupo é que pude observar o emprego de ervas, mesmo sem enxergá-las. Quando me refiro a xamanismo evoco uma prática complementar aos rituais deste terreiro de umbanda, já bem apresentadas na literatura antropológica como "xamanismo urbano" (Magnani, 1999; 2005). Nesta modalidade (que podemos chamar pela categoria utilizada pelo grupo, "xamabanda"), busca-se através de um processo de semitranse chamado de viagem, conduzido pelo toque ritmado de um tambor circular similar a um grande pandeiro (porém, sem platinelas), tomar contato e conhecimento de um mundo "selvagem" e que supostamente abriga o íntimo de cada participante. Após as viagens, as vivências individuais são compartilhadas em grupo, discutidas e analisadas pelo pai-de-santo-xamã com o propósito de autoconhecimento, ou, como se diz no CIESL, de "resgate do poder pessoal". Digo que esta prática é complementar às atividades do terreiro pois, o xamanismo, embora bastante aplicado, não abarca todos os integrantes desta comunidade religiosa. Seu emprego mantém-se restritito àqueles que buscam pela iniciação nesta prática, oferecida pelo dirigente do templo em sua 44 refiro-me à "fisicalidade dura do mundo" (Olsen, 2003:88 apud Ingold, 2012:34), objetos enquanto forma-matéria. 73 instituição, chamada 'Aldeia Círculo das Tradições', atualmente localizada a poucos metros da atual cede do terreiro. Em uma das viagens propostas nos primeiros estágios da iniciação ao xamanismo, os adeptos são orientados a viajar em busca da sua erva de poder. Trata-se de fechar os olhos e no pulsar dos tambores deixar-se imergir no "mundo xamânico" atrás daquela planta que comunga com o viajante propriedades particulares, geralmente relacionadas ao universo da cura. Cada participante retorna então das suas viagens com descrições sempre muito interessantes da flora deste mundo. Geralmente as plantas de lá são também encontradas no mundo daqui, e nestes casos os novos xamãs procuram mantê-las em cultivo. Isso porquê, sendo aquele vegetal 'a sua erva de poder', muitos são os poderes dela sob seu dono e vice versa. Desde protegê-lo contra algum mal até curá-lo de afecções graves, a relação da planta com o homem neste caso é particularmente íntima. Em outros casos, porém, a erva descrita pelo iniciante não encontra correspondência com as plantas conhecidas no planeta terra. Nem sempre são verdes, nem sempre tomam forma vegetal, condição em que as descrições sempre ricas enchem de curiosidade aqueles que ouvem os relatos. Nestas situações, como o cultivo não é possível, "plasmar" a erva é o caminho para tê-la meio aos rituais. De volta ao terreiro, o xamanismo nos moldes aqui descritos integram sobretudo as giras de medicina espiritual, em que uma sala é arranjada para que um "médiumxamã" já experiente utilize seus recursos para atender aos assistidos do templo. O processo geralmente envolve a condução das viagens, seguida de uma longa conversa entre médium-xamã e assistido. Todo modo, quando se faz necessário complementar a viagem com alguma atividade própria do terreiro (como "passe energético" e "desobsessão", apenas para ilustrar alguns exemplos), os dois movimentos se entrelaçam. É nesse universo de continuidades metafísicas que a erva de poder sai do mundo xamânico e toma vida e forma pelas mãos do médium-xamã. Em uma segunda-feira, dia da semana dedicado aos atendimentos de saúde na chamada 'gira de medicina', pude acompanhar um ritual de cura realizado por médiuns iniciados também nas práticas de xamanismo urbano. Nesta ocasião, três assistidos foram dispostos sobre esteiras de palha no salão principal do terreiro. Ao redor de cada um deles, um pequeno grupo de médiuns iniciantes se somou a um médium-xamã, responsável naquele momento pela condução dos cuidados com aquele assistido. Entre 74 estes, me detive em um médium que expressava enorme concentração e certa distância do assistido, que repousava sob a esteira rodeada por velas de muitas cores, dispostas pelos médiuns incorporados em pretos velhos e caboclos45. Em determinado momento, o médium solicitou a um colega que não participava ativamente do trabalho para que verificasse no jardim a disponibilidade de certa planta. Passou-se um intervalo de tempo razoável até o retorno do assistente, que informou não ter encontrado a planta nem no jardim, nem no estoque do terreiro, onde ficam alguns vegetais desidratados dos mais comuns. De prontidão, o médium-xamã respondeu que pela demora do colega a planta já havia sido utilizada, materializada através de suas mãos. Pude perceber que em determinado momento o médium curvara-se levemente e expressava manter em suas mãos uma espécie de cuia, da qual supostamente retirava algo e passava pelo corpo do assistido. Estava ali o bálsamo sagrado do enfermo, que trazida de outro mundo, agora materializada nas mãos de seu mestre, era livre para agir no mundo. Figura 19: Detalhe do jardim do terreiro CIESL. Fotógrafo: Pedro Carlessi. Abr/2014. ONDE MORA O CABOCLO? O relato da erva de poder indica que as plantas neste terreiro transitam entre mundos que, embora invisíveis aos olhos, são passíveis de interação pelos umbandistas. Como tratarei de mostrar nesta próxima sessão, neste grupo a ideia de "floresta" 45 Divindades que compõem o panteão umbandista. 75 também não se limita ao universo da matéria; ao contrário, cria uma ruptura no espaço físico em que pessoas e divindades comungam um terreno contínuo entre o céu e a terra. Mesmo esta bipartição, “céu” e “terra”, embora por vezes se faça presente nos discursos umbandistas, não é vivida de modo antagônico. Diversas situações vividas em campo indicam esta condição, todo modo, centralizo a análise em um diálogo específico, tanto pelo preciosismo em certos detalhes como pela oportunidade privilegiada de entrevistar uma preta velha. Em certa quarta-feira acompanhava os trabalhos da mãe de santo Zizi, que mantinha uma sessão de passe e consulta vespertina, como horário alternativo aos consulentes - sobretudo idosos - que encontram dificuldades para dirigirem-se ao terreiro no período noturno, horário em que invariavelmente ocorrem as demais sessões. Nesta tarde presenciei o exato momento de desincorporação de um caboclo, divindade das mais comuns no terreiro de umbanda e que se manifesta através do processo de incorporação. O instante corriqueiro certamente não me chamaria atenção não fosse pela particularidade do local escolhido para a despedida do guia espiritual46: o lado externo do terreiro, meio ao jardim, condição pouco comum visto que de modo geral os espíritos finalizam as incorporações no salão principal do templo. Meio às plantas, tratou de bradar e através de um pequeno salto para trás, desligou-se de seu companheiro humano. Tomei a passagem com a preta velha: Pedro (P): Vó Maria, onde moram os caboclos? Vó Maria (VM): Os caboclo moram na mata, fio. Você num sabe? P: É que vi um caboclo 'indo embora' no jardim e fiquei pensando... VM: Caboclo mora na floresta, em Aruanda. P: Você pode me dizer alguma coisa sobre Aruanda? VM: Aruanda é a cidade onde moram os guia tudo. Todos os guia de umbanda vem de lá. Como é que se diz, é uma colônia espiritual... P: Mas essa colônia é uma floresta? VM: É também, fio. Tem floresta lá...é onde moram os caboclo, os preto velho, os orixás... P: E como é essa floresta? 46 "Guia", "guia espiritual" ou "entidade" refere-se aos espíritos que povoam o terreiro de umbanda, manifestos sobretudo através do processo de incorporação. Neste templo, existem treze "linhas" (castas) de guias espirituais: caboclo, preto-velho, erê ou criança, boiadeiro, baiano, marinheiro, malandro, cigano, médico, grande oriente, exú, pombogira e exú-mirim. 76 VM: É uma mata, fio...igual essas de vocês daqui. Tem muita arvore, muita! Tem também as ervas. Mas Aruanda é uma cidade espiritual. P: Então em Aruanda além da cidade, existe a floresta? VM: Não é como aqui, fio, que tem floresta e cidade. É tudo Aruanda. P: Não entendi. VM: Você não entendeu porque lá é um mundo diferente do de vocês. Lá tem coisas parecidas, mas não é a mesma coisa. P: Você pode me dizer algumas coisas que são diferentes? VM: Lá a gente não precisa de comida, de água. Num tem vício, tristeza. É um mundo muito bonito. P: E as plantas de lá? São como as daqui, que precisam de água, ou também vivem sem? VM: É tudo espírito, fio! Num tem água porque água é uma coisa daqui da terra. Lá são outras energias, é outra coisa. P: Aqui no terreiro se fala que os caboclos vivem na floresta. É na floresta de Aruanda eles vivem? VM: É sim. P: Eles não vivem na nossa floresta, a floresta dos humanos? VM: Vivem na de vocês e na de Aruanda. Elas tão junto. P: Quando eu estou na floresta eu também estou em Aruanda? VM: Não. O telefone toca só de lá pra cá... P: Não entendi. VM: Silêncio... P: E essas plantas que a senhora falou? As plantas que tem aqui também tem em Aruanda? VM: Lá as plantas são muito lindas. P: Mas são as mesmas que tem aqui? VM: Algumas são, fio. P: E nesse caso, porque o caboclo escolheu ir embora no jardim? VM: Aqui já se acabou tudo a floresta deles. Eles são o espírito da floresta. Se não tem floresta, não tem caboclo, não tem guia, não tem nada. As planta tem muita força, fio. Você tá vendo, tá fazendo teu estudo, aprendendo a religião. Aqui não tem floresta mas tem o jardim, é o não é? Onde tem planta tem caboclo, preto velho, orixá, exú, né? P: Qualquer planta? VM: Todas as planta. Umas melhor que outras. 77 O diálogo logo cedeu em função do decorrer da sessão, coordenada pela preta velha47 que enquanto conversava e fumava cachimbo, observava o últimos afazeres daquela tarde. O fato que busco destacar nesta passagem é o caráter contínuo da floresta por entre os mundos. Assim como remeti a respeito do fogo nas práticas de desobsessão, as plantas são também elementos de intersecção entre o mundo dos humanos e dos não-humanos. A respeito da cidade metafísica Aruanda48, no terreiro de umbanda parece que toda e qualquer vegetação é capaz de criar este elo, como relata Mãe Janice: "se no terreiro existir uma folhinha verde, uma só, vocês podem transformar ela numa floresta inteira e chamar todos os caboclos, ou então transformar no remédio que a pessoa precisa...". Este seria então um importante aporte dos vegetais à religião: permitir o fluxo ente mundos. Todo modo, não se trata de mundos distintos, “lá” e “cá”. Os caboclos são de Aruanda, entretanto, a morada mítica não se encontra em meio ao céu, e sim em meio a terra, assim como Prandi (2005) observou a respeito dos iorubás africanos: Os iorubás, como povo da floresta, pouco se interessaram pelos astros, que ocuparam posição importante nos sistemas religiosos de povos que viviam em lugares abertos e altos. (...) A morada dos deuses e dos espíritos dos iorubás, emblematicamente, não fica no céu, mas sob a superfície da terra. (Prandi, 2005:6). Sobrepostos e conectados, humanos e divindades vivenciam através do jardim do terreiro CIESL a intersecção entre mundos. Porém, como a preta velha indicou, o telefone toca apenas de lá pra cá. Ou seja, os espíritos de Aruanda estão também no mundo dos humanos, embora os humanos não possam acessar Aruanda de modo direto. Apesar de não ser uma via de mão dupla, é nesse sentido que destaco o caráter contínuo da floresta. De modo semelhante se dá a concepção de nascimento e morte neste terreiro. Através do processo de reencarnação, fruto das raízes kardecistas, acredita-se 47 Refiro-me à "preta velha" e não à "mãe de santo incorporada com preta velha" respeitando as dissensões ontológicas postas pelos umbandistas nesta condição. 48 Para complementar a questão das cidades metafísicas na cosmologia religiosa afro-brasileira, vide o diálogo etnográfico com a Jurema, praticada sobretudo no nordeste brasileiro e etnografada a partir da cidade de Alhandra-PB por Salles (2004). 78 que antes de nascer em terra, os homens já existiam, habitando, porém, outros mundos. Digo outros, pois além de Aruanda – morada exclusiva dos guias e orixás – e do mundo xamânico, outras cidades espirituais foram-me relatadas e aos montes emergem na literatura romancista destinada a este seguimento religioso. Somado a estes exemplos, o uso do tabaco no terreiro de umbanda também ilustra as continuidades que busco evidenciar a partir das plantas. Pai Bento, outro guia espiritual acompanhado durante o trabalho de campo, assim como Vó Maria e outros pretos velhos, também fuma cachimbo, porém nunca cigarro, como me relatou: “pra você ver, aqui no cachimbo é essa cumbuquinha de barro segurando a erva que queima, esse pino de madeira que leva a fumaça pra boca. É como macho e a fêmea. Cigarro não tem isso, fio, fica só o fumo no papel. Cachimbo tem muita magia”. “Macho” e “fêmea”, “barro” e “madeira”, “fumo” e “fumaça”, são estas intersecções, nunca rompidas e sempre contínuas, que confere a magia qual o preto velho comenta. No caso, entendo esta magia como a configuração de um microcosmo deste universo religioso expresso na própria ferramenta da divindade. Como podemos perceber, não cabe neste contexto pensar nas fronteiras entre o fumo e a fumaça, por exemplo, exatamente pelo fato da “magia” – para utilizar o termo do preto velho – não estar contida em um destes polos, e sim na continuidade destas duas condições uma para a outra. Juntos, cumbuca e pino formam uma terceira coisa, um emaranhado (Ingold, 2012) da primeira com a segunda, em que a oposição deixa de fazer sentido e, em contrapartida, a união a torna plena. Logo, analisar este modelo no intuito de discernir aquilo que é “natureza” daquilo que é social (“cultura”) torna-se impreciso se antes não calibrarmos aquilo que entendemos por “natureza” ou “cultura”. Caso a explicação não se faça suficiente ou careça de validação, basta retornar algumas linhas e tentar responder ao tema desta sessão: onde mora o caboclo? CONCLUSÃO: PLANTAS E MUNDOS EM TRÂNSITO Mesmo que breves, acredito que estes dois relatos fornecem dados suficientes para avançar a discussão a respeito da dimensão material das plantas no contexto religioso afro-brasileiro. Tenho pensado no terreiro de umbanda como um campo de relações absolutamente dinâmico, caracterizado e constituído justamente pela fluidez, contato e 79 contágio entre seres de ontologias diversas que ali se apresentam e se elaboram. Sendo assim, ao mesmo tempo que as plantas transitam entre diferentes mundos (trazidas pelo ato de plasmar coisas, como indiquei), são elas mesmas passaportes para o trânsito, que permitem, por exemplo, encontros e continuidades entre florestas, cidades míticas e ambiente urbano. No limite, posso dizer que estas plantas possuem "an inherent and irreducibly open-ended character", como indica Webb Kaene (2008:230) ao refletir sobre a dimensão material de artefatos religiosos. Dessa forma, o jardim do terreiro CIESL não "simboliza" a floresta sagrada dos caboclos, mas justamente mostra-se como um "nó" (Ingold, 2012), o encontro entre seres, tempos e espaços que permite a fluidez e interação de um para o outro, resguardados pelos conflitos e negociações que emergem desta relação. Ainda que brevemente, Cabrera (2012) e Barros (1993) trazem também algumas contribuições que asseveram a confluência de mundos a partir de áreas de vegetação vividas pelo povo-desanto (nestes casos, a respeito dos grupos religiosos afro-cubanos e jêje-nagôs da Bahia, respectivamente). Entendo que abdicar da materialidade enquanto concretude do mundo para questionar as fronteiras e limites das plantas é um caminho produtivo contra os automatismos intelectuais de minha própria formação cientificista, que apoia-se sobretudo na relação matéria-forma para compor seus regimes de enunciação sobre plantas. A este respeito, as religiões afro-brasileiras há muito contribuem (vide Bastide, 1946; Silva, 1995; Negrão, 1996; Ortiz, 1999; Silva, 2005) sinalizando um modelo de pensamento que não opera através de pares opositores. Desde Roger Bastide tem-se bastante claro que entre as comunidades-terreiro, as fronteiras entre sagrado e profano, vida e morte, homens e deuses são borradas por uma certa continuidade e fluidez de uma para a outra. Para além de um exercício de alteridade, não apresentar estes vegetais a partir da relação matéria-forma se mostra como um esforço em preservar a vitalidade dos modos de ser do terreiro de umbanda, constituídos a partir de um sistema interativo em que tanto a ideia de natureza como de cultura são simultaneamente elaboradas, de modo que distingui-las ou separá-las entre polos opostos cria um certo alo distintivo qual a cosmologia umbandista parece não se enquadrar. Neste aspecto, recuperar a categoria 'naturezacultura' de Donna Haraway (2003) mostra-se como um empenho analítico comprometido com a condição observada em campo. 80 Dessa maneira, se a materialidade fornece uma referência para o diálogo sobre plantas nas comunidades terreiro, minha experiência leva a crer que este referente mostra-se eminentemente repetitivo (por vezes equívoco) caso seja tomado em função de sua concretude; todavia, considerado como o contrário, a dimensão que pode-se ter das ervas caminha no sentido de uma certa fluidez, que perpassa e se estende para além do universo (ou "reino") vegetal. 81 8. Conclusão: a experiência que não cabe na prensa Pode ocorrer a um grupo de biólogos a ideia de organizar um colóquio sobre “estruturas” em biologia, mas jamais passaria por suas mentes organizar um colóquio sobre o sentido da palavra 'estrutura' (Wolff, 1971:15). Nesta análise sobre plantas e ervas foram apresentados três artigos que demonstram, cada qual com metodologias e aportes teóricos próprios, algumas nuances da relação entre religiosos umbandistas e o universo vegetal, sendo este um caminho já trilhado por pesquisas anteriores, das quais a umbanda paulista ainda não conta com investigações. Dessa forma, o empenho analítico se concentrou em suprir esta lacuna no estudo das religiosidades afro-brasileiras em interface com as ciências biológicas. O primeiro artigo apresentado se elabora a partir de particularidades da "natureza" e da "cultura" e leva como horizonte argumentativo os significados e usos das plantas a partir dos membros do Círculo de Irradiações Espirituais de São Lázaro, terreiro de umbanda localizado na zona sul da cidade de São Paulo. Neste artigo foi apresentado o levantamento de setenta e sete espécies botânicas, utilizadas em sete diferentes usos, dentre os quais predominam os banhos de ervas, chás e defumações. Particularidades desta relação homem-planta também puderam ser grifadas, como partes vegetais mais comumente empregadas (ramos e folhas), a predominância de hábitos (42% herbáceas, seguidas de 35% arbustos e 23% arvores) e locais de coleta (coletados majoritariamente no interior do próprio terreiro, seguidos da coleta em vias públicas e comércio - 48%, 18% e 17%, respectivamente). Em complemento, o trabalho descritivo que caracteriza os dois artigos subsequentes procuraram complementar uma questão que não coube na abordagem do primeiro. Trata-se de uma suspeita que emerge de dissensões observadas em campo, bastante simples e localizada em função das concepções deste terreiro: "o que é uma planta?", ou, como preferi abordar, "o que é uma erva?". Ambos artigos tratam então de discutir o estatuto ontológico vegetal em função dos modos de ser e viver próprios do grupo acompanhado em campo. 82 Assim como todas as perguntas simples, que culminam em respostas insuficientes ou demasiadamente complexas, foi esta argumentação que ocupou meus pensamentos e labor durante a análise dos dados levantados. A constatação do biólogo francês que abre essa sessão já alerta que, a princípio, a análise especulativa não têm se mostrado como mote das investigações científicas modernas. Para que não ficassem essencialmente na abstração, procurei responder esta questão a partir de um empirismo extremo: descrevê-las e analisá-las pela ótica de seus anunciantes, através de um esforço irredutível de não apresentá-las de modo comparativo com os saberes científicos, tampouco pelo viés dos significados e da cognição. Sabe-se bem que desde Francis Bacon a ciência tem se pautado pela análise do "mundo em si" e, portanto, pela definição da noção de realidade e separação rigorosa entre fato e interpretação. Abdicar desta condição, tão cara à minha formação, mostrouse fundamental para construir uma análise comprometida com as religiosidades afrobrasileiras, cujos modos de ser residem menos em acentuar oposições e mais em enfatizar continuidades. Foi atento a esta condição que no artigo dois procurei demonstrar que no terreiro de umbanda as plantas são vivenciadas através de uma infinidade de outros materiais, que supuram os supostos limites do corpo vegetal. Entre eles, extratos vegetais variados, perfumes e incensos comercializados em lojas de artigos religiosos e até mesmo refrigerante sabor guaraná são todos ervas, independentemente da presença ou não de plantas em sua composição. Neste ponto, torna-se essencial ressaltar que no terreiro de umbanda o corpo enquanto matéria-forma não é fixo, assim como parece ser para nós, cientistas modernos. As relações e compromissos que os vegetais assumem com o mundo ao seu redor é o que define se um vegetal será erva ou mato, ou seja, se terá ou não utilidade ritual. Do mesmo modo, os materiais não-vegetais que intercambiam com plantas na condição de ervas emergem destas relações. Ao invés de mostrar-se como agente de separação, esta categoria se apresenta justamente como um instrumento de encontro entre materiais diversos que compõe as práticas de rotina do terreiro CIESL. O que a experiência em campo e a categoria erva pode revelar é que não existe "natureza" fixa, mas sim relações que precedem e definem esta(s) natureza(s). Com essa mesma condição pude concluir que não existem plantas fixas, tanto em epistemologias como em ontologias. 83 Para demonstrar esta condição, no artigo três foram apresentadas duas situações de campo complementares. Através da descrição de uma sessão de desobsessão pode-se evidenciar que o universo umbandistas é composto por elementos de ontologias variadas, que transitam entre mundos diferentes (porém não opostos) e absolutamente conectados. Foram assim com as ervas de poder, que através do ato de plasmar puderam ser trazidas do mundo xamânico para serem utilizadas em uma prática de cura na sessão de medicina espiritual. Ao fazer referência aos "diferentes mundos" procurei grifar justamente a continuidade entre seres, tempos e espaços que caracterizam os modos de ser deste grupo. Se no caso da desobsessão seguida de cura xamânica as plantas transitam entre mundos, a partir de uma conversa que tive com a Preta Velha Vó Maria pode-se perceber que estes vegetais são também passaportes para o trânsito de seres, nesse caso, entre a cidade mítica Aruanda e o terreiro. Tomada esta experiência como ponto de partida e não como conclusão, o resultado deste meu exercício híbrido entre a prática e a reflexão é tão somente provisório, e lança um esforço inicial no sentido de reaver (e refutar) o comentário do biólogo que abre essa sessão. Primeiramente, passo a questionar a pertinência de pensar o mundo a partir de realidades comparáveis, tal como feito no primeiro artigo desta análise. Sendo honesto com as concepções apreendidas em campo, entendo ser mais ponderado não comprimir conceitos em modelos comparativos, mas sim, criar novos modelos analíticos, substituindo a universalidade que engendra o pensamento científico moderno pelas particularidades que o mundo constantemente nos revela. Não menos importante, se a noção de realidade que grifei acima têm se mostrado definida pela ótica das ciências modernas, me parece pertinente em estudos futuros considerar os empenhos científicos lançados na construção deste mundo unívoco, qual advogam sobre o nome de "natureza". Neste aspecto devo dizer que o esforço em distinguir as categorias planta e erva não foi uma tentativa de instaurar uma separação forçosa entre ambas, mas sim preservar a vitalidade e os compromissos que ambas apresentaram, a primeira mais próxima dos cientistas que me acompanharam, a segunda, dos religiosos umbandistas. Contudo, ressalto que ambos não são exclusos um ao outro. Quero dizer que há uma certa "botânica" no terreiro, assim como uma certa "fé" nas ciências modernas. Em outras palavras, estou longe de sugerir o predomínio do 84 social em função do natural, tampouco o inverso. Ambas são 'naturezacultura' (Haraway, 2003) e para que pudessem ser melhor mensuradas, em paralelo aos religiosos umbandistas, seria importante considerar o trabalho dos botânicos e etnobotânicos que acompanharam esta pesquisa, seus mitos, como produzem realidades e corpos, modos de perceber e saber sobre plantas. Apresentar as ciências também como algo desmontável, subjetivo e passível de análise, entendo como uma atitude elementar para configuração de novas ideias e que passa, antes de tudo, por uma revisão dos termos, alianças e compromissos das próprias ciências. Se a emergência do pensamento contemporâneo é, entre outros, a integralidade entre diferentes formas de produzir conhecimento, com Umberto Eco tenho questionado se é possível sermos "integrados" sem antes sermos "apocalípticos" e questionarmos os paradigmas que nós, "cientistas em ação" (Latour, 2000), temos nos apoiado. Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber: a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm devoção por túmulos d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem salvação e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre 2 lagartos f) Como pegar na voz de um peixe g) Qual o lado da noite que umedece primeiro. etc. etc. etc. Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios. (Manoel de Barros) 85 9. Referências Bibliográficas ALBUQUERQUE, U. P. D. 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Anexos Anexo A: "Receituário de atendimento" utilizado nas sessões de passe e consulta do terreiro CIESL. 93