universidade federal do rio grande do norte centro de

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM
VANESSA FABÍOLA SILVA DE FARIA
MINHA VOZ, TUA VOZ, NOSSAS VOZES:
UMA ANÁLISE DA RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA EM ARTIGOS
ACADÊMICOS/ CIENTÍFICOS
Natal/RN
2015
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM
VANESSA FABÍOLA SILVA DE FARIA
MINHA VOZ, TUA VOZ, NOSSAS VOZES:
UMA ANÁLISE DA RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA EM ARTIGOS
ACADÊMICOS/ CIENTÍFICOS
Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em
Estudos da Linguagem, Centro de Ciências Humanas,
Letras e Artes da Universidade Federal do Rio Grande
Norte como requisito parcial para a obtenção do título de
doutor.
Linha de Pesquisa: Estudos Linguísticos do Texto
Área: Linguística
Orientadora: Profª Drª Maria das Graças S. Rodrigues
Natal /RN
2015.
VANESSA FABÍOLA SILVA DE FARIA
MINHA VOZ, TUA VOZ, NOSSAS VOZES: UMA ANÁLISE DA RESPONSABILIDADE
ENUNCIATIVA EM ARTIGOS ACADÊMICOS/ CIENTÍFICOS
FOLHA DE APROVAÇÃO
Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem, Centro de Ciências
Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Rio Grande Norte como requisito parcial
para a obtenção do título de doutor. Linha de Pesquisa: Estudos Linguísticos do Texto
Data da sessão de defesa e arguição: 14 de dezembro de 2015.
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________
Profª Drª Maria das Graças Soares Rodrigues – UFRN
Orientadora – Presidente
______________________________________________
Profª Drª Josilete Alves Moreira de Azevedo – UFRN
Examinador Interno
______________________________________________
Profª Drª Sulemi Campos Fabiano – UFRN
Examinador Interno
______________________________________________
Prof. Dr. Francisco Alves Filho - UFPI
Examinador Externo
______________________________________________
Profª Drª Maria Eduarda Giering – UNISINOS
Examinador Externo
Seção de Informação e Referência
Catalogação da Publicação na Fonte. UFRN / Biblioteca Central Zila Mamede
Faria, Vanessa Fabíola Silva de.
Minha voz, tua voz, nossas vozes: uma análise da responsabilidade enunciativa em
artigos acadêmicos / científicos / Vanessa Fabíola Silva de Faria. - Natal, 2015.
260 f. : il.
Orientadora: Drª Maria das Graças Soares Rodrigues.
Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências
Humanas Letras e Arte – Departamento de Letras. Programa de Pós-graduação em
Estudos da Linguagem.
1. Responsabilidade Enunciativa - Tese. 2. Ponto de Vista - Tese. 3. Posturas
Enunciativas - Tese. 4. Gênero Discursivo/Textual Artigo Científico - Tese. I. Rodrigues,
Maria das Graças S. II. Título.
RN/UF/BCZM
CDU 81’42
À minha mãe, que já não sabe mais quem ela ela é, mas me fazia
lembrar de quem eu deveria ser, sempre. À melhor parte de mim, ontem,
hoje e amanhã: à minha mãe e ao meu pai. Aos meus filhos. Às minhas
irmãs e irmãos. Porque só vocês poderiam fazer de mim o que sou. Com
vocês e por vocês a vida foi muito mais leve e fácil de ser vivida. Porque
só vocês poderiam ver o que há de melhor em mim e me ajudaram,
desde sempre, a trazê-lo à tona.
AGRADECIMENTOS
Agradeço, em primeiro lugar, e muito especialmente, a minha orientadora, profª Drª
Graça Soares Rodrigues, que sem saber quem eu era, de onde vinha e quais frutos eu poderia
ofertar, aceitou-me graciosamente, e tão pacientemente como graciosamente deu-me a
liberdade necessária para eu descobrir meus caminhos, enfrentar meus embates, descobrir
aonde os caminhos da pesquisa poderiam me levar. Comparo sua atuação à conduta da mãe
amorosa, preocupada, mas não sufocante: o filho pode sair e voltar na hora em que quiser, ela
dá este espaço, mas fica, de longe, vigiando, para ter certeza de que o filho não está tropeçando,
e ao menor sinal de tropeço, o socorro estará ao alcance das mãos.
Aos professores drs. Neide Luzia de Rezende e Valdir Heitor Barzotto, orientadora do
mestrado e professor da licenciatura, por me ensinarem os primeiros caminhos das pedras, pela
trajetória na atividade de pesquisa, meu muito obrigada. Aos professores drs. João Gomes da
Silva Neto e Luiz Passeggi, por toda a contribuição, tanto nas disciplinas quanto nos encontros
de comunicação de pesquisa: não tenho como lhes agradecer. Ao professor dr. Clemilton
Pinheiro, porque sempre tinha um conselho e um ponto de vista crítico, às vezes ácido, mas
necessário para que essa pesquisa tomasse o rumo que tomou, meu muito obrigada. À
professora Sulemi Fabiano Campos, por toda a generosidade demonstrada nestes anos de
amizade, pelos aconselhamentos, pelas contribuições inestimáveis na banca de qualificação:
nenhum “muito obrigada” neste mundo poderá traduzir adequadamente minha gratidão.
À Pró Reitoria de Pós Graduação e Pesquisas da UNEMAT, pelo afastamento
remunerado que me permitiu o tempo necessário para “digerir” os elementos básicos desta
pesquisa. Aos colegas professores do departamento de Letras da UNEMAT – campus de Pontes
e Lacerda, pela amizade, companheirismo e apoio: meu muito obrigada.
Aos colegas do grupo da ATD (Análise Textual do Discurso), foram tantos os risos, as
angústias, as conquistas, ficaram todos gravados na memória, bem como a certeza de que eu
não chegaria até aqui sem vocês. Pretendo nomeá-los, sei que corro o risco de a memória não
me ajudar e, por isso, ser injusta, deixando escapar alguém. Se acaso acontecer, me perdoem,
amigos, a tarefa, uma vez findada, esgotou-me as energias: Aloma Farias, que adotei como
minha “afilhada”, amiga inseparável de apresentações em seminários e congressos, parceira de
toda a produção deste período, muito obrigada, amiga. Lidemberg, André Felipe, Alyanne
Chacon, Vitória Lourenço, Adriana Jales, Rosângela Bernardino, Emiliana, Angélica, Socorro
e Fátima: amigas e amigos, o apoio de vocês em vários momentos foi de um valor inestimável,
meu muito obrigada! E, não poderia deixar de mencionar, Silvestre Martins, o amigo que não
relativizava (piada particular): amigo, sua contribuição vai muito além das páginas escritas
nesta tese. Nossa amizade é para a vida toda.
Aos meus familiares, que há anos não sabem o que é gozar de minha presença por inteiro.
Estou pela metade com pessoas que sempre se doaram por inteiro para mim. Agora, amados,
que eu cheguei até aqui, preciso reconhecer que muito desta trajetória só foi possível por todo
amor, amparo e sustentação que vocês me ofertaram: aos meus pais, Erasto e Glória; aos meus
filhos Victor, Fernando e Raphaela; às minhas irmãs, Fátima e Marta, aos irmãos, Fábio e
Júnior; ao meu esposo, Yuri; ao meu sogro e pai de santo Haroldo Fraga, aos meus amigos
todos (encarnados ou não): vocês podem ter certeza que também não existe no dicionário
palavra alguma que possa contemplar a enormidade do sentimento de gratidão e amor que nutro
por vocês.
Aos meus alunos, fonte de inspiração e motivação para o aprimoramento da minha
formação. Aprendo muito com vocês a cada semestre e por isso mesmo agradeço-lhes
imensamente.
À UFRN e ao PPGEL, instituição escolhida para coroar, com êxito, mais um nível na
minha trajetória profissional, pelo acolhimento e formação proporcionada: muito obrigada.
A todos que me apoiaram e a quem mais, por ventura, não foi nomeado neste longo texto
de agradecimento, muito obrigada!
Le rituel socio-langagier de la communication
académique
supposerait
qu’on
sache
distinguer strictement un matériau d’analyse,
l’infratexte et un jeu de références théoriques,
l’intertexte, pour en dégager des égotextes (...)
(JEANNERET, Y.,2004, p.6)
RESUMO
“Minha voz, tua voz, nossas vozes: a responsabilidade enunciativa em artigos
acadêmicos/científicos” apresenta os resultados da pesquisa cujo objetivo é investigar como se
materializa a Responsabilidade Enunciativa (RE) em textos do gênero discursivo/textual
acadêmico artigo científico, compreendendo as etapas de descrição, análise e interpretação de
um conjunto de sessenta textos de autores de variados níveis de experiência na esfera acadêmica
para responder à seguinte pergunta de pesquisa: quais as características da RE que diferenciaria
a escrita de autores variados níveis de experiência na escrita acadêmica? O estudo da RE, nesses
textos, restringiu-se à seção normalmente designada como Referencial Teórico (ou suas
variantes “Quadro Teórico” e “Marco Teórico”) por se considerar que é nesta seção em que
mais facilmente se detecta o diálogo com outras vozes. A mobilização do discurso outro,
evidenciada, sobretudo, na não assunção da RE, é uma das características do artigo científico e
desperta interesse por causa de sua inserção num campo mais amplo, o da polifonia, levantando
questões muito pertinentes tanto para a análise de textos acadêmicos quanto para a didática da
escrita desses textos descrevendo, por exemplo, como a voz autoral se posiciona perante outras
vozes mobilizadas em seus textos, ou ainda sobre como a RE pode evidenciar o posicionamento
desses autores enquanto autores científicos. Trata-se de um estudo bibliográfico documental,
de cunho interpretativista e qualitativo que elegeu três categorias de análise: as diferentes
representações da fala, os indicadores de quadro mediador e as indicações de um suporte de
percepção e pensamentos relatados. A perspectiva teórica deste trabalho se ancora,
principalmente, nos postulados teóricos da ATD (Análise Textual dos Discursos), mas também
mobiliza aportes teóricos de considerável importância advindos dos estudos dos gêneros
discursivos/textuais bem como dos estudos enunciativo-discursivos, especialmente as
considerações rabatelianas acerca das noções locutor/ enunciador, ponto de vista, PEC e
imputação, apagamento enunciativo, posicionamentos e posturas enunciativas. Os resultados
demonstram que a ocorrência de zonas textuais que podem ser atribuídas a um outro enunciador
(e2) não é exclusiva em textos de autores iniciantes, ocorrendo tanto em textos de iniciantes
quanto em textos de autores experientes, embora a distribuição das ocorrências seja desigual
nos textos estudados. Neste aspecto, contribuiu, efetivamente, a noção rabateliana de
sobrenunciação, subenunciação e co-enunciação como aspectos de diferenciação na escrita de
autores de diferentes níveis de experiência: a construção do PDV baseada na sobrenunciação
parece predominar na escrita dos autores de reconhecida expertise, em que a voz autoral se
sobrepõe às demais e domina o jogo enunciativo, à despeito do recurso a outras vozes, inclusive
por meio de indicadores de quadros mediadores. Tomando-se a responsabilidade enunciativa
como decorrência de um fenômeno localizado num nível mais abrangente que o do enunciado,
que engloba o texto como um todo e suas diversas operações enunciativas, admite-se, por
conseguinte, a possibilidade de haver responsabilidade enunciativa mesmo diante de recursos
às vozes alheias e o apoio em indicadores de quadro mediativo. A RE seria redimensionada
para um comportamento discursivo ligado à ética e à moral que parece transcender a dimensão
do enunciado e afeta o posicionamento do autor no nível discursivo, resultando, no todo, como
um texto mais engajado do que outros pareceriam, por meio de mecanismos de construção do
PDV.
Palavras-chave: Responsabilidade Enunciativa, Ponto de Vista, Posturas Enunciativas, Gênero
Discursivo/Textual Artigo Científico
ABSTRACT
“My voice, your voice, our voices: enunciative committment in academic/scientific articles”
presents research results from a study that investigates how Enunciative Commitment (EC) in
academic scientific articles functions, with regard to the stages of description, analysis and
interpretation in a set of sixty texts by authors with varying levels of experience in academic
fields. The study aims to answer the following research questions: which characteristics of EC
differentiate the writing of authors with varying levels of experience in academic writing; if the
study of EC restricted to the section normally designated as Theoretical References (or variants,
Theoretical Framework and Theoretical Mark) since detecting dialogue with other voices is
easily noted in this section. The mobilization of the other’s discourse, evidenced, moreover, in
the non-assumption of EC, is one of the characteristics of scientific articles, piquing interest as
it pertains to the broader field of polyphony. These characteristics raise pertinent questions in
the analysis of academic texts and didactic writing of these texts describing, for example, how
the authorial voice is positioned with regard to other voices mobilized in the texts, or even about
how EC can evidence the positioning of these authors as ‘scientific’ authors. The study is
characterized as bibliographic research, interpretavist and qualitative, which adopts three
categories of analysis: different representations of speech, mediator profile indicators, and
indicators of the basis of perception and related thought. The theoretical perspective of this
work is based primarily on the theoretical precepts of Textual Discourse Analysis (TDA). It
also relies on theoretical support from considerably important theories, developed in
discursive/textual genre studies, as well as enunciative-discursive studies, especially the
rabatelian notions of loucutor/enunciator (e2), which is not exclusive to texts written by novice
authors, point of view (POV), PEC, and imputation, enunciative erasure, enunciative
positioning and posturing. The results demonstrate that the occurrence of textual zones that can
be attributed to another enunciator (e2) is not exclusive in texts by novice authors, occurring
both in texts by beginning and experienced authors, although distribution of the instances are
not the same in the texts studied. From this perspective, the rabatelian notion of overenunciation, sub-enunciation and co-enunciation, related to aspects of differentiation in the
writing of authors who have different levels of experience, contributed significantly. The
development of the POV based on over-enunciation seems to predominate in the writing of
authors recognized for their expertise, in which the authorial voice overlays the others and
dominates the enunciative play, to the exclusion of other voices, including through indicators
of mediating frameworks. Assuming the EC as a consequence of the localized phenomenon on
a level broader than the utterance, which considers the text in its entirety, and its various
enunciative operations, admitting, subsequently, the possibility of having enunciative
committment even when faced with the resources of arbitrary voices, and the support of
mediating indicators. The EC, re-dimensioned for a discursive behavior linked to the ethics and
morals that seem to transcend the dimension of the utterance and affects the positioning of the
author on the level of discourse. The result, overall, is a text that is more engaged and affects
the positiong of the author on the level of discourse, resulting in, how a text that is more engaged
than the others, seems to achieve this through the mechanisms of developing POV.
Keywords: Enunciative Committment, Point of View, Enunciative Posturing, Discursive
/Textual Genre Scientifc Article.
RESUMEN
Mi voz, tu voz, nuestras voces: la responsabilidad enunciativa en artículos académicos/
científicos " presenta los resultados de la investigación dirigida a la questión de cómo se
materializa la Responsabilidad Enunciativa (RE) en textos del género discursivo académico/
científico, que comprende las etapas de descripción, análisis e interpretación de un conjunto de
sesenta textos de autores de diferentes niveles de experiencia en el ámbito académico para
responder a la siguiente pregunta de investigación: ¿cuáles son las características que
diferencian la RE em textos de autores de variados niveles de experiencia en la escritura
académica? El estudio de la RE, en estos textos, se restringe a la sección usualmente conocida
como Marco Teórico (o sus variantes "Marco teórico" y "Encuadre teórico") porque se
considera que en esta sección el diálogo entre las vocês es detectado más fácilmente La
movilización del discurso otro, se evidencia sobre todo en no tomar la RE, es una de las
características del artículo científico y despierta interés debido a su inclusión en un campo más
amplio, la polifonía, planteandose cuestiones muy relevantes tanto para el análisis de textos
académicos cómo para la enseñanza de la escritura de estos textos que describen, por ejemplo,
como la voz del autor se posiciona hacia otras voces movilizadas en sus textos, o acerca de
cómo la RE puede mostrar la posición de estos autores como autores científicos. Se comprende
un estudio bibliográfico documental de carácter interpretativo y cualitativo que eligió a tres
categorías de análisis: las diferentes representaciones del discurso otro, indicaciones del cuadro
mediador y las indicaciones de un percepcion y pensamentos reportados. La perspectiva teórica
de este trabajo está anclado, principalmente, en los postulados teóricos de ATD (Análisis
Textual de los Discursos), pero también moviliza contribuciones teóricas de importancia
considerable que surgen de los estudios de los géneros discursivos / textual, así como los
estudios de casos y enunciativas discursiva, especialmente rabatelianas consideraciones acerca
de las nociones de locutor / enunciador, punto de vista, PEC y la imputación, el borrado
enunciativo, posiciones y posturas enunciativas. Los resultados muestran que haber áreas del
texto que se pueden asignar a otro enunciador (e2) no es exclusividad de los autores jovenes,
pues son encontradas tanto en textos de principiantes como en textos de especialistas juniores
y seniores, aunque la distribución de ocurrencias sea desigual en los textos estudiados. Ha
contribuido la noción rabateliana de sobrenunciacion, subenunciacion y co-enunciación como
forma de diferenciar los aspectos en los escritos de autores de diferentes niveles de experiencia:
la construcción del punto de vista basado en sobrenunciacion parece predominar en la escritura
de autores reconocidamente expertos, en que la voz del autor se superpone a la otra y domina
el juego de la enunciación, a pesar del uso de otras voces, incluso a través de cuadros
indicadores de mediadores. Tomando la responsabilidad enunciativa como resultado de un
fenómeno situado a un nivel más amplio que la enunciacion, que incluye el texto en su conjunto
y sus diversas operaciones enunciativas, se supone, por lo tanto la posibilidad haver la RE de
nivel enunciación misco incluso recursos a otras voces y el apoyo en los marcadores de cuadro
mediador. RE se cambia de tamaño para un comportamiento discursivo vinculado con la ética
y la moral que parece trascender el nível de la enunciacion y afectaria a la posición del autor en
el nivel discursivo, lo que resulta en su conjunto, como un texto más comprometido que otros
parecerían, a través de mecanismos construcción del PDV.
Palabras clave: Responsabilidad enunciativa, Punto de vista, posturas enunciativas, genéro
discursivo/textual artículo científico.
LISTA DE SIGLAS E ABREVIAÇÕES
PCC
Práticas como Componente Curricular
LOC
Locutor
ALOC
alocutário
L1/e1
Locutor/enunciador primeiro
E2
Enunciador segundo
ATD
Análise Textual dos Discursos
RE
Responsabilidade Enunciativa
DI
Discurso indireto
DIL
Discurso Indireto Livre
DD
Discurso Direto
DDL
Discurso Direto Livre
DN
Discurso Narrativizado
DR
Discurso Relatado
PEC
Prise en Charge
PDV
Ponto de Vista
LISTA DE QUADROS
QUADRO 1- SÍNTESE DAS PROPOSTAS DE ABORDAGEM ENUNCIATIVA E POLIFÔNICA (ADAPTADO DE RINCK, 2006)
...................................................................................................................................................................... 87
QUADRO 2- CARACTERIZAÇÃO DAS SEÇÕES SELECIONADAS NOS TEXTOS DO GRUPO AI ..................................... 114
QUADRO 3 - CARACTERIZAÇÃO DAS SEÇÕES SELECIONADAS NOS TEXTOS DO GRUPO AE ................................... 116
QUADRO 4 - CARACTERIZAÇÃO DAS SEÇÕES SELECIONADAS NOS TEXTOS DO GRUPO AEE................................. 117
QUADRO 5 - CATEGORIAS DE ANÁLISE E SUAS CORRESPONDENTES MARCAS LINGUÍSTICAS (PASSEGGI ET AL., 2010,
P.300-301) ................................................................................................................................................... 122
QUADRO 6 - DIFERENTES FORMAS DE REFERENCIAR VOZES EXTERNAS................................................................ 125
QUADRO 7- CONCEITOS CHAVE DA PESQUISA (RE E TERMOS AFINS) ................................................................... 129
QUADRO 8 - RE EM ARTIGOS DE AUTORES INICIANTES - ORDEM 5 ....................................................................... 132
QUADRO 9 - PERCENTUAL DAS FORMAS DE REPRESENTAÇÃO DO DISCURSO OUTRO / POR ARTIGO ....................... 134
QUADRO 10 - INDICATIVOS DE QUADROS MEDIADORES EM TEXTOS DE AUTORES INICIANTES .............................. 138
QUADRO 11 -ALGUNS EXEMPLOS DE MARCAS LINGUISTICAS EVIDENCIADORAS DE QUADRO MEDIADOR NOS
TEXTOS PRODUZIDOS POR AUTORES INICIANTES .......................................................................................... 139
QUADRO 12 - LEVANTAMENTO DE OCORRÊNCIA DE VERBOS DE ATRIBUIÇÃO DE FALA CATEGORIZADOS COMO
"NEUTROS" .................................................................................................................................................. 141
QUADRO 13 - OUTROS VERBOS DE ELOCUÇÃO EM TEXTOS DE AUTORES INICIANTES ............................................ 145
QUADRO 14 - SINTESE DA CATEGORIA "OUTROS VERBOS DE ELOCUÇÃO" - TEXTOS DE AUTORES INICIANTES...... 152
QUADRO 15 - INDICADORES DE UM SUPORTE DE PERCEPÇÃO E PENSAMENTOS RELATADOS – TEXTOS DE AUTORES
INICIANTES .................................................................................................................................................. 154
QUADRO 16 - DIFERENTES TIPOS DE REPRESENTAÇÃO DA FALA EM TEXTOS DE AUTORES ESPECIALISTAS - ......... 156
QUADRO 17 - INDICAÇÕES DE QUADROS MEDIADORES EM TEXTOS DE AUTORES ESPECIALISTAS ........................ 163
QUADRO 18 - VERBOS DE ATRIBUIÇÃO DE FALA EM TEXTOS DE AUTORES ESPECIALISTAS ................................... 167
QUADRO 19 - OCORRÊNCIA DE OUTROS VERBOS DE ATRIBUIÇÃO DA FALA EM ARTIGOS PRODUZIDOS POR AUTORES
EXPERIENTES ............................................................................................................................................... 170
QUADRO 20- CATEGORIZAÇÃO DOS OUTROS VERBOS DE ELOCUÇÃO EM TEXTOS DE AUTORES ESPECIALISTAS .... 178
QUADRO 21- INDICAÇÕES DE SUPORTE DE PERCEPÇÃO E PENSAMENTOS RELATADOS .......................................... 179
QUADRO 22- DIFERENTES TIPOS DE REPRESENTAÇÃO DA FALA EM TEXTOS DE AUTORES ESPECIALISTAS
RENOMADOS ................................................................................................................................................ 182
QUADRO 23 - INDICADORES DE QUADROS MEDIADORES EM TEXTOS DE AUTORES ESPECIALISTAS RENOMADOS .. 185
QUADRO 24 - VERBOS DE ATRIBUIÇÃO DE FALA EM TEXTOS DE AUTORES ESPECIALISTAS RENOMADOS .............. 188
QUADRO 25 - OUTROS VERBOS DE ELOCUÇÃO EM TEXTOS DE AUTORES ESPECIALISTAS RENOMADOS ................. 191
QUADRO 26 - CATEGORIZAÇÃO DOS OUTROS VERBOS DE ELOCUÇÃO EM TEXTOS DE AUTORES ESPECIALISTAS
RENOMADOS ................................................................................................................................................ 199
QUADRO 27 - INDICATIVOS DE SUPORTE DE PERCEPÇÕES E PENSAMENTOS RELATADOS EM TEXTOS DE AUTORES
ESPECIALISTAS RENOMADOS........................................................................................................................ 200
QUADRO 28 - COMPARATIVO DAS OCORRÊNCIAS DE DIFERENTES MODOS DE REPRESENTAÇÃO DA FALA NOS TRÊS
GRUPOS DE TEXTOS...................................................................................................................................... 203
QUADRO 29 - COMPARATIVO DAS OCORRÊNCIAS DE INDICADORES DE QUADROS MEDIADORES NOS TRÊS GRUPOS
DE TEXTOS ................................................................................................................................................... 209
QUADRO 30 - COMPARATIVO DA OCORRÊNCIA DE VERBOS DE ATRIBUIÇÃO DE FALA NOS TRÊS GRUPOS DE TEXTOS
.................................................................................................................................................................... 210
QUADRO 31 - COMPARATIVO DA OCORRÊNCIA DE OUTROS VERBOS DE ELOCUÇÃO NOS TRÊS CONJUNTOS DE
TEXTOS ........................................................................................................................................................ 211
QUADRO 32 - COMPARATIVO DOS OUTROS VERBOS DE ELOCUÇÃO CATEGORIZADOS NOS TRÊS CONJUNTOS DE
TEXTOS ........................................................................................................................................................ 218
QUADRO 33- COMPARATIVO DOS INDICADORES DE SUPORTE DE PERCEPÇÕES E PENSAMENTOS RELATADOS NOS
TRÊS CONJUNTOS DE TEXTOS ....................................................................................................................... 219
LISTA DE ESQUEMAS
ESQUEMA 1- MOVIMENTOS DE CONCORDÂNCIA E DISCORDÂNCIA E POSTURAS ENUNCIATIVAS - (RABATEL E
LEPOIRE, 2006) ............................................................................................................................................. 80
ESQUEMA 2 - HIERARQUIZAÇÃO DAS POSTURAS ENUNCIATIVAS - (RABATEL E LEPOIRE, 2006) ........................... 82
ESQUEMA 3- MAPA SEMÂNTICO DAS OPERAÇÕES ENUNCIATIVAS DE PRISE EN CHARGE (DESCLÈS,J-P. 2009) ........ 96
ESQUEMA 4 - NÍVEIS DA ANÁLISE DO DISCURSO (ADAM, 2011, PG. 61)............................................................... 99
ESQUEMA 5 - AS DIMENSÕES DA PROPOSIÇÃO-ENUNCIADO (ADAM, 2011, PG. 111)........................................... 104
ESQUEMA 6 - DIFERENTES FORMAS DE REPRESENTAÇÃO DA FALA (BOCH E GROSSMAN, 2002, P.100).......... 124
LISTA DE GRÁFICOS
GRÁFICO 1 - TOTAL DE OCORRÊNCIAS POR TIPO DE REPRESENTAÇÃO DA FALA.................................................... 204
GRÁFICO 2 – COMPARATIVO DAS OCORRÊNCIAS DE DIFERENTES FORMAS DE REPRESENTAÇÃO DA FALA NOS TRÊS
GRUPOS DE TEXTO ....................................................................................................................................... 205
GRÁFICO 3- COMPARATIVO DA ORDEM 5 POR MODO DE REPRESENTAÇÃO DA FALA............................................. 223
GRÁFICO 4 - COMPARATIVO DA ORDEM 6 - POR CONJUNTO DE TEXTOS ................................................................ 228
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 - EXEMPLO DE TELA DE LOCALIZAÇÃO NO WORD 2013 ........................................................................ 120
SUMÁRIO
I INTRODUÇÃO ........................................................................................................................................... 19
1.1 CARACTERIZAÇÃO DO ESTUDO ............................................................................................................ 21
As questões da pesquisa ......................................................................................................................... 21
O objeto e objetivos da pesquisa ............................................................................................................ 21
CAPÍTULO II –GENEROS TEXTUAIS/ DISCURSIVOS ACADÊMICOS: ASPECTOS
ENUNCIATIVOS E POLIFÔNICOS ......................................................................................................... 24
2.1 A NOÇÃO DE GÊNEROS DISCURSIVOS/ TEXTUAIS ................................................................................. 24
2.1.1 Gêneros secundários ..................................................................................................................... 29
2.1.1.1 O gênero discursivo/textual acadêmico artigo científico .................................................................... 30
2.2 QUESTÕES DE NATUREZA ENUNCIATIVA E POLIFÔNICA NA ANÁLISE DE ARTIGOS CIENTÍFICOS. ...... 37
2.2.1 Enunciado e enunciação .............................................................................................................. 38
2.2.2. Enunciação: a base do funcionamento da língua ...................................................................... 39
2.2.3 O objeto de estudo das abordagens enunciativas ......................................................................... 41
2.3 DA POLIFONIA ÀS INSTÂNCIAS ENUNCIATIVAS .................................................................................... 43
2.3.1 Polifonia ........................................................................................................................................ 44
2.3.2. A condução de uma abordagem polifônica e seus desafios ........................................................ 46
2.3.3 PDV – definição e seu estatuto nas análises de base polifônica ................................................. 48
2.4 A ANÁLISE DO PONTO DE VISTA E DOS ASPECTOS POLIFÔNICOS NA TEORIA ESCANDINAVA DA
POLIFONIA LINGUISTICA (SCAPOLINE) ..................................................................................................... 49
2.4.1 Os pontos de vista e a questão de sua fonte na ScaPoLine .......................................................... 51
2.4.2 Os objetos discursivos e o preenchimento dos pontos de vista no texto na perspectiva da
ScaPoLine .............................................................................................................................................. 55
2.5 A PROPOSTA RABATELIANA DE ANÁLISE DO PONTO DE VISTA E DAS POSTURAS ENUNCIATIVAS ....... 59
2.5.1 As relações entre pontos de vista e construção de L1/E1 no tópico enunciativo ........................ 65
2.5.2 Tipos de pontos de vista ................................................................................................................ 70
2.5.3 A representação de pontos de vista no enquadre rabateliano ..................................................... 72
2.5.3.1 A responsabilidade, prise en charge, imputação e outros dispositivos atuantes na construção do
PDV..................................................................................................................................................................... 72
2.5.3.2 A hierarquização das posturas enunciativas ....................................................................................... 83
2.6 SÍNTESE DAS PROPOSTAS DE ABORDAGEM ENUNCIATIVA E POLIFÔNICA ........................................... 86
2.7 AS ARTICULAÇÕES POSSÍVEIS ENTRE PDV, DISCURSO REPORTADO E MEDIATIVO. ............................ 88
2.7.1 As heterogeneidades enunciativas situada no quadro mais amplo do discurso reportado. ........ 90
2.7.2 Formas do mediativo e suas relações com o discurso reportado e pdv. ...................................... 92
2.8 O MODELO ANALÍTICO DA ATD (ANÁLISE TEXTUAL DOS DISCURSOS) ............................................. 98
2.8.1 A RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA NO QUADRO DE J-M. ADAM ............................................... 103
CAPÍTULO III - METODOLOGIA DA PESQUISA ............................................................................. 107
3.1. A ABORDAGEM E TIPO DA PESQUISA ................................................................................................. 107
3.2 A COLETA DE DADOS .......................................................................................................................... 109
3.2.1 Constituindo um corpus: histórico do processo ......................................................................... 111
3.3 DO MATERIAL TEXTUAL INVESTIGADO.............................................................................................. 113
3.4 O PROCESSO DE OBTENÇÃO DOS DADOS ............................................................................................ 118
3.5 DEFINIÇÃO DE TERMOS E CATEGORIAS DE ANÁLISE ........................................................................ 121
3.5.1 As categorias de análise .............................................................................................................. 121
3.5.2 Conceitos chave da pesquisa: definição dos termos .................................................................. 129
CAPÍTULO IV– ANÁLISE DOS DADOS: DAS OCORRÊNCIAS DE NÃO ASSUNÇÃO DA RE .. 132
4.1. MARCAS DA RE EM TEXTOS DE INICIANTES (ALUNOS DE GRADUAÇÃO) ......................................... 132
4.2.1 Das ocorrências na categoria de ordem 5 – Diferentes formas de representação da fala ........ 132
4.2.2 Das ocorrências na categoria de ordem 6 – Indicação de Quadros Mediadores ...................... 137
4.2.3 Das ocorrências na categoria de ordem 8 - Indicações de um suporte de percepções e de
pensamentos relatados ......................................................................................................................... 153
4.3. MARCAS DA RE EM TEXTOS DE AUTORES ESPECIALISTAS .............................................................. 155
4.3.1 Das ocorrências na categoria de ordem 5 – Diferentes Representações da Fala ..................... 155
4.3.2 Das ocorrências na categoria de ordem 6 – Indicadores de Quadro Mediador........................ 161
4.3.3 Das ocorrências na categoria de ordem 8 - Indicações de um suporte de percepções e de
pensamentos relatados ......................................................................................................................... 179
4.4 MARCAS DA RE EM TEXTOS DE AUTORES ESPECIALISTAS RENOMADOS .......................................... 181
4.4.1 Das ocorrências na categoria de ordem 5 – Diferentes Representações da Fala ..................... 181
4.4.2 Das ocorrências na categoria de ordem 6 – Indicadores de Quadro Mediador........................ 184
4.4.3 Das ocorrências na categoria de ordem 8 - Indicações de um suporte de percepções e de
pensamentos relatados ......................................................................................................................... 200
4.5 COMPARATIVO ENTRE OS TRÊS GRUPOS DE TEXTOS: AI, AE E AEE ............................................... 202
4.5.1 Das ocorrências na ordem 5 – Diferentes Representações da Fala .......................................... 202
4.5.2 Das ocorrências na ordem 6 – Indicadores de Quadros Mediadores ........................................ 208
4.5.3 Das ocorrências na ordem 8 - Indicações de um suporte de percepções e de pensamentos
relatados ............................................................................................................................................... 219
CAPÍTULO V – DAS POSSÍVEIS RELAÇÕES ENTRE RE E POSTURAS ENUNCIATIVAS ....... 221
5.1 CARACTERIZANDO A RE (SUA ASSUNÇÃO E NÃO ASSUNÇÃO) EM TEXTOS DE AUTORES INICIANTES,
ESPECIALISTAS E ESPECIALISTAS RENOMADOS ....................................................................................... 221
5.2 DAS RELAÇÕES ENTRE A RE E AS POSTURAS ENUNCIATIVAS............................................................ 233
5.2.1 A proposta rabateliana de posturas enunciativas ...................................................................... 233
5.3 AS POSTURAS ENUNCIATIVAS NO CORPUS SELECIONADO .................................................................. 236
5.3.1 Exemplos de co-enunciação ....................................................................................................... 236
5.3.2 Exemplos de Subenunciação ...................................................................................................... 238
5.3.3 Exemplos de sobrenunciação ..................................................................................................... 240
CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................................................... 243
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................................................... 248
18
I Introdução
A presente pesquisa de doutorado resulta de investigação sobre como o aluno de Letras
mobiliza diversos aportes teóricos nas análises de problemas/fatos gerados no âmbito das
diversas disciplinas cursadas, em outras palavras, se ele se responsabiliza ou não pelo
conteúdo veiculado em seus textos.
Durante o período de formação universitária espera-se que os alunos, gradualmente,
mobilizando o conhecimento teórico adquirido ao longo do curso, desenvolvam a
competência para leitura e produção de textos acadêmico-científicos. Para isso, o aluno
precisa aprender a fazer uso do discurso acadêmico e dos gêneros que mais comumente
circulam na universidade, dentre os quais destacam-se principalmente o artigo e o relatório,
além destes, as monografias, dissertações, teses, os handouts de seminários, os resumos e
resenhas. A experiência ao longo do curso deve levar, paulatinamente, ao domínio dos
mecanismos textuais/discursivos de construção de, ao menos, parte considerável destes
gêneros, uma vez que o conhecimento produzido e acumulado ao longo da trajetória tem sua
visibilidade assegurada por meio da circulação em textos divulgados e apreciados pelos
pares da comunidade discursiva. Tal consideração define a linguagem científica como um
código instrumental que deve ser dominado pelo aluno para que ele possa assegurar ao seu
texto padrões mínimos de aceitabilidade pela comunidade acadêmica.
A experiência de pesquisa dos alunos de cursos de graduação é identificada nos
gêneros acadêmicos, em textos escritos, reconhecíveis principalmente pelo recurso a uma
série de léxico específico, indicadores de uma “linguagem da ciência”, em modelos já
legitimados e consagrados pela tradição. Mas, de um modo geral, o que se percebe é que
muitos alunos apresentam dificuldade na produção escrita de seus trabalhos tanto no que diz
respeito à estrutura do texto acadêmico quanto à elaboração de uma cadeia argumentativa
eficiente que lhe permita uma exposição clara de teorias, resultados de dados analisados e,
principalmente, um posicionamento pessoal.
Vários autores, no panorama acadêmico nacional, têm se dedicado ao estudo da escrita
no ensino superior, dentre eles Rodrigues (2002) Barzotto (2008), Fabiano (2004, 2007),
Riolfi (2007), Ribeiro (2010), numa vertente que privilegia o agenciamento da singularidade
da escritura acadêmica, e, em outras vertentes, focando mais a apropriação da especificidade
dos mecanismos textuais dos gêneros acadêmicos, Motta-Roth (2010, 2011). Em todos esses
autores observou-se uma preocupação com a qualidade da produção acadêmica, atribuída
tanto a um modelo de formação que apenas favorece a adesão acrítica às formulações
19
teóricas diversas estudadas nos cursos de Letras, quanto à dificuldade dos alunos em
apropriar-se da especificidade dos gêneros acadêmicos.
Diante da considerável diversidade de gêneros acadêmico científicos, os estudos
costumam se deter naqueles gêneros que mais circulam nas Academias, notadamente o
artigo, os projetos de pesquisa, relatórios, monografias, dissertações e teses. Sendo grande a
diversidade e necessitando delimitar este trabalho, optou-se por selecionar o gênero mais
recorrente nos trabalhos produzido para fins de avaliação em disciplina ou para publicação
em periódicos científicos, os artigos. Importante fonte de dados nesta pesquisa, o artigo é o
gênero para comunicar resultados de pesquisa, por excelência: além de se prestar a uma
avaliação, constitui-se ferramenta de divulgação.
Considera-se que esses materiais textuais são marcados por especificidade relacionada
às situações de produção, e, por essa razão, não se descarta a necessidade de analisar o
contexto de produção desses textos, afinal, cf. Adam (2011, p.52) “de um ponto de vista
linguístico, é preciso dizer que o contexto entra na construção do sentido dos enunciados”.
Diante destas questões, entende-se a importância de compreender como as diferentes
vozes se articulam nos trabalhos desenvolvidos no âmbito acadêmico, e de que modo o aluno
de Letras mobiliza seu conhecimento teórico na análise das questões que lhe são postas. Por
necessidade de delimitação do objeto preferiu-se o foco na assunção (ou não) da
Responsabilidade Enunciativa (RE) em trabalhos produzidos por alunos de um curso de
Letras, utilizando, como perspectivas iniciais de reflexão, uma breve discussão sobre a
questão do gênero discursivo/textual artigo científico, mobilizando-se autores como Bakhtin
(1997) e Swales (1990, 2001, 2004), bem como o aporte do quadro teórico da Análise
Textual dos Discursos (ATD) de Adam (2011), destacando desse quadro a noção de
responsabilidade enunciativa (RE) e ponto de vista (PdV), cf. Adam (2011), Rabatel (1998,
2003, 2004, 2006, 2013,), conceitos correlatos como o mediativo de Guentcheva
(1994,1996), e, ainda, o conceito de heterogeneidade mostrada e constitutiva, cf. Authier
Revuz (1984).
Postulando-se que o recurso a vozes alheias (caracterizando a não assunção da RE) é
um fenômeno recorrentemente encontrado tanto em textos de alunos de graduação quanto
em textos de especialistas, autores experientes, questionou-se sobre qual seria o fator de
diferenciação entre esses textos, fazendo-se necessário compor o corpus com textos de
autores iniciantes, os graduandos, e textos de autores experientes, com graus variados de
titulação, incluindo-se mestrado, doutorado e pós-doutorado. Foram selecionados 60 textos,
20
sendo 20 textos produzidos por alunos de graduação, 20 produzidos por mestrandos, mestres,
doutorandos e doutores júniores, e outros 20 produzidos por doutores seniores.
1.1 Caracterização do estudo
As questões da pesquisa
- Pois é! - disse Pensador Profundo. - Assim, quando vocês souberem qual é
exatamente a pergunta, vocês saberão o que significa a resposta. (O Guia do
Mochileiro das Galáxias – Douglas Adams)
No percurso da pesquisa, várias foram as questões que nortearam esse trabalho, das
quais permaneceram as listadas abaixo:
 Quais marcas linguísticas depreendem-se num texto para evidenciar assunção
ou não assunção da RE?
 De que forma essas marcas se vinculam ao nivel de expertise do autor
acadêmico?
 Se tanto autores experientes como iniciantes se valem do recurso às vozes de
outros autores, o que diferencia, então, a escrita de ambos?
 Como se imbricam, na escrita acadêmica, as relações que se poderiam
estabelecer entre assunção ou não da RE e os mecanismos de construção do PDV
(posturas enunciativas de co-, sub- e sobrenunciação?)
O objeto e objetivos da pesquisa
O objetivo geral desta pesquisa é o estudo da assunção (ou não) da responsabilidade
enunciativa em textos de gênero discursivo/textual acadêmico (artigo científico) escritos por
alunos de um curso de Licenciatura em Letras e outros autores experientes na prática da
escrita acadêmica, com o objetivo principal de explicar o gerenciamento de vozes no interior
de textos produzidos por autores de diferentes níveis de experiência em escrita acadêmica.
Como objetivos específicos, e que foram depreendidos a partir do geral, estabelecemse os seguintes:
 Delinear as estratégias linguísticas de distanciamento e/ou engajamento na
escrita acadêmica, e, mais, compreender o que essas estratégias dizem sobre o caráter
polifônico da escrita acadêmica;
21
 Compreender como o locutor/narrador/enunciador assume (ou não) a
responsabilidade pelo conteúdo proposicional em seus enunciados;
 Determinar em que medida os mecanismos textuais/discursivos que
caracterizam a escrita de cada grupo determina a assunção (ou não) da RE.
 Estabelecer a relação entre as posturas enunciativas e a ocorrência ou não de
assunção da RE.
Para encerrar esta introdução, esclarece-se a divisão proposta neste trabalho de
pesquisa que se apresenta em cinco capítulos. No segundo capítulo, na esteira das
considerações sobre os gêneros, encontra-se uma subseção que trata dos gêneros
acadêmicos, dentre os autores nacionais retoma-se Motta-Roth (2001, 2010), Bonini (2001),
Figueiredo e Bonini (2006) e mantendo-se a adesão aos postulados da ATD, adota-se a
definição de gêneros e texto de Adam (2011) pois se entende que sua proposta responde mais
prontamente aos questionamentos na base desta investigação, além de fornecerem a base das
categorias de análise mobilizadas na pesquisa.
Na sequência, no mesmo capítulo II, dedica-se às questões de ordem enunciativa
envolvidas na análise de gêneros discursivos/textuais, dentre essas questões destacam-se a
responsabilidade enunciativa e outros conceitos correlatos, tais como o PdV, a PEC,
engajamento/desengajamento, o apagamento enunciativo, o mediativo, a imputação e etc., a
fim de buscar, nas produções textuais de acadêmicos, as marcas que definem quais instâncias
se caracterizam por uma maior ou menor tendência à ocorrência de assunção da RE e quais
pela não assunção.
No terceiro capítulo, apresentam-se os princípios metodológicos que nortearam esta
pesquisa, de cunho qualitativo interpretativista, gerada pelo desejo de compreender a
natureza das ocorrências de assunção e/ou não assunção da responsabilidade enunciativa.
Na sequência, apresentam-se as etapas para a realização da pesquisa em quatro tópicos:
a primeira trata da delimitação do universo de análise e das motivações para essa
delimitação; a segunda trata da seleção do corpus e dos critérios adotados para essa seleção,
cujo recorte temporal cobre os trabalhos produzidos entre 2008 e 2013; a terceira descreve
os conceitos chave da pesquisa.
Em seguida, apresenta-se o quarto capítulo, em que os principais resultados desta
pesquisa são discutidos, com uma apresentação do levantamento das ocorrências de não
assunção da responsabilidade enunciativa, bem como uma análise destes resultados. No
quinto e último capítulo apresentam-se algumas análises feitas com amostras do corpus para
enfim se demonstrar que a RE pode ser considerada de modo mais amplo do que o previsto
22
em Adam (2011), de forma que, nesta pesquisa, compreendeu-se a RE como um fenômeno
mais abrangente, que engloba o texto como um todo, incluindo-se suas diversas operações
enunciativas, diferenciando-se, da PEC (prise en charge) que incidiria sobre o enunciado de
modo mais pontual. Ambos os fenômenos não devem ser tomados como equivalentes,
embora intimamente relacionados e, por vezes, superpostos, o que se espera ter demonstrado
suficientemente no segundo e quinto capítulos desta tese. Por fim, estabeleceu-se que o que
de fato diferencia a escrita de autores de diferentes níveis de experiência vai além do recurso
às vozes externas (com ou sem apoio de marcadores de quadros mediadores e outros indícios
da introdução dessas vozes no texto): é um recurso de natureza textual-discursiva, que
proporciona maior ou menor projeção da voz autoral em um texto, definido a partir da noção
de posturas enunciativas (cf. RABATEL, 2003). Tais considerações levaram, forçosamente,
à algumas reflexões sobre as implicações desta pesquisa no campo da didática dos gêneros
acadêmicos e, por fim, apresentam-se as considerações finais.
23
Capítulo II –Generos textuais/ discursivos acadêmicos: aspectos enunciativos e
polifônicos
2.1 A noção de gêneros discursivos/ textuais
(...) gêneros são o que as pessoas reconhecem como gêneros a cada momento do
tempo, seja pela denominação, institucionalização ou regularização. Os gêneros
são rotinas sociais de nosso dia-a-dia.(MARCUSCHI, 2008, p.16)
A discussão sobre os gêneros do discurso não é nova, pois as ideias de Bakhtin
circulavam na Europa desde os anos de 1950, no entanto emergiu, no Brasil, como um campo
privilegiado de pesquisas na década de 1980. Nestes últimos setenta anos, pesquisadores de
várias nacionalidades e de diferentes áreas do conhecimento dedicaram-se ao estudo mais
sistemático dos gêneros, como se pode ver pela diversidade de publicações tratando do tema.
Neste trabalho, optou-se por fazer uma revisão, a partir do precursor dessas discussões,
Bakhtin (1997): falar em gêneros acadêmicos, ou ainda, nas várias perspectivas de análise
de gêneros, requer (não obrigatoriamente, mas desejavelmente) retomar a contribuição
importante das ideias deste autor e seu círculo, especialmente as teses discutidas na “Estética
da Criação Verbal”, obra em que se apresenta, dentre outras discussões, a questão dos
gêneros do discurso calcada nos conceitos de dialogismo e interação verbal.
Para Bakhtin os enunciados são o produto das atividades humanas, em outras palavras,
as esferas 1 de atividade humana estão ligadas à utilização da língua e aos modos de
utilização. Nos comunicamos por meio de enunciados, e não por palavras ou frases isoladas,
e esses usos (oral ou escrito) da língua refletem as condições específicas e cada uma das
esferas de ação humana, assim, cada uma dessas esferas elabora seus tipos relativamente
estáveis de enunciados, chamados por Bakhtin de “gêneros do discurso” (BAKHTIN, 1997,
p. 262).
Como resultado da atividade humana não se poderia esperar um produto homogêneo,
compreendendo que tão variadas são as ações humanas quanto são os gêneros, pois cada
esfera de atividade produz um determinado repertório de gêneros que se diferem também em
1. A noção de “esferas” é, sob diferentes denominações, recorrente nos estudos linguísticos e sociológicos e tende a designar um espaço
da experiência humana organizado, dentre outros fatores, em torno de relações sociais e de um conjunto de princípios e esquemas de
produção e recepção de discursos mais ou menos estáveis. Considerando a população a ser avaliada, podem-se definir as seguintes esferas
e gêneros de discurso a elas associados: esfera da vida doméstica (listas de compras, manuais de instrução de equipamentos diversos,
rótulos e embalagens de produtos, bilhetes, cartas, convites, lista de telefones ou endereços, agenda, calendário, receitas culinárias, diário,
regras de jogos); esfera do espaço urbano (placas, cartazes, sinalização, quadros de horário de ônibus, etc.); esferas da vida pública
(documentos como carteira de identidade, certidões,contas, cheques, faturas, etc); esfera escolar (listas de materiais e de atividades,
enunciados de atividades, definições, textos de diferentes áreas de conhecimento, manual didático, boletins e outros documentos - tais
como ocorrências, bilhetes aos pais,etc - dicionário, enciclopédia.) esfera jurídica (contratos, petições judiciais, sentenças judiciais, etc.).
Limito-me, nesta lista, a essas esferas - não considero-a completa, ao contrário - entendendo que estendê-la ainda mais seria exaustivo e
desnecessário.
24
função da complexidade da esfera social. Ponderando sobre a estabilidade dos gêneros de
determinadas esferas, Bakhtin (1997) ainda observa que a variedade de gêneros orais ou
escritos pode ser um entrave na definição do caráter genérico do enunciado, mas não
impossibilita seu estudo:
Não se deve, de modo algum, minimizar a extrema heterogeneidade dos gêneros
discursivos e a dificuldade daí advinda de definir a natureza gera do enunciado.
Aqui é de especial importância atentar para a diferença essencial entre os gêneros
discursivos primários (simples) e secundários (complexos) - não se trata de uma
diferença funcional. Os gêneros discursivos secundários (complexos – romances,
dramas, pesquisas científicas de toda espécie, os grandes gêneros publicísticos,
etc..) surgem nas condições de um convívio cultural mais complexo e
relativamente muito desenvolvido e organizado (predominantemente escrito)
artístico, científico, sociopolítico, etc. (BAKHTIN, 1997, p. 263)
A discussão bakhtiniana sobre as relações entre os gêneros pode ser dividida em dois
eixos: um horizontal e um vertical. No eixo das relações horizontais encontra-se uma
descrição da relação dialógica dos gêneros e de como um gênero se configura como uma
resposta a outro dentro de uma esfera de atividade humana (BAWARSHI e REIFF, 2010,
p.25-28). As autoras mencionam, como exemplo, as chamadas para publicação, em que se
pode considerar tanto as chamadas para publicação em periódicos científicos como em anais
de eventos, tais chamadas geram propostas de artigos que tanto podem ser aceitos quanto
refutados, dando origem a outro gênero, a carta de aceite. Da mesma maneira, há a tese, a
dissertação e a monografia, as quais engendram outros gêneros como a sessão de defesa,
bem com as atas dessa sessão. Isso, só para citar dois poucos exemplos do mundo acadêmico,
há todo um universo de relações horizontais para exploração do analista.
As relações verticais dizem respeito ao que Bakhtin denomina gêneros primários e
secundários. Os gêneros primários, tidos como simples, são forjados nas circunstâncias mais
comuns de comunicação verbal espontânea, no dia a dia das pessoas. Em outras palavras,
para Bakhtin, os gêneros primários tomam forma numa atividade de comunicação não
mediata, o que significa que eles mantêm uma relação imediata com a realidade e com as
falas reais, tais gêneros são também considerados como base para a constituição dos gêneros
secundários, estes considerados complexos e emergem em situações comunicativas mais
complexas, como por exemplo, a escrita científica, literária, etc. Uma conversa telefônica,
é, sem sombra de dúvida, um gênero primário, no entanto, essa mesma conversa, gravada e
posteriormente usada num julgamento judicial pode ser considerada um gênero secundário,
o gênero primário foi alterado e absorvido pelo secundário, e uma vez recontextualizado
passa, a partir daí, a exibir outras características que o complexificam. As relações verticais
25
nas quais os gêneros secundários absorvem e alteram os primários são de grande valia na
análise de como os gêneros secundários e os cotidianos interagem para formar e transformar
as práticas sociais.
O conceito bakhtiano de gênero ancora-se no tripé estilo (seleção lexical, arranjos e
recursos fraseológicos e gramaticais), tema (o conteúdo) e construção composicional. Estes
três elementos estão indissoluvelmente fundidos nos enunciados e são marcadas pelos tipos
de ações mediadas pela língua nas esferas de atividades humanas.
Discutir a questão dos gêneros leva à constatação de que as definições de gênero são
relativamente diversas, e, invariavelmente, refletem a diversidade de abordagem que subjaz
à cada noção, bem como a diversidade de fundamentos teóricos. Isso explica, de certo modo,
a coexistência de termos como gêneros de discurso e gêneros de texto. Tal diversidade se
verifica também entre outros autores estudados: enquanto Adam (2011) opõe gêneros a tipos
de textos, Bronckart (1999) opõe gêneros de textos e tipos de discurso e Maingueneau (1998)
conceitua tipos de texto e gêneros de discurso. Como se pode ver, não há consenso nesta
questão e a terminologia é flutuante, mesmo na obra de Bakhtin e seu círculo depara-se com
uma certa flutuação terminológica, o que não impediu, no entanto, o avanço nos estudos
sobre gêneros desde há quatro décadas.
Não se deterá, nesta pesquisa, no detalhamento dos posicionamentos teóricos de todos
esses autores, adotando-se a terminologia empregada em Adam (2011) que distingue entre
gêneros textuais e tipos de texto. Nesta perspectiva, os textos são estruturas de uma
diversidade e complexidade tais que se torna quase imposível estabelecer uma tipologia, e
todos os esforços neste sentido resultam apenas em “vantagens pedagógicas ilusórias”
(ADAM, 2011).
Por outro lado, pode-se identificar segmentos menores, geralmente
compostos por várias frases, no entanto, não é a frase ou o parágrafo que definem esta
dimensão, chamada de sequência pelo autor. Deste modo, as sequências prototípicas
definidas pelo autor (descritiva, narrativa, argumenttiva, explicativa, dialógica e injuntiva),
estão presentes regularmente nos textos como esquemas de reagrupamento semânticos,
enunciados que produzem efeitos de leitura imediamente reconhecíveis, tais como, por
exemplo um efeito de descrição.
Longe de se tratar de uma questão específica dos gêneros, a utilização conjunta dos
termos, gêneros do discurso e gêneros de texto, já não é mais aceita em Linguística, ainda
assim, esta utilização obriga a incursões sobre a noção de texto e discurso a fim de justificar
as escolhas terminológicas e conceituais no interior desta pesquisa. Buscando-se esclarecer
questões subjcentes à distinção terminológica proposta, deve-se proceder, como vários
26
autores, de modo a renunciar à ambição de uma definição estável. Em Adam (1999) texto e
discurso são definidos a partir de uma distinção fundamental, conceituando texto em
oposição ao discurso, como um objeto formal abstraído das suas condições de interpretação
e produção, para colocá-lo de outra forma: o discurso é concebido como a inclusão de um
texto em seu contexto, isto é, considerando-se suas condições de produção, recepção e
interpretação, o que segundo o autor (2011, p.73) se dá mediante o questionamento das
fronteiras da textualidade bem como da ideia de um universo exterior, o contexto, que se
opõe ao interno. Quanto ao interdiscurso o autor o concebe como uma dimensão que
comporta regularidades, permitindo reconhecer traços das trocas entre vários discursos:
Se Maingueneau e Foucault falam do interdiscurso como um espaço de
regularidades, de um “espaço de trocas entre vários discursos”, eles negligenciam
uma ferramenta linguística de distinção teórica para o discurso e o texto (...).
Devemos ainda refletir sobre o que se coloca trivialmente como Discurso
publicitário, político, jornalístico, literário, científico, religioso, etc, (ou seja, como
objeto concreto). Além disso, proponho reconectar o Discurso aos gêneros do
discurso. Assim o poema, o teatro, o romance são gêneros do discurso literário; o
sermão, a parábola, a hagiografia, etc, são gêneros do discurso religioso; o
editorial, a manchete, a reportagem, etc, são os gêneros do discurso jornalístico;
poder-se-ia, igualmente, falar de gêneros do discurso político, etc. Os (tipos) de
texto são, no entanto, os componentes do discurso e do gênero discursivo: a
narrativa a descrição, explicação ou argumentação, por exemplo, ocorre tanto no
romance, quanto na parábola, manchete ou discurso eleitoral;todos os discursos e
gêneros do discurso.Tais distinções não parecem ser triviais a ponto de serem
negligenciadas, elas deveriam ser teorizadas em um nível de pertinência
específica.. (ADAM, 1987, p.54)2
No que diz respeito à noção de discurso, propõe-se resumir a questão, sem se deter nas
inúmeras acepções de discurso, adotando-se, cf Rastier (2001), bem como Adam (2011), o
conceito de que os discursos permitem relacionar as práticas sociais aos gêneros e que estes
asseguram a relação entre texto e discurso. Esta concepção favorece o estudo linguístico dos
2
Si Maingueneau et Foucault parlent bien de l'inter- discours comme d'un espace de régularités, d'un
« espace d'échange entre plusieurs discours », ils négligent une distinction théorique linguistiquement
utile entre Discours et Texte (esquissée par D. Slakta et que le présent article précisera en partie). Il
faut insister sur le fait que l' interdiscours prime le Texte et le Discours que je pose trivialement
comme D publicitaire, D politique, D journalistique, D littéraire, D scientifique, D religieux, etc. (c'està-dire comme objet concret). De plus, je propose de relier D aux genres du discours. Ainsi le poème,
le théâtre ou le roman sont-ils des genres du discours littéraire; le sermon, la parabole, l'hagiographie,
etc. des genres du discours religieux; 1 'editorial, le fait divers, le reportage, etc. des genres du discours
journalistique ; on pourrait également parler de genres du discours politique, etc. Les (types de) textes
sont, en revanche, des composantes de D et de GD : le récit, par exemple, se rencontre aussi bien
dans le roman, la parabole, le fait divers ou le discours électoral; la description ou l'explication
traversent, comme l'argumentation, tous les discours et genres du discours. De telles distinctions triviales
ne me paraissent pas pouvoir être négligées; elles doivent absolument être théorisées à un niveau de
pertinence qui reste, lui, à préciser. (ADAM, 1987, p.54).
27
gêneros levando-se em conta suas determinações sociais, pois, em princípio, “todo texto se
prende à língua por um discurso e a um discurso pela mediação de um gênero (...) o estudo
dos gêneros deveria ser, portanto, uma tarefa prioritária na pesquisa linguística”
(RASTIER, 2001, p. 230).
Desta forma, entende-se que, de fato, os gêneros são os elementos de regulagem e
coerção, espaços normativos que permitem, com os discursos e campos genéricos 3, aliar os
estudos da linguística com os da língua em uso:
Os níveis dos gêneros, campos genéricos e discursos são os níveis estratégicos que
permitem passar da generalidade da língua às particularidades dos textos, pois as
relações semânticas entre textos se estabelecem preferencialmente entre textos do
mesmo campo genérico e do mesmo discurso (...). Assim a Linguítica pode tomar
como objeto de descrição o espaço das normas. (RASTIER, 2002)4
Trata-se de uma tarefa relativamente complexa na medida em que o gênero representa
uma paleta determinante para o texto, mas, ao mesmo tempo, é determinado por seu discurso
e pelas práticas sociais às quais se associa. Por outro lado, faz-se necessário considerar que
se trata de um objeto linguístico com características próprias e que se presta mais a
determinados tipos de análise. Em outras palavras, alguns quadros teóricos (notadamente os
que privilegiam a análise de certos gêneros) desenvolveram modelos de análise de gêneros
particularmente eficazes, é o caso, por exemplo, do ISD ou ainda o modelo proposto em
Adam (2011) que, sem privilegiar um gênero em específico, propõe modelos que abrangem,
a rigor, qualquer tipo de gênero.
Conclui-se observando que, em todas as discussões sobre descrições linguísticas, a
noção de gênero ocupa um espaço central como um feixe de normas que articulam questões
e reflexões fundamentais sobre a língua em uso e que devem ser descritas pela linguística.
Propõe-se na continuidade deste tópico alguns itens para reflexão acerca do gênero
discursivo/textual artigo científico como um gênero secundário.
3
Por campo genérico entende-se o que se postula em Rastier (2004): um grupo de gêneros que contrastam, ou
se rivalizam num determinado campo prático da atividade humana. Por exemplo, pode-se citar, no âmbito do
discurso científico, os gêneros que circulam em períódicos: o artigo de apresentação de um número do
periódico, o ensaio, a resenha, o artigo, as réplicas, entrevistas e etc.)
4
Les niveaux des genres, champs génériques et discours sont bien les niveaux stratégiques qui permettent de
passer de la généralité de la langue aux particularités des textes, car les relations sémantiques entre textes
s’établissent préférentiellement entre textes du même genre, du même champ générique et du même
discours.(…) Bref, la linguistique peut prend de droit pour objet de description l’espace des normes : au lieu
de les édicter, comme elle le faisait naguère en frappant d’inacceptabilité des énoncés, alors même qu’ils sont
attestés, elle doit les décrire etpour cela exploiter des corpus. (RASTIER, 2002)
28
2.1.1 Gêneros secundários
Partindo-se de Bakhtin (1997), entende-se que o gênero estudado nesta pesquisa, o
artigo científico, pertence ao discurso científico, fazendo parte do que o autor designa como
gêneros secundários, ou complexos, distinguindo-se dos gêneros primários considerados
mais simples.
Os gêneros secundários (romance, teatro, discurso científico, religioso, político, etc)
são engendrados nas circunstâncias de práticas linguageiras culturais (principalmente os
escritos), artísticas, científicas, sóciopolíticas, e são mais comumente complexas e
relativamente evoluídas (TODOROV, 1981, p.267). Os gêneros primários, por outro lado,
resultam das práticas linguageiras do cotidiano. No entanto, ainda que a distinção
bakhtiniana funcione como um princípio que permita ordenar os gêneros em meio à
heterogeneidade, a questão não consiste apenas em decidir sobre uma possível fronteira entre
gêneros primários e secundários, mas, sobretudo, seguindo a ótica bakhtiniana, em observar
o continuum que existe entre os gêneros primários e secundários do ponto de vista de sua
constituição.
Desta forma, o que parece ser mais relevante nesta discussão não é a distinção em si,
mas a própria ideia de secundariedade: os gêneros secundários recorrem às formas de
discurso já estabelecidas para integrá-las numa nova instância discursiva com novas
finalidades comunicativas. Nota-se iguamente que a relação entre os dois tipos de gêneros
não é unívoca: o fato de dispor de gêneros secundários modifica muito as trocas mais
cotidanas.
Neste aspecto, os gêneros secundários evocam o que Benveniste (1976) trata em
termos de enunciação histórica, para definir os enunciados recortados de sua situação de
enunciação: em razão desta propriedade, estes enunciados são especialmente marcados por
tenderem à ausência de referências dêiticas (ou referência relativa aos parâmetros físicos da
situação de enunciação que são os atores, o tempo e o lugar). Os gêneros acadêmicos, e em
especial os tratados nesta pesquisa, enquanto gêneros secundários, tem a peculiaridade de
manter uma relação mediada pelo campo cultural e não uma relação direta com sua situação
de produção ou com a experiência da vida cotidiana.
Para discutir a distinção entre gêneros primários e secundários, e avançar na questão
da secundariedade e seus possíveis desdobramentos na análise de um gênero em particular,
Maingueneau (1995) propõe uma outra distinção, bastante próxima à aquela formulada por
Bakhtin: o autor opõe os gêneros conversacionais aos gêneros denominados por ele como
29
rotinizados ou institucionalizados. Desta forma, o que se define como gêneros
conversacionais integra o tipo de trocas que tem como objeto as análises pragmáticas
conversacionais: esse tipo de análise se encarrega, sobretudo, das interações cotidianas face
a face, que se encaixam perfeitamente na descrição bakhtiniana dos gêneros primários e
secundários, ou seja, na relação entre texto e contexto de sua produção (MAINGUENEAU,
1995).
No que concerne à distinção proposta por Maingueneau (1992) os gêneros acadêmicos
correspondem a um gênero institucionalizado, em virtude de sua filiação ao campo
científico, e, especialmente no caso de artigos que são publicados em periódicos, da
disposição editorial envolvida na produção. Além disso, a noção de rotinas na abordagem
proposta pelo autor, permite contemplar um outro aspecto importante no que diz respeito aos
gêneros secundários: a rotinização permite privilegar os papéis discursivos, que nos gêneros
institucionais são pré-estabelecidos, muito codificados, e, relativamente estáveis,
diferentemente do que ocorre no quadro dos gêneros conversacionais.
A estabilidade do gênero, questão discutida por Bakhtin (1997), relaciona-se ao seu
caráter institucional, da mesma forma que se pode associar, ao gênero, um papel discursivo
endossado por seu autor, o que leva a postular a ideia de que se trata de um papel discursivo
muito convencional, equivalente, no caso do gênero acadêmico, ao de representante num
campo científico.
O tópico seguinte continua detendo-se sobre o mesmo objetivo, apresentando as várias
abordagens existentes na busca de definições operacionalizáveis nesta pesquisa, assim,
encaminha-se o próximo subitem visando uma caracterização dos gêneros, e dos gêneros
acadêmicos em específico.
2.1.1.1 O gênero discursivo/textual acadêmico artigo científico
De um modo geral, pode-se estabelecer três pontos de vista distintos na literatura
disponível acerca deste gênero, dependendo da área de atuação dos autores. Assim,
distingue-se um primeiro grupo de obras a respeito da produção científica acadêmica,
produzido principalmente por autores de indiscutível experiência acadêmica, de produção
escrita, mas que, não sendo linguistas, não têm a língua como objeto de pesquisa e trabalho.
Estas obras são comumente adotadas nas disciplinas de Metodologia Científica (MC),
Pesquisa em Letras, e outras variantes, assemelhando-se, em grande medida aos do segundo
grupo, aos manuais produzidos por associações e comitês acadêmicos destinados à
30
comunidade acadêmica, os quais são tão comuns que praticamente quase todas as IES no
Brasil disponibilizam um manual, impresso ou digital, desta natureza, para orientação de
seus alunos na confecção de seus trabalhos acadêmicos. A natureza desses materiais é
eminentemente prescritiva, tanto quanto nos manuais de Metodologia Científica adotados
nas disciplinas. Não há nestes textos nenhuma discussão acerca dos artigos enquanto gêneros
discursivos/textuais próprios da comunidade acadêmica, discussão que comumente fica
restrita aos linguistas, (ARAGÃO, 2011).
Uma das críticas que se faz ao modelo de apresentação de artigos escritos por autores
especialistas em MC, mas não em Linguística, é o fato de que se apresentam pasteurizados,
inflexíveis e não refletem a enorme diversidade de estruturas textuais de artigos
recorrentemente publicados em periódicos diversos, bem como ignorando a especificidade
das áreas disciplinares. É, talvez, essa a razão que tenha popularizado os estudos de Swales
(1990, 1993, 2004), bem como os de Bhatia (1993) considerando-se suas propostas e
ferramentas analíticas como um arsenal não só para a análise de gêneros, mas, sobretudo,
para seu ensino. Neste sentido, as novas propostas didáticas (como as de MACHADO et al,
2004; 2005; MOTTA-ROTH e HENDGES, 2010) exploram as relações que os gêneros
acadêmicos estabelecem entre si bem como questões relativas à sua produção e circulação.
No que diz respeito a este quesito, alguns gêneros acadêmicos costumam ter circulação
restrita, como por exemplo, os projetos e relatórios de pesquisa, atas de defesa de
monografia, dissertação e tese, interessando, na maior parte das vezes, aos pesquisadores
envolvidos e às agências de fomento ou às pró-reitorias de graduação e de pesquisa. Por essa
razão, são menos visíveis e de acesso mais restrito. Outros, ao contrário, tem circulação mais
abrangente, como por exemplo os artigos, as aulas, as conferências, os seminários, etc,
estabelecendo uma relação dinâmica com esses outros gêneros.
O artigo é um dos gêneros mais prestigiados no circuito acadêmico, em função de seu
estatuto específico no campo – é o que mais respalda a carreira do cientista e o mais
observado entre os pares – acabou se tornando medida de referência da produtividade
acadêmica, por causa de fatores de ordem bibliométrica. Sua importância capital para a
comunidade acadêmica também reside no fato de que veicula resultados de pesquisa, o saber
especializado acadêmico, com grande velocidade e abrangência (MOTTA-ROTH, 2001,
p.39), especialmente na era digital. Swales (1990) define o artigo acadêmico como um texto
escrito, de curta extensão em que o relato (incluindo resultados) de uma pesquisa é
apresentado em veículos apropriados, os periódicos especializados, por vezes, em coletâneas
organizadas e publicadas em livros. O artigo, seja ele de qual natureza for, procura relacionar
31
resultados da pesquisa relatada com outros trabalhos já realizados no campo do
conhecimento, bem como traz discussões de questões ligadas à teoria e metodologia.
Convém apontar algumas observações acerca das características do gênero
discursivo/textual artigo científico, que dizem respeito, principalmente, ao modo de
produção e circulação. No que diz respeito às restrições editoriais, este é um quesito que
atinge apenas os artigos, mas isso é apenas aparentemente, pois embora relatórios, projetos,
monografias dissertações e teses não se destinem, originalmente, à publicação em
periódicos, eles se assemelham ao artigo no que tange ao fato de serem burocrática e
fortemente estruturados, submissos às coerções de forma e conteúdo. Esses gêneros
obedecem a regras e códigos particulares, ditados ou pelas normas editoriais ou das agências
de fomento à pesquisa, tanto no nível da forma quanto do conteúdo. No nível do conteúdo,
espera-se uma robusta ancoragem teórica e metodológica, apresentação de resultados novos5
ou sínteses críticas sobre o estado de arte de uma determinada área do conhecimento.
No que diz respeito à forma, destaca-se a importância do paratexto, as notas,
referências bibliográficas, anexos, tabelas, esquemas, etc., o recurso ao estilo mais impessoal
possível e utilização de terminologia específica. Por meio do seu discurso, um pesquisador
experiente (ou mesmo um iniciante) demonstra em que medida foi capaz de integrar não
apenas o conhecimento, mas, sobretudo os códigos, valores e know-how da atividade
científica (POUDAT, 2006). Neste campo (para usar um termo bourdieusiano) o valor do
pesquisador está atrelado ao número de publicações em periódicos de prestígio e renome6.
No caso do gênero enfocado nesta pesquisa também ocorre uma validação externa: a
conformidade científica e redacional dos textos é avaliada por um comitê científico externo,
os pareceristas dos periódicos e/ou os professores das disciplinas para as quais os artigos de
autores iniciantes foram escritos. As modalidades de seleção variam, no caso dos periódicos
de acordo com as normas editoriais de cada periódico e de suas propostas temáticas, ou na
5
O quesito inovação/novidade deve ser entendido como relativo, na medida em que trabalhos que realmente
invalidam conhecimentos existentes anteriormente são excepcionais, não são a regra: segundo Kuhn (2009) a
novidade, na maioria das vezes, se resume a uma simples diferenciação no nível das hipóteses, da problemática,
ou dos resultados, mas, sempre compatíveis como os paradigmas em curso, não resultando numa renovação
paradigmática.
6
Já é sobejamente conhecido e discutido no campo acadêmico a questão da demanda constante de publicação,
a pressão que os pesquisadores enfrentam por causa desta demanda, em Swales, a questão foi tematizada sob
o lema: “publique ou pereça”, e em vários periódicos encontram-se críticas ao sistema que, forçando
pesquisadores a um ritmo acelerado e constante de produções, acaba por favorecer o aligeiramento destas
mesmas produções, por um lado, e o fortalecimento dos “artigos salame”, dos resultados falseados, das
publicações repetidas com ligeiras alterações e/ou revezamento de co-autorias. A mesma constatação se
observa nos seguintes artigos: http://journals.plos.org/plosmedicine/article?id=10.1371/journal.pmed.0020124
e http://mbio.asm.org/content/5/2/e00064-14.full
32
demanda de aprendizagem específica no âmbito de uma disciplina curricular de um curso de
graduação. Tais considerações devem ser levadas em conta nas análises, na medida em que
influem sobre o estilo e o texto em geral.
No que diz respeito aos aspectos linguísticos, o gênero estudado apresenta as seguintes
características: o discurso acadêmico é caracterizado por conter mais inferências, inclusive
as de natureza metalinguística (baseada no pressuposto de que os leitores são pares
familiarizados com o paradigma linguístico do discurso científico), envolve conceitos
altamente abstratos, incidência elevada de conteúdos inferíveis, combinados a outros
conceitos inusitados e/ou apenas inferíveis, exigência de conhecimentos prévios no campo
científico para inferir objetos de natureza altamente complexa e abstrata, cf. Poudat (2006,
p.54).
Concernente a estrutura do gênero, o artigo apresenta-se fortemente estruturado. A
progressão das seções e de seu desenvolvimento é, ainda que de modos variados, submissa
à estrutura IMRD7 (segundo sua cultura e domínio científico ao qual se filia): os gêneros
estudados normalmente se dividem em vários elementos e seções facilmente identificáveis
e padronizadamente codificados, como por exemplo: título na abertura do artigo, ao nome
do autor se somam (indicados por asterisco) sua vinculação acadêmica, as vezes em nota de
rodapé, ou após o nome. Apresenta um resumo, ou o abstract, com as palavras chave, não
sendo regra nos textos que compõe o corpus, especialmente os artigos produzidos por alunos
de graduação para avaliação em disciplinas. Considere-se ainda a variável área do
conhecimento, pois segundo Poudat (2006, p.57) a prática de resumos é mais generalizada
nas ciências da natureza do que em ciências humanas, sendo menos sistemática nestas são
mais dependentes das normas editoriais do periódico.
Outros elementos se apresentam: a bibliografia, geralmente colocada após a conclusão
é facilmente identificada por sua estrutura, o corpo do texto, que no caso de relatórios, teses,
dissertações e monografias é mais propensa a muitas subdvisões enumeradas, enquanto
artigos e projetos são menos sensíveis a muitas subdivisões. Ainda assim, são previstas as
seguintes divisões:

Introdução: colocada na abertura do corpo do texto, podendo ser ou não
marcada por um título;
7
Aragão (2011) observa uma flutuação na estrutura que tanto segue o padrão IMRD, como também o padrão
IDC. No entanto, mesmo dentro do que tradicionalmente se padroniza como IMRD, há diversas publicações
que se estruturam numa variação do IMRD, havendo fusões entre algumas seções.
33

O desenvolvimento (a análise propriamente dita ou discussão), dividida em
diferentes níveis, normalmente enumeradas, organizados ou não em conformidade à
estrutura IMRD;

A conclusão, colocada ao final do corpo do texto, normalmente indicada por
um título (variável: conclusão, perspectivas, e, muito comum no Brasil, considerações finais)
sem subdivisões.

Notas de rodapé ou de fim

Elementos paratextuais: tabelas, fórmulas, quadros, figuras, gráficos, etc.
Motta-Roth (2001), ao tratar da seção Resultados e Discussão, observa que alguns
artigos fundem ambas numa mesma seção, em outros artigos ocorre a fusão das seções
Discussão e Conclusão, outros, ainda, adicionam o item Implicações à Conclusão8.
Em Swales (1981, 1990, 2004) e Motta-Roth (1991), encontram-se arrolados os
objetivos de cada uma das unidades retóricas previstas no artigo científico:
 Introdução: espaço discursivo destinado ao estabelecimento do tema do
artigo, revisão da literatura (situando o trabalho dentro da grande área
de pesquisa do qual faz parte, cf. Motta-Roth, 2011) e a atrair a atenção
do leitor apresentando também o objetivo, a metodologia, e proposições.
O texto deve ser construído e apresentado de tal forma que ao final desta
seção o leitor já consiga vislumbrar a ideia principal do artigo.
 Métodos: Seção em que se descrevem, detalhadamente, a metodologia,
os materiais e procedimentos de pesquisa. Em um artigo, esta seção não
deve ocupar muito espaço, restringindo-se a alguns parágrafos.
 Resultados: seção em que se descrevem e comentam os achados e o
processo de manipulação dos dados obtidos na seção anterior, com
apenas algumas limitadas declarações sobre os testes realizados.
 Discussão: seção em que, a partir de generalizações possíveis, se
explicita o que foi aprendido com a pesquisa.
Em obra de 2004, em uma proposta de reformulação de um modelo baseado nos
movimentos, Swales cria um novo modelo chamado “Create a Research Space” em que
pondera sobre a possibilidade de se apresentarem três formas para o que tradicionalmente se
8
Em Aragão (2011) também se observa a mesma flutuação: há artigos que seguem classicamente a organização
canônica IMRD ou IDC, no entanto, muitos apresentam o tipo de variação mencionada, comprovando a
instabilidade deste modelo canônico do gênero.
34
denomina Revisão de Literatura: i) configurando-se como uma seção independente 9
denominada “Revisão de Literatura”10; ii) incorporada ao texto que compõe o artigo sem que
se constitua seção; iii) diluída ao longo do texto. Essas considerações do autor pareceram
bastante relevantes para esta pesquisa na medida em que esta é justamente a seção do artigo
a ser focada no recorte.
Este modelo, em sua formulação inicial e reformulações posteriores, foi adotado por
inúmeros pesquisadores não apenas para descrever e analisar a seção Introdução (para a qual
foi concebido) como para várias outras seções dos artigos, como o abstract, discussão,
conclusão, bem como para as várias seções que compõem outros gêneros acadêmicos como
monografias, dissertações e teses.
No que diz respeito à natureza do artigo científico encontra-se em Swales (2004) a
seguinte classificação para os artigos científicos:
 Artigos experimentais: são os que se baseiam em estudos sobre dados
coletados.
 Artigos teóricos: tratam de assuntos e/ou pesquisa que não envolvem a coleta
de dados, como a pesquisa experimental, por exemplo.
 Artigos de revisão: são os que apresentam uma revisão de literatura
normalmente finalizada por uma avaliação do autor, (SWALES, 2004).
Macedo (2011) divide-os em quatro categorias: i) artigos que apresentam uma
visão histórica de uma faceta de uma área de estudo; b) artigos que descrevem
o estado de arte das pesquisas em uma área de estudo; iii) artigos que propõem
uma teoria; iv) artigos que colocam em evidência alguma questão de uma área
de estudo. São também chamados de “Artigo de Revisão”, normalmente
escritos pelos membros mais experientes da comunidade acadêmica, requer
reflexões teóricas robustas, gerando contribuições para a área de estudo.
Costuma apresentar um grande número de referências, seções baseadas em
conteúdo, com divisões e poucas figuras.
Considerados esses aspectos ainda resta aquele que motiva esta pesquisa e fundamenta
os estudos realizados no tópico seguinte: trata-se do diálogo entre aquele que escreve o texto
científico e aqueles que o precederam na pesquisa acadêmica, pois parte-se da premissa de
9
Essa variação, admitida por Swales em 2004, parece ser a mais recorrente nos textos que compõe o corpus
desta pesquisa.
10
No corpus estudado, confirmando a instabilidade, a seção é comumente encontrada em tópicos separados: a
maioria delas tem como rótulo o campo teórico de discussão, outras “Fundamentação teórica” outras são
diluídas ao longo do texto, sem rótulos, e outras rotuladas como “Referencial Teórico”
35
que na construção de um artigo o autor científico mobiliza outras vozes de diferentes autores
com diversas finalidades, sendo neste diálogo entre as vozes que se fundamenta também o
diálogo entre o autor científico e a comunidade discursiva, seus pares.
Para finalizar, considera-se que a abordagem de práticas linguageiras sob o ângulo da
problemática dos gêneros exige, cf. Rastier (1996), que se considere os textos como objetos
empíricos suscetíveis de análise linguística. Se todos os níveis de textualidade variam de
acordo com os gêneros e que todos são, a priori, pertinentes para caracterizar um gênero em
específico, o estudo de um gênero não deveria, em princípio, se resumir ao nível lexical ou
frástico, mas estas instâncias podem ser consideradas o ponto de partida para se estabelecer
relações que podem ser depreendidas no texto em relação a outras dimensões, como o gênero
e o discurso. É nesta perspectiva que se entende, no âmbito desta tese, o modelo de análise
textual proposto em Adam (2011): parte-se de unidades mínimas, a proposição-enunciado,
para se chegar às outras dimensões, ou níveis do texto, num percurso ascendente de análise.
Defendendo a análise a partir das unidades mínimas, Poudat (2006) lembra que os
termos empregados num texto literário ou científico não o são literários ou científicos por si
só, mas, é, sobretudo, o uso que se faz destes termos nos textos que permite considerar tais
termos desta maneira, e, por conseguinte, determinar a característica literária ou
especializada do emprego de certos termos. Tome-se como um exemplo prático as rotinas
citacionais: tais rotinas podem se constituir, por si só, um objeto de estudo (cf. FARIA e
FARIAS, 2014), é também um elemento de descrição e traço distintivo dos gêneros
acadêmicos, e ainda um “condutor” que direciona os estudantes iniciantes na prática da
escrita acadêmica. Assim, o interesse pela citação se justifica por sua especificidade e sua
funcionalidade nestes escritos.
Uma outra perspectiva na análise de gêneros visa a diversidade das dimensões
consideradas unidade de estudo. O objetivo de tal visada é caracterizar ainda mais finamente
um discurso ou um gênero, de modo multicriterial.
Trata-se de uma caracterização
geralmente diferenciada: incumbe-se de ressaltar o que é peculiar a um gênero em
comparação a outros e descrevê-los em termos de traços comuns em oposição aos singulares.
A idéia que subjaz aqui é a de que os gêneros sejam descritos como Rastier (2001, p.253)
recomenda: sob um feixe de critérios. Desta forma, a análise textual encontra na linguística
de corpus e na análise estatística ferramentas particularmente adaptadas para a exploração
dos textos e definição genérica.
Contrastando com algumas propostas de definição do gênero em seu conjunto, esta
pesquisa se restringe a determinado fenômeno linguístico, de ordem enunciativa, a
36
responsabilidade enunciativa materializada em determinadas escolhas lexicais e sintáticas.
Ao fim e ao cabo, a idéia é demonstrar como se operacionaliza, na prática, a proposta de se
considerar o texto como ponto de partida para o estudo dos gêneros, mobilizando, num
enfoque enunciativo, o nível da RE na Análise Textual do Discurso, das discussões
rabatelianas acerca do PDV e vários outros autores em suas considerações sobre conceitos
correlatos. É o que se apresenta nos próximos tópicos dedicados às questões de ordem
enunciativa e polifônica envolvidas na análise textual.
2.2 Questões de natureza enunciativa e polifônica na análise de artigos científicos.
“[...] porque estamos todos sobre ombros de gigantes: Culioli sobre os ombros
de Benveniste, e Benveniste sobre os ombros de Bally.” (DESCLÈS, J.P., em aula
para o grupo da ATD, na UFRN em 07/2012)
Seguindo a discussão anterior sobre gêneros e traços pertinentes para a análise
genérica, este tópico se dedica a apresentar propostas de análise enunciativa e polifônica de
textos. Considerando-se que não há uma única via de análise genérica – o que seria contrário
à propria definição defendida neste trabalho de pesquisa – propõe-se, aqui, apresentar
algumas abordagens consideradas adequadas, no âmbito desta pesquisa, à descrição e análise
dos textos representativos do gênero propostos para análise, o artigo científico.
Toma-se como ponto de partida a ideia de que a literatura existente sobre gêneros
discursivos/textuais e sobre escrita acadêmica envolve conceitos recorrentes vinculados à
dimensão enunciativa dos textos, desta forma discutem-se as abordagens enunciativas com
o propósito de verificar em qual quadro se encontram as ferramentas teórico-metodológicas
para a análise de gêneros acadêmicos considerando-se seus enunciados e marcas
enunciativas. Primeiro, procurou-se delinear os principais conceitos da problemática
enunciativa, tais como enunciado, enunciação e enunciação representada, detendo-se, ainda,
sobre a questão da polifonia linguística. Este capítulo introduz, ainda, uma discussão sobre
vários conceitos que, embora correlatos e por vezes admita-se a ocorrência de sobreposições,
não se confundem, tais como: PDV, responsabilidade enunciativa, mediativo, prise en
charge, subenunciação, sobrenunciação, co-enunciação. Considerou-se que tais conceitos,
envolvidos na dimensão enunciativa do texto, permitem dissociar as várias vozes presentes
num texto, bem como revelam os mecanismos de gerenciamento dessas vozes, sem perder
de vista o objetivo desta pesquisa que é determinar em que medida se imbricam assunção
(ou não) da RE, posicionamentos/posturas enunciativas, grau de expertise dos autores e
37
gêneros, oferecendo uma possibilidade de se vislumbrar o papel do autor/escritor de um texto
acadêmico enquanto sujeito social e praxeológico envolvido na construção e circulação do
conhecimento e discurso científico.
2.2.1 Enunciado e enunciação
A definição dos conceitos anteriormente mencionados permite delinear, no texto, os
princípios reguladores de uma instância que está na origem da enunciação, em outras
palavras, a instância que se responsabiliza, enunciativamente, pelo texto e os conteúdos nele
assertados.
A apresentação de algumas linhas de abordagens enunciativas, aqui esboçadas, tem
por objetivo uma melhor compreensão do objeto desta pesquisa e dos modos pelos quais as
três noções – enunciado, enunciação e enunciação representada – se constituem, fornecendose, assim, um primeiro esboço do quadro a partir do qual serão analisados os gêneros
escolhidos para essa pesquisa. A noção de enunciador, no escopo das abordagens
enunciativas, é de fundamental importância, uma vez que é a instância que pode se
responsabilizar pelo fato enunciado.
Partindo de Bally (1965), Desclès e Guentcheva (1997, p.1) admitem que qualquer
enunciado pode ser analisado em um “modus”, subjacente a um “dictum”. A distinção,
embora antiga (remonta aos estóicos, com a noção de lexis) é retomada em Linguistica, a
partir de Bally (1965). Em sua Teoria geral da Enunciação, este autor estabelece que todo
enunciado combina a representação de um processo ou um estado, que é o dictum, mas este
dictum é afetado por uma modalidade, correspondente à intervenção do sujeito falante, tal
dimensão é o modus. A modalidade, se define, sob esta perspectiva, como uma atitude
responsiva do sujeito falante frente a um conteúdo qualquer, é um posicionamento do
locutor, assim, entende-se o que Bally declara: “toda enunciação do pensamento pela língua
é condicionada lógica, psicológica e linguisticamente. Esses três aspectos somente se
recobrem em parte; seu papel respectivo é muito variável e muito diversamente consciente
nas realizações da fala” (BALLY, 1965, p.35). Um enunciado (ou frase, termo equivalente
na obra), então, é constituído linguisticamente e tem em si um lado lógico e um psicológico.
A enunciação é o ato que um sujeito realiza ao comunicar os seus pensamentos. Pensar
é “reagir a uma representação constatando-a, apreciando-a ou desejando-a” (BALLY, 1965,
p.35), e a representação consiste em uma noção da realidade que cada sujeito tem em si
38
mesmo. Bally adverte que “é preciso cuidar para não confundir pensamento pessoal e
pensamento comunicado” (BALLY, 1965, p.37).
Assim, um sujeito tem uma noção de realidade, criando uma representação do mundo,
dos outros e de si mesmo. Para exprimir seus pensamentos pessoais, ele faz com que
conceitos virtuais, do sistema linguístico (equivalentes aos signos saussurianos), sejam
atualizados, tornando-se conceitos reais, isto é, ligados à sua representação da realidade. Ou
seja, o sujeito toma os conceitos da língua – que são criados na mente de todos os sujeitos
de uma comunidade linguística – e faz com que se identifiquem com a sua representação de
mundo, pois “para se tornar um termo da frase, um conceito deve ser atualizado. Atualizar
um conceito é identificá-lo a uma representação real do sujeito falante” (BALLY, 1965,
p.77). Em outros termos, o sujeito, ao enunciar, faz um uso individual e único do sistema
linguístico.
O valor de uma frase está tão intrinsecamente relacionado à enunciação quanto à
modalidade, de tal forma que não se pode avaliar um sem considerar o outro, embora Bally
admita que seria didaticamente conveniente estudar separadamente as três partes da
enunciação, mas admite também que os fatores psicológicos do pensamento são tão bem
engrenados na estrutura lógica que não se pode abstraí-los e, por conseguinte, a forma
linguística não se separa das outras duas para fins de análise. Assim, o autor considera que
na análise lógica das formas de enunciação se encontram igualmente considerações sobre as
outras duas ordens.
Admite-se, assim, que toda frase contém, obrigatoriamente, uma modalidade que
permite ao locutor julgar o que uma coisa é ou não é, avaliar o desejável e o indesejável,
querer ou não querer. O modus e o dictum, são, aparentemente, duas noções que se imbricam
e são necessárias à realização de um enunciado.
Deve-se ainda acrescentar o fato de que o autor considera que a questão da reação do
sujeito enunciador é subordinada à definição da representação. É também uma relação muito
estreita que mantém os termos de uma frase, logicamente constituídos (o sujeito modal, o
verbo modal e o dictum). Um enunciado como “Eu creio que este réu é inocente” apresenta
um sujeito pensante (eu), operando um ato de julgamento (creio) sobre uma representação
(a inocência do réu). Assim todo enunciado é constituído de um sujeito modal (x, o que
reage), e de um dictum (a representação, ou objeto da reação), (cf.BALLY, 1965)
2.2.2. Enunciação: a base do funcionamento da língua
39
Pode-se dizer que a distinção entre enunciado e enunciação, nas abordagens
enunciativas, repousa sobre o seguinte fundamento: seu objeto, a enunciação, é abordada sob
a perspectiva de seu produto, o enunciado, ou ainda em termos das operações que a
conduzem. Este fundamento, no entanto, não é mais importante do que o objetivo de se
centrar sobre questões da língua em uso. Tal objetivo não é exclusivo das abordagens
enunciativas, uma vez que também foi apropriado por outras visadas, especialmente as de
concepção pragmática da linguagem, como, por exemplo, de uma forma muito específica,
com a corrente anglo-saxônica iniciada com a teoria dos Atos de Fala, e, de forma mais
abrangente, esta concepção pragmática parece ser parte do que Rastier (2001) designou
como tradição retórico-hermenêutica em oposição à tradição lógico-gramatical, postulando
que o sentido é definido pelos usos da língua.
A despeito da diversidade de abordagens enunciativas, define-se um traço em comum
entre elas: fundamentam-se sobre um posicionamento pragmático e postulam como objetivo
o estudo da língua em uso em oposição a uma concepção estruturalista dominante em
Linguística durante praticamente toda a primeira metade do século XX. No entanto, faz-se
necessário observar que tal avanço foi possível também porque traços dessa orientação já se
encontrava em estruturalistas como Bally e Jakobson, (cf. PAVEAU e SARFATI, 2006).
Da mesma maneira, Benveniste (1976) alia uma perspectiva estrutural a uma
perspectiva enunciativa afirmando que “além da enunciação, a língua nao é mais do que
possibilidade da língua” (BENVENISTE, 1976, p.71). O autor, ainda, define enunciação
como “a forma de funcionamento da língua por um ato individual de utilização”.
Compreende-se também que a enunciação se opõe ao enunciado assim como o ato de
produção se distingue de seu produto. Maingueneau (1992), contesta essa definição, ao
menos em parte, uma vez que a enunciação não deve ser concebida como apropriação do
sistema da língua pelo indivíduo, o sujeito não acessa a enunciação a não ser pelas múltiplas
restrições dos gêneros do discurso. Além disso, a enunciação não está baseada apenas em
seu enunciador, mas no espaço de interação, e nisto o autor concorda com Benveniste (1976,
p.85) que diz que o monológo, a despeito de sua aparente solidão, deve ser compreendido
como uma variedade de diálogo, estrutura fundamental sob cujas balizas se assenta a noção
de língua como resultado da interação social, aspecto que décadas depois emerge como pedra
basilar nos estudos sobre a língua.
O estudo dos atos individuais de utilização da língua se traduz, à primeira vista, num
problema: a enunciação não se reproduz jamais de forma idêntica (ANSCOMBRE e
DUCROT, 1976), de forma que as abordagens enunciativas consideram seu objeto a partir
40
do postulado segundo o qual a enunciação não está de todo circunscrita ao individal e
caótico, mas, sobretudo, preserva uma parte significativa passível de descrição em termos
de sistema. (MAINGUENEAU, 1992).
Na base da distinção entre o sistema da língua e seus usos individuais e únicos está o
postulado de que, a despeito do caráter singular e pontual de cada ato de enunciação, há
características comuns ou um esquema geral de enunciação, invariável em meio à
singularidade e multiplicidade dos atos.
2.2.3 O objeto de estudo das abordagens enunciativas
Historicamente os estudos em Linguística da enunciação encontraram seu ponto de
partida na análise das unidades dêiticas. Seu estudo faz parecer que tais unidades não seriam
compreendidas como categorias gramaticais, mas seriam consideradas, sobretudo, em
operações que englobam questões de embreagem, mecanismo por meio da qual um
enunciado se apresenta como sendo ancorado numa situação de enunciação ou
autonomizado. Esta relação da enunciação à sua situação de enunciação é a base das
tipologias enunciativas propostas por autores de filiação teórica bastante diversas, como, por
exemplo, Benveniste (1966) e Bronckart (1985). Este adota a idéia de uma ancoragem ou
autonomização manifestado pelo texto em relação à situação de enunciação, enquanto aquele
postula uma oposição entre discurso (enunciado ancorado) e a narrativa (enunciado
recortado da situação de enunciação).
A questão dos dêiticos, inicialmente comentada, conduz as abordagens enunciativas
ao sujeito e sua inscrição no enunciado, mas não são os únicos índices de uma instância
locutora na origem do enunciado, pois há uma série de outras marcas que revelam sobre esta
instância: são as marcas lexicais da subjetividade. Além disso, considere-se a idéia postulada
por Bally (1965) de que todo enunciado comporta um dictum, o dito, e o modus, ou, a
maneira de dizer, a atitude do locutor em relação ao que é dito. À dimensão referencial de
todo enunciado se junta a dimensão modal, que muito pode revelar sobre seu responsável. A
imagem do sujeito responsável pela enunciação é recuperada por meio do estudo sobre as
modalizações e a subjetividade na língua.
Observe-se que as abordagens enunciativas ainda se ocupam de outra questão: o
fenômeno da polifonia, sendo este um dos objetos alvo de grande parte dos estudos
empreendidos na perspectiva das abordagens enunciativas. A maioria dos estudos partem da
teoria polifônica desenvolvida por Ducrot, lastreada das discussões bakhtinianas relativas a
41
literatura. Um exemplo desses estudos é a teoria escandinava da polifonia, a ScaPoline,
propondo um quadro original a partir do confronto com a perspectiva adotada por Ducrot
(1984).
Antes ainda de avançar em detalhes sobre conceitos que são caros a esta pesquisa,
importa descrever um pouco mais o ponto de partida: a multiplicidade de vozes ou as
instâncias enunciativas na origem dos pontos de vista em um enunciado, que parece ser o
principio basilar das abordagens enunciativas/polifônicas, como se pode atestar em Perrin
(2004):
A noção de polifonia concebida aqui equivale a uma metáfora musical. Ela evoca
a imagem de um conjunto de vozes orquestradas na língua. As abordagens ditas
polifônicas procuram mostrar que o sentido dos enunciados e dos discursos, não
consistem apenas em expressar o pensamento de um sujeito falante empírico, mas
consistem, sobretudo, em evidenciar uma pluralidade de vozes enunciativas
abstratas. Assim, o significado se apresentaria em diferentes níveis, como um
conjunto de falas e pontos de vistal, mais ou menos heterogêneos, do qual o
intérprete se incumbiria de organizar para compreender o que é dito. (PERRIN,
2004, p. 266)11
Esta evidência de certa heterogeneidade enunciativa (AUTHIER-REVUZ, 1984) vai
ao encontro de uma concepção interativa da produção verbal. O fenômeno é, evidentemente,
descrito linguisticamente, mas poderia também ser considerado como o produto de duas
dimensões da enunciação: a interlocução e o interdiscurso. Tal constatação parece ser
condizente com a proposição da onipresença da subjetividade na linguagem (KERBRATORECHIONI, 1980) e, sobretudo, pelo que Bronckart (1985) caracteriza como uma
capacidade de autonomização do enunciado em relação à situação de enunciação, ou ainda,
pelo apagamento enunciativo (RABATEL, 2004): a subjetividade manifesta nos textos
científicos tem como base o apagamento da subjetividade do autor empírico, que está na
origem do texto.
Para se determinar de que modo uma abordagem polifônica pode servir à análise a que
se propõe, nesta pesquisa, a saber, das relações entre o nível de experiência do autor
científico e assunção ou não da responsabilidade enunciativa e os gêneros, é necessário
definir os fundamentos dessa abordagem. As principais questões envolvidas na elaboração
La notion de polyphonie tient ici d’une métaphore musicale. Elle évoque l’image d’un ensemble de voix
orchestrées dans le langage. Les approches dites polyphoniques cherchent à montrer que sens des énoncés et
des discours, loin de consister simplement à exprimer la pensée d’un sujet parlant empirique, consiste avant
tout à mettre en scène une pluralité de voix énonciatives abstraites. Le sens se présenterait ainsi, à différents
niveaux, comme un assemblage de paroles et de points de vue, plus ou moins hétérogènes, que l’interprète
serait chargé d’organiser pour comprendre ce qui est dit. (PERRIN, 2004, p. 266)
11
42
de um quadro em uma proposta de análise polifônica de textos acadêmicos passam,
necessariamente, pela definição das instâncias enunciativas, tema que será abordado no
tópico a seguir.
2.3 Da polifonia às instâncias enunciativas
A teoria da polifonia linguística, desenvolvida por Ducrot (1984) se assenta na base da
distinção entre enunciação e enunciado, a partir desta primeira distinção uma outra ainda se
sobressai em seu quadro teórico: a distinção entre sujeito falante e locutor. Sujeito falante é
definido como o sujeito empírico na origem de cada ato de enunciação e, como entidade
psico-sociológica é, efetivamente, o produtor do enunciado. Por locutor entende-se a
instância presente no próprio sentido do enunciado e que se responsabiliza pela enunciação.
Tal distinção é necessária para que não se confunda enunciação e enunciado, e, portanto, a
enunciação efetiva e a representada na enunciação.
Se a maioria das abordagens enunciativas atuais buscam integrar, de uma maneira ou
de outra, esta distinção, outros problemas ainda se colocam: problemas de ordem
terminológica, explicáveis, ao menos em parte, pelos problemas ou de objeto ou de níveis
de análise (frase/enunciado/texto x discurso) bem como o problema de delimitação das
fronteiras das instâncias enunciativas e da questão de suas eventuais relações. A esses
problemas soma-se ainda a questão da polifonia tratada também em termos de dialogismo,
ou ainda a questão da heterogeneidade enunciativa, do discurso reportado, do discurso
representado, da circulação dos discursos, que pode ou não situar esses objetos num quadro
de análise polifônica ou dialógica.
Como, no âmbito deste trabalho, não se poderia confrontar todos os termos reunidos
no conjunto dessas abordagens, buscou-se definir os principais conceitos, tomados como
conceitos-chave, e colocá-los em perspectiva num quadro unificador, com o objetivo de
centrar-se sobre os fundamentos e os desafios de uma análise de base polifônica, a fim de se
definir as diretrizes para essa análise, de modo que possa caracterizar as instâncias
enunciativas e definir quais se responsabilizam pelo conteúdo proposicional de um
enunciado e, possivelmente, em quais zonas textuais ocorre o evento.
Para tanto, toma-se, aqui, como ponto de partida o princípio de base da polifonia, com
os exemplos mais mobilizados na literatura disponível e, eventualmente, com exemplos
retirados do corpus desta pesquisa, condizente com a proposta de produzir uma análise de
43
textos a partir de dois conceitos basilares: o ponto de vista e sua prise en charge12. Tendo
em vista esses conceitos descreve-se neste capítulo, principalmente, a teoria escandinava de
polifonia lingüística (ScaPoLine) e a teoria da polifonia de Ducrot (1984), desembocando, a
partir daí, nas considerações rabatelianas acerca do ponto de vista, procurando observar
como cada uma das abordagens considera os problemas do ponto de vista, sua gestão e
apresenta as ferramentas para uma análise polifônica. Desta forma, apresenta-se nos
próximos tópicos os fundamentos enunciativos e polifônicos das instâncias envolvidas no
ato enunciativo. Tanto quanto no tópico inicial, os elementos de reflexão sobre algumas
abordagens teóricas de um mesmo objeto ultrapassam o objetivo da análise deste trabalho,
no entanto, demonstram o quão produtivo é o confronto dessas abordagens para melhor
compreender os instrumentais teórico-metodológicos e sua relevância para a análise textual.
2.3.1 Polifonia
Numa definição relativamente simplista, pode-se dizer que a polifonia corresponde às
multiplas vozes e pontos de vista num enunciado. A designação decorre de um processo
metafórico, cuja referência, no universo musical, equivale ao resultado de um diálogo entre
sons de instrumentos diferentes que ora se repetem, ora retomam, ora continuam e ora se
confrontam, (PERRIN, 2004).
Um exemplo frequentemente mencionado, especialmente por Ducrot (1984) e na
ScaPoLine (2001), é o da negação, como em: “Esta parede não é branca”. Um enunciado
como esse é descrito sob a perspectiva do desdobramento de pontos de vista relacionado à
negação: o enunciado compreende um ponto de vista, chamado de pdv1, cujo conteúdo
semântico poderia ser explicado da seguinte maneira: esta parede é branca, e um ponto de
vista segundo, de acordo com o qual pdv1 não é validado.
A questão que ainda se coloca é a da prise en charge enunciativa dos pontos de vista.
Os dois pontos de vista relacionados a uma negação se diferenciam a este ponto: o pdv 1
(esta parede é branca) não se associa à nenhuma instância de prise en charge enquanto o
pdv2 (significa que pdv1 não é válido) se apresenta como passível de ser atribuído à instância
que, no enunciado, se apresenta como aquele que realiza a prise en charge, o locutor no
sentido ducrotiano, LOC.
12
Preferiu-se não traduzir o termo francês prise en charge sob risco de traduzir por um termo, em português,
cujo conceito não seja exatamente o equivalente ao termo em francês.
44
As análises de base polifônica, tais como as empreendidas por Ducrot (1984), ou pela
ScaPoLine (2001), a proposta por Rabatel (2003, 2004, 20060 ou ainda a proposta de Brès
e Verine (2002) em termos de dialogismo, têm em comum a questão de se buscar determinar
quais pontos de vista podem ser atribuídos ao locutor (LOC).
A leitura proposta acima com o exemplo bem conhecido da negação é consensual: é o
pdv2 que remete ao LOC, enquanto o pdv1 se caracteriza por uma ausência de marcação de
qualquer instância enunciativa.
Mas, se por um lado há abordagens que tomam como ponto de partida a questão do
ponto de vista centrando-se sobre a questão das instâncias enunciativas, por outro lado há
outras abordagens que se centram prioritariamente sobre essas instâncias tomando como
ponto de partida o conceito de desdobramento enunciativo ou a heterogeneidade enunciativa.
Para ilustrar essa discussão pode-se tomar, por exemplo, um fenômeno considerado
como um caso típico de polifonia e dialogismo, o condicional. Encontram-se múltiplos
exemplos em várias obras que tematizam questões enunciativas em análises muito
semelhantes incluindo-se a do dialogismo desenvolvida por Brés (1999), como se vê nos
exemplos abaixo:
(1a) O professor faltará amanhã
(1b) O professor faltaria amanhã13
Em (1a) um único ponto de vista ou uma única voz interveem, se se fala de ponto de
vista é consensual aceitar que ele pode ser atribuído ao LOC, se se fala de voz, dir-se-á que
ele é o enunciador de um enunciado, o que corresponde neste caso, ao LOC. Já o enunciado
(1b) representa um caso de polifonia ou dialogismo. À primeira vista poder-se-ia dizer que
o futuro do pretérito, o condicional, sugere um distanciamento enunciativo: o LOC não
assume completamente a asserção, sendo tomado como um exemplo clássico de non prend
en charge. Eis a razão pela qual se fala em condicional epistêmico14 ao se tratar das formas
do condicional: tais formas se relacionam com a questão da gradação da asserção, e,
indissociavelmente, da questão da gradação da prise en charge da asserção pelo locutor, bem
como da gradação na certeza da asserção.15
13
As considerações de Brés (1999) dizem respeito ao uso do condicional (conditionnel présent) na língua
francesa, correspondente ao futuro do pretérito simples na língua portuguesa. Frequentemente pode ser
encontrado em textos jornalísticos, mas muito raramente se ouviria uma fórmula como a de 2b em língua
portuguesa, sendo mais recorrente o verbo de opinião “acho” seguido pela locução verbal “vai faltar”, ou ainda
o modalizador “parece que” também acompanhado da locução verbal vai faltar.
14
Também se convencionou denominar “condicional jornalístico” uma vez que é muito usado em textos
jornalísticos.
15
Vem à tona, com esse exemplo, a relação existente entre as questões da modalizaçao e da polifonia, na
medida em que a estrutura polifônica determina uma modalização específica dos pdv’s 1 e 2.
45
Considera-se, de todo modo, inadequado dizer que o LOC expressa dúvida ou reservas
quanto ao conteúdo assertado, o que seria equivalente a ultrapassar os limites que se deve
observar na análise linguística, uma vez que se conferiria à instância enunciativa – o LOC –
atributos próprios ao locutor, não no sentido de representação do responsável pelo
enunciado, mas no sentido de responsável pelo ato de enunciação. Em outras palavras,
considerando-se o material linguístico em si, a descrição não se satisfaz com uma análise
passível de dúvidas, e, se se pode falar em distanciamento, ainda resta caracterizar este
fenômeno na perspectiva enunciativa.
É nesta perspectiva que se introduz a noção de desdobramento enunciativo, para dar
conta da tarefa de diferenciar entre (1a) e (1b). Enquanto o enunciado (1a) apresenta apenas
um ponto de vista e apenas uma única instância enunciativa, o enunciado (1b) se caracteriza
por um desdobramento, pelo qual o LOC se desencarrega da responsabilidade da asserção
“O professor faltaria amanhã”: pelo condicional, tal asserção se apresenta como passível de
imputação a uma outra instância enunciativa. Implicada pelo condicional, essa instância
poderia ser também introduzida pelo marcador como “Segundo” ou pela indefinição da 3ª
pessoa:
(1c) Segundo o diretor, o professor faltaria amanhã.
(1d) Me disseram que o professor faltaria amanhã.
Considera-se, assim, que o desdobramento enunciativo observado em (1b) consiste em
postular dois enunciadores, no sentido das instâncias de prise en charge enunciativa: o
enunciador responsável pela asserção “O professor faltará amanhã” e o enunciador
responsável pelo enunciado (1b), o LOC, que por meio do condicional se apresenta em
posição de prend en charge da asserção imputada ao primeiro. O desdobramento enunciativo
é concebido como sendo base para o fenômeno.
2.3.2. A condução de uma abordagem polifônica e seus desafios
Os desafios da análise numa perspectiva polifônica têm seus fundamentos na questão
da multiplicidade dos pontos de vista e das vozes observáveis na maioria dos enunciados.
A questão da multiplicidade de vozes parece ser mais discutida do que a dos pontos de
vista, sendo mais comumente tratada e variadamente designada por diferentes abordagens.
Desta forma o termo "enunciador" não parece gozar de status idêntico em todas as
abordagens, no entanto tal designação parece bastante usada geralmente para explicar o
ponto de vista da fonte, seguindo-se o quadro analítico proposto por Ducrot (1984). Este é,
46
particularmente, o caso de duas abordagens que soam especialmente relevante para este
estudo, a abordagem da multiplicidade e da hierarquia enunciativa desenvolvida pela análise
de Rabatel (2003, 2004) e do dialogismo desenvolvida por Brès e Vérine (1999, 2002).
Ressalta-se o fato de que a própria noção de enunciador padece de certa instabilidade,
devido, principalmente, à diversidade de abordagens e à maneira específica com a qual
algumas tratam (total ou parcialmente) a distinção entre sujeito falante na origem do ato de
enunciação e a instância que, no enunciado, se apresenta como responsável pelo ato de
enunciação, e, ainda, as instâncias na fonte dos pontos de vista envolvidos num enunciado.
Assim, o termo enunciador pode, na literatura consultada nesta pesquisa, tanto se referir à
instância responsável pelo ato de enunciação, o sujeito falante na perspectiva de Ducrot
(1984) como também pode se referir ao locutor, no sentido ducrotiano mesmo (LOC). Tal
polissemia é justificável em casos como do quadro da ScaPoLine: parece haver uma recusa
a se recorrer à tal noção de enunciador sem que se renuncie ao trato da questão da fonte dos
pontos de vista.
A segunda dificuldade que o termo enunciador comporta não é muito diferente da
questão da distinção das instâncias, de tal forma que as teorias enunciativas, de diversas
orientações, tocam nesta dificuldade e a tematizam. Assim, Ducrot (2001) designa
explicitamente os “equívocos da língua” que não deixam de cumprir seu papel no texto. Na
teoria da ScaPoLine são as citações que singularizam o tipo de equívoco da língua quando
aborda o fato de que os pontos de vista são associados aos sujeitos e aos pontos de vista.
Assim, falar de ser discursivo ou de sujeito parece, de todo modo, inevitável.
A própria noção de LOC se apresenta problemática, uma vez que as propriedades
agentivas ou subjetivas que sugerem os termos de locutor ou enunciador fazem confundir a
distinção anteriormente discutida entre sujeito falante, locutor e enunciador. Pode-se objetar
que sua distinção é desnecessária. Mas, em alguns estudos (RINCK, 2011), considerar uma
instância enunciativa como sujeito ou ser discursivo não é algo trivial, tampouco atribuir a
essas instâncias às propriedades não textuais de sujeito, agente ou ser, pois se trata da
representação de um sujeito posicionado no enunciado através dos pontos de vista que o
enunciado carrega. Um dos atributos da análise polifônica é ser capaz de especificar em que
estas instâncias podem ou não ter o estatuto de sujeito considerando-se o modo como elas se
apresentam no enunciado.
Sob esta perspectiva pode-se preferir a denominação instância ou fonte enunciativa à
enunciador. No entanto, contra essa escolha poderia se objetar que a formulação não elimina
a ambiguidade: o adjetivo “enunciativo” não permite diferenciar se se trata de uma questão
47
de enunciação ou de enunciado. Definitivamente, como se trata de uma instância linguística
acaba sendo importante também definir linguisticamente esta instância.
Pode-se ainda se referir ao quadro da análise linguística da polifonia conforme
proposto por Ducrot (1984), em que se define os enunciadores como seres que deveriam se
expressar através da enunciação, sem que para isso seja necessário atribuir quaisquer
palavras, se eles “falam” é apenas neste sentido que a enunciação é vista: como uma
expressão de seus pontos de vista, de suas posições, suas atitudes, mas não no sentido físico
de suas palavras. Retém-se deste autor a ideia de que os enunciadores “falam” no sentido de
que como instâncias na fonte do ponto de vista, seus pontos de vista são expressos no
enunciado. Isto também remete à ideia anteriormente discutida a respeito das vozes
envolvidas no enunciado, em particular no caso do condicional: não está claro que no caso
de “O professor faltaria amanhã” o enunciador esteja falando como se fosse a fonte do pdv1
“O professor faltará amanhã”. Dizer que se subentende sua voz ou, melhor, que o enunciado
faz entender sua voz é mais adequado. De todo modo, nesta pesquisa preferiu-se adotar o
ponto de vista como ponto de partida, para então abordar secundariamente a questão de sua
prise en charge enunciativa.
2.3.3 PDV – definição e seu estatuto nas análises de base polifônica
É importante aprofundar-se na noção do ponto de vista se se quiser melhor definir esta
instância enunciativa como sendo a base de uma análise polifônica. A noção de ponto de
vista, cf. Rabatel (1997), tem suas origens na crítica literária. É neste quadro que Pouillon a
introduziu em 1946, e é com Ducrot em 1984 que a noção se integra à análise da polifonia
linguística, que, no entanto, não é exclusiva, uma vez que a noção aparece diversamente
mobilizada em perspectivas literária, linguística, semiótica ou hermenêutica.
Reconstituindo a trajetória da noção de ponto de vista, Rabatel (1997), sublinha a idéia
de que a análise literária do ponto de vista tende a privilegiar a questão de sua fonte ou
origem. No campo linguístico, é relativamente pouco teorizado em Ducrot (1984), que utiliza
a noção em concorrência com a noção de enunciador, cf. Nølke e e Olsen (2000).
A análise da polifonia, no nível textual, se inscreve na seguinte perspectiva: ela deve
permitir definir como um ponto de vista, enquanto opinião assumida pelo autor, se constrói
linguisticamente, na multiplicidade e a hierarquização dos pontos de vista que caracterizam
a polifonia do texto. A ideia é que, ao menos em certos gêneros (e em particular os gêneros
que concernem a esta pesquisa), o texto apresenta um ponto de vista coerente, que pode ser
48
creditado ao seu autor, ou seu produtor, na forma de opinião ou de tese por ele defendida. O
ponto de vista do autor se constrói no texto e resulta da dimensão polifônica do texto: o jogo
dos pontos de vista, no sentido linguístico, deve ser conduzido de tal forma que possibilite a
construção de um ponto de vista coerente e atribuível ao autor do texto.
Para se definir o ponto de vista, e, por conseguinte, a questão de sua fonte em termos
linguísticos, pode-se referir à teoria escandinava da polifonia linguística (ScaPoLine) de um
lado e aos trabalhos de Rabatel, por outro lado. Ambos atendem a este requisito num quadro
de análise firmemente ancorado numa perspectiva de análise dos textos: embora a teoria
escandinava se apresente como uma teoria fundada sobre a perspectiva enunciativa, seus
mais recentes desenvolvimentos destacam a idéia de que a análise linguística realizada na
enunciação e suas estruturas linguísticas subjacentes devem servir à análise de textos de
qualquer gênero. Esclarece-se, por fim, que a análise de textos literários fundada sobre sua
materialidade linguística é apenas mais um dos objetivos de uma análise linguística da noção
de ponto de vista. Tal foco linguístico se vê mais amplamente utilizado na análise de uma
numerosa quantidade de textos e práticas linguageiras, em virtude da relação entre polifonia
e argumentação, analisados em princípio por Ducrot (1984) através da questão dos
pressupostos. O interesse dessas abordagens no contexto deste estudo diz respeito à
incumbência de definir os fundamentos de uma análise textual em suas dimensões
enunciativa e polifônica enquanto características peculiares a um determinado gênero.
Esta pesquisa apresenta, nesta etapa, um duplo objetivo: primeiro de buscar, dentre o
quadro referencial pesquisado, uma base linguística para a noção de polifonia e, em segundo
lugar, aplicar os pressupostos teórico-metodológicos dos quadros de análise da polifonia no
nivel textual, que caracteriza a ScaPoline e os trabalhos de Rabatel, e por essa razão, dedicase, neste capítulo, dois tópicos para descrever os princípios dessas duas abordagens.
Na perspectiva de um quadro conceitual e metodológico para a análise de textos sobre
uma dimensão polifônica, três eixos guiaram a leitura que se fez, nesta pesquisa, das duas
abordagens mencionadas: i) proporcionar uma melhor compreensão de como o ponto de
vista é definido; ii) como é tratada a questão de sua prise en charge, e, por fim, iii) como os
autores se propõem a realizar a análise da polifonia no nível global do texto.
2.4 A análise do ponto de vista e dos aspectos polifônicos na teoria escandinava da
polifonia linguistica (ScaPoLine)
49
Como ponto de partida a ScaPoLine considera como seu objeto, a estrutura polifônica,
enquanto fato de língua que transcende o nível frástico, além disso, outro objeto de igual
interesse nesse quadro teórico é a configuração polifônica que se apresenta no nível do
enunciado, (NØLKE et al, 2004). É o que se considera, em conformidade com os
fundamentos das abordagens enunciativas antes descritas, como resultado da enunciação de
uma frase, resultado que fornece uma imagem de sua enunciação.
Os autores sinalizam que, a exemplo de Ducrot (1984), eles falam de enunciado
enquanto segmento textual dotado de um sentido autônomo e de frase enquanto unidade da
língua subjacente ao enunciado. A descrição semântica do enunciado e da frase é designada,
respectivamente, sentido e significação. Esta última, objeto de estudo mais imediato da teoria
escandinava da polifonia linguística, é compreendida como um conjunto de instruções para
se construir o sentido do enunciado, e assume as interpretações efetivas do enunciado.
Desta forma, a análise toma o enunciado e sua estrutura polifônica como ponto de
partida, tanto para dar conta da configuração da estrutura polifônica como para definir os
contornos da interpretação desta configuração. A estrutura polifônica é definida nos
primeiros textos como pedra angular nos estudos da teoria escandinava objetivando melhor
compreender a construção do sentido a partir das instruções, compreendidas como elementos
marcados na significação. Na perspectiva enunciativa da ScaPoLine, tais marcas são
consideradas como marcas dos elementos de configuração polifônica.
Nas revisões subsequentes e desenvolvimentos mais recentes da teoria (NØLKE et al,
2004) a conexão entre forma e sentido é explicitamente alçada a status de objeto de análise,
uma vez que se demanda definir as instruções que as formas linguísticas aportam para a
interpretação do texto.
A passagem entre a estrutura polifônica e a configuração polifônica torna-se a questão
central e se funda sobre as noções de variáveis e de saturação, noções que serão mais
detalhadas adiante. Enfim, o modelo geral da ScaPoLine é o seguinte: na medida do
permitido pelas instruções estabelecidas pelo significado (linguagem), as estratégias
interpretativas consistem em um preenchimento das variáveis e seus relacionamentos.
As variáveis (isto é, o que anteriormente se denominou ‘enunciadores’) fazem parte
das instruções, que também são indícios de preenchimento, isto é, sua atribuição aos seres
discursivos, e é o co(n)texto que permite um preenchimento relevante para interpretação.
Nota-se, igualmente, que as evoluções da ScaPoLine atestam um interesse mais
firmemente ancorado numa perspectiva de análise textual. Inicialmente, a distinção
língua/enunciação ou frase/enunciação foi central, bem como em demais abordagens
50
enunciativas, interessadas pela questão da atualização da língua nos enunciados.
Tal
distinção, posteriormente reformulada nos termos forma/sentido, se inscreve no que parece
ser uma visada particularmente interessante, a de pesquisar, no texto, os elementos que
determinam sua interpretação. O quadro de análise permanece, assim, em adequação àquele
da polifonia linguística proposta por Ducrot: funda sua análise sobre o material linguístico.
Na perspectiva desta pesquisa, o texto é considerado o material linguístico por
excelência, tanto quanto o enunciado. Considera-se que a originalidade da ScaPoLine reside
em tentar resolver o problema da passagem entre a análise de enunciados, muitas vezes
restritos e descontextualizados, e a análise polifônica no nível textual. Esta é a renovação em
relação à abordagem inicial, cf. Nølke (2001):
A ScaPoLine é uma teoria discursiva. Ainda que seu domínio (imediato) seja o
enunciado, não perde de vista a ideia de que a noção de enunciado não tem o menor
sentido senão como parte do discurso. Este fato se reflete, dentre outros, nas
ferramentas heuristicas das quais se serve. Assim, os testes de encadeamento
diferentes servem como ferramentas heuristicas primordiais. Parece, então, natural
que tentar elaborar a ScaPoLine de modo a fazê-la funcionar de au delà
enunciado. Nós já haviamos feito algumas proposições concernente ao
desenvolvimento de uma aplicação propriamente textual da ScaPoLine e este
aspect vai ocupar um lugar central nas investigações seguintes. Esta elaboração é
fundamental no quadro dos polifonistas escandinavos, pois não é senão no nível
textual que linguistas e literatos podem seencontrar. (NØLKE, 2001, p.65)16
2.4.1 Os pontos de vista e a questão de sua fonte na ScaPoLine
A questão que ainda se coloca é saber como abordar a relação entre os pontos de vista
no nível do enunciado e no nível do texto. Observa-se, nesta etapa, que o encadeamento de
enunciados, mencionados por Nølke 17 , não é uma ferramenta à serviço da análise da
16
La ScaPoLine est une théorie discursive. Si son domaine (immédiat) est l'énoncé, elle n'oublie jamais que
l'énoncé ne trouve sa raison d'être que dans le fait qu'il fasse partie d'un discours. Ce fait se reflète entre autres
dans les outils heuristiques dont elle se sert. C'est ainsi que les tests d'enchaînement différents servent
comme son outil heuristique primordial. Il semble donc naturel d'essayer d'élaborer la ScaPoLine de manière
à la faire fonctionner au delà de l'énoncé. Nous avons déjà fait quelques propositions concernant le
développement d'une application proprement textuelle de la ScaPoLine et cet aspect va occuper une
place centrale dans nos investigations à venir. Cette élaboration est en effet strictement nécessaire dans
le cadre du projet des polyphonistes scandinaves, car ce n'est qu'au niveau textuel que peuvent se rencontrer
linguistes et littéraires. (NØLKE, 2001, p.65)
17
Note-se, primeiramente, que o encadeamento de enunciados é considerado pela ScaPoLine como uma
ferramenta para determinar se se está ou não lidando com um ponto de vista, conforme descrito em Coco
Noren (2000) que, de todo modo, demonstrou os limites deste critério, como se vê: La présence des deux PDV,
l 'un affirmatif et l 'autre négatif, est confirmée par le fait que l 'on peut enchaîner sur les deux. Les suites 1a.
et 1b. enchaînent sur le PDV négatif, alors que 2a., 2b. et 2c. enchaînent sur le PDV positif. Deux remarques
peuvent être faites à ce sujet. Premièrement, on devrait préciser ce qu'on entend par « enchaînement » . Pris
dans un sens large, il n'est guère opératoire pour identifier les PDV, puisque la catégorie d'enchaînements
potentiels est ouverte. Il faudrait alors préciser de quel type d'enchaînement il est question, pour ne pas
51
polifonia textual, na medida em que os pontos de vista não são a questão central: como
sublinha Nølke (2004) todo o problema da análise polifônica no nível do texto remete à
questão da instanciação das variáveis que são os enunciadores. Para explicar como as
variáveis da estrutura polifônica, analisadas em um enunciado restrito à uma frase ou numa
sequência de enunciados, poderiam ser preenchidas no nível de interpretação do texto, a
ScaPoLine tenciona determinar as relações entre os pontos de vista e os seres discursivos
(NØLKE et al., 2004).
Os pontos de vista são o objeto de uma definição semântica na teoria escandinava: eles
são compreendidos como uma unidade semântica decomponível em dois componentes: um
conteúdo e um julgamento. Esta análise do ponto de vista faz eco à proposta de C. Bally
(1965) para o enunciado (não para o ponto de vista), já mencionada em tópicos anteriores,
em cujo princípio se postula que o enunciado compreende um dictum, o dito e um modus,
que remete à atitude daquele que diz sobre o que é dito. Noren (2000) demonstra que a
definição do ponto de vista em conformidade com o estabelecido por Nølke na ScaPoLine
se aproxima claramente da concepção de Kronning (1996, p.44), cuja proposta encontra um
modus e um dictum no ponto de vista. Os limites desta distinção são conhecidos no nível do
enunciado: embora seja pertinente é pouco operatória, na medida em que se torna muito
difícil distinguir os dois componentes na materialidade linguística, pois o modus nem sempre
é marcado ou se confunde com o dictum.
A unidade denominada ponto de vista ainda traz à tona o mesmo problema que se
coloca em relação ao ‘ponto de vista simples’ da ScaPoLine, no caso de um enunciado
monofônico ou em que apenas um ponto de vista intervem (como, por exemplo: “Está tudo
bem”). Neste caso, dizer que o ponto de vista se compõe de um julgamento ou de uma atitude
sobre o ponto de vista se torna uma tarefa de difícil descrição.
A dificuldade pode ser visualizada já na distinção de Bally se se considerar que o
modus remete a um LOC, como, por exemplo, a instância que no enunciado se apresenta à
questão da prise en charge enunciativa. Neste caso, pode-se conceber que, mesmo não
marcado num enunciado como “Está tudo bem”, o modus dá conta da presença de um
enunciador (na ocorrência de um LOC, isto é, como a instância que se apresenta como o
produtor do enunciado).
accepter « le coq à l 'âne ». Dans l 'absolu, tout enchaînement peut recevoir un sens, à condition de trouver le
contexte, peut être exceptionnel, dans lequel ceci serait possible.
52
Entretanto, no nível do enunciado, tal como é analisado na ScaPoLine, não parece se
colocar a questão da prise en charge modal do conteúdo que é visado por outro componente,
o julgamento: este problema é resolvido, definitivamente, de modo diferente, usando-se
enunciadores e relações de variáveis (chamadas enunciadores), permite-se que o
preenchimento discursivo seja esta variável, como se verá mais adiante.
Ao tomar-se como exemplo o enunciado “Está tudo bem” se está lidando com um
ponto de vista monofônico, em que a variável “enunciadores” é preenchida pelo ser
discursivo que corresponde ao locutor (LOC), o que significa dizer que o locutor está ligado
a este pdv “Está tudo bem” por uma relação enunciativa: ele é considerado como uma
instrução correspondente a uma regra de acordo com a qual na ausênca de um comentário
contrário, o valor padrão estabelece que o locutor (ou, mais precisamente na perspectiva da
ScaPoLine, um locutor do enunciado) seja a fonte deste ponto de vista, o que quer dizer, na
perspectiva da ScaPoLine, o responsável pelo ponto de vista. Aprofundando-se a questão do
modus e enquadrando-o a partir do ponto de vista, em vez do enunciado, a ScaPoLine
relaciona o modus a este tipo de enunciados monofônicos.
Se o componente ‘modus’ do enunciado monofônico é regrado pela questão do
preenchimento da variável ‘enunciador’, relacionada ao ponto de vista, resta ainda a questão
de como interpretar a dupla conteúdo-julgamento que definem o ponto de vista – e assim o
enunciado monofônico, em que um ponto de vista simples se manifesta.
A tarefa é
possibilitada trabalhando-se com a premissa de que, de alguma forma, o componente
julgamento do ponto de vista possa ser considerado como o nó que torna possível a relação
entre ponto de vista e prenchimento por seres discursivos na perspectiva escandinava, ou a
ligação entre uma fonte ou de uma instância que se responsabiliza pelo ponto de vista.
Ao seguir-se essa idea, num enunciado monofônico como “Está tudo bem” haverá que
se considerar:
 -um ponto de vista ou a associação de um julgamento e de um conteúdo;
 -a variável enunciador, a relação que permite o preenchimento dessa variável por um
ser discursivo (na ocorrência do locutor, instância que se apresenta como responsável pelo
enunciado). Mais precisamente, dir-se-á que o locutor de um enunciado é o responsável pelo
ponto de vista. Ainda, junta-se, no caso dos enunciados monofônicos, uma descrição simples
do ponto de vista: “Está tudo bem” enuncia um ponto de vista que por sua vez tem um
conteúdo (o que quer que tenha sido dito) e qualquer coisa que seja dita ou pensada.
No entanto, soa um pouco redundante analisar a estrutura interna do ponto de vista em
termos de conteúdo proposicional e julgamento sobre o conteúdo, ainda que a prise en
53
charge do ponto vista seja resolvida, também, em termos de relações enunciativas no início
e na evolução da ScaPoLine , com a variável enunciador e seu preenchimento, pois as
relações enunciativas caracterizam a dimensão “julgamento” atribuída a todo ponto de vista.
A redundância justificaria, num primeiro momento, a recusa da ScaPoLine em aceitar
a noção de enunciador tal como se encontra elaborada em Ducrot (1984) como bem observou
Norén (2000, p.4), a noção é, de fato, considerada “ (...) supérflua, pois o PDV exige
obrigatoriamente que qualquer um veja. Em Linguística, é suficiente que se identifiquem os
diversos PDV num enunciado ou em um microtexto e que se o designe como o PDV
assumido pelo locutor. ”18
Tratada em termos de relações enunciativas, a questão da prise en charge dos pontos
de vista não abarca completamente o problema da redundância, sem contar que a variável
“enunciadores” é finalmente reintroduzida a fim de melhor se compreender a proximidade e
a compatibilidade do quadro de análise proposto pela ScaPoLine com aquele proposto por
Ducrot (1984). Nølke (2001, p. 47) demonstrou que este objetivo reflete melhor a analogia
entre a ScaPoLine e a abordagem de Ducrot, sublinhando, em nota de rodapé, que a
reintrodução da noção de enunciadores é uma “complicação inútil na economia do sistema”
Se se propõe ver na componente do pdv denominada “julgamento” um nó que torne
possível a relação com aquele ponto de vista ligado a um ser discursivo e que pode preencher
a variável “enunciador”, então, considerar-se-ia que o aparato conceitual assim constituído
pareça um pouco redundante, mas, de todo modo, tem o mérito de insistir no fato de que o
pdv comporta uma dimensão modal relacionada à sua dimensão referencial , como já
evidenciado por Kronning (1996, p.44) ao contrário de Ducrot (1984) para quem a questão
da referência é excluída de uma análise na língua.
Observa-se, novamente, que a oposição língua e enunciado tende a opacificar as teorias
polifônicas. Sua vantagem parece ser a de tomar o texto como objeto, em sua materialidade
linguística, demonstrando as relações entre o que é observável no nível do enunciado restrito
ao quadro frástico e o que é observável em sua sequência de texto.
A ideia de que o pdv, enquanto unidade semântica, associa alguma coisa do dito (um
conteúdo proposicional) e uma componente modal remete ainda a uma ideia largamente
admitida em Linguística, ainda que em graus variados, de que a língua não poderia ser
superflue puisque le PDV implique obligatoirement que quelqu’un voit. En Linguistique, il suffit donc que
l’on identifi les divers PDV dans un enoncé ou un microtexte et que l’on designe le PDV pris en chare par le
locuteur.” (NORÉN, 2000).
18
54
considerada apenas em termos de proposições sobre uma realidade empírica existente
independentemente da língua.
2.4.2 Os objetos discursivos e o preenchimento dos pontos de vista no texto na
perspectiva da ScaPoLine
Os seres discursivos, conforme a proposta da teoria escandinava da polifonia
linguística, são unidades semânticas cuja propriedade é prencher a variável “enunciador”,
em outras palavras é a instância que se apresenta como a fonte de um ponto de vista. Um ser
discusivo relacionado a um ponto de vista por uma relação de responsabilidade (ou relação
enunciativa) é compreendido como a fonte do ponto de vista. Ser a fonte ou o responsável
pelo ponto de vista significa, na ScaPoLine, ser responsável pelo componente “julgamento”
do ponto de vista.
Inicialmente definidos de maneira alternativa como as pessoas linguísticas presentes
no texto ou como entidades do universo de discurso, os seres discursivos, tendem, nas
evoluções da ScaPoLine, a designar as imagens de diferentes personagens presentes no
discurso. Embora se possa questionar sobre a clareza de tal objeto de análise a ideia é que os
seres discursivos, como relações enunciativas, possam ser marcados na significação, mas
não forçosamente, de modo que as regras permitam que se construa o sentido apropriado.
Os seres discursivos são considerados construções do locutor, cuja definição, na
ScaPoLine é muito próxima daquela proposta por Ducrot: é um elemento que no enunciado
se apresenta como responsável pela enunciação. O LOC é o construtor dos elementos que
compõem a configuração polifônica, e, como construtor do sentido e da configuração, o LOC
não é apenas um ser discursivo: ele dirige todos os seres discursivos, por um lado e, por
outro lado, ele pode construir os seres discursivos como imagens dele mesmo.
Do conjunto dos seres discursivos identificáveis, alguns são imagens de LOC, mas
essas imagens de LOC não são os únicos personagens que se manifestam; em particular, na
leitura da ScaPoLine III (NØLKE 2001), em que o LOC constrói também imagens de outras
instâncias enunciativas, como o ALOC, por exemplo, (elemento do sentido que no enunciado
se apresenta como aquele a quem se dirige a enunciação).
De uma perspectiva ainda mais abrangente, poder-se-ia dizer que os seres discursivos
são os objetos de uma distinção entre diversas categorias, em função dos seus atributos
enunciativos. A ScaPoLine propõe então que os seres discursivos sejam encarados como
locutores virtuais ou não-locutores: os locutores virtuais são os seres discursivos que se
55
apresentam como mera imagem de locutores, ou são os personagens passíveis de tomar a
fala, enquanto os não-locutores são os seres discursivos mais abstratos, são apresentados sem
a propriedade de poder produzir eles mesmos uma enunciação.
Nesta perspectiva, as imagens de LOC e de ALOC correspondem à dos locutores
virtuais, com os terceiros, definidos como locutores virtuas indicados sobre um modo
delocutado, pelos pronomes de terceira pessoa ou sintagmas nominais. Os não-locutores se
encontram privilegiadamente marcados nos índices de impessoalização, como o “on” do
francês ou o “se”, em português, que, por vezes, remete para um enunciador dóxico.
Levando-se em conta as diferentes formas sob as quais se apresenta um ponto de vista,
os locutores virtuais são o objeto, na ScaPoLine, de uma nova distinção com os locutores
‘strictu sensu’: se o locutor virtual tem as propriedades de um locutor strictu sensu, mas não
as usa, então este as atualiza virtualmente na fala. A distinção entre locutor strictu sensu e
locutor virtual ´pode ser também entendida como uma distinção entre um locutor virtal, em
que as propriedades de locutor são atualizadas no texto e um locutor virtual em que as
propriedades de locutor não são atualizadas.
Assim, o condicional, de acordo com a discussão que se fez no ínicio desta seção, é
compreendido como um locutor virtual: o ponto de vista subjacente tem como fonte uma
instância que se apresenta, virtualmente, como enunciador ou ter enunciado o ponto de vista.
Nesta perspectiva é possível associar à “O professor faltaria amanhã” uma especificação do
tipo “Segundo o sr. Diretor”, o locutor virtual implicado pelo condicional se encontra
atualizado pela designação “Sr. Diretor”. Assim, observa-se dois seres discursivos ou duas
imagens de locutores stricto sensu: o locutor do enunciado e o locutor “Sr. Diretor”.
Mais uma vez se observa a proximidade da análise dos seres discursivos com a dos
enunciadores do quadro de Ducrot (1984), bem como com outras análises ainda menos
lembradas, como por exemplo, a de Brés e Verine (2002): distinguem as fontes de pontos de
vista que se apresentam como reveladoras, ou pode-se dizer, se apresentam como uma fonte
de ponto de vista sem poder ser assimilado às fontes locutórias capazes de produzir um
enunciado.
Esta distinção não é tematizada em Ducrot (1984), que, ainda, sugere que os
enunciadores não se exprimem todos no mesmo título. Ao contrário, ele estabelece, bem
como Brés e Verine (2002), um quadro de análise do dialogismo que integra formas
explícitas do discurso relatado, onde um locutor é encenado no texto e os turnos onde o
enunciador não se apresenta como locutor, como por exemplo na ausência de uma fonte do
tipo “Segundo o Sr. Diretor” num enunciado como “O professor faltaria amanhã”.
56
Na ScaPoLine, de maneira similar, toma-se como marca, ou na ausêcia de marcas, as
regras que se podem aplicar. A questão da instanciação da fonte dos pontos de vista se
apresenta como sugerido anteriormente, ou seja, num foco em diferenciar os turnos
polifônicos, de um lado, e, por outro, em analisar a maneira pela qual os pontos de vista se
encontram ligados ao LOC no nível do texto através de diferentes imagens.
Neste ponto, a ScaPoLine segue a análise ducrotiana em sua proposta de distinguir
duas imagens de LOC, imagens que também são encontradas para ALLOC (cf. NOREN,
2000), e para terceiros: um locutor do enunciado e um locutor do texto. Esta divisão foi
iniciada por Ducrot (1982) referindo-se apenas ao locutor e sua análise dos pressupostos é
formulada pelo menos em duas categorias: a do locutor, ser do mundo, e a do locutor
enquanto tal.
A despeito da diferença terminológica, justificada na ScaPoLine pela ambiguidade que
introduz o “ser do mundo” para designar um ser discursivo, em ambos os casos explica-se
o fato de que, no enunciado, as imagens do LOC responsável pela enunciação podem ser
diversas, Nølke (2001) cita o exemplo “eu me pergunto se..” em que “eu” não tem
exatamente a mesma referência e propõe a seguinte analise: o “eu”, neste caso, remete a um
ser definido unicamente pelo fato de ser responsável pela enunciação e o “me” remete a uma
imagem do locutor que é independente do enunciado.
Esta distinção parece interessante, na medida em que permite considerar certos
fenômenos semânticos e pragmáticos (como por exemplo, a pressuposição). Ela sugere
também as pistas de análise que podem revelar sobre a maneira com que se constrói a
subjetividade nos textos: se se admite que dizer “eu” enquanto sujeito, demanda nos textos,
a constituição da imagem de um sujeito permanente e, além da multiplicidade de enunciados
que se produzem, tal instância pode ser considerada como sujeito não apenas pelo fato de
se dizer “eu”, mas, sobretudo, pelo fato de ser apresentada de acordo com uma imagem geral
de si próprio, independente deste ato particular de enunciação.
Todavia, o fato de se distinguir entre um locutor num enunciado, como imagem do
locutor no momento da fala, e um locutor textual, como imagem geral do locutor ou imagem
de locutor num outro momento de sua história, traz algumas dificuldades constrangedoras.
A primeira delas é de ordem terminológica: a distinção entre enunciado e texto diz respeito
aos níveis de análise, como já se observou anteriormente. Mas, se por um lado, tal distinção
é interessante para identificar o locutor de um enunciado, por outro lado, o fato de ver no
locutor do texto “uma imagem do locutor num outro momento de sua história” parece indicar
57
que, no texto, se construiria a imagem de um sujeito exterior ao texto, sendo mais pertinente,
a este respeito, a designação de locutor como ser do mundo cf. Ducrot (1984).
Em última instância, é a questão da relação entre o LOC e o sujeito falante, ou, o
produtor real de um enunciado que aflora nas teorias polifônicas, ainda que separado do
objeto de tais teorias, em função de se ter que lidar com conceitos como enunciado,
enunciação e enunciação representada.
A segunda dificuldade em se lidar com as noções de locutor do enunciado e locutor do
texto é determinar se esta bipartição é, de todo modo, possível, em outras palavras, se ela é
textualmente marcada, ela poderia assim limitar a reflexão sobre a construção do sujeito no
texto supondo-se duas categorias que poderiam ser consideradas, sobretudo, sob o ângulo de
suas relações.
Parece que estas duas categorias de problemas tendem a projetar, no nível do
enunciado, as características que se supõe para o ato de enunciação. Este ato tem o efeito
costumeiro de considerar, na situação, um hic e um nunc, descrito ao menos em três
parâmetros sugeridos pelos dêiticos que são os atores, o tempo e local da situação, e
concorda-se que este ato tenha lugar num contexto mais amplo (por exemplo, o histórico
conversacional entre os atores e seus conhecimentos compartilhados).
As duas facetas das imagens do LOC no texto corresponderiam, assim, às duas
dimensões tidas como necessárias para se levar em consideração o problema da referência.
De todo modo, continua-se a avaliar a forma como a distinção é de fato operatória para a
análise dos textos, e em que pode ser útil a esta análise. No tocante ao LOC19, esta questão
se integra mais amplamente àquela da prise en charge enunciativa embora se considere que
a originalidade da ScaPoLine resida em tentar aplicá-la igualmente ao ALLOC e aos
“terceiros” para observar em que, num enunciado como “Segundo o Sr. Diretor, o professor
faltaria amanhã”, onde se pode distinguir em “Sr. Diretor” um locutor virtual delocutado
que se apresentaria como um locutor aqui e agora do enunciado, ou como locutor “ser do
mundo” como lhe designa Ducrot. Além disso, considera-se importante que se tenha em
mente uma complexidade acerca das imagens do LOC no enunciado: o “eu” é passível de
ser analisado em múltiplas facetas, que não se limitam aos dos tipos de locutores ducrotianos,
como, por exemplo, em enunciados científicos em que pode ser encontrado um locutor do
texto, um locutor que aborda, um locutor genérico, um linguista, um pedagogo e etc.
Uma terceira questão diria respeito aos locutores virtuais ou “seres discursivos apresentados pelo locutor
como sendo imagens de outros locutores” e que não são indexáveis ao LOC como “O Sr. Diretor” no
exemplo mencionado.
19
58
Além dessas considerações, o LOC, os seres discursivos e a prise en charge
enunciativa em termos de fonte ou de responsabilidade dos pontos de vista colocam ainda
uma outra questão: o postulado da ScaPoLine de que o LOC encena e constrói todas as
imagens e todos os fatos textuais é insatisfatório, equivale a se conceber a designação da
componente modal do ponto de vista em termos de julgamento20.
Se se considera o jogo polifônico como um fenômeno linguisticamente inscrito, e ou
inferível a partir de regras, não há razão para se dizer que um LOC constrói ou gera as
diferentes instruções do jogo polifônico. Ao contrário, são as características do enunciado
ou do texto que contribuem para conferir a imagem de uma instância LOC, e de uma
instância LOC que conduz o jogo polifônico. Deve-se ter em mente que ainda que haja
textualmente um “eu”, um texto não revela seu autor real, mas um suposto autor, nos termos
bakhtinianos.
Por fim, esclarece-se aqui que esses detalhes não inviabilizam tampouco tiram o mérito
da abordagem da ScaPoLine: o escopo teórico dessa abordagem fornece as descrições
detalhadas para se determinar em que medida os pontos de vista podem ser ligados aos seres
discursivos por relações de responsabilidade 21 A ScaPoLine fornece uma tipologia de
fenômenos polifônicos e oferece as entradas textuais para a análise da construção do jogo
polifônico no texto.
2.5 A proposta rabateliana de análise do ponto de vista e das posturas enunciativas
O projeto de Rabatel (1997, 1998, 2003, 2004, 2009) é, a priori, diferente daquele da
ScaPoLine, mas se aproximam em alguns aspectos. Inscrevendo-se numa perspectiva
narratológica, o autor tenciona conferir um caráter verdadeiramente linguístico à noção de
ponto de vista. Iniciando-se este estudo por dois de seus trabalhos (1997 e 1998) observamse as abordagens históricas de que se investe a noção, a discussão do autor acerca dos
trabalhos de Pouillon (1946) e Genette (1972, 1983), ambos totalmente estranhos à teoria
polifônica desenvolvida por Ducrot. No mosaico que compõe o arcabouço da proposta
rabateliana identifica-se, de imediato, seu principal objetivo: ultrapassar os limites das
20
Correspondendo ao que já se disse sobre a noção de enunciador, tendo-se em vista a questão da prise en
charge enunciativa do ponto de vista de uma subjetividade cujos atributos são modelados sobre os dos
sujeitos falantes.
21
Observe-se que as regras evidenciadas na ScaPoLine permitem também definir como funciona a nãoresponsabilidade.
59
abordagens de viés narratológico, propondo um conjunto de conceitos úteis na análise da
construção textual do ponto de vista.
No que diz respeito à análise proposta nesta pesquisa a abordagem polifônica
possibilita a identificação da estrutura hierárquica das instâncias enunciativas e a assunção
ou não da responsabilidade enunciativa nos gêneros acadêmicos propostos para estudo, e
para isso se propõe uma discussão prévia acerca dos fundamentos da abordagem rabateliana.
Esclareça-se, de início, que a preocupação desta pesquisa não se restringiu a uma compilação
das diferenças entre o quadro proposto por Ducrot , pela ScaPoLine e por Rabatel, antes,
buscou-se compreender a especifidade de sua abordagem a partir de seus trabalhos mais
recentes, cujas reflexões demonstram que as discussões sobre o ponto de vista, inicialmente
restritas a uma perspectiva narratológica pouco podem servir às análises de textos fora do
campo literário. Na trajetória da pesquisa acabaram por se imbricar os elementos de reflexão
sobre o ponto de vista e sua prise en charge enunciativa tematizadas em Ducrot e na
ScaPoLine e que sugerem as vantagens em se trabalhar para desenvolver um quadro coerente
para uma análise comum a despeito da diversidade de abordagens.
A proposta rabateliana de centramento no ponto de vista parece mais adequada à
abordagem polifônica: o autor insiste na distinção entre ponto de vista e discurso
demonstrando a “irredutibilidade do ponto de vista, que é baseado, principalmente, no fato
de que ele prescinde de falas das personagens para se expressar” (1998, p.14). Tem-se, assim,
a ideia de que a polifonia não se reduz às marcas da presença de uma outra voz, pois essa
voz pode não falar se houver retomada dos termos. Esta também parece ser a intenção da
ScaPoline ao demonstrar como os seres discursivos parecem se apresentar, para alguns, ora
como imagens de locutores virtuais (atualizados ou não), ora como imagens de nãolocutores.
A definição da noção de ponto de vista, construída por Rabatel em sua obra de 1998,
privilegia a noção de percepção e a constatação do caráter dual do fenômeno, uma vez que
toda percepção associa alguma coisa vista e o ato mesmo de ver.
Embora Rabatel (1998) procure ir além das metáforas que ilustram a definição de
ponto de vista para dar-lhe uma base linguística, tal como ele problematiza, tende a reavivar
a motivação metafórica do termo “ponto de vista”, excluída na abordagem de Ducrot22.
22
Contrariamente à abordagem de O. Ducrot (1984), parece que a abordagem rabateliana vislumbra a
possibilidade de se considerar o que já fora anteriormente mencionado: a ligação entre o ponto de vista
linguístico e do ponto de vista da opinião do senso comum ou opiniões.
60
Esses dois aspectos são para o autor como duas faces de um mesmo fênomeno, uma
vez que a indicação de apreensão de objetos traz sempre consigo, necessariamente, uma
percepção acerca do sujeito que os percebe, no nível da expressão linguística. Ainda assim,
esses dois aspectos não parecem completamente diferentes da dupla composição do ponto
de vista em termos de conteúdo e julgamento analisados na ScaPoLine,
Todavia, Rabatel não menciona especificamente julgamento, mas a subjetividade do
ponto de vista que consiste na expressão conjunta de percepção e pensamentos
representados. Em outras palavras, o ponto de vista é considerado como uma apreensão
perceptiva representada, co-referente a uma sujetividade determinada, (RABATEL, 1998).
Mais especificamente, a definição do ponto de vista de Rabatel associa, basicamente,
três critérios, pois o pdv supõe não apenas a existência de um sujeito que percebe, mas,
também de um processo de percepção, e supõe, sobretudo, uma expressão particular dessa
percepção.
A análise do ponto de vista, com Rabatel, certamente, se baseia numa distinção entre
a predicação de uma percepção e sua representação, ou seja, a expressão de uma percepção
representada que só pode ser assimilada na expressão de um ponto de vista real, assim,
conclui-se que a primeira etapa da análise consiste em demonstrar, linguisticamente, como
uma percepção torna-se uma percepção representada e ligada aos mecanismos linguísticos
de representação das percepções, indicando assim um PDV23, (RABATEL, 1998, p.55)
As proposições de Rabatel quanto a esta primeira etapa da análise do ponto de vista
remetem à questão de saber o delineamento dos contornos de um ponto de vista (marcas que
indiquem com exatidão onde começa e onde termina um determinado ponto de vista), ou o
que se pode ser considerado ponto de vista, em outras palavras, a delimitação da unidade
mínima é uma incumbência da análise polifônica. O autor demonstra a dificuldade de
distinguir a predicação de uma percepção e de uma percepção representada, e conclui
apontando a dificuldade da definição de fronteiras do PDV, ou seja, de como determinar
onde começa e termina um PDV. De todo modo, ainda que se concorde com esta observação
de alcance limitado, não se pode negar a conveniência de seu uso, além do desenvolvimento
da aspectualização do focalizado, combinando a percepção, pensamentos representados e
assegurando-se as inferências cognitivas de percepção.
23
A. Rabatel abrevia PDV em maiúsculo para distinguir sua abordagem da de O. Ducrot (pdv). Outros autores
tambem fazem a diferenciação, como J-M.Adam, que abrevia PdV. A solução para se evitar confusões com as
abreviações, nesta pesquisa, foi a de usar as abreviações como os autores as usam em suas citações e termo
“ponto de vista” fora das citações.
61
A análise da referenciação do focalizado, ou mais precisamente, da aspectualização do
focalizado é a base da identificação do ponto de vista, como primeira etapa da análise. No
entanto, a existência de percepções representadas não indica explicitamente que a
focalização seja definida como a origem do ponto de vista ou mais exatamente do processo
de percepção (RABATEL,1998). Em outros termos, a questão do sujeito que percebe ainda
está em jogo: partindo-se da referenciação do focalizado, passa-se pela atribuição do ponto
de vista, ou seja pela identificação da instância que o autor chama de enunciador, definido
enquanto responsável pelas escolhas da referenciação.
Para melhor compreensão desta segunda etapa de análise, faz-se necessário especificar
a definição de ponto de vista conforme estabelecido pelo autor. Partindo de outros autores,
Rabatel (1998) demonstra que a estrutura virtual do ponto de vista compõe-se a partir de três
elementos: X (verbo de percepção e/ou processo mental) P, donde se admite que X remete
ao termo identificado que coincide com a origem da percepção e P ao termo identificado
correspondente ao contexto ou ao elemento percebido, e o verbo de percepção ou de processo
mental serve de “relator que estabiliza uma localização entre dois termos, (RABATEL, 1998,
p. 55). Em outras palavras, esta estrutura do ponto de vista diz respeito à predicação da
percepção a uma fonte enunciativa explícita de um processo de percepção ou processo
mental. (ibid.)
Tal estrutura permite que se leve em conta realizações distintas, como se sugeriu,
discutindo-se a partir da ScaPoLine, a necessidade de associar a questão da fonte ao ponto
de vista. É assim que Rabatel (1998) justifica a tripla composição da estrutura do pdv:
Esta estrutura virtual inicial se revela útil na medida em que permite interpretar
que os três elementos da estrutura podem se realizar de formas muito diversas, no
entanto, eles devem se referir a esta estrutura teórica, pois ela mesma, no nível da
manifestação, não é completa. É a titulo heurístico que esta estrutura importa, pois
e a partir dela que se pode postular as inferências suscetíveis de preencher as
ausências (relativamente frequentes) de um dos dois primeiros elementos da
estrutura (...) é, ainda, a partir dessa estrutura abstrata que se pode compreender as
diversas modalidades de expressão do sujeito focalizador, ou do próprio processo
de percepção. (RABATEL, 1998, p. 56) 24
cette structure virtuelle initiale s’avère utile dans la mesure où elle rappelle à l’interprétant que les trois
éléments de la structure peuvent entrer dans des réalisations très diverses, qu’il faut pourtant rapporter à cette
structure théorique, quand bien même, au niveau de la manifestation, elle n’est pas complète. C’est donc à titre
heuristique que cette structure est importante, car c’est à partir d’elle qu’on peut imaginer des inférences
susceptibles de combler les absences(relativement fréquentes) de l’un des deux premiers éléments de la
structure […]. C’est encore à partir de cette structure abstraite que l’on peut rendrecompte des diverses
modalités d’expression du sujet focalisateur, ou du procès de perception. (RABATEL, 1998, p. 56)
24
62
A análise das modalidades de expressão é crucial na perspectiva rabateliana.
Marcadores e gradação são considerados essenciais para a atribuição de um ponto de vista a
uma determinada fonte, o focalizador, e por essa razão, ele é incumbido de descrever “os
principais marcadores linguísticos embreando um PDV do personagem ou do narrador (os
dois únicos candidatos ao papel de focalizadores)” para melhor compreender como se
constrói, textualmente, o universo do narrador e do personagem.
Neste aspecto, Rabatel fornece uma pista interessante sobre a expressão de ponto de
vista e de sua fonte:
(...) considerar que a identificação se limita à identificação do sujeito (semântico)
das percepções e pensamentos não deve mascarar a dificuldade, pois as estruturas
sintáticas que expressam essa relação semântica são variadas. (RABATEL,
A.1998, p.58)25.
Convém, também, lembrar que o autor enfatiza a necessidade de se distinguir entre o
sujeito semântico da percepção (o agente) e o sujeito sintático de tais percepções:
(...) O sujeito semântico das percepções pode endossar as múltiplas realizações
sintáticas e ter as notáveis diferenças entre um sujeito ativo que percebe (Pierre
examinaria cuidadosamente a cena que se desenrolava a poucos passos de si) e um
sujeito mais passivo que percebe em razão do semantismo do verbo. (RABATEL,
A. 1998, p.57)26
Rabatel (1998, p.55-57) menciona, como exemplo, o enunciado “Pierre ouviu os tiros
vagamente”, é propriamente o tema de sua percepção, ou ainda das estruturas sintáticas como
a passiva “os tiros foram percebidos por Pierre”.
Tal distinção entre o que se poderia chamar, mais esquematicamente, de prise en
charge sintática e semântica da percepção representada é o que permite a Rabatel (1998)
especificar sua definição linguística de ponto de vista:
As bases linguísticas da expressão do ponto de vista repousam sobre a expressão
das percepções e/ou dos pensamentos representados. As percepções estão sob a
dependeência sintátiva de um sujeito e de um processo de percepção mencionados
nos primeiros planos ou sob a dependência semântica de um agente ou um
(...) considérer que le repérage du foyer se limite au repérage du ‘ sujet (sémantique) des perceptions
et des pensées’ ne doit pas masquer la difficulté, tant les structures syntaxiques exprimant ce rapport
sémantique sont variées. (RABATEL, A.1998, p.58)
26
(...) le sujet sémantique des perceptions peut endosser de multiples habits syntaxiques et il y a de
notables différences entre un sujet percevant actif (Pierre scrutait attentivement la scène qui se déroulait
à quelques pas de lui) et un sujet percevant plus passif en raison du sémantisme du verbe.(RABATEL, A. 1998,
p.57)
25
63
processo que o texto não menciona explicitamente e que o leitor reconstruiria por
inferência. (RABATEL, 1998, P.58)27
Uma vez estabelecido o objetivo de pesquisar os traços linguísticos de um ponto de
vista no modo de apresentação do referente do objeto percebido, Rabatel (1998, p. 139)
demonstra quão árdua pode ser a tarefa de diferenciar entre os pontos de vista do narrador e
da personagem, pois sua descrição evidencia o fato de que os pontos de vista são mais
homogêneos do que se possa crer, e se caracterizam, linguisticamente, pelo emaranhamento.
Navegar nesse emaranhado pode ser dos desafios mais difíceis para o pesquisador.
Incumbindo-se de analisar as regularidades nas relações entre os PDV da personagem
e do narrador, Rabatel introduz, por um lado, as noções de quantidade de conhecimento e
profundidade de perspectiva, e por outro lado, as noções de consonânca e dissonância entre
os pontos de vista. Sem se levar em conta o conjunto da demonstração, dedicar-se-á, neste
tópico, a sublinhar as principais conclusões às quais o autor chega.
A propósito da quantidade do conhecimento narrativo e profundidade de perspectiva,
Rabatel (1998, p.165) demonstra que o leque de possibilidades é um pouco mais aberto para
o narrador do que para a personagem, embora a análise permita iguamente especificar que o
ponto de vista da personagem é mais amplo do que o ponto de vista que tradicionalmente se
lhe atribui. Já a respeito da consonância e dissonância entre os pontos de vista, a análise
sugere que o sistema do PDV, a despeito de suas regularidades, é eminentemente flexível e
que os traços polifônicos acabam por complicar a análise, sobretudo se se procura,
minuciosamente, atribuir tal ou tal enunciado ao PDV
de uma personagem ou à
subjetividade do narrador, pois mesmo quando um PDV é claramente atribuível a uma
personagem ainda assim a voz do narrador pode estar sempre presente e ser mais ou menos
ressonante.
Deste modo, pode-se perceber o quão dificil é (e quiçá arbitrário) de se atribuir, com
absoluta certeza, a quaisquer porções textuais a expressão de um PDV em específico e
“também porque é próprio das escrituras consonantes se enredar no que a análise tenta, em
vão, separar” (RABATEL, 1998, p.183) 28 . Em vez disso, o objetivo é explicar a
complexidade linguisticamente inscrita nas marcas polifônicas, pelas quais se engendram as
les bases linguistiques de l’expression du point devue reposent dans l’expression des perceptions et/ou des
pensées représentées. Ces perceptions et pensées représentées sont sous la dépendance syntaxique d’un sujet
et d’un procès de perception mentionnés dans les premiers plans et/ou sous la dépendance sémantique d’un
agent ou d’un procès que le texte ne mentionne pas explicitement et que le lecteur reconstruit par
inférence. (RABATEL, 1998, P.58)
28
“et pour cause d’ailleurs puisque le propre des écritures consonantes est d’intriquer ce que l’analyse tente
pataudement et comme vainement de séparer” (RABATEL, 1998, p.183)
27
64
relações entre pontos de vista e suas possíveis imbricações que caracterizam um texto, de
acordo com uma polifonia irredutível. Encontra-se, aqui, um eco à discussão sobre os seres
discursivos, que a ScaPoLine tenta distinguir, pois, embora tais distinções sejam úteis à
análise, seu emaranhamento também aponta pistas que auxiliam na compreensão e análise
do fenômeno.
2.5.1 As relações entre pontos de vista e construção de L1/E1 no tópico enunciativo
A análise das relações entre pontos de vista parece ser o fio condutor no conjunto da
obra rabateliana, e, por isso mesmo, é muito cara à abordagem desta pesquisa. A esta
primeira característica soma-se uma segunda, contida nas duas primeiras obras rabatelianas
acerca do ponto de vista: ainda que o interesse inicial do autor tenha se detido no texto
literário, seu quadro de análise das relações entre os pontos de vista é igualmente aplicável
a outros textos29.
Estas ferramentas para análise das relações entre pontos de vista são descritas por um
“tópico enunciativo” (RABATEL, 2004a). Tomando-se a disjunção entre locutor e
enunciador como ponto de partida, a definição de enunciador é compatível com aquela
proposta por O. Ducrot (1984). Todavia, sobre a proposta ducrotiana de definição conjunta
de enunciador e ponto de vista, A. Rabatel observa que:
Ducrot define conjuntamente o enunciador e o pdv. No entanto, por trás da
implicação recíproca dos termos (nao há enunciador sem pdv e tampouco pdv sem
enunciador) , os dois conceitos não funcionam no mesmo nível, a noção de pdv
serve à definição de enunciador (disjunto do locutor) como a fonte de um conteúdo
proposicional exprimindo um pdv – este útimo se manifesta não apenas no modus
mas também no dictum [Ducrot, 1993:128] (RABATEL, 2004a, p.6)
O autor justifica a disjunção com a instância locutor pelo fato de que se, por um lado,
todo locutor é também enunciador (em virtude do princípio de sinceridade), por outro lado
nem todo enunciador é necessariamente um locutor (cf. RABATEL, 2004a, p.5) usando
exemplos semelhantes ao que se apresentou neste trabalho para se introduzir a questão da
polifonia, bem como outros exemplos, tais como o discurso indireto livre, os enunciados
irônicos, dóxicos ou ainda os pontos de vista narrativos.
29
Tal como realizado pelo próprio autor em vários outros trabalhos, como, por exemplo, um artigo de 2002
acerca da produção escrita de alunos e um de 2004 acerca das entradas do dicionário filosófico de
ComteSponville
65
De modo geral, observa-se que, contrariamente a Ducrot e à ScaPoLine, a reflexão
sobre a relação entre os pontos de vista assumidos num enunciado e sua prise en charge por
um sujeito falante - produtor efetivo da enunciação – não é descartada nos trabalhos de
Rabatel.
Este é um ponto particularmente importante no quadro da abordagem proposta nesta
pesquisa: desta relação chega-se à apreensão dos modos pelos quais autores de textos
acadêmicos mobilizam textos teóricos de outrem em seus textos, estabelecendo-se relações
de adesão ou contraposição, e mais ainda, quais pontos de vista dominam em determinados
segmentos textuais.
Voltando à abordagem rabateliana, o locutor é definido como uma instância que
“profere um enunciado embreado ou desembreado, em suas dimensões fonéticas e fáticas ou
escriturais”, enquanto enunciador designa a instância das atualizações operadas pelo sujeito
modal, que “assume o enunciado em um sentido estritamente menos abstrato que a prise em
charge decorrente da ancoragem dêitica” (RABATEL, 2004a, p.6).
Se se compreende o locutor como uma dimensão textual, será conveniente a
compatibilidade do quadro de análise proposto por Rabatel com o da ScaPoLine: o locutor
é uma instância que se apresenta como responsável por um ato de enunciação, enquanto o
enunciador traz à tona a questão da responsabilidade do ponto de vista.
Assim como na ScaPoLine, objetivando analisar o jogo polifônico no nível do texto,
Rabatel30 observa que
(...) em vez de considerar que existam tantos enunciadores quanto
conteúdos proposicionais, parece cognitivamente mais vantajoso agrupar os que
tem conteúdos temáticos diversos, mas reunindo a mesma origem e a mesma
visada enunciativa, sobretudo, se os enunciadores são encarnados.
(RABATEL,2004b, apud 2004a, p.6)31.
Tais considerações confrontam diretamente disposições ducrotianas, contrariando-as.
Manifesta-se, ainda, a proximidade desta questão do reagrupamento com a abordagem da
ScaPoLine: Rabatel observa que esta questão considera como a ScaPoLine leva em conta o
preenchimento semântico dos enunciadores pelos seres discursivo, em função daquilo que
ele chama de grau de encarnação. Isto reflete, provavelmente, o fato de que os seres
Em nota de rodapé, o autor menciona, a respeito do termo “encarnado”, a questão do preenchimento da
variável “enunciador” pelos seres discursivos na ScaPoLine.
31
(...) plutôt que de considérer qu’il y a autant d’énonciateurs que de contenus propositionnels, il paraît
cognitivement moins coûteux de regrouper ceux qui peuvent avoir des contenus thématiques divers, mais
que rassemblent la même origine et la même visée énonciative, surtout si les énonciateurs sont incarnés”
(Rabatel,2004b, apud 2004a, p.6)
30
66
discursivos podem apresentar-se, na perspectiva escandinava, como não-locutores ou não
atualizados, de acordo com o modo como se apresentam no texto.
Além disso, lembre-se também o fato de que a questão do reagrupamento das
instâncias enunciativas é abordada, por um lado, sob a perspectiva da hierarquização dos
pontos de vista e dos enunciadores, e, por outro, das relações entre enunciadores e locutores.
Atenta-se, prioritariamente, à instância L1/E1, ou mais especificamente, sobre o ponto de
vista e seu enunciador como o ponto de partida para as análises, associando-se o enunciador
com o locutor enquanto tal ou enquanto ser do mundo.
Esta noção de sincretismo é um modo de se considerar a possibilidade de um ponto de
vista ser atribuído como fonte ao locutor (LOC), pelo intermédio de seu enunciador. Isto
vale para L1/E1 que se refere ao locutor primeiro, mas também para outros locutores que se
manifestem no texto, no caso onde a fonte enunciativa de um ponto de vista é “encarnado”,
ou seja, é um locutor, como no discurso reportado.
Observa-se que este tipo de análise se aproxima bastante do projeto da ScaPoline,
embora detenha-se preferencialmente sobre o locutor via diferentes enunciadores, incluindose as relações que permitem o preenchimento da instância “enunciador” pelos seres
discursivos (significando, eles mesmos, não apenas as imagens do LOC como também a de
alocutário ou, ainda, terceiros). O objeto difere um pouco, pois leva em conta a maneira pela
qual se constroem L1/E1 a partir do jogo enunciativo.
Na perspectiva rabateliana o objetivo tem duplo aspecto: por um lado, parece se propor
a compreender melhor a noção de sincretismo, a fim de verificar em que medida um
enunciador pode ser concebido amalgamado ao locutor, bem como em que medida os
reagrupamentos são possíveis, ou não, em função das características textuais. Por outro lado,
parece se deter na hierarquização das instâncias enunciativas analisadas, levando-se em
conta a maneira pela qual, possivelmente, se constrói uma instância tal que possa ser
nomeada L1/E1: a hierarquização dos pontos de vista e, assim, das instâncias à sua fonte está
na base da possibilidade de se considerar, no nível do texto, uma instância do tipo “locutor”
no sentido ducrotiano (LOC) que se apresenta como um responsável pelo enunciado, ou mais
precisamente na perpectiva de Rabatel, que se apresenta como uma instância capaz de
referenciar as operações dêiticas (e responsável pelo ato de enunciação no aqui e agora) e,
às vezes, como referência das operações modais (responsável pelos pontos de vista
circulando no enunciado por meio dos enunciadores).
Esta hierarquização é analisada por Rabatel sob o ângulo de três possíveis relações
entre pontos de vista e enunciadores: a co-enunciação, a sobrenunciação e subenunciação
67
(2003, 2004a, 2007). Nestes trabalhos o autor trata das interações e desigualdades dos pontos
de vista em termos de posturas enunciativas.
Apresenta-se, aqui, brevemente as definições de Rabatel para esses conceitos, de cuja
descrição mais detalhada tratar-se-á nos subtópicos seguintes. A coenunciação, obviamente
rara na medida em que o conjunto dos pontos de vista demonstram efeitos de desigualdade,
corresponde ao caso em que duas vozes se sobrepõem, momentaneamente, ou seja, ocorre a
co-construção, pelos enunciadores, de um ponto de vista que se configura como comum e
partilhado. A sobrenunciação caracteriza um ponto de vista interacionalmente dominante de
um enunciador sobre outro, enquanto a subenunciação caracteriza o caso em que um ponto
de vista se apresenta, no texto, como interacionalmente dominado.
A originalidade deste quadro de análise é de buscar perceber o jogo dos pontos de vista
em textos extremamente diversos, incluindo-se os textos orais das conversações, por
exemplo. É, sem dúvida, o que explica as ambiguidades que as noções podem levantar se se
oculta a disjunção primeira entre enunciador (instância modal ligada ao ponto de vista) e
locutor (responsável pela produção do enunciado). Desta forma, Rabatel se empenha em
definir precisamente o que é o jogo interacional dos pontos de vista visado pela análise, e
não o jogo interacional dos atores empíricos da atividade linguageira32.
Mais uma vez, essas são as características textuais descritas, sob a perspectiva da
interação dos pontos de vista, que tornam tangível todo texto, seja o fato de um único
produtor efetivo (contexto monologal nos termos de Rabatel) ou de dois produtores, ou ainda
mais interlocutores co-presentes (contexto dialogal)
Outra questão que estas noções suscitam é a questão da marca das posturas de co-,
sobre e subenunciação. Observa-se que tal problema não é específico para estes conceitos,
mas se coloca a qualquer abordagem enunciativa em linguística. As posturas enunciativas,
tais como propostas por Rabatel (2004a), são, de fato, marcacadas nos textos. Todavia, as
marcas são inúmeras, abrangendo, inclusive, o caso da gestualidade na conversação oral, e
podem ser polissêmicas, de modo que um “eu” não remeta apenas ao locutor, e que o locutor
não se manifeste apenas por um “eu”:
Mas esta resposta, malgrado sua precisão, somente faz ressaltar a imensidãode
problemas relacionados que se sobressaem na problemática do PDV, como por
exemplo, a relação entre percepção, discurso reportado e asserção. No nível
didático as dificuldades não seria, menores, em primeiro lugar, por causa da
multiplicidade de complexidade dos saberes relevantes, em seguida, por causa de
32
Ainda assim, não se pode afirmar, incautamente, que as relações entre ambos seja excluída por A. Rabatel,
cf. 2004d.
68
representações equivocadas que perturbam a reflexão, especialmente a tentação de
estabelecer uma equivalência entre a origem do PDV (uma subjetividade ou um
sujeito) e sua expressão (subjetivante):ou um “eu” que não implica nem um PDV
pessoal nem uma expressão subjetivante. - não mais que o PDV, que também não
deveria ser nem objetivante nem dóxico. (RABATEL, 2005, P.58)33.:
Além disso, a dificuldade aumenta no decorrer da análise do texto, pois as posturas
podem se suceder uma à outra, assim, uma subenunciação, por exemplo, pode ser apenas
provisória e estar a serviço, finalmente, da sobrenunciação.
Estas noções introduzidas por Rabatel permitem abordar a polifonia não apenas em
termos de multiplicidade de vozes, mas, sobretudo, em termos de hierarquização dos pontos
de vista, ou em diferentes formas de dialogismo encontradas em Brés e Vérine (1999, 2002),
lembrando-se o que já se disse anteriormente, que os autores preferem designar dialogismo
em vez de polifonia ao focar sobre esta hierarquização enunciativa.
Se os dados textuais, que dizem respeito ao tópico enunciativo na perspectiva
rabateliana, se encontram já descritos nas abordagens do autor – e mesmo em outros autores
– seu interesse parece ser, como na ScaPoLine, centrado em compreender a construção de
uma postura de L1/E1 em certos gêneros, cuja construção de tal postura possa ser delineada,
acrescentando-se o fato de que o objeto permitirá definir as dificuldades de sua construção
em outros.
Além disso, o tópico, assim descrito, fornece uma base linguística e das ferramentas
de análise da construção da visada argumentativa de projetar e de modificar as
representações de um leitor pressuposto, como bem observou Rabatel (2004a) sobre os
efeitos argumentativos resultantes da argumentação na língua, no sentido ducrotiano, ou os
efeitos argumentativos indiretos subjacentes às esquematizações, sob os topoi que orientam
a interpretação independentemente da presença de formas argumentativas lógicas (cf.
AMOSSY, 2011).
O conjunto da obra rabateliana proporciona assim, uma melhor compreensão da
relação entre enunciação e argumentação, fornecendo, assim, uma base enunciativa à
construção do ponto de vista no texto e sua legitimidade, bem como permite considerar a
visada argumentativa num texto.
Mais cette réponse, malgré sa justesse, ne fait que souligner l’immensité des problèmes connexes qui relèvent
de la problématique du PDV, par exemple le rapport entre perception, discours rapporté ou assertion. Sur un
plan didactique, les difficultés ne sont pas moindres, d’abord en raison de la multiplicité et de la complexité
des savoirs concernés, ensuite du fait des representations erronées qui perturbent la réflexion, notamment la
tentation d’établir une équivalence entre l’origine du PDV (une subjectivité ou un sujet) et son expression
(subjectivante) : or le je n’implique ni PDV personnel ni expression subjectivante – pas plus que les PDV en il
ne devraient être objectivants ou doxiques.(RABATEL, 2005, P.58)
33
69
Segue-se no próximo subtópico, uma descrição um pouco mais detalhada dos tipos de
pontos de vista para, em seguida, focar-se nas relações entre enunciador e locutor
delineando-se alguns conceitos-chave da pesquisa.
2.5.2 Tipos de pontos de vista
Ao criticar a proposta genettiana centrada na focalização narrativa, Rabatel demonstra
como a questão do ponto de vista encontra-se intrinsecamente relacionada à percepção
verbalizada nos enunciados. As formas de verbalizar a percepção podem ser agrupadas em
um continuum, em função de um grau maior ou menor de visibilidade e maior ou menor
tendência à expressão da interioridade, da subjtividade e da reflexividade dos enunciadores
(RABATEL, 2007, p. 355). Assim, o processo perceptivo pode ser verbalizado de duas
formas: afirmado pelo locutor, num dizer assumido, ou ainda representado pelo locutor e
atribuído a um enunciador. Neste continuum identificam-se, então, as três possibilidades de
perspectivação de si e do outro correspondendo às modalidades do ponto de vista: PDV
narrado (embryonnaire/ raconté), o PDV representado (representé), quando o enunciador não
fala, e o PDV afirmado (asserté).
Baseando-se em Rabatel (2007 e 2008), expõe-se brevemente, a seguir, os tipos de
PDV.
O PDV narrado corresponde ao PDV perceptivo limitado aos traços do primeiro plano
narrativo, como no exemplo: “O filisteu olhou e viu David, um menino magro, desprezível.”
Trata-se de um fragmento de texto que “enfatiza o comportamento (forma de agir) ou ação
verbal de um dos enunciadores, sendo os fatos narrados conforme tal perspectiva, que se
pode distanciar da perspectiva do locutor. ” (CORTEZ, 2011, p. 55). Evidencia-se um
processo cuja função é expor, do modo mais discreto e econômico possível, a subjetividade
do enunciador, embora haja menor debreagem enunciativa do que no PDV representado.
No PDV representado observa-se maior debreagem enunciativa do que no PDV
narrado, trata-se de exemplos em que, o locutor/enunciador pode trazer para o seu discurso
um PDV não necessariamente compartilhado, como a ironia, hipóteses, o discurso indireto
livre, ou ainda os enunciados delocutados que exprimem um PDV nas narrativas
heterodiegéticas no passado, como no fragmento bíblico citado pelo autor (RABATEL,
2007, p. 354): “O filisteu olhou e, quando viu a Davi, desprezou-o: era uma criança, pele
clara e rosto bonito.”(grifos do autor).
70
Neste tipo de PDV a referência dêitica e espaço-temporal ganham status de testemunha
de um enunciador não nomeado, sendo a única maneira de identificar sua presença. Em
ambos os casos, do PDV narrado e do PDV representado, como não há asserções envolvidas,
caracteriza-se um PDV imputado, já que os enunciadores não falam por si, trata-se de um
monólogo interior embrionário, contrário ao PDV afirmado, caracterizado pela debreagem
enunciativa máxima, constituindo, na maioria dos casos, discurso direto representado pelas
aspas, dois pontos ou travessão, pois exprime diretamente as falas, opinião ou julgamento
de um locutor. Este tipo de PDV é dominante nos textos argumentativos, e caracteriza-se
pelo fato de coincidirem as instâncias enunciador e locutor, (RABATEL, 2007). Os
fragmentos a seguir são exemplos de PDV representado, e afirmado, introduzido pelas aspas,
em que locutor/enunciador expressa seu julgamento por meio de asserções explícitas em que
assume o ponto de vista:
(1) Art.AI01
(A) As entrevistadas sabem que através do aprendizado estão construindo a sua própria
independência, (B) “antes eu não lia nada”. (C) Assim, nas falas de cada uma, ficou claro
que nunca é tarde para recomeçar, principalmente para duas das três entrevistadas
com mais de 70 anos. Entusiasmadas, em busca de novos saberes e satisfeitas com
o aprendizado adquirido, são exemplos de vida para essa juventude.
No primeiro segmento encontra-se um exemplo de um PDV representado de uma parte
de amostra de informantes sobre um projeto de alfabetização de adultos, afirmado no
segundo segmento apresentado entre aspas, e no terceiro segmento trata-se de um exemplo
de PDV representado sobre como as informantes da pesquisa se sentem com a alfabetização,
mesmo que tardia. Este PDV não se construiu isoladamente, apenas com a expressão das
informantes, mas são, sobretudo, co-construídos, na medida em que revelam também um
PDV narrado, correspondendo à atribuição de percepção aos enunciadores segundos. Desta
forma, o trecho em itálico é um PDV afirmado das informantes, enquanto o trecho em negrito
é um PDV narrado, uma percepção compartilhada por L1/E1.
Não se deve esquecer, contudo, que há uma inegável liberdade nas formas de se
expressar um PDV, e não havendo fixidez na representação das percepções as fronteiras
entre uma modalidade e outra de PDV tornam-se extremamente fluídas e de difícil apreensão
já que o PDV pode ser expresso por uma palavra, grupos de palavras, expressões predicativas
ou falas representadas/afirmadas.
No subtópico seguinte, em continuidade à questão do PDV, propõe-se alargar o
horizonte da discussão até agora encaminhada para apresentar aspectos dialógicos do ponto
71
de vista através do exame das possíveis relações entre locutor e enunciador a fim de se
problematizar e fechar a definição do ponto de vista.
2.5.3 A representação de pontos de vista no enquadre rabateliano
O ponto de vista pode ser representado no texto de formas diversas, as quais estão
ligadas às relações entre locutor e enunciador, ou às maneiras pelas quais o locutor, enquanto
produtor efetivo do texto, se posiciona em relação ao ponto de vista de terceiros. Desta
relação entre os enunciadores destacam-se duas noções: a prise en charge e a imputação.
Associadas a estas noções encontram-se diversas outras que serão detalhadas neste
subtópico, tais como prise en compte, prendre en compte, engajamento, desengajamento,
apagamento enunciativo, commitment, responsabilidade enunciativa, e, talvez um pouco
mais distante, a noção de mediativo.
2.5.3.1 A responsabilidade, prise en charge, imputação e outros dispositivos atuantes
na construção do PDV
A própria dificuldade em se traduzir o termo já oferece pistas quanto a sua
complexidade34. A prise en charge e seu par, prend en charge, são usados frequentemente
em linguística e mobilizados em quadros teóricos diversos, mas associados aos estudos
enunciativos, tais como teorias vericondicionais, polifonia e dialogismo, teoria dos universos
das crenças, teorias das operações enunciativas e dos blocos semânticos, (COLTIER et al,
2009, p.4). É por essa razão que várias outras noções como modalização, evidencialidade,
polifonia, mediativo, pressuposição, discurso reportado, dentre várias outras, se associam ao
termo prise en charge (cf. DENDALE et al, 2009, p.6), causando, muitas vezes, a impressão
de que se tratam de conceitos sinônimos quando na verdade são apenas conceitos que se
associam, uns muito proximamente, outros menos, mas que não se tratam, na verdade, de
sinônimos. Rabatel e Chauvin-Vileno (2006) consideram que a relação com as noções afins
complexifica o conceito de prise en charge, o que se agrava com o fato de que estudos sobre
a questão são raros e não são consensuais, é o que se observa também na edição 162 da
Revista Langue Française (2009).
A dificuldade na definição do termo soma-se à difusão de termos que poderiam “traduzi-lo” para o
português, decidiu-se, portanto, nesta pesquisa, manter os termos na língua francesa.
34
72
Diante deste cenário, optou-se, nesta pesquisa, por mobilizar as definições propostas
em Rabatel e Chauvin-Vileno (2006), Rabatel e Grossman (2007), e Moirand (2006) que
correlacionam o conceito de prise en charge ao de responsabilidade enunciativa e Rabatel
(2009a), que reconfigura o conceito de prise en charge definindo-o em dissociação da
imputação.
Iniciando-se o exame desta questão por Moirand (2006), a autora observa que, embora
muito frequentemente o termo responsabilidade seja associado à prise en charge, eles não
devem ser confundidos, uma vez que ela toma a responsabilidade como um fenômeno de
ordem filosófica, ética e moral, mais abrangente que a prise en charge. Enquanto noção
filosófica está associada à ética das práticas linguageiras midiáticas, mas evidentemente,
pode-se estender essa noção para além da linguagem jornalística. A autora entende que a
responsabilidade se manifesta numa ética relacionada ao ato de nomear, às escolhas lexicais,
bem como certas formulações ou construções sintáticas e na forma de representar o discurso
de outros:
Se pensarmos no fato de que a linguagem tem uma responsabilidade na construção
da realidade social (Searle, 1998) esta ética se manifestaria no ato de designar e
nomear ( designar, caracterizar) os fatos e eventos, atores, suas ações de atos de
língua, e na tarefa de representar seus dizeres: uma ética da responsabilidade
implica, na verdade, que não temos o direito de ignorar as consequências de nossos
atos de língua, e que não se trata apenas de escolher, por exemplo, entre eu e um
canalha, entre um estudante e um anarquista na designação dos atores de um
determinado evento ou no relato sem se distanciar e/ou sem mencionar a origem
dos enunciados que circulam a propósito de um fato ou evento (Moirand 2006c ).
A escolha de certas designações como de certas formulações ou construções
sintáticas constituem, frequentemente, a força pragmática na política (“velha
Europa”, “cruzada”, “distúrbios”, “comportamento dos Guardas Vermelhos”,
etc.). Um enunciador responsável, de verdade, não se contenta em repetir as
formulações, mas em fornecer os meios de se recuperar o aspecto dialógico da
palavra, da formulação ou do enunciado, pela pesquisa, hoje em dia facilitada, e
pelo uso inteligente que se pode fazer das palavras nos mecanismos busca na
internet. (MOIRAND, 2006, p. 13)35
35
Si on pense en effet que le langage a une responsabilité dans la construction de la réalité sociale (Searle
1998), cette éthique se manifesterait dans la façon de nommer (désigner , caractériser) les faits et les
événements, les acteurs, leurs actions et leurs actes de langage, et dans la façon de représenter leurs dires: une
éthique de la responsabilité implique en effet qu’on n’a pas le droit de se désintéresser des conséquences de
ses actes de langage , et qu’il n’est pas sans conséquence de choisir , par exemple , entre je une et racaille ,
entre étudiant ou anarchiste pour désigner les acteurs d’un événement ou de rapporter sans distance et/ ou
sans mention d’origine les énoncés qui circulent à propos d’un fait ou d’un événement (Moirand 2006c ). Le
choix de certaines désignations comme de certaines formulations ou constructions syntaxiques constituent bien
souvent des coups de force pragmatiques en politique (« vieille Europe », « croisade », « émeutes », «
comportement de gardes rouges », etc. ). Un énonciateur responsable de vrait alors ne pas se contenter de
répéter mais fournir également les moyens de retrouver « l’épasseur dialogique » du mot , de la formulation
73
Rabatel e Chauvin-Villeno (2006, p.2) aproximam o universo jornalístico do científico
quando se questionam: “Pode-se se interrogar sobre a responsabilidade dos jornalistas sem
se interrogar sobre a dos pesquisadores, especialmente dos linguistas e analistas de
discurso?”
A partir daí, se incumbem de delinear a noção de responsabilidade: frequentemente,
tanto nos gêneros midiáticos quanto na escrita científica, o falante não interfere diretamente
mas tem sua voz representada por um “porta-voz”, mediador das palavras e/ou ideias de
outro, de forma que a responsabilidade estaria diretamente relacionada ao gerenciamento das
fontes enunciativas num texto, e, de acordo com os autores, embora não haja marcas
específicas dessa responsabilidade, pode-se dizer que ao menos as escolhas linguísticas são
dependentes de um querer dizer, em outras palavras, a responsabilidade é co-construída na
interação, em que as marcas linguísticas, discursivamente atualizadas e dependente de
gêneros/ situações, refletem as escolhas de locutores/enunciadores.
Seguindo a linha desses autores, poder-se-ia dizer que a prise en charge é um
fenômeno que resulta das máximas conversacionais, sobretudo, do princípio de sinceridade,
assim, aquele que asserta assume a asserção, enquanto locutor/enunciador primeiro. A prise
en charge prescinde, assim, de marcas específicas, ao contrário da não prise en charge,
caracterizada, por assim dizer, por diversas marcas, tais como o condicional, os
modalisadores epistêmicos, dimensões lexicais axiológicas, discursos reportados, quadros
mediadores, etc. (RABATEL & CHAUVIN-VILLENO, 2006, p. 9)
Duas questões são extremamente relevantes para esta pesquisa: primeiro, a ideia de
que a responsabilidade não é um fato exclusivo da relação entre sujeito e enunciado ou
sujeito e objeto, mas, sobretudo, da relação que se pode estabelecer sobre o modo como
sujeitos e discursos se posicionam acerca de um dado objeto (cf. CORTEZ, 2011, p.73-75).
Desta forma ( e isso é precisamente um dos apontamentos mais importantes nesta reflexão),
a estrutura do enunciado ou se os enunciadores se omitem ou se mostram não é o aspecto
mais relevante da questão, e sim, das “relações interacionais entre os discursos que se
enunciam e se reencontram e que enunciam a relação com os discursos outros” (CORTEZ,
2011, p.74). Assim, a responsabilidade se relaciona com o ponto de vista através da
intervenção que se faz naquilo que se dá a ver nas interações, em outras palavras, de como
ou de l’énoncé , recherche aujour d’hui facilité e par l’usage « intelligent » qu’on peut fair e des moteurs de
recherche sur l’internet . (MOIRAND, 2006, p. 13)
74
L1/E1 se posiciona em relação ao discurso de outro. Esta reflexão mostra-se particularmente
relevante na seção em que se discutirão os resultados desta pesquisa.
Além disso, Rabatel e Chauvin Villeno, 2006, p. 10, postulam diferentes formas de
encenação enunciativa, tais como: i) o locutor falando por si, ii) recorrer a um ou vários
enunciadores abstratos, iii), colocar em cena diversos enunciadores, cujos pdv’s apenas um
corresponde ao seu próprio, iv) recorrer a vários enunciadores não hierarquizados entre si,
atrás dos quais se oculta, e, por fim, v) recorrer a vários enunciadores com os quais o
locutor/enunciador está de acordo. Tais flutuações permitiriam ao sujeito “brincar de
esconde-esconde” no cenário enunciativo: concordar ou contrapor-se às opiniões, para
depois se reapropriar de um espaço enunciativo dominante.
O segundo ponto é o fato de que há, sem dúvidas, uma fronteira muito tênue entre
responsabilidade e prise en charge, chegando-se por vezes à confusão (ou sobreposições)
entre os termos. No entanto, postula-se, nesta tese, que os dois fenômenos se diferenciam no
nível enunciativo: enquanto a prise en charge é um fenômeno localizado em um nível local,
no enunciado, a responsabilidade é mais abrangente, englobando não apenas a prise en
charge mas também outras operaçõs enunciativas, tais como: engajamento, apagamento
enunciativo, imputação e mediativo:
(...) a prise en charge (PEC) pode ser situada como uma operação textualdiscursiva pontualizada, que obviamente tem suas consequências no âmbito mais
amplo da responsabilidade enunciativa – esse comportamento discursivo ligado à
ética e à moral. (CORTEZ, 2011, p. 75, grifo meu).
É desta forma, então, que se propõe, nesta tese, a distinção entre responsabilidade e
prise en charge: a responsabilidade é tomada como um comportamento discursivo e não
apenas como fenômeno linguístico, enquanto a PEC se manifesta no nível do enunciado,
num ponto focal.
Ao contrário de Desclès (2009), Rabatel (2009) não concebe a PEC fundada
exclusivamente em critérios de verdade, sujeitos à subjetividade ou à relatividade, sendo
algo que tangencia a PEC, mas não pode ser tomada como uma característica exclusiva. Isto
porque a realidade do locutor não corresponde necessariamente ao que é real no mundo, um
objeto de existência concreta no mundo, antes, corresponde a aquilo que o locutor assume
como verdadeiro, e, portanto, assevera.
Partindo da concepção culioliana de prise en charge (toda asserção, afirmativa ou
negativa é uma prise en charge efetuada pelo enunciador), Desclés (2009) propõe um
75
“esquema mínimo da enunciação simples” para contrapor ao esquema do discurso reportado.
Em seu esquema mínimo, o autor descreve os esquemas que vão desde a manifestação da
prise en charge num nível mais simples, o da crença, até o nível máximo da asserção, o
engajamento. A prise en charge simples é expressa pelo “EU-DIGO”, e requer tomar o
locutor como enunciador: “Numa enunciação simples, o locutor “é” o enunciador, donde o
esquema mínimo de enunciação [EU – DIGO] e suas variações derivadas” (p.32). Já o
engajamento é considerado, pelo autor, como o resultado de uma composição funcional com
a prise en charge, sendo expressa por [EU DIGO (QUE É VERDADE)], de modo que a
asserção “prend en charge”, em outras palavras, afirma a verdade de uma proposição por
meio de operações realizadas sobre a relação predicativa. Mas, que não se confunda essa
noção de verdade com uma correspondência entre o que é dito e o estado de coisas no mundo.
A verdade afirmada, à qual o autor se refere, exprime um julgamento sobre um
acontecimento, processo ou estado, referencialmente situado, e, principalmente, não
significa, necessariamente engajamento:
A prise em charge simples resulta na construção de um referencial enunciativo
que se confunde, eventualmente, em certas análises, com a criação de um
“universo de crenças”. Segundo A. Culioli, a « prise en charge » implicaria apenas
uma crença que seja verdadeira, o que, observemos, não quer dizer que ele se
compromete completamente, como o faria numa asserção: « No sentido técnico de
prise en charge: dizer o que se crê (ser verdade). Toda asserção (afirmativa ou
negativa) é uma prise en charge por seu enunciador. » (Culioli 1999 : 131). Crer
na verdade de ‘P’ não é assertar ; assertar ‘P’, é necessariamente assumir ‘P’.
Pode-se crer (o dizer assumindo sua crença: eu creio, eu penso) sem se
comprometer com a verdade do que é dito. (exemplos : Eu creio que ele veio,
mas não estou certo sobre isso/ Eu creio que a conjectura de Riemann é exata
mas não posso lhe assegurar.) (DESCLÉS, J.J., 2009, p. 35, grifo meu) 36
Para Haillet (2004, p.10) “Um ponto de vista representado como emanando do locutor
é necessariamente assumido por ele (...)”, assim, é representado de forma integrada à
realidade do locutor. Já Laurendeau (2009), partindo de um conceito culioliano de prise en
charge (toda asserção, afirmativa ou negativa, é uma prise en charge de seu enunciador)
La prise en charge simple aboutit à la construction d’un référentiel énonciatif qui se confond éventuellement,
chez certains analystes, avec la creation d’un « univers de croyance ». Selon A. Culioli, la « prise en charge »
impliquerait seulement une croyance dans ce qui est vrai, ce qui ne veut pas dire, remarquons-le, que
l’énonciateur s’engage alors complètement, comme il le ferait par une assertion : « Au sens technique de prise
en charge : dire ce que l’on croit (être vrai). Toute assertion (affirmative ou négative) est une prise en charge
par un énonciateur. » (Culioli 1999 : 131).. Croire à la vérité de ‘P’ n’est pas l’asserter ; asserter ‘P’, c’est
nécessairement prendre en charge ‘P’. On peut croire (et le dire en prenant en charge sa croyance : je crois,
je pense…) sans pour cela s’engager sur la vérité de ce qui est dit. (exemples : Je crois qu’il est venu mais
je n’en suis pas vraiment sûr/Je crois que la conjecture de Riemann est exacte mais je ne peux pas vous
l’assurer.) (DESCLÉS, J.J., 2009, p. 35, grifo meu)
36
76
atrela-a à noção de engajamento: “O sujeito enunciador se implica em sua tomada de posição
e se compromete”.
Depreende-se, das leituras realizadas para esta pesquisa, que, ainda que o enunciador
assuma um conteúdo como emanando de si, isso ainda não significaria, necessariamente,
engajamento, pois respaldando-se em Rabatel (2009),
PEC e engajamento não se
confundem se se toma o engajamento por um equivalente de força ilocutória, podendo haver
PEC com ou sem engajamento, o que ocorre é que na presença de uma PEC explícita, maior
é a força ilocutória, e um conteúdo de baixa força ilocutória não significa, necessariamente,
ausência de PEC: “Quanto mais a força ilocucionária é marcada, mais o locutor se investe
de seu dizer (cf. (4)), mas uma força ilocucionária frágil não leva à não-PEC da verdade de
um enunciado pelo locutor/enunciador”. (RABATEL, 2009, p.7).
Para aumentar um pouco mais a complexidade do problema, no enquadre rabateliano
a distinção enunciador/ locutor é relevante, na medida em que põe em jogo nuances diversas
da interação verbal, em que a questão da PEC se complexifica. Em Rabatel (2009) se
encontra a proposta de estender-se a noção de PEC para além do locutor/enunciador
primeiro. Sob esta perspectiva compreende-se que outros enunciadores (os segundos) podem
ser considerados por uma outra forma de PEC
Para melhor compreender como funciona essa quase PEC, aplicou-se num fragmento
de um texto a classificação proposta em Rabatel (2009):
(2) Rel.5
A escola recebe do FNDE livros para os alunos do 2º ao 9º ano. Livros das disciplinas:
português, matemática, história, geografia e ciências. (A) De acordo com as coordenadoras
entrevistadas os livros são muito bons, na maioria das vezes. Elas dizem ser ruins os
livros que vem completados, que é o caso da maioria dos livros para a 1ª série, (B)
segundo essas professoras, esses autores duvidam da capacidade do professor e lhes
chama de “burro”. C) Mas, penosamente, dizem que a maioria dos professores dessas
séries prefere esses livros respondidos.
De acordo com a proposta rabateliana, no segmento (A) as coordenadoras
entrevistadas pelo autor do texto são as enunciadoras segundas e validam o conteúdo
proposto na subordinada, sem que se saiba exatamente o que pensa o L1/E1, ocorrendo
praticamente o mesmo no segmento (B). Já no segmento C o distanciamento permanece
assegurado pelo discurso indireto, mas observe-se que neste caso, há um diferencial: L1/E1
não é o enunciador do modalisador penosamente, pois este advérbio está considerando a
preferência dos professores do ponto de vista das coordenadoras, que nada dizem
77
diretamente (em DD) a respeito da preferência dos professores por livros com respostas
prontas, mas L1/E1 imputa-lhes um engajamento (ou uma PEC pressuposta) a respeito do
conteúdo proposicional. Isto significa que L1/E1 considera que as coordenadoras condenam
tal comportamento, por isso o advérbio penosamente. Não se pode dizer que haja uma PEC,
pois o enunciado não é atualizado pela fórmula “EU DIGO QUE X”. Em todos os casos há
uma fonte, uma origem externa ao dizer de L1/E1 que, supostamente, fez a prise en charge
do PDV, em outro momento, outro lugar fora daqueles da enunciação. Por esta razão,
Rabatel (2009) propõe a noção de uma PEC pressuposta, ou uma quase PEC:
Não há PEC, pois aqui ela não é atualizada por um "eu digo X", pressupõe-se tenha
ocorrido anteriormente. A imputação é, portanto, uma PEC com responsabilidade
limitada, porque foi construída pelo enunciador, atribuído por ele a um locutor /
enunciador segundo que sempre se pode argumentar que ele não é responsável
pelo L1 / E1 tem indevidamente cobrada. (RABATEL, 2009, P.4)
É esta quase PEC que possibilita ao L1/E1 se posicionar diante de um ponto de vista
de e2. O autor constata que há uma diferença considerável entre a PEC de L1/E1 no e pelo
discurso, o conteúdo que ele assume integralmente e o fato de ele atribuir, imputar um ponto
de vista a uma outra instância (sobretudo quando esta nada diz), fazendo com que se
pressuponha que tal conteúdo tenha sido anteriormente proferido.
Por essa razão, Rabatel (2009) admite que a imputação é uma PEC indireta com
“responsabilidade limitada”, já que L1/E1 atribui um pdv a e2, como acontece no trecho
2 do exemplo anterior em que um pdv é atribuído ao especialista. O e2 pode não assumir o
PDV, pode alegar que não é responsável por um PDV que tenha lhe sido erroneamente
atribuído. Ocorre, neste caso, “uma reacentuação do discurso outro, que passa a ser matizado
com as entoações do outro”, (CORTEZ, 2011).
Por fim, segundo Rabatel (2009), embora seja limitada, a quase PEC é essencial nos
casos em que L1/E1 está de acordo com E2, mas também o é em casos de discordância, pois
neste último não ocorre sobreposição a outro PDV. Desta forma, compreende-se que as
noções de acordo, desacordo e neutralidade só fazem sentido face a noção de imputação.
(3) Art. 4
(A) As ideias referentes à cultura indígena expressas nos primeiros trabalhos
antropológicos têm reflexos ainda hoje, resultando no pensamento preconceituoso da
sociedade brasileira, que preserva a ideia de que o índio não passa de um selvagem
culturalmente atrasado (C) como descreve o próprio Freyre. O que mais intriga nessa
situação é o fato de a cultura das tribos indígenas brasileiras terem absorvido características
78
dos costumes dos “brancos” e ainda assim a população relaciona a imagem do nativo à figura
encontrada na época do Brasil colônia.
O trecho acima combina dois pontos de vista: um afirmado, é o pdv de L1/E1 acerca
de e2, e um pdv representado de e2, em que lhe é imputada a percepção de que o índio é um
ser atrasado e primitivo, neste segmento L1/E1 afirma seu pdv a respeito do outro,
descrevendo seu modo de agir. Essa percepção é deflagrada nas formas nominais
“pensamento preconceituoso” e “ideia de que o índio não passa de um selvagem” e no
enunciado “resultando no pensamento preconceituoso da sociedade brasileira”, que
pressupõe, acerca de e2 um modo de pensar do qual L1/E1 não compartilha.
É deste modo que Rabatel (2009) contrapõe PEC e imputação: enquanto a PEC define
uma responsabilidade integral de L1/E1 na expressão de seu ponto de vista, ela é limitada
ou pressuposta ao remeter-se a um ponto de vista alheio. Na verdade, L1/E1 até assume a
imputação mas não o conteúdo imputado, sendo esse conteúdo atribuído a e2 (pertencente a
outro enunciador). Desta relação decorre a disjunção entre locutor e enunciador. Nos
segmentos destacados do excerto acima, L1/E1 assume a imputação, na medida em que é o
responsável pela representação de um conteúdo perceptual atribuído a e2, nisto reside o
distanciamento, pois L1/E1 não assume o conteúdo perceptual do pdv representado de e2.
Neste excerto, observa-se ainda um outro enunciador, descrito por L1/E1 como a fonte donde
emanariam os pensamentos que influenciam a sociedade (e2), esse terceiro enunciador é o
antropólogo, contra cujas ideias L1/E1 se contrapõe. Em outras palavras, L1/E1 parte do
pressuposto de que a “sociedade brasileira” tem uma certa ideia a respeito do índio, a de um
“selvagem”, é esse posicionamento que L1/E1 critica, mas claro está que ele não é o
responsável por essa percepção. Trata-se de um saber social em que está ancorada a memória
discursiva a respeito da relação entre o homem branco e o índio e esse espaço interdiscursivo
é que permite a representação do pdv imputado. Ao referir-se à sociedade (objeto de
discurso) L1/E1 retoma e reapresenta uma percepção socialmente construída de uma
sociedade brasileira arraigada aos modelos de pensamento etnocêntrico , o que lhe permite
imputar um pdv e assinalar, implicitamente, a existência de uma perspectiva divergente do
pdv principal.
Há ainda um outro conceito associado ao pdv que atua na sua representação (tanto
quanto a PEC e imputação), é a “prise en compte”. Rabatel (2009) contrapõe a PEC à prise
en compte a partir da noção de imputação. A prise en compte difere da PEC na medida em
que envolve uma tomada de posição ou assunção de um conteúdo, apenas uma forma de
integrá-lo no discurso. Deste modo, entende-se que a prise en compte engloba pdv’s
79
imputados por L1/E1 aos outros enunciadores, o pdv de e2 (sociedade brasileira) no excerto
anterior evidenciou que L1/E1 integrou as percepções de outro em seu discurso, mas não o
assume como seu, é por isso que pode ser entendido como uma prise en compte, mas não
como PEC, na medida em que L1/E1 não assume o pdv como seu, e, mais, trata-se de uma
prise en compte no desacordo, na medida em que este enunciador não valoriza este pdv, ao
contrário, desaprova-o, criticando tal modo de agir.
Para Laurendeau (1989a; 2009) toda PEC é, necessariamente, uma prise en compte,
mas o oposto não é verdadeiro, nem toda prise en compte é uma PEC, na medida em que
não precisa ser assumida por L1/E1, donde se compreende que prise en compte é um
fenômeno mais amplo do que a PEC. Partindo-se da perspectiva deste autor compreende-se
que a imputação corresponde a uma não asserção ou desasserção por parte de L1/E1 que,
não assumindo integralmente a responsabilidade pelo conteúdo proposicional, coloca-se à
distância em relação a e2. Desta forma, essa não asserção se configura como uma objeção
ao pdv de outro, como no pdv imputado à sociedade, no excerto (3).
Mas, por outro lado, pode haver, como no excerto (2), um caso de prise en compte no
acordo. Neste caso a imputação pode se tornar uma PEC, que, como forma de prise en
compte, indica asserção no grau máximo em relação a um conteúdo, ou seja, a PEC integral
corresponde a um caso de prise en compte em maior grau e a PEC com responsabilidade
limitada (imputação) equivaleria a um grau mínimo, nesse sentido pode-se falar em
gradação, não da PEC, mas da prise en compte.
Rabatel e Lepoire (2006, p.65) estabelecem, num esquema, este continuum entre o
acordo e o desacordo, tomando-o como base para definir as posturas enunciativas de
coenunciação, subenunciação e sobrenunciação, neste mesmo esquema, que será retomado
mais adiante:
Concordância concordante concordância discordante
Consenso
Discordância concordante discordância discordante
Dissenso
E SQUEMA 1- M OVIMENTOS DE C ONCORDÂNCIA E DISCORDÂNCIA E P OSTURAS E NUNCIATIVAS (R ABATEL E LEPOIRE , 2006)
Na PEC integral, a percepção é engendrada sob a perspectiva de um outro enunciador,
de cuja posição (no acordo) L1/E1 se apropria, mas, pode ocorrer também que tal percepção
se origine no âmbito do “eu”, que reformula ou atualiza sua própria posição num
80
desdobramento enunciativo denominado “autodialogismo” por Brés e Verine (2002, p.166).
Para esses autores, o enunciador inserido correfere ao enunciador que insere, trata-se de um
diálogo entre o eu e um enunciado anteriormente proferido por este “eu”. Embora o mais
comum seja a disjunção entre enunciadores diferentes, o heterodialogismo, ocorre també o
autodialogismo, caracterizado pelo já mencionado diálogo com o “eu”. Segundo Rabatel
(2008) isto não significa, obrigatoriamente, uma autorreferência, nestes casos o objeto de
discurso resulta da reformulação da posição do locutor/enunciador, sendo concebido,
portanto, em seu domínio perceptual, de forma que a PEC é comum a ambas as dimensões,
heterodialogismo e autodialogismo, enquanto a imputação caracteriza apenas o
heterodialogismo.
Em Rabatel (2013) postula-se que a noção de posicionamento enunciativo é o que
sugere a diferenciação entre os fenômenos de PDVs por reduplicação autodialógica (um
outro eu) e por desdobramento heterodialógico (um outro diferente do eu). Na repetição
autodialógica, L1/E1 se volta para um de seus PDVs anteriores e o confirma (ou ainda se
dissocia ou estabelece seu julgamento); o mesmo ocorre no caso do desdobramento, podendo
conduzir à manifestação do acordo, desacordo ou mesmo marcar neutralidade em relação a
l2/e2. De acordo com esses posicionamentos, as instâncias de prise en charge podem ou não
se reunir. Em se tratando do desdobramento, L1/E1 constrói seu discurso baseado em outro
e, na sequência, se posiciona seguindo os mesmos mecanismos de acordo, desacordo ou
neutralidade. Rabatel (2013, p.169) ilustra essa discussão com os exemplos abaixo:
(A) Certamente que, como você havia dito, esta sopa é boa.
(B) Certamente que esta sopa é boa, como você o disse.
(C) Você o disse, certamente que esta sopa é boa.
Estes enunciados acima são interpretados pelo autor como sendo de natureza
heterodialogica, com desdobramento de dois sujeitos modais diferentes.
Veja-se, agora, outra série de exemplos trazidos pelo autor:
(D) Certamente que, como eu lhe disse, essa sopa é boa
(E) Certamente que, como eu lhe havia dito, essa sopa é boa.
(F) Certamente que, como eu sempre lhe disse, essa sopa é boa.
(G) Certamente que, como eu lhe disse e digo novamente, essa
sopa é boa
O autor admite que a interpretação desses enunciados como autodialógicos seria
possível e natural, embora considere que (D) soe artificial, mas tal artificialidade se desfaz
havendo uma reduplicação, com duas posições distintas do mesmo enunciador retomando
81
um dito anterior como em (E), ou sobre as formas habituais de dizer, num comentário metaenunciativo como em (F) e (G).
Na tensão entre as relações entre os enunciadores demarcam-se os fenômenos de PEC
diretamente relacionados à construção do PDV, possibilitando o gerenciamento de posições
no discurso por L1/E1, que pode representar, da maneira que lhe convier, seu ponto de vista
e de outros.
Essa movimentação é representada no esquema proposto por Rabatel e Lepoire (2006,
p.68), em que se demonstram as posturas enunciativas em simetria ou dissimetria em relação
aos demais enunciadores, caracterizando a hierarquização dos enunciadores no discurso:
E SQUEMA 2 - HIERARQUIZAÇÃO DAS P OSTURAS E NUNCIATIVAS - (R ABATEL E LEPOIRE , 2006)
Desta forma compreende-se a concordância concordante como a única e verdadeira
forma de coenunciação; a concordância discordante como sobreenunciação e a discordância
concordante como subenunciação. Destas, apenas a coenunciação resulta de uma co-locução
com a prise en charge de um PDV comum; a subenunciação, bem como a sobrenunciação,
jazem numa co-construção de um único PDV num tópico da sequência, sem que haja um
igual engajamento de ambos: enquanto o sobrenunciador impõe seu PDV a um outro, como
se seu PDV fosse apenas uma paráfrase do PDV do interlocutor, o subenunciador retoma o
PDV de outro, distanciando-se, sem, no entanto, substituí-lo por outro contrário. Enfim,
ambos os posicionamentos evidenciam uma assimetria na co-construçao de um conteúdo
propoposicional, assumida pelos dois locutores seja por meio de retomadas ou
reformulações, enquanto a discordância discordante, o polo extremo do continuum
representado no esquema, evidencia a expressão manifesta e explícita de dois PDVs
antagônicos. Diante da importância das interações assimétricas, faz-se necessário um aparte
para se esclarecer que as posturas enunciativas assumem, no conjunto das reflexões
rabatelianas, um sentido muito específico e não se pode confundi-las com a posição ou pdv
de L1/E1, de forma que se a PEC e a imputação envolvem diferentes enunciadores cuja
relação nem sempre é simétrica conclui-se, forçosamente, que tais relações são
82
hierarquizadas no discurso, e é desse sistema de hierarquização que se trata nas posturas
enunciativas: as noções de coenunciação, subenunciação e sobrenunciação.
2.5.3.2 A hierarquização das posturas enunciativas
Em suas considerações Rabatel (2004, 2005, 2006, 2008, 2013) postula que dentre as
posturas enunciativas sobressai uma voz principal, um ponto de ancoragem para a
hierarquização dos enunciadores. Trata-se de uma espécie de simbiose entre locutor e
enunciador, sendo em relação a esta voz principal que o locutor é definido e determina a
postura de outros enunciadores.
Na proposta de hierarquização subjaz a reinterpretação da noção de coenunciação que
o autor faz: para Rabatel (2005) por coenunciação não se entende, necessariamente, uma
enunciação conjunta. Não se trata de descartar esse tipo de co-construção, mas de se
esclarecer que, na proposta rabateliana, o que se postula é uma relação dialógica e
intratextual, característica essencial à natureza dinâmica dos pontos de vista. Neste aspecto
a noção de coenunciação adquire um sentido muito específico: indica as relações de simetria
de pontos de vista no discurso. O termo coenunciação é redefinido no quadro de Rabatel
junto às noções de sobrenunciação e subenunciação, duas posturas dissimétricas que
evidenciam desigualdade no enquadramento de posições e enunciadores. Desta forma, a
coenunciação, no enquadre rabateliano, se distingue do termo proposto por Jeanneret (1999)
que pressupõe um fenômeno de co-locução sem que haja uma partilha na co-construção do
PDV entre dois enunciadores. Também se distingue da noção de coenunciação proposta por
Morel e Danon-Boileau (1998, p. 94-96), cujo pressuposto reduz a coenunciação a um
parâmetro de cálculos do locutor para produzir um enunciado que busque o consenso do
alocutário antecipando suas reações. Além disso, segundo Rabatel (2007), sendo os
fenômenos de acordo sobre um PDV limitados, a coenunciaçaõo é rapidamente seguida por
uma sobre ou subenunciação, mais adequadas para expressão de desacordos ou
desigualdades frequentes na dinâmica conversacional.
Observa-se, assim, que há uma instabilidade no papel que as instâncias desempenham
no cenário enunciativo: nem sempre estão em consonância, podendo não partilhar do mesmo
ponto de vista, ou ainda, enunciando em lugares e/ou papéis diferentes. Desta forma, na coconstrução do pdv pode ocorrer ou não a equivalência ou simetria enunciativa, havendo,
manifesta-se o enunciador em coenunciação, nao havendo simetria, manifestam-se dois tipos
83
distintos de enunciador: um que manifesta um ponto de vista dominado, o subenunciador, e
outro que manifesta um ponto de vista dominante, o sobrenunciador.
Retomando a questão discutida anteriormente, na definição rabateliana de posturas
enunciativas imbricam-se, necessariamente, posicionamentos de acordo e desacordo entre
PDV’s, resultantes do modo como L1/E1 se posiciona na interação na relação entre os
interlocutores:
Esta hierarquização dos enunciadores depende, em última instância, das relações
que o locutor/enunciador primeiro mantem como os enunciadores dos PDV, sendo
que ele pode assumir tal PDV ou simplesmente relatá-lo sem que assuma seu
conteúdo, e, sobretudo, suas implicações. (RABATEL, A., 2005, p. 60)37
Partindo-se das considerações do autor, compreende-se que há, do ponto de vista
cognitivo, uma multiplicação dos conteúdos proposicionais e dos enunciadores, o que
complexifica a questão e demanda uma estratégia no modelo de análise rabateliano: a idéia
do reagrupamento dos conteúdos proposicionais segundo três critérios, a saber,
i)
agrupamento de acordo com o conteúdo referencial, ou todos os conteúdos proposicionais
tratando do mesmo referente; ii) de acordo com a fonte enunciativa, sendo todos os
conteúdos proposicionais advindos da mesma origem enunciativa e iii) de acordo com a
orientação argumentativa, em que todos os conteúdos proposicionais são co-orientados, aos
quais, eventualmente, podem se juntar os conteúdos proposicionais anti-orientados
integrados à orientação argumentativa do enunciador principal.
Em Rabatel (2005, p.61) há referências acerca de um outro fenômeno: o
empacotamento de pdv’s. Trata-se do “empacotamento” de um conteúdo proposicional
(ainda que diferentes referentes) a um pdv principal, desde que ele tenha a mesma fonte
enunciativa e mesma orientação argumentativa. O autor considera, também, que tanto o
apagamento enunciativo quanto uma deficiência no gerenciamento das vozes, que dificulta
a emergência do pdv do locutor) são fatores que tornam a hierarquização e o empacotamento
ainda mais complexos.
Outro aspecto muito importante na problemática do pdv e hierarquização das posturas
enunciativas é o fato de que a coenunciação não se evidencia, necessariamente, pelo
equilíbrio na distribuição das falas (cf. CORTEZ, 2011). Assim, mesmo que haja um locutor
37
Cette hiérarchisation des énonciateurs dépend en dernière instance des liens que le locuteur/énonciateur
primaire noue avec les énonciateurs des PDV, suivant que ce dernier prenne en charge tel PDV, ou qu’il se
contente de rapporter/asserter tel autre PDV sans en assumer le contenu ni, surtout, les implications.
(RABATEL, A., 2005, p. 60)
84
dominante, que fala mais, isso não significa exatamente que haja dissimetria de posições
enunciativas, e, portanto, pode haver, sim, coenunciação em tal arrranjo textual. Dessa
observação decorre a constatação de que as posturas enunciativas não dependem da
quantidade de falas proferidas por cada locutor/enunciador, mas das relações que eles
mantem entre si e, sobretudo, da maneira como os pontos de vista são representados. Donde
também se conclui que um locutor não pode ser considerado subenunciador apenas se falar
menos ou sobrenunciador se falar mais, bem como a assunção de uma postura ou outra
postura, sobrenunciação ou subenunciação, não significa necessariamente superioridade ou
inferioridade enunciativa, logo não se pode avaliar como sendo melhor ou se sabe mais este
ou aquele enunciador, mas, apenas que a postura de sobrenunciação implica apresentar o
enunciador como avalista da verdade, apresentando seu ponto de vista como fidedigno. A
afirmação desse enunciador é garantida ao se mantê-la no centro da interação de tal forma
que seu ponto de vista pode chegar até a desempenhar função de tópico discursivo. Trata-se
de um enunciador que intervém em interações dissonantes, aproveitando a posição e o
conteúdo do dizer do subenunciador.
Nesta relação entre enunciadores, tensionada e caracterizada pela instabilidade das
posturas enunciativas, revela-se uma disputa de lugares, a partir dos quais o sobrenunciador
se afirma, sugerindo que tal dissimetria evidencia a manifestação da subjetividade na
representação dos pontos de vista (cf.CORTEZ, 2011, p.93). Não se trata, evidentemente, de
uma subjetividade manifestada apenas por um “eu”, ou um ponto de vista expresso por “eu
acho que..” ou outras fórmulas que evidenciem julgamento de valor dos enunciadores. Tal
subjetividade, descolada do “eu” é, antes de mais nada, uma forma do sujeito colocar-se no
lugar de outro e representar o pdv deste outro por meio de dispositivos como a PEC e a
imputação. Hierarquizando os enunciadores, tais dispositivos acentuam o discurso do outro,
demonstrando que, invariavelmente, expressa-se a partir dos pdvs de outros, posicionandose em relação a esses pdvs. Assim, pode-se considerar que a identificação das posturas
enunciativas é uma tarefa importante no exercício de análise do pdv e sua constituição
textual-discursiva, permitindo também ponderar sobre as relações de força entre os
enunciadores e o pdv principal que funciona como o fio condutor da orientação
argumentativa do texto.
As posturas enunciativas, bem como os dispositivos da PEC e imputação, evidenciam,
sobremaneira, a disjunção locutor/enunciador, desempenhando determinados papéis/funções
na construção do PDV. Desta forma, considera-se que o dialogismo está na base da
configuração textual-discursiva do pdv. É também pela via do dialogismo, pela
85
heterogeneidade do sujeito falante, que os estudos do pdv se imbricam com o campo do
discurso reportado, tendo, ambos, como objeto comum os estudos sobre a heterogeneidade
enunciativa, a representação do discurso outro e do discurso interior. Assim, a tarefa de
definir e delinear os contornos que caracterizam o pdv requer também discutir sua relação
com o discurso reportado e deste com o mediativo, e por esta razão, abriu-se um subtópico,
na sequência, para apresentar essa discussão e tentar, minimamente, estabelecer as
diferenças e semelhanças entre as perspectivas e de que maneiras podem ser articuladas no
escopo desta pesquisa.
2.6 Síntese das propostas de abordagem enunciativa e polifônica
As abordagens de natureza polifônica desenvolvidas no quadro da proposta da
ScaPoLine e no quadro rabateliano apresentam uma característica muito forte em comum:
ambas buscam estabelecer dispositivos de análise da construção do ponto de vista no nível
textual. Ainda que compartilhem, inclusive, um certo interesse pela análise de textos
literários, ambos quadros oferecem ferramentas valiosas para a análise enunciativa de
qualquer tipo de texto. O exame de ambas abordagens demonstrou também a dificulddade
que existe em se considerar um quadro específico para tratar da analise de base polifônica,
uma vez que vários conceitos se imbricam na questão da polifonia, mas, demonstrou,
também a possibilidade de se depreender os principais fundamentos de ambos os quadros e
a possibilidade de articulá-los numa análise. O quadro abaixo sintetiza os conceitos
conforme estabelecido nos três enquadramentos teóricos discutidos:
86
Autor
Sujeito
falante
Instância apresentada Fonte (quem assume a Ponto de vista
como
responsável responsabilidade pelo
pelo
ato
de ponto de vista)
(produtor
enunciação
de
um
enunciado)
O. Ducrot Sujeito
falante
Locutor (LOC)
Enunciador
Ponto de vista
ScaPoline Sujeito
falante
Locutor
Seres
discursivos:
trata-se
de
uma
variável, pois a função
“enunciador” pode ser
exercida por seres
discursivos em função
das
relações
enunciativas
Ponto de vista: um
componente
referencial e um
componente
modal.(modus/dic
tum)
A.
Rabatel
Sujeito
Locutor
ou Enunciador
Ponto de vista:
falante (às enunciador primeiro (determinado
por referência (origem
vezes um (L1/E1)
referenciação
ou da
percepção);
locutor)
relatores contidos no termo
pdv)
referenciado
e
relator
(aquele
que experiencia a
percepção
+
verbos
de
percepção)
QUADRO 1- SÍNTESE DAS PROPOSTAS DE ABORDAGEM ENUNCIATIVA E POLIFÔNICA ( ADAPTADO DE
R INCK, 2006)
Propõe-se, no quadro adaptado a partir de Rinck (2006), uma recapitulação
esquemática dos princípios postulados por Ducrot (1984), tomando-o como fundador das
análises de base polifônica, em comparação com os princípios basilares do quadro da
ScaPoLine, propostos por Nølke et al (2001, 2004) e de Rabatel (1998, 2003, 2004a, 2004b,
2006), objetivando-se uma síntese das diferentes dimensões que compõe esses quadros a fim
de se destacar divergências e convergências, esclarecendo-se que, nesta pesquisa, os pontos
convergentes são incorporados às propostas rabatelianas.
Ressalta-se neste quadro que tanto na abordagem proposta pela ScaPoLine quanto a
de Rabatel destaca-se como princípio basilar, nestes modelos analíticos, a importância de se
considerar o ponto de vista como o ponto de partida nas análises. De todo modo, considerar
esses dois quadros de análise não consiste apenas em se constatar a multiplicidade de pontos
de vista, mas sobretudo, de alargar as possibilidades da tarefa de interpretação da polifonia
87
no nível textual. Neste aspecto, a abordagem da questão da prise en charge de um ponto de
vista aflora como fundamental.
Há ainda outros conceitos que restam para serem discutidos no âmbito desta pesquisa,
e, mais ainda, postula-se a possibilidade de articulá-los com os conceitos aqui já discutidos
para mobilização nas análises que se fazem neste estudo, assim, apresenta-se na sequência
os conceitos de discurso reportado, heterogeneidade enunciativa e mediativo.
2.7 As articulações possíveis entre pdv, discurso reportado e mediativo.
Tema recorrente nas discussões contemporâneas sobre discurso, polifonia e
dialogismo, o discurso reportado estabelece relações com uma série de outros conceitos que
importam nesta pesquisa, a saber, responsabilidade enunciativa, prise en charge, ponto de
vista, bem como uma série de questões ainda mais abrangentes como argumentação,
identidade e autoria, superando a concepção das gramáticas escolares tradicionais (cf.
ROSIER, 2008, p.6)
Em diversas publicações do grupo Ci-Dit38, bem como o número 19 da Revista Faits
de Langue e o 14 da Revista de Estudios de Lingua e Literatura Francesa, observa-se um
grande numero de autores que assinam os artigos dessas obras, uma evidência da diversidade
de temas que povoam os interesses do campo no contexto francófono.
O campo do discurso reportado é de tal forma marcado pela diversidade de
perspectivas e abordagens que isto se reflete numa oscilação da própria terminologia: para
além das designações discurso reportado e representado, encontram-se ainda, na literatura
disponível, os termos discurso outro, discurso citado, representação do discurso outro,
discurso deportado, importado, e numa perspectiva mais abrangente, circulação dos
discursos. Tal flutuação terminológica não é o aspecto mais relevante da questão já que o
termo discurso reportado continua predominando (MUÑOZ et al, 2002).
Para além da profusão de termos, inicia-se o exame desta questão com Authier-Revuz
(2004) e sua percepção de que certas formas de representação do discurso outro não “cabem”
nas gramáticas tradicionais:
Na verdade, esta prática metadiscursiva de produção, no discurso, de uma imagem
do discurso outro passa pela implementação de formas de operação que, em sua
maioria, não pertencem ao campo, funcionando, alhures, em toda a problemática
do discurso outro: não se pode pensar em escrever uma “gramática” no sentido
forte do termo, mas no delineamento de uma estruturação em áreas,, operada sobre
38
Grupo de pesquisas internacional e interdisciplinar, reune pesquisadores de várias nacionalidades, com
interesses relativamente heterogêneos, mas unificados, de certa forma, pelas abordagens do discurso reportado.
88
a base de qualisquer operações e formas elementares que não são propriamente
suas. (AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 40)39
Rosier (2008, p.7-8) explica que, de fato, algumas formas do discurso reportado não
são reconhecidas como tal nas gramáticas tradicionais, mas não deixam de sê-lo, do ponto
de vista do sentido, pois dão conta dos modos pelos quais se transmitem e circulam os
enunciados, a autora lista algumas dessas formas:
- Citação de excertos com atribuição nominal posterior simples: “a hipocrisia é uma
homenagem que o vício presta à virtude” La Rochefoucault, e, dupla: “o estilo
burguês” Gide citado por Brunot
- referência ao discurso outro por um nome próprio: (Pompidou, 1969)
- formas recursivas do DD e DI : “Ele disse que sua esposa lhe disse que você havia
dito que não era necessário..” (Nicolas Gougenot, La comédie des comédiens, p.9)
- modalizações diversas sobre o grau de verdade ou instância legitimadora do
enunciado reportado: “Oficialmente, Castro vai bem” (L’Express en line,
02/08/2006); “Ele me deu um aviso oficial da venda da Techener, eis o procedmento
de um verdadeiro sábio (Nerval, Les files defeu, Angelique, p.1)
- diversidade de introdutores que mostram a enunciação como simples relato:
“Tinham me dito que Jean-Pierre Dézéluz voltaria a trabalhar reabrindo a phpinfo.
Deixemos, por agora, no condicional, e veremos. Eu poderia ter a informação da
boca de J.P, quem sabe? (www.expreg.com, 15/05/06) (ROSIER, 2008, p.7-8)
Os fragmentos abaixo sinalizam a representação do discurso outro, em que um outro
enunciador, além de L1/E1, está em cena. Veja-se alguns exemplos pinçados da amostra do
corpus:
Art. AI04
4) Gilberto Freyre no livro Casa-grande e senzala retrata em um dos capítulos,
denominado por o indígena na formação da família brasileira, questões referentes à cultura
dos índios encontrados no país na época da chegada dos portugueses ao Brasil. O autor
descreve a vida que os nativos costumavam levar, além de fazer uma analogia entre este tipo
de cultura e a cultura lusitana, abordando por fim heranças culturais advindas de ambos os
povos que constituem a diversidade cultural brasileira.
Art. AI04
5) Freyre também defende o negro no que diz respeitos aos seus rituais religiosos. Ele
coloca que a feitiçaria e magia sexual presente até então na cultura de algumas regiões
brasileiras não trata uma herança apenas dos africanos, visto que “o primeiro volume de
documentos relativos às atividades do Santo Ofício no Brasil registra vários casos de bruxas
portuguesas.” (Freyre, 2001, p. 378-379). Além disso, o autor também aborda que a ideia
vulgar de que o negro tende aos excessos sexuais está relacionado com um trabalho
produzido por Ernest Crawley, mas discorre que “nada nos autoriza a concluir ter sido o
negro quem trouxe para o Brasil a pegajenta luxúria” (Freyre, 2001, p.376).
6) Art.AI09
En effet, cette pratique metadiscursive de production dans le discours d’image d’un discours autre passe par
la mise en œuvre de forms d’operation qui, majoiritairement, “n’appartiennent” pas a ce champ, fonctionnant,
ailleurs, en dehors de toute problematique de discours autre: aussi, ne peut-on en écrire une “grammaire” au
sens fort, mais en dessiner une structuration en zones, operée sur la base de quelques operations et formes
élémentaires qui ne lui son pas propres. (AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 40)
39
89
(...) os métodos ativos de educação das crianças exigem todos que se forneça às
crianças um material conveniente, a fim de que, jogando, elas cheguem a assimilar as
realidades intelectuais que, sem isso, permanecem exteriores à inteligência infantil. (Piaget
1976, p.160).
7) Art. AI09
Wallon fez inúmeros comentários onde evidenciava o caráter emocional em que os
jogos se desenvolvem, e seus aspectos relativos à socialização. Referindo-se a faixa etária
dos sete anos, Wallon (1979) demonstra seu interesse pelas relações sociais infantis nos
momentos de jogo.
Os excertos acima sinalizam as diversas formas de representação do discurso outro,
neste caso, o outro é, via de regra, autor de determinados quadros teórico com os quais L1/E1
tenta dialogar. Assim, embora em alguns excertos não haja verbo dicendi, ou dois pontos ou
ainda a conjunção “que”, é possível marcar a presença de um outro enunciador além de
L1/E1, seja por meio da preposição “para”, seja por meio de “segundo” ou “de acordo com”,
ou simplesmente marcando a fonte do dizer, nomeando-a. Em alguns casos, como no excerto
(5) a forma verbal “diz que” antecedida por um trecho entre aspas, representa, de modo
clássico, formas convencionais do DR. De todo modo, no conjunto de excertos listados,
dentre inúmeros outros presentes no corpus, encontram-se evidências de que o relato de um
discurso não está a cargo apenas das formas convencionais de DR, e tal constatação amplia
o leque das formas de reportar, na medida em que considera dois espaços enunciativos, cf.
Rosier (2008, p.55). Na tensão entre esses espaços enunciativos, característico do DR, limitar
o estudo do discurso citado à abordagem das formas de citação seria um reducionismo.
2.7.1 As heterogeneidades enunciativas situada no quadro mais amplo do discurso
reportado.
Authier-Revuz (1984, p. 105) discute essa tensão, anteriormente mencionada, a partir
de uma concepção de referência ao outro (explicitamente especificado ou que se dá a
especificar), que se opõe, pela diferença em relação ao restante da cadeia, à homogeneidade
ou unicidade, de modo que um exterior se encontra claramente em oposição a um interior.
Assim, a referência a este exterior explicitamente especificado é também um modo de se
constituir a identidade do discurso, de forma que o que a autora chama de “zona de contato”
entre exterior e interior revela muito sobre o discurso, tanto nas zonas de marcação explícita
do discurso outro como pelo tipo de relação que se estabelece com o outro. Desta forma,
entende-se como o discurso é orientado por e para um outro, mesmo que esse outro mantenha
uma perspectiva oposta, da qual o enunciador queira distanciar-se.
As formas de
90
distanciamento, mobilizadas pelo enunciador, são formas de se confirmar e assegurar sua
identidade, corporificam o enunciador demonstrando sua posição e atividade metadiscusiva.
É desta maneira que a autora (1982, 1982, 2004), partindo de Bakhtin e Lacan, elabora
uma distinção do que antes já havia postulado como heterogeneidade enunciativa. Para a
autora, a heterogeneidade enunciativa abrange dois planos interdependentemente articulados
no que tange à constituição dos discursos: a heterogeneidade constitutiva e a mostrada. O
primeiro plano diz respeito aos processos reais de constituição de um discurso e o segundo,
à representação, em um discurso, de sua constituição (AUTHIER-REVUZ, 1990).
A autora considera a heterogeneidade constitutiva da seguinte forma: todo discurso é
constitutivamente atravessado pelos outros discursos e pelo discurso do outro”, de modo que
os discursos são heterogêneos porque comportam, constitutivamente, dentro de si, outros
discursos. O que equivale dizer que a heterogeneidade constitutiva se refere à alteridade
como condição de existência do discurso de um sujeito que não é apresentada como a fonte
de seu discurso, enquanto na heterogeneidade mostrada é possível apreender a representação
que o locutor constrói acerca de sua enunciação.
Assim, todo discurso é heterogêneo e as marcas identificáveis de outros discursos são,
segundo a autora, heterogeneidades mostradas em negociação com a heterogeneidade
constitutiva, sendo desta forma que o sujeito se vale para exercer uma atividade de controleregulagem do processo de comunicação (AUTHIER-REVUZ, 1982, p.14) visando controlar,
por uma manobra de ilusão, os efeitos de sentido e a presença do outro em seu discurso.
A autora ainda considera que as formas sintáticas são também responsáveis pela
demarcação das fronteiras desse “outro” nos discursos, pois estabelece que
No discurso indireto, o locutor se comporta como tradutor: fazendo uso de suas
próprias palavras, ele remete a um outro como fonte do “sentido” dos propósitos
que ele relata. No discurso direto, são as próprias palavras do outro que
ocupam o tempo – ou o espaço – claramente recortado da citação na frase; o
locutor se apresenta como simples “porta-voz”. Sob essas duas diferentes
modalidades, o locutor dá lugar explicitamente ao discurso de um outro em seu
próprio discurso. (AUTHIER-REVUZ, 1982, p. 12)
Em outro de seus textos seminais, Authier-Revuz (1982), discute o discurso de
divulgação centífica como um processo de transformação e apresentação do discurso
científico ao público leigo, em que “discursos mostrados” postos em contato num só
discurso, se configuram como um ponto de encontro entre os discursos e não somente como
discurso de transmissão de algum conhecimento. Trata-se de um discurso em que um “eu”
fala por outros numa espécie de mediação entre um lugar e outro, o do discurso científico e
91
o do leigo. A dupla orientação traz à cena o outro, na figura do público (leigo) e outros
enunciadores, e essa inclusão, tanto quanto a necessidade de promover a interação entre os
discursos, contribui para inserir o discurso reportado num quadro mais amplo da linguística
da enunciação.
Desta forma, pode-se dizer que a partir dos estudos de Authier-Revuz a dimensão
interacional ganha um estatuto mais privilegiado dentre as abordagens enunciativas na
medida em que integra a dimensão que interage com o sujeito (colocutor, coenunciador,
interlocutor). É também o ponto de partida para várias outras discussões, que, no âmbito da
dimensão interacional, aportam questões identitárias, como por exemplo, no estudo de
Vincent (2004), que adota uma abordagem sociolinguística para demonstrar como o discurso
relatado pode ser uma ferramenta para, direta ou indiretamente, mostrar uma tomada de
posição, constituindo múltiplas estratégias com a finalidade de se situar em relação ao
outro, ou seja, para a construção de representações identitárias. Da mesma forma, Doury
(2004) faz algumas análises contextuais de sequências de discurso relatado em interações
orais cotidianas, postulando, a função argumentativa do discurso reportado. A autora
observa diferentes
manifestações
de
heterogeneidade
enunciativa
do
discurso
argumentativo, particularmente o discurso reportado que, em sua proposição, desempenha
um papel fundamental na construção do ethos dos locutores-relatores. A construção
identitária pelo ângulo do discurso reportado, e mais precisamente pelo discurso direto, é um
enfoque semelhante a esses e a diversos outros estudos presentes em todas as edições do
colóquio organizado pelo Ci-dit e as publicações decorrentes. Por enfoque semelhante, essas
pesquisas dedicam-se tanto ao estudo das formas, como dos procedimentos discursivos
envolvidos no processamento do DR.
2.7.2 Formas do mediativo e suas relações com o discurso reportado e pdv.
A formas do mediativo são apresentadas nesta pesquisa por meio dos estudos de
Guentcheva (1994, 1996) bem como de outros autores que ou apresentam noções correlatas
ou reafirmam o mediativo na perspectiva da autora.
Recusando o termo evidentialité, Guentcheva (1996) retoma o termo mediatif, já
introduzido nos estudos linguísticos franceses desde 1956, e explica sua preferência:
O termo francês “evidentiel”, um falso cognato do inglês “evidential”, evoca a
evidência, o que significa a constatação direta, e o ouvir dizer, o não visto, e o
inferencial não podem sere considerados como evidências.
É também
significativo que o termo russo neocevidnost adotado nas transcrições das línguas
92
samoyedes, por exemplo, designe a não evidência. Outros termos, tal como datafonte – adotado por M.J. Hardman (1986) para as línguas jaqi, assumem um
significado mais amplo e englobam o conhecimento pessoal que media os fatos da
enunciados pelo enunciador. (GUENTCHEVA, 1996, p.13)40. J
No âmbito desta pesquisa, compreende-se também que o termo mediativo responde
melhor à questão do envolvimento/distanciamento do enunciador com seu enunciado, em
vez de evidentialité, que seria um falso cognato, porque o termo mediativo, conforme
adotado por Guentcheva (1996), designa uma categoria gramatical que permite ao
enunciador referir-se a uma determinada situação enunciativa pela qual ele não assume a
responsabilidade, por não ter testemunhado o fato enunciado e dele ter tomado conhecimento
por vias indiretas, seja por ouvir dizer , seja por indícios que o levem a deduzir ou inferir.
Tais mecanismos linguisticos permitiriam ainda vislumbrar graus de distanciamento em
relação ao que é relatado:
Por mediativo (ou o que se convencionou chamar de não-testemunhal em francês
ou evidencial em inglês), eu designo a categoria gramatical que permite ao
enunciador marcar formalmente os diversos graus de distanciamento a respeito
dos fatos que ele enuncia e de significar, pelo conhecimento dos fatos, que ele é
afetado por meio de uma percepção, de alguma forma, mediada.
(GUENTCHÉVA, 1993, p.57)41
Conforme atestado por Desclès e Alrahabi (s/d), a teoria da enunciação pressupõe a
constituição de um enunciado a partir de várias operações, das quais nos interessa o
desengajamento enunciativo. A operação de desengajamento realizada por um enunciador
consistiria em aplicar um operador complexo, designado como modus, sobre um operante,
designado como dictum (ou relação predicativa) com a finalidade de se obter um
determinado resultado. Tal distinção entre modus e dictum não se dá no nível concreto, mas
num nível mais abstrato onde o modus e o dictum são representados por operações lógicogramaticais. Também Guentcheva e Desclès (1997) definem o meadiativo a partir das
relações entre o modus e o dictum:
Le terme “evidentiel”, um faux ami de l’anglais eviential, evoque l’evidence, c’est-à-dire la constatation
directe. or ni l’oui-dire, ni le non-vu, ni l’inferentiel ne peuvent être consideres comme dês evidences. Il est
d’ailleurs significant que le terme russe neocevidnost adopté dans la description dês langues samoyedes, par
exemple, designe la non-evidence. D’autres termes tel data-source, adopté par M.J. Hardman (1986) pour lês
langues jaqi, revêtent uns sens plus étendu et englobent la connaissance aussi bien personelle que médiate dês
faits de lapart de l’enonciateur. (GUENTCHEVA, 1996, p.13)
41
Par médiatif (ou ce que l'on appelle le plus souvent non-testimonial em français ou evidential en anglais), je
désigne la catégorie grammaticale qui permet à ľénonciateur de marquer formellement divers degrés de
distanciation à l'égard des faits qu'il énonce lui-même et de signifier par là que la connaissance de ces faits lui
est parvenue à travers une perception en quelque sorte médiate. (GUENTCHÉVA, 1993, p.57)
40
93
A exemplo de E. Benveniste, chamamos de “sujeito enunciador” o sujeito modal
que é parte constitutiva do modus. O sujeito enunciativo assume o que é dito –
o dictum – ou seja, aquilo que é expresso por uma relação predicativa. Cada
enunciado que é a manifestação linguística de um ato de enunciação é o resultado
de uma operação complexa de prise em charge, seja diretamente, seja
mediadamente, por um enunciador de uma representação predicativa ou um
dictum. A operação de prise em charge é decomponível em várias operações
elementares. A prise em charge apela, necessariamente ao operador da
enunciação, marcado por “EU... DIGO”, onde EU designa o sujeito enunciador
e DIGO designa um operador verbal de enunciação. Este operador permanence,
muitas vezes, não expresso nas enunciações propriamente ditas, mas está sempre
subjacente às enunciações. O dictum recai sob o opereador da enunciação
“EU…DIGO” ou, em outros termos, ele é o operando deste operador.
(GUENTCHEVA e DESCLÉS, 1997, p.1) 42
O mediativo se constrói a partir de uma ruptura que se estabelece na relação
predicativa. Partindo de Culioli, os autores estudados observam que numa enunciação
qualquer, o enunciador valida (ou não) as relações predicativas, seja por meio de recursos
sintáticos, seja por meio de marcadores não exclusivos deste valor. A categoria do mediativo
é organizada em torno de três valores: fatos relatados (quando se trata de fatos dos quais se
toma conhecimento a partir do discurso de outrem, incluindo-se aqui os rumores e o diz-que,
e os conhecimento advindos da tradição: lendas, mitos, narrativas históricas, etc..), fatos
inferidos (aqueles inferidos pelo sujeito enunciador) e fatos de surpresa (cuja constatação
imprevista é motivo de surpresa para o sujeito enunciador), cf. Guentcheva (1994,p.9)
Em Guentcheva (1994, p.11) se admite que: “A hipótese que postulamos é a seguinte:
toda ocorrência de um enunciado mediativo introduz necessariamente uma situação de
enunciação mediatizada SitM que está em ruptura em relação à situação de enunciação Sit0.”.
Assim, compreende-se que o valor mediativo é uma operação sobre uma ruptura enunciativa
e que SitM é referencialmente independente de Sit0. Essa ruptura pode ser total ou afetar
apenas um dos parâmetros, os enunciadores ou os instantes. Importa-nos, então,
compreender duas instâncias: uma SM, um enunciador mediatizado, fundamentalmente
indeterminado, em ruptura com S0 e um TM, um instante mediatizado, fictício, em ruptura
com T0.
A la suite de E. Benveniste, nous appelons “sujet énonciateur” le sujet modal qui est partie constitutive du
modus. Ce sujet énonciatif prend en charge ce qui est dit - le dictum -, c’est-à-dire ce qui est exprimé par une
relation prédicative. Chaque énoncé qui est la manifestation linguistique d’un acte d’énonciation est donc le
résultat d’une opération complexe de “prise en charge”, soit directement, soit médiatement, par un énonciateur
d’une représentation prédicative ou d’un dictum. L’opération de prise en charge est décomposable en plusieurs
opérations élémentaires. La prise en charge fait nécessairement appel à l’opérateur d’énonciation , noté par
“JE...DIS”, où JE désigne le sujet énonciateur et DIS un opérateur verbal d’énonciation. Cet opérateur reste
souvent non exprimé directement dans les énonciations directes mais il est toujours sous-jacent aux
énonciations. Le dictum tombe alors sous l’opérateur d’énonciation “JE...DIS” ou en d’autres termes, il est
opérande de cet opérateur. (GUENTCHEVA e DESCLÉS, 1997, P.1)
42
94
Alguns autores, dentre eles Neves e Oliveira (2003) e Neves (2006) postulam que o
mediativo integra a modalidade epistêmica, ambas, partindo de Campos (2001) entendem o
mediativo como uma subcategoria da modalidade, na medida em que contribui para o valor
modal epistêmico que varia num continuum entre a asserção e os vários graus de
probabilidade.
No entanto, por ocasião do I Colóquio Interdisciplinar Comunicação e Discurso,
realizado na Universidade Federal do Rio Grande do Norte entre os dias 04 a 06 de junho de
2012, Guetcheva contrariou, em sua fala, tal perspectiva. Questionada se também
relacionava o mediativo à modalidade como uma subcategoria, a autora foi enfática em
explicar que tal proposição não encontra respaldo em seu quadro teórico uma vez que a
autora entende que o enunciador mediatizado não assume o conteúdo proposional de seu
enunciado, tampouco se compromete com juízos de valor, questão que está na base da
modalidade. Da mesma maneira, Desclès (2009) alerta para que não se confunda enunciação
mediatizada com enunciação modal, pois esta implica uma prise en charge de um
julgamento modal de incerteza. Atrelando a noção de mediativo à assunção da verdade sobre
o conteúdo proposicional o autor diferencia ambas da seguinte forma: na enunciação modal
o enunciador não se desengaja, ao contrário, este tipo de enunciação expressa uma prise en
charge em que o enunciador aponta um julgamento de valor sobre a relação predicativa
(como, por exemplo , a incerteza sobre o que é dito), enquanto a enunciação mediativa pode
ser considerada como uma prise en charge do que é dito por um enunciador sem que isso
signifique, necessariamente, um engajamento de sua parte em relação à verdade do conteúdo
proposicional mas implica, segundo o autor, a enunciação de sua plausibilidade, apoiada em
indícios aceitos como verdadeiros, apelando-se ao conhecimento compartilhado com um coenunciador. Neste tipo de enunciação, o enunciador diminui, explicitamente, seu
engajamento pessoal ou se desengaja completamente do que poderia ser uma asserção.
No Colóquio, já mencionado, o autor apresentou alguns esquemas que além de
esclarecer suas proposições, reitera o que já estabelecera em Desclés (2009), tomando a prise
en charge como um fenômeno de responsabilidade enunciativa:
95
E SQUEMA 3- M APA SEMÂNTICO DAS OPERAÇÕES ENUNCIATIVAS DE PRISE EN CHARGE (DESCLÈS ,J-P. 2009)
96
Considerando-se o que já se expôs, resta ainda esclarecer um pouco mais a importante
distinção, marcada por Guentcheva e Desclès (1997, p.11), no que diz respeito à articulação
entre mediativo e discurso reportado. Os autores contrapõem o que chamam de enunciação
mediatizada à enunciação reportada da seguinte maneira:
A prise em charge mediatizada por um enunciador terceiro deve ser diferenciada
(expressões (a) ou (a’)) de enunciação reportada (expressões (b) ou (b’)) :
(a) DIGO (DISSE (o que se disse) existe um enunciador indeterminado) EU
<enunciador indeterminado ? EU> ou <enunciador indeterminado # EU>
(a’) EU digo : ( o alguém disse) o que se disse
(b) DIGO (DISSE (O que se disse) X) EU <X ? EU> ou <X# EU>
(b’) Eu digo : X diz o que é dito
Exemplo : (De acordo com a rádio), o presidente do conselho constitucional seria
culpado (enunciação mediatizada).
O comentarista político declarou que o presidente seria culpado. (enunciação
reportada).(DESCLÈS e GUENTCHEVA, 1997, p.11)43
Ainda, Vion (2011) estabelece que o discurso relatado contribui para a criação de um
“efeito de real” que demonstra o gerenciamento das vozes numa dimensão polifônica. Neste
caso se possibilita tanto a identificação da fonte quanto uma possível delimitação da fonte
enunciativa num universo de possibilidades, conforme se verifica no fragmento abaixo:
O discurso reportado direto é um discurso mostrado com a vontade de criar um
efeito de real provocado, especialmente, por um apagamento enunciativo. Este
apagamento não é apenas uma estratégia de apresentação pois o enunciador, na
verdade, não apaga sua enunciação, de modo que uma citação implica a presença
enunciativa do locutor que lhe confere uma nova orientação permitindo, assim,
que dois discursos coexistam. O discurso citado é, desta forma, um discurso a duas
vozes que se relaciona diretamente com a dimensão polífonica. (VION, 2011,
p.245) 44
La prise en charge médiatisée par un énonciateur tiers doit être différenciée (expressions (a) ou (a’)) de
l’énonciation rapportée (expressions (b) ou (b’)) :
(a) DIS (DIT (ce qui est dit) il existe un énonciateur indéterminé) JE <énonciateur indéterminé ? JE> ou
<énonciateur indéterminé # JE>
(a’) Je dis : ( il y a quelqu’un qui dit ) ce qui est dit
(b) DIS (DIT (ce qui est dit) X) JE <X ? JE> ou <X# JE>
(b’) Je dis : X dit ce qui est dit
Exemple : (D’après la radio), le président du conseil constitutionnel serait coupable (énonciation médiatisée).
Le commentateur politique a déclaré que le président du conseil constitutionnel était coupable (énonciation
rapportée).(DESCLÈS e GUENTCHEVA, 1997, p.11)
44
Le discours rapporté direct est donc un discours montré avec volonté de créer un effet de réel provoqué
notamment par un effacement énonciatif. Cet effacement n’est qu’une stratégie de présentation car
l’énonciateur ne saurait réellement s’effacer de son énonciation, de sorte qu’une citation implique la présence
énonciative de ce locuteur qui lui donne une nouvelle orientation permettant ainsi à deux discours de coexister.
Le discours cité est donc un discours à deux voix qui relève directement de la dimension polyphonique. (VION,
2011, p.245)
43
97
Como se já observou anteriormente, a língua portuguesa, bem como a maioria das
línguas românicas, não comporta a categoria do mediativo enquanto categoria gramatical.
Desta forma, não havendo marcas morfológicas para exercer a função do mediativo, a função
é exercida por diversos processos gramaticais, dentre eles, os elencados em Adam (2011):
os dêiticos pessoais, temporais e espaciais, os modos verbais, os tempos verbais (no
português, especialmente o futuro do pretérito) as formas verbais do condicional, as
modalidades (deôntica, epistêmica e alética), o discurso reportado em suas várias formas
(DD, DDL, DI, DIL), os indicadores de quadro mediadores (como Segundo X e suas
variantes), verbos indicadores de percepção e cognição (ver, achar, pensar, entender, etc.),
dentre os inúmeros recursos possíveis na língua. Assim, entendendo a proposta do modelo
teórico-analítico deste autor como um ponto nodal nesta tese, o tópico seguinte se encarrega
de apresentar o conceito oriundo deste quadro.
2.8 O modelo analítico da ATD (Análise Textual dos Discursos)
Uma das principais contribuições de Adam (2011) é, sem sombra de dúvida, a proposta
de articulação entre texto, discurso e gênero, base para a redefinição dos campos de domínio
da Linguistica Textual e da Análise do Discurso.
O autor concebe as três dimensões, a saber, texto, discurso e gênero, interrelacionados
e imbricados em níveis, como se pode visualizar no esquema (ADAM, 2011, p.61) transcrito
abaixo:
98
E SQUEMA 4 - N ÍVEIS DA ANÁLISE DO DISCURSO (ADAM, 2011, pg. 61)
Nesta representação, o discurso é compreendido como uma instância mais ampla onde
se encerram gêneros e textos. As dimensões representadas no esquema são compreendidas
numa relação dinâmica e articulada. No nível do discurso compreendem-se a
intencionalidade, objetivos de comunicação linguisticamente expressos pelos atos
ilocucionários, que realiza numa determinada formação sociodiscursiva, cujo socioleto é
partilhado pelos membros da mesma comunidade discursiva45, e mediada pelos gêneros, ou
como sintetizado pelo autor: “Toda a ação de linguagem inscreve-se, como se vê, em um
dado setor social, que deve ser pensado como uma formação sociodiscursiva, ou seja, como
um lugar social associado a uma língua (socioleto) e aos gêneros de discurso.” (ADAM,
2011, p.63).
Nesta perspectiva o texto se constrói a partir de um conjunto de unidades típicas
básicas heterogeneamente agrupadas de modo a formar os gêneros, elemento articulador das
45
Considera-se bastante conveniente, aqui, o conceito de comunidade discursiva postulado por Swales (1990,
p.9) para quem a noção de comunidade discursiva diz respeito aos usos da língua e dos gêneros em contexto
profissional, de modo que os membros de uma dada comunidade compartilham um maior conhecimento de
suas convenções: [comunidades discursivas são]redes sócio-retóricas que se formam de modo a trabalhar por
um conjunto de objetivos comuns. Uma das características que os membros estabelecidos dessas comunidades
discursivas possuem é a familiaridade com os gêneros específicos que são usados na busca comunicativa destes
conjuntos de objetivos (Swales, 1990, p.9).
99
dimensões textuais e discursivas. A proposta da ATD concebe o texto formado por
proposições (unidade mínima de análise, produto de um ato de enunciação, cf. ADAM, 2011,
p.108), que, no conjunto, se organizam a partir de um processo sócio-histórico de fixação, e
formadas por duas dimensões: i) uma dimensão diz respeito à configuração, e ii) outra
dimensão se relaciona à noção de sequência. O aspecto configuracional envolve alguns
pressupostos semântico-pragmáticos que funcionam no espaço de uma dada sequência
textual, forçosamente configurando-a. Por outro lado, a dimensão sequencial diz respeito ao
modo pelo qual o texto se organiza em sequências de proposições típicas.
Na dimensão sequencial, a sequência textual se configura como um grupo de
sequências textuais que assumem características típicas e de acordo com um esquema
específico de uma dada sequência. Tal configuração permite o reconhecimento dessas
sequências em vários gêneros de discurso. O autor toma essa configuração como ponto de
partida para a orientação de seu quadro conceitual, classificando as sequências em cinco
tipos: a narrativa, a descritiva, a argumentativa, a explicativa e a dialogal. O texto para
construir o seu todo argumentativo e significativo precisa que seja encadeado em
subconjuntos das partes que o formam. A sequenciação do plano do texto acontece em uma
sucessão. Assim sendo, o texto é construído de partes, que por sua vez constroem uma
unidade de sentido realizada em um contexto e designada por Adam (2011) como uma
unidade semântica e pragmática denominada “configuracional”, porque nela estão inclusas
as partes do enunciado que formam o todo do texto.
Para que se entenda o conceito de enunciado, que tem origem no que foi dito
anteriormente e se completa no que ainda será dito, desenhando uma cadeia de relações
dialógicas, é preciso considerar não só os aspectos lingüísticos, mas também abranger o
contexto situacional e as condições de produção desse enunciado.
Para Adam (2011), o plano do texto determina a configuração macrotextual do sentido.
Esse plano pode ser convencional (fixo), pela história do gênero e pode ser ocasional,
deslocado em relação à história dos gêneros. O plano de texto é estudado em sua
materialidade e está relacionado à tessitura, à segmentação de proposições, de enunciados e
de períodos, a estrutura composicional, formada pelas sequências de base que encadeiam o
sentido do texto, organizado-o argumentativamente.
A materialidade do texto deve ser analisada no plano da análise discursiva, que envolve
a ação de linguagem, a interação social e a formação discursiva, através da qual os gêneros
são atualizados.
100
A estrutura sequencial de um texto é organizada por um plano de texto que leva em
conta a sua sequência organizacional. Tal organização se configura a partir de uma sucessão
de enunciados. Para Adam (2011, p. 280) “A operação configuracional pode ser definida
como o fato de instituir na produção e de depreender, na interpretação, uma configuração
a partir de uma sucessão”. O que o autor determina como sendo configuracional
compreende as “proposições-enunciados, os períodos, as partes de um plano de texto e as
seqüências que o constituem como os elementos de um complexo concreto de relações.”.
Desta forma, atribuir sentido ao texto significa ser capaz de compreender o
emaranhado dos encadeamentos de enunciados, uns com os outros, construir as
representações semânticas do texto no seu todo. Isso porque quando se escolhem as
proposições para a construção e organização do texto essa seleção não é feita aleatoriamente,
ela é escolhida em função do todo significativo do enunciado acabado, que está representado
na imaginação verbal e presentifica o ponto de vista, a opinião, (BAKHTIN,1997).
Em Adam (2011) encontra-se uma descrição detalhada dos esquemas que tratam da
regularidade sequencial prototípica dos textos de base narrativa, descritiva, argumentativa,
explicativa e dialogal. Nesta perspectiva, a definição de texto como uma estrutura sequencial
possibilita abordar a heterogeneidade composicional em estruturas hierarquicamente
organizadas, desta forma, a sequência, unidade que constitui a arquitetura textual, é
constituída por pacotes de proposições (as macro-proposições), e estas, por sua vez,
constituídas por uma infinidade de proposições. Em toda essa rede hierárquica de
constituintes textuais encontram-se os elementos linguísticos em comum capazes de
caracterizar uma determinada sequência:
Uma simples narrativa ou uma descrição diferem-se uma da outra e igualmente de
outras narrativas e outras descrições. Todos os enunciados são, a sua maneira,
originais, mas cada sequência reconhecida como descritiva, por exemplo, partilha
com as outras um certo numero de características linguísticas que as reúnem, um
ar familiar que incita o leitor intérprete a identificar-lhes como sequências
descritivas mais ou menos típicas, mais ou menos canônicas. Acontece o mesmo
com a sequência narrativa, explicativa ou argumentativa. (ADAM, 1993, p. 26) 46
46
Un récit singulier ou une description donnée diffèrent l'un de l'autre et également des autres récits et des
autres descriptions. Tous les énoncés sont, à leur manière, « originaux », mais chaque séquence reconnue
comme descriptive, par exemple, partage avec les autres un certain nombre de caractéristiques linguistiques
d'ensemble, un air de famille qui incite le lecteur interprétant à les identifier comme des séquences descriptives
plus ou moins typiques, plus ou moins canoniques. Il en va exactement de même pour une séquence narrative,
explicative ou argumentative. (ADAM, 1993, p. 26)
101
Assim, um modo de composição aparece como dominante, havendo, então, textos
predominantemente narrativos, ou predominantemente descritivos, predominantemente
argumentativos, predominantemente explicativos, ou predominantemente dialogais.
Para Adam (1993), os textos são concebidos como módulos, por isso, o modelo
proposto em seu quadro teórico prevê a organização dos textos baseada na noção
fundamental das sequências. Neste quadro, as sequências prototípicas são unidades que
possuem certa autonomia sintática no nível da linearidade do texto, e este, concebido como
o produto da combinação de diferentes tipos de sequências.
O agenciamento das sequências pode resultar em dois tipos de construção textual, uma
prevê a predominância de um determinado modo de composição, dominante, a outra resulta
de combinações de sequências, idênticas ou diferentes, (ADAM, 2011). Tal proposição é
esquematizada por Adam (2011, p. 272) da seguinte maneira:
1. Tipos de sequência na base dos agenciamentos
a. Agenciamento unisequencial (mais simples e raro)
b. Agenciamento plurissequencial
i.
Homogêneo (em um único tipo de sequências combinadas)
ii.
Heterogêneo (mistura de sequências diferentes)
2. Combinações de Sequências:
a. Sequências coordenadas (sucessão)
b. Sequências alternadas (montagem em paralelo)
c. Sequências inseridas (encaixamento)
3. Efeito de tipo de texto:
a. Pela sequência encaixante (a que abre e fecha o texto)
b. Pelo maior número de sequência de um mesmo tipo (predomínio)
c. Pela sequência por meio da qual o texto pode ser resumido.
Resumindo, o modelo proposto por Adam (2011) encontra ressonâncias no contexto
das abordagens cognitivas, estando restrito à teoria dos protótipos enquanto modelos
abstratos. Tais protótipos são definidos como macroproposições formadas numa estrutura
autônoma e concretizável de modos linguisticamente diferentes. Assim, o autor chega à
proposta das cinco sequências estruturais, a narrativa, a dialogal, a descritiva, a
argumentativa e a explicativa, que podem ser encontradas, muito raramente, em um tipo só,
ou intercaladas em mais de um tipo por meio de mesclas e encaixamentos. Tais ocorrências
são muito mais comuns e caracterizam a heterogeneidade composicional da maioria dos
102
textos, sendo muito raro encontrar textos homogêneos do ponto de vista da estrutura
sequencial.
Deste modo, um pequeno número de tipos de sequência de base coordena os
empacotamentos de proposições prototípicas que formam as diversas macro-proposições.
Sua vantagem está no fato de que as sequências são muito mais estáveis do que os gêneros,
representando uma categoria de análise confiável, em contraposição às “seções” dos gêneros,
num corpus como o que se coletou para essa pesquisa.
Todavia, o foco neste estudo não se prende às sequências que predominam em
determinadas seções dos gêneros em estudos, por esta razão, manteve-se a noção de “seção”.
2.8.1 A Responsabilidade Enunciativa no quadro de J-M. Adam
Uma das principais categorias de análise da ATD, a Responsabilidade Enunciativa
(RE) se apresenta como uma das dimensões da proposição-enunciado (junto com a
representação discursiva e valor ilocucionário) que consiste em assumir e/ou atribuir uma
porção de um texto a um ponto de vista (PdV)2. Pode-se, resumidamente, considerar a RE
como uma dimensão constitutiva do texto que permite dar conta do desdobramento
polifônico, como um posicionamento do locutor-narrador diante de uma proposição
enunciada, e mecanismo que permite a atribuição de uma porção de um texto a um ponto de
vista, desta forma, um enunciado pode ser assumido (ou não) pelo locutor-narrador.
Adam (2011) considera os termos RE e PdV como equivalentes e reconhece-os como
mecanismos de gerenciamento das vozes que circulam nos textos, situando, assim, tais
mecanismos, no âmbito da polifonia: “A responsabilidade enunciativa ou ponto de vista
(PdV) permite dar conta do desdobramento polifônico(...)” (ADAM, 2011, p.110).
No esquema abaixo, Adam (2011, p. 111) demonstra como as diversas dimensões da
proposição enunciado se articulam de modo não hierarquizado, embora intimamente
relacionados e interdependentes:
103
E SQUEMA 5 - A S DIMENSÕES DA PROPOSIÇÃO-ENUNCIADO (ADAM, 2011, PG. 111)47
O autor admite também que o escopo que abrange a responsabilidade enunciativa pode
ser configurado por uma grande infinidade de recursos linguísticos, dentre eles os dêiticos,
os tempos verbais e pessoas do discurso, as modalidades, as diferentes formas de
representação do discurso outro, os recursos de quadros mediadores, a modalização
autonímica, bem como os diversos verbos capazes de expressar tanto a representação das
percepções de um enunciador como seus pensamentos. Abaixo, encontram-se estes recursos
linguísticos sistematizados no quadro idealizado por Passeggi et al. (2010):
Ordem Categorias
Marcas Linguísticas
1
Índices de pessoas
Meu, teu/ vosso, seu
2
Dêiticos Espaciais e Advérbios (ontem, amanhã, aqui, hoje)
Temporais
Grupos nominais (esta manhã, esta porta)
Grupos preposicionais (em dez minutos)
Alguns determinantes (minha chegada
3
Tempos verbais
Oposição presente x futuro do pretérito
Oposição presente x pretérito imperfeito e perfeito
47
O número 5 corresponde à numeração do esquema, nesta tese, porém na fonte, trata-se do esquema 10 (vide
ADAM, 2011, p. 111)
104
4
Modalidades
5
Diferentes tipos de
representação da fala
6
Indicações de quadros
mediadores
7
Fenômenos
modalização
autonímica
8
Indicações de um
suporte de percepções
e de pensamentos
relatados
de
Modalidades sintático-semânticas maiores:
Téticas (asserção e negação)
Hipotéticas (real)
Ficcional e
Hipertéticas (exclamação)
Modalidades objetivas (dever, ser preciso)
Modalidades Subjetivas (querer, pensar, esperar)
Modalidades Intersubjetivas (imperativo, pergunta,
dever, [tu/vós] poder)
Verbos e Adverbios de opinião (crer, saber, duvidar,
ignorar, convir, declarar que, talvez, sem dúvida,
certamente, provavelmente, ...)
Lexemas afetivos, avaliativos e axiológicos
Discurso direto
Discurso direto livre
Discurso indireto
Discurso narrativizado
Discurso indireto livre
Marcadores como segundo, de acordo com, para
Modalização por um tempo verbal como o futuro do
pretérito
Escolha de um verbo de atribuição de fala como
afirmam, parece
Reformulações do tipo é, de fato, na verdade, e mesmo
em todo caso
Oposição de tipo alguns pensam (ou dizem) X, nós
pensamos (ou dizemos) que Y, etc.
Não coincidência do discurso consigo mesmo (como
se diz, para empregar um termo filosófico)
Não coincidência entre as palavras e as coisas (por
assim dizer, melhor dizendo, não encontro a palavra)
Não coincidência das palavras com elas mesmas (no
sentido etimológico, nos dois sentidos do termo)
Não coincidência interlocutiva (como é a expressão?
Como você costuma dizer)
Focalização perceptiva (ver, ouvir, sentir, tocar,
experimentar)
Focalização cognitiva (saber ou pensamento
representado).
Esta apresentação acerca dos conceitos-chave desta pesquisa reflete o esforço de reunir
o resultado da busca por proposições de diversas abordagens num quadro integrador que
possibilite um programa de pesquisa vasto e demonstre parte considerável da complexidade
da polifonia no nível textual. É por essa razão que se optou, no âmbito dessa pesquisa, por
adotar o modelo analítico proposto em Adam (2011), na medida em que, ao tratar da
Responsabilidade Enunciativa (RE), uma dimensão da proposição enunciado, o autor agrega
105
ao seu modelo diversas categorias de análise que dão conta das tarefas necessárias, do ponto
de vista metodológico, para tratar o questionamento na base desta pesquisa, tais como,
identificar as marcas línguisticas da RE para se definir em que medida elas são determinadas
pela hierarquia entre enunciadores, pelo nível de experiência dos autores, ambos ou nenhum
desses parâmetros. É o que se apresenta no capítulo três.
106
Capítulo III - Metodologia da Pesquisa
“O que determina como trabalhar é o problema que se quer trabalhar: só se
escolhe o caminho quando se sabe aonde se quer chegar”. (GOLDENBERG,
2004, P.14)
Este capítulo pretende evidenciar os procedimentos metodológicos utilizados na
pesquisa realizada, reconstruindo o percurso trilhado.
Nos capítulos anteriores foram apresentados os fundamentos teóricos e empíricos que
dão suporte a este estudo sobre a responsabilidade enunciativa em gêneros
discursivos/textuais acadêmicos. Tomando esses fundamentos como base, este capítulo
define o percurso metodológico utilizado tanto na coleta de dados como na interpretação e
análise produzidas a partir desses dados. Desta forma, o presente capítulo se divide em
alguns itens que tratam da caracterização do estudo, da natureza e abordagem da pesquisa,
da coleta e tratamento dos dados, bem como da descrição de uma grade de categorias de
análise eleitas para esta pesquisa.
3.1. A abordagem e tipo da pesquisa
Não há “melhor tipo de pesquisa” – o que há são boas perguntas combinadas a
bons procedimentos de investigação que podem conduzir a respostas confiáveis.
(LOCKE, SILVERMAN SPIRDUSO, 2009, p. 131)48
A epígrafe acima ilustra bem a ideia de que qualquer pesquisa, por mais bem delineado
que seja seu objeto, por melhor que sejam suas perguntas, depende de procedimentos
adequados para ser levada a cabo.
Compreende-se que a escolha metodológica é orientada pelo objeto de estudo, pela sua
natureza e amplitude, e pelos objetivos da pesquisa, bem como pela hipótese de trabalho
proposta.
Gil (2008) descreve um arcabouço para a compreensão do que vem a ser o
encaminhamento metodológico a ser cumprido nesta pesquisa. Primeiro, o autor define
método como um “caminho para se chegar a um determinado fim.” Além dessa explicação
mais genérica o autor adentra especificando o termo método científico como um “conjunto
de procedimentos intelectuais e técnicos adotados para se atingir o conhecimento”. Assim,
definido o termo método científico, o autor classifica-o em dois tipos, atendendo também a
There is no “best type of research – there are only good questions matched with procedures for inquiry
that can yield reliable answers. (LOCKE, SILVERMAN SPIRDUSO, 2009, p. 131)
48
107
dois critérios: um diz respeito à natureza, ou as bases lógicas da pesquisa, o outro diz respeito
aos meios técnicos de investigação.
Gil (2008) também define a natureza da pesquisa dividindo-a em níveis: o nível da
pesquisa exploratória, da descritiva e da explicativa. Quanto aos fins o autor distingue entre
as pesquisas puras e as aplicadas, sendo as puras motivadas pela curiosidade intelectual do
pesquisador, buscam um avanço no conjunto do conhecimento já estabelecido no tema da
pesquisa, sem que haja uma preocupação com uma aplicação imediata. Seu desenvolvimento
é rigorosamente formal, tendendo à generalização, com vistas na formulação ou
reformulação de teorias e leis. A pesquisa aplicada apresenta diversos pontos de contato com
a pura, na medida em que se apropria de suas descobertas e se beneficia de seu
desenvolvimento, no entanto, é na finalidade mesmo que haverá a diferença, pois, a pesquisa
aplicada está menos voltada para a formulação de teorias de valor universal e mais
direcionada para uma aplicação imediata de seus resultados numa realidade circunstancial,
seus problemas são de ordem prática e urgem soluções.
Outra proposta de classificação da abordagem é encontrada, principalmente, na
tradição norte-americana de metodologia científica. Na verdade, pode-se dizer que se trata
muito mais de um estilo de pesquisa do que propriamente uma classificação, trata-se do que
comumente se convencionou denominar pesquisa quantitativa e pesquisa qualitativa, ou
ainda a pesquisa quanti-qualitativa, denominada, por Creswell, (2008) como “Mixed Method
Strategies”, tipos de abordagens que, segundo Creswell (2008, p.11), oferecem ao
pesquisador direção específica para os procedimentos de pesquisa.
O diferencial entre as abordagens qualitativa e quantitativa reside no fato de que a
quantitativa envolve a transformação de opiniões em informação numérica, possibilitando
classificação e análise de dados baseadas em técnicas estatísticas. O autor concebe essa
abordagem pelo emprego da quantificação em todas as etapas, desde a coleta de dados até a
análise final por meio de técnicas estatísticas e independentemente do grau de complexidade
do objeto. Em relação à pesquisa qualitativa, considera-se que há uma relação intrínseca
entre o objetivo e a subjetividade do sujeito, relação governada pela visão de mundo do
sujeito e intraduzível em números. Neste tipo de pesquisa, os dados não passam por técnicas
estatísticas em nenhuma das etapas, pois o foco não é o da mensuração. (RICHARDSON,
1999). Assim, pode-se concluir que o que define uma pesquisa como qualitativa ou
quantitativa não é o método de coleta, mas sim a forma de tratamento dos dados. Esta
pesquisa apresenta-se como quanti-qualitativa, na medida em que combina, em grande
medida, ambas as técnicas. O tratamento dos dados é de natureza qualitativa, mas o aporte
108
estatístico tem importância capital nas análises e nos resultados discutidos, de modo que o
aspecto numérico assumiu contornos decisivos.
No que diz respeito aos modos de operacionalização da pesquisa, Gil (2008) define
delineamento da pesquisa, distinguindo esse termo como o planejamento da pesquisa numa
dimensão mais ampla, prevendo desde aspectos gráficos até a análise e interpretação dos
dados. Além disso, considera-se também, neste aspecto, o ambiente de coleta de dados,
formas de tratamento desses dados, previsão de variáveis envolvidas, bem como formas de
controle dessas variáveis.
As preocupações, no âmbito do delineamento, são essencialmente práticas e de
verificação, ocupando-se do confronto entre a teoria e os dados. Este aspecto assumiu a
forma de um plano geral de delineamento das operações necessárias para cumprir esta
pesquisa. A primeira destas operações consistiu na definição da natureza do dado a ser
utilizado, optando-se pelas fontes escritas documentais, quais sejam, artigos produzidos por
autores de diversos níveis de experiência na escrita acadêmica. As demais operações
consistiram na definição das categorias de análise a serem adotadas e os procedimentos de
tratamento dos dados.
Adotando-se, então, a proposta dos autores mencionados, esta pesquisa se caracteriza
pelo método indutivo, uma vez que partiu-se do estudo das recorrências de um determinado
fenômeno, a RE, para então se estabelecer a natureza desse fenômeno no corpus investigado,
e sua relação com outros conceitos correlatos, como PDV, mediativo, engajamento e
desengajamento enunciativo, sobreenunciação, subenunciação e coenunciação, bem como a
proposta de Adam (2011) para a análise de textos, a fim de se esclarecer conceitos chave
desta pesquisa e guiar, como fio condutor, a investigação necessária para tratar do
questionamento na base deste estudo.
3.2 A coleta de dados
Nas ciências humanas e sociais, algumas disciplinas privilegiam estudos de
campo com procedimentos que seguem um método descritivo-empírico
(sociologia, antropologia), outras privilegiam procedimentos experimentais
(psicologia social), outras, análises a partir de arquivos ou a partir de corpora
organizados com procedimentos mais ou menos sistemáticos de coleta e
tratamento do material semiológico reunido (história, ciências da
linguagem).(CHARAUDEAU, 2011, p.2)
Este tópico tem por objetivo apresentar o tipo de dados coletados descrevendo critérios
de seleção e procedimentos de coleta.
109
Antes de iniciar, considera-se, a partir da epígrafe acima, que as ciências da Linguagem
são compreendidas como disciplinas de corpus, ou seja, a pesquisa, em qualquer campo das
ciências da Linguagem, compreende várias etapas, dentre elas, a compilação de dados
linguísticos que se constituirão dados de análise.
Desta forma, resumidamente, mobilizou-se nesta pesquisa a noção de corpus como
definida em Bauer e Aarts (2002, p.44): um conjunto de materiais finitos, selecionados
previamente pelo pesquisador constituindo-se a base de seu trabalho. Levou-se em conta
também a ideia de que a extensão do corpus é o aspecto menos relevante, enquanto
representatividade parece ser um critério mais adequado. Charaudeau (2011) define a
questão da extensão de maneira esclarecedora: toda linguística é de corpus, não importando
o tamanho, o que não se confunde com a Linguística de Corpus, que trabalha com grandes
corpora.
Biber (1993, p.243) estabelece duas dimensões importantes ao discutir o critério da
relevância: i) um corpus deveria incluir a variedade de distribuições linguísticas numa língua
como, por exemplo, uma abrangente variedade de construções gramaticais, e ii) um corpus
deveria abranger uma variedade suficiente de textos da população alvo, ou seja, uma coleção
de materiais textuais produzidos em diferentes contextos.
Bauer e Aarts (2002) consideram que os procedimentos adotados pelos linguistas de
corpus, tomando-o como um sistema “que cresce”, constituem a primeira lição para uma
seleção qualitativa, e descrevendo o passo-a-passo desses procedimentos: a) seleção
preliminar; b) análise da variedade; e c) estender o corpus de dados até que não se detecte
nenhuma outra variedade.
Estes passos resultam na primeira lição assim descrita pelos autores: “Regra 1:
selecionar, analisar, selecionar novamente” (BAUER e AARTS, 2002, p. 31), em outras
palavras, uma boa análise permanece dentro do corpus e procura dar conta de toda a
diferença que está contida nele” (BAUER e AARTS, 2002, p. 45).
Charaudeau (2011), afeito às questões da Análise do Discurso, propõe uma reflexão,
no mínimo, interessante para qualquer pesquisador em Linguística, seja no campo da AD ou
não. No que diz respeito à constituição do corpus, quatro pontos devem ser observados muito
atentamente:
 O problema concernente à coleta de dados: diz respeito à escolha da
materialidade linguística (se produções orais ou escritas) e à escolha do suporte, pois
ambas as questões afetam a maneira de se coletar os dados;
110
 O problema da relevância e representatividade do material coletado: o corpus
pode ser considerado exaustivo e fechado, ou parcial e aberto, assim, é considerado
como um objeto em si, ou como uma ferramenta;
 O problema das categorias de análise no interior do material linguístico:
gramaticais, lexicais ou sintáticas, e também variáveis externas: os tipos de locutores,
dispositivos de comunicação e variáveis históricas e culturais.
 O problema do tratamento de dados: diz respeito a quais ferramentas
mobilizam-se no tratamento dos dados, se a seleção é manual, se se mobiliza
tratamento informatizado por meio de softwares, ou constituição de amostras a partir
de base de dados.
Adiante descrevem-se os procedimentos de seleção do material que compõe o corpus
desta pesquisa, a coleta de dados, não sem antes proceder a um breve histórico do processo.
3.2.1 Constituindo um corpus: histórico do processo
Inicialmente, desejava pesquisar apenas os trabalhos produzidos por alunos de um
curso de Licenciatura em Letras no âmbito das Práticas como Componente Curricular
inseridas em uma disciplina.
No entanto, logo nos primeiros estágios da pesquisa, verificou-se quão difícil seria
reunir este corpus, porque nem todos os professores que já ministraram disciplinas que
comportam a PCC deixaram o material arquivado no departamento de Letras, isso nem é
uma exigência. Assim, diante da dificuldade de reunir um conjunto significativo de textos,
optou-se por selecionar, num período compreendido entre 2008 a 2012, todos os trabalhos,
produzidos por alunos no âmbito da graduação, que se pudesse encontrar. Por essa razão há
trabalhos da disciplina Produção de Textos I e II, Linguistica I e II, Fonética e Fonologia,
Morfologia, Linguistica Aplicada ao ensino de Língua Materna, Semântica e
Sociolinguística, bem como disciplinas da dimensão pedagógica, como Psicologia da
Educação e Políticas Públicas.
O corpus inclui também textos de autores com graus variados de experiência na
pesquisa acadêmica e já habituados aos rituais canônicos dos gêneros acadêmicos. Desta
forma, foram incluídos 20 artigos de pesquisadores mestrandos, mestres, doutorandos e
doutores júniores, e outros 20 artigos de pesquisadores experientes e renomados, doutores
seniores, a fim de se realizar a mesma comparação feita com os textos de graduandos.
111
A delimitação da pesquisa pode ser feita a partir de vários critérios: o
geográfico/espacial, o temporal, temático, por uma certa tipologia documental ou ainda se
escolhendo uma determinada base de dados. No caso desta pesquisa, vários critérios são
combinados para se determinar a constituição do corpus: o critério temporal estabelece o
período compreendido entre 2008 e 2012, para os artigos produzidos por graduandos, e um
período entre 1990 e 2013 para os artigos de autores experientes, coletados em bases
diversas. Quanto à delimitação temática não se pode dizer que haja um tema como fio
condutor dos textos selecionados no corpus, mas,
sobretudo, o critério estabelecido,
posteriormente, foi o de reunir, quaisquer trabalhos, fossem de quaisquer gêneros ou tema
(normalmente ligados à disciplina das quais são objetos de avaliação) desde que fossem
trabalhos produzidos no âmbito das disciplinas e/ou publicados em anais de eventos
nacionais e internacionais ou em periódicos equalizados, como no caso dos autores
experientes.
Quanto às formas de recuperação e coleta dos dados com vistas à constituição de um
corpus de análise, compreendem-se a busca em uma ou mais base de dados ou por meio da
seleção de um conjunto de documentos. Alguns dos textos que compõem o corpus desta
pesquisa foram coletados diretamente no arquivo do departamento de Letras do campus de
Pontes e Lacerda, pois por iniciativa de alguns professores, tais trabalhos ficam arquivados
no departamento, outros foram solicitados diretamente aos alunos, outros foram ainda
encontrados na revista Fronteira Digital, revista criada pelo departamento de Letras da
UNEMAT – Pontes e Lacerda, com o intuito de criar e consolidar um espaço de incentivo e
divulgação da pesquisa acadêmica em nível de graduação. Os artigos de autores experientes
foram coletados em pedidos pessoais aos autores e em mecanismos de busca em anais de
eventos e periódicos disponíveis na internet. Considerou-se a constituição de dados
censitária, ou seja, trabalhou-se com o montante total (população) de documentos
recuperados e selecionados, descartando-se o uso de amostragens. Apresenta-se aqui um
montante estático, pré-definido, considerados como um conjunto de dados recuperados pelo
pesquisador. Este método (coleta de dados em composição de corpus estático e censitário)
oferece como vantagens a possibilidade de oferecer maior controle sobre os dados, cf. Gil
(2008).
O corpus deste trabalho foi inicialmente composto por 36 artigos, 17 projetos de
pesquisa e 37 relatórios de alunos de graduação. Destes, poucos representam, em termos de
estrutura formal, o cânone do gênero pesquisado, alguns variam entre a estrutura IDC
112
(Introdução, conclusão, discussão), IMRD (Introdução, Metodologia, Resultados,
Discussão), até a completa desconsideração pelo gênero solicitado como avaliação de
disciplina, como por exemplo, um texto, apresentado pelo próprio autor como um ensaio,
fora apresentado para avaliação de PCC numa disciplina em que se requereu um artigo. As
questões relativas a esses problemas serão objeto de discussão num tópico do capítulo
posterior, em que se efetuam as análises. Além desses textos, escritos por iniciantes, o corpus
contou também com 40 artigos de autores de variados níveis de experiência, desde
mestrandos até doutores seniores. Tais textos foram coletados em anais publicados de
eventos diversos ou periódicos acadêmicos publicados em meio digital. E, considerando-se
a dificuldade em coletar textos de autores experientes nos gêneros relatório e projeto de
pesquisa, abandonou-se parte do corpus inicial composto por esses gêneros, decidindo-se
pela homogeneidade genérica: do corpus inicial mantiveram-se apenas os artigos de alunos
de graduação. No total, o corpus para a pesquisa se realizou com 60 textos.
Espera-se que o conjunto de textos reunidos neste estudo tenham sido amplos o
suficiente para discussão das questões propostas para a pesquisa, considerando-os como
indicadores fiéis no subsídio das análises. Na sequência, se esclarece como se chegou aos
dados analisados nesta pesquisa.
3.3 Do material textual investigado
O conjunto de 60 textos foi separado em três grupos que receberam os seguintes
rótulos:
Quantidade de textos
Autores
Rótulo
20
Alunos de graduação (textos produzidos AI
por alunos de graduação ou recém
graduados)
20
Mestrandos, mestres,
doutores juniores
20
Doutores seniores (textos produzidos por AEE
autores já renomados, dentre eles alguns
são autores de quadros teóricos e/ ou
reflexões
téoricas
robustas
muito
divulgados nos estudos linguísticos.)
doutorandos
e AE
113
A maior dificuldade, neste corpus, foi a de segmentar adequadamente o que seria a
seção “Referencial Teórico”. Em Swales (1981, 1990, 2004) entende-se que é na unidade
retórica denominada “Introdução” que se encontraria a revisão de literatura pressuposta em
“Referencial Teórico”, cuja finalidade é situar a pesquisa relatada dentro da grande área de
pesquisa da qual faz parte. No entanto, ao considerar-se as reflexões de Aragão (2011),
entende-se a necessidade de flexibilizar a ocorrência desta seção. O corpus utilizado
demonstrou grande fluidez e instabilidade da seção, uma vez que os referenciais teóricos ora
estão fixados numa seção pertencente à unidade retórica “Introdução”, como é o esperado
nos modelos canônicos, ora se apresentam em uma seção separada, intitulada “Referencial
Teórico”, outros ainda, trazem como título da seção o nome dado ao quadro teórico, como
por exemplo: “A Análise Textual dos Discursos”, ou ainda, “Prise en Charge: algumas
observações críticas”.
Tal constatação não se restringe aos textos produzidos pelo grupo AI, sendo recorrente
nos três grupos, sem distinção. Pouquíssimos textos dentre o conjunto podem ser facilmente
segmentáveis segundo o modelo IMRD ou IDC, alguns fogem tanto ao parâmetro que
poderiam ser considerados ensaios, e não artigos. Tal ocorre especialmente nos textos dos
grupos AI e, com menos frequência no subgrupo AE, sendo a maioria da área de Literatura,
o que prova a ideia de que a variante disciplinar talvez devesse ser considerada. Outros ainda,
em menor quantidade, são muito semelhantes ao que se poderia classificar como artigo de
opinião, um texto dissertativo curto, com cerca de no máximo 5 laudas, expondo um ponto
de vista acerca de um determinado tema, sem divisão de seções. Neste caso, dada a brevidade
do texto, optou-se por selecionar o texto todo.
A diluição da revisão de literatura ao longo dos textos, na maioria deles, obrigou a uma
tomada de decisão a respeito do que considerar como segmento para análise e discussão.
Desta forma, decidiu-se pela inclusão das seções que aparentemente se comportam como
“Referencial Teórico” ou “Revisão de Literatura” a despeito de qual rótulo apresentem, bem
como a seção Introdução (canônica).
Nos quadros abaixo estão listados os artigos e as seções que compuseram o recorte
para análise:
Grupo
AI
QUADRO 2- CARACTERIZAÇÃO DAS SEÇÕES SELECIONADAS NOS TEXTOS DO GRUPO AI
Rótulo Título do Artigo
AI1
Seções considerada para análise
Introdução
114
AI 2
AI3
AI4
AI5
AI6
AI7
AI8
AI9
AI10
Letração em foco: análise de uma 1. Analfabetismo em MT e suas
proposta de letramento
consequências
2. Alfabetização
3. Letramento
Avaliação Docente na Instituição de Todo o texto
Ensino
Coesão Textual: uma análise do uso Todo o texto, excluindo-se os tópicos
de referentes em um texto de Ensino 1.5 e 1.6 (análise e conclusão,
Médio
respectivamente
Sem título
Todo o texto
Semântica e gramática no livro Introdução
didático
Metaplasmo por aumento ( epêntese, Introdução
paragoge e prótese): caso mais
recorrente em Pontes e Laceda
Polêmica do Livro Didático: análise Introdução
inicial
Análise*
Faces de um narrador: Os Cus de Todo o texto
Judas, de Lobo Antunes
A importancia da brincadeira e do Todo o texto
aprendizado no desenvolvimento da
criança
De Nova York ao sertão mato- Todo o texto
grossense: um grito à liberdade
AI11
Análise da abordagem em relação à Introdução (incluindo seções 1.1, 1.2
ambiguidade no livro didático
e 1.3)
AI12
Das origens da Língua Portuguesa à Todo o texto
sua evolução
Um estudo léxico-semântico do Revisão bibliográfica
Cântico I de Os Lusíadas
AI13
AI14
AI15
AI16
AI17
AI18
AI19
AI20
O
surgimento
das
idéias
Saussurianas
Sem título
Casa da memória: invenção de
sentidos para Pontes e Lacerda
Todo o texto
Introdução
Introdução
1. Os sentidos no discurso
Big brother Brasil: efeitos de 1. Espetáculos: o jogo de sentido na
celebridade na espetacularização do mídia
cotidiano
O jornal da memória poética
Introdução**
Sentidos articulados em cogito, ergo 1. Conhecendo nossa materialidade
sum
discursiva
Alternância entre a palavra mesmo e 1. Referencial teórico
os pronomes pessoais ele/ela, o/a
*O autor não apresentou o quadro teórico na introdução, apresentando-o junto às análises
** Porção textual de abertura, sem rótulo, pressupõe-se que seja a Introdução.
115
QUADRO 3 - C ARACTERIZAÇÃO DAS SEÇÕES SELECIONADAS NOS TEXTOS DO GRUPO AE
Rótulo
AE1
AE2
AE3
AE4
AE5
AE6
Grupo AE
AE7
AE8
AE9
AE10
AE11
AE12
AE13
AE14
AE15
Título do texto
Seção selecionada para análise
De raízes crianceiras: uma leitura Todo texto
sobre o espaço e o ser em Manoel de
Barros
Tenho um ermo enorme dentro do Todo texto
olho: memórias inventadas
O ensino de Literatura: entre a Introdução
inovação e a permanência
A memória social na micro- Introdução
toponímia de Pontes e Lacerda – MT 2. A Pesquisa toponímica
Entre equívocos e ameaças: a Introdução
designação e a noção na Escola 1. Fundamentação Teórica
Ciclada
Ensino de literatura e orientações Introdução
oficiais: a prática entre a teoria e o A relação dos saberes docentes com a
saber docente
lógica de implementação das
propostas curriculares oficiais
Nomes de estados brasileiros em Introdução*
ruas e avenidas de Pontes e Lacerda:
sentidos de urbanização do/no
extremo oeste brasileiro
Atitudes linguisticas de migrantes Introdução
sulistas em Mato Grosso: um estudo A constituição do corpus da pesquisa
em Sinop
e sua análise
Verso e Reverso da Literatura Introdução
Contemporânea: a questão de sua
nomeação
Entre memórias, ruinas e "dizeres": Introdução*
algumas incursões em obras de
Paulina Chiziane e Toni Morrison
Maria, de José Craveirinha: a
memória como patrimônio de
sofrimento e de afirmação
O ensino de literatura e a formação
do leitor literário: entre saberes,
trajetórias de uma disciplina e suas
relações com os
documentos
oficiais
Comportamento linguistico do falar
cuiabano
Introdução*
1. Uma introdução-um pouco de
história
Introdução
1. Alguns pressupostos teóricos
Tramas e redes, fios que tecem a Introdução
escravidão e a raça no romace O
Escravo, de José Evaristo de
Almeida
Efeitos metafóricos no discurso de Introdução
divulgação científica
116
AE16
AE17
AE18
AE19
AE20
Relações entre o verbal e o visual no
infográfico
O livro didático de língua
portuguesa: a autoria e suas
coerções
Introdução
Introdução
2. Alguns conceitos enunciativodiscursivos: enunciado concreto,
dialogismo e relações dialógicas
Os gêneros multimodais em livros Introdução
didáticos:
formação
para
o 1 O livro didático de Língua
letramento visual?
Portuguesa e os gêneros multimodais
2 A leitura na perspectiva dialógica
Indícios de uma promoção do outro Introdução
na escrita acadêmica
A heterogeneidade enunciativa
A construção do ponto de vista Introdução
(PDV) em textos acadêmicos
1. Referencial Teórico
QUADRO 4 - C ARACTERIZAÇÃO DAS SEÇÕES SELECIONADAS NOS TEXTOS DO GRUPO AEE
Rótulo
AEE1
AEE2
Grupo AEE
AEE3
AEE4
AEE5
AEE6
AEE7
AEE8
AEE9
Título
A Carta-Testamento de Getúlio
Vargas (18821954): genericidade e
organização textual no discurso
político
As relações oral/escrita nos gêneros
orais e formais públicos: o caso da
conferência acadêmica.
Seção selecionada para análise
Introdução
2. A dupla genericidade do gênero
carta-testamento
1. Introdução
2. Relações entre a linguagem oral
e escrita - um debate em aberto
3. Retextualização: um conceitochave
A noção de hiperenunciador
1. O sistema de particitação
Contribuições da Análise Textual dos 1 Introdução
Discursos para o ensino em 1 Sequências textuais explicativas
ambientes virtuais
e descritivas: aspectos teóricos em
discussão
A ordem do expor em géneros 1. Introdução
académicos do português europeu
2. Regularidades de gênero
contemporâneo
O diminutivo e suas demandas
1.Introdução
2. O diminutivo e sua interpretação
através dos tempos
Circulação, reacentuação e memória 1. Introdução
no discurso da imprensa
2. Dialogismo, circulação e
memória
Uma reflexão crítica sobre a teoria 1. Introdução
sociolinguistica
2. Ponto de vista e idealização
A pessoa desdobrada
1. Os mecanismos de embreagem e
debreagem
117
AEE10
AEE11
O eu no discurso do outro
Gêneros primários e secundários no
círculo de Bakhtin: implicações para
a divulgação científica.
AEE12
Gêneros do discurso: unidade e
diversidade
AEE13
Revisitando a noção de tópico
discursivo
AEE14
Dos gêneros de texto à gramática
AEE15
Clíticos e negação em
elementos para uma
gramatical
Representações
das
cognitivas e sua diacronia
Construções relativas nas
do português:
AEE16
AEE17
AEE18
AEE19
AEE20
português:
descrição
Todo o texto
1. Introdução
2. A oposição aos formalistas
3. Esferas ideológicas e ideologia
do cotidiano: o diálogo com o
marxismo e a filosofia da vida
1. Introdução
2. As tipologias na linguistica
3. Discurso e texto
1. Introdução
2. A noção de tópico discursivo
1. Introdução
2. Percursos possíveis
1. Introdução
2. Os clíticos pronominais
categorias 1. Apresentação
variedades 1. Palavras Iniciais
2. Suporte teórico: a Gramática
Discursivo-Funcional
Quem disse o quê? Polifonia e 1. Considerações iniciais
heterogeneidade em coro dialógico
2. Polifonia e heterogeneidade em
coro dialógico: Bakhtin e
Dostoievski
Os personagens lobatianos em Macau 1. Uma introdução já conhecida
O descritivo em diferentes gêneros 1. Introdução
textuais: perspectivas para o ensino 2. Bases teóricas: o Descritivo em
da leitura e da escrita.
dois momentos da linguística
textual
3.4 O processo de obtenção dos dados
Ainda no que diz respeito ao processo de constituição do corpus da pesquisa esclarecese que os dados foram gerados e obtidos utilizando-se tanto mecanismos eletrônicos quanto
uma seleção manualmente feita dos segmentos a serem analisados. Em meio eletrônico, no
processador de textos Word 2013, foi feita, inicialmente, a leitura dos textos e separação dos
segmentos a serem observados, conforme critério anteriormente estabelecido: destacou-se a
seção Introdução ou Marco Teórico (e suas possíveis variantes) ou, no caso dos ensaios, o
texto todo. Após essa triagem inicial, procedeu-se a seleção e agrupamento dos segmentos
no programa Wordsmith 6.0. No entanto, o programa se revelou inadequado, por diversas
razões, dentre elas a impossibilidade de o programa reconhecer e diferenciar,
118
automaticamente, entre os discursos direto, indireto, ilha textual, e etc, e desta
impossibilidade decorre outro entrave: os verbos que introduzem os discursos outros não
podem ser classificados a priori, é preciso analisar o contexto de uso e a partir daí busca-se
a classificação proposta em Thompson e Yiyun (1991). Desta forma foram destacados,
inicialmente, todos os segmentos em que se evidenciava, de alguma forma, o recurso às
vozes alheias, nesta etapa aplicou-se a categoria de ordem cinco (diferentes formas de
representação da fala de outro) segundo a proposta anteriormente descrita. Depois, buscouse, por meio da ferramenta localizar (ou o atalho ctrl + L), no processador de textos Word
2013, digitando-se a palavra de busca, conforme se vê num exemplo demonstrado na figura
1:
119
F IGURA 1 - EXEMPLO DE TELA DE LOCALIZAÇÃO NO WORD 2013
120
Desta maneira foram localizadas todas as ocorrências de indicadores de quadro
mediador, como os clássicos “segundo X.....” e suas variantes.
A localização dos verbos introdutores do discurso requereu mais manobras, sendo
necessário, por exemplo, identificar quando e como o discurso outro era introduzido por um
verbo dicendi (ou putandi ou sentiendi) e conforme se identificava tal verbo, isolava-se-o
em outro arquivo separando tais ocorrências em seus co-textos imediatos (no máximo um
parágrafo antes e um depois, procedimento idêntico ao do recurso Concordance do programa
Wordsmith, neste programa o procedimento é totalmente automático). Com a ferramenta
localizar, buscou-se igualmente outras ocorrências do mesmo verbo e se fez a comparação
entre os usos a fim de se estabelecer uma classificação adequada, reiniciando-se os
procedimentos de localização e busca para os outros verbos.
Após todos esses procedimentos, os dados encontrados foram sistematizados e
tabulados no programa Excel 2013, em função da facilidade dos cálculos de somatória,
médias e percentuais. Com os dados já sistematizados foi possível a análise de cada uma das
ocorrências de marcas linguísticas categorizadas em cada uma das três ordens selecionadas,
quais sejam, as diferentes formas de representação da fala, os indicadores de quadro
mediador e os indicadores de suportes de percepção e pensamento relatado.
Entendendo a importância de se esclarecer também sobre os conceitos chave da
pesquisa e das categorias de análise, tecem-se algumas considerações sobre esses itens nos
próximos dois tópicos deste capítulo.
3.5 Definição de termos e categorias de análise
No escopo desta pesquisa, compreendeu-se que a definição dos termos e, também, das
categorias de análise seriam de fundamental importância para a compreensão do fenômeno
pesquisado, assim, atribuir-lhes um significado mais preciso implicaria facilitar sua
compreensão para utilização na pesquisa.
3.5.1 As categorias de análise
Segundo Adam (2011) a RE de uma proposição pode ser marcada por um grande
número de recursos linguísticos. No quadro abaixo, transcrito de Passeggi et al (2010,
pg.300-301), encontra-se sistematizada a maioria desses recursos, destes escolhemos alguns
para este trabalho, notadamente, os da ordem 5, 6 e 8.
121
Ordem Categorias
Marcas Linguísticas
5
Diferentes tipos de Discurso direto
representação da fala Discurso direto livre
Discurso indireto
Discurso narrativizado
Discurso indireto livre
6
Indicações de quadros Marcadores como segundo, de acordo com, para
mediadores
Modalização por um tempo verbal como o futuro do
pretérito
Escolha de um verbo de atribuição de fala como
afirmam, parece
Reformulações do tipo é, de fato, na verdade, e mesmo
em todo caso
Oposição de tipo alguns pensam (ou dizem) X, nós
pensamos (ou dizemos) que Y, etc.
8
Indicações de um Focalização perceptiva (ver, ouvir, sentir, tocar,
suporte de percepções experimentar)
e de pensamentos Focalização cognitiva (saber ou pensamento
relatados
representado).
QUADRO 5 - C ATEGORIAS DE ANÁLISE E SUAS CORRESPONDENTES MARCAS LINGUÍSTICAS
(PASSEGGI ET AL ., 2010, P.300-301)
As categorias acima elencadas permitiram o estudo da RE materializada de formas
diversas. Dentre essas possibilidades, Adam (2011) considera dois tipos de PdVs associados:
o PdV anônimo da opinião comum (introduzido por verbos dicendi na terceira pessoa do
singular ou plural) e o quadro mediador (mediação epistêmica e mediação perceptiva). O
PdV anônimo da opinião comum associado ao distanciamento do locutor narrador, se
materializa com as operações descritas nos itens 5 e 6 do quadro acima.
Ainda tratando da RE, neste trabalho, procurou-se a compreensão de outros conceitos,
considerados chave na pesquisa, a fim de conferir –lhe contornos mais precisos, desta forma,
procurou-se definir também o conceito de mediativo, outro conceito igualmente importante
já que Adam (2011) concebe as marcas de RE como formas do mediativo, termo que o autor
traz dos trabalhos de Guentcheva (1994 e 1996) como categoria marcadora de uma zona
textual sob dependência de mediação epistêmica ou perceptiva; o conceito de prise/prend en
charge, prise en compte, engajamento e desengajamento,
e apagamento enunciativo,
tratados em diversos autores, tais como Coltier, Dendale e Brabanter (2009), Dendale e
Coltier (2005), Rabatel (2003, 2004, 2005, 2008, 2009), Descles (2009), Muñoz (2004),
Muñoz, Marnette e Rosier (2006), dentre vários outros discutidos no capítulo anterior.
122
Resumidamente, apresenta-se no próximo item uma definição, um pouco simplificada desses
conceitos.
A escolha por essas categorias obedeceu a dois critérios: i) representam as categorias
mais recorrentes em textos acadêmicos e ii) possibilitam uma discussão acerca do que seria
a responsabilização ou desresponsabilização de um autor acadêmico na perspectiva do
posicionamento deste autor diante de um objeto do discurso, o que desembocará,
posteriormente na discussão acerca dos diálogos que se mantém com outras vozes no texto
acadêmico, notadamente, as teorias de quadros teóricos com os quais autores acadêmicos
dialogam, oferecendo contrapontos ou não.
Além destas categorias, optou-se, no âmbito desta pesquisa, pela mescla e adesão a
duas propostas. A primeira faz parte da ordem 5, diferentes formas de representação da fala,
que dizem respeito, principalmente, ao discurso reportado. Assim, às categorias iniciais
elencadas em Adam (2011) e Passeggi et al.(2010), as ordens de número 5, 6 e 8 (cf. quadro
4) acresceram-se as contribuições de discussões contidas em Boch e Grossman (2002) que
classificam os diferentes tipos de representação conforme apresentado no esquema 6 (ver.
pág.124).
A nomenclatura adotada pelos autores foi mobilizada e adaptada, mesclando-se à
nomenclatura encontrada em Passegi et al (2010) e Adam (2011). Desta forma, o que Boch
e Grossman (2002) denominam citação autônoma e reformulação , nos demais autores está
classificado como discurso direto e discurso indireto. O termo ilhota citacional foi
substituído, neste trabalho, por ilha textual, um equivalente encontrado em Maigueneau
(2002), enquanto o termo evocação foi mantido tal como definido em Boch e Grossman
(2002). A proposta tipológica aqui adotada, adaptada a partir das contribuições dos diversos
autores mencionados, encontra-se sintetizada no esquema 6:
123
Modos de referência ao discurso do outro
Discurso Relatado
Evocação
Reformulação
Ilhota Citacional
Citação autônoma
E SQUEMA 6 - D IFERENTES FORMAS DE REPRESENTAÇÃO DA FALA (BOCH E GROSSMAN, 2002, P.100)49
49
O número 6 corresponde à numeração do esquema nesta tese, porém, na fonte trata-se do esquema 01 (vide BOCH e GROSSMANN, 2002, p.100)
124
Q UADRO 6 - DIFERENTES FORMAS DE REFERENCIAR VOZES EXTERNAS
Evocação
Discurso reportado
Discurso Indireto
Discurso Direto
Caracaterizada pela ausência
Pode haver apelo às marcas de
Apresentam-se marcas
de indicações de quadros
quadros mediadores (segundo,
escriturais como aspas, itálico, e
mediadores (segundo,
conforme, e equivalentes), mas
mecanismos que permitem
conforme X, e equivalentes),
ausências de marcas escriturais
identificação de fragmento de
alusão ao texto de outrem
como aspas ou verbais do tipo cito texto outro (bloco tipográfico);
(nome e data) sem pretensão de X, retomando as palavras de X;
autonomia enunciativa do
resumí-lo. (BOCH E
integração do discurso do outro no segmento citado (excetuando-se
GROSSMANN, 2002)
discurso de quem escreve,
os casos de ilha textual);
ausência de autonomia
denominado citação autônoma
enunciativa; denominado
por Boch e Grossmann (2002) .
Reformulação, em Boch e
Grossman (2002)
Ilha textual
Permite integração do
discurso de outro ou
evidenciar o segmento
citado por meio de marcas
estruturais como aspas e
itálico, ausência de
autonomia enunciativa;
discurso direto.
(denominado ilhota
citacional, cf. Boch e
Grossmann, 2002)
125
A segunda mescla faz parte da ordem 6, os indicadores de quadro mediadores, à cujas
marcas linguísticas acrescentaram-se a proposta das reflexões de Thompson e Yiyun (1991).
Desta forma, um dos itens que compõem a ordem 6 – indicadores de quadros mediativos é
“escolha dos verbos de atribuição de fala”, intimamente relacionados ao discurso relatado,
tais verbos são notadamente os dicendi: afirmar, dizer, falar e parecer. Partiu-se do
pressuposto de que, ao escrever, um autor não leva em consideração apenas suas ideias e
valores, mas, sobretudo, os compartilhados por seus pares em sua comunidade discursiva,
de modo a projetar uma imagem de si que o define perante a comunidade. A construção
dessa imagem se relaciona muito intimamente com as escolhas linguísticas realizadas na
escritura de um texto acadêmico, e, especialmente, na escolha dos verbos de elocução.
Considera-se que tal escolha indique um posicionamento, ou, ao menos, a opinião do citante
sobre o citado. Na observação destas opiniões é que autores como Thompson e Yiyun (1991)
depreenderam padrões de avaliação presentes nos textos.
Resumindo, postula-se que nos textos escritos, a avaliação cumpre algumas funções,
quais sejam i) expressão da opinião de quem escreve o texto, ii) construção e manutenção
das relações entre quem escreve e quem lê, e iii) organização do texto sinalizando ao leitor
aspectos formais como o início e final do texto, bem como a organização argumentativa. As
escolhas léxico-gramaticais seriam responsáveis, então, por demonstrar o comportamento
do autor, sinalizando sua atitude (positiva ou negativa) em relação à obra citada. No âmbito
lexical, observa-se como adjetivos, substantivos, verbos e advérbios são usados de maneira
avaliativa, no aspecto gramatical, observam-se principalmente o papel que desempenham,
num texto, os tempos e aspectos verbais. Em artigos acadêmicos, em que as teorizações e
demais considerações acerca do conhecimento são priorizadas, o papel da avaliação é de
demonstrar claramente o grau de certeza (ou incerteza) que cada proposição possui (cf.
Oliveira, 2005). Por isso Thompson e Yiyun (1991) discutem sobre os verbos de elocução
em centenas de artigos acadêmicos de diversas áreas do conhecimento. Em seu estudo, os
autores compilaram cerca de 400 verbos delocutivos e os categorizaram de acordo com
aspectos relacionados a um potencial avaliativo e denotativo.É importante ressaltar que, em
seu trabalho, o status de um verbo de elocução não é algo inerente à identidade do verbo,
mas proveniente de seu contexto de uso. Para entender sua classificação também importa
saber que a etiqueta “Escritor” é conferida a aquele que escreve um texto, e “Autor” a aquele
que é citado no texto do escritor.
No que concerne ao potencial denotativo, os verbos são categorizados de acordo com
três grupos:
126
i) Textual: diz respeito à expressão verbal (afirmar, etc.);
ii) Mental: diz respeito aos processos mentais (considerar, etc.), e
iii) Pesquisa: diz respeito aos processos mentais ou físicos estritamente relacionados à
atividade de pesquisa (desenvolver, selecionar, categorizar, etc.).
Tais verbos, em grande medida, revelam a presença do autor (aquele que é citado),
sendo, por essa razão, denominados Ações do Autor (THOMPSON e YIYUN, 1991). Esses
processos, descritos como “atos do Autor”, são um forte indicativo de que a responsabilidade
pela informação citada é transferida, pelo escritor, ao autor citado. Além disso, os autores
consideram que tais processos têm como principal característica admitir explicitamente a
existência do texto do autor, imputando-lhe a responsabilidade pela informação apresentada.
Convém esclarecer que essas instâncias foram renomeadas a fim de evitar confusão com as
instancias enunciativas anteriormente apresentadas. Desta forma, a instância escritor foi
renomeada como L1/e1 e a instância autor renomeada como e2.
Por outro lado, outros verbos dão conta de revelar mais explicitamente a presença de
L1/e1 (ou ainda o discurso citante). Tais verbos são denominados por Thompson e Yiyun
(1991) como Ações do Escritor, e, nesta tese, ações de L1/e1 são categorizadas em dois
grupos:
i) Comparação: compara ou contrasta a obra citada com o que L1/e1 pretende defender
(corresponder a, contrastar, comparar, etc.);
ii) Teorização: revelam como o discurso citante mobiliza a obra citada de modo a
construir sua própria linha de argumentação, descrevendo processos físicos ou mentais
envolvidos no ato de pesquisar (ex.: explicar, explicitar, medir, calcular, obter, achar,
verificar, quantificar, etc.).
À essas categorias de Thompson e Yiyun (1991), somaram-se as criadas por Oliveira
(2005): em sua proposta, a autora expande o contido em Thompson e Yiyun incluindo a
etiqueta “Atos do escritor de atitude”, renomeada nesta tese como “atitude de L1/e1”
indicando a atitude comportamental (criticar, contestar, revolucionar são exemplos) daquele
que escreve diante do conteúdo citado. Tais verbos expressam uma atitude comportamental
de tal forma que faz com que a responsabilidade pela representação do discurso citado recaia
primariamente sobre aquele que cita e apenas secundariamente sobre o citado (Cf. Oliveira,
2005, p.185).
Os modos pelos quais um determinado enunciador percebe e interpreta as várias vozes
que mobiliza em seu texto dizem respeito ao potencial avaliativo. Oliveira (2005) lembra
127
que os mesmos verbos são passíveis de classificação segundo um potencial e outro, uma vez
que praticamente todos os verbos apresentam um potencial denotativo e avaliativo.
No que tange ao potencial avaliativo, é importante distinguir os dois modos de
avaliação disponíveis na elaboração de um texto, a saber, o posicionamento e a interpretação.
Os verbos indicadores de posicionamento refletem uma preocupação em relação à verdade
ou acuidade do conteúdo proposicional apresentado, enquanto os verbos indicadores da
interpretação do Escritor não colocam em xeque a veracidade da informação citada, antes,
focam o modo como o discurso é lido e mobilizado pelo citante.
Neste quesito, Thompson e Yiyun consideram a necessidade de se observar três fatores
ao classificar um dado verbo de elocução: a instância do autor, a instância do escritor e a
interpretação do escritor. A instância autor se ocupa da atitude deste de validação da
informação reportada. Tal atitude se classifica nos seguintes posicionamentos:
i) Positivo: e2 é apresentado como alguém que oferece uma informação verdadeira
e/ou acurada (ex. postular, asseverar, enfatizar, discursar, salientar, sublinhar, sustentar, etc)
ii) Negativo: e2 é apresentado como alguém cuja informação oferecida é tida como
falsa e/ou incorreta. (ex. desconhecer, ignorar, repudiar)
ii) Neutro: e2 é apresentado como alguém que não deixa clara qual é a sua atitude em
relação à informação reportada (ex.: examinar, apontar, assinalar, ilustrar, sinalizar, refletir,
lembrar, pensar, observar, perceber, ponderar, etc.).
Na instância daquele que cita, há posicionamentos possíveis:
i) Fatual: aquele que cita apresenta o citado como alguém cuja informação/opinião
pode ser considerada como verdadeira e/ou acurada (ex.: focalizar, atestar, constatar,
declarar, demonstrar, verificar, registrar, reiterar, etc);
ii) Contra-fatual: o citante apresenta o citado como alguém que oferece uma
informação ou opinião falsa e/ou incorreta (ex.: ignorar, exagerar, etc);
iii) Não-fatual: o citante não deixa clara qual é a sua atitude em relação à
informação/opinião do citado. Neste caso, ambas instâncias (L1/e1 ou e2) se relacionam à
verdade e/ou acuidade do que é reportado.
O outro modo de avaliação compreendido pelo potencial avaliativo diz respeito à
interpretação L1/e1, relacionada a vários aspectos do status do conteúdo proposicional e
divide-se nos seguintes tipos de interpretação:
i) Desenvolvimento retórico do discurso de e2: L1/e1 apresenta uma interpretação de
como a informação/opinião reportada se encaixa no texto do autor (ex.: mencionar,
comentar, complementar, continuar, enunciar, relatar, resumir, etc);
128
ii) Comportamento de e2: L1/e1 apresenta uma interpretação da atitude ou propósito
do autor ao dar a informação/opinião relatada (ex.: admitir, alegar, concordar, reagir,
manifestar-se, etc);
iii) Status funcional da informação: L1/e1 indica o status funcional que a
informação/opinião reportada ocupa em seu texto (ex.: superar, anunciar, assentir,
determinar, postular, preconizar, recomendar, etc);
Os autores também estabelecem uma outra categoria que não foi incluída nesta
pesquisa uma vez que tal classificação, ao menos aparentemente, já está contida no item
categoria de ordem 6 – Indicador de Quadros Mediadores , “escolha do verbo de atribuição
da fala”, elencada em Adam (2011) e reapresentada em Passegi et al. (2010): trata-se de
uma categoria que abriga um leque de verbos que não realizam a interpretação de L1/e1 e
representam objetivamente a informação citada, tal como os verbos dizer e afirmar.
3.5.2 Conceitos chave da pesquisa: definição dos termos
Segue, abaixo, a definição dos conceitos considerados importantes nesta pesquisa. O
quadro abaixo apresenta apenas uma ideia, ou uma simplificação dos conceitos que já foram
detalhadamente discutidos no capítulo anterior.
QUADRO 7- CONCEITOS CHAVE DA PESQUISA (RE E TERMOS AFINS )
Conceito
Definição
RE
Uma das dimensões da proposição-enunciado, dimensão constitutiva do
texto que permite dar conta do desdobramento polifônico, como um
posicionamento do locutor-narrador diante de uma proposição
enunciada, e mecanismo que permite a atribuição de uma porção de um
texto a um ponto de vista, assumindo-o ou não. (ADAM, 2011)
PDV
Herdada da tradição dos estudos narratológicos, em que era também
articulada à noção de focalização, é introduzida posteriormente na
Linguística para definir uma dada representação sobre um objeto do
discurso por parte de uma fonte enunciativa e de acordo com seus
interesses pragmáticos, trata-se de uma dimensão a um só tempo
cognitiva e pragmática. (RABATEL, 2003, 2004, 2005, 2009). Pode-se
dizer que são mobilizadas várias das noções a ele articuladas (PEC,
imputação, Prise en compte, apagamento enunciativo, etc) na produção
da representação sobre o objeto do discurso
Mediativo
Uma categoria gramatical que permite ao enunciador referir-se a uma
determinada situação enunciativa pela qual ele não assume a
responsabilidade pela proposição enunciada, por não ter testemunhado
o fato enunciado e dele ter tomado conhecimento por vias indiretas, seja
129
por ouvir dizer , seja por indícios que o levem a deduzir ou inferir
(Guentchéva, 1994, 1996), trata-se de uma noção também articulada à
noção de PEC, e, assume, em outros trabalhos. a noção de
desengajement (Desclés, 2009)
Prise em charge Noção de difícil definição, uma vez que há poucas definições teóricas
(PEC)
disponíveis, em Moirand (2006) o conceito se articula com a noção de
Responsabilidade Enunciativa, em Rabatel (2009) se articula à noção
de Imputação, mas não é a mesma coisa. Resumidamente, define-se
como uma operação enunciativa em que o enunciador assume como
verdadeira (independentemente da condição de verdade) a proposição
de um enunciado ou qualquer informação sobre a qual se
posiciona.(RABATEL, 2009)
Engajamento/
desengajemento
Noções intrinsecamente articuladas à noção de PEC, engajamento é uma
operação enunciativa que corresponde a uma atitude do locutor que
produz uma asserção, que assume ou se compromete com a verdade do
conteúdo proposicional. Desengajement é a operação contrária, é o
descompromisso com esse conteúdo. (Beyssaide e Marandin, 2009),
trata-se, assim, de uma retirada de cena do enunciador, seja para indicar
uma mudança de referência espaço-temporal, seja para se referir a uma
verdade geral, universal, tal como nos provérbios, proposições dóxicas,
do senso comum, etc) cf. Desclés (2009)
Imputação
A imputação é uma PEC de responsabilidade limitada, ou uma quasePEC (RABATEL, 2009), na representação e expressão de um PDV por
seu L1/E1 s responsabilidade é limitada porque nesse caso sua
representação foi construída pelo L1 e atribuído por ele a um
locutor/enunciador segundo, podendo sempre se argumentar que ele
não é o responsável por um PDV que L1/E1 lhe imputou
indevidamente. Essa responsabilidade limitada é pressuposta quando
remeter a um PDV alheio. Faz sentido em relação às noções de acordo,
desacordo e neutralidade (RABATEL, .2009).
Prise en compte
Engloba os PDVs imputados por L1/E1 aos enunciadores segundos, não
toma para si o conteúdo nem o assume como seu, fenômeno mais amplo
que engloba a PEC e a imputação, mas é instável, uma vez que oscila
entre um e outro.
Apagamento
enunciativo
Rabatel (2004) discute essa noção a partir das considerações de Vion
(2001) e Charaudeau (1999). Trata-se de uma estratégia discursiva que
faz parecer que o locutor se retira do enunciado, seu discurso é
objetivado não apenas mediante o recurso do apagamento dos sinais de
sua presença (os embreadores), como também de qualquer expressão
que favoreça a identificação. O autor evidencia essa estratégia nos
planos de enunciação teórica e histórica, sugerindo que os eventos ou
argumentos apresentados independem de qualquer intervenção do
sujeito falante. Chega-se, assim, a uma ideia de simulacro enunciativo,
130
ou um jogo em que o locutor não tem um ponto de vista, desaparece do
ato de fala e deixa que o discurso fale por si.
Como se pode ver, pelo quadro acima, não se trata de confusão terminológica, mas de
conceitos que, embora afins (considerando-se, inclusive, algumas possíveis sobreposições),
distinguem-se entre si e, no mais das vezes, desempenham papel fundamental na construção
do PDV.
Por fim, esclarecida a questão da existência de múltiplos termos referentes ao objeto
da pesquisa, no próximo capítulo apresentam-se os resultados e uma análise destes resultados
encontrados.
131
Capítulo IV– Análise dos dados: das ocorrências de não assunção da RE
Conforme já fora exposto na apresentação, este capítulo dedicar-se-á à descrição dos
dados, sua análise e aos resultados das análises realizadas sobre o corpus, apresentando-se,
um levantamento das ocorrências de assunção e não assunção da responsabilidade
enunciativa levando-se em conta o gênero e o nível de experiência do autor, procurou-se
definir se a ocorrência de assunção da RE se associa ao tipo de postura enunciativa
encontrada.
4.1. Marcas da RE em textos de iniciantes (alunos de graduação)
Do total de textos que compõem o corpus, vinte artigos são escritos por alunos de
graduação, 20 escritos por mestrandos, doutorandos, mestres e doutores júniores, e outros
20 escritos por pesquisadores doutores seniores, com vários anos de trabalhos de pesquisa e
publicações em diversos periódicos com alta qualificação.
Após esse pequeno esclarecimento inicial, em que se estabelece a principal variável,
nível de experiência do autor, descrevem-se, na sequência, os dados encontrados.
4.2.1 Das ocorrências na categoria de ordem 5 – Diferentes formas de representação
da fala
Os textos de autores iniciantes caracterizam-se por excessivas remissões ao discurso
de outro, conforme se observará na apresentação dos dados encontrados nos vinte textos de
autores iniciantes (alunos de graduação) que compõe o corpus.
No que diz respeito ao discurso reportado, categoria de ordem 5 – Diferentes
Representações da Fala (Passeggi et al., 2010), atendendo à proposta de adaptação da
classificação anteriormente apresentada, observou-se que o discurso indireto aparece como
a forma preferida dos autores iniciantes, contrariando os achados de Boch e Grossmann
(2002), em cuja pesquisa autores iniciantes mobilizam, preferencialmente, a citação
autônoma (discurso direto).
A segunda forma preferida pelos iniciantes é o discurso direto, seguido pela ilha
textual, conforme se vê no quadro abaixo:
QUADRO 8 - RE EM ARTIGOS DE A UTORES INICIANTES - ORDEM 5
132
Art.
Ilha
Textual
DD
DI
aspas
sem Evocação
mencionar autoria
Total
%
por art.
AI01
AI02
AI03
AI04
AI05
AI07
AI08
AI09
AI10
AI11
AI12
AI13
AI14
AI15
AI16
AI17
AI18
AI19
AI20
2
1
3
4
1
0
0
1
0
0
0
0
0
3
0
1
3
4
5
3
31
11,27%
3
2
3
3
1
2
4
1
3
3
3
0
3
3
3
8
11
3
22
21
102
37,09%
20
3
10
3
7
1
1
3
9
4
0
8
2
3
5
12
7
14
3
15
130
47,27%
0
0
0
4
0
0
2
0
0
2
0
0
0
0
0
0
3
0
0
0
11
4,00%
25
6
17
14
9
3
7
5
12
9
3
8
5
9
8
21
24
21
30
39
275
Tot.
%
0
0
1
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
0,36%
9,09%
2,18%
6,18%
5,09%
3,27%
1,09%
2,55%
1,82%
4,36%
3,27%
1,09%
2,91%
1,82%
3,27%
2,91%
7,64%
8,73%
7,64%
10,91%
14,18%
A visualização deste quadro dá a dimensão do comportamento citacional de autores
iniciantes, e, neste aspecto, cumpre observar-se que, embora a prevalência da citação do tipo
discurso indireto predomine, é possível observar que a segunda forma preferida, em discurso
direto, apresenta índices muito próximos aos da primeira, de modo que se pode afirmar que
haja um equilíbrio entre as duas formas. A terceira forma preferida, observável no ranking
anterior, junto com as aspas sem menção de autoria (provavelmente atribuindo a RE um
enunciador dóxico) representam um percentual muito menor se comparadas às duas
primeiras formas mais predominantes. A evocação representa um índice ínfimo: é
encontrada apenas uma ocorrência em apenas um artigo, o que não é exatamente
surpreendente se se considera que esta forma de citação é comum entre especialistas muito
experientes, mas não entre iniciantes, pois pressupõe que esta voz autoral se comunica com
seus pares, pessoas em que estão no mesmo nível de conhecimento tornando dispensável a
resenha ou citação de uma determinada questão teórica.
Antes de se tecerem algumas considerações acerca dos dados reunidos no quadro
anterior, cumpre lembrar que, no âmbito desta pesquisa, o posicionamento pode ser
considerado sob dois aspectos distintos, mas complementares: i) um posicionamento de
133
ordem epistemológica, pelo qual o pesquisador situa seu trabalho num determinado campo
científico, na maioria das vezes revelado pela remissão ao sistema autor-data, que por seu
turno, remete à bibliografia; e ii) A definição de sua pesquisa em relação a outras implica,
por parte do pesquisador, um posicionamento, compreendido aqui noutro sentido: ele precisa
posicionar o interesse e objeto de sua pesquisa em relação a outros pontos de vista. Esta
dimensão se inscreve textualmente por meio do jogo estabelecido nas relações entre os
pontos de vista, e a consequente hierarquização destes, com as posturas de co-, sub- e
sobrenunciação. A este aspecto se abrirá um tópico quando serão comparados os dados ora
descritos em função da variável nível de experiência do pesquisador.
Até aqui considerou-se que a comunidade discursiva é, em última instância, a
responsável pela produção e legitimação dos gêneros do discurso utilizados para a
comunicação entre os seus membros. Gêneros como o artigo acadêmico (seja o publicado
pelos membros expertos em periódicos da área, seja os trabalhos de disciplina produzidos
por alunos de graduação) são construídos a partir de certas normas que permitem à
comunidade discursiva em questão – a acadêmica – reconhecer e utilizar esses gêneros de
maneira a difundir o conhecimento nela produzido. Nesses gêneros, a citação, seja direta ou
indireta, integrada ou não ao texto, tem a função de trazer a voz da autoridade e da tradição
da comunidade para o texto de quem escreve. Os modos pelos quais essa voz é mobilizada,
no interior dos textos, define não apenas a maneira como o conhecimento será construído
nesses textos, como também a maneira como L1/E1 se posiciona a respeito da obra citada.
Uma outra organização dos dados coletados encontra-se sistematizada no quadro
abaixo:
QUADRO 9 - PERCENTUAL DAS FORMAS DE REPRESENTAÇÃO DO DISCURSO OUTRO / POR ARTIGO
Art.1
Art. 2
Art.3
Art.4
Art.5
Art.6
Art.7
Art.8
Art.9
Art.10
Art.11
% de Ilha textual em relação
ao total de citações
8,00%
16,67%
17,65%
28,57%
11,11%
0,00%
0,00%
20,00%
0,00%
0,00%
0,00%
% de DD em
relação ao
total de
% de DI em relação ao
citações
total de citações
12,00%
80,00%
33,33%
50,00%
17,65%
58,82%
21,43%
21,43%
11,11%
77,78%
66,67%
33,33%
57,14%
14,29%
20,00%
60,00%
25,00%
75,00%
33,33%
44,44%
100,00%
0,00%
134
Art.12
Art.13
Art.14
Art.15
Art.16
Art.17
Art.18
Art.19
Art.20
0,00%
0,00%
33,33%
0,00%
4,76%
12,50%
19,05%
16,67%
7,69%
0,00%
60,00%
33,33%
37,50%
38,10%
45,83%
14,29%
73,33%
53,85%
100,00%
40,00%
33,33%
62,50%
57,14%
29,17%
66,67%
10,00%
38,46%
Fora do conjunto, os dados encontrados apontam ainda para uma outra pista relevante:
os artigos que, considerados individualmente, apresentam maior número de citações em ilha
textual em relação às demais formas proporcionais tenderam, neste subgrupo, ao predomínio
de ocorrência de zonas textuais de maior projeção autoral por meio dos mecanismos de
construção do PDV evidenciado nas posturas enunciativas. É o caso, por exemplo, do artigo
AI04. No trecho sublinhado encontra-se um exemplar de citação em ilha textual, seguida por
uma porção realçada por negrito em que se encontra uma reformulação das proposições de
e2. No trecho, observa-se a postura enunciativa de co-enunciação, etapa importante e
necessária para L1/e1 marcar definitivamente seu posicionamento nas porções textuais
seguintes:
(8) Art.AI04
Contrária às ideias iluministas, a antropologia “tem tentado encontrar seu caminho
para um conceito mais viável sobre o homem, no qual a cultura e a variabilidade cultural
possam ser mais levadas em conta” (Geertz, 1989, p.27), porém, o autor também julga ser
necessário ter cuidado ao direcionar os estudos referentes ao ser humano, visto que este
possui uma complexidade imensa que ainda não se encontra ordenada, de forma que
há o perigo de perder por completo a perspectiva de homem.
Dessa forma, é possível perceber que para entender o conceito de homem é de
fundamental importância um estudo aprofundado sobre a cultura, e é neste ponto que a
antropologia se torna uma ciência complexa, visto que existem variedades inúmeras de
manifestações culturais e costumes, inclusive tais variedades contribuem na existência do
preconceito entre os homens.
Os primeiros trabalhos antropológicos relativos à cultura dos povos indígenas e afrobrasileiros, publicados por pesquisadores no Brasil, apresentam em seu conteúdo um caráter
um tanto preconceituoso no que diz respeito aos costumes desses povos, influenciando ainda
hoje no pensamento que a sociedade brasileira tem de tais culturas. Além disso, há obras
desta época nas quais é notável a presença de ideias importadas de outros países, ideias essas
que não se encaixavam com a realidade do Brasil, abordando assim a cultura como algo
passível de padronização.
Da mesma forma, no artigo AI14, do mesmo autor de AI04, observa-se o recurso às
mesmas formas citacionais a fim de marcar seu PDV, em posição de co-enunciação:
135
(9) Art. AI14
Para o linguista a língua é o resultado de “um produto social da faculdade da
linguagem e um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para
permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos” (Saussure 1989 p.17). Segundo ele o
sistema linguístico se encontra depositado no cérebro humano e se materializa por meio
das impressões acústicas. Por isso, independentemente da maneira que essas impressões
são expressas o que realmente tem importância é que elas exerçam com eficiência a sua
função de se remeter aos determinados signos do sistema linguístico, a fim de ocasionar o
entendimento entre os interlocutores.
Outro dado que chamou a atenção foi observado nos artigos AI11 e AI12, em que a
preferência por uma determinada forma de citação foi tão polarizada que prevaleceu apenas
uma dentre as várias possibilidades. Enquanto no artigo AI11, ocorre a prevalência absoluta
de citações em discurso direto, no artigo AI12 ocorre a prevalência absoluta de citações em
discurso indireto. É importante observar que a preferência por uma ou outra forma de
mobilização do discurso outro não se traduz, necessariamente, num predomínio do discurso
do citado sobre o citante e vice-versa, este aspecto se liga mais às posturas enunciativas
(RABATEL, 2004, 2005, 2009, 2013) conforme se verá nas discussões do capítulo seguinte.
Apenas para uma ilustração inicial desta proposição, veja-se alguns exemplos abaixo:
(10) Art. AI11
De acordo com Romanatto, doutor em educação e professor do departamento de
didática pela UNESP do campus de Araraquara, “com freqüência os livros didáticos diluem
fontes de conhecimento, simplificam-nas para torná-las acessíveis à compreensão do aluno.
E raros são aqueles que o fazem com competência.” (2004). O problema da ineficiência da
maioria dos autores em sintetizar os conteúdos abordados no livro didático juntamente com
a má formação de alguns professores que usarão o material como método pedagógico, são
as principais causas que prejudicam uma boa formação dos alunos, visto que o professor não
poderá suprir as necessidades ausentes no livro.
Além da elaboração do conteúdo do livro, os pesquisadores e educadores questionam
os exercícios propostos, sendo estes elaborados tendo em vista respostas prontas que
impedem o estímulo ao raciocínio por parte do aluno. Segundo Romanatto as “propostas de
exercícios que pedem respostas padronizadas, apresentam conceitos como verdades
indiscutíveis e não permitem a alunos e professores, um debate crítico e criativo que é uma
das finalidades do processo educacional.” (Romanatto, 2004).
(11) AI12
A formação das línguas românicas, de fato tem como base o latim vulgar, linguagem
popular, falado pelos povos romanos de classes mais baixa, ou seja, pelos indivíduos de
poucas instruções menos favorecido pelo ensino escolar. Segundo Coutinho, as primeiras
terras romanizadas receberam uma linguagem mais popular, baseada no latim vulgar,
enquanto que as últimas conheceram um latim mais culto, e isto se deu pelo fato da
língua literária ser mais recente, e também pelo surgimento da escrita. Para que
136
possamos entender as mudanças que ocorreram na língua latina, observamos três fatores: o
histórico, o etnológico e o político.
Segundo Teyssier, assim como o castelhano, o português também se originou de
uma língua nascida no norte, o galego-português medieval que foi levado ao Sul pela
reconquista.
Quanto à norma, contudo, o português moderno diverge do castelhano, pois vai buscála não no Norte, mas sim na região centro-sul, onde esta localizada Lisboa.
Segundo Coutinho, (1976, p. 56), a evolução da língua portuguesa pode ser
explicada em três fases: pré-histórica, proto-histórica e histórica a que compreende o
período do Português arcaico e moderno.
No fragmento AI11, o PDV narrado de e2 está em evidência, marcado pelo discurso
direto e aspeado, sendo seguido pelo PDV de L1/e1 em posição não dissonante, em coenunciação. L1/e1 ainda complementa trazendo para sua linha argumentativa outros PDV’s
imputados a outros enunciadores (além de e/2), os “pesquisadores e educadores”, cujas
proposições parecem coadunar com a de L1/e1 e de e/2. Por outro lado, observando o excerto
do artigo AI12, valendo-se dos mesmos recursos (indicadores de quadro mediador, discurso
indireto) L1/e1apresenta o PDV de e2, cuja voz se projeta, ainda que por meio do discurso
indireto, dominando a cena enunciativa em detrimento do apagamento de L1/e1.
4.2.2 Das ocorrências na categoria de ordem 6 – Indicação de Quadros Mediadores
Inicia-se a descrição destas remissões pela exposição dos resultados classificados na
categoria de ordem 6 “Indicação de quadros mediadores” (Passeggi et al., 2010) e
sistematizados nos quadros abaixo:
137
QUADRO 10 - I NDICATIVOS DE QUADROS MEDIADORES EM TEXTOS DE AUTORES INICIANTES
Art.1
Art. 2
Art.3
Art.4
Art.5
Art.6
Art.7
Art.8
Art.9
Art.10
Art.11
Art.12
Art.13
Art.14
Art.15
Art.16
Art.17
Art.18
Art.19
Art.20
Total
%
Para X
Segundo X Conforme/ De acordo Modal.
como X
com
fut.pret.
Modal.
Deônt.
e/ou epist,
9
1
1
1
1
0
1
0
1
0
0
0
0
1
1
5
7
1
3
4
37
18,88%
1
0
2
3
2
0
0
0
0
0
1
4
1
1
3
2
4
5
6
3
38
19,39%
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0,00%
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
0
0
1
0
0
3
3
1
2
2
13
3,06%
3
0
3
0
0
0
0
0
0
0
1
0
1
0
0
0
0
3
1
13
25
12,76%
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0,00%
Verbos
de
atribuição
de
fala: afirmam,
parece, diz, fala
1
3
0
2
2
1
8
4
3
3
0
3
2
2
4
5
7
4
4
7
65
33,16%
Reformulações
: (é) de fato, na
verdade,
em
todo caso
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
0
0
1
0
2
1,02%
Oposições:
Fulano diz X,
nós pensamos
(dizemos) Y
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0,00%
Total
%
14
4
6
6
5
1
9
4
4
4
2
7
5
4
8
16
21
14
17
29
180
7,78%
2,22%
3,33%
3,33%
2,78%
0,56%
5,00%
2,22%
2,22%
2,22%
1,11%
3,89%
2,78%
2,22%
4,44%
8,89%
11,67%
7,78%
9,44%
16,11%
100,00%
138
O que se pode depreender desses números acima é o papel expressivo dos indicativos
de quadros mediadores na escrita de alunos de graduação. Os verbos de atribuição de fala
são os índices de maior frequência, por essa razão, dedica-se a eles um tópico específico
mais adiante. A segunda marca linguística de maior ocorrência nos textos, o “para .... X”
exerce duas funções distintas em todos os 20 artigos observados. A primeira, mais comum,
é de introduzir o discurso outro, seja por meio do discurso direto ou indireto, a segunda
função, bastante recorrente na amostra, se presta a um mecanismo de recuperação do que já
fora dito, introduzindo, deste modo, uma paráfrase de e1 acerca do que já fora citado. Outras
marcas de grande recorrência são o “segundo ... X” (que praticamente se iguala ao “para
X....” em número de ocorrência) “de acordo com .... X” e “ Conforme .... X” cujas funções
parecem-se, em grande medida, às funções desempenhadas pela fórmula “Para .... X”.
É o que ocorre, por exemplo, nos excertos escolhidos transcritos no quadro abaixo:
QUADRO 11 -ALGUNS EXEMPLOS DE MARCAS LINGUISTICAS EVIDENCIADORAS DE QUADRO
MEDIADOR NOS TEXTOS PRODUZIDOS POR AUTORES INICIANTES
Marca
Excerto
Linguística
Para X .... 12) Art.AI1
Para Soares (2001, p, 18), as atuais necessidades do uso da leitura e da
escrita caracterizam um novo fenômeno e precisou de um novo termo que
designasse a nova realidade. (...). Para a autora, essa nova palavra surgiu
como muitas já surgiram e muitas outras vêm surgindo, não propriamente
para nomear um novo fenômeno, mas para designar uma nova percepção, ou
seja, uma nova compreensão de um processo que em si não é novo, o
processo de aprendizagem da leitura e da escrita. (...). Para essa nova
dimensão da escrita letramento pode ser definido como o processo de
inserção e participação na cultura escrita.
13) Art.AI16
O sociólogo Castells (1999), elabora uma análise (...). Para ele, a partir das
relações afetadas pelo fenômeno da globalização, se instalou a sociedade em
rede, na qual é constatada a existência de uma mesma matriz produtiva, que
não se limita pelas fronteiras. (...) Criação de identidade para Castells é a
reorganização de significados pela construção de conteúdo simbólico.
Segundo X 14) Art.AI04
Ainda neste capítulo de Casa-grande e senzala, Freyre aborda questões
ligadas à miscigenação ocasionada pelas relações sexuais que aconteciam
entre os europeus e as índias. É notável no decorrer da leitura que o autor
conduz esse tema de modo vulgar, privilegiando a figura do português e
consequentemente, manchando a imagem da índia. Segundo o autor:
“O ambiente em que começou a vida brasileira foi de quase intoxicação
sexual. O europeu saltava em terra escorregando em índia nua; os próprios
padres da Companhia precisam descer com cuidado, senão atolavam o pé em
carne. Muitos clérigos, dos outros, deixaram-se contaminar pela devassidão.
As mulheres eram as primeiras a se entregarem aos brancos, as mais ardentes
139
indo esfregar-se nas pernas desses que supunham deuses. Davam-se ao
europeu por um pente ou um caco de espelho.” (FREYRE, 2001, p.164)
15) Art.AI04
Segundo Schwarcz (1993), João Batista Lacerda, diretor do museu
nacional do Rio de Janeiro, apresentou em 1911 no I Congresso
Internacional das Raças a seguinte tese: “O Brasil mestiço de hoje tem no
branqueamento em um século sua perspectiva, saída e solução”. (p.11). É
possível notar através da leitura desse texto como os estudiosos das ciências
humanas encaravam a miscigenação como uma espécie de mancha de raças
puras, chegando ao ponto de acreditar que a “SALVAÇÃO” do povo
brasileiro poderia se dar por meio de um possível “BRANQUEAMENTO” das
raças.
16) Art.AI03
1) Segundo Postal (apud Fávero, 2002, p.20) as pro – formas pronominais
só podem fazer substituições por anáforas através da referência endofórica,
a isso ele chama de “ilha anafórica”. Porém Fávero abre uma questão
relacionada a esse pensamento de Postal:
Parece-me que isso não é possível do ponto de vista sintático, mas
cognitivamente sim, porque há uma estrutura inferencial processada que
permite tal construção. É o que se denomina anáfora esquemática, que
permite dizer: Minha filha vai casar-se. Ele é médico. (Fávero, 2002, p.20)
De acordo 17) Art. AI07
com X .... Outro trecho que é composto de elementos que modificam ou põe em
dúvida os objetivos dos autores, pode ser percebido no momento em que o
jornalista afirma que o livro mostra ao aluno “que não há necessidade de
se seguir a norma culta para a regra da concordância”. De acordo com
Eemeren no texto Reconstrução Dialética, uma das operações usadas para
ocorrer transformações em discursos originais se dá por meio da
permutação, em que há “a ordenação ou rearranjo de elementos no discurso
original de tal modo que o processo dialético da resolução da disputa seja
realizado o mais claramente possível” (EEMEREN, 1993, p.2). Dessa
forma, o redator da reportagem desloca o trecho “não há necessidade de
seguir a norma culta” para a questão relacionada à concordância, porém no
texto original os autores abordam as regras deste tema de acordo com a
variante padrão e depois exemplificam a ocorrência do conteúdo na
variante popular, afirmando que “é importante que o falante do português
domine as duas variedades e escolha a que julgar adequada à situação de
fala” (p.16).
Conforme 18) Art. AI16
X ...
O trabalho discursivo compreende sentidos historicamente constituídos
pelo/no simbólico. Mas, esta constituição não é fixa, ou seja, os sentidos
não são literais, embora a linguagem cause a ilusão da literalidade e da
transparência. Conforme Orlandi (2003), esta ilusão é necessária para o
funcionamento do discurso e para que os sujeitos produzam sentidos, pois,
o sujeito nunca é a origem dos sentidos que produz.
19) Art. AI16
Ainda conforme NUNES (idem), os modos pelos quais são constituídas
as identidades para uma brasilidade acabam por afirmar a noção de língua
nacional. O trabalho sobre as diferenças lingüísticas instaurou a condição
necessária para se afirmar a identidade do brasileiro em relação à sua língua
140
nacional. O que é apontado como diferente entre os dois manifestos é a
forma de trabalho com a historicidade lingüística.
Do que se pode observar nestes fragmentos depreendem-se as seguintes considerações:
i) Os fragmentos 12 e 13 apresentam um índice de quadro mediador, o para X....., cuja
finalidade é, em sua maioria, apenas retomar, recuperar o dito de e2 reformulando-o ou
parafraseando-o, sendo apenas a primeira das ocorrências no excerto A (Para Soares (2001,
p, 18) ...) utilizado para introduzir o enunciado de e2, também reformulado. Os demais
seguem a lógica de introdução de um discurso outro, sendo discurso direto nos excertos 14
e 15, e nos demais, o discurso indireto.
ii) A ocorrência de tais índices não deve ser considerada o único fator de projeção da
voz autoral, uma vez que se percebe tal projeção nos excertos 16 e 18. No caso do excerto
16, L1/e1 projeta seu PDV em posição de coenunciação, sem que deixe de acrescentar um
ponto de vista original à proposição. Esse ponto de vista, que emana de L1/e1 mas que não
se encontra em desacordo com e2 a ponto de se configurar um PDV2 está representado nos
trechos acima pelas porções sublinhadas.
As marcas de menor ocorrência, quase insignificantes se se considerar as ocorrências
de “Para ... X”, “Segundo ....X”, “De acordo com .... X” e “Conforme .... X”, são as
reformulações e oposições, notadamente no caso das oposições a ausência de ocorrências se
deve ao fato de requerer de L1/E1 um posicionamento que contrarie ou, minimamente,
confronte e2. Tal posicionamento é de ocorrência rara nos textos de iniciantes.
Um outro índice revelador da presença de outras vozes no texto é a presença de verbos
introdutores do discurso outro, sendo que uma das marcas linguísticas de maior ocorrência
detectada nos textos observados é, sem sombra de dúvida, os verbos de atribuição de fala,
sendo as formas ditas neutras50 dizer e afirmar (cf. Charolles, 1976,) as mais recorrentes: o
verbo afirmar corresponde a um 66,15% enquanto dizer e falar correspondem a 27,69% e
4,62% respectivamente:
QUADRO 12 - LEVANTAMENTO DE OCORRÊNCIA DE VERBOS DE ATRIBUIÇÃO DE FALA
CATEGORIZADOS COMO " NEUTROS "
50
Apesar de tal classificação proposta em Charolles (1976) como formas neutras para os verbos dicendi
afirmar, dizer e falar, entende-se, no escopo desta pesquisa, que não se trata de uma avaliação neutra, ou de
uma ausência de avaliação, antes, trata-se de uma avaliação não-manifesta, portanto, nem neutra, nem positiva,
nem negativa.
141
Verbos de atribuição de fala
afirmar
Art1
1
Art2
1
Art3
0
Art4
2
Art5
1
Art6
1
Art7
6
Art8
4
Art9
2
Art10
1
Art11
0
Art12
2
Art13
1
Art14
2
Art15
3
Art16
2
Art17
0
Art18
3
Art19
4
Art20
7
Total
43
por verbos
Perc.
67,19%
Dizer
0
2
0
0
1
0
2
0
1
2
0
1
1
0
1
2
2
0
2
1
18
falar
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
1
0
0
1
3
28,13%
4,69%
Total
1
3
0
2
2
1
8
4
3
3
0
3
2
2
4
5
3
3
6
9
64
%
1,56%
4,69%
0,00%
3,13%
3,13%
1,56%
12,50%
6,25%
4,69%
4,69%
0,00%
4,69%
3,13%
3,13%
6,25%
7,81%
4,69%
4,69%
9,38%
14,06%
100,00%
Apenas para fins de reflexão, transcrevem-se aqui alguns fragmentos dos dois artigos
que apresentaram, no total, o maior número de ocorrências de verbos de atribuição de fala
categorizados como neutros, ou melhor, de avaliação não manifesta:
20) Art.AI07
Na primeira reportagem é notável perceber equívocos usados propositalmente na
construção do texto a fim de colocar como “verdade” o posicionamento expresso pelo
jornalista por toda a manchete.Logo no título da matéria, é possível perceber uma elaboração
que sugere interpretações errôneas quanto ao livro didático em questão, pois no momento
em que o autor afirma que o livro usado pelo MEC ensina o aluno a falar errado, ele distorce
o real objetivo dos autores do livro, que é explanar ao leitor sobre a existência de mais de
uma variante da língua portuguesa, explicando a importância delas, além de esclarecer que
ambas devem ser usadas em situações distintas, a depender da exigência ou não da norma
padronizada.
21) Art. AI20
Até que ponto o ensino de língua padrão tem relação com a gramática? Possenti (1996,
p. 63) define gramática como “conjunto de regras”. O autor afirma ainda que essa definição
pode ser entendida de várias maneiras, pois existe mais de um tipo de gramática e assim,
mais de um conjunto de regras. Ele enumera três tipos básicos de gramáticas: 1) Gramáticas
Normativas – conjunto de regras que devem ser seguidas; 2) Gramáticas Descritivas –
142
Conjunto de regras que são seguidas; e 3) Gramáticas Internalizadas – conjunto de regras
que o falante da língua domina.
Embora haja ocorrência da forma verbal afirmar em ambos os fragmentos, parece
relevante observar o co-texto: no primeiro, (20), L1/e1 questiona o posicionamento de um
jornalista (e2) acerca do conteúdo proposicional. Tal questionamento se revela na forma
verbal distorcer, relacionada a uma avaliação negativa de e2 por parte de L1/e1 evidenciando
sua não adesão a tal conteúdo. Este comportamento é reforçado ainda pela presença da forma
nominal equívoco e das aspas na forma nominal verdade. Como não há citação direta do
discurso de e2, o PDV narrado é apresentado em discurso indireto configurando uma
imputação, mas, neste caso, L1/e1 assume a imputação, e não o conteúdo proposicional
imputado, de tal modo que seu PDV aparece em seguida em posição de sobrenunciação, o
discurso de e2 é apagado em detrimento do domínio do discurso de L1/e1. Tal não ocorre
com o fragmento seguinte, o (21), em que a voz autoral de L1/e1 fica obnubilada pela
presença da voz de e2, o PDV de e2 é mobilizado por L1/e1 e permanece em posição de
domínio, neste caso é a voz de e2 que se projeta neste fragmento, em detrimento do
apagamento da voz de L1/e1, é como se este enunciador se ausentasse do cenário
enunciativo. Tais considerações parecem apontar para a possibilidade de duas formas de
representar o PDV: por um lado, uma forma em que a representação se configura na direção
de um “eu” que se projeta no discurso a fim de evidenciar o seu PDV, por outro lado, uma
forma em que a representação se configura na direção do “outro” ora com a função de
reforçar a posição do “eu” (fundamentação teórica ou argumento de autoridade), ora para
evidenciar um distanciamento humilde e/ou respeitoso. Nos dois fragmentos o efeito é o
mesmo, qual seja, de distanciamento em relação à proposição de e2, no entanto o que diferem
são
as
múltiplas
razões,
que
ora
podem
ser
motivadas
por
discordância,
descomprometimento, humildade/submissão ou superioridade.
Outros verbos de elocução, especialmente associados aos discursos direto e indireto,
foram também considerados nesta pesquisa e sua categorização levou em conta as
contribuições das reflexões contida em Charolles (1976), Maingueneau (1998), Marcuschi
(1991), Garcia (1986) e Rabatel (2003), bem como de Thompson e Yiyun (apud Oliveira
2005) e Benites (2002). O detalhamento dessa divisão foi apresentado no tópico anterior e é
mobilizado agora.
Como já se observou anteriormente, o verbo afirmar corresponde a quase totalidade
dentre os verbos considerados “neutros” por excelência, seguido por dizer e falar. Na
143
somatória entre esses verbos e os demais delocutivos, 164 ocorrências, observa-se que os
neutros representam mais de cinquenta por cento das ocorrências, num forte indício de uma
escrita que se ausenta da responsabilidade, associadas ao discurso relatado, encontradas
uniformemente tanto no discurso direto quanto no indireto, e, mais raramente acompanhando
a ilha textual. Apresenta-se, abaixo alguns exemplos do corpus:
Introduzindo uma citação em discurso direto:
(22) Art.AI06
Como afirma Bagno (2007 p.159) “Quem quiser continuar usando as formas
tradicionais, prescritas pela norma-padrão, fique à vontade, faça bom uso delas e seja feliz!
Tudo o que exigimos é que as outras formas também sejam consideradas boas, justas e
corretas.”
Introduzindo uma citação em ilha textual:
(23) Art.AI07
Outro trecho que é composto de elementos que modificam ou põe em dúvida os
objetivos dos autores, pode ser percebido no momento em que jornalista afirma que o livro
mostra ao aluno “que não há necessidade de se seguir a norma culta para a regra da
concordância”.
Introduzindo uma citação em discurso indireto:
(24) Art.AI20
Bagno (2007), sempre partindo dos estudos labovianos, classifica os tipos de variações
e afirma que a variação ocorre em todos os níveis da língua: variação fonéticofonológica,
variação morfológica, variação sintática, variação semântica, variação lexical e variação
estilístico-pragmática
Quanto aos outros verbos de elocução, são muito variados, e pareciam, à primeira
vista, não ser representativos, mas o são, na medida em que revelam uma miríade de questões
relacionadas aos dois aspectos, o potencial denotativo e o de avaliação. Assim, formas como
considerar, definir e apontar são as mais recorrentes nos vinte textos analisados, com 16 e
10 ocorrências, respectivamente, seguidas por descrever, colocar, abordar e destacar com
8, 6 e 5 ocorrências, respectivamente, outras formas verbais, menos recorrentes encontramse igualmente listadas, como se vê no quadro seguinte:
144
QUADRO 13 - O UTROS VERBOS DE ELOCUÇÃO EM TEXTOS DE AUTORES INICIANTES
Outros Verbos de Elocução
Verbo
Art1 Art2 Art3 Art4
Art5 Art6 Art7 Art8 Art9 Art10 Art11 Art12 Art13 Art14 Art15 Art16 Art17 Art18 Art19 Art20 Total %
abordar
0
0
0
2
0
1
1
1
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
5
4,81%
analisar
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
1
0
0
0
2
1,92%
apontar
0
0
0
0
0
0
1
1
0
0
0
0
0
0
0
5
0
2
0
1
10
9,62%
citar
0
0
0
1
0
0
1
0
0
0
0
0
1
0
0
0
0
0
1
4
3,85%
colocar
0
0
1
4
0
0
0
0
0
1
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
6
5,77%
conceber
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
1
2
0
0
4
3,85%
considerar
1
0
0
0
1
0
0
1
1
1
0
0
0
0
0
4
1
3
1
2
16 15,38%
criticar
0
0
0
1
0
0
0
1
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
3
2,88%
definir
2
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
0
0
0
1
0
2
3
1
10
9,62%
descrever
0
0
0
3
0
0
0
3
0
0
0
0
0
0
0
0
1
0
0
1
8
7,69%
desenvolver
0
0
0
1
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
0,96%
destacar
0
0
0
0
0
0
1
0
1
1
0
0
0
0
0
0
0
1
0
1
5
4,81%
diferenciar
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
1
0,96%
discorrer
0
0
0
1
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
0,96%
discutir
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
1
0
0
2
1,92%
elaborar
0
0
0
0
0
0
2
0
1
0
0
0
0
0
0
1
0
1
0
0
5
4,81%
enfatizar
1
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
2
0
0
0
0
0
0
3
2,88%
evidenciar
0
0
0
0
0
0
0
1
1
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
2
1,92%
explicar
0
0
0
0
0
0
1
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
0,96%
expor
0
0
0
3
0
0
0
1
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
4
3,85%
expressar
0
0
0
0
0
0
1
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
0,96%
formular
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
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1
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1
0,96%
postular
0
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0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
0
0
1
0,96%
questionar
0
0
1
0
0
0
0
0
0
0
1
0
0
0
0
0
0
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0
2
4
3,85%
retratar
0
0
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1
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1
0
0
1
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
3
2,88%
teorizar
0
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0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
0
0
1
0,96%
Total
4
0
2
17
1
1
9
9
4
4
1
1
1
2
0
13
5
15
4
11 104 100,00%
%
3,8% 0,0% 1,9% 16,3% 1,0% 1,0% 8,7% 8,7% 3,8% 3,8% 1,0% 1,0% 1,0% 1,9% 0,0% 12,5% 4,8% 14,4% 3,8% 10,6% 100%
145
No que diz respeito ao potencial denotativo, não foram encontradas ocorrências
denotativas que dissessem respeito a L1/e1 em posição de de comparação e/ou atitude. Mas
abundaram as de teorização: são 23 ocorrências distribuídas entre seis formas verbais, a
saber: definir, destacar, enfatizar, explicar e teorizar. Vejam-se alguns exemplos:
Art.AI01
25) Soares (2001, p. 38) define o letramento como o resultado da ação de “letrar-se”.
26) Barbosa (1990, P. 54) enfatiza que as cartilhas são exemplos explícitos dessas
diretrizes, tendo em vista que elas direcionam um caminho pelo qual todos os alunos
precisam passar sem nenhuma mudança, o que acaba gerando um número expressivo de
alunos não leitores.
Art.AI20
27) Outro teórico que critica a mesma questão é Bagno (2009, p. 150), que destaca
como os “fósseis linguísticos ocupam um lugar de destaque no ensino de português.”
28) Almeida (1999, p. 186) também tenta explicar o porquê dessa substituição, ou
alternância: “talvez o temor de, no emprego do pronome ela, formar palavras grotescas,
como ‘boca dela’, ou para evitar a repetição desse pronome, costumam certos autores,
infalivelmente, substituí-lo por a mesma [...]”.
29)Art.AI18
Em sua obra Palavras Incertas: As não-coincidências do dizer, a autora trabalha a
noção de modalização autonímica, teorizando o conceito de não-coincidências no campo
teórico da Enunciação recorrendo também a outras áreas do conhecimento, como a
psicanálise lacaniana, o dialogismo bakhtiniano, além da noção de interdiscurso de Pêcheux.
Esta categoria abriga verbos de elocução que indicam o uso feito por L1/e1, no
desenvolvimento de seu próprio argumento, do discurso de e2. Além disso, como o próprio
nome da categoria indica, tais verbos expressam uma certa atitude teórica, de reflexão. No
entanto, o fato de não haver uma ocorrência sequer das categorias Comparação/contraste ou
Atitude demonstra que não há a exposição da interpretação de L1/e1 a respeito do conteúdo
citado ou do autor citado. Tal conteúdo é mobilizado de uma forma aparentemente neutra.
Entende-se que ao utilizar os verbos classificados na categoria “atos de L1/e1 de atitude”, os
enunciadores comprometem-se mais diretamente com a informação citada, representando,
através do verbo de elocução selecionado, não apenas uma expressão verbal, mas uma
atitude comportamental, associada a esta expressão.
Nas categorias que dizem respeito aos atos de e2, abundam as ocorrências de verbos
classificados como textuais, são inclusive as ocorrências predominantes em todo o corpus,
sendo classificados, nesta categoria, verbos de elocução relativos a processos que envolvem
necessariamente expressão verbal e sem que haja um comprometimento de L1/e1 com a
informação citada, representando apenas o ato textual de expressão verbal independente de
uma atitude comportamental.
146
Aos verbos listados na tabela “Verbos de atribuição de fala” (afirmar, falar e dizer)
somam-se os demais encontrados, apontar, elaborar, citar e colocar. Eis alguns exemplos:
(30) Art. AI01
(...)A autora expressa a sua rejeição ao uso do conceito de letramento para ela é um
“retrocesso”, porque representa a volta tradicional da compreensão instrumental da escrita.
Art AI04
(31) Em um determinado momento do texto o autor cita as pesquisas antropométricas
do cérebro humano realizadas por Hunt e continuada por Bean e Pearson.
(32) Quando o autor coloca a índia na posição da mulher que oferece seu corpo ao
“homem branco” e que faz isso por meros objetos como um pente, ele desconsidera o choque
entre as duas culturas.
(33) Clifford Geertz no texto o impacto do conceito de cultura sobre o conceito de
homem, expõe ideias iluministas sobre conceito do ser humano.
Art AI16
(34) O sociólogo Castells (1999), elabora uma análise do quadro sociológico atual e
aponta efeitos de sentidos marcados pela crescente globalização e tecnologia da informação.
Art AI18
(35) Gadet & Pêcheux (2004) apontam para o fato de que a materialidade simbólica
da língua se dá enquanto espaço discursivo diverso para formulações poéticas como em “[...]
o poeta seria apenas aquele que consegue levar essa propriedade da linguagem a seus últimos
limites”
O primeiro fragmento transcrito, o item (30) , merece uma observação a seu respeito,
na medida em que confirma o postulado de Thompson e Yiyun. Apesar da classificação
como atos de e2 textual, e, portanto, sem expressão de atitudes comportamentais, o texto
após a forma verbal expressar denota uma avaliação do autor a respeito do autor citado
evidenciada nas formas nominais rejeição e retrocesso, mas ainda assim a forma verbal não
pode ser classificada como um posicionamento negativo de e2, não apenas em função da
ausência do advérbio de negação, mas principalmente porque o escritor não se contrapõe ao
conteúdo proposicional citado, não o coloca em xeque, como se trata de um PDV
representado, sem a citação integral do texto citado, importa perceber que se trata de uma
imputação, ou quase PEC, em que o texto citante assume a responsabilidade pela imputação,
no entanto, não assume a responsabilidade pelo teor do conteúdo proposicional do texto
citado.
Ainda no que concerne ao potencial denotativo, as categorias classificadas como atos
de autor mental e de pesquisa são bem menos numerosas. Os atos de autor mental inclui
verbos de elocução relacionados a processos psicológicos, da reflexão e da percepção e,
portanto, abriga os processos tipicamente classificados como mentais, tais como crer,
acreditar, lembrar, observar, pensar, ponderar, reconhecer, refletir, achar, atentar, decidir,
etc. A perspectiva de classificação aqui adotada demandou a compreensão de que os verbos
147
classificados como atos de autor mental expressa processos mentais relativos à representação
não só de fenômenos do mundo exterior (material), mas, principalmente, do mundo interior
(mental), indicando assim processos de cognição, percepção e afeição. A maior parte deles
também é classificada nos itens focalização cognitiva e perceptiva da ordem 8 – categoria
“Indicações de um suporte de percepções e de pensamentos relatados”, elencada em Adam
(2011) e Passeggi et al. (2010).
A respeito desses verbos, Rabatel (2003) atribui-lhes um papel preponderante em
contextos de apagamento enunciativo, questionando um aspecto relevante nesta pesquisa: o
que está em jogo é o apagamento da enunciação de e2 ou o apagamento do relato de E1? Tal
questão importa muito nesta pesquisa porque determina, em última instância, uma
hierarquização entre os enunciadores, aspecto que se discutirá mais adiante ao se tratar as
posturas enunciativas.
Vejam-se alguns exemplos:
Art AI16
(36) Embora sejam apontadas as três categorias de movimentos de identidades com
características e efeitos diferentes, o sociólogo observa que existe uma dinâmica entre uma
e outra forma posta no funcionamento social
Art AI20
(37) O autor acredita que a perda fonológica dessa vogal acarreta um transtorno
morfológico (aparece uma casa vazia no quadro dos pronomes) e sintático (não temos como
representar o objeto direto pronominal).
(38) Porém, como pondera Bechara (2001), nenhum deles apresenta as razões da
crítica, ou seja, nenhum deles apresenta um motivo justo para que se evite o uso da palavra
mesmo em lugar dos pronomes pessoais.
Quanto à categoria atos de e2 de pesquisa, foram encontradas 10 ocorrências divididas
entre os verbos analisar, descrever, evidenciar, descrever, elaborar e formular, vinculados
ao campo da investigação e da pesquisa. Não parece exagerado lembrar que, via de regra,
verbos categorizados como referência a e2, sejam textuais, mentais ou de pesquisa,
tendencialmente
transferem
a
responsabilização
pelo
conteúdo
proposicional,
primariamente, para esta instância enunciativa denominada e2, estratégia pela qual o L1/e1
se isenta desta responsabilidade. Estes verbos representam, neste corpus, a grande maioria
dos verbos de elocução, levando, forçosamente, a concluir que grande parte dos mecanismos
linguísticos mobilizados por alunos de graduação, quando citam, levam a uma postura de
desresponsabilização.
Abaixo, foram listadas algumas ocorrências.
148
(39) Art.AI03
Montessori elaborou os "jogos sensoriais" destinados a estimular cada um dos
sentidos. Para atingir esse objetivo, ela necessitou pesquisar uma série de recursos e projetou
diversos materiais didáticos para possibilitar a aplicação do método.
(40) Art.AI04
As ideias referentes à cultura indígena expressas nos primeiros trabalhos
antropológicos têm reflexos ainda hoje, resultando no pensamento preconceituoso da
sociedade brasileira, que preserva a ideia de que o índio não passa de um selvagem
culturalmente atrasado como descreve o próprio Freyre.
(41) Art.AI09
Wallon fez inúmeros comentários onde evidenciava o caráter emocional em que os
jogos se desenvolvem, e seus aspectos relativos à socialização.
(42) Art. AI17
Ao analisar os efeitos do panóptico em “Vigiar e Punir” Foucault (2004) o descreve
como uma “diabólica peça de maquinaria”.
(43) Art.AI18
Os sentidos se produzem justamente desse modo, a partir da relação do intradiscurso
com o interdiscurso e a exterioridade, ou seja, o modo como formulamos nosso discurso,
fazendo com que ele passe a ter novos significados em função desse [...] “acontecimento a
sua volta”, conforme formula o autor.
No que diz respeito ao potencial avaliativo, encontram-se as subcategorias
posicionamento e interpretação. Os verbos que expressam posicionamento indiciam uma
preocupação quanto à verdade ou acuidade do conteúdo proposicional citado, enquanto os
verbos que expressam interpretação de e2 (por parte de L1/e1) não colocam em xeque a
veracidade deste conteúdo, mas, sobretudo, o modo como o discurso de e2 foi lido e
mobilizado por L1/e1.
Em suma, os verbos que expressam posicionamento, traduzem a avaliação realizada
por L1/e1 a respeito do posicionamento de e2 sobre o conteúdo proposicional. Desta forma,
este segundo enunciador por ser representado de forma positiva, demonstrando um alto nível
de segurança sobre seu próprio discurso, pode ser neutro, não demonstrando claramente qual
a posição, se apresenta um alto grau de segurança sobre o conteúdo proposicional ou se
demonstra dúvida a respeito, ou, ainda, e2 pode ser representado de forma negativa, como
um enunciador cuja informação foi posta em xeque, tendo apresentado informação ou falsa
ou incorreta. No caso da avaliação positiva, os verbos mais comuns são asseverar, acentuar,
argumentar, aduzir, assegurar, contra-argumentar, defender, destacar, discursar, enfatizar,
frisar, garantir, insistir, ressaltar, salientar, sublinhar, e sustentar, dentre outros.
No conjunto de 20 textos produzidos por autores iniciantes foram encontradas 8
ocorrências de verbos que indiciam um posicionamento positivo por parte de L1/e1, sendo
5 ocorrências do verbo destacar e 3 de enfatizar. Não se encontraram ocorrências de
149
avaliação negativa. A avaliação neutra é, normalmente, expressa pelos verbos apontar,
aprender, apresentar, assinalar, assumir, atentar, analisar, avaliar, exemplificar, expor,
ilustrar, interpretar, interrogar-se, lembrar, observar, pensar, perceber, ponderar, pontuar,
propor, pronunciar, notar, recordar, refletir, relembrar e sinalizar, dentre outros. Nos textos
de autores iniciantes foram encontradas 11 ocorrências, sendo que uma delas, expressa pelo
verbo observar é analisada posteriormente ao se tratar das focalizações cognitivas e
perceptivas. As demais ocorrências são expressas pelos verbos apontar, expor, propor e
retratar, cujo uso equivale ao do verbo ilustrar.
Abaixo, alguns excertos destas ocorrências:
(44) Art.AI03
Gilberto Freyre no livro Casa-grande e senzala retrata em um dos capítulos,
denominado por o indígena na formação da família brasileira, questões referentes à cultura
dos índios encontrados no país na época da chegada dos portugueses ao Brasil.
(45) Art.AI044
Clifford Geertz no texto o impacto do conceito de cultura sobre o conceito de homem,
expõe ideias iluministas sobre conceito do ser humano.
(46) Art.AI18
Gadet & Pêcheux (2004) apontam para o fato de que a materialidade simbólica da
língua se dá enquanto espaço discursivo diverso para formulações poéticas como em “[...] o
poeta seria apenas aquele que consegue levar essa propriedade da linguagem a seus últimos
limites”
(47) (...) A autora aponta que as produções de sentidos estão entrelaçadas a diferentes
lugares ocupados pelo sujeito em dada formação social, assim, há a possibilidade de sujeitos,
a partir de uma mesma língua, significarem-se de maneira diferente
Outros verbos que expressam posicionamento relacionam-se com a avaliação de L1/e1
a respeito da veracidade de um conteúdo proposicional. Seu posicionamento pode ser fatual,
contra-fatual ou, ainda, não-fatual. O posicionamento é fatual quando L1/e1 apresenta um
determinado conteúdo proposicional como um fato, comprometendo-se com sua veracidade,
classificando-se nesta categoria os seguintes verbos: atestar, calcular, classificar,
conceituar, confirmar, constatar, declarar, definir, demonstrar, denominar, detalhar,
diagnosticar, dispor, distinguir, elucidar, ensinar, enumerar, esclarecer, estabelecer,
estipular, explicitar, identificar, indicar, informar, orientar, mostrar, planejar, precisar,
reforçar, registrar, reiterar, ressalvar, revelar e verificar, dentre outros. Destes verbos,
encontram-se 10 ocorrências no conjunto de 20 textos de autores iniciantes, apenas com o
verbo definir. O posicionamento é contra-fatual quando a informação citada por L1/e1 é
representada como incorreta e/ou imprecisa. Não foram encontradas ocorrências desta
natureza. Por fim, o posicionamento pode ser também não-fatual quando L1/e1 não expressa
seu posicionamento em relação ao discurso de l2/e2, sendo este representado como não
150
absolutamente seguro acerca de seu conteúdo proposicional, são verbos dessa categoria:
aceitar, achar, acreditar, apostar, arriscar, considerar, discutir, entender, especular,
filosofar, imaginar, opinar, sugerir e supor. Destes, foram encontrados, nos textos de autores
iniciantes, os verbos considerar e discutir com um total de 16 e 2 ocorrências,
respectivamente.
Como a maior parte dos verbos classificados quanto ao potencial
avaliativo também já o foram no que diz respeito ao potencial denotativo, considerou-se
repetitivo colocar os excertos em que ocorrem, pois são os mesmos, e optou-se, apenas por
listar as ocorrências.
No que tange ao potencial avaliativo, além de posicionar-se em relação à atitude de
e2, L1/e1 também pode optar pela seleção de verbos que indicam sua interpretação do
discurso outro, em outras palavras, seleciona os verbos que expressam sua leitura do discurso
outro, de modo que nesta categoria encontram-se dois subgrupos: o dos verbos que
expressam a interpretação do desenvolvimento retórico do discurso do e2 e o daqueles que,
em vez de focar o discurso de e2, focalizam seu comportamento.
No primeiro subgrupo, destacam-se os verbos acrescentar, adiantar, arrematar, citar,
comentar, comparar, complementar, completar, concluir, continuar, enunciar, finalizar,
incluir, mencionar, prosseguir, relatar, repetir, resumir, sintetizar e traduzir, cf. Thompson
e Yiyun (apud Oliveira, 2005), dos quais apresentam-se, nos textos de autores iniciantes,
apenas 4 ocorrências do verbo citar. No segundo subgrupo, destacam-se os verbos acusar,
admitir, alega, adere, adverte, alega, alerta, alegra-se, alfineta, ameaça, ameniza, aplaude,
ataca, avisar, brincar, caçoar, castigar, clamar, comemorar, concordar, confabular,
confessar, confidenciar, contestar, contra-atacar, criticar, decidir, denunciar, derreter-se,
detonar, desabafar, desafiar, disparar, dissimular, elogiar, empolgar-se, espetar, exaltar,
exasperar-se, exclamar, festejar, gabar-se, gritar, incitar, indagar, ironizar, lamentar,
manifestar-se, martelar, oferecer, orgulhar-se, pedir, persistir, pregar, preocupar-se,
queixar-se, propugnar, provocar, queixar, questionar, reagir, rebater, recitar, reclamar,
reconhecer, redargüir, ressalvar, retorquir, retrucar, solicitar e sussurrar, cf. Thompson e
Yiyun (apud Oliveira, 2005). Nos textos de autores iniciantes foram encontradas 7
ocorrências, sendo 3 do verbo criticar e 4 do verbo questionar. Somando-se aos dois
subgrupos propostos por Thompson e Yiyun (1991), Oliveira propõe uma terceira categoria
de verbos aos quais se atribue a expressão de uma interpretação que se volta para o status do
conteúdo proposicional ou autor citado, considerando-se os seguintes verbos: aconselhar,
anunciar, assentir, comandar, critica, decretar, determina, discorda, justificar, pedir,
pontificar, postular, preceituar, preconizar, prever, prescrever, proclamar, prometer,
151
recomendar e sentenciar. No conjunto de vinte textos de autores iniciantes foram
encontrados apenas dois verbos: 1 ocorrência do verbo postular e 3 de criticar.
A classificação dos verbos que indiciam a presença de e2 também contempla mais uma
última categoria denominada “não-interpretativa” Esta categoria abriga verbos que não
realizam uma interpretação por parte L1/e1, sendo, antes, a representação objetivamente
citada de um conteúdo proposicional, tais como os verbos dizer, afirmar, falar. No entanto,
entende-se, no escopo deste trabalho e confrontando-se outras propostas de classificação
(neutros, cf. Charolles, 1976), que tais verbos já são classificados no quadro “verbos de
atribuição de fala”, e dispensam nova classificação, restando ainda anota, coloca, conta,
descreve, escrever, expressar, imprimir, indagar, intitular-se, ler, perguntar, publicar,
reafirmar, redigir, referir-se, replicar, responder e verbalizar. Acredita-se, nesta pesquisa,
que tais verbos não seriam de fato “não-interpretativos”, mas, sobretudo, capazes de ocultar
a interpretação do autor que não a manifesta. É o que propõe Oliveira (2005) quando,
contrariando as classificações já discutidas, estabelece que a escolha de qualquer verbo de
elocução carrega consigo uma avaliação, que ocorre sempre, podendo ser apenas atenuada
ou ocultada, não se manifestando. Há uma distância considerável entre não interpretar e não
manifestar uma determinada interpretação: “É importante salientar que a não expressão da
interpretação do Escritor também é um dado importante para a representação discursiva e,
principalmente, diferente da não interpretação.” Nesta categoria foram encontradas 3
ocorrências: 2 do verbo colocar e uma do verbo expressar.
A classificação dos verbos aqui descrita encontra-se sistematizada no quadro abaixo:
QUADRO 14 - S INTESE DA CATEGORIA "OUTROS VERBOS DE ELOCUÇÃO " - TEXTOS DE AUTORES
INICIANTES
Categorização de Outros Verbos de Elocução cf. Thompson e Yuyin (1991)
Categorias
Nº de ocorrências
Atos de L1/e1
Atos de
e2
Potencial denotativo
Comparação/ contraste
0
Teorização
25
Atitude
3
Textual
20
Mental
25
152
Posicionamento de
e2
Posicionamento
de L1/e1
Potencial avaliativo
Pesquisa
10
Positivo
8
Negativo
0
Neutro
11
Fatual
10
Interpretação:
Contrafatual
0
Não-fatual
18
Desenvolvimento retórico do discurso de e2
4
Comportamento atribuído a e2
7
Status da informação/autor citado
3
Não-manifesta
65
4.2.3 Das ocorrências na categoria de ordem 8 - Indicações de um suporte de
percepções e de pensamentos relatados
Outra categoria de análise elencada nesta pesquisa, diz respeito à ordem n.8
(PASSEGGI et al, 2010 e ADAM, 2011). Mesmo não representando a categoria mais
produtiva no conjunto dos textos observados, esta categoria revela sua importância na
medida em que permite vislumbrar os “efeitos de ponto de vista que repousam numa
focalização perceptiva (ver, ouvir, sentir, tocara, experimentar) ou numa focalização
cognitiva (saber ou pensamento representado” (ADAM, 2011, p. 120). Além disso, importa
considerar as reflexões de Rabatel (2003) acerca do papel dos verbos de percepção em
contextos de apagamento enunciativo. Segundo o autor, o PDV se relaciona muito
intimamente com o discurso reportado, ampliando as discussões acerca das relações entre o
PDV e as formas convencionais do discurso reportado, estabelecendo relações nos planos
sintático (em que o PDV partilha os mecanismos de apagamento enunciativo com o DIL,
com o DI, os mecanismos de subordinação da percepção e pensamentos representados e
com o DD a “quase subordinação” funcionando como complemento essencial de um verbo
sentiendi, como nos casos de parataxe), além disso o fato de que no plano semântico, o
parentesco dos verbos sentiendi com os dicendi fazem do PDV um misto de pensamentos,
153
percepções e falas que o aproximam do DIL ou do DDL, desempenhando um papel decisivo
na expressão das percepções representadas. Por essa razão o autor postula que, mais do
apenas discurso reportado, trata-se de um discurso representado, e é aos modos de
representação dos pensamentos e percepções que o autor se dedica ao discutir o papel dos
verbos de percepção. Essa operação de representação se realiza por meio da dissociação
entre enunciador e locutor. Tal dissociação é uma ferramenta sofisticada e útil na medida em
que contempla os múltiplos casos em que o locutor se distancia de seu próprio dizer ou do
dizer de outro. Essa distância é marcada com um segundo enunciador (e2), sem o qual seria
difícil descrever os implícitos e os pontos de vista envolvidos nas frases sem fala bem como
quaisquer situações em que há o relato de outro.
Rabatel (2003), partindo de Werlich, ainda postula um certo parentesco entre os verbos
dicendi, sentiendi e putandi, de forma que, se bem observadas, as ocorrências dos verbos
observar, acreditar e julgar demonstram bem que em tais contextos poderiam também
ocorrer outros verbos tradicionalmente atribuídos à introdução da proposição de um outro
enunciador, tais como afirmar, dizer, falar, etc.
O quadro abaixo demonstra as poucas ocorrências desses verbos: de um total de 10
ocorrências, apenas 1 denota focalização perceptiva, e outras
denotam focalização
cognitiva.
QUADRO 15 - I NDICADORES DE UM SUPORTE DE PERCEPÇÃO E PENSAMENTOS RELATADOS – TEXTOS
DE AUTORES INICIANTES
Indicativo de
focalização perceptiva
ver
Art9
1 Art1
1 Art9
Art.16
Art 20
saber
0
1
0
0
1
Indicativo de focalização cognitiva
entender acreditar observar julgar
4
0
0
0
2
0
0
0
1
0
0
1
4
2
0
Total
1
0
0
0
1
5
3
0
0
8
Abaixo, encontram-se listadas as ocorrências dos verbos em excertos retirados do
corpus:
(48) Art.AI011
Magalhães (2001, p.217) entende que uma pessoa que não conhece a escrita também
pode ser detentora de ricos sistemas de valores e crenças mediadas pela língua falada.
(49) Art.AI04
Contrária às ideias iluministas, a antropologia “tem tentado encontrar seu caminho
para um conceito mais viável sobre o homem, no qual a cultura e a variabilidade cultural
possam ser mais levadas em conta” (Geertz, 1989, p.27), porém, o autor também julga ser
154
necessário ter cuidado ao direcionar os estudos referentes ao ser humano, visto que este
possui uma complexidade imensa que ainda não se encontra ordenada, de forma que há o
perigo de perder por completo a perspectiva de homem.Art6
(50) Art. AI09
No entanto, poucos pais sabem o quanto é importante o brincar para o
desenvolvimento físico e psíquico dos seus filhos.
(51) Art.AI20
Camacho (2001, p. 72) acredita que “uma consequência drástica desse conflito pode
ser a rejeição tática da variedade padrão, em termos de ensino de língua e de outros valores
da classe dominante. Na prática, tudo redunda em evasão e repetência escolar.T2) O autor
observa que “além de ser anacrônica como teoria linguística, a Gramática Tradicional
também se constitui com base em preconceitos sociais que revelam o tipo de sociedade em
que ela surgiu [...]” (idem, p. 67).
Em todos os casos fica evidente a ideia de que o relato de uma determinada atividade/
percepção é feito por meio de um verbo ligado à percepção, nos casos acima, em processos
mentais. Apesar desta aparente uniformidade, aponta-se aqui uma diferença fundamental,
ligada à rotina citacional: no caso dos itens (48), (49), e (50), os verbos “entende, julga e
fala” introduz conteúdos proposicionais resultantes da inferência de L1/e1, uma vez que se
apresentam em PDV narrado, sendo tal conteúdo imputado aos enunciadores segundos,
diferenciando-se, dos verbos acreditar e observar (em 51) que introduzem diretamente a fala
dos enunciadores segundos num PDV representado, em discurso direto. O desengajamento
parece ser maior em (51) do que em (48), (49), e (50), de modo que se poderia postular um
continuum entre o maior nível de engajamento até o maior nível de desengajamento.
4.3. Marcas da RE em textos de autores especialistas
Os textos de autores especialistas parecem também caracterizar-se por remissões ao
discurso de outro se não excessivas, ao menos abundantes, conforme se observará na
apresentação dos dados encontrados nos vinte textos de autores especialistas (mestres,
doutores, mestrandos e doutorandos) que compõe o corpus. Na sequência, apresentam-se os
dados obtidos no conjunto de vinte textos.
4.3.1 Das ocorrências na categoria de ordem 5 – Diferentes Representações da Fala
No que diz respeito ao discurso reportado, categoria de ordem 5 – Diferentes
Representações da Fala (Passeggi et al., 2010), O discurso indireto aparece como a forma
preferida dos autores especialistas, em conformidade aos achados de Boch e Grossmann
(2002). Mas, ao mesmo tempo, abunda também o discurso direto, bem como as ilhas
155
textuais, e, uma categoria elencada em Boch e Grossmann (2002) aparece ainda que
discretamente, trata-se da “evocação”. No quadro abaixo foram sistematizadas as
ocorrências do discurso reportado em textos de especialistas:
QUADRO 16 - D IFERENTES TIPOS DE REPRESENTAÇÃO DA FALA EM TEXTOS DE AUTORES
ESPECIALISTAS -
Diferentes tipos de representação da fala
Ilha
textual
DI
DD
aspas sem Evocação
autoria
Total
%
Art.1
2
2
4
1
0
9
3,75%
Art. 2
0
6
8
0
0
14
5,83%
Art.3
0
1
1
0
1
3
1,25%
Art.4
1
5
5
0
0
11
4,58%
Art.5
0
1
3
0
1
5
2,08%
Art.6
2
10
10
0
0
22
9,17%
Art.7
3
4
3
0
0
10
4,17%
Art.8
4
6
6
0
0
16
6,67%
Art.9
6
1
4
0
0
11
4,58%
Art.10 14
5
2
0
0
21
8,75%
Art.11 9
3
3
1
1
17
7,08%
Art.12 0
10
2
1
0
13
5,42%
Art.13 2
0
6
0
1
9
3,75%
Art.14 3
2
3
0
0
8
3,33%
Art.15 5
3
4
0
0
12
5,00%
Art.16 0
1
3
0
0
4
1,67%
Art.17 1
5
8
0
0
14
5,83%
Art.18 6
7
6
0
1
20
8,33%
Art.19 2
3
2
0
0
7
2,92%
Art.20 2
7
4
0
1
14
5,83%
Total
62
82
87
3
6
240
100,00%
%
25,83% 34,17% 36,25% 1,25%
2,50%
156
Como se pode ver no quadro acima, o discurso direto se equipara ao discurso indireto
(ou reformulação no sistema autor-data) em preferência pelas formas citacionais,
respondendo juntas por mais da metade das ocorrências das remissões ao discurso outro,
com ligeira predominância do discurso direto contrariando os achados da pesquisa de Boch
e Grossmann (2002) em que esta categoria se mostrou pouco representativa em textos de
especialistas. As ilhas textuais são menos frequentes em textos de especialistas do que em
textos de graduandos, uma possível explicação para isso é o fato de que a ilha representa um
mecanismo seguro da difícil aprendizagem de expressar sua voz utilizando a de outro, seria,
se se pudesse dizer assim, uma transição da citação em discurso direto para o discurso
indireto em que o esforço de reformulação é bem menor, exercendo para os graduandos o
mesmo papel que o discurso indireto e a reformulação tem para o especialista.
As outras duas formas de representação do discurso outro são bem pouco
representativas na amostra: nos vinte textos observados encontram-se 1,25% de citações
aspeadas sem menção de autoria ou próxima às máximas e provérbios, enquanto 2,50%
foram classificadas como “evocação”. As citações aspeadas sem menção de autoria se
aproximam muito daquilo que Maingueneau (2005) chama de “particitação”: trata-se de um
mecanismo de apresentação de um enunciado cuja fonte é indefinida, um sujeito universal,
“um hiperenunciador”, ou ainda uma instância não nomeada, mas reconhecida pelos
interlocutores por serem membros da mesma comunidade ou tradição.
A evocação, a menos recorrente das formas de representação da fala, é definida, no
escopo desta pesquisa, como um mecanismo textual-discursivo que permite deixar os
conhecimentos compartilhados em segundo plano, inscrevendo a pesquisa num espaço
epistêmico identificável. Marcada pela ausência de marcas introdutoras do discurso
reportado, permite fazer apenas uma alusão a autores e/ou teorias, sem necessariamente
reformular.
Ao contrário do subgrupo anteriormente apresentado, o subgrupo AE parece
apresentar mais equilíbrio nas preferências pelas formas citacionais. Estes dados foram
sistematizados no quadro abaixo:
Art
Ilha textual % no total de
citações
DD % no total de
citações
DI % no total de
citações
AI01
22,22%
44,44%
22,22%
AI 02
0,00%
57,14%
42,86%
AI03
0,00%
33,33%
33,33%
AI04
9,09%
45,45%
45,45%
157
AI05
0,00%
60,00%
20,00%
AI06
9,09%
45,45%
45,45%
AI07
30,00%
30,00%
40,00%
AI08
25,00%
37,50%
37,50%
AI09
54,55%
36,36%
9,09%
AI10
66,67%
9,52%
23,81%
AI11
52,94%
17,65%
17,65%
AI12
0,00%
15,38%
76,92%
AI13
22,22%
66,67%
0,00%
AI14
37,50%
37,50%
25,00%
AI15
41,67%
33,33%
25,00%
AI16
0,00%
75,00%
25,00%
AI17
7,14%
57,14%
35,71%
AI18
30,00%
30,00%
35,00%
AI19
28,57%
28,57%
42,86%
AI20
14,29%
28,57%
50,00%
No entanto, parece não haver uma correlação específica entre uma distribuição mais
uniforme das formas citacionais e projeção da voz autoral, ou seja, pode haver maior ou
menor projeção desta voz, independentemente de maior ou menor ocorrência de uma forma
citacional específica ou mesmo de uma homogeneidade nas ocorrências.
Abaixo apresentam-se alguns exemplos, mantendo-se a marcação adotada
anteriormente, qual seja, a porção textual em discurso direto apresenta-se em itálico, em ilha
textual apresenta-se sublinhada, e em discurso indireto apresenta-se em negrito:
(52) Art.AE07
A este respeito Guimarães (2005) propõe pensar a semântica num campo
epistemológico que permite ver que a linguagem fala de algo e o que se diz é construído
na linguagem. Nessa perspectiva, fica configurado um novo modo de ver a relação entre
sentido, sujeito e língua pela enunciação, e por seguinte, pela linguagem. Ao questionar a
transparência da linguagem, o autor constitui um lugar que se possa considerar a história do
sentido no tratamento da enunciação. Nesse gesto, o semanticista mantém diálogo com a
Análise de Discurso e inclui a história nos estudos enunciativos. Desse modo, o linguista
considera a “enunciação como um acontecimento no qual se dá a relação do sujeito com a
língua” (2005, p. 8). Aqui o sujeito não é a pessoa empírica que se põe a falar, pois, para o
autor, “enuncia-se enquanto ser afetado pelo simbólico e num mundo vivido através do
simbólico” (idem, p.11).
(53) Art.AE08
158
Bisinoto destacou que na manifestação concreta de diferentes falares, da
variedade linguística, há fatores sociais que afetam tanto linguística como
politicamente os comportamentos e as relações dos habitantes, interferindo muitas
vezes na própria estrutura social. Sendo assim, a atitude linguística e a social fundemse nas ações e reações dos indivíduos. Segundo a autora, as avaliações (manifestas e
encobertas; subjetivas e objetivas) mais ou menos conscientes “têm a propriedade de
fundar e governar tanto as relações de poder quanto o prestígio e desprestígio das formas
lingüísticas, estabelecendo seletividades, evidenciando preconceitos.” Por isso, adota o
termo “atitudes sociolinguísticas” por entender que melhor se aplica ao objetivo de descrever
a complexidade do procedimento dos falantes. E é com esse conceito que trabalhamos em
nossa pesquisa por ser o que melhor se aplica aos nossos objetivos.
(54) Art.AE14
A QUESTÃO DO POSICIONAMENTO DO SUJEITO NO DISCURSO ESTEREOTIPADO DO
COLONIALISMO DENUNCIA A FIXAÇÃO (ENQUANTO RACISMO) DE UMA CONSCIÊNCIA DO CORPO
QUE NEGA A SI MESMO: “[...] o Negro não deve mais encontrar-se colocado diante deste
dilema: embranquecer ou desaparecer, mas deve poder tomar consciência de uma
possibilidade de existir” (FANON, 2006, p. 131).
O ESTEREÓTIPO DO NEGRO ELABORADO PELO BRANCO IMPEDE A CIRCULAÇÃO E
ARTICULAÇÃO DO SIGNIFICANTE DA RAÇA, A NÃO SER EM SUA FIXAÇÃO ENQUANTO RACISMO.
FANON DESCREVE O EFEITO DESSE PROCESSO SOBRE A CULTURA COLONIZADA. Para ele, o
sujeito marginalizado pela sua condição de raça e escravidão deve tomar consciência
de si, de sua história e mobilizar-se, ampliando, assim, o sistema de referências pelo
qual conseguirá reverter a destruição dos seus valores culturais.
(55) Art. AE15
TAMBÉM A LINGUAGEM QUE SE USA É A LINGUAGEM QUE O ESPETÁCULO AUTORIZA E
DISSEMINA. Segundo Debord (2003), a pessoa que já está submetida às normas espetaculares
“seguirá no essencial a linguagem do espetáculo, porque é a única que lhe é familiar: aquela
em que lhe ensinaram a falar” (DEBORD, 2003:33). O autor argumenta, ainda, que
existem os que desejam mostrarem-se inimigos da sua retórica, mas, inevitavelmente
acabam empregando a sua (...) o sujeito, sem perceber, emprega sua sintaxe, quer dizer,
ao mesmo tempo em que ele combate e diz ser necessário combater os excessos da
mídia, não se dá conta de que já está impregnado pelo dizer dela.
(56) Art. AE18
Para Bakhtin (2003a), quando falamos ou escrevemos, temos em vista um
interlocutor, com um intuito (querer dizer) discursivo. Este, por sua vez, determina “a
escolha do gênero do enunciado e a escolha dos procedimentos composicionais e, por último,
dos meios linguísticos, isto é do estilo do enunciado”. A partir desse argumento, Bunzen
& Rojo (2005, p.86) afirmam que, da mesma maneira, os autores de livros didáticos e
os agentes envolvidos em sua produção (editores, autores, professores etc.) produzem
enunciados num gênero discursivo, “que possui temas (objetos de ensino), uma
expectativa interlocutiva específica (professores e alunos, editores, avaliadores) e um
estilo didático próprio” (grifo dos autores). Desse modo, os autores (e editores) dos livros
selecionam os objetos de ensino, orquestrando gêneros de outras esferas na elaboração do
livro didático, cuja função social é “re(a)presentar, para cada geração de professores e
estudantes, o que é oficialmente reconhecido ou autorizado como forma de conhecimento
sobre a língua(gem) e sobre as formas de ensino-aprendizagem” (p.87). Para Bunzen &
Rojo (2005), então, compreender o LDP como um gênero discursivo é considerar sua
própria historicidade. Assim, não se trata de compreendê-lo como um agregado de
propriedades sincrônicas fixas, mas sim de observar suas transformações, característica
inerente ao dinamismo das atividades humanas.
159
Em todos os fragmentos selecionados acima os autores combinam duas ou mais formas
de representar o discurso outro, são todos fragmentos de artigos que apresentaram relativo
equilíbrio na ocorrência das três principais formas citacionais dentre as elencadas: o discurso
direto, indireto e a ilha textual. Nos quatro fragmentos observa-se a projeção da voz de e2,
ora com o apagamento de L1/e1, ora integrando o discurso de e2 ao de L1/e1. Mesmo quando
a voz de L1/e1 se projeta, não chega a se configurar como subenunciação de e2 pois deixa
traços de seu posicionamento em seu discurso que indiciam sua adesão ao discurso de e2.
Todos os fragmentos contêm uma porção textual em negrito correspondendo à zona textual
em que L1/e1 reconstrói, segundo seu posicionamento, o enunciado de e2 tendo em vista
uma reposição deste enunciado em uma nova enunciação, a partir do que se construiu em
outra circunstância discursiva.
Os fragmentos selecionados são exemplares desta observação acima. No fragmento
(A) o autor apesar de iniciar reformulando o enunciado de e2, este permanece presente
ocupando posição central (pela remissão inicial ao sistema autor-data), e pelas remissões
contínuas nos fragmentos seguintes em que aparentemente L1/e1 dominaria a posição
enunciativa, o que não acontece de fato a partir de alguns indícios: a remissão a e2, e,
sobretudo, sua adesão ao conteúdo do enunciado de e2, de tal forma que e2 tem sua voz
reproduzida por meio do discurso direto e da ilha textual, bem como a marcação das aspas.
Observa-se o mesmo procedimento nos fragmentos (54) e (55) com uma ligeira diferença:
nestes dois fragmentos L1/e1 se apresenta, nas porções textuais, em sobrenunciação,
apresentando seu PDV, ainda que ancorado nas considerações de e2, na verdade e2 é
convocado a validar o PDV de e2, ao contrário do que ocorre em (56), cuja porção textual
final foi realçada com sombras. Neste fragmento, L1/e1 apresenta seu PDV numa porção
textual final, após a apresentação do PDV (representado e narrado) de e2, o que sugere que
seu PDV decorre do anterior.
O que estes segmentos apontam é, evidentemente, a existência de zonas textuais em
que a projeção da voz de e2 prevalece, em detrimento do apagamento da voz de e1, seja por
meio do discurso indireto, ilha textual ou discurso direto, decorrendo desta observação a
ideia de que L1/e1 ora assume a imputação do conteúdo proposicional de um enunciado a
e2, ora não assume nem imputa, apenas se ausenta da enunciação.
Veja-se outro exemplo:
(57) Art. AE05
160
Há uma insistência por grande parte dos teóricos de terminologia sobre a
necessidade de um termo representar um único conceito. Isso significa que a ambigüidade
deve ser evitada nas LSP (línguas para fins específicos), ao menos segundo a visão da TGT
(Teoria Geral da Terminologia). Desse modo, o uso de palavras da língua geral deve ser
evitado no âmbito profissional, pois estas, como têm caráter polissêmico, colocam em risco
a eficiência da comunicação. Por isso, o terminólogo procura termos funcionais e
organizados em um determinado domínio e, em caso de carência, cria termos novos com
vistas a implantá-los em uso. Essa implantação pode acontecer com a elaboração de
dicionários, vocabulários e glossários especializados, ou seja, o objeto aplicado da
terminologia. Tal prática é rigorosa e sistemática, devendo, pois, respeitar vários princípios
entre os quais podem ser citados: i) os termos têm duas vertentes indissociáveis: forma e
conteúdo; ii) deve haver uma relação unívoca entre forma e conteúdo do termo; iii) o termo
situa-se num campo conceptual determinado um conceito mantém relação com os demais
que constituem um campo temático; as denominações pertencem a um conjunto de
possibilidades estruturais (CABRÈ, 1993, p. 266).
Como já fora afirmado anteriormente, a homogeneidade da distribuição de formas
citacionais não parece estar relacionada à maior ou menor projeção da voz autoral de L1/e1,
de modo que o fragmento (57) acima, retirado de um artigo cuja distribuição das formas
citacionais foi comparativamente menos homogênea, com predominância de porções em
discurso direto, apresentou várias outras zonas textuais em que a projeção da voz autoral de
L1/e1 prevalece, é o caso do excerto acima, em que o enunciado de e2, reformulado, é
apresentado de tal forma que, não fosse pela indicação da presença de e2 (revelada na
remissão ao sistema autor-data, entre parênteses e ao final do texto), a recuperação do
diálogo entre vozes só seria possível aos experts da área em estudo.
Assim, no geral, observa-se neste subgrupo índices razoáveis de remissão ao discurso
outro, cumprindo, no entanto, papéis diversos daquele observado no subgrupo anterior.
4.3.2 Das ocorrências na categoria de ordem 6 – Indicadores de Quadro Mediador
Nesta categoria foi encontrada uma grande quantidade de ocorrências das marcas de
não-assunção da RE, em quantidade muito superior ao esperado. A soma de todos os
indicadores de quadros mediadores resultou ligeiramente superior ao encontrado no grupo
anterior, dos textos de autores iniciantes. Essa soma, superior em números absolutos, deve
ser relativizada pela quantidade superior de laudas dos textos de autores especialistas, o
dobro de laudas médias encontradas em textos de iniciantes. Desta forma,
proporcionalmente, a quantidade de ocorrências é aproximadamente 50% menor em textos
de autores especialistas, embora em vários aspectos observa-se que a escrita deste grupo
161
difere apenas um pouco do grupo anterior, conforme evidenciado no quadro abaixo,
sistematizando os dados encontrados:
162
QUADRO 17 - I NDICAÇÕES DE QUADROS M EDIADORES EM TEXTOS DE AUTORES ESPECIALISTAS
Para Segundo Conforme De acordo Modalização Modalizações deônticas Verbos de atribuição de
Art
X
X
como X
com
com fut.pret. e/ou epistêmicas
fala:
Reformulações Oposições Total
%
AE01
1
5
0
1
2
1
0
0
0
10
5,71%
AE02
1
5
0
2
3
0
1
0
0
12
6,86%
AE03
0
0
1
2
0
1
0
0
0
4
2,29%
AE04
0
2
2
0
3
2
1
0
0
10
5,71%
AE05
1
2
0
1
0
2
0
2
0
8
4,57%
AE06
1
9
4
3
3
1
0
2
1
24 13,71%
AE07
0
0
1
0
1
0
1
3
0
6
3,43%
AE08
0
2
1
5
1
0
4
0
0
13
7,43%
AE09
0
0
1
0
0
0
1
0
0
2
1,14%
AE10
0
6
0
2
0
0
5
0
0
13
7,43%
AE11
0
5
0
1
1
0
1
0
0
8
4,57%
AE12
2
4
1
3
0
1
2
0
0
13
7,43%
AE13
0
2
6
1
0
0
0
0
0
9
5,14%
AE14
2
0
0
0
0
0
0
0
0
2
1,14%
AE15
0
5
0
3
5
0
3
0
0
16
9,14%
AE16
0
0
0
1
0
0
0
0
0
1
0,57%
AE17
3
2
0
0
0
0
1
0
0
6
3,43%
AE18
3
4
0
0
0
0
3
0
0
10
5,71%
AE19
0
1
0
0
0
0
2
0
0
3
1,71%
AE20
1
1
0
0
3
0
0
0
0
5
2,86%
Total
15
55
17
25
22
8
25
7
1
175 100,00%
%
8,57%
31,43%
9,71%
14,29%
12,57%
4,57%
14,29%
4,00%
0,57%
163
A marca evidenciadora de quadro mediador mais encontrada foi a fórmula segundo
X... respondendo por quase um quarto das ocorrências listadas, seguida por suas variantes e,
em quantidade igualmente expressiva, os verbos de atribuição de fala, corroborando os
resultados da categoria de ordem 5, em que se encontram abundantes ocorrências de
representação do discurso outro por meio do discurso indireto e direto com a presença dos
verbos dicendi, bem como dos sentiendi e putandi.
Observe-se no quadro abaixo alguns dos exemplos transcritos do corpus:
Marca
Excerto
Linguística
Para X ....
58) Art.AE05
Boulanger (1995) e Campos (1992) atribuem a termo o conceito de signo
lingüístico definido por Saussure, ou seja, conceito ou noção corresponde
ao significado e o termo ou denominação corresponde ao significante. Já
para Cabré (op. cit) termo é um signo tridimensional constituído de forma,
significado e referente, sendo que o conceito é anterior ao termo o que é
afirmado também por Barbosa (op. cit), segundo a qual o conceito se situa
num nível pré-lingüístico e pré-semiótico de designação e pode até existir
sem esta última.
59) Art.AE12
Em princípio, não haveria problema quanto à literatura ou crítica canônica.
O questionamento, na base de todas as críticas que se faz a esse sistema é a
reprodução quase automática que se faz dos mesmos materiais e discursos.
Para Kothe (1997, pp. 107-108), o problema reside numa prática que
privilegia, mais do que a vigência do cânone, a vigência de uma interpretação
cristalizada pelo cânone crítico, que reproduzida indefinidamente emperra o
surgimento de novas críticas, podendo decorrer daí a noção de inércia que
contamina a noção que temos do ensino de Literatura.
Segundo X 60) Art.AE06
Num outro pólo, observa-se outra discussão, que contempla um forte
questionamento dos saberes dominantes e valoriza os saberes populares.
Tal perspectiva, segundo Monteiro (2001), liga-se às pedagogias
libertadoras, as quais, muitas vezes, operaram um esvaziamento da
dimensão cognitiva do ensino. Em outras palavras, uma supervalorização
dos saberes populares teria produzido o efeito contrário ao desejado: ao
invés de proporcionar a inclusão dos grupos excluídos, teria aprofundado
ainda mais as distâncias entre os grupos.
61) Art.AE11
164
O livro Maria foi publicado em 1998, em uma segunda edição mais
completa que da primeira de 1988. Um livro segundo explica
modestamente o poeta José Craveirinha, no “Pórtico” dessa obra, é
resultado “do que fui anotando ao longo do tempo, desde a lancinante
“partida” da Maria, em Outubro de 1979, mais para tentar preencher as
lacunas da saudade do que fazer obra literária” (p. 8). Trata-se de uma
“longa e interminável elegia, réquiem musicado quotidianamente pela
morte de sua mulher” Maria, segundo opinião de Ana Mafalda Leite (In:
Via atlântica 5, 2002,p. 25).
De acordo 62) Art. AE06
com X ....
De acordo com Cabré (1993, p.83) “La Terminologia es una materia
interdisciplinaria que tiene como objeto fundamental las palabras
especializadas del lenguaje natural. Y junto a la lingüística, participa en
ella otras disciplinas científicas.” A terminologia apresenta dimensão
lingüística e comunicativa. Os especialistas de cada campo específico
usam-na como instrumento de comunicação independentemente de sua
adequação dentro do sistema lingüístico. Já os terminólogos, cuja atividade
é condicionada pelo contexto, têm-na como objeto de trabalho e dedicamse à compilação, descrição, tratamento e criação de termos. Ao contrário
da lingüística geral e, conseqüentemente, da lexicologia, contrárias à
intervenção e à prescrição da linguagem, a terminologia exerce às vezes
um papel prescritivo, ou seja, contribui para a fixação de formas
normalizadas.
Conforme
X ...
63) Art. AE03
Examinamos as proposições inovadoras para o ensino de literatura em dois
documentos curriculares: na Proposta Curricular de Língua Portuguesa –
2º grau e o guia Subsídios para Implementação da Proposta Curricular de
Língua Portuguesa – 2º grau. Os textos curriculares analisados permitiramnos aventar uma hipótese que não fora considerada no início da pesquisa,
mas surgira ao longo dos estudos: os documentos curriculares,
apresentados como um discurso pedagógico, tendem às mesmas práticas,
realizadas por docentes, de apropriação do resultado das discussões
científicas, tomando aspectos dessas discussões em partes e deslocando-as
do todo de que fazem parte, em práticas nas quais, conforme Chartier
(2007), os pesquisadores não se reconhecem.
64) Art. AE04
Baseando-nos em estudos do cotidiano, conforme de Certeau (1994), é
possível delinearmos uma historicidade das práticas, as quais quando
simplesmente descritas parecem ocorrer deslocadas da vivência cotidiana
e dessa maneira acabam artificializadas. .
165
Ainda que se relativize esse resultado, tomando-o como proporcionalmente menor, se
comparado ao grupo anterior, ainda representa uma quantidade significativa de ocorrências
de vozes externas introduzidas por meio de indicações de quadros mediadores, num cenário
em que tal não é esperado, ou ao menos espera-se maior mestria no domínio do
gerenciamento das vozes, isto porque excessivas remissões às vozes externas com o auxílio
de mediativos conferem ao texto o aspecto de “mosaico”, com delimitações relativamente
precisas dos limites dos enunciados pertencentes às diversas vozes sem que haja fusão entre
elas.
Apesar do aspecto de mosaico, em que se delineiam nitidamente os contornos dos
enunciados pertencentes a e2 e a L1/e1, estes exemplos também apresentam itens com uma
ligeira diferenciação: em (59), (60), (63), (64), o pdv de L1/e1(marcado pelo grifo) se
constrói a partir de um determinado conteúdo proposicional pertencente a e2 ou, ainda, se
constrói a priori e apenas introduz, em PDV’s narrados, o ponto de vista de e2 que corrobora
o de L1/e1, ou seja, nestes casos tem-se os típicos usos de uma voz externa com a finalidade
de reforçar seu próprio ponto de vista ou apresentar um argumento de autoridade que ampara
seu ponto de vista. Tal não ocorre nos segmentos (58) e (61), em que o fragmento transcrito
apresenta única e exclusivamente os PDV’s representados de e2. A ausência e total
apagamento da voz autoral de L1/e1 nestes dois exemplos (58) e (61), poderiam corroborar
a ideia de que, a despeito do recurso às vozes externas por meio dos indiciadores de quadros
mediadores, o efeito final é de menos desengajamento/ distanciamento em (59), (60), (63),
(64), e mais desengajamento/distanciamento em (58), sendo igualmente possível (tanto
quanto já apresentado anteriormente, ver pág. 150) num continuum que se estabeleceria entre
o mais engajado e o menos engajado. Essa perspectiva corrobora a ideia de que é no
continuum que se estabelecem as posturas de sub-co e sobrenunciação, que serão discutidas
adiante.
Uma das marcas linguísticas de maior ocorrência detectada nos textos observados é,
sem sombra de dúvida (embora significativamente menos recorrente se comparada com as
ocorrências em textos de autores iniciantes) os verbos de atribuição de fala, sendo as formas
ditas neutras (cf. Charolles, dizer e afirmar) as mais recorrentes: o verbo afirmar
corresponde à metade das ocorrências, num volume de 61,29% enquanto dizer, falar e
parecer correspondem a 19,35%, 3,23% e 12,90%, respectivamente. Como pode ser
verificado no quadro abaixo, a ocorrência destes dois últimos verbos é bem pouco
significativa, se comparados com os verbos afirmar e dizer:
166
QUADRO 18 - VERBOS DE ATRIBUIÇÃO DE FALA EM TEXTOS DE AUTORES ESPECIALISTAS
Verbos de atribuição de fala
Art.
afirmar
dizer
falar
parece
Total
AE01
1
0
0
0
1
AE02
1
0
0
0
1
AE03
2
0
0
0
2
AE04
1
0
0
0
1
AE05
0
0
0
0
0
AE06
0
0
0
0
0
AE07
0
1
0
0
1
AE08
0
0
0
2
2
AE09
1
0
0
0
1
AE10
5
0
0
0
5
AE11
0
0
0
0
0
AE12
2
0
0
0
2
AE13
0
3
0
0
3
AE14
0
0
0
0
0
AE15
2
1
0
0
3
AE16
0
0
1
0
1
AE17
1
0
0
0
1
AE18
2
0
0
0
2
AE19
2
1
0
0
3
AE20
0
0
0
2
2
Total
19
6
1
4
31
%
61,29%
19,35
3,23
12,90
Na somatória entre esses verbos e os demais delocutivos, 137 ocorrências, observa-se
que os neutros representam quase um quarto das ocorrências (22,63%), indiciando uma
escrita que se aproxima mais da responsabilização, uma vez que grande parte dos demais
verbos delocutivos foram considerados não-neutros, ainda que associados ao discurso
relatado, encontrados uniformemente tanto no discurso direto quanto no indireto, e, mais
raramente, acompanhando a ilha textual. Apresenta-se, abaixo alguns exemplos dos verbos
de atribuição de fala (marcados em negrito) retirados do corpus:
Introduzindo discurso direto:
167
(65) Art.AE01
Bachelard em O ar e os sonhos (1990, p. 03) afirma que “é preciso
recensear todos os desejos de abandonar o que se vê e o que se diz em favor do
que se imagina”. Desta forma, o filósofo acredita que é preciso se deslocar do
conhecido para o lugar do desconhecido. A ponte para este deslocamento é a
imaginação, “imaginar é ausentar-se, é lançar-se a uma vida nova”. Através dela
o sujeito se lança ao exterior em um movimento debreante para, em seguida, em
situação oposta de embreagem, se constituir como sujeito poético, como ser que
se torna palavra. Barros, ao propor uma autobiografia, mas composta de memórias
inventadas, busca um ausentar-se de si, um lançar-se em outra vida que não aquela
vivida anteriormente para, em seguida, se representar em simulacro na enunciação.
Introduzindo o discurso indireto:
(66) Art.AE04
No que tange ao signo toponímico, Dick afirma ser possível acatar, em princípio, a
noção saussureana de arbitrariedade, contudo é necessário observar também que o
mesmo signo toponímico é ao mesmo tempo marcado por uma motivação. Do ponto de
vista funcional ele é duplamente marcado. (...)
(67) Art. AE19
Assim, tomamos como ponto de partida as ideias de Authier-Revuz, que afirma que
todo texto possui uma participação discursiva do “outro”, isto é, toda e qualquer construção
discursiva possui constitutivamente um atravessamento do outro, sendo que este pode ser ou
não marcado no texto original, isto é, pode ou não ser demonstrado a quem aquele que
escreve recorre para dizer o que diz.
Introduzindo um enunciado de e2 em ilha textual:
(68) Art.AE09
É o que nos permite afirmar com Perry Anderson (1999) sobre o fato do
Pósmodernismo ter surgido “da combinação de uma ordem dominante desclassificada, uma
tecnologia mediatizada e uma política sem nuances” (p. 108).
(69) Art. AE10
“RECORDAR É SOFRER DUAS VEZES”, nos afirma o ditado popular, mas apenas
recordar sem registrar os eventos é também sofrer por não partilhar com outros tais eventos.
Recordar “é sofrer quando aquele que registra a sua narrativa (o seu recordo) não opera a
ruptura entre sujeito e objeto”, afirma João Alexandre Barbosa no prefácio de Memória e
sociedade, de Ecléa Bosi (1994, p. 13)
Identificado como um verbo neutro (cf. Charolles, 1976), afirmar tem um alto índice
de ocorrência neste subgrupo, e em todos os segmentos listados acima introduz uma voz
externa que domina a cena enunciativa, o PDV de e2. Em nenhum desses excertos L1/e1
gerencia o jogo de vozes de modo que a sua própria voz se projete em posição de domínio.
168
Apesar desta observação, alguns destes fragmentos percentem a textos que, no todo,
apresentam com mais frequência outros fragmentos em que há maior projeção da voz
autoral, conferindo, assim, uma distribuição mais uniforme da presença da voz de L1/e1
globalmente no texto. Além disto, alguns L1/e1 demonstram maior habilidade no manejo
das vozes na cena enunciativa, é o caso, por exemplo dos fragmentos (65) e (68) que
apresentam seus PDVs em posição de coenunciação com e2.
Quanto aos outros verbos de elocução, são ainda mais variados do que nos textos de
iniciantes, mas se mostraram, igualmente, capazes de revelar inúmeras questões relacionadas
aos dois aspectos: o potencial denotativo e o de avaliação. O verbo apontar foi o de maior
ocorrência, 13, enquanto outros verbos tiveram ocorrências que variavam entre 8 a 1, como
se vê no quadro abaixo:
169
QUADRO 19 - O CORRÊNCIA DE OUTROS VERBOS DE ATRIBUIÇÃO DA FALA EM ARTIGOS PRODUZIDOS POR AUTORES EXPERIENTES
Verbo
alertar
AE1
1
AE2
1
AE3
1
AE4
0
AE5
0
AE6
0
AE7
0
AE8
0
AE9
0
AE10
0
AE11
0
AE12
0
AE13
0
AE14
0
AE15
0
AE16
0
AE17
0
Art18
0
Art19
0
Art20
0
Total
3
%
anunciar
1
1
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
2
1,89%
apontar
0
0
0
0
0
4
0
1
0
0
0
3
0
0
3
0
0
0
0
1
12
11,32%
apresentar
0
0
0
3
0
0
0
1
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
4
3,77%
argumentar
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
2
0
1
0
0
0
3
asseverar
assumir
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
0
0
1
0
0
0
0
0
1
1
2,83%
0,94%
atrelar
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
1
0,94%
atribuir
0
0
0
0
1
2
0
1
0
0
0
1
0
0
0
0
0
0
0
0
5
4,72%
citar
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
chamar
comentar
1
0
2
0
0
0
0
0
0
0
1
0
0
0
0
0
0
0
0
1
0
0
1
0
2
0
0
0
2
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
9
1
0,94%
8,49%
comparar
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
0
0
0
0
0
0
0
0
1
0,94%
conceber
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
1
0,94%
confirmar
0
0
0
0
0
1
0
0
0
0
0
1
0
0
0
0
0
0
0
0
2
1,89%
considerar
0
0
0
0
0
2
3
0
0
1
0
0
0
0
0
0
0
0
0
2
8
7,55%
constatar
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
1
0,94%
contar
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
0,94%
contrapor-se
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
2
2
1,89%
corroborar
0
0
1
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
0,94%
defender
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
2
0
0
0
0
0
0
1
0
0
3
2,83%
definir
0
0
1
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
0,94%
demonstrar
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
0
0
0
1
1
3
2,83%
denunciar
0
0
0
0
0
1
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
0,94%
descrever
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
0
0
0
0
0
1
2
1,89%
2,83%
0,94%
0,94%
170
desenvolver
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
0
0
0
1
0,94%
destacar
0
0
0
0
0
0
0
1
0
0
0
0
0
0
0
0
1
2
0
0
4
3,77%
discutir
0
0
0
1
0
1
1
0
0
1
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
4
3,77%
distinguir
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
1
0,94%
enfatizar
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
0
0
1
0,94%
ensinar
1
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
0,94%
esclarecer
0
0
0
1
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
2
0
0
3
2,83%
examinar
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
0
0
0
0
0
0
0
0
1
0,94%
explicar
1
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
0,94%
ponderar
0
0
0
0
0
0
0
0
1
0
1
0
0
0
0
0
0
0
0
0
2
1,89%
preferir
0
0
0
0
0
0
0
1
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
0,94%
propor
2
1
0
0
0
0
1
0
0
0
0
0
0
1
0
0
0
0
0
1
6
5,66%
questionar
0
0
0
0
0
1
1
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
3
2,83%
reconhecer
0
0
0
0
0
1
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
0,94%
referir-se
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
0,94%
ressaltar
0
0
0
2
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
2
1,89%
revolucionar
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
0
0
0
0
0
0
1
0,94%
selecionar
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
0
0
1
0,94%
sugerir
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
1
Total p/artigo
7
5
3
7
1
14
6
5
1
4
5
8
2
3
8
1
3
8
1
14
106
%
6,60
%
4,72
%
2,83
%
6,60
%
0,94
%
13,2
%
5,66
%
4,72
%
0,94
%
3,77% 4,72% 7,55% 1,89% 2,83% 7,55% 0,94% 2,83%
0,94%
7,55% 0,94% 13,21%
171
No que tange ao potencial denotativo, na categoria atos de L1/e1, cujos verbos
expressam a transferência da responsabilidade de
L1/e1 a e2, foram encontradas 48
ocorrências, sendo 1 classificada como de comparação e/ou contraste (posicionando e2 numa
determinada perspectiva por meio da comparação), expressa pelo verbo comparar. A
subcategoria de maior ocorrência é a de teorização, com 41 ocorrências, expressando uma
certa atitude de reflexão teórica, representadas pelos verbos: defender, com 7 ocorrências;
argumentar e ressaltar, com 3 ocorrências cada; definir, destacar e questionar com 5; propor,
com 4; esclarecer e postular, 2; e asseverar, assumir, distinguir, enfatizar, ensinar, explicar
e salientar com 1 ocorrência cada.
No que diz respeito à subcategoria atos de e2 de atitude foram encontradas 6
ocorrências. Convém lembrar que pertencem a essa categoria verbos que expressam uma
atitude comportamental, fazendo com que a responsabilidade pelo conteúdo proposicional
incida primariamente sobre L1/e1 e, secundariamente, sobre e2, ou seja, trata-se da avaliação
de L1/e1 acerca do conteúdo proposicional e/ou atitude de e2. No conjunto de vinte textos
de autores especialistas, os verbos alertar e manifestar-se foram encontrados com duas 2
ocorrências, enquanto denunciar e reconhecer apresentaram uma ocorrência.
A expressão de uma representação de atitude comportamental fica evidente
especialmente neste segmento retirado deste artigo:
(70) Art.AE06:
Autores americanos vêm denunciando o que chamam de missing paradigm e no bojo
dessas discussões questionam a ausência de pesquisas sobre as matérias dos conteúdos
ensinados.”
Considera-se, neste caso, que, apesar de se tratar de um verbo de elocução e que traz,
portanto, uma outra voz para o discurso, L1/e1 se compromete com a proposição pelo fato
de que, ao empregar o verbo denunciar, esse enunciador faz mais do que apenas representar
a atividade linguística desempenhada por e2, ele, sobretudo, acaba por imprimir sobre esta
representação sua própria interpretação acerca da atitude comportamental de e2. Este
enunciador revela mais de si neste excerto do que se tivesse escolhido as formas verbais
consideradas neutras como afirma, fala ou diz, por exemplo.
Os demais exemplos desta subcategoria encontram-se listados no quadro abaixo:
(71) Art.AE01
Bachelard, na Poética do espaço (2008), alerta que não se deve considerar este espaço
apenas com o olhar da mensuração ou da reflexão sobre sua geometria.
172
(72) Art. AE13
Assim, muitos cuiabanos já se manifestam contrários ao seu modo de falar. Está
ocorrendo um certa resistência por parte da maioria dos cuiabanos em não aceitar a forma
africada. Conforme pesquisa realizada por PALMA (1984:59), uma grande maioria opinou
no sentido de não aceitação das formas africadas, o que comprova serem elas
estigmatizadas.
A próxima categoria a ser listada, atos de e2, apresenta verbos que cumprem o papel
de representar e2, dono da voz citada no texto, como a fonte de responsabilidade pelo
conteúdo proposicional, e não L1/e1 que, neste caso, apenas textualiza o discurso de e2.
Nesta categoria, subdivida em 3 subcategorias, foram encontradas, no total, 97
ocorrências, sendo, sem dúvida, a categoria de maior ocorrência. A subcategoria atos de e2
de natureza textual, responde pela maioria das ocorrências, com 54 ocorrências. No entanto,
desses 53, considera-se que 31 já se encontravam classificados como verbos de atribuição
de fala neutros, sendo 19 ocorrências do verbo afirmar, 6 do verbo dizer e 1 do verbo falar.
Os demais verbos listados são: apontar, com 12 ocorrências; descrever, com 2
ocorrências; e anunciar, citar, confirmar, contar, expressar e referir-se com 1 ocorrência
cada um. Tais verbos de elocução se referem a processos que envolvem necessariamente
expressão verbal, e são, por natureza, mais neutros, de modo que neste caso, a
responsabilidade pela representação do conteúdo proposicional citado incide sobre e2 e não
sobre L1/e1. No quadro abaixo encontram-se listados alguns excertos retirados do corpus:
(73) Art. AE01
Victor Hugo, ao falar sobre o poder da palavra, já anunciava que “a palavra é
um ser vivente, mais poderosa que aquele que a usa, nascida da escuridão, cria o sentido
que quer; ela própria é o que o pensamento, a visão, o tato externos esperam.” (HUGO,
1858 apud FRIEDRICH, 1991, p. 32).
(74) Art. AE14
O estereótipo do negro elaborado pelo branco impede a circulação e articulação
do significante da raça, a não ser em sua fixação enquanto racismo. Fanon descreve o
efeito desse processo sobre a cultura colonizada. Para ele, o sujeito marginalizado
pela sua condição de raça e escravidão deve tomar consciência de si, de sua história e
mobilizar-se, ampliando, assim, o sistema de referências pelo qual conseguirá
reverter a destruição dos seus valores culturais.
(75) Art. AE12
Na constituição do currículo do curso de Letras, Souza (1999) comenta ainda
que após 1962, a disciplina Teoria Literária entrou nos cursos de Letras como disciplina
facultativa, mas seu caráter facultativo teria sido relativizado por sua presença
173
constante nos currículos. Porém, sua posição nos fluxogramas curriculares, sempre nos
primeiros períodos do curso, outorga-lhe um caráter de disciplina preparatória para o
estudo da Literatura.
Nestes exemplos, observa-se a mesma lógica anteriormente apontada em outras
categorias de análise: independentemente do recurso às vozes alheias, por meio de discurso
indireto e/ou direto, pode ocorrer menor ou maior projeção da voz autoral que não parece
ser aqui totalmente determinada por esta questão. O que se tem observado, nesta pesquisa, é
que a menor ou maior projeção é muito mais determinada pela perícia de L1/e1 no
gerenciamento das vozes de que a mera ocorrência do discurso outro. Desta forma, observese que no primeiro exemplo (73), a forma verbal anunciar, flexionada no pretérito imperfeito
do indicativo, introduz o enunciado pertencente a e2 em um PDV representado, sem que
L1/e1 expresse o seu próprio PDV, seja em posição de coenunciação, seja em
sobrenunciação. Os excertos (74) e (75), em vez disso, priorizam a apresentação de um PDV
próprio (de L1/e1) em posição de coenunciação, de forma que a voz do outro é convocada
para corroborar e melhor delinear o ponto de vista do citante.
Quanto à subcategoria ato mental, cujos verbos expressam, eminentemente, aspectos
psicológicos e de atividade mental (de ordem cognitiva ou perceptiva), encontram-se 26
ocorrências, dentre essas, 8 do verbo considerar, 4 dos verbos acreditar, lembrar e observar,
3 do verbo pensar, 2 do verbo ponderar, 1 do verbo reconhecer. A maioria destes verbos,
na classificação proposta por Adam (2011) e sistematizados por Passeggi et al. (2010),
recebem a etiqueta “Indicações de um suporte de percepções e de pensamentos relatados”.
Abaixo listam-se alguns excertos retirados do conjunto de 20 textos de autores
especialistas:
(76) Art.AE1
Desta forma, o filósofo acredita que é preciso se deslocar do conhecido para o lugar
do desconhecido. A ponte para este deslocamento é a imaginação, “imaginar é ausentar-se,
é lançar-se a uma vida nova”.
(77)Art.AE3
Afinal, a produção do conhecimento científico requer do cientista determinadas
escolhas, ou recortes para chegar a seu objeto. É justamente o próprio recorte e o que fica
fora dele que parecem ser desconsiderados nos discursos acerca dos conteúdos de ensino de
língua e literatura, o que, novamente lembrando Kothe (1997), faz parecer natural o que é
estranho.
(78) Art. AE11
(...) Esse autor pondera que a memória da pessoa está “amarrada” à memória do grupo
e esta “à esfera maior da tradição, que é a memória coletiva de cada sociedade” (p.55).
174
Tais exemplos indiciam a codificação de uma inferência do sujeito enunciador,
especialmente nos exemplos (76) e (78). O que equivale a dizer que não há uma asserção
estrita, mas uma probabilidade baseada na leitura que L1/e1 faz do enunciado de e2.
No caso do fragmento (77) a percepção de L1/e1 é a de que o PDV de e2 se coaduna
com o seu, de modo que marca uma enunciação em postura de coenunciação, marcando,
aparentemente, um distanciamento menor do que o encontrado em (76) e (78).
Ainda no que concerne à categoria que diz respeito aos atos de e2, a última
subcategoria a ser descrita é a de pesquisa. Nesta subcategoria encontram-se os verbos que
denotam atividade vinculada ao campo da atividade de investigar/pesquisar. No conjunto de
20 textos escritos por autores especialistas, encontraram-se 18 ocorrências.: 4 do verbo
discutir, 3 dos verbos descrever, demonstrar, e questionar, duas do verbo confirmar, e os
verbos constatar, desenvolver, distinguir, examinar, referir, e selecionar com apenas uma
ocorrência cada.
O quadro abaixo demonstra o contexto de ocorrência de alguns destes verbos:
(79) Art.AE06
(...) Autores americanos vêm denunciando o que chamam de missing paradigm e no
bojo dessas discussões questionam a ausência de pesquisas sobre as matérias dos conteúdos
ensinados; (...) Partindo destas observações iniciais, o autor prossegue examinando o papel
do ensino da literatura em um projeto de formação de modelo humanista.
(80) Art.AE18
Belmiro (2003), refletindo sobre a presença das imagens no livro didático, defende a
educação visual (...) pode consagrar espaço para a visualidade circundante, mantendo a
vivacidade criadora da imagem” (p.309).
(81) Art.AE17
Em “O discurso no romance”, Bakhtin (2010) desenvolve sua concepção dialógica da
linguagem, o que implica conceber o funcionamento do discurso sempre em suas relações
dialógicas, em uma tensa relação entre as forças centrípetas e centrífugas. (...).
O uso de verbos categorizados como indiciadores dos atos de e2, de natureza da
pesquisa, proporciona o deslocamento da responsabilidade pela asserção do polo de L1/e1
para o polo e2, de modo que a instância L1/e1 pode manter uma distância segura a respeito
do que é dito. No entanto, como os mesmos verbos podem ser considerados em termos de
avaliação de atitude de e2, observa-se que as formas verbais questionam e defendem
garantem, minimamente, traços da presença da voz autoral no excerto.
No que diz respeito ao potencial avaliativo, inicia-se a descrição dos dados pela
categoria posicionamento do enunciador segundo, e suas subcategorias: positivo, neutro,
negativo, fatual, contra-fatual e não-fatual. Os verbos agrupados na categoria de
posicionamento dizem respeito ao modo como o L1/e1 avalia o posicionamento de e2 em
175
relação ao conteúdo proposicional citado, desta forma, este posicionamento pode ser neutro,
positivo ou negativo. Os verbos do primeiro grupo, de posicionamento positivo, indicam que
L1/e1 representa e2 como um enunciador altamente seguro de suas proposições. No conjunto
de vinte textos de autores especialistas foram encontradas 16 ocorrências, sendo 4 do verbo
destacar, 3 dos verbos argumentar e defender, 2 do verbo ressaltar e apenas uma ocorrência
dos verbos asseverar, assumir, corroborar e enfatizar. Não foram encontradas ocorrências
da subcategoria de posicionamento negativo. Os verbos que expressam posicionamento
neutro foram encontrados num total de 39 ocorrências, sendo 12 ocorrências do verbo
apontar, 6 do verbo propor, 4 dos verbos apresentar, lembrar e observar, 3 dos verbos
demonstrar e pensar, 2 de ponderar, e apenas 1 ocorrência do verbo atrelar. Alguns
exemplos são examinados logo abaixo:
(82) Art.AE06
Numa longa explanação, Ilari (1984) aponta o fato de que até mesmo professores
muito bem formados em sua experiência inicial de formação acabam se voltando para as
práticas arraigadas na tradição escolar a partir da socialização com os docentes experientes,
e atribui esse fato a pouca atenção dada, durante o curso de formação, às questões
relacionadas ao ensino de língua e literatura maternas, em detrimento de atividades tidas
como mais nobres no ambiente acadêmico: (...)
(83) Art.AE17
O autor destaca que o estudo dos aspectos formais da língua não dá conta do
funcionamento real da linguagem. Sobre isso ainda adverte: “quando consideramos um
enunciado com o intuito de análise linguística, abstraímos a sua natureza dialógica,
consideramo-lo dentro do sistema da língua (a título de realização da língua) e não no
grande diálogo da comunicação verbal” (BAKHTIN, 2003c, p. 346).
Nesta categoria não se encontrou sequer uma única ocorrência de verbos que
indiciassem um posicionamento de e2 negativo. Chama a atenção o fato de que nestes
exemplos ambos apresentam uma avaliação de e2 como alguém com alto nível de segurança
sobre seu próprio discurso, mas há uma ligeira diferenciação: em (82) isto fica mais evidente
na medida em que o argumento é utilizado para corroborar o PDV anterior de L1/e1, qual
seja, a precariedade da formação docente51 não seria o fator primordial para explicar o seu
É o que se percebe no co-texto observado em período adjacente: “Uma vez convencidos de que a questão da
precariedade da formação profissional não abarca adequadamente o problema posto, pensamos que seria
produtivo para a compreensão desta questão verificarmos o interesse de pesquisadores preocupados com a
especificidade da experiência educativa no âmbito escolar: seus estudos têm apontado para uma relação entre
os saberes envolvidos nesse processo. (...) Ainda que consideremos a necessidade de relativizar a aplicação dos
dados da pesquisa desses autores, afinal trata-se de um universo diverso do nosso, suas pesquisas se relacionam
aos professores francófonos do Quebec, não se pode negar a possibilidade de relacionarmos tais dados ao
51
176
problema de pesquisa, ao passo em que em (83) o PDV de e2 é apresentado sem que seja
apresentado o PDV de L1/e1, estando a voz autoral, neste segmento, em posição de maior
desengajamento do que no fragmento (83).
Outras subcategorias que compõem esse grupo são: posicionamento fatual, não-fatual
e contra-fatual de L1/e1. Neste grupo se encontram verbos relacionados à avaliação realizada
por L1/e1 acerca da acuidade e/ou veracidade da informação citada. Quando L1/e1 se
posiciona de modo a representar a informação citada como um fato, ele se compromete com
sua veracidade, trata-se da subcategoria fatual, em que se encontram 6 ocorrências, sendo 3
ocorrências do verbo demonstrar, e 1 dos verbos constatar, definir e distinguir. Não se
encontraram resultados que pudessem ser categorizados como posicionamento de autor
contra-fatual, ou seja, quando L1/e1 apresenta a informação citada como incorreta e/ou
imprecisa. Na última subcategoria, a não-fatual, L1/e1 não deixa claro seu posicionamento
a respeito da informação citada. Foram classificados, nesta categoria, um total de 21
ocorrências, sendo 8 do verbo considerar, 6 do verbo propor, 4 do verbo discutir, 2 do verbo
entender e 1 do verbo sugerir. Alguns exemplos foram transcritos abaixo:
(84) Art. AE03
(...) procuramos observar o ponto de vista definido por Geraldi (2003, p.74), que vê no
trabalho pedagógico uma “fetichização do produto do trabalho científico”, ou seja,
analisando a correlação entre o trabalho de ensino e o científico, o autor define uma noção
que vai além da mera vulgarização dos conteúdos, para ele o trabalho pedagógico
autonomiza as descrições e explicações lingüísticas desconsiderando o processo de produção
do trabalho científico que produziu as descrições e explicações ensinadas
(85) Art.AE07
A este respeito Guimarães (2005) propõe pensar a semântica num campo
epistemológico que permite ver que a linguagem fala de algo e o que se diz é construído na
linguagem.
Nestes dois segmentos observa-se (em realce) a ocorrência de dois verbos de natureza
distinta: a forma verbal definir foi classificada como fatual enquanto a forma propor foi
classificada como não fatual. O que resulta disto é a constatação de que, embora em ambos
universo por nós pesquisados se lembramos a introdução aos Subsídios para implementação da proposta
curricular de língua portuguesa para o 2º grau, vol. I, Reflexões Preliminares. Numa longa explanação, Ilari
(1984) aponta o fato de que até mesmo professores muito bem formados em sua experiência inicial de
formação acabam se voltando para as práticas arraigadas na tradição escolar a partir da socialização
com os docentes experientes, e atribui esse fato a pouca atenção dada, durante o curso de formação, às
questões relacionadas ao ensino de língua e literatura maternas, em detrimento de atividades tidas como
mais nobres no ambiente acadêmico: (...)” (Art.AE06)
177
os casos há uma voz externa trazida para o interior da enunciação, no primeiro caso, (84),
L1/e1 se compromete mais com a asserção do que o L1/e1 do artigo (85).
Ainda no que diz respeito ao potencial avaliativo, a última categoria a se apresentar é
a de interpretação. Nesta categoria, encontram-se indicações da interpretação que L1/e1 faz
do discurso de e2 expressas na seleção dos verbos, em outras palavras, verbos que remetem
à leitura que o enunciador primeiro faz do conteúdo proposicional citado. Na primeira
subcategoria, desenvolvimento retórico do discurso do autor, encontram-se 2 formas verbais
comentar e comparar, com uma ocorrência de cada.
A segunda subcategoria, interpretação do comportamento do autor, não foca o discurso
de e2, mas seu comportamento. Neste segmento foram encontradas 7 ocorrências: 3 dos
verbos alertar e questionar, e 1 dos verbos denunciar e reconhecer.
Uma terceira categoria de verbos que expressam a interpretação de L1/e1 engloba
verbos que expressam uma interpretação focada no status da informação citada, e,
consequentemente, para o status do próprio autor citado. No conjunto de textos dos autores
especialistas foram encontradas 4 ocorrências: 2 do verbo anunciar e 2 do verbo postular.
Uma última categoria, criada por Oliveira (2005), conforme mencionado
anteriormente, a de interpretação não manifesta apresenta 16 ocorrências, sendo 5 do verbo
escrever, 4 do verbo descrever e do verbo colocar, 2 do verbo contar e uma do verbo
expressar, descartando-se, as formas falar, afirmar, dizer, que já se encontravam
classificadas em verbos de atribuição de fala, dispensando-se, assim, nova classificação.
Estas considerações encontram-se sistematizadas no quadro abaixo:
QUADRO 20- C ATEGORIZAÇÃO DOS OUTROS VERBOS DE ELOCUÇÃO EM TEXTOS DE AUTORES
ESPECIALISTAS
Categorização de Outros Verbos de Elocução cf. Thompson e Yuyin (1991)
Categorias
Nº de ocorrências
Atos de L1/e1
Potencial denotativo
Atos e2
Comparação/ contraste
1
Teorização
41
Atitude
11
Textual
20
Mental
20
178
Positivo
3
Negativo
0
Neutro
25
Posicioname
nto de L1/e1
Fatual
13
Contrafatual
0
Não-fatual
13
Desenvolvimento retórico do discurso de e2
3
Comportamento atribuído a e2
9
Status da informação/ autor citado
3
Não manifesta
31
Interpretação:
14
Posicioname
nto de e2
Potencial avaliativo
Pesquisa
4.3.3 Das ocorrências na categoria de ordem 8 - Indicações de um suporte de
percepções e de pensamentos relatados
Comparando-se aos textos de alunos de gradução, esta categoria em textos de autores
especialistas apresenta um pouco mais de produtividade. Demonstrando tal constatação, do
montante de verbos categorizados nos 20 textos de autores especialistas, 106, o total dos
verbos classificados como indicativos de suporte de percepções e pensamentos relatados, 22,
representa 20,75%.
Os dois quadros abaixo demonstram as ocorrências desses verbos: no primeiro, uma
síntese das ocorrências; no segundo, alguns excertos em que o contexto das ocorrências pode
permitir avaliar em que medida os efeitos de pontos de vista produzidos pela focalização
perceptiva ou cognitiva contribuem para o estudo da (não) assunção da RE:
QUADRO 21- I NDICAÇÕES DE SUPORTE DE PERCEPÇÃO E PENSAMENTOS RELATADOS
Indicações de um suporte de percepções e de pensamentos relatados
Focalização
Perceptiva
Focalização Cognitiva
ver
acreditar observar entender compreender perceber lembrar pensar Total
Art2
1 ArtAE01
1
0
0
0
0
2
0
3
Art3
3 ArtAE02
1
0
0
0
0
2
0
3
179
Art7
Total
2 ArtAE03
6 ArtAE04
ArtAE06
ArtAE17
ArtAE18
ArtAE20
Total
0
0
1
1
0
0
4
0
1
0
0
0
3
4
0
0
0
0
0
2
2
0
0
0
1
0
3
4
1
0
0
0
0
0
1
0
0
0
0
0
0
4
0
0
0
1
2
0
3
1
1
1
3
2
8
22
Como se pode observar pelo quadro, acima a ocorrência de verbos indicando
focalização perceptiva ocorrem em quantidades muito menores do que os de focalização
cognitiva. Tal fato pode ser explicado pelas razões que se expõe na leitura dos fragmentos
abaixo:
(86) Art.AE01
Já Almeida (2008, p.191) vê o Pantanal como um “útero nos brejos” da poética
barrosiana: (...)
(87) Art.AE02
Como lembra Ecléa Bosi (1994), muitas lembranças ou ideias não são originalmente
de quem as recorda, mas fazem parte de um círculo social do qual fazem parte.
Art.AE03
(88) (...) procuramos observar o ponto de vista definido por Geraldi (2003, p.74), que
vê no trabalho pedagógico uma “fetichização do produto do trabalho científico”, (...)
(89) (...) A autora percebe um hiato entre o trabalho cientifico, caracterizado nas
pesquisas acadêmicas e o que se realiza na prática.
(90) Art.AE10
(...) Assim o olhar para o passado viria para “compensar a perda da estabilidade que o
indivíduo tem com seu presente” (Idem), ou como pensa Michel Pollak (POLLAK, 1992,
p. 210-211) para dar “palavra àqueles que jamais a tiveram”, (...)
(91) Art.AE15
(...) Esta autora entende o conceito de divulgação científica em consonância com a
relação entre DC e DJ, pois a utilização da palavra disseminação aponta para o significado
de propagar, espalhar, difundir e explica que é em direção ao exterior. (...)
Nos exemplos (86) e (88), encontra-se, codificada no verbo ver, a inferência que L1/e1
faz acerca das proposições de e2, citadas em seguida no texto do qual o fragmento faz parte.
Mas a carga semântica deste verbo na oração não dá a entender que a percepção de e2 acerca
do seu objeto tenha sido elaborada, literalmente, da visão, sendo, na verdade, um equivalente
de “percebe”, “compreende” ou, ainda, “considera”. De todo modo, como em todos os
exemplos os verbos listados estão na terceira pessoa, tanto a responsabilidade pelo processo
perceptual como pelo conteúdo proposicional resultante é deslocada para a instância e2, de
tal forma que não se possa categorizar tais eventos nem mesmo como uma imputação, em
180
que L1/e1 assume a imputação (atribuir a responsabilidade a outrem) mas não o conteúdo
imputado. Isto porque ao lançar mão destas fórmulas de introdução do discurso outro, L1/e1
não demonstra segurança acerca da percepção de e2 e diante do risco de imputar
(erroneamente) um determinado conteúdo a outrem, este enunciador, L1/e1, se esconde atrás
de um verbo de percepção, e esta interpretação parece mais plausível ainda nos fragmentos
com as formas verbais perceber, pensar, entender e lembrar, de focalização cognitiva, sendo
menos plausível com o verbo ver, de focalização perceptiva. Tais considerações levam em
conta as discussões de Rabatel (2003, p.63) ensaiando-se uma possível resposta ao
questionamento sobre a natureza do apagamento enunciativo nestes casos: parece que muito
mais do que apagar a enunciação de e2, o que está em jogo, aqui, é o apagamento do relato
de L1/e1, que, apagando-se, não se compromete muito em relação à interpretação que faz do
conteúdo proposicional de e2.
4.4 Marcas da RE em textos de autores especialistas renomados
Os textos de autores especialistas renomados apresentam, como era de se esperar,
resultados relativamente díspares em relação aos outros dois subgrupos, embora apresentem,
naturalmente, marcas de remissões ao discurso de outro, conforme se observará na
apresentação dos dados encontrados nos vinte textos de autores especialistas renomados que
compõe o corpus. No geral, é o grupo que mais apresenta enunciadores com notável maestria
no gerenciamento das vozes no texto. Na sequência, apresentam-se os dados obtidos no
conjunto de vinte textos.
4.4.1 Das ocorrências na categoria de ordem 5 – Diferentes Representações da Fala
Os textos de autores experientes caracterizam-se por uma quantidade relativamente
menor de remissões ao discurso de outro, conforme se observará na apresentação dos dados
encontrados nos vinte textos de autores especialistas renomados (doutores seniores) que
compõem o corpus.
O discurso indireto, com a reformulação, aparece como a forma preferida dos autores
experientes, e nisto confirmam-se os achados de Boch e Grossmann (2002). A segunda
forma preferida pelos experts é o discurso direto, seguido pela evocação e seguido pela ilha
textual em quantidades próximas, conforme se vê no quadro abaixo:
181
QUADRO 22- DIFERENTES TIPOS DE REPRESENTAÇÃO DA FALA EM TEXTOS DE AUTORES
ESPECIALISTAS RENOMADOS
Tabela ocorrência RE Artigos de Especialistas Renomados
Ilha
textual
Art.1
Art. 2
Art.3
Art.4
Art.5
Art.6
Art.7
Art.8
Art.9
Art.10
Art.11
Art.12
Art.13
Art.14
Art.15
Art.16
Art.17
Art.18
Art.19
Art.20
Total
%
0
1
0
1
3
0
4
0
7
2
4
0
2
0
0
1
0
1
1
2
29
13,30%
Diferentes tipos de repres. da fala
aspas sem
mencionar
autoria (ou
DD
DI
provérbios) Evocação Total %
3
5
0
1
9
4,13%
3
2
0
1
7
3,21%
0
0
0
2
2
0,92%
0
7
0
2
10
4,59%
0
6
0
1
10
4,59%
2
10
0
1
13
5,96%
0
6
0
3
13
5,96%
2
9
0
0
11
5,05%
1
8
0
0
16
7,34%
0
5
0
4
11
5,05%
6
13
0
0
23
10,55%
3
3
0
1
7
3,21%
0
5
0
0
7
3,21%
1
2
0
1
4
1,83%
0
6
0
2
8
3,67%
1
8
0
3
13
5,96%
0
1
0
0
1
0,46%
5
18
0
2
26
11,93%
0
5
0
0
6
2,75%
2
15
0
2
21
9,63%
31
132
0
26 218
14,22%
60,55%
0,00%
11,93%
A evocação aparece com muito maior peso na escrita destes autores de que nos grupos
anteriores. Tal fato se justifica, muito possivelmente, em função de que seus artigos são
direcionados e publicados em periódicos que, normalmente, se inscrevem sempre num
horizonte conceitual pré-definido (as linhas temáticas do periódico), cada edição,
costumeiramente, estabelece um tema pré-definido também, e, sobretudo, porque seus
artigos se dirigem aos seus pares, razão pela qual se torna dispensável longas explanações a
respeito de conceitos teóricos de determinados campos. A reformulação, que no escopo desta
pesquisa foi incluída na etiqueta discurso indireto, é o modo de referência mais comum nos
textos de especialistas renomados, apresenta o nome do autor fora do corpo de texto, entre
parênteses, e acompanhado pela data de publicação do trabalho, sua prevalência é absoluta
ultrapassando mais da metade do total de ocorrências na categoria Diferentes formas de
representação do discurso outro.
182
A citação em discurso direto mostrou-se relativamente representativa neste grupo de
textos, se comparada à reformulação, enquanto as citações aspeadas sem menção à autoria,
como no caso de provérbios ou enunciados dóxicos, não tiveram ocorrência alguma,
indicativo claro de que tal forma de citar é avaliada como não condizente com as rotinas
citacionais do universo acadêmico.
Observe-se abaixo, uma lista com alguns exemplos retirados do conjunto de 20 textos
que compõem o subgrupo AEE:
(92) Art.AEE01
NO QUE CONCERNE AO GÊNERO EPISTOLAR, OS ESTUDOS LINGUÍSTICOS ASSINALAM A
VARIEDADE DE SEUS PROPÓSITOS COMUNICATIVOS (SILVA, 1997; FONSECA, 2005) E
DESCREVEM SUAS CARACTERÍSTICAS LINGUÍSTICAS (MARTINS, 2012; TAVARES, 2012).
Considerando-se que nosso texto em análise foi identificado historicamente como cartatestamento, a hipótese cultural primeira é que, em seu aspecto epistolar, encontraremos a
identificação do lugar, a data, o vocativo e a assinatura. São esses elementos que Marcuschi
(1983) designa como “fatores de contextualização”, quando propõe um “esquema
provisório de categorias textuais” que compreende, ainda, os fatores de conexão
sequencial (coesão), os fatores de conexão conceptual-cognitiva (coerência) e os fatores
de conexão de ações (pragmática).
(93) Art. AEE02
Não existe ‘o oral’, mas ‘os orais’ sob múltiplas formas, que, por outro lado,
entram em relação com os escritos, de maneiras muito diversas: podem se aproximar
da escrita e mesmo dela depender – como é o caso da exposição oral ou, ainda mais, do
teatro e da leitura para os outros –, como também podem estar mais distanciados –
como nos debates ou, é claro, na conversação cotidiana. (...), e são essas práticas que
podem se tornar objetos de um trabalho escolar. (SCHNEUWLY, 2004, p. 135)
(94) AEE08
A posição de Chomsky, que, em vários aspectos, revolucionou na década de 60, a
teoria da linguagem, pouco difere da concepção saussureana no que se refere
exclusivamente à delimitação do objeto. A idealização operada por Saussure se completa
com a noção de objeto de estudos desenvolvida por Chomsky, centrada na competência em
oposição ao desempenho, perfeitamente observável na citação seguinte:
(...) um falante-ouvinte ideal, situado numa comunidade completamente homogênea, que conhece
perfeitamente a sua língua e que, ao aplicar o seu conhecimento no uso efetivo, não é afetado por condições
gramaticalmente irrelevantes, tais como limitações de memória, distrações, desvios de atenção e de interesse,
e erros (casuais e característicos) (CHOMSKY 1975: 83)
Observa-se um modo de citação, no primeiro fragmento transcrito (92), raramente
encontrado nos outros dois subgrupos, AI e AE. Trata-se de um modo de citar em que L1/e1
não reformula o enunciado de e2 nem reproduz este enunciado em outros modos de citação,
como o discurso direto ou a ilha textual, por exemplo. Este mecanismo, de uso típico de
autores muito experientes, indicia o fato de que este autor comunica a pesquisa aos seus
pares, considerados prováveis conhecedores dos autores e assuntos que tematizam seu objeto
de reflexão, sendo considerados dispensáveis os resumos, paráfrases ou reformulações
183
previstas em outras formas citacionais. Pode-se dizer que tal forma de citar seria a
demonstração cabal da erudição e/ou expertise de um autor muito experiente.
No mesmo fragmento, a porção realçada por negrito demonstra também outra fórmula
citacional muito comum em textos de autores muito experientes, a reformulação. Sua
vantagem reside no fato de permitir ao escritor mais agilidade e facilidade no gerenciamento
das vozes que convoca ao seu texto sem perder o fio condutor de sua argumentação. Por
outro lado, requer maior mestria do que a demonstrada por autores do subgrupo AI, e, em
em alguns casos, do subgrupo AE. No fragmento (93) este mecanismo é levado ao extremo,
com o deslocamento do autor citado para fora do período, sendo o nome do autor e a data da
obra, o único mecanismo de que o leitor dispõe para identificar a fonte enunciativa. Este
também é um indício bastante forte de que este autor, atendendo às demandas específicas de
produção e circulação do conhecimento científico, escreve para um público muito
específico: seus pares são membros experts da mesma comunidade discursiva e seriam
capazes de reconhecer a porção textual atribuída a outrem, com ou sem a marcação no
sistema autor-data. Em (94) L1/e1, apesar de trazer a voz de L1/e1, mantém a projeção de
sua voz, dominando a cena ao deixar traços reveladores de sua presença, especialmente
identificável nas formas verbais escolhidas. A questão do papel dos delocutivos na escrita
deste grupo de autores será introduzida adiante.
4.4.2 Das ocorrências na categoria de ordem 6 – Indicadores de Quadro Mediador
No que diz respeito à categoria 06 os resultados se mostram condizentes com os da
ordem 05, especialmente no que diz respeito à reformulação com remissão ao autor no
sistema autor/data fora do corpo de texto, diminuindo assim formas linguísticas
tradicionalmente indicadoras de quadros mediadores. As ocorrências encontram-se
sintetizadas no quadro abaixo:
QUADRO 25-I NDICADORES DE QUADROS MEDIADORES EM TEXTOS DE AUTORES ESPECIALISTAS
RENOMADOS
Segundo
Para X X
Art.1
0
0
Art. 2
1
0
Art.3
0
0
Indicativo de Qd. Mediadores
Modal.
De
Modal. deônticas
verbos de
Conforme/ acordo
com
e/ou
atribuição
como X
com
fut.pret. epistêmicas de fala
Reformulações Oposições Total
2
0
0
0
2
2
0
6
1
0
0
9
1
2
1
15
4
0
1
0
1
0
0
6
184
3,26%
8,15%
3,26%
Art.4
Art.5
Art.6
Art.7
Art.8
Art.9
Art.10
Art.11
Art.12
Art.13
Art.14
Art.15
Art.16
Art.17
Art.18
Art.19
Art.20
Total
%
0
0
0
0
2
1
2
2
1
0
0
0
0
0
0
2
2
13
7,07%
4
1
0
0
2
0
3
3
0
0
0
1
0
5
0
1
4
24
13,04%
0
2
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
1
1
2
2
9
4,89%
1
0
2
0
0
0
0
0
0
2
1
8
0
0
0
0
0
3
0
0
0
0
2
0
0
0
0
0
0
0
1
0
0
0
8
22
4,35% 11,96%
1
3
2
1
2
3
7
2
0
1
0
1
3
1
6
2
2
44
23,91%
0
2
7
4
0
6
13
0
1
0
1
2
3
0
3
1
2
49
26,63%
0
0
2
0
0
1
0
0
0
0
0
2
0
1
0
0
2
12
6,52%
0
0
0
0
0
0
2
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
3
1,63%
6 3,26%
10 5,43%
11 5,98%
5 2,72%
8 4,35%
20 10,87%
27 14,67%
7 3,80%
5 2,72%
1 0,54%
1 0,54%
8 4,35%
7 3,80%
8 4,35%
10 5,43%
9 4,89%
14 7,61%
184
A ocorrência de indicadores de quadros mediadores é, evidentemente, menor nos
textos de especialistas renomados se comparada com os textos de especialistas e iniciantes.
A maioria das ocorrências concentram-se em dois grupos: verbos de atribuição de fala
(26,63%) e os introdutores do discurso outro (bem como suas variações): “Como, conforme
X....”, “segundo X....”, etc, os quais, somados, apresentam um percentual de 29,35%,
enquanto reformulações e oposições apresentam índices irrelevantes. As modalizações com
verbo flexionado no futuro do pretérito do indicativo apresentaram percentuais de 11,96%,
enquanto as modalizações deônticas e epistêmicas tiveram percentuais de 23,91. Os
resultados demonstraram que algumas fórmulas de introdução do discurso outro são muito
pouco mobilizadas. Abaixo, encontram-se transcritos alguns fragmentos exemplares:
QUADRO 23 - I NDICADORES DE QUADROS MEDIADORES EM TEXTOS DE AUTORES ESPECIALISTAS
RENOMADOS
Marca
Linguística
Excerto
Para X ....
(95) Art.AEE12
Assim, para Bakhtin, os discursos são produzidos de acordo com as
diferentes esferas de atividade do homem. Por ex, a escola é um lugar em
que atuamos em diferentes esferas de atividades. Cada esfera de atividade
nos exige uma forma específica de atuar com a linguagem.
Segundo X
(96) Art.AEE11
185
Embora Volochinov omita o terceiro nível de Plekhânov – o regime
sociopolítico – os outros quatro estão claramente transpostos para a
descrição das diferentes modalidades de comunicação social: parte-se da
esfera da produção, passando pela ideologia do cotidiano e, finalmente,
chega-se às ideologias. Essas formas de comunicação irão, segundo
Volochinov, influenciar a organização do enunciado e de seus gêneros, os
quais são constituídos de um parte verbal e de outra não-verbal (as
diferentes esferas de comunicação)..
De
acordo (97) Art. AE05
com X ....
De acordo com a perspectiva do interaccionismo socio-discursivo,
assumimos que qualquer texto empírico1participa de um género,
seleccionado de entre o conjunto, mais ou menos (im)preciso, de géneros
disponíveis no arquitexto, em função de condicionantes da actividade
(actividade geral e actividade de linguagem) e das representações do
agente de produção, relativamente à acção concreta a realizar e aos géneros
disponíveis (Bronckart, 1999; 2004).
Conforme X (98) Art. AE19
...
Essas informações, legítimas na época, encontram-se hoje desatualizadas,
inclusive graças a mudanças geopolíticas (como a dissolução, por exemplo,
da União Soviética ou a obra identificada em uma categoria, ora em outra,
como por exemplos, Reinações de Narizinho (Monteiro Lobato) ou
Saudades (Tales de Andrade) no Relatório do “ Inquérito Leituras Infantis”,
realizado por Cecília Meireles, na década de 30, conforme Sena (2010).
Modalizações (99) Art.AEE10
É conhecida a afirmação de Barthes (1978, p.14), segundo a qual a língua
é fascista, porque obriga a dizer, bem como é conhecida (embora menos,
talvez porque não se pode expressá-la num slogan) sua tese segundo a qual
para os que "não somos ... super-homens só resta, por assim dizer, trapacear
com a língua" (p.16). A literatura seria o domínio que melhor permitiria
esta trapaça, que resultaria em ouvir a língua fora do poder. O que ele
entende por literatura é "a prática de escrever", o que faz privilegiar o
"tecido dos significantes que constitui a obra, porque o texto é o próprio
aflorar da língua, e porque é no interior da língua que a língua deve ser
combatida, desviada: não pela mensagem de que ela é instrumento, mas
pelo jogo de palavras de que ela é teatro" (p.17)
Estes exemplos demonstram os usos dos indicadores de quadros mediadores mesmo
em escrita de autores muito experientes. Um indicativo de que tal recurso parece ser
constitutivo da escrita acadêmica e não deve, apenas por si, ser tomado como um índice de
maior ou menor autonomia do escritor acadêmico. Outras questões parecem concorrer para
a explicação deste fenômeno e serão retomados no capítulo seguinte, quando serão discutidas
as posturas enunciativas e seu papel na hierarquização dos enunciadores no texto.
186
De fato, cada um desses exemplos apresentam ao menos uma marca indiciadora de
quadro mediador, observada no uso dos marcadores que classicamente introduzem o
discurso outro, como “Segundo X......” e suas variantes “Para X.....’, “Conforme X....”, e
ainda Como/ De acordo com X......”. O aspecto mais importante no uso desses marcadores
na escrita de autores muito experientes é o fato de que em todos os casos observados no
corpus se apresentam da forma delineada nos exemplares selecionados: ainda que introduza
uma voz externa, esta aparece reformulada no texto de L1/e1, que deixa marcas de sua
presença, bem como evidencia o fato de que nesta escrita, a voz externa é convocada para
fins muito específicos em variadas situações, extrapolando a simples utilização observada
em textos dos outros subgrupos (especialmente o AI) em que a convocação obedece à lógica
de mobilizar o discurso de L1/e1 como um aval, um argumento de autoridade.
Os exemplos (95) e (97) são os que trazem um dos usos mais comuns e partilhados por
praticamente todos os subgrupos: apresenta um conceito pertencente à voz externa, e o
enunciado que realmente pertence a L1/e1 é uma exemplificação do que seria o conceito
contido no enunciado reformulado de e2. No fragmento (96) anteposto à reformulação do
enunciado de e2, L1/e1 apresenta um ponto de vista original, que mesmo não se contrapondo
completamente a esse enunciado, contribui com uma ressalva ao disposto no enunciado
original, mantendo, desta forma traços da presença e projeção da voz de L1/e1. Em (97),
L1/e1 reformula o conceito bakhtiniano clássico de relativa estabilidade do gênero, também
discutida pela voz de e2 mobilizada no fragmento, com uma fórmula original. No fragmento
marcado pelo grifo, identifica-se este traço da voz autoral de L1/e1 que permite a este
enunciador marcar sua presença no texto. No fragmento (99), L1/e1 radicaliza a questão do
domínio das vozes no enunciado e projeta sua própria voz em posição de sobrenunciação, se
contrapondo a e2, este fragmento apresenta a voz de e2 em posição de subenunciação, neste
mecanismo de gerenciamento das vozes encontra-se uma hierarquização das posturas
enunciativas com a finalidade primeira de construção da argumentação de L1/e1 que,
comprovadamente no co-texto, contrapõe-se, ao menos em partes, aos postulados de e2.
No que diz respeito ao item Verbos de atribuição de fala, contido e ampliado na
categoria 6 – Indicadores de quadro mediador - foram encontradas 49 ocorrências, com
relativo desequilíbrio entre as várias formas verbais: 14 ocorrências do verbo afirmar, 6 do
verbo dizer, 2 do verbo falar e 27 do verbo parecer. Estes números parecem afinados com os
resultados da categoria de ordem 5 - diferentes tipos de representação da fala - uma vez que
a grande maioria das remissões ao discurso outro foi classificada como discurso indireto,
187
mas trata-se, na verdade, de reformulações com nome de autor/data fora do corpo do texto,
justificando-se, assim, a baixa incidência de verbos de atribuição da fala.
As ocorrências desses verbos encontram-se sintetizadas no quadro abaixo:
QUADRO 24 - VERBOS DE ATRIBUIÇÃO DE FALA EM TEXTOS DE AUTORES ESPECIALISTAS
RENOMADOS
Art
AEE01
AEE02
AEE03
AEE04
AEE05
AEE06
AEE07
AEE08
AEE09
AEE10
AEE11
AEE12
AEE13
AEE14
AEE15
AEE16
AEE17
AEE18
AEE19
AEE20
%
Verbos de atribuição de fala
afirmar
dizer
falar
parecer Total %
2
0
0
0
2
4,08%
0
1
0
0
1
2,04%
0
0
0
1
1
2,04%
0
0
0
0
0
0,00%
1
0
0
1
2
4,08%
4
1
0
2
7
14,29%
1
0
0
3
4
8,16%
0
0
0
0
0
0,00%
0
4
1
1
6
12,24%
0
0
0
13
13
26,53%
0
0
0
0
0
0,00%
1
0
0
0
1
2,04%
0
0
0
0
0
0,00%
0
0
0
1
1
2,04%
0
0
0
2
2
4,08%
2
0
0
1
3
6,12%
0
0
0
0
0
0,00%
2
0
0
1
3
6,12%
0
0
0
1
1
2,04%
1
0
1
0
2
4,08%
14
6
2
27
49 100,00%
28,57% 12,24% 4,08% 55,10%
Abaixo, encontram-se reproduzidos alguns exemplos:
(100) Art. AEE06
Menuzzi (1993), por sua vez, apresenta -inho e zinho como dois alomorfes em
distribuição complementar. Afirma que, embora -zinho preserve a estrutura
morfológica da base e -inho ocorra na mesma posição derivacional dos demais sufixos,
ambos são prosodicamente sufixos.
(101) Art. AEE11
Contrariamente a esses pressupostos, o círculo rejeitava dois isolamentos que a
abordagem formalista provocava na poética: a sua separação de questionamentos estéticos
188
sobre o sentido geral da arte e o seu distanciamento do conjunto das produções culturais.
Bakhtin (1993[1924]), p.15) afirma que é impossível compreender a singularidade da
literatura “sem uma concepção sistemática do campo estético, tanto no que o diferencia
do campo do cognoscível e do ético, como no que o liga a eles na unidade da cultura”.
Segundo Bakhtin, a estética geral é necessária para evitar uma abordagem simplificada
e superficial da arte literária e a redução das considerações estéticas à abordagem
exclusivamente lingüística.
(102) Art. AEE05
Sem pôr em causa a oposição que acaba de ser enunciada, pode, no entanto, perguntarse se os tipos de discurso constituem efectivamente o único caso de regularidade, no
conjunto da organização textual – como parece sugerir Bronckart, ao afirmar: “qualquer que
seja o género a que pertençam, os textos, de fato são constituídos, segundo modalidades
muito variáveis, por segmentos de estatutos diferentes (segmentos de exposição teórica, de
relato, de diálogo, etc.). E é unicamente no nível desses segmentos que podem ser
identificadas regularidades de organização e de marcação lingüísticas” (Bronckart,
1999, p. 138, grifo meu).
(103) Art. AEE10
Parece que se pode dizer que tais análises mostram claramente, em relação ao sujeito
do discurso, que, de duas uma: ou ele não está sozinho, ou não executa seu papel
uniformemente. Em qualquer dos casos, definitivamente, ele não é uno. Ou seja, o discurso
que produz não é um produto exclusivo de um pretenso sujeito uno e não submetido a
condições exteriores. Em suma: dados empíricos mostram que, pelo menos nos domínios da
linguagem, uma análise do papel e da natureza do sujeito derivada da concepção cartesiana
é uma idéia superada, tanto pela postulação da unidade do sujeito quanto pelo pretenso
domínio, nele, da consciência. O SUJEITO SERIA MAIS UMA FUNÇÃO DO QUE UM
LUGAR DE ORIGEM (VER FOUCAULT, 1986, PARA A IDÉIA DO SUJEITO COMO
FUNÇÃO), PELO MENOS, REPITO, NO QUE SE REFERE A SUA ATIVIDADE
DISCURSIVA.
Novamente, o que se observa nestes fragmentos são determinados usos dos verbos de
atribuição de fala com funções específicas: no caso do fragmento (100) a asserção de e2 tem
a função de avalizar o julgamento de L1/e1 acerca de um fato de língua, neste excerto sua
voz de fato é abafada pela voz de e2, mas o co-texto demonstra claramente a função deste
segmento no texto, hipótese confirmada por terem sido encontradas apenas duas ocorrências
deste mecanismo de introdução do discurso outro em toda a seção selecionada para análise.
No fragmento (101) encontra-se o mesmo mecanismo de construção da argumentação de
L1/e1, ele apresenta seu PDV, contrário aos postulados dos formalistas, e para respaldar este
PDV contrário, L1/e1 convoca uma outra voz, a de Bakhtin, em relação a esta voz L1/e1
constrói seu enunciado em posição de co-enunciação, estabelecendo em relação ao PDV
anterior uma oposição que faz, do todo, uma enunciação em sobrenunciação, dominando,
assim, o cenário enunciativo. Nos fragmentos (102) e (103), o foco desta leitura recai sobre
os usos da forma verbal parecer. Em (102), L1/e1 está questionando um pressuposto em
diversos postulados acerca do fato de que as regularidades linguísticas fariam dos tipos de
189
discurso um mecanismo mais estável para análise de texto de que a própria noção de gênero,
mais fluida e sujeita à instabilidade. A voz de e2, neste segmento, representa um defensor
do postulado que L1/e1 questiona e/ou não concorda, sendo esta, pois, a função do verbo
parecer, qual seja, indicar que este enunciador obteve a informação por meio de uma
inferência. Se o emprego deste verbo diminui a confiabilidade do enunciado, em
contrapartida minimiza também o papel da fonte quando ao comprometimento sobre
verdade/falsidade da informação. O uso do verbo parecer no fragmento (103) segue a mesma
lógica do uso em (102) e a ideia de inferência é ainda mais reforçada pelo modalizador que
o segue (pode) e a flexão do verbo ser no futuro do pretérito do indicativo. Estes foram os
principais usos dos verbos de atribuição de fala, considerados “neutros”, no subconjunto de
20 textos estudados no grupo AEE.
Quanto aos demais verbos de elocução, classificados segundo proposta de Thompson
e Yiyun (1991), o quadro abaixo sistematiza suas distribuições no conjunto de 20 textos dos
autores especialistas renomados.
190
QUADRO 25 - OUTROS VERBOS DE ELOCUÇÃO EM TEXTOS DE AUTORES ESPECIALISTAS RENOMADOS
Verbos
Art1 Art2 Art3 Art4 Art5 Art6 Art7 Art8 Art9 Art10 Art11 Art12 Art13 Art14 Art15 Art16 Art17 Art18 Art19 Art20 Total %
abordar
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
0
0
0
0
1
0
1
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admitir
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1
2
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0
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191
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descrever
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diferir
distinguir
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enfocar
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exemplificar
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192
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0
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0
0
0
0
0
0
Total
p/artigo
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10
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7
9
16
14
16
9
13
21
8
9
2
6
12
2
37
8
12
%
2,28% 4,57% 0,46% 3,20% 4,11% 7,31% 6,39% 7,31% 4,11% 5,94% 9,59% 3,65% 4,11% 0,91% 2,74% 5,48% 0,91% 16,89% 3,65% 5,48%
1
1
1
2
3
2
1
2
2
1
2
219
193
0,46%
0,46%
0,46%
0,91%
1,37%
0,91%
0,46%
0,91%
0,91%
0,46%
0,91%
No que diz respeito ao potencial avaliativo, nas categorias atos de L1/e1 (em que este
transfere através do verbo de elocução selecionado a responsabilidade pela informação
citada para e2), foram encontradas 48 ocorrências, sendo 1 de comparação, 70 de teorização
e 23 de atitude. A indicação de ações de L1/e1 no que diz respeito à comparação foi feita
com o uso do verbo concordar, em uma única ocorrência, enquanto a indicação de atos de
de teorização foi detectada com 18 ocorrências do verbo propor, 5 dos verbos defender e
formular, 4 dos verbos criar, elaborar e enfatizar, 3 dos verbos articular, conceber, definir
e sugerir, 2 dos verbos argumentar, destacar, explicitar, expor e sustentar; e uma única
ocorrência dos verbos anunciar, detalhar, exemplificar, idealizar, orientar, reformular,
salientar e tematizar. A ação que indica atitude foi identificada da seguinte forma: 5
ocorrências dos verbos insistir e reconhecer, 4 do verbo admitir, e uma única ocorrência dos
verbos alegar, alertar, alimentar, debitar, explorar, extrapolar, omitir, revolucionar e
tender. Alguns exemplos encontram-se transcritos abaixo:
(104) Art.AEE20
Concordando com Koch (2004), em relação à escrita de um texto, pode-se dar
destaque a duas considerações muito importantes: os processos de referenciação são
escolhas do sujeito em função de um querer-dizer; os objetos-de-discurso não se confundem
com a realidade extralinguística, mas (re)constroem-na no próprio processo de interação, ou
seja, a realidade é construída, mantida e alterada não somente pela forma como
sociocognitivamente se interage com ele: interpretam-se e constroem-se mundos por meio
da interação com o entorno físico, social e cultural.
(105) Art. AEE08
É suficientemente reconhecido que a dificuldade no enfrentamento dessa questão já
era francamente admitida pelo próprio fundador da linguística, Ferdinand de Saussure, ao
alegar que “outras ciências trabalham com objetos dados previamente e que se podem
considerar, em seguida, de vários pontos de vista; em nosso campo nada de semelhante
ocorre (...) Bem longe de dizer que o objeto precede o ponto de vista... é o ponto de vista que
cria o objeto” (Saussure 1977 15)
(106) Art.AEE11
Bakhtin defende que a obra de arte só podia ser comparada com outros produtos da
criação ideológica (ciência, ética etc.) e que a literatura se encontrava em interação ativa
com outras esferas ideológicas, não havendo justificativa para a sua comparação exclusiva
com a linguagem prática. A opção teórico metodológica do círculo tende na direção do
quadro conceitual do que Rastier (2001) chama uma poética generalizada, ao adotar um
ponto de vista unificado sobre os gêneros literários e não-literários para descrever “a
diversidade dos discursos (literário, jurídico, religioso, científico etc.) e sua articulação com
os gêneros”.
(107) Art.AEE18
Alimentando essas e outras discussões, nossa homenageada, professora Charlotte
Marie Chambelland Galves, orientou duas teses que tinham como objeto de investigação a
negação, ou, centralmente, para entender o estatuto desse operador na sintaxe do Português
Brasileiro (Mioto, 1992), ou, perifericamente, para buscar compreender a sintaxe dos clíticos
194
e a mudança gramatical, vista através do fenômeno da interpolação de constituintes entre
‘clítico’ e ‘verbo’, na diacronia do português (Namiuti, 2008)
No exemplo (104), L1/e1 coloca seu enunciado em posição de coenunciação, mas seu
comprometimento não vai muito longe: primeiro porque escolheu um verbo que transfere a
responsabilidade do enunciado para e2, depois, porque ao modalizar a ação que está em
concordância com o enunciado de e2 (pode-se dar destaque a duas considerações muito
importantes) marca sua incerteza a respeito. Situando-o no continuum entre o total
engajamento e o total desengajamento, esse enunciador bem poderia situar-se mais recuado
no polo do desengajamento, mas não no extremo do desengajamento. No fragmento (106)
observa-se a ocorrência de dois verbos que indiciam traços da presença de L1/e1, sua voz se
projeta na medida em que tais verbos traduzem a avaliação feita por esta instância acerca da
atitude de e2, portanto, apesar de introduzir uma voz alheia (a de e2) a instância L1/e1
gerencia o jogo de vozes de tal forma que sua presença não se apaga. Da mesma forma, em
(107), um verbo indicativo da ação de teorização e um verbo indicativo da atitude da
instância e2, coaduna-se, evidentemente, com a intenção de L1/e1 de homenagear e2, tratase de um artigo publicado numa edição em que vários autores publicaram pesquisas
tributárias dos esforços de pesquisa empreendidos pelo autor empírico representado no
enunciado por e2.
Ainda no que diz respeito ao aspecto denotativo proposto na categorização de
Thompson e Yiyun (1991), apresenta-se a categoria atos de autor, aqui nomeadas como
ações de e2,
cujas ocorrências foram relativamente homogêneas, especialmente as
subcategorias atos textual e de pesquisa, com 71 e 64 ocorrências, respectivamente, e ações
de natureza mental com 38 ocorrências. Os verbos classificados como atos textual são:
afirmar, com 14 ocorrências; apontar, com 8 ocorrências; apresentar, dizer e falar com 6
ocorrências; assinalar e descrever, com 4 ocorrências de cada; abordar, colocar e escrever
com 3 ocorrências; citar, concluir, declarar, expor e referir com 2 ocorrências; anotar,
anunciar, comentar e remeter com apenas uma ocorrência de cada um. Os verbos
classificados como atos de autor mental são: considerar, com 17 ocorrências; entender, com
8 ocorrências; reconhecer, com 5 ocorrências; focalizar, com 4 ocorrências; lembrar com
duas ocorrências, e os verbos enfocar e pensar com apenas uma ocorrência cada. Por fim,
os verbos classificados como atos de pesquisa são: mostrar, com 18 ocorrências; denominar
e buscar, com 5 ocorrências; distinguir e examinar, com 4 ocorrências; designar, com três
ocorrências; analisar, compartilhar, concluir, diferir, explorar, separar e trabalhar, com
195
duas ocorrências; caracterizar, conceder, constatar, debitar, escolher, integrar, justificar,
recuperar, relacionar, remeter, tratar e utilizar com apenas uma ocorrência para cada.
No quadro abaixo encontram-se alguns exemplos destes verbos listados acima em seus
contextos de ocorrência:
(108) Art. AEE16
O momento decisivo da mudança linguística está, portanto, localizado no uso
individual. Paul (1880/1920/1970) afirma que tal mudança se dá por meio de “passos
infinitesimais”, um dos quais é o princípio do “maior conforto [articulatório]”, expressão
que se tornou conhecida entre nós como “lei do mínimo esforço”, acaso uma versão infeliz
da denominação original.
(109) Art. AEE16
Sapir (1921/1954) afirmava que o fenômeno da variação linguística acarreta o da
mudança: se há duas ou mais formas em competição, uma delas acabará por vencer a outra.
Essa ideia foi elaborada por William Labov, que a denominou Teoria da variação e mudança.
Seu objetivo maior é apanhar a mudança “em seu pleno voo”, por assim dizer
(110) Art. AEE06
Lee (1995), na linha da Fonologia Lexical, ao considerar dois níveis lexicais na
formação de palavras, alfa e beta, os quais corresponderiam à raiz e palavra respectivamente,
considera que ambas as formas, -inho e -zinho, entram no nível alfa onde recebem acento,
mas o processo de formação do diminutivo, seja com uma seja com outra forma, ocorre no
nível beta, do que se infere que ambos são sufixos do nível da palavra.
(111) Art. AEE05
Deste ponto de vista, a noção de plano de texto constituirá provavelmente uma peça
decisiva, a exigir ainda aprofundamento teórico – como, de resto, faz crer Bronckart, ao
constatar que a noção é “geralmente utilizada em um sentido fraco ou não técnico”, como
a “forma de um resumo do conteúdo temático” a que ele próprio recorre (Bronckart, 1999,
p. 248).
Estes fragmentos foram escolhidos para se demonstrar, exemplarmente, a diferença de
efeitos de sentido ao se escolher um verbo de ação textual, de atividade mental ou de
pesquisa. Os três, aparentemente, neutros, ou com baixa carga de avaliatividade, apresentam
um diferencial: enquanto os verbos de ação textual e de pesquisa – afirmar e constatar, nos
exemplos acima – tendem a representar conteúdos proposicionais mais factíveis, os
representativos de atividade mental – considerar – tendem à menor factividade, diminuindo,
assim, sua confiabilidade. No continuum entre engajamento e desengajamento significa
localizar-se em algum ponto mais próximo do desengajamento que do engajamento.
No que diz respeito ao potencial avaliativo, apresentam-se os dados das categorias
Posicionamento e Interpretação de e2. Trata-se de categorias em que L1/e1 expressa uma
avaliação acerca ou do posicionamento de e2 sobre o conteúdo proposicional de seu
enunciado. Na primeira categoria, encontram-se as subcategorias posicionamento de L1/e1
196
positivo, neutro, negativo, e de e2 fatual, contra-fatual e não fatual. Na subcategoria
posicionamento positivo foram encontradas 41 ocorrências: 5 ocorrências dos verbos buscar
e defender;4 dos verbos admitir e enfatizar; 3 dos verbos articular e recorrer; 2 dos verbos
argumentar, destacar, recuperar e sustentar e apenas uma ocorrência dos verbos anunciar,
detalhar, salientar e tematizar. Na subcategoria posicionamento negativo não se encontrou
nenhuma ocorrência. Na subcategoria posicionamento neutro foram identificados 30
ocorrências: 18 ocorrências dos verbos mostrar e propor; 17 do verbo considerar; 8 do
verbo apontar, 6 do verbo apresentar; 5 do verbo denominar; 4 dos verbos assinalar,
descrever, examinar e focalizar; 3 dos verbos abordar, designar e escrever; 2 dos verbos
analisar, citar, declarar, e expor; e apenas 1 dos verbos constatar,enfocar, exemplificar,
lembrar e pensar .
(112) Art.AEE20
O autor também defende a tese de que não existem categorias naturais, uma vez que
não existe um mundo naturalmente categorizado. A realidade, segundo o estudioso, não está
segmentada da forma como é concebida, e as coisas não estão no mundo da maneira como
são ditas, mas as coisas ditas são coisas discursivamente construídas, e a maioria dos
referentes são objetos de discurso.
(113) Art. AEE18
Plekhânov (1978[1908]), ao criticar a leitura “unilateral” da ação histórica da
economia, argumenta que “numa sociedade primitiva a atividade produtiva exerce uma
ação direta sobre a concepção do mundo e sobre o gosto estético”, porém “numa sociedade
dividida em classes a influência direta da atividade produtiva sobre a ideologia se torna
bem menos aparente. Neste caso, o fator econômico cede lugar ao fator psicológico”
(114) Art. AEE02
Já Signorini (2001b, p. 99-101) aponta para os “hibridismos da escrita”, que se
verificam “no/pelo imbricamento, conjunção, ou ‘mixagem’ – para usar um termo de Street
(1984) –, não só de formas percebidas como próprias das modalidades oral e escrita, como
também de códigos gráfico-visuais, gêneros discursivos e modelos textuais”.
(115) Art. AEE04
Assim, a construção de uma estrutura de explicação deve, como nos propõe Adam
(2011, p. 241), terminar com “um consenso sobre os fatos observados e sobre a causalidade
que os relaciona”.
Enquanto em (112) e (113) encontram-se enunciadores segundos representados como
uma instância absolutamente segura do que diz, (114) e (115) apresentam enunciadores que
são representados como uma instância que não sinaliza nem sobre a segurança, nem sobre a
insegurança acerca de seu próprio conteúdo proposicional. Outra observação que se pode
fazer acerca do exemplo (113): a avaliação positiva com que L1/e1 representa e2 por meio
do delocutivo argumenta, na introdução do enunciado de e2, é reforçada com a reduzida
197
infinitiva anterior utilizando o verbo criticar, que traduz uma avaliação acerca da atitude de
e2, transferindo para esta atitude traços de positividade, ao mesmo tempo em que revela os
traços da presença da voz autoral de L1/e1 no segmento selecionado.
Na subcategoria posicionamento fatual (em que L1/e1 avalia a acuidade do conteúdo
proposicional no enunciado de e2) foram encontradas 51 ocorrências, são elas: 18
ocorrências do verbo mostrar; 5 do verbo denominar; 4 do verbo distinguir, 3 do verbo
definir e designar, 2 dos verbos explicitar, expor, relacionar, trabalhar e utilizar, enquanto
os verbos constatar, detalhar, escolher, exemplificar, integrar, justificar, orientar e tratar
contam com apenas 1 única ocorrência. Não se encontrou ocorrência alguma na subcategoria
posicionamento de autor contra-fatual. Na subcategoria posicionamento de autor não-fatual
foram identificadas 43 ocorrências, sendo 17 ocorrências do verbo considerar; 8 dos verbos
apontar e entender; 4 do verbo descrever e 3 dos verbos escrever e sugerir.
Abaixo, alguns exemplos encontram-se transcritos:
(116) Art. AEE09
Na medida em que, como mostra Benveniste, a constituição da categoria de pessoa é
essencial para a constituição do discurso e o eu está inserido num tempo e num espaço, a
debreagem é um elemento fundamental do ato constitutivo do enunciado e, uma vez que a
enunciação é uma instância lingüística pressuposta pelo enunciado, contribui também para
articular a própria instância da enunciação.
(117) Art. AEE08
Ao distinguir a língua da fala, Saussure separa o que é geral e social do que é particular
e exclusivamente individual. Esse gesto nítido de idealização, que se completa na noção de
sistema de relações, cria um objeto científico apartado da rede de relações sociais que
constitui o discurso.
(118) Art. AEE08
Entende Chambers (1995: 209) que essa face obscura explica em grande parte por
que, nas culturas ocidentais, ou pelo menos, judaico-cristãs, numerosas instituições têm
como uma de suas funções primárias ou secundárias a redução da diversidade linguística em
favor do dialeto padrão.
(119) Art.AEE18
O acompanhamento dessa reflexão permitirá ao leitor conceber um importante ângulo
da polifonia bakhtiniana. Ao observar o texto literário, Bakhtin sugere determinados
aspectos que podem ser estendidos à linguagem comum.
Nestes exemplos, a factividade das proposições de e2 fica demonstrada no uso dos
verbos mostrar e distinguir, nos exemplos (116) e (117), ou seja, trata-se de fragmentos em
que L1/e1 apresenta uma voz externa, mas ao avaliá-la como factível, compromete-se com
sua veracidade, enuncia em posição de coenunciador ou sobrenunciador, conseguindo
projetar sua voz autoral no cenário enunciativo, ao contrário do que ocorre com os
198
fragmentos (118) e (119) cujas vozes são sobrepujadas pela voz de e2, na medida em que
escolhem verbos (entender e sugerir) que não expressam seu posicionamento em relação ao
conteúdo proposicional relatado, representando e2 como uma instância pouco ou não
absolutamente segura acerca da informação contida em seu enunciado. Esta constatação
pode levar às seguintes deduções: i) o comprometimento de L1/e1 com o que ele relata é
reduzido ou ausente, e ii) não se comprometendo, se afasta da cena enunciativa, apaga sua
presença, em detrimento do aumento da presença do outro.
Dois fragmentos exemplares para que se contrastem os posicionamentos factuais e não
factuais estão representados em (117) e (119): em (117) a factividade do verbo distinguir,
na reduzida infinitiva, é reforçada pelo emprego do verbo separar, classificado como ação
de e2 cuja natureza evidencia a atividade de pesquisa, enquanto no fragmento (119) a não
factividade do verbo sugerir é reforçada pelo verbo que denota focalização perceptiva, neste
caso o distanciamento ou o não comprometimento de L1/e1 é maior na medida em que ele
expressa sua avaliação em torno de e2 e seu enunciado por meio de recursos que reduzem a
confiabilidade.
Ainda no que diz respeito ao potencial avaliativo, a última categoria a se apresentar é
a de Interpretação com suas três subcategorias: interpretação do desenvolvimento retórico
do discurso e2, do comportamento de e2 e do status da informação/ autor citados, que juntas
totalizam 5 ocorrências. Na primeira subcategoria, identificou-se apenas uma ocorrência do
verbo resumir. Na subcategoria interpretação do comportamento do autor, encontraram-se 4
ocorrências: 2 ocorrências de cada um dos verbos admitir e reconhecer. Na última
subcategoria, interpretação do status da informação/autor citados, não foi identificada
nenhuma ocorrência de outros verbos de elocução.
No quadro abaixo sistematizam-se a distribuição das ocorrências de outros verbos de
elocução por categorias:
QUADRO 26 - C ATEGORIZAÇÃO DOS OUTROS VERBOS DE ELOCUÇÃO EM TEXTOS DE AUTORES
ESPECIALISTAS RENOMADOS
Categorização de Outros Verbos de Elocução cf. Thompson e Yuyin (1991)
Nº de
Categorias
ocorrências
Atos de
L1/e1
Potencial
denotativo
Comparação/ contraste
Teorização
Atitude
1
70
23
199
41
0
110
Fatual
Contrafatual
Não-fatual
51
1
43
Desenvolvimento retórico do discurso de
e2
Comportamento atribuído a e2
Status da informação/ autor citado
12
23
13
Não manifesta
59
Interpretação:
Potencial avaliativo
Positivo
Negativo
Neutro
Posiciona
mento de
L1/e1
71
38
72
Posiciona
mento de
e2
Atos e2
Textual
Mental
Pesquisa
4.4.3 Das ocorrências na categoria de ordem 8 - Indicações de um suporte de
percepções e de pensamentos relatados
Tal como o encontrado nos textos de alunos de gradução e textos produzidos por
especialistas, esta categoria em textos de autores especialistas renomados também não
resultou muita produtividade. Demonstrando tal constatação, do montante de verbos
categorizados nos 20 textos de autores especialistas renomados, 218, o total dos verbos
classificados como indicativos de suporte de percepções e pensamentos relatados, 11,
representa apenas 5,02%.
Os dois quadros abaixo demonstram as ocorrências desses verbos, no primeiro, uma
síntese das ocorrências, no segundo, alguns excertos em que o contexto das ocorrências pode
permitir avaliar em que medida os efeitos de pontos de vista produzidos pela focalização
perceptiva ou cognitiva contribuem para o estudo da (não) assunção da RE:
QUADRO 27 - I NDICATIVOS DE SUPORTE DE PERCEPÇÕES E PENSAMENTOS RELATADOS EM TEXTOS
DE AUTORES ESPECIALISTAS RENOMADOS
Art
Indicativo de focalização cognitiva
pensar lembrar entender Total
200
AEE01
AEE06
AEE08
AEE09
AEE10
AEE15
Total
0
0
1
1
0
0
2
0
0
1
0
0
0
1
2
1
2
1
1
1
8
2
1
4
2
1
1
11
Destas ocorrências o verbo entender, como representação de atividade cognitiva de
um enunciador segundo foi o verbo preferido. Outro dado relevante foi a ausência absoluta
de verbos que indiquem focalização perceptiva, uma indicação de que a cognição, embora
pouco recorrente, até pode ser aceita como atividade científica, mas a percepção é,
aparentemente, descartada. Vejam-se abaixo alguns exemplos:
(120) Art. AEE01
Por sua vez, seguindo a concepção contemporânea de gênero, Belloto (2002) entende
o testamento como um documento diplomático testemunhal de assentamento, horizontal,
notarial. Disposição ou declaração solene da vontade do testador sobre aquilo que deseja que
se faça, depois da sua morte, com seus bens e fortuna. (Belloto, 2002: 47).
(121) Art. AEE10
É conhecida a afirmação de Barthes (1978, p.14), segundo a qual a língua é fascista,
porque obriga a dizer, bem como é conhecida (embora menos, talvez porque não se pode
expressá-la num slogan) sua tese segundo a qual para os que "não somos ... super-homens
só resta, por assim dizer, trapacear com a língua" (p.16). A literatura seria o domínio que
melhor permitiria esta trapaça, que resultaria em ouvir a língua fora do poder. O que ele
entende por literatura é "a prática de escrever", o que faz privilegiar o "tecido dos
significantes que constitui a obra, porque o texto é o próprio aflorar da língua, e porque é no
interior da língua que a língua deve ser combatida, desviada: não pela mensagem de que ela
é instrumento, mas pelo jogo de palavras de que ela é teatro" (p.17).
Trata-se, como se pode deduzir dos fragmentos acima, de uma imputação feita por
meio do verbo entender, que denota focalização cognitiva. Claro está que L1/e1 atribui o
conteúdo proposicional de e2 a uma compreensão deste a respeito a respeito de algo que
ambos tematizam, mas em (120) o PDV narrado e imputado de e2 é introduzido pelo verbo
de focalização cognitiva em uma inferência de L1/e1 acerca do entendimento de e2, em (121)
o PDV representado de e2 é fonte de certeza para L1/e1 questionar uma determinada
orientação a partir das afirmações de e252. Aparentemente, parece haver maior engajamento
52
É o que se pode observar na porção textual que segue o fragmento (B): Sem discutir aqui a hipótese de
partida do autor, segundo a qual a língua é fascista porque obriga a dizer, porque não permite escolha (p. 1213), que é decorrência de uma das mais claras hipóteses do estruturalismo - a língua é sistema e o sujeito a
201
na fórmula adotada em (121) do que em (120). A maior parte das ocorrências apresenta um
comportamento semelhante ao fragmento (120), sendo (121) a única forma encontrada de
construção do PDV de L1/e1, e feita em coenunciação com e2 mesmo diante do recurso aos
verbos que denotam atividade cognitiva.
4.5 Comparativo entre os três grupos de textos: AI, AE e AEE
Neste tópico, encerrando o capítulo, apresenta-se uma compilação e comparação dos
resultados, traçando-se um paralelo entre os três subconjuntos a fim de se determinar traços
de similaridade e peculiaridade. Inicia-se a exposição pela categoria de ordem 5 e
posteriormente se apresentam as comparações nas demais ordens.
4.5.1 Das ocorrências na ordem 5 – Diferentes Representações da Fala
O discurso reportado é um precioso indicador de como um autor mobiliza o discurso
outro: ele pode resumir, reformular ou citar, integralmente ou em partes, o discurso de um
outro. Deste modo, nesta pesquisa distinguiu-se cinco modos diferentes de representação da
fala: às categorias tradicionalmente conhecidas como discurso direto e indireto somaram-se
a ilha textual, a evocação e o uso de aspas sem menção de autoria. O discurso direto apresenta
como principal característica a criação de um espaço autônomo no plano enunciativo,
blocado ou não. O discurso indireto, especialmente quando há a reformulação do conteúdo
proposicional de e2, com menção a autoria em parênteses e fora do corpo do texto, permite
a integração da fala do outro em seu dizer. A ilha textual é um recurso que tanto permite a
integração quanto a atribuição de um segmento do texto a outro enunciador, na medida em
que, mesmo integrado ao corpo do texto as marcas escriturais como itálico e aspas garantem
evidenciar o segmento citado. Distinguiu-se ainda a evocação (cf. BOCH E GROSSMANN,
2002), recurso que permite deixar os conhecimentos compartilhados em segundo plano e,
ainda assim, inscrever a pesquisa num determinado campo do conhecimento. Cada uma
destas formas de remissão às vozes alheias traduz, a seu modo, uma maneira específica de
mobilização do discurso outro. A comparação dos resultados nesta ordem está sistematizada
no quadro abaixo:
recebe pronta -, propriedade que a teoria do discurso, nos termos de Pêcheux (1969), caracterizou como
funcionamento, e supondo que esta mesma propriedade, o funcionamento, que é no fim das contas a ausência
de um sujeito em sua origem, esteja presente também nos discursos, mesmo nos conteúdos dos discursos, talvez
se pudesse imaginar que a única saída para fugir ao poder dos discursos fosse fazer com eles o mesmo que
Barthes sugere que se faça com a língua na literatura: jogar. (Art. AEE10)
202
QUADRO 28 - COMPARATIVO DAS OCORRÊNCIAS DE DIFERENTES MODOS DE REPRESENTAÇÃO DA
FALA NOS TRÊS GRUPOS DE TEXTOS
Diferentes Modos de Representação da Fala
AI
AE
AEE
Total %
Ilha Textual
31
82
29
142
14,55%
DD
102
211
31
344
35,25%
DI
130
172
132
434
44,47%
aspas sem mencionar
autoria (ou provérbios)
11
10
0
21
2,15%
Evocação
1
8
26
35
3,59%
Total
275
483
218
976
28,17% 49,48% 22,33%
No que diz respeito aos diferentes modos de representação da fala, confirma-se a ideia
inicial de que, de fato, autores iniciantes apoiam-se com muito mais frequência (e por razões
muito diversas, conforme se discutirá no capítulo seguinte) no discurso outro. Do total de
976 ocorrências de remissões ao discurso outro, 275 foram encontradas em textos de autores
iniciantes. No entanto, contrariando-se a expectativa, em textos de autores especialistas
júniores também se detectou um índice relativamente alto: os textos desses autores somam
483 remissões ao discurso outro, correspondendo a 49,48% do total das remissões. Os textos
de autores especialistas renomados fica pouco aquém do total alcançado pelos textos dos
dois outros grupos, mas, ainda assim apresenta uma quantidade razoável de remissões ao
discurso outro com 218 ocorrências de discurso reportado. No gráfico 1 encontram-se
organizados os resultados da categoria 5 – Diferentes tipos de representação da fala –
considerando-se o percentual de ocorrências em cada subcategoria:
203
GRÁFICO 1 - T OTAL DE OCORRÊNCIAS POR TIPO DE REPRESENTAÇÃO DA FALA
204
Em alguns aspectos pode-se dizer que, em se tratando de remissões ao discurso outro,
a escrita dos especialistas e dos autores iniciantes se assemelham, na medida em que em
ambos subgrupos se encontram números semelhantes: tanto especialistas quanto iniciantes
apresentam quantidades altas de remissão ao discurso outro por meio do discurso direto ou
indireto. No entanto, há que se ressalvar que os textos de especialistas são mais longos,
apresentam, em média, 15 laudas, enquanto os textos de iniciantes apresentam, em média, 7
laudas.
O gráfico 2 sistematiza a comparação entre os três grupos de textos.
GRÁFICO 2 – COMPARATIVO DAS OCORRÊNCIAS DE DIFERENTES FORMAS DE REPRESENTAÇÃO DA
FALA NOS TRÊS GRUPOS DE TEXTO
Comparativo - Ordem 5
Diferentes Tipos de Representação da Fala
Por Subgrupo
22%
28%
AI
AE
AEE
50%
Esperava-se um número muito maior de evocações nos textos de especialistas
renomados, no corpus selecionado esta categoria representa cerca de 25% do total de
remissões ao discurso outro. Evidentemente que, se comparado com o montante utilizado
por iniciantes (0,20%) e especialistas júniores (1,66%), ainda representa um índice de
razoável robustez.
205
A forma de representação da fala de maior recorrência, nos três grupos é o discurso
indireto, havendo, no entanto, diferenças marcadas pela reformulação sem introdução de
verbos de elocução e com remissão ao sistema autor/data fora do corpo de texto e o discurso
indireto clássico, com uma reformulação do dizer do outro, verbos de elocução e/ou de outras
fórmulas de introdução do discurso outro, como no exemplo abaixo:
(122) Art. AE05
Essa implantação pode acontecer com a elaboração de dicionários, vocabulários e
glossários especializados, ou seja, o objeto aplicado da terminologia. Tal prática é rigorosa
e sistemática, devendo, pois, respeitar vários princípios entre os quais podem ser citados: •
os termos têm duas vertentes indissociáveis: forma e conteúdo; • deve haver uma relação
unívoca entre forma e conteúdo do termo; • o termo situa-se num campo conceptual
determinado; • um conceito mantém relação com os demais que constituem um campo
temático; • as denominações pertencem a um conjunto de possibilidades estruturais
(CABRÈ, 1993, p. 266)
(123) Art.AI10
Conforme Magalhães (2001), a obra da mato-grossense mais engajada esteticamente
é O berro do cordeiro em Nova York (1995).
É bom lembrar que a reformulação do tipo contida no excerto E do ArtAE05 ocorre
nos três subconjuntos de textos, no entanto sua prevalência no subgrupo AI é mínima,
enquanto um pouco mais abundante no subgrupo AE e absolutamente dominante no grupo
AEE. Isso se deve ao fato de que os especialistas tendem a preferir a reformulação por duas
razões: primeiro, é mais econômica e garante a manutenção de um fio condutor da análise e,
segundo, porque possibilita melhor manejo do gerenciamento enunciativo, uma vez que o
discurso direto introduz obrigatoriamente a heterogeneidade neste plano.
Poder-se-ia ficar tentado a atribuir a desigualdade de projeção da voz autoral, nestes
dois exemplares às porções textuais, comparando-se a extensão de texto, mas, como se verá
adiante, a questão da projeção autoral, do domínio de um ponto de vista sobre outro, ou da
concordância entre eles não está exatamente ligada à extensão de texto, ou a quem tem por
mais tempo o turno de fala. O problema está ligado muito mais ao mecanismo de construção
do PDV em que se evidenciaria os limites mais claros da voz de L1/e1 e de e2, por um,lado,
e outro mecanismo em que não se divisaria claramente os contornos e limites entre as duas
vozes, havendo maior fusão. Veja-se abaixo, o teste feito com outro fragmento do mesmo
artigo AI10:
(124)Art. AE05
206
Essa implantação pode acontecer com a elaboração de dicionários, vocabulários
e glossários especializados, ou seja, o objeto aplicado da terminologia. Tal prática é
rigorosa e sistemática, devendo, pois, respeitar vários princípios entre os quais podem
ser citados: • os termos têm duas vertentes indissociáveis: forma e conteúdo; • deve
haver uma relação unívoca entre forma e conteúdo do termo; • o termo situa-se num
campo conceptual determinado; • um conceito mantém relação com os demais que
constituem um campo temático; • as denominações pertencem a um conjunto de
possibilidades estruturais (CABRÈ, 1993, p. 266)
(125) Art.AI10
Entendemos esta noção de estilo individual, dada por Bakhtin (2003), como aspecto
subjetivo de cada sujeito, que no ato de enunciar faz vir à tona marcas de sua subjetividade
por meio da linguagem. Segundo ele, a consciência individual é reflexo de uma consciência
social, assim, a subjetividade se dá por meio de um processo dialógico do sujeito com o meio
em que está inserido. Desse modo, podemos observar a configuração da subjetividade
da personagem/narradora problematizada na narrativa, pois somos encaminhados
para uma percepção aguçada dos sentimentos e das ideias da protagonista em torno do
mundo que a cerca.
Em (124) é impossível para o leitor que não conhecer os postulados de e2 reconhecer
no texto a presença da voz de e2, determinar exatamente onde começa e onde termina a
presença de e2 e de L1/e1, tamanha a fusão entre as duas vozes, de tal forma que L1/e1
domina completamente o cenário enunciativo. Contrariamente, em (125) é facilmente
marcável os contornos e delimitações da voz de cada uma das instâncias, L1/e1 (em negrito)
e a de e2 (sublinhada), aparentemente o único momento em que as duas vozes se fundem é
na apresentação do PDV de e2 compartilhada por L1/e1. Este autor não apresenta a mesma
perícia no manejo das vozes no texto de modo que sua voz fica diminuída diante da voz de
e2, que domina o cenário enunciativo.
O discurso direto tem grande apelo no grupo de iniciantes e especialistas júniores,
embora não seja a forma com o maior índice de recorrências. Ressalta-se, ainda, que a citação
em discurso direto cumpre funções muito diversas em textos de iniciantes, de especialistas
júniores e seniores: nestes o discurso direto aparece especialmente quando se há necessidade
de exibir, literalmente, a fala do outro, como no caso das definições, enquanto nos textos de
iniciantes, o discurso direto cumpre funções variadas: desde permitir o acúmulo de
fragmentos de diversos discursos teóricos (que podem, ou não, ser adequadamente
mobilizados ao longo do texto), até à sensível minimização dos riscos de uma reformulação
impertinente, fornecer modelos de escrita científica, proporcionando aculturação à escrita
acadêmica, bem como dar a conhecer, aos seus pares, que cita porque aprendeu algo com a
obra citada e, por essa razão, informa a autoria da referida obra (cf. BOCH E GROSSMANN,
2002).
207
Um dado relevante, neste conjunto, é a importância da ilha textual em textos de
iniciantes, contrariando outras pesquisas, como a de Boch e Grossmann (2002) em cujo
corpus a prevalência do discurso direto é maior do que as demais formas de representação
da fala. A ilha textual parece ter para os autores iniciantes o mesmo estatuto que tem a
reformulação para os especialistas, juniores e seniores, representa um apoio valioso na busca
dos mecanismos de apropriação do discurso outro na medida em que permite integrar as
palavras deste outro e ao mesmo tempo mantê-las em seu discurso original, produzindo um
mínimo de reformulação necessária para a integração enunciativa.
4.5.2 Das ocorrências na ordem 6 – Indicadores de Quadros Mediadores
No que diz respeito aos achados da ordem 6 – indicadores de quadros mediadores,
confirmam-se mais similitudes de que diferenças na escrita de iniciantes e de especialistas
juniores. Novamente o salto se configura na escrita dos especialistas seniores. Esta
constatação pode ser confirmada pelos números no quadro abaixo:
208
QUADRO 29 - COMPARATIVO DAS OCORRÊNCIAS DE INDICADORES DE QUADROS MEDIADORES NOS TRÊS GRUPOS DE TEXTOS
Comparativo da ordem 6
Indicativo de Quadros Mediadores
Por tipo de marca linguística
65
55
AI
AE
AEE
38
37
24
15 13
49
44
25
17
6
9
25
25
22
8
0
22
0 8
2 7
12
0 1 3
209
Aparentemente, parece que especialistas júniores se valem mais de marcas
indiciadoras do quadro mediador de que os iniciantes, o que seria uma surpreendente
constatação. No entanto, é necessário relativizar esse dado em função da quantidade de
laudas. Basta lembrar que o conjunto de textos do subgrupo AI apresenta uma média de 5
laudas para a seção Introdução (incluindo Quadro teórico), o que contabilizaria, também,
uma média de 55 ocorrências por lauda, enquanto os textos do subgrupo AE (especialistas
juniores), embora ultrapasse, em números absolutos, o total de indícios de quadros
mediadores na escrita de iniciantes, apresentam em média 9 laudas, contabilizando, assim,
uma média de 53 ocorrências por lauda. Ainda assim, considera-se uma média muito alta
para uma escrita de cujo padrão ideal se espera que seja mais de engajamento e
responsabilização.
No que tange aos verbos de atribuição da fala, os dados coincidem com os encontrados
na categoria de ordem 5. O quadro abaixo demonstra o total de ocorrência dos verbos de
atribuição de fala, tradicionalmente mobilizados no discurso reportado, e que são
considerados como neutros (cf. CHAROLLES, 1976; MAINGUENEAU, 1997):
QUADRO 30 - COMPARATIVO DA OCORRÊNCIA DE VERBOS DE ATRIBUIÇÃO DE FALA NOS TRÊS
GRUPOS DE TEXTOS
Verbos de
atribuiçao
de fala
AI
AE
AEE
Total %
AFIRMAR
45
26
14
85 58,62%
FALAR
2
10
2
14 9,66%
DIZER
10
1
6
17 11,72%
PARECER
0
2
27
29 20,00%
Total
57
39
49 145
%
50,00% 34,21% 42,98%
Na classificação de Thompson e Yiyun (1991), nenhum deles é absolutamente neutro,
podendo, por exemplo, ser avaliado quanto ao potencial denotativo ou avaliativo. Seguindo
essa classificação, estes verbos, no que concerne ao potencial denotativo, se enquadram na
categoria atos de autor textual, ou seja, verbos de elocução relativos aos processos que
envolvem necessariamente expressão verbal, o que não significa, necessariamente, que
L1/e1 não realiza uma interpretação acerca de e2 ou seu conteúdo proposicional e apenas o
representa do modo mais objetivo possível, usando, para isso, os verbos afirma, diz, fala.
Pode-se também postular que uma avaliação pode não ser expressa, mas isso não significa
210
que não tenha ocorrido (OLIVEIRA, 2005). Deste modo, entende-se que a não expressão da
interpretação tanto é importante na análise quanto também o é diferente de não interpretação:
(...) Com isto, deseja-se salientar que entre a não interpretação e sua mitigação
existe uma diferença considerável. Entende-se que a escolha de qualquer verbo de
elocução implica uma avaliação, seja do status do Autor, de sua atitude ou de seu
discurso: a avaliação ocorre sempre, mas pode, por vezes, ser atenuada, mitigada
e, assim, não manifesta. (OLIVEIRA, 2005, p. 194)
Ainda no que diz respeito aos verbos de elocução, seguindo a mesma lógica de
classificação, foram encontradas 104 ocorrências de outros verbos nos textos do subgrupo
AI, 106 ocorrências no subgrupo AE e 49 ocorrências no subgrupo AEE.
O quadro 32 indica o percentual de ocorrências de cada um dos verbos identificados
nos três subgrupos de textos, bem como o percentual de cada subgrupo na somatória dos
verbos identificados nesses textos.
Assim, o subgrupo AI participa do total com 24,24%; o subgrupo AE com 24,71% e o
último subgrupo, AEE, com 51,05%. Novamente é necessário relativizar os dados com
algumas observações. Primeiro o fato de que há uma considerável disparidade no número de
laudas, em média, apresentadas nos três subgrupos: O subgrupo AI, cujos textos tem, em
média 7 laudas, apresentam menor ocorrência de verbos de elocução enquanto nos outros
dois outros subgrupos o número de laudas é cerca de 100% a 150% maior e apresentam,
também por isso, maior número de verbos de elocução. Assim, proporcionalmente, se se
considerar o volume textual no subgrupo AE e AEE se observará uma média maior por
laudas no subgrupo AI.
QUADRO 31 - COMPARATIVO DA OCORRÊNCIA DE OUTROS VERBOS DE ELOCUÇÃO NOS TRÊS
CONJUNTOS DE TEXTOS
Verbo
Abordar
Admitir
Alegar
Alertar
Alimentar
Analisar
Anotar
Anunciar
Apontar
Apresentar
AI
AE
5
0
0
0
0
2
0
0
10
0
AEE
0
0
0
3
0
0
0
2
12
4
Total
3
4
1
1
1
2
1
1
8
6
%
8
4
1
4
1
4
1
3
30
10
1,86%
0,93%
0,23%
0,93%
0,23%
0,93%
0,23%
0,70%
6,99%
2,33%
211
Argumentar
Articular
Asseverar
Assinalar
Assumir
Atrelar
Atribuir
Buscar
Caracterizar
Chamar
Citar
Colocar
Comentar
Comparar
Compartilhar
Conceber
Conceder
Concluir
Concordar
Confirmar
Considerar
Contar
Constatar
contrapor-se
Corroborar
Criar
Criticar
Debitar
Declarar
Defender
Definir
Demonstrar
Denominar
Denunciar
Descrever
Desenvolver
Designar
Destacar
Detalhar
Diferenciar
Diferir
discorrer
Discutir
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
4
6
0
0
0
4
0
0
0
0
16
0
0
0
0
0
3
0
0
0
10
0
0
0
8
1
0
5
0
1
0
1
2
3
0
1
0
1
1
5
0
0
9
1
0
1
1
1
0
0
0
2
8
1
1
2
1
0
0
0
0
3
1
3
0
1
2
1
0
4
0
0
0
0
4
2
3
0
4
0
0
0
5
1
0
2
3
1
0
2
3
1
2
1
17
0
1
0
0
4
0
1
2
5
3
0
5
0
4
0
3
2
1
0
2
0
0
5
3
1
4
1
1
5
5
1
9
7
9
2
1
2
8
1
2
1
2
41
1
2
2
1
4
3
1
2
8
14
3
5
1
14
2
3
11
1
1
2
1
6
1,17%
0,70%
0,23%
0,93%
0,23%
0,23%
1,17%
1,17%
0,23%
2,10%
1,63%
2,10%
0,47%
0,23%
0,47%
1,86%
0,23%
0,47%
0,23%
0,47%
9,56%
0,23%
0,47%
0,47%
0,23%
0,93%
0,70%
0,23%
0,47%
1,86%
3,26%
0,70%
1,17%
0,23%
3,26%
0,47%
0,70%
2,56%
0,23%
0,23%
0,47%
0,23%
1,40%
212
Discutir
Distinguir
Elaborar
Enfatizar
Enfocar
Ensinar
Esclarecer
Escolher
Escrever
Evidenciar
Examinar
Exemplificar
Explicar
Explicitar
Explorar
Expor
Expressar
Extrapolar
Focalizar
Formular
Idealizar
Insistir
Integrar
Justificar
Mostrar
Omitir
Orientar
Ponderar
Postular
Preferir
Propor
Questionar
Reconhecer
Recorrer
Recuperar
Referir
Reformular
Relacionar
Remeter
Ressaltar
Retratar
Revolucionar
Salientar
0
0
5
3
0
0
0
0
0
2
0
0
1
0
0
4
1
0
0
1
0
0
0
0
0
0
0
0
1
0
0
4
0
0
0
0
0
0
0
0
3
0
0
0
1
0
1
0
1
3
0
0
0
1
0
1
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
2
0
1
6
3
1
0
0
1
0
0
0
2
0
1
1
0
4
4
4
1
0
0
1
3
0
4
1
0
2
2
2
0
1
4
5
1
5
1
1
18
1
1
0
0
0
12
0
5
3
2
2
1
2
1
0
0
1
1
0
5
9
8
1
1
3
1
3
2
5
1
2
2
2
6
1
1
4
6
1
5
1
1
18
1
1
2
1
1
18
7
6
3
2
3
1
2
1
2
3
2
2
0,00%
1,17%
2,10%
1,86%
0,23%
0,23%
0,70%
0,23%
0,70%
0,47%
1,17%
0,23%
0,47%
0,47%
0,47%
1,40%
0,23%
0,23%
0,93%
1,40%
0,23%
1,17%
0,23%
0,23%
4,20%
0,23%
0,23%
0,47%
0,23%
0,23%
4,20%
1,63%
1,40%
0,70%
0,47%
0,70%
0,23%
0,47%
0,23%
0,47%
0,70%
0,47%
0,47%
213
Selecionar
Separar
Sugerir
Sustentar
Tematizar
Tender
Teorizar
Trabalhar
Tratar
Utilizar
Total
%
0
0
0
0
0
2
0
1
3
0
0
2
0
0
1
0
0
2
1
0
0
0
0
2
0
0
1
0
0
2
104
106
219
24,24% 24,71% 51,05%
0
2
4
2
1
2
1
2
1
2
429
0,00%
0,47%
0,93%
0,47%
0,23%
0,47%
0,23%
0,47%
0,23%
0,47%
Além disso, outro fator se destaca e está relacionado à classificação dos verbos:
abundam, em todos os subgrupos, os verbos classificados, segundo o potencial denotativo,
como atos de e2 de natureza textual, ou seja, aqueles que expressam uma transferência da
responsabilidade pelo conteúdo proposicional para e2.
Apesar da farta ocorrência nos três grupos, ela é mais prevalente no subrupo AI,
enquanto nos outros subgrupos esta ocorrência concorre com os outros verbos em que se
denotam algum posicionamento de L1/e1. Veja-se abaixo uma comparação que ilustra
melhor essa idéia:
Art.AI4
(126) Clifford Geertz no texto o impacto do conceito de cultura sobre o conceito de
homem, expõe ideias iluministas sobre conceito do ser humano. (...)
(127) (...) Nessa perspectiva, Guimarães (2005, p. 50) observa que “um aspecto
interessante do funcionamento semântico-enunciativo é que na cena enunciativa da
nomeação das ruas um locutor-oficial está tomado por um memorável (enunciação de nomes
de pessoas, datas, etc.).”
(128) Art.AE4
(...) Autores americanos vêm denunciando o que chamam de missing paradigm e no
bojo dessas discussões questionam a ausência de pesquisas sobre as matérias dos conteúdos
ensinados; (...)
(129) Art.AEE4
(...) o próprio Bronckart reconhece afinal outras regularidades, ao relacionar tipos de
discurso e formas de planificação: no que diz respeito à ordem do EXPOR, assume-se que
as esquematizações são o modo de planificação dominante no discurso teórico
(eventualmente acompanhadas de sequências descritivas), enquanto as sequências
argumentativa, explicativa e injuntiva ocorrem sobretudo nos discursos interactivos e nos
discursos mistos (Bronckart, 1999, p. 242-243).
214
No que diz respeito ao potencial denotativo, o verbo de elocução sublinhado no excerto
A do Art.AI1, expor, foi classificado como um ato textual de e2 e o verbo sublinhado no
excerto I do Art.AE7, observar, foi classificado como um ato mental de e2. Em outras
palavras, neste tipo de representação L1/e1 identifica e2 como a instância responsável pelo
conteúdo proposicional citado, representando atividade realizada por e2 como sendo de
natureza verbal no primeiro exemplo e mental no segundo. Ressalta-se aqui o caráter de
complementaridade deste modelo de classificação: a maioria dos verbos são passíveis de
classificação tanto no que concerne ao potencial denotativo quanto ao avaliativo. Assim, no
que diz respeito ao potencial avaliativo, L1/e1, ao mobilizar tais verbos, posiciona-se sobre
o nível de segurança demonstrado por e2, sendo este representado de forma neutra, uma
instância que não demonstra insegurança, mas tampouco demonstra segurança absoluta
sobre a veracidade do conteúdo proposicional citado.
Por outro lado, os verbos de elocução sublinhados nos excertos do Art.AE4 e do
ArtAEE4 foram classificados, no que tange ao potencial denotativo, como atos de L1/e1 de
atitude, o que significa uma diferenciação em relação aos verbos de atos de e2 textual e
mental. Os verbos classificados como atos de L1/e1 de atitude (como nos excertos acima)
sinalizam que não se atribui a responsabilidade sobre o conteúdo proposicional a e2,
traduzindo uma atitude comportamental que faz com que essa responsabilidade se desloque
e recaia primariamente sobre L1/e1 e secundariamente sobre e2, representado como uma
instância que desempenha uma atitude comportamental. Se L1/e1 selecionasse verbos como
afirmar, dizer, falar, representando atividade verbal, ou explicar, denotando atividade de
teorização, por exemplo, haveria a já mencionada transferência da responsabilidade de L1/e1
para e2 e não haveria a exposição de sua interpretação acerca do comportamento de e2.
No que diz respeito ao plano avaliativo, a seleção destes verbos determina uma
interpretação que L1/e1 possa realizar a respeito do discurso de e2. Ou seja, no que diz
respeito à avaliação, L1/e1, neste caso, poderia ter selecionado outros verbos, como
comentar, mencionar, optando por interpretar o discurso ou status da informação/autor
citados. Em vez disso selecionou os verbos denunciar e reconhecer, realizando uma
avaliação do comportamento de e2. Entende-se que ao selecionar os verbos classificados
como “atos de atitude”, L1/e1 se compromete mais diretamente com a informação citada,
representando, através do verbo de elocução selecionado, não apenas uma expressão verbal,
mas, sobretudo, uma atitude comportamental.
Esta proposta de classificação (bem como a questão da quantidade de laudas) esclarece
o resultado, inicialmente surpreendente, de maiores índices de ocorrências de indicadores
215
de quadro mediador em textos do subgrupo AE, pois como se pode observar no quadro 33,
textos do subgrupo AE e AEE apresentaram maior ocorrência de verbos classificados como
atos de atitude, com 11 ocorrências no subgrupo AE e 23 ocorrências no subgrupo AEE,
enquanto no subgrupo AI foram encontrados apenas 3 verbos. Nos demais atos de L1/e1 os
textos do subgrupo AI apresentam menos ocorrências de que nos outros subgrupos: 25
ocorrências de verbos classificados como atos de teorização e nenhum de comparação,
enquanto o subgrupo AE apresenta 41 de teorização e 1 de comparação/ contraste, números
muito próximos aos encontrados no subgrupo AEE com 70 verbos classificados como atos
de teorização e 21 de comparação/contraste. Tais números corroboram também os resultados
encontrados na ordem 5 – diferentes formas de representação da fala – uma vez que, por
exemplo, na subcategoria atos de teorização, L1/e1 identifica-se a si próprio como principal
fonte de responsabilidade pela informação citada, expressando, através dos verbos de
elocução, a função que o discurso representado desempenha em seu texto.
Ainda no que diz respeito ao potencial denotativo, a abundância de ocorrências na
subcategoria atos de e2 de natureza textual encontrada nos subgrupos AE e AI contrariam
os resultados da ordem 5, com um grande número de citações em discurso direto e indireto
nos subgrupos AI e AE e muito menor no subgrupo AEE. Foram encontradas 20 ocorrências
dos verbos que denotam atividade textual nos subgrupos AI, 53 no subgrupo AE e 71 no
subgrupo AEE. Na subcategoria atos de autor mental ocorre maior equilíbrio: maior
ocorrência no subgrupo AEE, com 38 verbos identificados, enquanto no subgrupo AE
ocorreram 26 e 25 no subgrupo AI. Provavelmente a inversão ocorre porque verbos
classificados como atos de autor mental representam atividade cognitiva e/ou perceptiva
mais difíceis de serem identificadas e traduzidas, no entanto os números indicam não haver
grande disparidade entre os grupos.
No que diz respeito ao potencial avaliativo, as diferenças continuam poucas: dos 627
verbos de elocução, identificados no conjunto de 60 textos, 23,12% são considerados neutros
(considerou-se esta classificação um consenso, já que em vários autores não se questiona a
neutralidade desses verbos), tais como afirmar, dizer, falar.
Do total de 145 ocorrências desses verbos, o grupo AI contribuiu com 39,31%, o
subgrupo AE com 26,90% e o subgrupo AEE com 33,79%, novamente, contrariando os
resultados na ordem 5, em que grande parte do volume de citações em discurso direto e
indireto com verbos de elocução estão nos textos dos subgrupos AI e AE. Estes verbos têm
como principal característica mascarar o posicionamento, em outras palavras, se se admite
que todo verbo vincula alguma avaliação, e no caso destes verbos não se pode identificar um
216
posicionamento avaliativo, então é forçoso admitir que alguma avaliação deve haver, mas
por meio do recurso a esses verbos L1/e1 mascara ou atenua sua avaliação e não deixa que
se entreveja seu posicionamento.
Na subcategoria posicionamento de autor positivo é que novamente parece ocorrer o
salto que diferencia os subgrupos: enquanto o subgrupo AE apresenta 16 ocorrências
(24,62%) e o AEE 41 ocorrências, representando 63,08% em relação ao total dos verbos
identificados no conjunto de 60 textos, o subgrupo AI apresentou apenas 8 ocorrências
(12,31%). Na subcategoria posicionamento de autor negativo não foi encontrada nenhuma
ocorrência em nenhum texto dos três subgrupos. A subcategoria posicionamento de autor
neutro apresenta elevados índices de ocorrência com 160 verbos identificados e assim
distribuídos: 11 no subgrupo AI, 39 no subgrupo AE e 110 no subgrupo AEE. Nesta
subcategoria os verbos selecionados não permitem reconhecer se L1/e1 representa e2 de
modo positivo ou negativo, sendo representado como uma instância que nem apresenta um
alto nível de segurança acerca do conteúdo proposicional, nem apresenta insegurança.
O segundo grupo de verbos que expressam o posicionamento dizem respeito a como
L1/e1 se posiciona a respeito da veracidade do conteúdo proposicional citado. Assim, no
conjunto de 60 textos analisados, nenhum se posiciona de forma não-fatual, ou seja, L1/e1
não identifica o conteúdo proposicional citado como incorreto, falso ou impreciso,
provavelmente porque na atividade da escrita científica é muito raro que haja uma
contraposição tão forte a ponto de negar completamente ou em parte o que está posto por
um outro enunciador. Foram encontradas ainda 67 ocorrências, representando 10,68% do
total de verbos de elocução, na subcategoria posicionamento fatual, sendo 10 ocorrências no
subgrupo AI, 6 em AE e 51 em AEE; e 36 ocorrências, cerca de 13,07% do total de verbos
de elocução, foram identificadas como contra-fatual, ou seja, L1/e1 não expressa seu
posicionamento em relação à informação relatada, representando e2 como não
absolutamente seguro da informação citada. Nesta subcategoria, as ocorrências foram
encontradas distribuídas nos três subgrupos da seguinte forma: 18 ocorrências no subgrupo
AI, 21 em AE e 43 em AEE. Em outras palavras parece haver um equilíbrio entre as duas
subcategorias: a fatual e a contra-fatual. Na primeira, L1/e1 posiciona-se sobre a informação
citada, representando-a como verdadeira. Existe, nesta categoria avaliativa, um forte
comprometimento desta instância enunciativa com o discurso que representa, enquanto na
segunda subcategoria L1/e1 não se compromete tanto com a veracidade da informação que
cita, de modo que não chega a formar uma aliança, um acordo com os autores citados.
217
Outra categoria abarcada pelo potencial denotativo, a categoria de interpretação, se
apresenta como a menos produtiva nos textos analisados, embora ainda relativamente
recorrente. Suas três subcategorias somam 104 ocorrências, representando, juntas, cerca de
16,5% do total de verbos de elocução identificados nos 60 textos analisados. A primeira
subcategoria, a de interpretação do desenvolvimento do discurso do autor, apresenta 4
ocorrências no subgrupo AI, 4 em AE e 12 em AEE. A segunda subcategoria, interpretação
do comportamento do autor, que, ao contrário da subcategoria anterior, focaliza o
comportamento de e2 e não seu discurso, apresenta 7 ocorrências no subgrupo AI, 7 em AE
e 23 em AEE. A última subcategoria é a que expressa a interpretação de L1/e1 acerca do
status da informação/autor citados, totalizando o razoável montante de 49 ocorrências: 3 no
subgrupo AI, 33 no subgrupo AE e 13 no subgrupo AEE. Percebe-se, desta forma, que esta
categoria também se mostrou produtiva para diferenciar os grupos, e neste sentido,
novamente o grande salto se observa no grupo AEE.
O quadro abaixo sistematiza a classificação comentada anteriormente:
QUADRO 32 - COMPARATIVO DOS OUTROS VERBOS DE ELOCUÇÃO CATEGORIZADOS NOS TRÊS
CONJUNTOS DE TEXTOS
Atos
L1/e1
Categorização de Outros Verbos de Elocução cf. Thompson e Yuyin (1991)
Categorias
Nº de ocorrências
AI
AE
AEE
Comparação/ contraste
0
1
1
Teorização
25
41
70
Atitude
3
11
23
Total
28
53
94
Textual
20
53
71
Mental
25
26
38
Pesquisa
10
18
72
Total
55
97
181
Positivo
8
16
41
Negativo
0
0
0
Neutro
11
39
110
Total
19
55
151
Fatual
10
6
51
Contrafatual
0
0
1
Não-fatual
18
21
43
Total
28
27
95
Desenvolvimento retórico do discurso de e2
4
2
12
Comportamento atribuído a e2
7
7
23
de
Atos de e2
Potencial denotativo
Posiciona
mento de
e2
Posiciona
mento de
L1/e1
Potencial avaliativo
Interpr
etação
:
218
Status da informação/ autor citado
3
33
13
Total
14
42
48
Não manifesta
65
30
59
4.5.3 Das ocorrências na ordem 8 - Indicações de um suporte de percepções e de
pensamentos relatados
A categoria de ordem 8 abrange os processos mentais (cognitivos ou perceptivos)
envolvidos no discurso reportado. O quadro abaixo demonstra que há pouca diferença entre
os subgrupos AE e AEE, com 42,52% e 38,89% das ocorrências, respectivamente.
QUADRO 33- COMPARATIVO DOS INDICADORES DE SUPORTE DE PERCEPÇÕES E PENSAMENTOS
RELATADOS NOS TRÊS CONJUNTOS DE TEXTOS
Indicações de um suporte de percepções e de pensamentos relatados
AI
AE
AEE Total
%
Focalização Perceptiva
1
6
4
11 20,37%
Focalização Cognitiva
8
17
17
42 77,78%
Total
9
23
21
53
%
16,67% 42,59% 38,89%
Os verbos identificados nesta categoria foram também classificados segundo a
proposta de Thompson e Yuyin (1991), pois tal classificação, além de considerar os aspectos
mentais, inclusos na categoria atos de autor mental, também entende que no aspecto
avaliativo tais verbos também são passíveis de análise.
Esta ordem foi escolhida, apesar das classificações anteriores, por se considerar a
importância dos verbos de percepção representada como uma das características
fundamentais do apagamento enunciativo (RABATEL, 2003).
Abaixo, foram transcritos cinco excertos para comentá-los à luz das reflexões
rabatelianas.
(130) Art.AEE02
Por sua vez, seguindo a concepção contemporânea de gênero, Belloto (2002) entende
o testamento como um documento diplomático testemunhal de assentamento, horizontal,
notarial. Disposição ou declaração solene da vontade do testador sobre aquilo que deseja que
se faça, depois da sua morte, com seus bens e fortuna. (Belloto, 2002: 47).
(131) Art.AE20
Moirand (2006) observa que, embora muito frequentemente o termo responsabilidade
seja associado à prise en charge, eles não devem ser confundidos, C1) uma vez que ela toma
219
a responsabilidade como um fenômeno de ordem filosófica, ética e moral, mais abrangente
que a prise en charge.
(132) Art AE10
(...), ou como pensa Michel Pollak (POLLAK, 1992, p. 210-211) para dar “palavra
àqueles que jamais a tiveram”, uma vez que “é a palavra que ajudará na reconstrução do
corpo fraturado da nação”, segundo Inocência Mata (MATA, 2006, p.138)
(133) ArtAE12
(...). Geraldi (2003, p. 16) também observa a mudança do perfil do profissional das
letras: os professores eram da elite cultural e os alunos da elite social.
Os primeiros excertos, dos artigos AEE2 e AE20 representam a forma canônica do
discurso indireto. A leitura que se pode fazer do excerto, seguindo a proposta rabateliana
(2007) compreende um pdv narrado correspondendo ao pdv perceptivo (limitado ao primeiro
plano narrativo) enfatizando o processo mental de um dos enunciadores em que nem sempre
a perspectiva do fato narrado coincide com a do outro enunciador. Difere-se, nestes
exemplos, o excerto do artigo AE10, marcado pela debreagem enunciativa máxima,
exprimindo diretamente as falas de um locutor, constituindo (como costumeiramente) um
discurso direto, representado pelas aspas e caracterizado como um tipo de PDV dominante
nas sequências argumentativas, havendo coincidência das instâncias enunciador e locutor
(RABATEL, 2007). Os processos mentais (observar) também são expressos no excerto do
artigo AE12, no entanto, parece situar-se naquilo que Rabatel (2007) descreve como PDV
representado: enunciados mais debreados de que o PDV narrado, em que L1/e1 pode trazer
para seu discurso um PDV, compartilhado ou não, e a referência deitico-espacial ou temporal
ganham status de testemunha de um enunciador nomeado ou não.
No capítulo seguinte, a comparação entre os três subgrupos é retomada, sobretudo,
para se demonstrar que, embora seja uma categoria bastante produtiva, a RE (cf. ADAM,
2011), parece insuficiente para responder, por si só, as perguntas desta pesquisa.
220
Capítulo V – Das possíveis relações entre RE e posturas enunciativas
O inconveniente da pesquisa é que por causa dela se
encontra.... o que não se pesquisava. (GENNETE,
G., 1982, p.8)53
Este capítulo propõe-se a traçar uma reflexão sobre os dados expostos no capítulo
anterior, considerando que conhecer os mecanismos que possibilitam a transferência da
responsabilidade de um polo a outro, num continuum que vai desde a concordância absoluta
até a discordância absoluta implicou a detecção dos elementos linguísticos e textuais
definidos nas categorias de análise das ordens 5, 6 e 8: a frequência de ocorrência de verbos
de elocução em discurso direto, das categorias dos verbos de elocução, o papel dos verbos
de percepção na construção do PDV, bem como as diversas formas de representação da fala
e o papel de outros indicadores de quadro mediador.
Neste sentido, retoma-se as questões de pesquisas elencadas no capítulo
Metodologia:
 Quais marcas linguísticas depreendem-se num texto para evidenciar assunção
ou não assunção da RE?
 Essas marcas estão, de alguma forma, vinculadas ao nivel de expertise do
autor acadêmico?
 Se tanto autores experientes como iniciantes se valem do recurso às vozes de
outros autores, o que diferencia então a escrita de ambos?
 Há alguma relação entre a assunção ou não da RE e os mecanismos de
construção do PDV evidenciados nas posturas enunciativas de co-, sub- e
sobrenunciação?
Os próximos tópicos dedicam-se à discussão dessas questões à luz dos resultados
descritos no capítulo anterior.
5.1 Caracterizando a RE (sua assunção e não assunção) em textos de autores
iniciantes, especialistas e especialistas renomados
Nos artigos analisados, as categorias eleitas demonstram que, de maneira geral,
praticamente todas oportunizam a opacificação da avaliação e/ou posicionamento de L1/e1
em relação ao discurso de outro. No que tange à sinalização de uma hierarquia na relação
L’iconvenient de la recherche c’est que à force de chercher, il arrive qu’on trouve...ce qu’on ne cherchait
pas.
53
221
entre L1/e1 e e/2 (normalmente um outro autor do campo científico), os indicadores clássicos
de quadros mediadores (segundo X..., de acordo com X....., para X.....) bem como a seleção
de verbos de introdução do discurso outro apontam para uma relação discursiva assimétrica
de poder e autoridade.
Os resultados desta pesquisa demonstram que, na categoria de ordem 5, por
exemplo, a predominância de discurso direto com um verbo de elocução é aproximadamente
três vezes maior no subgrupo AI e mais de cinco vezes maior no subgrupo AE em
comparação com o subrupo AEE. O discurso indireto (na maioria das vezes, também
acompanhado de um verbo de elocução) é quase duas vezes maior nos dois subgrupos AI e
AE em relação ao subgrupo AEE. Por outro lado, uma forma citacional de grande relevância
no subgrupo AEE, a evocação, é insignificantemente presente no subgrupo AE e inexistente
no subgrupo AEE, como o demonstra o gráfico 3:
222
GRÁFICO 3- COMPARATIVO DA ORDEM 5 POR MODO DE REPRESENTAÇÃO DA FALA
223
Além disso, nos subgrupos AI e AE grande parte das orações projetantes
estabelecem uma relação de interdependência sintática com a oração do discurso reportado,
sendo em sua maioria, subordinadas. Esses dados são relevantes na medida em que traduzem
as diferenças no contexto situacional, relacionadas à tessitura discursiva de textos científicos
produzidos por autores com diferentes níveis de experiência.
Tome-se como exemplo os seguintes excertos que caracterizam, tipicamente, os
modos de mobilização do discurso outro nos três subgrupos:
(134) Art.AI01
Segundo Kleiman (2001, p.20), as instituições escolares mais importantes das
“agências de letramento” têm se preocupado basicamente com a alfabetização, ou seja, com
a aquisição de código, alfabético e numérico, contudo, existem outras agências de letramento
como a família, a igreja, a rua, o local de trabalho, que trazem concepções de letramento
diversificados.
(135) Art.AI03
De acordo com Koch (2002, p.7), “um texto não é simplesmente uma sequência de
frases isoladas, mas uma unidade linguística com propriedades estruturais específicas”, essas
propriedades estruturais estão relacionadas a dois dos critérios de textualidade, a coesão e a
coerência, pois essas contribuem diretamente com a formação do texto. A primeira se trata
da manifestação materializada da segunda, visto que “a coerência diz respeito ao nexo entre
os conceitos e a coesão, a expressão desse nexo no plano linguístico” (Costa Val, 1994, p.7).
A relação existente entre coesão e coerência é, porém, bastante discutida pelos pesquisadores
da área e ainda não há um consenso formado sobre a ligação que envolve esses mecanismos
de textualidade e até que ponto elas são ou não interdependentes. Isso ocorre porque, em
alguns casos, é possível produzir textos coerentes sem o uso de elementos coesivos (os
pronomes anafóricos, os artigos, a elipse, a concordância, a correlação entre os tempos
verbais e as conjunções), assim como também pode suceder a ligação entre frases coesas que
não formam um nexo.
(136) Art.AE04
Considerando-se estas discussões, lembramos também de como a noção
bourdieusiana de auctor e lector contribui para a compreensão do problema proposto para
estudo; utilizamos aqui os termos no mesmo sentido sugerido por Bourdieu (1990) no texto
intitulado “Leitura, leitores, letrados, literatura”. Nesse texto, o autor diferencia o auctor,
responsável pela criação de uma obra original, do lector, aquele que segundo a tradição
medieval lê e interpreta o discurso de outro. Assim, na leitura da PCLP e do guia Subsídios,
podemos opor o trabalho de um e de outro. Ou seja, na medida que os textos publicados no
guia Subsídios resultam de um trabalho de pesquisa científica (e não apenas porque se trata
de professores universitários) caracterizamos seus autores como auctor, enquanto os textos
da PCLP parecem-se, em muitos aspectos, com o trabalho do lector aquele que reelaborando
um discurso original, produz uma leitura desse discurso, podendo, em certa medida,
conformar (ou deformar) o conteúdo da obra originalmente elaborada. Nesse aspecto,
considerando-se o processo de constituição da PCLP, tomamos emprestado o termo que
Silva (2001) utiliza para nomear os manuais pedagógicos: “leituras de leituras”.
(137) Art.AE05
Barbosa (1990, p.153) retomando Saussure afirma que o ponto de vista determina
o objeto. Logo, “este constitui tantos objetos formais distintos quantos forem os pontos de
224
vista e os recortes epistemológicos”. Nesta perspectiva, se o objeto é o léxico, tem-se a
lexicologia e a lexicografia, a terminologia e a terminografia, que se preocupam em analisálo e descrevê-lo.
(138) Art. AE05
A transferência da informação constitui a dimensão comunicativa da linguagem
especializada. Nesse sentido, a terminologia é a base da comunicação entre profissionais (Cf
cabré, 1993). Nessa ótica, poder-se-ia pensar em uma terminologia da avaliação, visto que
os professores têm os mesmos objetivos, escrevem com os mesmos fins e exprimem saberes
temáticos.
(139) Art.AEE02
Assim, todo enunciado, de qualquer texto, remete, simultaneamente, a um gênero
discursivo, a um ponto de vista enunciativo, a uma posição sequencial-composicional e
contribui para construir uma determinada representação discursiva (ADAM, 2011a: 211).
(140) Art.AEE02
Por sua vez, seguindo a concepção contemporânea de gênero, Belloto (2002)
entende o testamento como um documento diplomático testemunhal de assentamento,
horizontal, notarial. Disposição ou declaração solene da vontade do testador sobre aquilo
que deseja que se faça, depois da sua morte, com seus bens e fortuna. (Belloto, 2002: 47)
Estes excertos demonstram uma ligeira variação nos modos de se apoiar no discurso
outro. No conjunto dos textos analisados, dois tipos de citação foram identificados: num
primeiro tipo, a mais predominante, em que o autor citado é um elemento da oração,
ocupando a posição de tema, e sinalizando, com isso, uma ênfase no autor, primariamente,
em vez de enfatizar o conteúdo proposicional citado, caso das citações de segundo tipo, em
que se usa sistema autor/data entre parênteses e fora do período. Considera-se que a
tendência predominante também contribua para engendrar o efeito de “promoção do discurso
do outro” somados aos outros fatores apontados por Grigoletto (2001), na medida em que
contribui, para o apagamento de L1/e1 resultando na interpretação de que o autor citado,
mais do que seu discurso, aparece como elemento predominante, é como se ele, e não a sua
obra, fosse percebido como a autoridade da área de conhecimento.
Este é o padrão mais prevalente em textos de autores iniciantes, também muito
recorrente em textos de especialistas, embora em menor quantidade, pois neste subgrupo
aumenta razoavelmente a quantidade de citações do segundo tipo, valorizando mais o
conteúdo proposicional de que o autor citado, no terceiro subgrupo a predominância dos dois
tipos se invertem: citações do segundo tipo são prevalentes, em detrimento das citações do
primeiro tipo. O que há de comum entre os três subgrupos é o fato de que a esmagadora
maioria das citações são mobilizadas para legitimar o discurso citante (bem como confirmar
o citado) uma vez que são tomadas como discurso de autoridade. Em raros excertos encontrase uma citação em que se coloca em xeque o conteúdo citado, e quando isso é feito o é por
meio de outro enunciador. Veja-se alguns exemplos distintos que ilustram a questão:
225
Art.AI03
(141) Para Koch (2002) existem dois tipos de coesão, a referencial e a
sequencial.
(142) Fávero (2002) traz uma nova proposta de classificação dos tipos de
coesão com estudos iniciados a partir das seguintes indagações em relação ao modelo
classificatório colocados por Halliday e Hasan (...)
(143) Em seguida a autora questiona um dos quatro grupos de fatores de
“conexão sequencial” organizados por Marcuschi e constituídos com base na proposta
de Beaugrande e Dressler
(144) O questionamento de Fávero em relação a isso é o seguinte:
Por que a definitivização é um caso de repetição e não de substituição se,
como dizem Brown e Yule (1983, p. 169), “a informação nova é
caracteristicamente introduzida por expressões indefinidas e
subsequentemente referida por expressões definidas? (Fávero, 2002 p.16)
Art.AI18
(145) De acordo com Orlandi, para Authier-Revuz a noção de heterogeneidade
aparece como sendo uma mistura de (a+b), sendo estes (a+b), recuperáveis e distintos.
Desta forma, a ilusão do sujeito de estar na origem permite a recuperação da
homogeneidade, convivendo assim, ao mesmo tempo, com o visível e a unidade. Já
para a Análise de Discurso é possível somente a combinação ab, onde não há
possibilidade de recuperação da origem, visto que só são efeitos que estão lá.
(146) AE20
Muitos autores, partindo de Adam (2011), entendem a mobilização a um
discurso outro como um indício de desresponsabilização, o que o exame das posturas
demonstrou ser um equívoco, uma vez que a responsabilização, sendo um fenômeno
muito mais relacionado ao texto como todo (ao contrário da PEC que incide sobre o
enunciado) estaria mais relacionada à configuração textual que resulta da questão das
posturas enunciativas do que à menção de um discurso reportado.
(147) AEE7
Por outro lado, ainda, tais textos mostrariam que se trata de um equívoco postular
um papel para a intenção - porque esta abonaria, mesmo que remotamente, a
eventualidade de imaginar possível o controle individual sobre uma instância de
discurso que de fato lhe escapa, porque é social e histórica, por um lado, e porque tem
ingredientes de inconsciência, por outro. Além do mais, segundo a mesma visão, só há
"social" se definido em termos de ideologia, e "cultural" se definido em termos de
imaginário. O que implica reduções. Neste sentido, por exemplo, Grice é reduzido ao
filósofo da intenção, esquecendo-se do pragmaticista que propôs leis (gerais ou não,
corretas ou não) de compreensão indireta ou não literal de enunciados - leis que são
pensadas como "sociais" e conhecidas pelos interlocutores, de alguma forma; Ducrot é
considerado ingênuo (um interlocutor simpático, mas ingênuo), por sua adesão à idéia
de uma espécie de grande contrato, e Benveniste é considerado um idealista, porque
acreditaria que é o sujeito a fonte do sentido (desconhecendo-se - reprimindo? - outras
passagens de seus textos, além daquelas em que aparecem expressões como "ato
individual", "conversão individual" etc)..
Na sequência de fragmentos transcritos do artigo AI03 observa-se um contraponto
(142) à exposição anterior (141), ou seja, L1/e1 se opõe ao que havia exposto a partir da
citação de uma outra voz, que não é nem a dele, nem a que ele havia inicialmente mobilizado.
226
O mesmo fenômeno ocorre no excerto do artigo AI18. Diferentemente do que ocorreu nestes
exemplos, os fragmentos (146) e (147) dos artigos AE20 e AEE07 apresentam, de fato, um
contraponto ao que se expunha em outras vozes a partir da voz de L1/e1. Neste aspecto faz
sentido a desresponsabilização, afinal, trata-se de uma voz com a qual L1/e1 está em
desacordo e assim o manifesta, construindo seu PDV. Ressalta-se que essas foram as raras
ocorrências deste tipo de citação, as demais cumprem o papel anteriormente mencionado,
qual seja, de ratificar o posicionamento de L1/e1 por meio da autoridade de e2.
Ao tratar dos modos de representar a fala entende-se que a voz incorporada ao
discurso de L1/e1 tem a mesma importância que a função desempenhada. No estudo das
vozes identificaram-se dois efeitos distintos: um é o da adição de vozes, que não se misturam
e mantem demarcadas suas fronteiras, outro caso é o da fusão das vozes, mecanismo que
possibilita um acordo ou a encenação de uma aliança entre as vozes de L1/e1 e e2 e, em
alguns casos, o apagamento de e2. Os resultados demonstraram que, em sua maioria, o efeito
produzido no conjunto de textos que compõe o corpus é o da adição de vozes. Nisto,
evidentemente, os subgrupos se diferenciam em função da quantidade de ocorrências deste
tipo de fenômeno: mais prevalente nos subgrupos AI e AE e menos prevalente no subgrupo
AEE, ainda assim ocorrendo em todos os subgrupos.
Associados aos modos de representação da fala (ordem 5), encontram-se, entre os
resultados, os indicadores de quadros mediadores, cuja distribuição de ocorrência entre os
três subgrupos corroboram dados encontrados na ordem 5, sendo os clássicos “segundo X
...” (bem como suas variantes) e os verbos de introdução do discurso outro as formas mais
recorrentes encontradas dentre os índices de quadro mediador. A distribuição, no geral, entre
os três subgrupos demonstra o que já se havia percebido na categoria de ordem 5: a grande
maioria das ocorrências estão no subgrupo AI e AE, de todo modo também estão presentes,
ainda que em menor quantidade no subgrupo AEE, o gráfico, a seguir, demonstra esta
constatação:
227
GRÁFICO 4 - COMPARATIVO DA ORDEM 6 - POR CONJUNTO DE TEXTOS
Comparativo da ordem 6
Indicativo de Quadros Mediadores
Por tipo de marca linguística
AI
AE
AEE
65
55
38
37
25 25
24
15 13
49
44
17
6
9
25
22 22
8
0
0 8
2 7
12
0 1 3
228
Nos excertos anteriormente transcritos, observam-se, sublinhados, alguns verbos de
elocução, que indicam ao leitor a presença de outras vozes/ fontes do dizer no texto. Tais verbos,
bem como a remissão ao sistema autor/data, além de impedir a fusão das vozes também
cumprem a função de demarcar as porções textuais de responsabilidade de L1/e1 e as porções
pelas quais ele não se responsabiliza, transferindo essa responsabilidade para e2. Ou seja,
quando L1/e1 seleciona um determinado verbo de elocução, ele sinaliza para o leitor que há
uma distância discursiva entre sua voz e as demais vozes presentes em seu texo e que tal
distância pode variar num continuum, desde uma distância mínima, caracterizada pelo
amálgama entre as vozes, até a distância máxima, cuja separação é evidenciada por: i) presença
do verbo de elocução associado ou não às fórmulas “segundo X...” e suas variantes, ii) pelo tipo
de relação estabelecida entre a oração que introduz o discurso citado e este (se subordinada ou
coordenada), e iii) pelo fato de em algumas citações o nome do autor ocupar posição
privilegiada na organização sintática: dentro do bloco de texto, e, na maioria das vezes, sujeito
da oração principal.
O verbo de elocução, analisado sob a perspectiva de seu potencial denotativo, permite
L1/e1 expressar o conteúdo proposicional citado como uma atividade de e2 no mundo real, e
sob o viés avaliativo, pode tanto expressar uma apreciação da atitude de e2 quanto abster-se de
expressá-la. O potencial ilocucionário de um verbo de elocução é definido em função do
contexto de ocorrência. Para ilustrar essa idéia, tome-se como exemplo um excerto retirado do
corpus:
Art.AI20
(148) Camacho (2001, p. 72) acredita que “uma consequência drástica desse conflito
pode ser a rejeição tática da variedade padrão, em termos de ensino de língua e de outros valores
da classe dominante. Na prática, tudo redunda em evasão e repetência escolar.”
(149) Art.AE15
(...) Orlandi (2001: 44) retomando Lacan (1966) define a metáfora “como a tomada
de uma palavra por outra. Na análise de discurso, ela significa basicamente ‘transferência’, o
modo como as palavras significam”. (...)
A citação entre aspas apresenta um ato ilocucionário e um verbo de elocução em uma
oração principal que, ao mesmo tempo, denota atividade realizada e indica o posicionamento
(ou não posicionamento) de L1/e1 acerca deste ato ilocucionário. Postula-se que o conteúdo
proposicional entre aspas poderia expressar qualquer conteúdo, não importa, pois é o verbo de
elocução selecionado por L1/e1 que indica como o conteúdo será interpretado, tanto que não é
difícil manipular esses dois excertos de modo a se obter o seguinte:
229
(149a)
* (...) Orlandi (2001: 44) retomando Lacan (1966) acredita que a metáfora seja “como
a tomada de uma palavra por outra. Na análise de discurso, ela significa basicamente
‘transferência’, o modo como as palavras significam”. (...)
O que a manipulação acima demonstra é a relevância da escolha do verbo de elocução,
na medida em que ele orienta a interpretação que L1/e1 deseja dar às vozes que ele incorpora
em seu discurso e evidencia como pertencente a uma outra fonte, por exemplo, Orlandi, a voz
de e2, no excerto (149) do artigo AE15, poderia ter sido representada como uma crença ou
especulação (como o demonstra a manipulação produzida), no entanto, foi apresentada como
uma definição, sendo, portanto, primeiramente relacionada à função desempenhada no discurso
citante (teorização), e, secundariamente, se relaciona ao que a voz tem a dizer.
A partir destas considerações reitera-se o valor dos verbos de atribuição de fala dentre
os recursos indicadores de quadro mediador, na medida em que orientam a interpretação que
L1/e1 faz e leva o leitor a fazer acerca do conteúdo proposicional citado. A presença destes
verbos sinaliza uma distância discursiva, identificam a voz citada como uma alheia àquela que
a incorpora em seu texto, e, sobretudo, indicam uma relação hierárquica assimétrica entre essas
vozes, pois é apresentada como autoridade, cumprindo assim um papel discursivo e estratégico
chave na identificação da presença de outras vozes e autoridades num texto.
Entende-se que a alta frequência desses verbos de elocução em discurso direto nos
artigos do subgrupo AI e AE bem como uma presença discreta nos artigos do subgrupo AEE
podem ser interpretadas como um sinal de assimetria cujo princípio repousa sobre as diferentes
distâncias discursivas, de modo que tanto maior a distância discursiva entre L1/e1 e e/2 maior
é a frequência do discurso direto. Esta proporção se relaciona com a necessidade de L1/e1
explicitar, de forma inequívoca, a incorporação de vozes alheias ao seu discurso. Da mesma
forma, a baixa frequência do discurso direto, sobretudo em textos do subgrupo AEE, sinalizam
que L1/e1 relaciona-se menos assimetricamente com as outras vozes e revela seu domínio no
gerenciamento e fusão das vozes, diminuindo a distância discursiva entre as vozes em vez de
ressaltá-la.
Em outras palavras, além da função de legitimação do discurso de L1/e1, os resultados
expostos no capítulo anterior sugerem que tanto nos textos do subgrupo AI quanto no do
subgrupo AE o discurso direto com um verbo de elocução deve ser interpretado considerandose dois aspectos: um em que se evidencia a necessidade de L1/e1 identificar a voz alheia
incorporada ao seu texto, revelando assim relações assimétricas de autoridade, evidenciadas na
dificuldade e/ou falta de domínio no gerenciamento e fusão destas vozes; e outro aspecto em
230
que o discurso direto, por meio do verbo que o introduz, orienta L1/e1 e seus leitores na
interpretação e avaliação do que a voz citada tem a dizer. No entanto, observa-se que, ainda
que um verbo de elocução dê margem à interpretação, isso não significa que L1/e1 o faça de
forma explícita.
De um modo geral, o que ocorre com a maioria das citações sugere que este enunciador
se posiciona numa escala hierárquica de inferioridade em relação às vozes citadas, sendo
notável a necessidade de transferir a responsabilidade pelo conteúdo proposicional citado para
e2, por meio da expressiva ocorrência de verbos que expressam atos textuais de autor e da baixa
frequência de avaliação, ou nula no caso do subgrupo AI, por meio dos verbos categorizados
como atos de escritor de atitude. É o que ficou demonstrado nas categorias denotativas e
avaliativas. Esses aspectos, associados à alta frequência da não-manifestação da avaliação com
as 65 ocorrências no subgrupo AI e 30 no AE, e 59 no AEE, indicam igualmente um papel
hierárquico inferior de L1/e1 em relação a e2. Por último, entende-se que a relação da
interdependência oracional estabelecida entre a oração citante e a citada modaliza e atenua o
acima exposto: grande parte das citações, inclusive as de discurso direto, cumprem a tarefa de
minimizar a distância discursiva, estando organizadas em períodos compostos por
subordinação. Ou seja, a despeito do fato de que nos subgrupos AI e AE L1/e1 seja mais
tendente ao posicionamento hierárquico inferior em relação a e2 enquanto AEE é menos
tendente, a distância hierárquica entre as vozes em todos é minimizada pela organização
sintática.
O contexto de produção também pode revelar dados importantes na leitura dos dados.
A maioria dos textos do subgrupo AI são trabalhos de final de disciplina, ou seja, artigos feitos
para atender a demanda de um professor e uma disciplina, cuja finalidade é, sobretudo, a
avaliação na disciplina. Alguns desses artigos foram publicados na revista de graduação do
curso de licenciatura em Letras ao qual os autores estavam vinculados. A maioria dos textos
produzidos por autores do subgrupo AE são artigos publicados em anais de eventos, apenas
uma minoria foi objeto de publicação em periódicos da área científica. Os textos produzidos
por autores do subgrupo AEE foram publicados em periódicos científicos internacionais e
nacionais e equalizados. Neste aspecto é esperado que no subgrupo AI haja maior remissão ao
discurso outro como forma de demonstrar ao avaliador que conhece a obra/autores citados,
normalmente autores estudados no âmbito da disciplina cursada. Seu único leitor, na maioria
das vezes, é o professor da disciplina. Pode-se dizer, ressalvadas as devidas proporções, que o
contexto de produção dos textos agrupados sob o rótulo AE e AEE são, não apenas do ponto
de vista da estrutura do texto, mas principalmente do ponto de vista da função social, autênticos
231
exemplares do gênero artigo científico, enquanto os textos produzidos nas disciplinas, se
assemelham, em grande medida, ao menos do ponto de vista da função social, aos gêneros
textuais diversos reproduzidos na escola básica. Um aspecto estrutural que confirma essa
hipótese é a de que diversos textos produzidos sob o rótulo AI apresentam capa e, em alguns,
folha de rosto, com a função única de identificar o produtor do texto, bem como professor e
disciplina para cuja avaliação o texto fora escrito. Esses aspectos, associados à falta de domínio
dos mecanismos de gerenciamento das vozes alheias, podem, ao menos em parte, justificar a
tendência de representar as vozes alheias com um status e poder mais elevados de que a voz de
L1/e1, posição diametralmente oposta quanto mais se avança no nível de experiência,
chegando-se ao máximo de atenuação da distância discursiva entre L1/e1 e e2 em textos do
subgrupo AEE.
Compreende-se, igualmente, que como a distância discursiva entre os enunciadores
nos textos do subgrupo AE e AEE é, em graus variados, menor do que a presente nos textos do
subgrupo AI, espera-se que, em tais textos, o enunciador primeiro se apresente como uma
instância mais autoral e/ou com mais liberdade para o gerenciamento das vozes incorporadas
ao texto. Esta maior liberdade na textualização de diferentes vozes pode estar relacionada ao
fato de que, como observado anteriormente, esses autores normalmente escrevem para seus
pares, membros expertos da comunidade acadêmica.
Nesta mesma linha argumentativa, interpreta-se a maciça presença de verbos de
elocução introduzindo discurso direto nos textos do subgrupo AI e, pouco menos, no subgrupo
AE como sinalizadora da tensão entre os diversos níveis de expertise que caracterizam os
membros da comunidade acadêmica, caracterizada por três aspectos distintos mas
complementares: i) a superioridade discursiva de e2 em relação a L1/e1, considerando-se e2
como a voz daqueles que produzem o conhecimento, normalmente são autores de grande
prestígio no meio acadêmico e/ou idealizadores de quadros teóricos ou com discussões teóricas
robustas e vigorosas, de modo que e2 se situa num polo, o do produtor, e L1/e1 se situa no outro
polo, o de reformulador, divulgador ou consumidor; ii) Essa polaridade observada produz um
efeito de restrição ou constrangimentos na apropriação ou adaptação do discurso de e2 por
L1/e1; e, por fim, iii) acaba por cristalizar diferenças discursivamente construídas tolhendo a
ocupação do espaço avaliativo em função do distanciamento entre a voz citante e a voz citada.
Para encerrar estas considerações, é interessante observar que, de fato, a diferença
hierárquica entre os enunciadores funciona como uma barreira impedindo ou restringindo o
posicionamento avaliativo de L1/e1 nos textos do subgrupo AI, mas, também é verdadeiro que
a autoridade socialmente atribuída ao contexto acadêmico constrange esse enunciador a buscar,
232
cada vez mais, o padrão de escrita mais aproximado possível daquele utilizado no contexto de
produção do conhecimento, é por essa razão que se vislumbra em textos do subgrupo AE uma
aproximação rumo a este padrão, embora ainda mantenha muitas características do subgrupo
AI.
5.2 Das relações entre a RE e as posturas enunciativas
As considerações expostas no tópico anterior respondem as duas primeiras perguntas
desta pesquisa, transcritas no início deste capítulo. Neste tópico que se inicia, pretende-se
ensaiar uma resposta adequada às duas últimas questões, para tanto, são retomadas:
 Se tanto autores experientes como iniciantes se valem do recurso às vozes de
outros autores, o que diferencia então a escrita de ambos?
 Há alguma relação entre a assunção ou não da RE e os mecanismos de construção
do PDV evidenciados nas posturas enunciativas de co-, sub- e sobrenunciação?
Partindo-se da premissa bakhtiniana de que não há o discurso adâmico, que qualquer
discurso retoma um outro, entende-se que a remissão ao discurso outro é natural, até mesmo, e,
principalmente, no texto acadêmico, uma vez que mesmo ao se construir uma trajetória de
pesquisa que se contrapõe às anteriores, é necessário considerar, ao menos em parte, um
discurso outro. O exame dos resultados expostos no capítulo anterior aponta para a confirmação
de que, a despeito das diferenças discutidas nos tópicos anteriores, os três subgrupos apresentam
textos com remissões ao discurso outro, o que, forçosamente, leva a se perguntar, o que, então,
para além das categorias elencadas para o estudo da RE, diferencia essas escritas? Considerase, desta forma, que é no exame das posturas enunciativas que se encontraria uma explicação
plausível para estes questionamentos.
5.2.1 A proposta rabateliana de posturas enunciativas
Ao longo de vários artigos, Rabatel (2003, 2004, 2005, 2013) discute a noção de
posturas enunciativas. Tais posturas e sua hierarquização cumprem um papel relevante na
arquitetura textual: nos textos orais, este regime determina, dentre outros fatores, o
gerenciamento dos turnos de fala, a ratificação e/ou invalidação da fala de outro, e a
reformulação. Na escrita, a noção diz respeito mais pertinentemente à questão da pluralidade
das vozes no discurso.
233
A discussão de tais posturas requer a revisão de alguns postulados, dentre os quais, o
apagamento enunciativo (effacement enonciative), que por sua vez requer a retomada da noção
de disjunção enunciador-locutor, conforme apresentada pelo autor a partir de Ducrot (1984).
Na perspectiva rabateliana a distinção entre locutor e enunciador, bem como entre enunciadores
primeiros (E1) e segundos (e2) é fundamental não apenas para contemplar a referenciação de
um dictum (e por conseguinte de suas modalidades), como também para adequadamente se
refletir sobre os fenômenos de modalização a partir de posicionamentos auto e heterodialógicos.
A distinção entre locutor (a instância que pronuncia um enunciado, embreado ou
desembreado) e enunciador (o que atualiza a operação realizada pelo sujeito modal) que assume
o enunciado num sentido um pouco mais abstrato que o da prise en charge, se ampara na
ancoragem dêitica (RABATEL, 2004). Tal distinção, que inclusive abrange possíveis
sincretismos entre o locutor e enunciador, ou entre locutores, enquanto seres no mundo, permite
uma reflexão mais abrangente acerca dos desequilíbrios interacionais, especialmente os
decorrentes das disputas de poder acordadas entre os enunciadores.
Convém também lembrar que a abordagem dialógica do discurso reportado abrange
uma variedade de formas: o discurso direto, o indireto, direto livre, narrativizado, as ilhas
textuais em discurso direto, o discurso direto introduzido por indicações de quadros mediadores
(como o clássico “Segundo X...” e suas variantes) e o condicional , expressão típica da
alteridade enunciativa encontrada comumente nas hipóteses, ou mais amplamente também no
discurso jornalístico. Tais formas podem ser consideradas dialógicas na medida em que o
discurso de L1/e1 se revela permeado por traços do PDV de outros por meio de mecanismos
diversos, conferindo à presença autoral uma gradação que se poderia estabelecer entre a
concordância absoluta (a concordância concordante) e a discordância absoluta (a discordância
discordante).
Também se observa em Rabatel (2004) que tal gradação não está, absolutamente,
limitada aos marcadores pessoais e espaço-temporais, abrangendo, assim, toda forma de
referência em que a interpretação não é apenas operada em função de domínios situacionais,
mas, sobretudo, pelo fato de poder afetar uma ou mais instâncias:

Locutor citado: instância afetada, na medida em que a origem enunciativa é
opacificada, por vezes até omitida pelo locutor citante que representa o
discurso outro, e não apenas o relata. Esta representação pode ser feita de forma
que apaga uma parte do contexto original, seja por meio da ilha textual, do
234
discurso indireto ou narrativizado, apagando também do dizer original e o
conjunto de informações atrelados à origem da fonte enunciativa.

Locutor citante: instância que tanto pode apagar, como também mover e
modificar as marcas do discurso citado, suprimindo as marcas de atribuição da
fala, as de abertura e fechamento do discurso citado, ou ainda modificar a
orientação argumentativa original bem como representar enunciados
embreados como se fossem desembreados. Tais modificações, no plano
linguistico, envolvem repercurssões de natureza pragmática uma vez que
modificam, superficial ou profundamente, o pdv do discurso citado,
opacificando, assim o pdv do discurso citante.
Importa ainda considerar que tais marcas não são da mesma natureza, pois, o locutor
citado é uma instância afetada pela desinscrição enunciativa do locutor citante, resultado de
suas escolhas, não implicando, necessariamente, prejuízo de sua pertinência. (RABATEL,
2003)
Há que se considerar, também, que o apagamento enunciativo dos discursos citantes
e/ou citados acarretam efeitos pragmáticos para os quais Rabatel (2003) propõe uma reflexão
acerca dos elementos de um tópico enunciativo baseada em três posturas que desempenham
determinados papéis na construção interacional dos pontos de vista:

Co-enunciação: corresponde a uma co-produção de um ponto de vista comum
e compartilhado. Não se trata exatamente do proposto em Jeanneret (1999),
uma vez que Rabatel não descreve essa postura como uma co-produção de um
enunciado comum formulado pelos dois enunciadores simultaneamente,
resultado de uma projeção das reações do interlocutor e realizada por um
locutor com vistas à obtenção de um consenso, mas, sobretudo, como um
fenômeno de co-locução que não pressupõe obrigatoriamente a partilha de um
ponto de vista comum pelos dois locutores. O fenômeno de acordo sobre um
pdv é quase sempre frágil, revelando que a coenunciação é apenas uma forma
ideal de cooperação, fugaz e instável cede logo espaço à subenunciação ou
sobrenunciação. (RABATEL, 2003)

Subenunciação: caracterizada pela expressão de um ponto de vista
interacionalmente dominado, em proveito do sobrenunciador. O PDV
subenunciado é tributário de um quadro de predicações apresentado como
pertencente a um locutor/enunciador anterior enquanto esta predicação,
235
emanada pelo locutor subenunciador, é apresentada como decorrente daquela
que a precede, de modo que o locutor não poderia ser considerado plenamente
como o enunciador do PDV, sendo um mero apresentador de um ponto de vista
pertencente a uma outra instância (e2)

Sobrenunciação: definida como a expressão interacional de um
ponto de vista dominante, em que tal dominância é reconhecida pelos outros
enunciadores e chega, por vezes, a desempenhar o papel de tópico discursivo.
Nos tópicos seguintes, propõe-se uma discussão a respeito dessa classificação em
segmentos selecionados do corpus.
5.3 As posturas enunciativas no corpus selecionado
Alguns exemplos identificados nos textos do corpus serão aqui listados e classificados
enquanto posturas enunciativas, a relação entre essas posturas e possíveis relações com a
construção do PDV são discutidas concomitante à classificação dos segmentos de texto
selecionados. Optou-se, aqui, por marcar em negrito as marcas indiciadoras de simetria
enunciativa (em que ocorre co-enunciação), em itálico as de dissimetria (casos de
subenunciação ou sobrenunciação) e sublinhar as mudanças de orientação argumentativa
resultantes seja da sobrenunciação, seja de co-enunciação.
5.3.1 Exemplos de co-enunciação
(150) Art.AI03:
Neste trecho é possível perceber o uso do pronome possessivo “seu” de maneira
correta, visto que este se trata de um caso de referência anafórica usada para que o leitor
compreenda que a palavra “pai” está relacionada com o sujeito “Cândida”. De acordo com as
propostas de Fávero, este pronome se comporta como uma pro – forma pronominal e
desempenha função de pro – sintagma para que não fosse necessário repetir a palavra
“Cândida”. Porém o pronome “dele” causa uma ambiguidade no sentido, pois não foi
especificado a quem este faz referência, podendo o leitor interpretar que “Patrício” é o nome
do pai de “Cândida”, ou se trata do homem por quem a personagem está apaixonada.
(151) Art. AE03:
Procuramos observar as relações entre a pesquisa acadêmica e as orientações oficiais
elaboradas nos dispositivos, com o objetivo de compreender de que modo as pesquisas
acadêmicas podem ter ou não proporcionado uma reorientação no ensino de Literatura,
incluindo-se aí o exame das diferentes tensões que são produzidas nas relações entre as
concepções teóricas de literatura e de ensino que fundamentam a proposta curricular, ou seja,
procuramos observar o ponto de vista definido por Geraldi (2003, p.74), que vê no
trabalho pedagógico uma “fetichização do produto do trabalho científico”, ou seja,
analisando a correlação entre o trabalho de ensino e o científico, o autor define uma noção que
236
vai além da mera vulgarização dos conteúdos, para ele o trabalho pedagógico autonomiza as
descrições e explicações lingüísticas desconsiderando o processo de produção do trabalho
científico que produziu as descrições e explicações ensinadas.
(152) Art. AE03:
Considerando-se estas discussões, lembramos também de como a noção bourdieusiana
de auctor e lector contribui para a compreensão do problema proposto para estudo; utilizamos
aqui os termos no mesmo sentido sugerido por Bourdieu (1990) no texto intitulado “Leitura,
leitores, letrados, literatura”. Nesse texto, o autor diferencia o auctor, responsável pela criação
de uma obra original, do lector, aquele que segundo a tradição medieval lê e interpreta o
discurso de outro. 1) Assim, na leitura da PCLP e do guia Subsídios, podemos opor o
trabalho de um e de outro. Ou seja, na medida que os textos publicados no guia Subsídios
resultam de um trabalho de pesquisa científica (e não apenas porque se trata de
professores universitários) caracterizamos seus autores como auctor, enquanto os textos
da PCLP parecem-se, em muitos aspectos, com o trabalho do lector aquele que
reelaborando um discurso original, produz uma leitura desse discurso, podendo, em certa
medida, conformar (ou deformar) o conteúdo da obra originalmente elaborada. Nesse
aspecto, considerando-se o processo de constituição da PCLP, tomamos emprestado o termo
que Silva (2001) utiliza para nomear os manuais pedagógicos: “leituras de leituras”.
(153) Art. AEE3:
No plano modal, sua característica mais interessante é, evidentemente, o deslocamento
entre aquele que profere o provérbio e aquele que garante sua veracidade. Berrendonner (1982:
207-11) fala de uma “citação-eco”, em que a mesma proposição seria sucessivamente assumida
por duas instâncias de fala: SUJEITO UNIVERSAL, depois EU.
(154) Art. AEE 4:
Sem pôr em causa a oposição que acaba de ser enunciada, pode, no entanto, perguntarse se os tipos de discurso constituem efectivamente o único caso de regularidade, no conjunto
da organização textual – como parece sugerir Bronckart, ao afirmar: “qualquer que seja o
género a que pertençam, os textos, de fato são constituídos, segundo modalidades muito
variáveis, por segmentos de estatutos diferentes (segmentos de exposição teórica, de
relato, de diálogo, etc.). E é unicamente no nível desses segmentos que podem ser
identificadas regularidades de organização e de marcação lingüísticas” (Bronckart, 1999,
p. 138, grifo meu). (154a) o próprio Bronckart reconhece afinal outras regularidades, ao
relacionar tipos de discurso e formas de planificação: no que diz respeito à ordem do
EXPOR, assume-se que as esquematizações são o modo de planificação dominante no discurso
teórico (eventualmente acompanhadas de sequências descritivas), enquanto as sequências
argumentativa, explicativa e injuntiva ocorrem sobretudo nos discursos interactivos e nos
discursos mistos (Bronckart, 1999, p. 242-243).
Nos excertos acima, observa-se que o PDV é construído conjuntamente, no excerto
(150) L1/E1 busca o apoio de um enunciador especialista para compor seu PDV, que é, a partir
deste apoio, uma co-construção com a voz do especialista atuando como co-enunciador. No
trecho negritado, neste fragmento, uma fala do co-enunciador, que assinala seu PDV afirmado,
“este pronome” retoma imediatamente o que fora dito por L1/E1 acerca das marcas pronominais
num texto que estava analisando. No entanto, L1/E1 ultrapassa a mera noção de concordância
quando complementa com sua observação de que naquele caso o pronome fora mal utilizado:
“Porém o pronome ‘dele’ causa uma ambiguidade no sentido, pois não foi especificado a quem
237
este faz referência”. Neste caso o conectivo, “porém” apresenta um argumento para o que
defende no texto, o fato de que não basta usar conectores se não se faz a referência adequada.
Tal recurso constitui evidência de que os enunciadores em questão se encontram em posição de
concordância. Trata-se de uma prise em compte no grau máximo estabelecida no acordo ente
L1/E1 e e2, não se constitui numa imputação, uma vez que a fala do outro enunciador (Fávero)
é integralmente reportada pelo uso das aspas. Da mesma forma o excerto em 154, artigo AEE4,
também se realiza na concordância, em que o pdv da autora se constrói a partir do
questionamento a uma proposição do autor citado. O seu questionamento pode até ser
considerado original, mas a discussão proposta para ele não o é, pois, o segmento seguinte
(154a) confirma a idéia de que a discussão na base do questionamento do pdv de L1/e1 é, na
verdade, uma retomada de questionamentos já presentes nos fragmentos negritados
pertencentes a e2.
Tais fragmentos são exemplares de uma prise en compte que se configura como um
caso de PEC, indicando um grau máximo de asserção, em que o conteúdo é assumido e tomado
como “verdadeiro” por e2. Nesses trechos, a PEC desempenha um papel específico,
contribuindo para reforçar a orientação argumentativa do texto, na medida em que, para fazer
valer a posição defendida, L1/E1 ancora seu PDV no PDV do enunciador especialista e ainda
acrescenta um argumento original não contido em e2. Pode-se também afirmar que o PDV de
e2 tem um papel fundamental na construção do PDV de L1/E1, ou seja, o PDV principal que
guia a orientação argumentativa do texto.
Os excertos (151) e (152) igualmente são considerados como co-construção de um
PDV em que L1/E1 busca o apoio de um enunciador especialista para compor seu PDV, que
é, a partir deste apoio, uma co-construção com a voz do especialista atuando como coenunciador, havendo, no entanto uma diferença: em ambos os casos, a fala de e2 não sendo
transcrita se realiza numa imputação de L1/E1 a e2, num PDV representado, de todo modo, a
simetria enunciativa, evidenciada em ambos os casos evidenciam que L1/E1 dá credibilidade
ao que é dito e interpretado pelos e2, mas, isso, de forma alguma, o impede de manifestar seu
próprio PDV, como evidenciado acima em que ambos (excertos 151 e 152) trazem seus próprios
PDV’s em adição ao PDV de e2, que nem sempre é a representação de que se alinham ao PDV
de e2, sendo interpretado, no caso do excerto 152, como uma inferência de L1/E1 a partir de
algo que é dito por e2 como algo que este defenda ou tenha dito.
5.3.2 Exemplos de Subenunciação
238
(155) Art. AI04:
Contrária às ideias iluministas, a antropologia “tem tentado encontrar seu caminho
para um conceito mais viável sobre o homem, no qual a cultura e a variabilidade cultural
possam ser mais levadas em conta” (Geertz, 1989, p.27), porém, o autor também julga ser
necessário ter cuidado ao direcionar os estudos referentes ao ser humano, visto que este
possui uma complexidade imensa que ainda não se encontra ordenada, de forma que há
o perigo de perder por completo a perspectiva de homem.
(156) Artigo AE12:
Bem diverso da tendência tecnicista que predominou nos anos 70, Mello (1982), com
um trabalho que se tornaria então referência nos anos 80, em Educação, defendia a competência
técnica do professor como a instância que, envolvendo o domínio dos conteúdos de ensino e a
compreensão do docente a respeito das várias relações que permeiam o universo escolar, seria
capaz de promover o sentido político da educação. Nesse trabalho, ao procurar compreender
as causas da precariedade na formação e práticas docentes, Mello aponta que o professor tem
dificuldade em se perceber como parte do problema no que tange à precariedade de sua
formação. Trata-se de um momento em que a recepção de suas idéias representou uma guinada
de um pólo a outro da discussão: se antes havia um discurso de culpabilização do aluno, nesse
momento passou a predominar um discurso de culpabilização do docente. A questão é que
nesse movimento ignora-se que a discussão parte de uma suposta concepção universal
sobre competência, acima dos interesses de classe, conforme escreve Lelis (2001, p. 45).
(157) Artigo AEE06:
Para Bovet (1999, p. 70), “o público desempenha um papel importante na organização
discursiva da exposição. Exemplos de formulação recipient designed lembram a dimensão
interativa da exposição, a despeito de seu caráter monológico”. Isto é, por exemplo, o que
acontece neste trecho, quando, face a uma audiência de lingüistas que supõe conhecer e operar
com o conceito de gênero discursivo, o orador opta por justificar por que tratará esse item
(gênero discursivo) e tão rapidamente (“falar-lhes muito brevemente – pois isso vocês
conhecem – fazer um pequeno apanhado da noção de gênero, pois é ‘os gêneros escritos e orais’
e… evidentemente, não posso não falar dos gêneros, mas muito brevemente”).
Nestes excertos observam-se alguns recortes de subenunciação, em que um ponto de
vista é apresentado como pertencente a outra fonte externa a L1/E1, não há em nenhum trecho
dos excertos qualquer apresentação de algum argumento ou proposição original de L1/E1 tendo
como ancoragem o PDV expresso por e2. Tal modelo de enunciação caracteriza a
subenunciação descrita por Rabatel (2007,p.): segundo o autor a subenunciação consiste numa
construção desigual do PDV (em dissimetria) em que a proposição do PDV de L1/E1 (resultante
de uma dada predicação) é apresentada como decorrente de um PDV externo, nesse jogo a
proposição do PDV externo se avoluma em detrimento do apagamento da proposição do PDV
de L1/E1, como se ele não fosse de fato o enunciador do PDV. No excerto (155), pode-se ficar
tentado a classificá-lo como uma co-enunciação, por causa do conectivo “porém” em que se
esperaria uma reorientação argumentativa, que de fato ocorre, mas a atribuição desta porção de
239
texto a e2 evidencia que tal reorientação não é de autoria de L1/E1, sendo antes, uma imputação
a e2. Os trechos negritados em (155) e (157) representam o ponto de vista dominado, uma
conclusão a que L1/E1 retorna para definir um conceito ou raciocinar a partir de uma
perspectiva que não é dele, e traz em seu texto os sinais de distanciamento em relação ao que
ele reporta, o aspeamento e/ou a menção a autor/data.
5.3.3 Exemplos de sobrenunciação
(158) Art. AI04:
As ideias referentes à cultura indígena expressas nos primeiros trabalhos
antropológicos têm reflexos ainda hoje, resultando no pensamento preconceituoso da
sociedade brasileira, que preserva a ideia de que o índio não passa de um selvagem
culturalmente atrasado, como descreve o próprio Freyre. O que mais intriga nessa situação
é o fato de a cultura das tribos indígenas brasileiras terem absorvido características dos
costumes dos “brancos” e ainda assim a população relaciona a imagem do nativo à figura
encontrada na época do Brasil colônia.
(159) Artigo AE04:
Dick(1990) ainda ressalta que “a exeqüibilidade de uma terminologia básica só pode
ser acolhida, integralmente, a partir de sua comprovação na nomenclatura regional”. A autora
também esclarece que seu esforço de elaboração de categorias de análise a partir de uma
taxionomia deveu-se à preocupação sempre presente de se evitar uma volta ao passado para se
descobrir o significado dos topônimos. Consideramos, no entanto, que o estudo dos topônimos
vai além da mera pesquisa etimológica, além de se procurar descobrir o significado dos
topônimos. Considerando-os signos motivados (ao menos no ato da nomeação), faz-se
necessária a perspectiva histórica a fim de recuperar os padrões motivadores da nomeação.
(160) Artigo AE05:
Notamos, com isso, a dificuldade de compilação para um trabalho terminológico, pois
para Desmet (apud Barbosa, 1990, p.157) “a questão da terminologia não é tanto saber o que
significa uma forma lingüística, mas antes de saber qual a forma lingüística que representa uma
dada noção”. Entretanto, nos relatórios, uma noção é designada de diferentes formas e, por
outro lado, uma única forma corresponde a várias noções. Talvez fosse possível uma abordagem
pelo recorte epistemológico da socioterminologia, quando poderiam ser observados o tipo de
atividade, as características do pessoal, a formação profissional e a qualificação, além de levar
em conta o contexto social e situacional em que os termos circulam.
(161) Artigo AEE03:
Se retomarmos as categorias de Rabatel (2003), podemos dizer que a particitação
é fundamentalmente uma forma particular de coenunciação, pois existe acordo em torno
do Ponto de Vista - PDV. Trata-se, contudo, de uma forma particular de co-enunciação, já que
esse acordo, em conseqüência da particitação, é tal que torna inútil outras marcas de acordo
explícitas em torno do PDV. (161a) Podemos avaliar a especificidade desse sistema de citação
colocando-o frente ao discurso direto livre (Rosier, 1999: 278-98).
(162) Artigo AEE02:
No entanto, a análise foi suficiente para podermos verificar que, paradoxalmente, a
própria noção de “retextualização” (MARCUSCHI, 2001a) é um argumento a favor – e uma
ferramenta de análise – dos processos de mútua constitutividade escrita/oral no gênero e não do
continuum de gêneros. A proposta de “continuum fala/escrita” (MARCUSCHI, 2001a) exige
240
uma certa fixação do gênero num ponto do gradiente, mais próximo da escrita ou da oralidade,
que leva a ignorar o processo pelo qual escritos e fala se tornam elos de uma cadeia de
enunciados, de maneira dinâmica. Um enfoque promissor e dinâmico dessas relações
complexas entre escritas e textos orais em gêneros orais formais públicos talvez possa tomar
como base as noções de “sistema de gêneros” como parte de um “sistema de atividades”
propostas por Bazerman (2005a, p. 32-33).
O excerto (158), acima, combina dois PDV’s: um afirmado, é o PDV de L1/E1 acerca
de e2, e um PDV representado de e2, em que lhe é imputada a percepção de que o índio é um
ser atrasado e primitivo, neste segmento L1/E1 afirma seu pdv a respeito do outro, descrevendo
seu modo de agir. Essa percepção é deflagrada nas formas nominais “pensamento
preconceituoso” e “ideia de que o índio não passa de um selvagem” e no enunciado “resultando
no pensamento preconceituoso da sociedade brasileira”, que pressupõe, acerca de e2 um modo
de pensar do qual L1/E1 não compartilha. Trata-se de uma porção textual em que se evidencia
que L1/e1 assume a imputação, mas não o conteúdo imputado (o conteúdo é atribuído a e2),
ilustrando exemplarmente a proposição de Rabatel (2009) que contrapõe PEC e imputação:
enquanto a PEC define uma responsabilidade integral de L1/E1 na expressão de seu pdv, ela é
limitada ou pressuposta ao remeter-se a um pdv de outro. Desta relação decorre a disjunção
entre locutor e enunciador. Nos segmentos destacados do excerto (158), L1/E1 assume a
imputação, na medida em que é o responsável pela representação de um conteúdo perceptual
atribuído a e2, nisto reside o distanciamento, pois L1/E1 não assume o conteúdo perceptual do
pdv representado de e2. Neste excerto, observa-se ainda um outro enunciador, descrito por
L1/E1 como a fonte donde emanariam os pensamentos que influenciam a sociedade (e2), esse
outro enunciador é o antropólogo, a cujas ideias L1/E1 se contrapõe. Em outras palavras, L1/E1
parte do pressuposto de que a “sociedade brasileira” tem uma certa ideia a respeito do índio, a
de um “selvagem”, é esse posicionamento que L1/E1 critica, mas claro está que ele não é o
responsável por essa percepção.
Partindo-se da perspectiva de Laurendeau (1989a; 2009) compreende-se que a
imputação corresponde a uma não asserção ou desasserção por parte de L1/E1 que, não
assumindo integralmente a responsabilidade pelo conteúdo proposicional, coloca-se à distância
em relação a e2. Desta forma, essa não asserção se configura como uma objeção ao pdv de
outro, como no pdv imputado à sociedade, no excerto (158). Mas, por outro lado, pode haver,
como em (160,), um caso de prise en compte no acordo. Neste caso a imputação pode se tornar
uma PEC, que, como forma de prise en compte, indica asserção no grau máximo em relação a
um conteúdo, ou seja, a PEC integral corresponde a um caso de prise en compte em maior grau
241
e a PEC com responsabilidade limitada (imputação) equivaleria a um grau mínimo, nesse
sentido pode-se falar em gradação, não da PEC, mas da prise en compte.
Nos fragmentos sublinhados dos excertos 159, 161 e 162, encontram-se, pospostos ou
antepostos a remissão à voz do especialista (e2) em quem L1/E1 ancora sua argumentação, seus
argumentos representando uma reorientação argumentativa em relação à proposição inicial,
como a voz do especialista é usada para confirmar seu PDV configura-se uma simetria
enunciativa, uma prise em compte no grau máximo. No caso do segmento (162), há inicialmente
uma remissão à voz de especialistas e2 representados pelo discurso citado (na evocação aos
autores). No entanto, como a fala dos especialistas não é diretamente reportada, mas
apresentada num PDV representado, a posição dos especialistas lhes é imputada nos excertos
pelas formas nominais “argumento a favor” e “ferramenta de análise” como critérios de
definição de gênero. Ao que L1/E1 parece se opor no fragmento, sublinhado, por meio da
forma verbal “leva a ignorar”, justificando assim seu ponto de vista, estabelecido na sequência
seguinte: “Um enfoque promissor e dinâmico dessas relações complexas entre escritas e textos
orais em gêneros orais formais públicos talvez possa tomar como base as noções de ‘sistema de
gêneros’ como parte de um ‘sistema de atividades’ propostas por Bazerman”, em que L1/E1,
parece, de certa forma, se alinhar com a proposição supostamente proposta por e2. Tal
alinhamento não parece se configurar como coenunciação porque não há uma concordância no
acordo, parecendo, antes situar-se num ponto entre o consenso e o dissenso: a concordância
discordante, configurando, assim, a sobrenunciação.
É exatamente este tipo de construção do PDV que parece predominar na escrita dos
autores de reconhecida expertise, em que a voz autoral se sobrepõe às demais e domina o jogo
enunciativo, a despeito do recurso a outras vozes, inclusive por meio de indicadores de quadros
mediadores, como ocorre especialmente nos excertos (158) e (160). Tal constatação levou ao
postulado de que se se compreende a responsabilidade enunciativa como decorrência de um
fenômeno localizado num nível mais abrangente que o do enunciado, englobando o texto como
um todo e diversas operações enunciativas, admite-se, por conseguinte, que é possível haver
responsabilidade enunciativa mesmo diante de recursos às vozes alheias e o apoio em
indicadores de quadro mediativo. Um “comportamente discursivo ligado à ética e à moral”
(CORTEZ, 2011, p.75) que parece transceder a dimensão do enunciado afetaria o discurso no
nível da responsabilidade, resultando, no todo, como um texto mais engajado do que outros
pareceriam, por meio de mecanismos de construção do PDV, conforme observado
anteriormente com o exame dos posicionamentos e posturas enunciativas e sua hierarquização.
242
Considerações Finais
(...) o conhecimento da realidade não é apenas a simples transposição dessa
realidade para o pensamento, pelo contrário, consiste na reflexão crítica que se dá a
partir de um conhecimento acumulado e que irá gerar uma síntese, o concreto
pensado. (LIMA, T.C.S e MIOTO, R.C.T, 2007)
Ao longo da primeira parte desta tese foram apresentadas algumas questões e motivações
muito pessoais para a pesquisa, especialmente no que diz respeito à constituição do corpus e às
perguntas norteadoras da pesquisa realizada no Programa de Pós Graduação em Estudos da
Linguagem da UFRN. Na última seção pareceu coerente a retomada dessas questões não apenas
para confirmar respostas já ensaiadas ao longo dos últimos capítulos, mas, sobretudo, para
apresentar uma reflexão acerca do aprendizado na trajetória desta pesquisa.
No que diz respeito aos movimentos da pesquisa e da escrita, este trabalho representou
um desafio ímpar: requereu do pesquisador o abandono de suas certezas iniciais, o ajuste de
percursos, das questões iniciais poucas permaneceram, o confronto dos dados levava a hipóteses
não levantadas inicialmente, em suma, foi uma jornada em que os caminhos se construíam
conforme a caminhada. O único aspecto que permaneceu ao longo da trajetória foi o objeto: a
delimitação da RE em textos acadêmicos.
Entendida como uma zona textual em que se pode atribuir a autoria a uma outra voz
(ADAM, 2011), a RE pode ser marcada por uma infinidade de formas linguísticas, tais como
as sistematizadas no quadro 4 idealizado por Passeggi et al. (2010). Dentre as oito ordens
categoriais elencadas pelos autores, foram escolhidas três ordens mais significativas no corpus
selecionado, quais sejam: as ordens de número 5, 6, e 8. Elas correspondem, respectivamente,
aos rótulos “diferentes tipos de representação da fala”, cujas marcas linguísticas são as formas
do discurso reportado (DD, DI, ilha textual e evocação); “indicações de quadros mediadores”,
cujas marcas linguisticas se evidenciam nas formas tradicionais de introdução do discurso
outro, as formulas Segundo X….e suas variantes, os condicionais e os verbos de introdução do
discurso outro, desdobrando-se numa miríade de considerações acerca do posicionamento de
L1/e1 acerca do discurso citado. A última das categorias eleitas, “indicações de um suporte de
percepções e de pensamentos relatados”, apresenta marcas linguisticas que podem ser
observadas na escolha de alguns verbos de opinião, bem como verbos que denotam atividade
perceptiva ou cognitiva.
Os resultados demonstraram que tais marcas ocorrem, em maior ou menor recorrência,
em todos os textos do corpus coletado, sem distinção. Esta constatação levou à segunda
243
pergunta de pesquisa, que implicou em observar se a ocorrência de não assunção da RE estaria,
de alguma forma, vinculada ao nível de experiência do autor acadêmico.
Os dados apontam que há alguma relação entre a quantidade de ocorrências das marcas
de não assunção da RE e o nível de experiência de um autor. Estes resultados indicam que a
ocorrência destas marcas é diametralmente oposta ao nível de experiência do autor, em outras
palavras, quanto maior a expertise, menor é o recurso aos indicadores de quadro mediador. Isto
não significa, evidentemente, que não haja diálogo, acordo, confronto e oposição às vozes
externas. A proposta de classificação de uma infinidade de verbos introdutores do discurso
outro esclareceu o resultado surpreendente, à primeira vista, da similitude entre textos do grupo
AI e AE, em que se esperava, pelo nível de especialização dos autores do segundo grupo, um
menor índice de ocorrências de não assunção da RE: apesar da alta frequência de verbos
introduzindo uma voz alheia, a natureza desses verbos indicia um posicionamento dos autores
do segundo grupo, o que não ocorre nos textos do primeiro grupo. Ou seja, um refinamento na
categorização desses verbos permitiu um outro olhar que não seria possível apenas classificando
os verbos dicendi mais comuns, listados em Charolles (1976), Maingueneau (1997), Adam
(2011).
Destas constatações derivam ainda outras, por exemplo, a de que tanto autores iniciantes
quanto experientes, a despeito do nível de experiência, em maior ou menor frequência, recorrem
às vozes alheias (ainda que com objetivos diferentes) apoiando-se em indicadores de quadros
mediadores ou de um suporte de percepção/ pensamentos relatados. Desta forma, se se
considerar a RE exatamente como Adam (2011) postula, é forçoso admitir que em todos os
níveis de expertise se encontrará zonas textuais em que se pode atribuir a autoria a um outro
enunciador e esta categoria não poderia ser definida como um ponto que distingue textos de
autores de diferentes níveis de experiência. Esta constatação levou, por conseguinte às ultimas
questões: saber o quê exatamente, diferenciaria a escrita dos autores agrupados em três
conjuntos distintos nesta pesquisa e se os mecanismos de construção do PDV observados em
Rabatel (2003, 2004) contribuem para a criação de um efeito global de maior engajamento.
Ainda que não se tenha realizado um exame exaustivo das posturas enunciativas de
subenunciação, sobrenunciação e coenunciação no conjunto de textos que compõem o corpus,
observou-se a predominância das posturas de coenunciação e, sobretudo, de sobrenunciação em
textos de autores mais experientes confirmando o postulado de Rinck e Grossman (2006) de
que a sobrenunciação seria uma norma do gênero acadêmico. Relativizando este postulado,
poder-se-ia dizer que a sobrenunciação seria, antes, o ideal da escrita acadêmica, em que um
244
enunciador, dialogando com outras vozes, utiliza-as para construir seu PDV, concordando ou
confrontando-as, e projeta a sua própria voz em posição de domínio no cenário enunciativo.
Estas considerações levam a ponderar sobre o papel das posturas enunciativas na
construção dos PDV’s. Primeiramente, é forçoso lembrar que tais posturas determinam aspectos
importantes na problemática do PDV e da hierarquização das posturas enunciativas: a
coenunciação não se evidencia, necessariamente, pela igualdade na distribuição das falas.
Assim, mesmo que haja um locutor dominante, que fala mais, isso não significa exatamente
que haja dissimetria de posições enunciativas, e, portanto, pode haver, sim, coenunciação em
tal arranjo textual. Essa observação permite concluir que as posturas enunciativas não
dependem da quantidade de falas proferidas por cada locutor/enunciador, mas das relações que
eles mantêm entre si e, sobretudo, da maneira como os PDV’s são representados. Donde
também se conclui que um locutor não pode ser considerado subenunciador apenas se falar
menos ou sobrenunciador se falar mais, bem como a assunção de uma postura ou outra postura,
sobrenunciação ou subenunciação, não quer dizer, necessariamente, superioridade ou
inferioridade enunciativa, logo não se pode avaliar como sendo melhor ou se sabe mais este ou
aquele enunciador, mas, apenas que a postura de sobrenunciação implica apresentar o
enunciador como avalista da verdade, apresentando seu pdv como fidedigno. Esse tipo de
enunciador mantém sua posição colocando-se no centro da interação, de tal forma que seu pdv
se configura como tópico discursivo.
Nesta relação entre enunciadores, tensionada e caracterizada pela instabilidade das
posturas enunciativas, revela-se uma disputa de lugares, a partir dos quais o sobrenunciador se
afirma, alçando seu pdv a uma posição dominante no texto, ao contrário da posição de
subenunciação em que seu pdv é colocado em uma posição dominada. Além disso, observouse a oscilação na ocorrência dos três tipos de postura, o que leva a considerar que no estudo das
posturas enunciativas é relevante verificar a disposição das posturas: ainda que ocorra,
predominantemente, um tipo de postura, atravessando o texto de ponta a ponta, isso não
significa que não possa ocorrer outras posturas que se manifestam localmente. Tal oscilação
resulta da instabilidade dos lugares enunciativos ou ocorre em função dos gêneros, (RABATEL,
2006), de maneira que a opção por uma das posturas pode ser determinada por gêneros em que
vários locutores interagem ou pode ocorrer alternância das posturas em função da orientação
argumentativa.
Desta forma, considera-se vantajosa uma leitura mais fina das questões de
posicionamento enunciativo em textos acadêmicos, levando, por fim, à uma última observação:
a noção de que um enunciador mobilize o discurso outro por quadros mediadores, identificados
245
por fórmulas como “de acordo com X ....” ou “segundo X .....” e suas variantes, ou ainda a
simples menção ao discurso outro por meio de uma evocação ou reformulação, não indica,
necessariamente, uma desresponsabilização por parte de L1/E1 como se tem visto em alguns
trabalhos. De modo que tomar a mobilização a um discurso outro como um indício de
desresponsabilização pode ser um equívoco, como bem demostrou o exame das posturas
enunciativas, uma vez que a responsabilização, sendo um fenômeno muito mais relacionado ao
texto como um todo (ao contrário da PEC que incide sobre o enunciado) estaria mais
relacionada à configuração textual que resulta da questão das posturas enunciativas do que à
menção de um discurso reportado.
Aparentemente não desnecessárias, mas talvez, secundárias, duas implicações desta
pesquisa se apresentaram ao final, justificada, principalmente pelo conceito de ciência e
pesquisa postulado pelo pesquisador:
“... a única finalidade da ciência está em aliviar a canseira da existência humana. E
se os cientistas, intimidados pela prepotência dos poderosos, acham que basta
amontoar saber, por amor do saber, a ciência pode ser transformada em aleijão, e
suas novas máquinas serão novas aflições, nada mais” (BRECHT, B. A vida de
Galileu Galilei)
Considerando-se esses aspectos do fazer científico, os resultados desta pesquisa levaram
a algumas reflexões das quais se deduziram duas implicações, uma de ordem didático
pedagógica e outra pensada para futuras pesquisas.
No que diz respeito às possíveis aplicações didáticas, é importante salientar, como já se
fez alhures, que esta pesquisa não tem, em si, um viés de aplicação prática ou didáticopedagógica, sendo antes, uma busca da compreensão de como se organizam as vozes em textos
acadêmicos mapeando a responsabilidade enunciativa nestes textos. No entanto, observa-se que
o estudo das possíveis aplicações didáticas das pesquisas na área é, de modo geral, menos
favorecido. Assim, ao final da pesquisa propriamente dita, procurou-se formalizar uma proposta
de sequência didática, formulada levando-se em consideração o papel das marcas linguísticas
das categorias de ordem 5, 6 e 8, bem como das posturas enunciativas na construção do PDV.
Uma atividade desenvolvida a partir das linhas de concordância obtida pelo uso da
ferramenta Concord do programa WordSmith Tools 6.0 foi apresentada como exemplo,
destacando-se os usos de alguns verbos introdutores do discurso outro, tais como afirmar,
apontar, referir, definir, atribuir e ressaltar. Esta proposta visa possibilitar aos alunos a
investigação acerca da dialogicidade que marcam os textos acadêmicos e de como a escolha
lexical permite L1/e1 responsabilizar-se (ou não) pelas proposições presentes no texto. Oferecer
246
aos graduandos, autores iniciantes, uma atividade elaborada por meio dos recursos disponíveis
em ferramentas como o Wordsmith Tools poderia permitir ao aluno observar a linguagem em
uso, proporcionando o refinamento da percepção acerca dos possíveis posicionamentos na
escrita acadêmica. Além disso, desperta a atenção para um nicho de pesquisa sempre fértil: a
produção de materiais didáticos para o ensino da escrita acadêmica. Não é pouco o impacto se
se considerar que grande parte das pesquisas em gênero e seu ensino, nas três grandes tradições,
avançaram enormemente em função desta demanda.54
No que diz respeito a possíveis implicações para futuras pesquisas importa salientar
que no decorrer desta pesquisa, especialmente nos tópicos dedicados à classificação e análise
do fenômeno observado – a RE em textos acadêmicos – foram mobilizados alguns conceitos
teóricos e categorias de análise advindos do quadro da ATD (ADAM, 2011) combinados a
conceitos e categorizações presentes em outros autores, como Rabatel (2003, 2004, 2006), bem
como outras categorizações ainda mais finas, como no caso dos verbos de elocução,
encontradas em Charolles (1976), Maingueneau (1997), Marcuschi (1981), Thompson e Yiyun
(1991). Considera-se que tal combinação proporcionaria uma visão mais abrangente acerca do
fenômeno, avançando, no caso de pesquisas futuras, para o refinamento do conceito definido
como RE no quadro da ATD. Seria o caso, talvez, de se ponderar a possibilidade de adoção da
proposta de Moirand (2006): tomando-se a responsabilidade enunciativa como decorrência de
um fenômeno localizado num nível mais abrangente que o do enunciado, que engloba o texto
como um todo e suas diversas operações enunciativas, admite-se, por conseguinte, a
possibilidade de haver responsabilidade enunciativa mesmo diante de recursos às vozes alheias
e o apoio em indicadores de quadro mediativo. A RE seria redimensionada para um
comportamento discursivo ligado à ética e à moral que parece transceder a dimensão do
enunciado e afeta o posicionamento do autor no nível discursivo, resultando, no todo, como um
texto mais engajado do que outros pareceriam, por meio de mecanismos de construção do PDV.
A RE não seria concebida como um fenômeno pontual, estabelecido no nível do enunciado,
mas, sobretudo, como um efeito discursivo produzido por mecanismos de construção do PDV
e determinado, em alguma medida pelas próprias constrições do gênero, aspecto que também
resta por ser examinado em futuras pesquisas.
Esta proposta didática foi apresentada nas oficinas ministradas no XI EELL (UNEMAT – Pontes e Lacerda) e
no XI SILLMAT- XVI EMEL (UNEMAT – Tangará da Serra).
247
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