CLASSIFICAÇÃO

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Capítulo
6
Classificação
Introdução
Os problemas nosológicos em psicopatologia e a classificação das
perturbações psiquiátricas são áreas nas quais há divergência, não
tendo sido desenvolvido, ainda, um único sistema totalmente
satisfatório. O sistema de classificação habitualmente usado, tal
como vem exemplificado em Nomenclatura Oficial da Doença,
publicada pela Associação Médica Americana, significa um avanço
em relação a tentativas anteriores, mas contém ainda algumas
limitações para uma abordagem dinâmica da psicopatologia.
Tal sistema implica um conceito estático, definitivo, das entidades
psicopatológicas, não respondendo pelas flutuações e alterações
clinicamente observadas na intensidade e na natureza da
psicopatologia apresentada. Outra implicação de conceito tão
estático é que todos os indivíduos classificados dentro de
determinado grupo nosológico serão, necessariamente, comparáveis
uns aos outros. Essa implicação, porém, contradiz a experiência
clínica, pois esta demonstra diferenças acentuadas entre indivíduos
que, com base nos principais sintomas apresentados, estão colocados
na mesma categoria nosológica.
Uma classificação assim estática, também se baseia,
principalmente, na sintomatologia presente na consciência, não
levando em consideração os conflitos psíquicos subjacentes, nem os
mecanismos que originaram a formação dos sintomas. Daí se
depreende uma limitação no uso de tal sistema que compara seme102
hanças existentes na organização psíquica de indivíduos que, de
outra maneira, poderiam ser classificados em categorias nosológicas
diferentes. A experiência clínica demonstra que muitos dos
mecanismos e conflitos apresentados por uma entidade
psicopatológica podem, do mesmo modo, ocorrer em outras
entidades, ainda que com ênfase, duração ou intensidade diferentes.
Por exemplo, alguns dos mecanismos que o indivíduo normal usa no
processo de formação do sonho podem ser encontrados no psicótico
durante a formação dos seus sintomas. Qualquer sistema de
classificação que não permita a compreensão das semelhanças ou
diferenças existentes está, portanto, incompleto do ponto de vista
dinâmico.
Esses conflitos de flexibilidade, alteração e dificuldade no
estabelecimento de uma classificação fixa ou estática dos estados
psicopatológicos são especialmente notáveis nas várias tentativas de
estabelecer diagnóstico para as perturbações da infância e da
adolescência, onde a consistência e a estruturação da patologia é
menor que no paciente adulto.
Uma abordagem psicodinâmica
A teoria psicanalítica e a psiquiatria dinâmica não estão
capacitadas, no momento, para apresentar um sistema completo de
classificação nosológica. O material do presente trabalho tem a
intenção de suplementar os sistemas comuns de classificação e,
embora não os substitua, haverá um valor heurístico em usá-lo
conceptualmente como um acréscimo à teoria da psicopatologia e na
abordagem da psicoterapia, o que será descrito mais tarde.
O espectro da regressão
Dentro da estrutura teórica desenvolvida a respeito do
funcionamento e da adaptação psíquica, é possível conceituar a
psicopatologia como ocorrendo em um espectro de perturbação,
oscilando entre a normalidade, em uma das extremidades, e a
psicose, na outra. A linha imaginária pela qual se move esse
espectro é aquela do nível e da intensidade da fixação ou regressão
psicológica, e da facilidade, ou grau, com que a fixação, ou
regressão, é suscetível de modificação. A fixação ou regressão pode
envolver os processos do ego, os impulsos e as funções do superego,
embora, como já foi descrito, as diferentes formas e manifestações
de regressão ou fixação não ocorram, necessa- riamente, ao mesmo
tempo nem no mesmo grau.
O conceito de tal espectro não está diretamente relacionado com a
etiologia da psicopatologia, mas encerra uma variedade de diferentes
forças e fatores
103
etiológicos. Pretende-se, principalmente, uma formulação
dinamicamente descritiva para a compreensão do nível de integração
psicológica da natureza dos mecanismos psíquicos e do conteúdo e
significado latentes dos sintomas pelos quais a psicopatologia
subjacente é manifestada.
Esse conceito de uma gama de fixação-regressão na psicopatologia
também não está diretamente relacionado com o prognóstico de
qualquer paciente em particular, em resposta à intervenção
terapêutica, o que está de acordo com dados e observações clínicas.
Há indivíduos, isto é bastante observado, cuja psicopatologia não é
grave ou extrema quanto à perturbação ou à forma do sintoma, mas
de prognóstico insatisfatório em virtude da irreversibilidade da
fixação ou regressão e da rigidez das integrações defensivas do ego.
Também se encontram pacientes cujos sintomas podem apresentar-
se de maneira extremada, causando grave ruptura, com o mais grave
nível de regressão mas com grande capacidade de recuperação,
provocando melhor prognóstico terapêutico.
Considerando os diferentes pontos ou grupos desse aspecto, deve
ser enfatizado que, como em qualquer desses conceitos, haverá
grupos e fenômenos relativamente bem definidos no ponto central
de cada zona, mas à medida que uma zona mergulha em outra,
haverá uma diferenciação menos clara e menos desta cada.
A — A NORMALIDADE
A maturidade e o comportamento normal não são conceitos
absolutos; pelo contrário, refletem um âmbito de atividade psíquica
e de comportamento dentro do qual haverá significativa variação,
como foi apresentado no capítulo III. As variações podem ocorrer no
sentido total da integração e da função, ou no sentido de quaisquer
funções psíquicas ou manifestações de comportamento específicas.
Já se pôs em relevo o fato de muitos dos conflitos e mecanismos
psíquicos apresentados nas diferentes entidades psicopatológicas
serem encontrados, também, na vida mental dos normais, embora
seja diferente sua intensidade e sua integração no modelo completo
do funcionamento psíquico. A função mental normal foi descrita
anteriormente, porém pode ser dinamicamente resumida como
implicando um equilíbrio estável, em nível relativamente
amadurecido do desenvolvimento psicossexual, com o uso de
sublimações eficazes e a manutenção de um estado de adaptação
compatível com o juízo de realidade.
104
B —AS PERTURBAÇÕES DA PERSONALIDADE
O conjunto de distúrbios conhecido como perturbações da
personalidade, dos quais há grande variedade de formas, está
dinamicamente mais perto do conceito de normalidade.
A intensidade dessas perturbações pode variar de moderadas a
graves. Podem ser, por vezes, generalizadas, incluindo a
personalidade total e todos os diferentes aspectos da integração
psíquica; em outros momentos, podem incluir apenas aspectos
circunscritos da estrutura da personalidade e do comportamento,
com as outras funções psíquicas mantidas em nível relativamente
amadurecido.
A característica geral desse conjunto repousa no conceito de que, a
cada momento, e por toda a vida do indivíduo, um modo especial de
integração e um conjunto especial de mecanismos psíquicos são
usados reiteradamente, numa tentativa de adaptação ao conflito.
Como resultado, a adaptação tende a ser estereotipada e baseada na
repetição compulsiva e inconsciente, com fixação em vários pontos
de conflito no desenvolvimento psicossexual.
As manifestações de perturbação da personalidade resultam do uso
intensificado de vários mecanismos do ego, na tentativa de resolver
conflitos inconscientes, o que produz uma modificação do próprio
ego, que tende, então, a persistir por toda a vida do indivíduo.
Alguns mecanismos podem ser os mesmos que contribuem para o
desenvolvimento e função da personalidade normal, mas, nas
perturbações de caráter, seu uso é mais exagerado. Por conseguinte,
a intensidade dos conflitos inconscientes é maior nas perturbações
de personalidade, mas, qualitativamente, muitos deles estão
presentes, embora atenuados, ou mais bem integrados na
personalidade normal.
Por exemplo, quando irá a necessidade normal e adaptativa do ego
por limpeza e ordem e um bem organizado modo de vida se
transformar em necessidade intensa e exigente de limpeza, num
esquema rígido, e na inflexibilidade do caráter obsessivo? Em que
momento o desejo normal de ser atraente, afetuoso e alegre torna-se
um exagerado, dramático, sedutor e provocante tipo de
exibicionismo associado a uma estrutura histérica de caráter? Em
que ponto a capacidade normal para a ação eficaz de modificar uma
situação de realidade externa pouco satisfatória e torná-la mais
gratificante torna-se o acting-cut de uma perturbação neurótica do
caráter? E quando a capacidade normal de tolerância à frustração e
de adiamento da satisfação vai se transformar em necessidade
inconsciente de castigo, proporcionando uma situação infeliz, como
acontece com a personalidade masoquista?
Estas perguntas ilustram a dificuldade de delinear com clareza
qualquer linha divisória entre a normalidade e a perturbação da
personalidade. A diferença
105
está na intensidade do conflito, no nível de fixação e no padrão e
maneira estereotipada com que os mecanismos de defesa são usados.
No conjunto das desordens da personalidade, as manifestações
neuróticas podem ser estranhas ao ego ou egossin- tônicas,
dependendo de sua intensidade e da natureza da integração total.
Alguns indivíduos olharão seus traços de caráter como
desagradáveis e conscientemente indesejáveis, porém, incapazes de
modificá-los, adotam fundamental- mente a atitude de “não gosto
disso, mas não posso evitá-lo; sempre fui assim”. Outras pessoas,
contudo, verão seus traços de caráter mais sintonizados com a
completa integração de sua personalidade, e não pensarão em si
próprio, como neuroticamente enfermos, ainda que o observador de
fora possa discernir reiterados padrões neuróticos, ou profundos
desvios de função, devidos ao tipo de adaptação dos conflitos
inconscientes.
Pacientes com diferentes perturbações de personalidade podem
mostrar significativos graus de fixação ou regressão, mas o nível de
integração e a natureza dos mecanismos usados são constantes e
consistentes, através do desenvol- vimento do indivíduo e posterior
experiência de vida. Ainda que as manifestações específicas de
comportamento variem em relação ao desenvolvimento físico e
psicológico do paciente e sua situação de vida presente, as
motivações dinâmicas por trás do comportamento serão
necessariamente as mesmas, do princípio ao fim.
Por exemplo, o adulto com uma perturbação sociopática de caráter
apresentará, freqüentemente, na adolescência, um padrão de conduta
delinqüente; na fase de latência, baixa tolerância à frustração e
irrupção de comportamento agressivo ou destrutivo; na infância,
apresentará intensas explosões de raiva, quando submetidos à
frustração. Em cada nível de maturidade, física ou cronológica, os
mecanismos psíquicos utilizados para manter o conflito são
essencial- mente os mesmos, embora, à medida que se processe o
desenvolvimento físico e social, seus efeitos possam ser diferentes e
mais dramáticos.
O caráter obsessivo tem sido freqüentemente observado; foi, da
mesma maneira, extremamente asseado e cuidadoso consigo e com
seus brinquedos quando criança; um tanto inibido e meticuloso no
seu trabalho escolar; emocional -mente isolado de seus amigos e
companheiros durante a latência e a adolescência e, habitualmente,
emocionalmente inibido, embora escolhendo um modo de vida
especialmente rígido ou controlado quando adulto.
Do mesmo modo, o paciente com uma perturbação de
personalidade do tipo passivo-dependente pode exibir uma
variedade de reações submissas e dependentes às figuras
autoritárias, em todos os períodos cronológicos do desen volvimento, ou, em diferentes circunstâncias, apresentar
dependência de substâncias como o alimento ou o álcool, ou pode
afastar-se de situações de competição e afirmação próprias. O que
deve ser enfatizado é a possibilidade de considerável
106
variação do comportamento manifesto do paciente, dependendo de
sua idade, desenvolvimento físico, situação de vida, reações ao meio
ambiente, etc. Mas o significado dinâmico inconsciente que se
esconde por trás da conduta manifesta será relativamente
semelhante, sendo um reflexo do nível de fixação e do uso contínuo
dos mesmos mecanismos de integração do ego.
C —A NEUROSE
O grupo seguinte no espectro é o das neuroses clássicas. A
experiência clínica indica que, em casos de neurose clássica, sempre
existirá uma perturbação de caráter, ainda que o indivíduo não possa
reconhecê-la, ou dela só possa tomar conhecimento num retrospecto
após o aparecimento ja neurose.
O desencadeamento da neurose implica maior grau de regressão
funcional que o da perturbação de personalidade previamente
estabelecida. Isso acontece em resposta a acontecimentos
desencadeadores, ou a conflitos, que rompem o equilíbrio, como foi
assinalado nos capítulos IV e V. Daí resultam maior
descompensação e colapso, estabelecendo-se novo equilíbrio
dinâmico em nível de funcionamento psíquico mais regressivo.
No caso da neurose clássica, a base da perturbação, na forma de um
conflito intrapsíquico inconsciente, pré-existe ao aparecimento do
complexo sintoma neurótico. Por esta razão, sua presença latente é
verificada na forma de alguma perturbação em toda a função da
personalidade. Vendo-se frente ao conflito intrapsíquico, não
resolvido, que vai precipitar a neurose, o indivíduo, então,
experimenta maior regressão, com recrudescimento do conflito
latente, como foi descrito antes. Em outras palavras, na neurose
clássica, observa-se significativo grau de regressão do nível prémórbido da função e integração, ainda que o nível anterior já tenha
sido um desvio da assim chamada personalidade normal.
Novamente a neurose traumática será uma exceção, principalmente
quando em resposta a estímulos externos maciços e opressivos,
quando será pouco significativa a contribuição de uma perturbação
subjacente da personalidade. Ainda assim, deve ser inferido que o
indivíduo foi suscetível ao desenvolvimento de uma regressão
neurótica em presença do conflito externo, em virtude da
estruturação e integração anterior do caráter, visto que outros,
expostos às mesmas situações, nem sempre desenvolvem o mesmo
grau de perturbação neurótica sistemática.
A propósito, quanto maior for a contribuição do stress externo para
a regressão numa neurose traumática e menor a contribuição da
organização interna
107
da personalidade, mais rápida será a resolução da resposta regressiva
ao serem modificados o agente ou a situação externa, provocadores
do stress.
Um homem de 27 anos, com agudo ataque de neurose fóbica, numa
situação de ocorrência do conflito descreveu-se como estando
anteriormente “perfeitamente normal e sadio, sem qualquer queixa
ou perturbação”. No decorrer do tratamento, contudo, foi
estabelecido que, a partir da latência, experimentara um sentimento
generalizado de inibição, de tensão e de constrangimento junto às
pessoas, uma sensação de timidez, medo e fuga no relacionamento
com mulheres; um temor consciente de se mostrar como o melhor
em qualquer grupo e, em lugar disso, uma determinação de chegar
perto de tal situação, porém jamais ser a pessoa mais importante em
qualquer empreendimento a que se dedicasse; e uma necessidade
compulsiva de estar sempre fora de casa, principalmente quando
seus pais lá estivessem, sentindo-se à vontade somente quando
estava só em sua casa. Ele próprio não considerava essas reações
como sintomas, ou como manifestações de algum distúrbio. Para um
observador, contudo, eram evidências de significativa perturbação
da personalidade, existindo antes do aparecimento da neurose aguda.
Uma mulher de 39 anos, casada, queixava-se de uma intensa
preocupação com a limpeza e a contaminação; rituais de higiene e
outros sintomas compulsivos se apresentavam havia 5 anos,
atingindo o ponto de “deixar a família louca” com a gravidade de
seus sintomas. Ela afirmou que tudo havia começado
repentinamente, durante umas férias de verão e que estava bem antes
do desenvolvimento da neurose. Perguntas relativamente
superficiais, contudo, estabeleceram o fato de que por toda sua vida
ela se preocupara excessivamente com a limpeza. Todas as semanas
tirava as cortinas para lavar; limpava e arrumava cada gaveta e
roupeiro pelo menos uma vez por semana; preocupava-se com a
posição correta dos quadros e com a arrumação das caixas nas
gavetas de sua escrivaninha. Quando menina, fora incapaz de
desfrutar de suas bonecas e brinquedos, preferindo dedicar-se a sua
limpeza e ordem, conservando-os bem guardados nas gavetas e
armários, para que não corressem o risco de se sujarem ou
estragarem durante os jogos.
Estes exemplos clínicos ilustram o conceito de neurose clássica
como ocorrendo em indivíduo com perturbação de personalidade
pré-existente, mesmo que esta não seja de grandes proporções. Em
resposta a um conflito desenca-deador, há uma ruptura do equilíbrio
dinâmico, manifestada pela perturbação da personalidade, com
maior regressão e com a utilização de novos ou mais ativos
mecanismos de defesa, estabelecendo, assim, um novo equilíbrio
dinâmico, em nível mais regressivo, da função psicológica, na qual
os novos sintomas neuróticos desempenham agora parte essencial.
108
Uma das principais diferenças dinâmicas entre a perturbação da
personalidade e a neurose clássica é que, na primeira, a natureza e o
nível de integração psicológica estão relativamente fixados e
persistem enquanto duram as perturbações do indivíduo. Na neurose
clássica há evidência de uma descompensação específica e de
intensificação da regressão no momento do ataque do complexo
sintoma neurótico. Nas ocasiões em que há recuperação espontânea
de uma neurose clássica há, em geral, uma reversão dessa regressão
e o retorno ao nível anterior de distorção neurótica do caráter. Alguns indivíduos com perturbações do caráter podem manifestar
fixação psicológica em níveis mais primitivos e menos
amadurecidos que os indivíduos com neurose clássica, mas tal
fixação é, essencialmente, constante na perturbação do caráter e o
padrão de descompensação e regressão agudas geralmente não está
presente.
D — A PSICOSE
Na extremidade mais baixa do espectro da regressão, estão as
psicoses. Nesses estados, a natureza das perturbações psicológicas e
a elaboração dos sintomas são resultado de extremo grau de
regressão do nível total de integração e de função do ego, em vista
do que ocorre retorno ao uso de mecanismos psíquicos primitivos.
Com isso há um maior reaparecimento, no consciente, do
pensamento de processo primário, com renúncia parcial ao processo
secundário e crescentes perturbações no exame da realidade, com
subseqüente ruptura na adaptação a esta última. Como resultado da
ruptura e da fragmentação da estrutura do ego na regressão, há,
também, uma regressão do impulso, com retorno a uma organização
mais narcisista, o que causa uma nova elaboração da sintomatologia
psicó- tica regressiva.
E — OS ESTADOS “BORDER-LINE”
Entre as neuroses e as psicoses, na escala da regressão, estão os
chamados estados border-line, nos quais o nível de adaptação flutua,
oscilando entre as posições do equilíbrio dinâmico, o que implica
maior ou menor grau de regressão. Com essas variações no nível de
regressão, há alterações correspondentes na natureza do conflito e
dos mecanismos utilizados para manter o equilíbrio, na razão entre
os pensamentos do processo primário e secundário e no exame da
realidade.
109
Em outras palavras, há indivíduos que, às vezes, cedem aos mais
graves graus de regressão, a evidentes níveis psicóticos, mas que,
igualmente, são capazes de um retorno mais rápido do nível de
organização regressiva, que pacientes com psicose fixada ou
clássica. Há pessoas cuja capacidade para manter a adaptação em
níveis neuróticos é limitada e, em resposta a um stress de menor
intensidade relativa, sofrem grandes graus de regressão e passageira
formação de sintoma psicótico.
Outros pacientes, considerados dentro da categoria border-line,
jamais podem manifestar o estigma clínico e específico da psicose.
Mas são tão gravemente desadaptados, em virtude dos enérgicos
sintomas, perturbações nas relações de objeto, distorções na
autopercepção, falta de adaptação generalizada, que seu nível de
função está mais perto do psicótico que do neurótico.
F — PERTURBAÇÕES ORGÂNICAS
Qualquer processo orgânico que interfira na função cerebral
(tumor, infecção, traumatismo, intoxicação, distúrbio vascular, etc.)
pode produzir sintomas ou perturbações psicológicas. Os padrões
clínicos desses distúrbios mostram uma ampla variação, podendo
incluir intensificação dos sintomas anteriores ou dos traços de
caráter; desenvolvimento de novos sintomas neuróticos específicos;
de estados border-line ou, ainda, uma diversidade de fenômenos
psicóticos.
A interferência orgânica na função cerebral (qualquer que seja a
causa específica) tende a prejudicar processos tais como percepção,
memória, juízo, capacidade intelectual, etc., todas funções
componentes da estrutura psicológica do ego. Conseqüentemente, na
organização psíquica, as funções do ego são prejudicadas e aquele
nível anterior de integração psicológica não pode ser facilmente
mantido. Com essa ruptura do ego, os impulsos e os derivados,
anteriormente controlados, podem agora aflorar à consciência ou
serem mesmo liberados. Como na formação do sintoma, ocorre a
mesma seqüência de acontecimentos, com o ego incapacitado
procurando estabelecer novo equilíbrio psíquico.
O quadro clínico final das síndromes orgânicas provém, assim, do
grau e do índice de desenvolvimento da perturbação do ego
originada pelo processo orgânico, da natureza, da intensidade e da
organização dos impulsos e conflitos pré-mórbidos e do estado de
adaptação.
110
A etiologia
A evidência presente nos sugere que, em muitos estados
psicopatológicos, a etiologia principal é psicogênica. Existem
condições, contudo, em cuja etiologia estão mais notavelmente
implicados os fatores constitucionais e/ou orgânicos.
Por exemplo, grande número de dados acumulados sugerem que
fatores constitucionais, bioquímicos e/ou neurofisiológicos podem
desempenhar importante papel na etiologia da esquizofrenia e da
psicose maníaco-depressiva. E em distúrbios tais como a
enfermidade cérebro-vascular, várias intoxicações e infecções,
tumores cerebrais, epilepsia psicomotora, distúrbios endócrinos, etc.,
está bem determinada a presença de um fator etiológico orgânico.
Contudo, a compreensão total da origem, do significado e das
variações dos sintomas e das perturbações psicológicas, em tais
condições, não pode ser adquirida através do estudo de fatores
orgânicos isolados. Por exemplo, a mesma quantidade intoxicante de
álcool, ingerida por diferentes pessoas numa festa, originará
diferentes formas de conduta, tanto qualitativa quanto
quantitativamente.
Mesmo naquelas condições em que pode ser determinado um fator
orgânico, se faz necessário, para uma total compreensão, considerar
o desenvolvimento genético-psicológico do indivíduo, assim como o
presente nível dinâmico de integração psíquica. Ainda que,
finalmente, se prove o caráter etiológico de alguns fatores orgânicos,
sua influência sobre a psicologia e a conduta acontecerá através das
conseqüências no caminho definitivo do aparelho mental e no nível
de adaptação psicológica.
O conceito desenvolvido dos vários níveis regressivos de adaptação
psicológica, da teoria da função mental e da psicopatologia, torna
possível atribuir significado psicológico às manifestações
específicas da psicopatologia, não obstante a etiologia.
O índice de regressão
O quadro clínico apresentado sofrerá a influência do índice em que
ocorrer a regressão. Algumas vezes, há um processo de regressão
muito veloz no qual o indivíduo mostra haver desenvolvido agudo e
manifesto episódio psicótico. Outras vezes o índice de regressão é
muito mais lento, com regular descompensação dos mais avançados
níveis de integração. Muitas vezes, nesses casos, há reiteradas
tentativas para o estabelecimento de um equilíbrio dinâmico em
vários níveis, crescentemente regressivos, em razão de o equilíbrio
não poder ser mantido no nível mais avançado. Acontece com os
indivíduos nos quais a psicose é freqüentemente precedida por
formações de sintoma aparentemente neurótico ou pseu111
doneurótico, porém, quando fracassam estes mecanismos, o conflito
persiste e há uma regressão mais profunda. A observação clínica
indica que, naquelas situações em que a regressão ocorre
vagarosamente, o indivíduo tem maior oportunidade para examinar e
desenvolver outros mecanismos de compensação, enquanto nas
situações de descompensação psicológica aguda e rápida isto é
menos verdadeiro.
Oscilação da regressão
O conceito de níveis relativos de regressão permite também a
compreensão do fenômeno clínico no qual um paciente, ao ser
examinado várias vezes, é diagnosticado em diferentes categorias da
psicopatologia. O examinador, em cada período, está observando um
corte transversal de uma função psíquica, no nível particular de
regressão existente naquele momento. Esse nível de regressão pode
oscilar em qualquer direção, de maneira que, em cada ocasião, o
examinador pode ver um quadro clínico com diferenças expressivas.
Essas alterações no nível de regressão refletir-se-ão na natureza das
funções do ego e dos mecanismos de defesa utilizados no
estabelecimento do equilíbrio dinâmico, o que, por seu turno, produz
a alteração manifestada no quadro clínico.
No caso particular, contudo, há, geralmente, pontos de maior
fixação psicossexual para os quais o indivíduo tem tendência
especial a regredir durante a formação do sintoma, quando sujeito às
variadas oscilações no nível acima descrito. Por exemplo, se um
indivíduo manifestou, alguma vez, propensão à regressão para níveis
psicóticos, a probabilidade de regressão subseqüente, ao mesmo
nível, ao enfrentar o conflito ou stress, é maior do que no indivíduo
que apresenta condições de estabelecer um equilíbrio dinâmico
estável, ao nível de uma regressão neurótica. Reciprocamente, há
indivíduos cujas defesas do ego são tão rígidas e fixas (o caráter
obsessivo), que qualquer movimento regressivo vai de encontro a
esforços fortemente intensificados para manter a rígida estrutura
defensiva. A importância disso será elaborada no capítulo da
psicoterapia.
A neurose como meio de vida
Essas conceptualizações sobre a natureza e a origem dos sintomas
neuróticos e perturbações do caráter permitem a formulação
seguinte. Dado o desenvolvimento genético de determinado
indivíduo e dada a interação dinâmica transverso-seccional em
vigor, das forças intrapsíquicas e ambientais, seus sintomas
neuróticos e os traços de caráter (aqui usado no sentido mais amplo)
represen112
ta um método de adaptacão e um modo de vida. Não obstante o grau
consciente de restrição, falta de desempenho, perturbação e
sofrimento sintomáticos, essa adaptação representa o melhor e o
mais eficiente nível de integração e função a que o indivíduo pode
chegar por si próprio e, como tal, lhe é necessário para evitar
qualquer coisa que tenha concebido como situação maior de perigo,
ou que lhe possa causar maior ruptura e desadaptacão no nível de
adaptação e função. Em outras palavras, a despeito da angústia
consciente, o estado psicopatológico atua como uma função
inconsciente para o indivíduo.
Além disso, dentro das unidades maiores que o próprio indivíduos,
tais como família, trabalho ou grupos sociais, haverá uma
diversidade de integrações e adaptações grupais baseadas na
interação dinâmica entre os indivíduos que as compõem.
Como já foi descrito, cada indivíduo explora seu meio ambiente e
procura relações com objetos úteis, seja para a satisfação dos
impulsos intrapsíquicos, seja para reforçar as defesas contra tais
impulsos. Portanto, os estados de adaptação entre os indivíduos e
dentro dos grupos podem estar baseados em forças e fatores
neuróticos inconscientes, quando então o grupo todo procurará
manter a adaptação resultante da interação das forças representadas
pelos indivíduos que o compõem. A identificação desta interação
dinâmica de forças entre os membros da família e o impacto que
uma alteração maior num dos membros poderá causar na estrutura
familiar levaram ao desenvolvimento da terapia familiar. Nesta, a
família como um todo, e não como um ou mais membros isolados,
compõe a unidade para o tratamento e as interações do seu interior
são o principal foco de atenção. Contudo, deve ser relembrado que
estas interações são, também, uma função das várias forças
psíquicas no íntimo de cada membro da família.
Quando essas interações se entrosam e são mutuamente
complementares, a estrutura do grupo será acentuada, a adaptação
grupal será mantida e, a despeito de maiores sintomas neuróticos ou
de padrões de comportamento, a vida grupal subsiste.
Reciprocamente, se os membros de um grupo têm as mesmas
necessidades neuróticas, cada um procurando pelas mesmas
gratificações inconscientes, ou se os modelos de personalidade não
se complementam, o grupo tende a desintegrar-se, cada um
procurando encontrar essas gratificações fora do grupo.
Os seguintes exemplos clínicos ilustram esses casos. Uma mulher
passiva, dependente, submissa e depressiva esteve casada, durante
40 anos, com um homem violento que a dominava e controlava. Ela
queixava-se amargamente daquele comportamento e de sua
infelicidade, porém, depois da morte do marido, sentia-se
desamparada, incapaz de tomar decisões, necessitando depender de
alguém. Um ano depois, tornou a casar-se com um homem
dominador, passando novamente a queixar-se do comportamento do
companheiro.
113
Um alcoólatra, com intenso conflito acerca de confinação e
retraimento emocional, era casado com uma mulher competitiva,
histérica e violentamente agressiva. O homem queixava-se da
esposa, dizendo que ela tornava impossível para ele sentir ou
demonstrar amor. Contudo, quando, às vezes, a esposa se mostrava
terna, carinhosa, ou lhe dava apoio, provocava deliberadamente uma
briga e, então, voltava a queixar-se de sua hostilidade. A esposa o
criticava por beber e por não conseguir manter um emprego, mas,
em seus períodos de sobriedade e de trabalho, se tornava muito
ansiosa, zangada e provocativa, ajudando-o, eventualmente, a se
precipitar outra vez no alcoolismo. Durante o período de alcoolismo
agudo, ela se mostrava terna, preocupada e o apoiava, depois voltava
a ser depreciativamente hostil e o ciclo tornava a repetir-se.
Uma mulher masoquista, com um filho, era casada com um homem
que bebia, espancava-a, trazia a amante à sua casa, nunca a
convidava para sair, etc. Esta mulher resolveu manter o casamento
por causa do filho, mas divorciar-se assim que este fosse mais velho.
Depois que o filho casou, divorciou-se, mas, enquanto esperava pela
sentença, desenvolveu forte depressão, ansiedade, múltipla
conversão de sintomas, manifestando muitos impulsos suicidas. Dez
dias depois da sentença do divórcio, tornou a casar-se com o mesmo
homem e seus sintomas subjetivos diminuíram rapidamente.
Uma mulher obsessivo-compulsiva sentia ansiedade tão intensa a
respeito de sujeiras e contaminação que obrigava a família a trocar
toda roupa assim que chegasse em casa; a casa era dividida em
zonas limpas e sujas e a ninguém era permitido passar de uma zona
para outra sem lavar-se. Conseqüentemente, não podiam receber
hóspedes nem amigos em casa. Seu marido e seus filhos sentiam-se
tão preocupados e culpados pelo seu sofrimento que aceitaram este
modo de vida por muitos anos, até o Bar Mitzvah do filho mais
moço. Para este acontecimento, o marido insistiu que seus parentes
fossem convidados à sua casa depois da cerimônia. Isto fez com que
aumentassem tanto os sintomas da esposa, que a família, finalmente,
procurou auxílio psiquiátrico.
Contrastando com estes exemplos, uma jovem, razoavelmente
amadurecida, responsável e eficiente, casou com um homem
aparentemente sadio que conhecera dois anos antes. Depois de seis
meses, o homem tornou-se desinteressado pelas relações sexuais e
emocionalmente distanciado. Passou a dispender cada vez mais
tempo fora de casa, recusando-se a participar de atividades mútuas e
demonstrando claramente seu desejo de não ter casado. A esposa
tentou, durante dois anos, discutir os problemas, e sugeria
aconselhamento ou terapia familiar, mas o marido recusava. Ela não
queria aceitar este tipo de casamento e as defesas
114
do marido eram provocadas pelas expectativas da esposa. Decidiu
então divorciar-se e a relacão terminou.
Nos relacionamentos interpessoais ou familiares, qualquer
alteração num dos membros pode causar impacto nos outros, numa
variedade de modos, quer positiva quer negativamente. Isto
influenciará a estabilidade e o equilíbrio da estrutura global, do
mesmo modo que a oscilação do equilíbrio intrapsíquico individual
é como uma resposta à alteração de qualquer das forças
componentes.
A importância disso poderá ser ilustrada no capítulo sobre
psicoterapia, já que uma mudança do indivíduo em resposta ao
tratamento psiquiátrico pode alterar de modo significativo o
equilíbrio dinâmico do grupo do qual faz parte, provocando o apoio
ou a oposição dos outros membros, dependendo da natureza do
equilíbrio grupal pré-existente.
Leitura sugerida
ARIETI, Silvano (1967). The lntra-Psychic Self: Feeling, Cognition,
and Creativity in Health and Mental illness, Basic Books mc, Nova
Iorque.
EIDELBERG, Ludwig (1954). A Comparative Pathology of the
Neuroses. International Universities Press Inc, Nova Iorque.
GRINKER, Roy R. et al. (1968). The Borderline Syndrome. Basic
Books Inc, Nova Iorque.
MENNINGER, Kari A. (1959). Towards a Unitary Concept of
Mental illness —A Psychiatrist’s World. The Viking Press, Nova
Iorque.
- (1962). A Manual for Psychiatry Case Study. Menninger Clinic
Monograph Series No. 8. Grune & Stratton, Nova Iorque.
RANGELL, Leo (1965). ‘Some comments on psychoanalytic
nosology with recommendations for improvement”. In: Drives,
Affects, and Behavior, ed. Schur, Max. International Universities
Press mc, Nova lorque.
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