Universidade de São Paulo Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto Programa de Pós-Graduação em Imunologia Básica e Aplicada Autores: Daiani Cristina Cilião Alves e Taíse Natali Landgraf Imunidade Adaptativa Humoral A imunidade adaptativa humoral tem como principal molécula efetora o anticorpo. Em uma infecção, o antígeno é transportado pela via linfática para o linfonodo, e linfócitos B vindos da circulação ou residentes nos linfonodos reconhecem o antígeno, na forma solúvel ou não, através do seu receptor de célula B (B Cell Receptor-BCR). Dessa forma, os linfócitos B são ativados transformando-se em plasmócitos capazes de secretar anticorpos que entram na circulação até encontrar o local de infecção e exercer suas funções efetoras. 1. Estrutura do Anticorpo Conhecer a estrutura do anticorpo é muito importante para estudarmos sua formação e funções. O anticorpo é composto por duas cadeias pesadas idênticas e duas cadeias leves idênticas. As cadeias pesadas são unidas entre si e unidas às cadeias leves por ligações dissulfeto. As cadeias leves e pesadas têm uma porção constante e uma porção variável. A porção variável apresenta o sítio de ligação ao antígeno, contendo ainda regiões hipervariáveis denominadas Regiões Determinantes de Complementariedade-1 (CDR-1), CDR-2 e CDR3, responsáveis pelas regiões de maior diversidade e especificidade de reconhecimento do antígeno. A porção constante do anticorpo contém o fragmento Fc (Fragment crystallizable) responsável pelas funções diferentes dos isotipos IgM, IgD, IgG, IgA e IgE. O fragmento Fc liga-se a receptores Fc existentes em diversas células do sistema imune e em plaquetas. O fragmento Fab (Fragment antigen binding) contém o domínio de imunoglobulina variável (V) da cadeia leve e pesada (já descrito como responsável pela ligação ao antígeno) e um domínio constante adjacente. Alguns isotipos de imunoglobulina apresentam ainda subclasses como a IgA (IgA1 e IgA2) e IgG (IgG1 a IgG4) e podem ser monoméricas (IgG, IgD, IgA e IgE), dimérica (IgA) ou pentamérica (IgM) (Figura 1). Figura 1: A estrutura e os isotipos de anticorpos. Sítio de ligação ao antigeno Cadeia pesada N Cadeia leve N N N vh vL CH1 CL Região Fab Dobradiça Receptor de Fc / sítio de ligação do complemento CH2 Região Fc CH3 Ligação dissulfeto Peça caudal N IgG C Domínio de imunoglobulina N vh N C N N N N IgA CL N N CL CL N vL CH3 C2 CH 3 CH2 N CH3 CH4 CH 4 C N C vh Cadeia J vL C N N C vh CL CH3 CH2 CC C Cμ 1 C C C C C C C C C C C CL CH 3 C CH 4 C C CH4 Cμ 1 Cadeia J CH3 CH 4 N CH 3 N C2 C2 Cμ 1 CL CL CH1 CL CH4 C C N N vL vh vh vL Cμ1 vL N N C C N N N vL N CH3 vh C2 C2 N CH2 CH 4 CH 3 CL N vL CH1 C C C C N N C C C IgE N C2 Cμ 1 CL C N vL vh N CH1 CH3 N N vh Cμ1 vL vh CH2 C Ig M N N vL CH1 N N vh N N N 2. Maturação da célula B As células B são produzidas a partir de células tronco precursoras da medula óssea. Durante a fase fetal, o fígado faz a função de maturação das células B até que a medula óssea seja formada, sendo esses órgãos caracterizados como órgãos linfóides primários. Dessa forma, a célula B apresenta as seguintes fases de maturação na medula óssea: célula tronco precursora, célula pró-B, célula pré-B, e célula B imatura; e na periferia: célula B madura, plasmócito e célula de memória (Figura 2). Figura 2: Maturação da célula B e imunodeficiências relacionadas. Periferia Medula óssea Pré-BCR RAG 1/2 IgM-BCR IgM IgM-BCR BTK IgE IgA IgG IgA IgD CD40L CVID Plasmócito IgD-BCR B Célula tronco Célula pró-B Recombinação somática da cadeia pesada Célula pré-B Célula B imatura Recombinação somática da cadeia leve Seleção negativa Adição de nucleotídios Edição do receptor Ausência de antígenos Célula B madura Interação com célula T Troca de isotipo Célula B memória Hipermutação somática Antígenos próprios Antígenos estranhos Em amarelo, eventos da maturação da célula B e em verde, imunodeficiências (vide texto). Abreviações: BCR- receptor de célula B; BTK-tirosina kinase de Brutton; Ig-imunoglobulina; CVID- imunodeficiência variável comum. A célula tronco precursora dá origem a todas as células hematopoéticas mielóides e linfóides através de estímulos de fatores de crescimento. A célula B é da linhagem linfóide e durante a maturação da célula pró-B e pré-B ocorre o processo de recombinação somática, em que as enzimas RAG 1 e 2 (proteínas gênicas ativadoras da recombinase) promovem o rearranjo dos segmentos gênicos variáveis (V), de junção (J), de diversidade (D) e constantes (C) para formação da cadeia pesada do receptor de célula B (BCR) e dos segmentos V, J e C para formação da cadeia leve, formando assim o BCR IgM, que é expresso na célula B imatura. A recombinação somática representa o mecanismo responsável pela formação da diversidade de BCR e anticorpos, que passa ainda por um processo de adição de nucleotídeos entre a junção dos segmentos V-D ou D-J, podendo, dessa forma, apresentar aproximadamente 1011 tipos diferentes de anticorpos, que não seria possível se esses segmentos gênicos não fossem rearranjados, pois temos somente 4x104 genes no genoma humano (Figura 3). Na fase de diferenciação de célula pró-B para pré-B e de pré-B para imatura, caso ocorram defeitos gênicos da enzima RAG 1/2, o individuo poderá ser acometido por uma imunodeficiência, denominada imunodeficiência combinada grave (IDCG) (T e B), que leva à redução dos números de células B e T e consequente redução do número de anticorpos. Mutações da enzima tirosina kinase de Brutton (BTK), responsável pela formação da célula B imatura, acarreta a agamaglobulinemia ligada ao X, caracterizada por baixos níveis séricos de anticorpos e células B (Figura 2). Figura 3: recombinação somática das cadeias leves e pesadas para formação do BCR e anticorpos. Cadeia leve (Lκ e Lλ) Cadeia pesada (H) V = 51 V1 V2 D = 27 J=6 D1-n Vn κ J1-n V = 40 C1-n (μ,δ,γ,ε,α) J1-n C1-n (μ,δ,γ,ε,α) 5´ Cromossomo 14 J=5 V1 V2 Vn 3´ 5´ 3´ Cromossomo 2 λ V = 30 J=4 C1-n (μ,δ,γ,ε,α) J1-n Recombinação somática (junção V-D-J) V1 RAG1/2 V2 Vn 3´ 5´ Cromossomo 22 Adição de nucleotídeos (entre V-D e D-J) TdT Recombinação somática (junção V-J), RAG1/2 DH1 JH1 VH1 5 ´ VHn VH2 3´ Nucleotídeos DH2 DH3 JH5 CμH1 CμH1 3´ 5´ Nucleotídeos Nucleotídeos JH2 CμH1 5´ 3´ Nucleotídeos Jκ1 Vκ1 Cμκ1 Jκ2 Vκ2 Cμκ1 5´ 3´ 5’ Jλ1 Vλ1 3´ 5 ´ Cμλ1 3´ VH1 DH1 Nucleotídeos JH1 Vκ1 VH1 DH1 JH1 Vκ1 Jκ1 Cμκ1 Jκ1 Cadeia leve Cμκ1 CμH1 CμH1 Cadeia pesada IgM Durante a fase de célula B imatura ocorre importante processo de seleção negativa para que essas células não reajam contra antígenos próprios. Assim, se a interação com antígenos próprios ocorrer com baixa afinidade, dá-se sequência à maturação desse clone de linfócito B na periferia, se ocorrer interação com alta afinidade o linfócito B pode: a) tornar-se anérgico (não funcional), b) sofrer morte celular por apoptose, ou c) passar pelo processo de edição do receptor, ou seja, há reativação da RAG e recombinação dos segmentos gênicos V-J da cadeia leve do outro cromossomo. Dessa forma, a célula B imatura tem a chance de passar novamente pela seleção negativa. Se ocorrerem falhas durante a seleção negativa e esses antígenos próprios forem reconhecidos fortemente pelo BCR pode ocorrer doenças autoimunes (link Mecanismos de Escape de Tolerância Imunológica). A célula B madura, presente na periferia, co-expressa os BCR IgM e BCR IgD e é capaz de reconhecer o antígeno estranho, iniciando uma cascata de sinalização intracelular que leva à ativação de fatores de transcrição, responsáveis por uma série de eventos na célula B. Diferentemente das células T, as células B maduras reconhecem o antígeno estranho na sua forma solúvel e nativa, no sítio de infecção ou no linfonodo e, além de reconhecerem antígenos protéicos, reconhecem também antígenos não protéicos, como polissacarídeos, ácidos nucléicos e glicolipídios. A resposta de célula B a antígenos protéicos é dependente da interação com célula T que ocorre na interface entre a zona de célula B e zona de célula T do linfonodo. A ligação cruzada do antígeno ao BCR leva à endocitose e processamento do antígeno e à expressão de B7.1 (CD80) e B7.2 (CD86) na superfície da célula B. Ocorre o reconhecimento do peptídeo ligado ao MHC de classe II da célula B com o TCR da célula T, e do B7 da célula B com o CD28 da célula T, com consequente estimulação da expressão de CD40L (Ligante de CD40) pela célula T e secreção de citocinas. Ocorre dessa forma, a ativação da célula B pelas citocinas e interação do CD40 da célula B com o CD40L da célula T, responsável por promover proliferação e diferenciação das células B (Figura 4). Mutações no gene do CD40L na célula T leva à Síndrome de Hiper-IgM que é caracterizada por níveis séricos normais de IgD e elevados de IgM, com ausência dos outros isotipos de imunoglobulinas e número normal de células B e T (Figura 2). Figura 4: Interação da célula B com célula T Folículo primário B7 CD40 B7 BT Linfonodo CD28 CD40L CD28 TCR MHC II B7 CD40 TCR MHC II MHC II Citocinas As citocinas do microambiente são responsáveis pela troca de isotipo, que ocorre pelo processo de edição alternativa do segmento constante (C) Cμ, (responsável pela produção de IgM), por segmentos Cδ (IgD), Cγ (IgG), Cε (IgE) ou Cα (IgA). A célula B se diferencia em plasmócitos capaz de secretar anticorpos que através da circulação sanguínea chegam ao foco de infecção para exercer suas funções efetoras. Nessa fase, pode ocorrer doença de base genética desconhecida denominada imunodeficiência variável comum (CVID), caracterizada pela ausência da formação de plasmócitos. Podem ocorrer falhas na diferenciação de todos os isotipos de imunoglobulinas levando a imunodeficiências, como a deficiência de IgA e a de IgG (Figura 2). Os diferentes isotipos de imunoglobulina são distribuídos pelo organismo de acordo com sua função, IgG e IgM predominam no plasma, IgA dimérica predomina nas secreções mucosa e epitélios, incluindo o leite materno. IgE é encontrada principalmente associada com os mastócitos logo abaixo de superfícies epiteliais (especialmente do trato respiratório, trato gastrointestinal e pele). O feto recebe IgG da mãe por transporte transplacentário e o cérebro é normalmente desprovido de imunoglobulina. Outro evento que ocorre na célula B madura presente no linfonodo é a hipermutação somática. A célula B entra novamente em contato com o antígeno peptídico, seja na superfície de células dendríticas foliculares ou na forma solúvel, e sofre mutações nas regiões hipervariáveis da imunoglobulina (CDR-1, CDR-2 e CDR-3). Esse processo é responsável por gerar maior afinidade pelo antígeno e se as mutações gerarem menor afinidade, essas células B entram em apoptose. Durante a maturação da célula B ocorre a formação de células B de memória que permanecem após termino da resposta imune e que no caso de uma reinfecção têm características de resposta mais rápida, secreção de anticorpos de maior afinidade e de diferentes isotipos. A resposta da célula B a antígenos não protéicos é independente da interação com células T, podendo ocorrer ativação da célula B por duas formas distintas: a) ligação cruzada do antígeno em mais de um BCR ou b) o antígeno opsonizado pelo complemento é reconhecido simultaneamente pelo BCR e pelo receptor de complemento CR2, ambos expressos na membrana da célula B. A ativação da célula B independente de célula T leva à restrição em eventos de troca de isotipo (somente IgG), maturação por afinidade e formação de célula de memória. 3. Mecanismos de ação. Como os anticorpos protegem nosso corpo? Os anticorpos desempenham diversas funções efetoras: neutralização, opsonização, ativação do complemento e citotoxicidade celular dependente de anticorpo. Figura 5: Mecanismos de ação dos anticorpos Neutralização de Antigenos e toxinas Opsonização e fagocitose de microbios N K alvo Citotoxicidade celular dependente de anticorpo Ativação do complemento Neutralização: neutraliza toxinas bacterianas, agentes virais, entre outros antígenos solúveis, o que impede a ligação desses antígenos a receptores específicos na superfície celular e, consequentemente, o processo infeccioso. Os principais isotipos que desempenham essa função são IgG1, IgG2, IgG3, IgG4 e IgA; Opsonização: os anticorpos ligam-se aos antígenos e suas porções Fc são reconhecidas pelos receptores Fc localizados na superfície de fagócitos. Esse complexo antígeno– anticorpo é endocitado e destruído nas vesículas endossômicas. IgG1 e IgG3 são as principais subclasses de IgG que opsonizam antígenos e facilitam a fagocitose; Ativação do complemento: alguns isotipos de anticorpos contêm um sítio de ligação ao complemento presente nos domínios de imunoglobulina CH2 (IgG) ou CH3 (IgM) que interage com as regiões globulares da molécula C1q do complemento, ativando-a (link Sistema do Complemento); Citotoxicidade celular dependente de anticorpo (ADCC, do inglês Antibody-Dependent Cell-Mediated Cytotoxicity): Esse mecanismo consiste na interação da porção Fc do anticorpo ligado à célula alvo (pela porção Fab) com o receptor Fc da célula efetora (eosinófilos, mastócitos e células NK) e liberação de grânulos que causam a lise das células alvo. Os isotipos que desempenham essa função são principalmente as subclasses de IgG1 e IgG3, que se ligam a receptores Fc das células Natural Killer, e IgE, que se ligam a receptores dos mastócitos e IgG e IgA em receptores de eosinófilos. 4. Regulação Após eliminação do antígeno, as respostas imunes necessitam ser finalizadas para que não ocorram danos ao organismo causados por resposta imune exacerbada, de forma que seja recuperada a homeostase. A própria ausência do estimulo antigênico leva ao processo de apoptose. No caso da resposta imune humoral, ocorre mecanismo de regulação negativa de anticorpos, que consiste na ligação de complexos antígeno–anticorpos a receptores Fc localizados na superfície dos linfócitos B, gerando sinais negativos, impedindo a ativação desses linfócitos. 5. Implicações clínicas Acerca da imunidade adaptativa humoral, são relatadas diversas imunodeficiências, diagnosticadas especialmente entre 5 a 7 meses de idade, algumas em crianças maiores ou na idade adulta. As principais manifestações dessas imunodeficiências incluem infecções recorrentes, principalmente, por patógenos como Streptococcus, Staphylococcus, Haemophilus, Campylobacter, Enterovirus e Giardia, e ainda, outras alterações como autoimunidade, linfomas, timoma, poliomielite pós-vacinação. As imunodeficiências mais importantes relacionadas ao sistema imune humoral estão representadas na tabela abaixo. Tabela 1: Imunodeficiências da resposta imune humoral Deficiências Imunodeficiência Combinada Grave (IDCG) (T-B-) Agamaglobulinemia ligada ao X Síndrome de Hiper-IgM Deficiência de IgA Deficiência de IgG Imunodeficiência variável comum (CVID) Ig sérica Linfócito B Linfócito T Defeito ↓ ↓ ↓ Defeitos da RAG 1/2 ↓ ↓ - Mutações da BTK Normal Normal IgM e IgD ↑ ou normal ↓ ou ausência ↓ ou ausência de subclases Variável Mutações no gene do CD40L Normal Diferenciação isotipica Normal Diferenciação isotipica Normal ou ↓ - Desconhecido Referências: Abbas, A. K.; Lichtman, A. H. Imunologia celular e molecular, 6a ed. Rio de Janeiro. Elsevier, 2008. Voltarelli, J.C.; Donadi, E.A.; de Carvalho, I.F.; Arruda, L.K.; Louzada Jr., P.; Sarti, W. Imunologia Clínica na Prática Médica, 1ª ed. São Paulo. Editora Atheneu, 2009. Charlotte Cunningham-Rundles and Prashant P. Ponda. Molecular defects in T and B cell primary immunodeficiency diseases. Nature reviews immunology