BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A QUESTÃO DO REALISMO EM GYÖRGY LUKÁCS (A brief dicussion on the issue of realism in György Lukács) Carlos Henrique Gileno* 1. A decadência ideológica burguesa O pensador húngaro Szegedi Lukács György Bernát (1885-1971) escreveu o ensaio intitulado Marx e o Problema da Decadência Ideológica (1938) com a intenção precípua de demonstrar a influência exercida pelo chamado pensamento decadente burguês sobre os setores da vida social dominados pela expansão do processo civilizatório capitalista (LUKÁCS, 1968a, p. 49-11)1. A intenção de György Lukács é demonstrar que o mencionado pensamento emergiu após a revolução de 1848 na França, inaugurando a fase da apologética, a qual se caracterizou por abstrair as verdadeiras contradições do desenvolvimento social, construindo um saber que se fundava cada vez mais na realidade imediata. Nesses termos, György Lukács afirmou que a economia vulgar é prisioneira da aparência, uma vez que transpõe para o nível do pensamento os fenômenos que estão presos à superfície da vida social, sistematizando, desse modo, vulgarmente a linguagem da vida cotidiana (1968a, p. 55)2. Entretanto, a decadência ideológica burguesa não empobreceria apenas o pensamento econômico. A sociologia vulgar e o formalismo estético em literatura também constituíam uma expressão importante daquele período decadente. Por exemplo, a sociologia vulgar é o elemento norteador da moderna ciência social burguesa, que surge juntamente com a decomposição da economia clássica e a ascensão da economia vulgar, sendo um desdobramento imediato da citada dissolução: a sociologia se torna uma ciência “especializada” e “fragmentada” que se desprende da economia e da história, elaborando um pensamento que se limita a traduzir o senso comum - a exemplo da economia vulgar - para uma linguagem pretensamente “científica”. Por outro lado, o formalismo estético também é influenciado pela especialização, aprofundando-se na “técnica” ao adotar o modo de composição descritivo que se fundamenta apenas 1 Segundo Lukács, a decadência ideológica se inicia efetivamente no momento de consolidação do capitalismo enquanto modo de produção, da dominação burguesa do poder político e do acirramento das contradições da luta de classes entre burguesia e proletariado. 2 “A economia se limita, cada vez mais, a uma mera reprodução dos fenômenos superficiais. O processo espontâneo da decadência científica opera em estreito contato com a apologia consciente e venal da economia capitalista” (LUKÁCS, 1968a, p. 55). 19 na observação “apurada” do cotidiano, gerando um método formalista de representação do real. Depois que a burguesia deixou de ser a portadora do progresso social passando do estágio da classe revolucionária que modificou em vários aspectos a concepção de mundo medieval e forneceu a visão global do homem personificada nas obras dos grandes renascentistas e iluministas - sua compreensão da realidade fixou-se cada vez mais na imediaticidade, menosprezando a totalidade das relações sociais. Essa fixação na imediaticidade do pensamento social burguês pós- decadência é um produto, de acordo com György Lukács, da divisão capitalista do trabalho, que modificou substancialmente a relação do cientista ou do escritor com os grandes problemas de sua época histórica, transformando-a em uma relação que se nega a “representar a real existência humana no capitalismo, mas sim aquela aparência de existência da qual falava Marx [...] Ela exige que o escritor represente esta aparência como o único modo de ser possível e real dos homens” (1968a, p. 92). Todavia, o pensador húngaro não refletiu apenas sobre a fragmentação que a divisão capitalista do trabalho realizou nas várias disciplinas do conhecimento. Aquela fragmentação está presente também no interior de cada disciplina científica, mutilando de maneira avassaladora o trabalho intelectual, impedindo-o de entender o real na sua totalidade: a “especialização” vai se tornando paulatinamente mais restrita, já que as “atividades profissionais especializadas” adquirem um estatuto ilusoriamente independente do movimento de conjunto da sociedade (1968a, p. 64)3. Neste aspecto, a literatura e a arte também ficam impossibilitadas de representar, de uma maneira verdadeiramente universal, as suas épocas históricas particulares. A literatura e a arte se limitam, dentro do quadro da decadência ideológica, a obterem um reflexo deformado da realidade objetiva, uma vez que realizam apenas a figuração de “homens singulares” e “vivências singulares”, esquecendo-se de relacionar esses “homens” e essas “vivências” ao conjunto das 3 A favor da concepção da divisão capitalista do trabalho, surge a noção de que a “ciência moderna” alcançou um conhecimento tão amplo que dificulta a possibilidade de uma só pessoa abarcar toda a extensão do saber humano. Contudo, como afirma Lukács, “por mais atraente que possa parecer êste argumento, à primeira vista, nem por isso deixa der ser inteiramente equivocado. O fato de que as ciências sociais burguesas não consigam superar uma mesquinha especialização é uma verdade, mas as razões não são apontadas. Não residem na vastidão da amplitude do saber humano, mas no modo e na direção de desenvolvimento das ciências sociais modernas. A decadência ideológica burguesa operou nelas uma tão intensa modificação, que não se podem mais relacionar entre si, e o estudo de uma não serve mais para promover a compreensão da outra. A especialização mesquinha tornou-se o método das ciências sociais” (LUKÁCS, 1968a, p. 64). 20 relações sociais. De fato, em György Lukács, a literatura e a arte da decadência perdem a noção da totalidade, pois além de provocar a dissociação da literatura e da arte da compreensão das contradições do desenvolvimento social, despoja igualmente ambas do seu mais profundo conteúdo, abrindo caminho para uma estéril experiência formalista, com a literatura e a arte da decadência descrevendo apenas o cotidiano do capitalismo moderno. György Lukács afirma que o talento e o grande virtuosismo técnico na arte da descrição de um naturalista do porte de Émile Zola (1840-1902), como veremos a seguir, perde-se na imediaticidade. A verdadeira figuração do homem é substituída pelo acúmulo quantitativo de detalhes superficiais. Em lugar dos grandiosos protestos contra os aspectos desumanos do desenvolvimento social, temos amplas figurações do que existe no homem de mais elementar e animalesco; em lugar da grandeza ou da debilidade do homem, dos conflitos com a sociedade, temos amplas descrições de atrocidades exteriores (1968a, p. 93). Em contrapartida, as grandes obras realistas escapam da mera observação e descrição do cotidiano, já que não se limitam somente figurar “homens singulares” e “vivências singulares”. Aquelas obras realistas objetivam, antes de tudo, realizar as mediações entre o destino de seus personagens singulares e os grandes conflitos sociais nos quais eles estão inseridos (LUKÁCS, 1968b, p. 133)4. É exatamente nesse ponto que, de acordo com Lukács, reside o “triunfo do realismo”: compreender, do modo mais fiel possível, a realidade em sua totalidade dinâmica e contraditória. Por exemplo, as grandes obras realistas podem ser encontradas nos pensadores renascentistas que não estavam submetidos à divisão capitalista do trabalho. Falando do Renascimento, Engels pode afirmar: foi a maior revolução progressista que a humanidade conhecera até aquele tempo; uma época que necessitou de gigantes e engendrou gigantes. Gigantes pela fôrça do pensamento, pelas paixões e pelo caráter, pela universalidade e pela doutrina. Os homens que fundaram a moderna dominação burguesa foram tudo, menos burgueses limitados. Os heróis daquele tempo, na realidade, ainda não haviam sido esmagados pela divisão do trabalho, cujos efeitos mutiladores, que tornam o homem unilateral, sentimos tão freqüentemente nos seus sucessores. O que particularmente os distingue é que todos viviam e atuavam nos movimentos do seu tempo, na luta prática, tomando posição ativa e participando das contendas, quer com a palavra escrita e falada, quer com a espada, e às vezes com ambas. Daí aquela inteireza e fôrça de caráter, que fazem com que tenham sido homens completos. Os eruditos de biblioteca representam exceções: gente de segunda ou terceira ordem, ou Filisteus prudentes que não querem queimar os dedos (LUKÁCS, 1968c, p. 25). 4 “A começar pelo naturalismo, assistimos a um constante florescer de orientações que desejam transformar a literatura numa “ciência”, eliminando a subjetividade do escritor. São assim exaltadas, como característica do escritor moderno, as piores qualidades das “ciências particulares” da decadência ideológica: um empirismo rasteiro, uma especialização burocrática, uma completa separação e alheamento do vivo tecido da totalidade” (LUKÁCS, 1968b, p. 133). 21 O período que se estende do Renascimento à Revolução Francesa simboliza a luta da burguesia em ascensão contra a opressão feudal, liberando as forças produtivas ao promover um desenvolvimento da humanidade nunca visto em qualquer época anterior. Essa pode ser considerada a fase áurea da literatura, da arte, da ciência e da filosofia burguesa5. A burguesia, na fase do seu pensamento clássico, ainda não conhecia os seus próprios limites: era inovadora e criativa, visto que produzia um conhecimento universal do mundo e do homem, simbolizado nas obras literárias, artísticas, musicais e científicas de Nicolau Maquiavel (1469-1527), Nicolau Copérnico (1473-1543), Michelangelo Buonarroti (1475-1564), Miguel de Cervantes (1547-1616), William Shakespeare (1564-1616), Sir Isaac Newton (1643-1727) e Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), entre muitos outros. Entretanto, a ascensão ideológica burguesa cedeu lugar à sua própria decadência, ou seja, a época clássica do pensamento burguês é substituída pela já citada “apologética vulgar” do capitalismo. 2. Crítica à liberdade moderna da arte A crescente mercantilização das relações sociais - imposta pela expansão do capitalismo no período da decadência - teve um efeito devastador sobre o conjunto da criação artística, já que a sua liberdade de criação e inovação tornou-se dependente do mercado6. Neste panorama, o artista transformou-se - ainda que inconscientemente - em produtor de mercadorias, fabricando suas obras para o consumo. Esta atitude modificou radicalmente a relação entre o artista e o seu público, uma vez que um novo elemento se apresentou para “intermediar” essa relação: o capital. Em seu início o capitalismo atirou-se principalmente sôbre a literatura - ruim, em sua imensa maioria - que constituía o objeto do verdadeiro consumo de massa. Mas à medida que o capitalismo se estendia sôbre todos os domínios - e desde que se confirmou que a arte autêntica podia tornar-se também um bom negócio, que a arte 5 Segundo Lukács, o hegelianismo foi a “última grande filosofia burguesa”. “A burguesia desempenhou na história um papel extremamente revolucionário [...] Onde quer que tenha chegado ao poder, a burguesia destruiu todas as relações feudais, patriarcais, idílicas. Dilacerou impiedosamente os variegados laços feudais que ligavam o ser humano a seus superiores naturais, e não deixou subsistir entre homem e homem outro vínculo que não o interesse nu e cru [...], o insensível “pagamento em dinheiro”. Afogou nas águas gélidas do cálculo egoísta os sagrados frêmitos da exaltação religiosa, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo pequeno-burguês. Fez da dignidade pessoal um simples valor de troca e no lugar das inúmeras liberdades já reconhecidas e duramente conquistadas colocou unicamente a liberdade de comércio sem escrúpulos. Numa palavra, no lugar da exploração mascarada por ilusões políticas e religiosas colocou a exploração aberta, despudorada, direta e árida [...] A burguesia despojou de sua auréola todas as atividades até então consideradas dignas de veneração e respeito. Transformou em seus trabalhadores assalariados o médico, o jurista, o padre, o poeta, o homem de ciência [...] A burguesia rasgou o véu de comovente sentimentalismo que envolvia as relações familiares e as reduziu a meras relações monetárias” (MARX; ENGELS, 1991, p. 68-9). 6 22 mais ostensivamente de oposição, no ponto extremo da vanguarda, podia servir como objeto de uma especulação compensadora a longo prazo - essas pequenas ilhas foram desaparecendo, uma após a outra. A arte inteira foi subordinada ao capitalismo: tanto a boa como a ruim, tanto a obra-prima como a mais convencional vulgaridade, tanto a arte mais clássica como a mais moderna (LUKÁCS, 1968d, p.263). Inserido no universo de mercantilização da arte, o artista - mesmo aquele que assume uma postura crítica ao capitalismo - fecha-se em torno da sua própria subjetividade, conferindo um caráter abstrato e formal às suas obras. Na medida em que o artista tenta escapar da vulgarização que o capitalismo impõe à esfera cultural, reclama para si uma liberdade pessoal de criação: escolhe o assunto, o conteúdo e o tema, mas essa escolha está subordinada exclusivamente à sua própria “inspiração”, isto é, “a noção de liberdade é [...], para o artista moderno, uma noção abstrata, formal e negativa: ela só contém a reivindicação de proibir quem quer que seja de intervir na sua suprema autoridade pessoal” (1968d, p. 265). A pretensa “liberdade artística” se relaciona exclusivamente com a existência interior do artista. Mesmo que este mundo interior lute com todas as suas forças contra a inumanidade do capitalismo, seu “campo de ação” torna-se muito reduzido para entender a realidade em sua plenitude, já que o artista troca a compreensão da realidade objetiva pela sua própria autonomia individual de criação. A revolta do artista contra o mundo que o rodeia torna-se uma atitude íntima e abstrata, não ameaçando de forma alguma o livre fluir do desenvolvimento capitalista. Assim, o artista talentoso está fadado a nunca compreender a própria realidade e, em conseqüência, os “problemas sociais objetivos”. Pode-se dizer, por conseguinte, que a liberdade moderna da arte perde de vista o fundamental, isto é, a dinâmica das forças sociais que movimentam a sociedade, pois sua liberdade abstrata, mesmo quando visa reproduzir a vida social, perde-se na dimensão subjetiva do artista, que fixa a sua interpretação na imediaticidade, representando o mundo a partir de suas experiências meramente individuais7. Em György Lukács, a liberdade moderna da arte faz com que o artista perca de vista a concepção dialética da realidade - que se funda na contradição - pois os homens “lutam lado a lado na sociedade, um pelo outro ou um contra o outro”. Logo, à medida que o artista se volta para as suas próprias impressões, isola-se do complexo de forças 7 Este individualismo, de acordo com Lukács, só faz desfigurar a realidade exterior, ao mesmo tempo em que deforma - contra a autonomia individual e subjetiva do artista - a própria realidade interior. 23 que compõem o real, empobrecendo o conteúdo das suas obras, “já que se limita a girar no círculo fechado da própria subjetividade”. Os Miseráveis (1862), de Vitor Hugo (1802-1885), é uma vítima - entre muitas outras que nos fornece György Lukács - dessa “armadilha” da subjetividade. O grande autor francês executou uma bela descrição da inumanidade do capitalismo na figura de Jean Valjean, ao demonstrar como o indivíduo vai ficando cada vez mais isolado numa sociedade que transforma todas as relações sensíveis e afetivas na lógica inumana do capital. Realmente, Vitor Hugo, com todo o vigor do seu talento e da sua sensibilidade, exprime algo existente na realidade objetiva. Contudo, como bem observa Lukács, o citado escritor torna-se prisioneiro da imediaticidade justamente porque concebe aquela inumanidade como algo externo ao capitalismo, que “transcende os homens”, ou seja, o romancista francês não faz as mediações necessárias para alcançar o particular. Em outras palavras, o autor de Os Miseráveis não desvenda a forma concreta que o desenvolvimento do capitalismo assume na sua época e, muito menos, as “novas relações entre os homens” que daí derivam. Vitor Hugo perde de vista as mediações entre o singular e o universal, tornando-se incapaz de fornecer uma narração que desvende a essência da forma assumida pela inumanidade capitalista do seu tempo, perdendose, pois, em determinações abstratas. Por outro lado, o exemplo de Vitor Hugo nos livra de uma análise mecânica da fase da decadência. Talvez seja absurdo afirmarmos que Vitor Hugo fosse um apologista “consciente”, ou até mesmo “inconsciente”, do capitalismo. Contudo, e este aspecto é o mais importante para a colocação do nosso problema, o período decadente burguês imprimiu o seu brasão em todo “poeta ou pensador”. A liquidação das tradições do período heróico e revolucionário da burguesia desenvolve-se, na maioria das vezes, - objetivamente na luta contra a apologética dominante. O realismo de Flaubert e de Zola foi uma batalha (conduzida diversamente, por certo, em um e em outro) contra os velhos ideais da burguesia, convertidos em retórica e ilusão. Todavia, do ponto de vista objetivo, esta batalha vem ao encontro, ainda que lentamente e contra as intenções expressas dêsses notáveis escritores, da corrente apologética própria do desenvolvimento geral da burguesia. Qual é, de fato, o núcleo de toda apologética? É a tendência de permanecer na superfície dos fenômenos, ignorando os problemas mais profundos, essenciais e decisivos. Ricardo8 ainda se referia aberta e “cìnicamente” à exploração dos operários pelos capitalistas. Os economistas vulgares se refugiam nos pseudoproblemas mais superficiais da esfera da circulação, de modo a banir da ciência econômica o processo de produção da mais-valia. De modo análogo, a estrutura classista da sociedade desaparece da sociologia, a luta de classes da ciência histórica e o método dialético da filosofia (LUKÁCS, 1968e, p. 181). 8 Lukács está se referindo ao economista clássico David Ricardo (1772-1823). 24 Segundo György Lukács, o subjetivismo de Gustave Flaubert (1821-1880) e de Émile Zola - os dois grandes representantes do realismo após 1848 - elegeu a realidade cotidiana para empreender a batalha que procura desvendar a “hipocrisia burguesa”. Todavia, esse fato, se tomado isoladamente, não é suficiente para chegarmos à conclusão da verdadeira causa que impede os dois autores citados de superarem a realidade imediata. De acordo com o pensador húngaro, os grandes realistas, tais como Johann Goethe (1749-1832), Honoré de Balzac (1799-1850), Sir Walter Scott (1771-1832), Henri-Marie Beyle (1783-1842) - mais conhecido por Stendhal - e Léon Tolstoi (1828-1910), entre outros, jamais abandonaram a descrição. Porém, a descrição assume um caráter secundário dentro da composição da obra: descrevem-se o vestuário das personagens, ambientes e hábitos para elucidar e figurar os problemas essenciais e concretos desta ou daquela realidade histórica (LUKÁCS, 1968e)9. Nos realistas pós-48, a realidade cotidiana não é mais um trampolim para se compreender a universalidade da vida social: antes, a realidade cotidiana se torna o tema básico das suas composições artísticas. Essas composições artísticas se transformam, com esse procedimento, em paisagens estáticas e imóveis, presas ao descrever exaustivo do cotidiano. Por isso, de pouco adianta esses autores realistas realizarem uma descrição pormenorizada da superfície da vida social, visto que eles se tornam incapazes de apreenderem as determinações mais gerais, e, portanto fundamentais, que orientam o real das suas épocas, absolutizando a técnica e o pensamento formal. 3. O fundamento essencial do realismo: a narração Narrar ou Descrever?, ensaio escrito em 1936 por György Lukács, analisa o contraste entre o modo de composição naturalista - que ao valorizar o método descritivo acaba curvando-se ao formalismo - e as grandes obras literárias realistas que buscam alcançar a universalidade por intermédio da narração (LUKÁCS, 1968f, p. 47-99). Estes dois métodos de representação literária da realidade, narrar e descrever, não são apenas uma “técnica” adotada por este ou aquele escritor, porém têm um sentido muito mais amplo, uma vez que revelam duas concepções de mundo distintas, resultantes de dois períodos de desenvolvimento do capitalismo: a fase anterior à decadência e a própria decadência ideológica burguesa. 9 De acordo com Lukács, nas grandes obras realistas “a vida cotidiana é apenas o assunto e que utilizam a aparência estética da banalidade cotidiana para figurar tipos humanos significativos e situá-los num amplo horizonte” (LUKÁCS, 1968e, p. 182). 25 A concepção de mundo de realistas da estatura de Goethe, Balzac, Stendhal e Tolstoi, por exemplo, está alicerçada sobre o espetáculo que o mundo burguês está oferecendo através das crises e contradições que engendraram a decomposição da sociedade feudal. Eles não apenas observam, mas vivem o nascimento do “novo mundo” proporcionado pelo capital. Aqueles autores são, como indica Lukács, os “continuadores dos escritores, artistas e sábios do Renascimento e do Iluminismo: são homens que participam ativamente e de vários modos das grandes lutas sociais da época e que se tornam escritores através de uma vida rica e multiforme. Não são ainda “especialistas”, no sentido da divisão capitalista do trabalho” (1968f, p. 56). Esses grandes escritores realistas, por viverem e participarem das transformações que ocorreram no complexo das relações sociais de suas épocas, jamais se conformaram com a superfície da vida cotidiana, pois queriam compreender a verdadeira natureza dos processos que estavam sendo desencadeados pela revolução burguesa. Nesse sentido, eles não voltaram as costas à realidade objetiva, e muitos menos se isolaram no puro subjetivismo, que dilui a citada realidade num “conjunto de percepções imediatas”, abraçando uma falsa concreticidade dos problemas essenciais da sociedade. Antes, ofereceram um profundo e vasto cenário da totalidade da vida social na qual estavam participando. A polêmica entre Balzac e Stendhal - iniciada pelo autor das Ilusões Perdidas em 1840, quando publica um artigo sobre a Cartuxa de Parma de Stendhal elucida a idéia de literatura que possuem os grandes realistas (LUKÁCS, 1968g, p. 123-46). Balzac, apesar das objeções feitas ao estilo de composição de Stendhal, ressalta-lhe a grande capacidade de se ater apenas aos aspectos essenciais da sua época, construindo uma genuína obra dramática ao distanciar-se do acessório e do supérfluo, tão valorizados pelo realismo moderno. Stendhal ultrapassa amplamente os limites do enrêdo constituído por mesquinhas intrigas da côrte de um pequeno principado. No seu romance, êle apresenta a estrutura fundamental típica do despotismo moderno. Mostra os tipos constantes, que são necessàriamente produzidos por esta sociedade, na mais característica de suas formas, nos pontos culminantes de sua realização. Ele escreveu o moderno Príncipe - diz Balzac, ‘aquêle romance que Maquiavel escreveria se vivesse exilado na Itália do século XIX’ (...) A Parma de Stendhal explica [...] assim perfeitamente a estrutura intrínseca característica de tôda côrte absolutista. Com isto Balzac revela um momento estrutural do romance burguês do grande realismo (1968g. p. 128-9). 26 Voltando ao ensaio Narrar ou Descrever?, veremos a distinção que Lukács faz entre o romance naturalista Naná (1880) , de Zola, e a grande obra realista Ana Karenina (1873-1877), de Tolstoi. Em ambos os romances há a descrição de uma corrida de cavalos. No romance de Zola esta descrição, por não ultrapassar a singularidade, torna-se um elemento efêmero e transitório, totalmente dispensável para a compreensão do conjunto do livro, pois, apesar do enorme talento do autor na arte descritiva, não ultrapassa os fenômenos acidentais: a representação da corrida se transforma em algo estático, inexistindo as articulações necessárias para figurar os “grandes dramas humanos”. Mais significativo ainda é o contraste, estabelecido por Lukács, entre a posição do teatro nos romances Naná e Ilusões Perdidas (1836-1843). Balzac, ao contrário de Zola, não descreve exaustivamente os cenários, os vestuários, o que ocorre nos bastidores, etc., mas utiliza a sua descrição do teatro para representar concretamente a realidade particular que assume o capitalismo no seu tempo: a relação da arte com o capital, que se torna, paulatinamente, cada vez mais subordinada aos interesses desse último. Não obstante, o grande realista francês não assume uma crítica abstrata do capitalismo, pois ele exprime com rara inteligência o real conteúdo histórico da sua época. Zola, diversamente de Balzac, apenas indica que o teatro é um “bordel” corrompido pelo capital; sua crítica, como já foi apontada, torna-se subjetiva, abstrata, visto que não demonstra as mediações que essa “prostituição” da arte realiza com o universal do seu tempo, afastando-se cada vez mais da realidade concreta, do particular. Ironicamente, o realismo de Zola visa uma aproximação autêntica da arte com a realidade objetiva. O autor de Naná chega a acusar Balzac e Stendhal de se entregarem às artimanhas subjetivistas do romantismo, que os teria afastado da representação verdadeira do real. Podemos dizer, contudo, que a referida denúncia de Zola deriva de sua concepção positivista da arte, isto é, a realidade já está dada a priori, cabendo ao escritor apenas descrever os fatos sociais, porquanto o real já está presente, em toda sua “riqueza”, no cotidiano. Esta ilusão de maior objetividade deriva lògicamente da escolha de um tema cotidiano e do modo pelo qual ele é desenvolvido. A representação artística da média cotidiana é possível sem a intervenção da fantasia, sem inventar situações ou personagens particulares. A média é representável isoladamente. É dada a priori e não é preciso senão descrevê-la; além disso, esta descrição tampouco deve descobrir nela aspectos novos ou surpreendentes. Não há necessidade de integrá-la mediante a elaboração de uma complexa composição, nem de iluminá-la através de contrastes. Assim, pode fàcilmente surgir a ilusão de que a média cotidiana seja um “elemento” objetivo da realidade social, mais ou menos como os elementos da química (LUKÁCS, 1968e, p. 184). 27 Com efeito, a verdade cotidiana é fundamental para Zola. Por conseguinte, as personagens típicas representadas nos seus romances, segundo György Lukács, ficam destituídas de qualquer relação com as questões essenciais de suas épocas, transformando-se em figurações “inumanas”: o indivíduo fica privado das mediações com o universal do seu tempo, pois ele apenas confronta-se com o “universal abstrato”. A citada personagem hugoiana, Jean Valjean, torna-se “inumana” - apesar de pretender expressar a inumanidade do capitalismo justamente porque abstrai a história e os fatos concretos e essenciais vividos, já que o universal, no caso o capitalismo, é tomado como algo genérico e poeticamente estilizado. Nesses termos, o homem aparece representado como uma espécie de “Robinson Crusoé”, preso à superficialidade da realidade cotidiana. O homem não aparece como um ser social, “cuja vida está ligada por milhares de fios aos outros homens e ao conjunto do processo social”. A literatura decadente desliga-se da vida dos homens, abstrai as determinações gerais e não desmistifica a aparência da realidade, mas antes, torna-a mais confusa, visto que os seus escritores não conseguem realizar as mediações entre as personagens - isoladas no seu próprio mundo subjetivo - e as relações sociais das quais elas fazem parte. A descrição das coisas nada mais tem a ver com os acontecimentos da evolução das personagens. E não só as coisas descritas independentemente das experiências humanas, assumindo um significado autônomo que não lhes caberia no conjunto dos romances, como também o modo pelo qual são descritas conduz a uma espera completamente diversa daquela das ações dos personagens. Quanto mais os escritores aderem ao naturalismo, tanto mais se esforçam por representar apenas homens medíocres, atribuindo-lhes sòmente idéias, sentimentos e palavras da realidade cotidiana superficial, de modo que o contraste se torna cada vez mais estridente. No diálogo, o que se encontra é a prosa chã e árida do dia a dia da vida burguesa; na descrição, é o virtuosismo de uma arte refinada, de laboratório; dêste modo os homens representados não podem mesmo ter relação alguma com os objetos descritos (LUKÁCS, 1968f, p. 173). A grande literatura, verdadeiramente realista, jamais se atém à descrição dos destinos singulares das personagens. As personagens típicas que esta literatura produz estão indissoluvelmente ligadas à unidade contraditória da vida social - suas caracterizações psicológicas e morais, por exemplo, refletem uma articulação enérgica com uma totalidade dinâmica e viva. Não representam, pois, o homem como uma “natureza morta” e inanimada: valoriza as relações sociais no seu sentido mais amplo e profundo, uma vez que o aspecto psicológico do homem tem a ver com a sua própria história concreta, com a sua vida objetiva. Mesmo cataclismos naturais, como a tempestade do Rei Lear - à qual não falta o menor detalhe, nem o forte nem o decrescendo 28 são ligados aos personagens, a destinos estritamente humanos. Em nenhum momento, ocorre serem tratados como simples estados de espírito subjetivos - e é aí que intervêm a objetividade radical, quase brutal, de Shakespeare [...] A arte cênica dêste tipo é fundada na relação do homem com o mundo (LUKÁCS, 1968h, p. 151). 4. Considerações finais A crítica literária de György Lukács está baseada numa questão de método. São grandes realistas, Homero, Virgílio, Dante, Cervantes, Shakespeare, Goethe, Walter Scott, Balzac, Stendhal, Tolstoi, Gorki, Dostoievski, Thomas Mann, entre outros. Percebe-se, nesse sentido, que os estilos literários não são periodizados de acordo com a classificação tradicional, isto é, em “escolas literárias”, já que a grande literatura realista tem por fundamento captar a unidade contraditória da sociedade da época que ela representa, refletindo-a de “maneira profunda e universal”. As epopéias gregas e o teatro shakespeareano, por exemplo, têm muito mais a ver com a nossa realidade, pois - além de refletir o desenvolvimento social de suas épocas - alcançam a universalidade com tamanho vigor que ainda hoje nos oferecem “um gôzo estético e valem, em certos aspectos, como norma e modêlo inigualável” (LUKÁCS, 1968c, p. 27). Nessa corrente, Sérgio Paulo Rouanet, na sua reflexão sobre o “novo irracionalismo brasileiro”, afirma que “se a cultura é verdadeiramente universal, ela é ipso facto brasileira: Mozart é tão relevante para o Brasil como se tivesse nascido na Ilha de Marajó, e Sílvio Santos é tão irrelevante como se tivesse nascido em Reikjavik” (ROUANET, 1987, p. 127-8). Este é o verdadeiro destino, tanto da ciência quanto das obras literárias, musicais e artísticas: valorizar o homem, as suas lutas dentro da sociedade, transformando-o num elemento vivo e dinâmico inserido na rica e complexa totalidade das suas relações sociais. Carlos Drummond de Andrade, com sua sensibilidade de poeta, assim definiu a literatura - num programa de rádio da PRA2, Rádio Ministério da Educação e Cultura - para a sua amiga Lya Cavalcanti: “O que há de mais importante na literatura, sabe? É a aproximação, a comunhão que ela estabelece entre seres humanos, mesmo à distância, mesmo entre mortos e vivos. O tempo não conta para isso. Somos contemporâneos de Shakespeare e de Virgílio. Somos amigos pessoais deles” (ANDRADE, 1986, p. 58). 29 BIBLIOGRAFIA CITADA ANDRADE, Carlos Drummond de. Tempo Vida Poesia: confissões no rádio. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 1986. LUKÁCS, György. Marx e o problema da decadência ideológica. In: LUKÁCS, György. Marxismo e teoria da literatura. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1968a. __________. Tribuno do povo ou burocrata? In: LUKÁCS, György. Marxismo e teoria da literatura. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1968b. __________. Introdução aos escritos estéticos de Marx e Engels. In: LUKÁCS, György. Ensaios sôbre literatura. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1968c. __________. Arte livre ou arte dirigida? In: In: LUKÁCS, György. Marxismo e teoria da literatura. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1968d. __________. A fisionomia intelectual dos personagens artísticos. In: LUKÁCS, György. Marxismo e teoria da literatura. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1968e. __________. Narrar ou descrever? (contribuição para uma discussão sobre o naturalismo e o formalismo). In: LUKÁCS, György. Ensaios sôbre literatura. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1968f. _________. A polêmica entre Balzac e Stendhal. In: LUKÁCS, György. Ensaios sôbre literatura. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1968g. _________. O humanismo de Shakespeare. In: LUKÁCS, György. Ensaios sôbre literatura. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1968h. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. 3. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1991. ROUANET, Sérgio Paulo. O novo irracionalismo brasileiro. In: ROUANET, Sérgio Paulo. As razões do iluminismo. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1987. RESUMO: O presente artigo discute aspectos da teoria literária e social de György Lukács. A partir das discussões metodológicas apresentadas nos livros Marx e o problema da decadência ideológica e Ensaios sobre literatura, delineamos algumas características da teoria do realismo contidas no pensador húngaro. As interpretações de György Lukács sobre as obras literárias de Léon Tolstoi, Honoré de Balzac e Émile Zola, entre outras, demonstram a sua crítica ao método naturalista e positivista na economia, na literatura e na sociologia. 30 PALAVRAS-CHAVE: György Lukács. Literatura e Sociedade. Naturalismo e Positivismo. Realismo. Marxismo e Teoria Literária. ABSTRACT: This paper discusses aspects of social and literary theory of György Lukács. From the methodological discussions presented in the books Marx and the problem of ideological decadence and Essays on literature, we outlined some features of the theory of realism contained in the Hungarian thinker. The interpretations of György Lukács on the literary works of León Tolstoi, Honoré de Balzac and Émile Zola, among others, show his criticism to the naturalist and positivist method in economics, literature and sociology. KEYWORDS: György Lukács. Literature and Society. Naturalism and Positivism. Realism. Marxism and Literary Theory. * Professor assistente doutor do Departamento de Antropologia, Filosofia e Politica da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP (Campus de Araraquara) Rodovia Araraquara - Jau - Km 0114800-901. Tel.: (016)33016200. E-mail: [email protected] 31