antropologia e interdisciplinaridade

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Os desafios da antropologia em favor da interdisciplinaridade
Marília G. Ghizzi Godoy*
Resumo
Este artigo retoma as tendências do conhecimento antropológico com relação ao estudo da
diversidade cultural, à situação do pesquisador e ao trabalho de campo. Compreende que a
universalização/homogeneização (mundialização) da cultura provocou processos de reordenação da reflexão antropológica nos quais o estudo desta área (da cultura) expressa eticamente
o caminho humanista da ciência.
Palavras-chave: diversidade cultural, etnografia, humanismo, pensamento antropológico,
trabalho de campo.
Na atualidade, as conjunturas de desenvolvimentos sociais, econômicos e
culturais se manifestam por uma movimentação convulsiva de valores que indicam uma complexidade própria de influências. A ordenação de uma totalidade
compreensível vem se tornando cada vez mais difícil e inatingível.
Se, de um lado, o movimento da globalização se impôs pela influência de
uma indústria cultural sofisticada que emergiu na cultura do pragmatismo e do
oportunismo individual, de outro, redescobriu-se uma nova lógica que se impõe pela expressão dos humanismos e da necessidade de uma ética de valores.
Os discursos do conhecimento antropológico que sempre sediaram “o outro”, o “estranho”, enquanto o cerne da reflexão do homem como ser cultural,
se vêem compelidos pela dinâmica expressiva da frase “o mundo hoje tem se
*
Marília G. Ghizzi Godoy é professora do Mestrado Interdisciplinar em Educação,
Comunicação e Administração.
1
Charles Bright e Michael Geyer, Apud MARCUS, George. Identidades passadas, presentes e emergentes: requisitos para etnografias sobre a modernidade no final do século
XX ao nível mundial. Revista de Antropologia. São Paulo: USP, 1991, n. 34, p. 197-221.
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separado na medida em que tem se juntado”1. A dinâmica atual indica uma
construção reflexiva do saber que se dirige a questões do sentido da autonomia
e da reavaliação crítica do globalismo.
As tendências acadêmicas da antropologia conhecidas como modernismo,
posteriormente, como pós-modernidade, sediaram uma forma de reflexão que
se inclina ao debate sobre a vida humana e seus processos e atravessam as
fronteiras das ciências.
A transposição das linhas demarcatórias entre especializações disciplinares
indica estarem os saberes antropológicos seguindo a direção de uma humanização “por dentro”, rumo a um reconhecimento da verdade. Em síntese, as
estratégias acadêmicas e a proposta de uma consciência ética impõem-se contra
um inimigo comum: o homem objeto, a reificação do conhecimento e sua construção individualista e descontextualizada.2
As questões históricas e o passado que acompanharam o amadurecimento
das reflexões sobre o etnocentrismo, a objetividade científica, o domínio da
civilização, ainda estão presentes na nossa memória e na forma como nos projetamos nos “outros”. O jogo político, as hierarquias de poder criam representações temporais, espaciais, que invadem as questões acadêmicas e propiciam
momentos para o debate científico.
Consideramos nesta comunicação as situações-chave em torno das quais
as reflexões foram inflamadas e por onde a antropologia ordenou as bases
do seu diálogo e demarcou os limites acadêmicos. De início, vamos rever os
momentos pioneiros marcados pelo evolucionismo. A seguir, o movimento
marcado pela antropologia funcionalista e a ordenação do realismo da cultura no trabalho científico. Mais adiante, avançaremos rumo à crítica e ao
modernismo dos anos 80 e à formação dos diálogos que indicam o movimento pós-moderno na Antropologia. Finalmente, registraremos dados já
conhecidos sobre a antropologia brasileira com o intuito de dar visibilidade
à temática interdisciplinar.
2
A respeito da interdisciplinaridade das Ciências Sociais e o tema do individualismo e
também do cientificismo das ciências exatas vide CANESQUI, Ana Maria (org.) – Ciências
Sociais e saúde para o ensino médico. São Paulo: Editora Hucitec, 2000; CARDOSO, Ruth
C. L. A aventura antropológica – teoria e pesquisa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986;
DUMONT, Louis. Individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna.
Rio de Janeiro: Rocco, 1985.
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1. O discurso do evolucionismo e a formação da antropologia clássica
As primeiras idéias antropológicas que se registram na dinâmica científica e
na formação da cultura ocidental datam do século XVI e estão ligadas ao colonialismo e à descoberta das diferenças culturais pelos navegadores e cronistas,
tal como atesta a presença dos registros pioneiros sobre a diversidade das
culturas. No século XVIII, configura-se o conceito de homem como uma
construção ligada a um saber que não indica apenas reflexão, mas observação e
construção empírica. Segundo Laplantine3 a sociedade do século XVIII vive
uma crise de identidade do humanismo e da tradicional consciência européia.
Nessa época a idéia de cultura se inscreve no discurso como sendo própria do
homem, ela preconiza o progresso e a instrução cada vez mais abrangentes.
Trata-se de um naturalismo que consiste numa emancipação definitiva em
relação ao pensamento teológico.4
A época das “luzes” e a construção extra-européia do outro vai ser aprofundada pelas idéias metodológicas do movimento positivista. A antropologia
ordena-se no século XIX e consolida-se como ciência, tendo como objeto próprio o estudo da origem do homem civilizado, “das formas simples de organização social e de mentalidade que evoluíram para as formas mais complexas das
nossas sociedades”. O evolucionismo pressupõe uma espécie humana idêntica,
mas que se desenvolve em ritmos desiguais, de acordo com as populações, passando pelas mesmas etapas, para alcançar o nível final que é o da “civilização”.5
O paradigma teórico mais relevante dessa perspectiva foi o de Frazer, em
sua obra O ramo de ouro, onde o autor discute as etapas sucessivas de evolução
da magia à religião, e depois, da religião à ciência.
Em decorrência da visão evolucionista, assistimos à marcha do progresso e
à imposição do paradigma da civilização ocidental. Nesse sentido, a questão da
3
LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1993.
4
De acordo com o autor esse movimento impõe-se em especial na Inglaterra, com Adam
Smith e, antes dele, David Hume. Enquanto o século XVI indica a descoberta das diferenças expressivas de um imaginário onde o estado de natureza é conhecido pelo tema da
noção de crueldade ou de ingenuidade, o século XVII e principalmente o século XVIII,
“século das luzes”, impõem-se pelo conceito de unidade e universalidade do homem
(LAPLANTINE, François. Op. cit., p. 61). Tratava-se do homem como indivíduo, objeto de observação, que surge como pertencendo a uma época e a uma cultura.
5
LAPLANTINE, François. Op. cit., p. 65.
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universidade e da diversidade foi retratada como tema científico encaminhado
para uma visão linear da evolução.6
O capitalismo imperialista do Ocidente, servindo-se da lógica civilizatória
do poder, de que se serve para dominar o mundo, concebe os costumes do
mundo periféricos como selvagens, bárbaros.
2. Os “nativos”. A formação da antropologia moderna
O estudo particular das culturas se torna a pedra de toque para um novo
rumo da antropologia: o da etnografia ligada ao trabalho de campo. Uma nova
forma de entender a realidade se origina, tendo como fonte a pesquisa antropológica ligada aos estudos in loco da cultura.
O conceito de costume como unidade de um sistema se ordena pela sua
relação de funcionalidade, unidade funcional e de uma visão sistemática da realidade. Os antropólogos mais conhecidos desse novo rumo foram Boas (nos
Estados Unidos) Malinowski (na Inglaterra). Destacaram-se também as obras
de Rivers, Evans-Pritchard, Meyer Fortes, Margaret Mead e outros. Franz Boas
(1858-1942) imigrou da Alemanha para os Estados Unidos, nos fins do século
XIX, onde acabou por introduzir o historicismo e a análise detalhada dos
costumes sociais. Ele se destacou como fundador da etnografia e por ser o
pioneiro a fazer pesquisa in situ para observação direta e prolongada das culturas primitivas. Sua atenção converge para uma visão descritiva, pormenorizada
e detalhada dos costumes em seus contextos. Efetuou uma minuciosa análise
sobre os índios da costa noroeste do Pacífico, na Columbia Britânica, nos fins
do século XIX, dando origem à visão culturalista que veio a se desenvolver ao
longo das gerações seguintes com teóricos como Ruth Benedict e Margareth
Maed. Um novo campo de orientação sobre costumes, padrões culturais, personalidades e valores foi sendo alvo das teorias antropológicas e da conhecida
visão configuracionista da cultura.7
Bronislau Malinowski (1884-1942), polonês, radicado na Inglaterra, iniciou sua experiência de campo em 1914 na Melanésia. Impedido de retornar à
6
É reconhecido que a tarefa mais significativa da antropologia evolucionista foi com
relação ao nascimento e projeção científica de etnologia.
7
Boas concebeu a etnologia como ciência de observação direta, rejeitou as concepções
históricas dos evolucionistas e introduziu o relativismo cultural tanto metodológica como
filosoficamente nas unidades culturais.
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Inglaterra pelo início da Primeira Guerra Mundial, pesquisou o arquipélago a
nordeste da Nova Guiné: as ilhas Trobriand. A obra do autor tem como característica central retratar a imagem viva e humana de um povo completamente
diferente do modelo ocidental. Dedicando-se à observação participante, a
etnografia por ele desenvolvida corresponde à experiência cultural de um povo.
O modo como concebe a cultura envolve a vida do homem na sociedade,
incluindo técnicas, rituais, crenças e arte.8 Configurado conforme o modelo
das ciências da natureza, o conceito de cultura de Malinowski tem o mérito
de satisfazer as necessidades dos seres humanos.9 Na sua obra Argonautas do
Pacífico Ocidental a cultura, em análise, é pensada segundo dimensões sociais,
psicológicas e biológicas.
A visão funcionalista entende que as sociedades tradicionais são estáveis,
sem conflito e portadoras de um equilíbrio suportado pelas instituições capazes
de satisfazer as necessidades dos homens.
Até as décadas de 60, a formação de um campo de trabalho e pesquisa
participante criou o sentido do relativismo cultural pela forma como as alteridades eram encaradas em suas próprias dinâmicas. A definição do objeto de
estudo centrado em uma exclusividade e isolamento se prendia a uma interpretação de cunho positivista. O mundo colonial, retratado como situação de
contato e aculturação, também se articulava com a situação étnica cuja linguagem de poder estava centrada no mundo dos pesquisadores, oriundos do interior da civilização ocidental.
A consciência que passou a vigorar sobre a diversidade cultural, sobre a
diferença como os “outros” eram representados resultou no pressuposto do
8
Malinowski foi o primeiro a por em prática a observação participante e criou um método
de estudo da sociedade que nos é estranha. Admite-se que foi com esse autor que aprendemos
“a olhar” o diferente. A pesquisa de campo introduz uma outra natureza de compreensão que
difere da antiga atividade do “investigador” questionando “informadores”.
9
O conceito de cultura ligado ao funcionalismo recusa as análises da origem e história
dos costumes. Assim a cultura é analisada a partir de uma perspectiva sincrônica. No seu
livro Uma teoria científica da cultura (editado em 1944), o conceito de cultura pressupõe
o modelo das ciências da natureza, da espécie animal humana. Sendo as instituições o
conceito central das respostas funcionais, são elas o objeto de estudo da Antropologia.
Essa concepção considerada como uma visão biologista da cultura, tornou-se o alvo da
crítica de uma antropologia ligada e comprometida com a visão simbólica.
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relativismo cultural e na denúncia do etnocentrismo, dando margem para que a
marca do modernismo pudesse se inserir nos discursos teóricos.
Naquela época, nos anos 70, originam-se novas descobertas sobre a evolução
homínida, e a atualização das teses da evolução biológica e a direção do conhecimento em torno da questão natureza-mente-cultura deram um novo rumo para os
dados etnográficos. Por sua vez, a subjetividade e o universo da produção simbólica foram introduzidos de forma intrínseca no sentido de evolução cultural.10
Esta nova proposta reflete a influência dos anos 70 e 80 sobre o modelo
anterior da etnografia. Baseando-se em Caldeira, registramos os itens principais dessa crítica antropológica.11 Nela, destacou-se o sentido do realismo
etnográfico fundamentado numa relação específica entre o escritor, o objeto
e o leitor, na qual imperava uma situação de autoridade expressiva da terceira
pessoa (“eles são isto”, “eles fazem aquilo” etc.). Consideravam-se as culturas
como algo pronto para ser observado e descrito, eliminando-se os processos de
comunicação, de troca, de negociação. O diálogo tornava-se um monólogo e o
que era interação cristalizava-se em descrição. Nos textos apagavam-se as relações interpessoais e tudo se voltava para a generalização do nativo: o que era
discursivo virava textual.12
O estudo da relação entre observador e observado permitiu-nos entender
que, numa vertente distinta dos antigos estágios do evolucionismo, tomava-se
consciência da perspectiva e distância entre sujeitos e objetos de estudo. Em
síntese, a crítica à etnografia clássica teve como alvo a negação da experiência
das culturas por supor uma re-elaboração das totalidades integradas. A distância, por sua vez, indicava uma ausência de perspectiva crítica entre a cultura
estudada e as dos antropólogos, bem como entre as dos antropólogos entre si.13
10
A antiga obra Evolução, raça e cultura. São Paulo: Ed. Nacional, EDUSP, 1969, organizada por Gioconda Mussolini, foi um marco pioneiro para a reflexão da nova teoria da
evolução no Brasil. Entre as várias publicações que vão ordenar essa questão destacam-se
os livros: GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978,
ao lado da obra de MORIN, Edgar, particularmente, O enigma do homem. Para uma nova
antropologia. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1975.
11
CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. A presença do autor e a pós-modernidade em Antropologia, Novos estudos. São Paulo: Ed. Brasileira de Ciências, 1988, n. 21, pp. 133-157.
12
Apud CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Op. cit.
13
Ibidem, pp. 133-157.
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3.“Saberes estranhos”: a revelação do exótico
Admite-se que na dinâmica descrita sobre a etnografia e o funcionalismo surgiram elementos de mediação entre os objetos científicos e os sujeitos de pesquisa. Origina-se uma proposta de inserção do diálogo a respeito
do sentido da objetividade da pesquisa e da neutralidade do pesquisador.
Essa situação criou uma dinâmica provocativa entre observador e o observado, que se refletiu na reordenação do relativismo cultural. A comunicação
entre o escritor e o objeto e entre estes e o leitor deu margem para uma
crítica e provocação que se desenvolvem como “ficção persuasiva” e que se
tornaram o pivô para a introdução do modernismo na Antropologia.14 O sentido de autoria dispersa se impõe abrindo espaço para que a autoridade de
sujeito cognoscente privilegiado se veja nas experiências cotidianas do nativo
e da sua irredutibilidade.15
Entre os fins dos anos 60 e início dos anos 80, esse movimento acarretou
a inserção de temas e realidades que abordassem questões ligadas ao mundo
subjetivo, à mudança cultural dentro de suas dinâmicas internas. A influência
de Lévi-Strauss e do estruturalismo lideram a produção científica que se dirige ao estudo das representações culturais, da relação cultura e natureza. As
novas concepções se descobriam no exame dos inconscientes coletivos culturais, dando origem a uma leitura da diversidade cultural expressiva dos contextos simbólicos, que particularizam construções coletivas de uma humanidade
sempre reatualizada e original.16
Nos Estados Unidos essa dinâmica destacou-se pela influência da antropologia interpretativa instaurada por Geertz. Ela preconiza uma visão da
cultura constituída por um conjunto de significados transmitidos e incor-
14
CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Op. cit., p. 140.
15
Ibidem, p. 142.
16
A ênfase das práticas simbólicas implica o estudo de categorias próprias dos universos
simbólicos, evitando-se projeções de categorias ocidentais, são elas fundadoras de ordens
cósmicas e sociais. Lévi-Strauss propõe uma “ciência da comunicação” sendo as culturas
modalidades particulares (das mulheres, das palavras, dos bens), regidas por leis inconscientes de inclusão e exclusão. A visão estruturalista formou-se por influência das ciências
semiológicas, especialmente da lingüística. Busca construir uma epistemologia válida para
todo o campo das ciências humanas.
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porados como símbolos que fornecem modelos “de” e modelos “para” a
construção de realidades.17
Essas novas direções de abordagem dos fenômenos humanos se efetivaram
em função de uma proposta de crítica cultural da antropologia que, por sua vez,
se fundamentou na introdução da questão política no campo científico.
Data desse ambiente a concentração de trabalhos antropológicos sobre populações marginais das metrópoles, o que já indica ser o “outro” parte de nossa
própria cultura. Considera-se o caráter desmistificador da realidade e a introdução do diálogo como suposto em desassossegos, na disciplina.18 Assim proposta
nos anos 70-80, essa dinâmica reflete as forças hegemônicas dos mecanismos
estruturais mundiais, fundamentados na mundialização emergente e na crescente
homogeneização da cultura na sua demanda global. O campo de um multiculturalismo emerge como retrato das atenções dos estudos antropológicos e as novas
dinâmicas indicam situações de formação das identidades culturais.
Digno de nota são os registros historiográficos da antropologia no Brasil,
decorrentes das influências descritas.
4. Considerações sobre a antropologia no Brasil
O conhecimento antropológico, ao seguir as tendências teóricas, criou
também um espaço político e de construção de saberes na cultura brasileira.
De acordo com Roberto Cardoso de Oliveira, os anos pioneiros; as décadas de 20 e 30, foram caracterizadas por estudos que retratavam o conceito
de cultura, sem que houvesse uma institucionalização da disciplina.19 Nesse
17
Geertz enfrentou o desafio modernista da Antropologia propondo o sentido da cultura
como um fenômeno ligado à evolução cerebral. A relação mente-cultura tomou uma
nova dimensão na tradição culturalista americana à qual se filia Geertz. Originaram-se
novas questões ligadas ao significado das representações culturais. Diz ele, “na antropologia não há coisas que possam ser descritas, propondo então a “evocação” e não mais o
discurso etnográfico” (Apud MONTERO, Paula. Questões para a etnografia numa sociedade mundial. Novos estudos. São Paulo: Ed. Brasileira de Ciências, julho de 1993, n. 36,
p. 161-177).
18
Apud MONTERO, Paula. Op. cit.
19
Apud RUBIM, Christina de Rezende. Um pedaço de nossa história. historiografia da
antropologia brasileira. Anpocs. Revista brasileira de informação bibliográfica em Ciências
Sociais. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2º sem. de 1997, n. 44, p. 31-72.
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período destacaram-se os autores Curt Nimuendaju (etnologia indígena) e
Gilberto Freyre (sociedade nacional).
O final da década de 40 e início dos anos 50 é expressivo como o período
carismático, marcado pela introdução do conceito de estrutura.20 Destacou-se
F. Fernandes, no campo de etnologia de vertente culturalista e funcionalista,
observando-se ainda a presença de Eduardo Galvão e Darcy Ribeiro.
O terceiro período de formação da antropologia assinala maior desenvolvimento no início da segunda metade da década de 60, graças à institucionalização dos programas de pós-graduação em nosso país. Foi o período burocrático.
Admite-se que até os anos 60 a antropologia era de orientação culturalista.21
Três temáticas foram enfocadas: os estudos de sociedades tribais, os estudos de
relações raciais e os estudos de comunidades que tiveram prioridade até os
finais dos anos 60.
Nos finais dos anos 60 e início dos anos 70, foram minimizadas as influências culturalistas e, mediante críticas, a noção de conflito e politização seguem
as novas orientações. Esse novo período, marcado pela influência do estruturalismo, é considerado o grande responsável pela popularização da antropologia
e se caracterizou pela sua relativa liberdade e, então, a disciplina tendeu a
assumir uma vertente politizada.22
Sob esta influência, temas sobre a marginalidade, favelas, trabalho assalariado, cidade, campo, ganharam relevo. Esses estudos possibilitaram que a cidade, a
aldeia não fossem um mero objeto de pesquisa, mas um locus de investigação,
com ênfase para as minorias desprivilegiadas.
Esse clima possibilitou a expansão da antropologia ressaltando-se a presença
de institutos, áreas e centros de pesquisa. Os desafios crescentes que se produziram
no campo das reflexões salientaram a questão da realidade nacional como prioritária. Essa preocupação estimula o rompimento da camisa de força representada
pelos paradigmas científicos até então importados dos centros hegemônicos.
A dinâmica política será reordenada nos anos 80, década marcada por impasses e conflitos sócio-econômicos, com uma redução de verbas nos investimentos
acadêmicos. As perspectivas que contemplavam os conflitos enveredaram para a
20
Apud RUBIM, Christina de Rezende, Ibidem.
21
Ibidem, p. 75.
22
VELHO, Otavio, Apud RUBIM, Christina de Rezende. Op. cit., p. 43-44.
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“participação observante”, a militância política e os estudos em que o pesquisador está integrado como sujeito na pesquisa. Essas dinâmicas manifestam a
influência dos esquemas globalizantes da sociologia, a importância gerada pela
política e pelo estudo da sociedade nacional.
O avanço representado pelo resgate da subjetividade, pela importância dos
discursos e narrativas, foi fundamental nos anos 90. Desenvolve-se uma preocupação da antropologia consigo mesma, na qual o enfoque da identidade tornou-se central. Segundo Rubim23 foi essa dinâmica acadêmica que propiciou
a criação de um grupo de cientistas sociais que têm um lugar definido no
cenário das ciências sociais.
5. O pensamento antropológico na atualidade
O jogo de forças e críticas científicas se encaminha para a dinâmica da globalização e a formação das sociedades em rede. As barreiras sociais e políticas da
era do capitalismo informacional dão um novo sentido ao espaço, aos locais.
Uma gramática de multiculturalidade toma vulto em função dessas novas dimensões e suas respectivas representações simbólicas. Temas referentes aos
intercâmbios culturais, e à não-neutralização da estranheza seguem os percursos
de uma indagação em que homens e sentimentos se expressam.
O espaço e o tempo são redefinidos e problematizados, levando-se em conta
uma nova ordem mundial. Nesta, uma perspectiva de comunicação se insere pela
linguagem de alteridade e pela apropriação do diálogo, da bifocalidade: justaposição e críticas ocorrem tendo como fundamento as possibilidades alternativas.
Esse novo contexto está caracterizado por um “nervosismo generalizado”, conforme Geertz.24 Contra o antigo caráter de monólogo do antropólogo,
impõe-se a sua
presença crítica, que não se furte a considerar a sua relatividade, a sua existência
entre outras, mas que também não se furte a entrar no jogo de forças em que a
pesquisa antropológica se faz importante para fornecer uma interpretação que se
define em termos críticos e políticos.25
23
RUBIM, Christina de Rezende. Op. cit.
24
GEERTZ, Clifford Apud CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. A presença do autor e a
pós-modernidade em Antropologia. Novos estudos. São Paulo: Ed. Brasileira de Ciências,
1988, n. 21, pp. 133-157.
25
30
CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Op. cit. , p. 151.
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Os desafios da antropologia em favor da interdisciplinaridade
O final do século encaminha-se para a análise do insucesso dos esquemas
globalizantes, dos compartimentos isolados dos objetos e sujeitos de ciência.
O novo discurso, de origem polifônica e que se projeta nas narrativas coletivas,
expõe a nova ordem dialética entre recursos e utopias no contexto multicultural.
A forma como a antropologia recria o seu objeto de estudo situando-se em um
mundo em constante reordenação de fronteiras e localidades se impõe para as
sociedades e os conhecimentos de forma mais ampla. Por outro lado, no âmbito
acadêmico a transposição de fronteiras disciplinares ocorre pela reordenação de
saberes incorporados, nos quais a contestação das tradições lógico-positivistas
se dirige a um sentido próprio de emancipação.
No campo da antropologia, os conhecimentos sobre o homem e sobre as
culturas indicam um momento de projeção de saberes que se impõem como
marca de evolução da crítica rumo a um maior humanismo na ciência.
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Abstract
This article resumes the trends in anthropological knowledge with reference to the study of
cultural diversity, the researcher’s position and the fieldwork. It considers that cultural
homogeneity has provoked rearranging processes of anthropological reflection, in which the
study of this area, ethically, expresses the humanistic way of science.
Keywords: cultural diversity, ethnography, humanism, anthropological thought, fieldwork.
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