SUBDESENV SUBDESENVOLVIMENTO GL VIMENTO GL

Propaganda
Liana Maria da Frota Carleial
SUBDESENV
OL
VIMENTO GL
OBALIZADO
SUBDESENVOL
OLVIMENTO
GLOBALIZADO
OBALIZADO::
a resultante das escolhas da política econômica
brasileira dos anos noventa*
Liana Maria da Frota Carleial**
RESUMO
ABSTRACT
Este artigo argumenta que o atual debate
centrado nas possibilidades de crescimento
econômico e de sua continuidade é importante,
mas escamoteia uma questão mais complexa,
a do subdesenvolvimento. Consideramos que
as decisões de política econômica dos anos
noventa, como a abertura comercial, a
privatização das empresas estatais, a compra
e/ou fusão de empresas nacionais por grupos
multinacionais organizados sob a forma de
firma-rede acabaram transferindo para tais
grupos decisões importantes de produção,
padrão tecnológico, qualificação de
trabalhadores, etc. Isto redefiniu o nosso
subdesenvolvimento, agora globalizado. Tal
redefinição exige que a política industrial crie
instrumentos para que a sua ação vá além
da produção; este entendimento demanda
uma esfera negocial entre Governo e
multinacionais para que, caso a caso, sejam
definidas oportunidades de internalizar no
País etapas de concepção e desenvolvimento
de projeto em setores industriais importantes
que permitam: o adensamento da estrutura
produtiva, o redimensionamento da
This article shows that the current discussion
focusing on the growth possibilities and
continuity is important, although it disregards
a more complex issue, that of
underdevelopment. We believe that in the
nineties the decisions on economic policies,
such as liberalizing trade, privatizing state
companies, purchasing and/or merging of
national companies by multinational groups
organized as network firms, has transferred
over to such groups important decisions on
production, technological standards, worker
qualification etc. This has redefined our
underdevelopment, which is now globalized.
Such a redefinition requires the industrial
policies to create tools so that their actions go
beyond the scope of production; this
understanding demands that a sphere for
negotiation be created between Government
and multinationals so that the opportunities
for bringing into the main industrial sectors
of the country different stages of project
design and development adequate to each
case could allow increased productive
structure, re-adequate national capital
*Versão deste artigo foi apresentada no IV Colóquio Latino-Americano de Economia Política, em novembro de
2004, na Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo. A autora agradece os comentários das professoras doutoras Rosa
Maria Marques, da PUC-SP, e Leda Maria Paulani, da FEA/USP, bem como a dois pareceristas anônimos; os erros
porventura remanescentes são, porém, de sua responsabilidade. O artigo foi desenvolvido no âmbito do projeto apoiado
peloCNPq n.o 477024/2003-3.
**Economista, doutora em teoria econômica pela USP com estágio de pós-doutorado em Economia Industrial
na Université Paris XIII-França. Foi professora titular do Departamento de Economia da Universidade Federal do Paraná
(UFPR) e diretora-presidente do IPARDES. Atualmente é professora titular convidada da Faculdade de Direito da UFPR
e professora-pesquisadora convidada da Faculté d’Économie et Gestion de l’Université de Picardie Jules Verne, em
Amiens-França. [email protected]
Artigo recebido para publicação em jan./2005. Aceito para publicação em maio/2005.
REVISTA PARANAENSE DE DESENVOLVIMENTO, Curitiba, n.106, p.7-28, jan./jul. 2004
7
Subdesenvolvimento Globalizado: a resultante das escolhas da política econômica brasileira dos anos noventa
participação do capital nacional em cadeias
produtivas relevantes, o aprendizado
tecnológico, a criação de ocupações mais
qualificadas e a geração de efeitos positivos
sobre a natureza da participação brasileira
no comércio internacional. O texto também
ilustra esta proposição com a experiência do
Governo do Paraná, que criou o Conselho de
Política Automotiva com o intuito de construir
uma estratégia negocial, mediante uma ação
tripartite Governo-empresas-trabalhadores,
para ampliar os efeitos positivos do parque
automotivo paranaense, buscando internalizar
no seu território novos investimentos que
incorporem produtores locais. O artigo
finalmente considera que para iniciar a
reversão do subdesenvolvimento globalizado
a estratégia negocial precisa ser constituída
no nível nacional, comandada pelo governo
federal, num formato de projeto nacional de
desenvolvimento econômico.
Palavras-chave: desenvolvimento; subdesenvolvimento; subdesenvolvimento globalizado;
política industrial.
8
participation in the relevant production
chain, technological learning, more
qualified positions and generation of
positive effects on the Brazilian participation
in the international trade. The article
illustrates this proposition mentioning the
experience of the Paraná State Government
that created the Automotive Policy Council
with the intention of building a negotiation
strategy through a three-party action
involving Government, companies and
workers, in order to boost the positive effects
of Paraná automotive park and bring into
its territory new investments encompassing
local producers. Finally, to reverse the
globalized underdevelopment we consider
that the Federal Government should head
the negotiation strategy through an economic
development project at national level.
Key words: development; underdevelopment;
globalized underdevelopment; industrial
policy.
REVISTA PARANAENSE DE DESENVOLVIMENTO, Curitiba, n.106, p.7-28, jan./jun. 2004
Liana Maria da Frota Carleial
1 INTRODUÇÃO
Este artigo argumenta que o discurso dominante em grande parte do mundo
acadêmico, na mídia, na discussão cotidiana sobre a economia brasileira, centrado no
crescimento econômico, embora seja importante, escamoteia uma questão central e
muito mais complexa, qual seja, a do desenvolvimento econômico.
Pode parecer deslocado enfatizar o desenvolvimento econômico num momento
enfeitiçado pela absoluta prerrogativa da política monetária, enquanto guardiã e
pressuposto de qualquer outra política no espaço nacional, e de uma certa globalização
como caminho único para todas as sociedades contemporâneas.
Do mesmo modo, não estamos relegando o confronto conceitual e avaliativo
das diferenças entre crescimento e desenvolvimento econômicos. Partimos do suposto de
que crescimento econômico é certamente diferente de desenvolvimento econômico;
podemos até adotar a bem conhecida formulação de que o crescimento econômico é
condição necessária porém não suficiente para atingirmos o desenvolvimento e, finalmente,
que é aceitável medir o crescimento econômico pelo crescimento do Produto Interno
Bruto (PIB) de um país, mesmo tendo claro toda a polêmica subjacente a esse
entendimento.1 Mas o nosso objetivo é destacar a permanência e o aprofundamento da
nossa condição de subdesenvolvimento, agora fortemente qualificado ou, quem sabe,
(des)qualificado como um subdesenvolvimento globalizado.
A condição de subdesenvolvimento como uma especificidade brasileira
engendrada pelo desenvolvimento capitalista e pela constituição de uma dada periferia,
caracterizada então como uma má-formação estrutural, foi muito bem desenvolvida por
Celso Furtado, especialmente no âmbito da Comissão Econômica para a América Latina
e o Caribe (Cepal). As dificuldades da economia brasileira nos últimos vinte anos, além
de não conseguirem alterar significativamente essa posição de subdesenvolvimento,
agravaram-na, à medida que tivemos, especialmente na era FHC, uma política de
integração da economia brasileira aos mercados mundiais de forma passiva.2 Nos anos
noventa, a abertura comercial, a privatização das empresas estatais, a compra e/ou
fusão de empresas nacionais por poderosos grupos multinacionais organizados sob a
forma de firma-rede transformaram a estrutura produtiva brasileira e transferiram para
esses grupos multinacionais importantes decisões sobre o nosso próprio padrão de
crescimento, comprometendo ainda mais as nossas possibilidades de desenvolvimento.
Tais evidências nos permitem propor que vivemos o subdesenvolvimento globalizado.3
1
A polêmica maior reside até no próprio conceito de riqueza capitalista. Para uma crítica aos conceitos corriqueiros
utilizados por nós, economistas, ver Méda (2000).
2
A bem da verdade é importante dizer que a condição de subdesenvolvimento recebeu novos rótulos, tais como:
país em vias de desenvolvimento, novo país industrializado, país em transição e, mais recentemente – numa tentativa de
eliminar da discussão as dificuldades subjacentes a essa condição relacionadas à constituição da nação brasileira e, por
conseguinte, da relação Estado-cidadão –, chamam-na mercado emergente.
3
A idéia de qualificar essa fase da economia e sociedade brasileiras de subdesenvolvimento globalizado ocorreu
quando de minha participação no painel sobre Política Industrial, no dia 16 de julho de 2004, no Banco do Nordeste do Brasil,
em Fortaleza, durante o Encontro da Anpec/BNB, cujo argumento central encontra-se na parte 3 deste artigo. Entretanto,
REVISTA PARANAENSE DE DESENVOLVIMENTO, Curitiba, n.106, p.7-28, jan./jul. 2004
9
Subdesenvolvimento Globalizado: a resultante das escolhas da política econômica brasileira dos anos noventa
O Governo Lula, instalado desde janeiro de 2003, portador de
aproximadamente 53 milhões de votos de brasileiros, resultante de uma luta de quase
25 anos que aglutinou os movimentos sociais e parte substantiva da sociedade civil
brasileira, escolheu negar a agenda para a qual foi eleito e aprofundar as chamadas
reformas neoliberais iniciadas nos governos anteriores. Sua política macroeconômica
assentada na conjugação de superávit primário crescente, taxa de juro real elevada,
taxa de câmbio flutuante e livre mobilidade de capitais é comprovadamente incapaz
de conduzir o País na direção do desenvolvimento econômico.4 Mais grave ainda é
“fazer de conta” que desconhece que, ao invés de caminharmos em direção ao Primeiro
Mundo (sic), estamos enredados numa espécie de areia movediça, a do
subdesenvolvimento, como antes, contudo agora globalizado.
O artigo está estruturado em três seções, além desta introdução e das
considerações finais.
A primeira aborda de forma não extensiva as questões que permeiam a
discussão sobre o desenvolvimento econômico, introduz o conceito de
subdesenvolvimento e a especificidade brasileira, seguindo de perto a construção de
Celso Furtado. A segunda apresenta o argumento central do artigo, qual seja, o
subdesenvolvimento globalizado, dialogando ainda com a interpretação de Oliveira
(2003). Já a terceira pondera que a concepção da política industrial do Governo Lula
é insuficiente para enfrentar a condição do subdesenvolvimento globalizado. Neste
caso, a política precisa criar instrumentos para que a ação vá além da produção, isto
é, para que seja capaz de promover no tecido produtivo nacional iniciativas de
concepção e de desenvolvimento de projetos e produtos. Esse encaminhamento exigiria
uma esfera negocial da política com o objetivo de inverter a tendência instalada de
uma indústria brasileira centrada nas etapas de montagem, dependente de tecnologias
e equipamentos externos, prisioneira do pagamento de royalties, rendas e lucros ao
exterior, com baixa capacidade inovativa e, ainda, com pequena participação nas
exportações e no comércio internacional nos setores ligados ao atual paradigma
tecnológico, reproduzindo incessantemente o papel de economia primário-exportadora;
enfim, reforçando uma divisão internacional do trabalho cuja decisão de “onde
conceber” e “como produzir” está nas mãos da sede da firma-rede e, portanto,
concentra em seus países de origem as atividades de concepção, design e
desenvolvimento de processos e produtos.
mais recentemente, lendo o livro de Francisco de Oliveira (2003) A navegação venturosa: ensaios sobre Celso Furtado,
percebi que Chico já havia introduzido essa qualificação na página 114, quando indaga: “qual é o novo enigma:
subdesenvolvimento globalizado?”. Considero então estabelecida a primazia do Chico nessa qualificação. Na seção 3 deste
artigo, porém, a possível relação entre as duas posições ficará mais clara.
4
A produção acadêmica que avalia, critica e propõe alternativas à política econômica do Governo Lula já é extensa.
Como exemplo, temos: Sicsú, Paula e Michel (2005) e Cintra (2005).
10
REVISTA PARANAENSE DE DESENVOLVIMENTO, Curitiba, n.106, p.7-28, jan./jun. 2004
Liana Maria da Frota Carleial
2 O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E A ESPECIFICIDADE
DO SUBDESENVOLVIMENTO
A urgência de fazer ressurgir o tema do desenvolvimento econômico está
fortemente determinada pela disseminação generalizada da interpretação de que a
globalização neoliberal promove o crescimento econômico e é capaz de abranger, assimilar
e dar conta também do desenvolvimento econômico. Este é um forte engano.
O desenvolvimento econômico pode ser entendido como um processo de
expansão das possibilidades e alternativas de um país, mas necessariamente
compromissado com o processo da evolução das condições humanas de vida. No sentido
estritamente econômico ainda pode ser entendido como um processo que leva ao
crescimento da produtividade com redução das desigualdades sociais, regionais e pessoais.
Assim, o conceito se insere numa tradição de evolução das ciências sociais e de
modernização das sociedades.
O surgimento da discussão de desenvolvimento econômico se faz num momento
particular da história social recente, e é no pós-segunda guerra mundial que esse conceito
toma forma. É importante ressaltar que se dá num momento no qual a teoria econômica
já tinha sido capaz de demonstrar, através da contribuição Keynesiana, que o capitalismo
e o seu processo de acumulação exigiam a esfera pública e o gasto público como
pressupostos. Nesse sentido, o par – trabalho e mercado – proposto por Smith sob
inspiração de Locke, como definidor da modernidade, deixava em aberto a necessária
mediação entre o indivíduo e o coletivo que, ao longo do desenvolvimento das forças
produtivas, assumiu concretamente a forma de gasto público, como argumentam os
economistas, ou ainda, do ângulo das políticas sociais, de propriedade social, como diz
Robert Castel (1998).
Localizar a origem dessa discussão não nega que nos princípios da teoria
econômica praticamente todos os economistas se perguntavam sobre quais as
possibilidades de crescimento, riqueza e desenvolvimento para aquela fase da história
da humanidade.
Assim, quando Quesnay referia-se às diferenças entre França e Inglaterra,
quando List referia-se às diferenças entre Alemanha e Inglaterra, e diante do atraso
alemão sugere um conjunto de práticas que acabam por fundamentar a atual discussão
sobre os Sistemas Nacionais de Inovação, o que de fato estava em pauta era o
desenvolvimento. No entanto, a unidade do tema parece ter se evidenciado quando
no pós-segunda guerra mundial a crítica ao caráter predatório da colonização ficava
mais evidente e as novas sociedades capitaneadas por novos Estados se apresentavam
como em vias de desenvolvimento (LACOSTE, 1965).
De um modo geral, a divisão do mundo em três, atribuindo-se ao terceiro as
características de pré-desenvolvimento, é uma das formas de tratar a mesma questão
e de estudar espaços diferenciados mas que estavam localizados, na maioria dos casos,
na América Latina, Ásia e África. Do mesmo modo a clivagem Norte-Sul, industrializadonão industrializado, desenvolvido-não desenvolvido e posteriormente, ainda, uma
associação entre países subdesenvolvidos a países emergentes (ou mercados
emergentes).
REVISTA PARANAENSE DE DESENVOLVIMENTO, Curitiba, n.106, p.7-28, jan./jul. 2004
11
Subdesenvolvimento Globalizado: a resultante das escolhas da política econômica brasileira dos anos noventa
Esse percurso não esconde, entretanto, a percepção de que o processo de
desenvolvimento deve gerar uma substantiva melhora no nível de vida da totalidade
das pessoas que vivem num determinado país, melhora esta que precisa ser contínua e
regular. O desenvolvimento também ganhou qualificativo tal como sustentado
(sustainability) apoiado na questão ecológica nos Estados Unidos, no mesmo momento
em que se acirrava o debate sobre o financiamento da agricultura, na medida em que
a busca por aumento de produtividade trazia prejuízos ambientais significativos.5
A partir dos anos noventa, através da contribuição de Amartya Sen (2000), o
desenvolvimento ganha mais um qualificativo, o humano, e além de promover a
diminuição da pobreza deve também promover o desenvolvimento humano mediante
a expansão das liberdades políticas, sociais e econômicas. Nesse sentido, o enfoque
vai além das questões ligadas ao comportamento do PIB ou do avanço tecnológico,
mas admite que as liberdades dependem também dos serviços de educação e saúde e
dos direitos civis. Junto com esta interpretação obtém grande visibilidade o Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH) enquanto medida de desenvolvimento e bem-estar,
propondo-se a explicar mais do que o mero indicador de renda per capita tão utilizado.
Como sabemos, associado à renda, o IDH mede expectativa de vida ao nascer
(longevidade) e escolaridade (alfabetização e taxa de freqüência escolar). Certamente
é um indicador mais apropriado e tem permitido comparações internacionais de
desenvolvimento e de condições de vida. Certamente também, a olho nu, é visível que
o crescimento brasileiro foi estimulador do desenvolvimento nos seus aspectos mais
gerais, tais como: aumento da expectativa de vida ao nascer, redução da mortalidade
infantil, redução e até eliminação de algumas doenças, etc.
A introdução do conceito de subdesenvolvimento é, por sua vez, um marco
muito relevante nessa discussão. De acordo com François (2004), foi o presidente Truman,
em 1949, por ocasião de seu discurso de posse, referindo-se ao engajamento dos Estados
Unidos a favor da melhoria dos países subdesenvolvidos (sous-développées), quem
introduziu no cenário político mundial tal termo.
No campo teórico-acadêmico-prático a relevância do subdesenvolvimento é
enorme. Segundo Furtado, o subdesenvolvimento é uma especificidade de uma dada
sociedade e é uma produção do próprio desenvolvimento capitalista.6 Nesse sentido, não
se constitui num momento, numa etapa do processo de desenvolvimento; ou seja, o
subdesenvolvido não ascende à condição de desenvolvido necessariamente. Assim, a
condição de subdesenvolvimento pode persistir, pode aprofundar-se e pode ser irreversível
se não forem implementadas as medidas e políticas necessárias à sua reversão. Nesse
sentido, mesmo que desejável, o desenvolvimento não necessariamente será atingido
por todos os países.7
Para uma boa visão deste ponto, sugiro Veiga (1993) e um contraponto elaborado por Lavinas (1993).
5
A trajetória de Celso Furtado se inaugura com sua tese de doutorado em Paris, prossegue ao longo dos anos na
Cepal e continua presente nos trabalhos que são desenvolvidos nessa perspectiva.
6
7
A contribuição de Celso Furtado desautoriza a interpretação concebida no seio marxista, por Stalin, de etapas do
desenvolvimento; desautoriza também a interpretação de desenvolvimento desigual e combinado (FURTADO, 1961 e 1995),
entre outros.
12
REVISTA PARANAENSE DE DESENVOLVIMENTO, Curitiba, n.106, p.7-28, jan./jun. 2004
Liana Maria da Frota Carleial
O ponto de partida teórico da contribuição é o questionamento da teoria das
vantagens comparativas ricardiana, a sua negação e a proposição de que o país necessitava
viver um período de substituição de importações que internalizasse, no país, a indústria,
e alterasse a correlação de forças entre desenvolvidos (que exportavam máquinas e
equipamentos) em troca dos produtos primários dos subdesenvolvidos. Logo, o
subdesenvolvimento brasileiro era engendrado pelo próprio movimento de acumulação
de capital no nível mundial, condição que era reiterada permanentemente. As idéias de
Furtado e seu desenvolvimento na Cepal serviram de base para programas e projetos de
desenvolvimento em vários países do mundo subdesenvolvido.
Oliveira (2003, p.112) argumenta que “o nexo externo era não apenas o núcleo
da produção do subdesenvolvimento, mas também o de sua reprodução”. Esse é um
ponto importante para a qualificação do que chamaremos, na parte 3, a seguir, de
subdesenvolvimento globalizado, enquanto uma forma de reiteração agravada do nosso
subdesenvolvimento.
2.1 A ESPECIFICIDADE BRASILEIRA
O Brasil participava do processo de acumulação capitalista no nível mundial
por meio da sua posição de país primário-exportador através de manchas de integração
com o resto do mundo (borracha, açúcar, café, ouro, etc.). Sua marca residia numa
economia de base escravocrata que, ainda nesta condição, ascende à posição de uma
economia primário-exportadora. O mercado de trabalho urbano se estruturava em torno
do capital comercial e financeiro das cidades exportadoras e da frágil base de prestação
de serviços do Estado.
A libertação dos escravos jogou nas cidades uma população sem qualquer
escolaridade e com poucas possibilidades de inserção em atividades urbanas, constituindo,
assim, as bases para um excedente populacional crônico, determinando,
conseqüentemente, uma segmentação étnica significativa. Naquela ocasião teria sido
necessária a implementação de políticas de inclusão social e distribuição de terras. É
quase impossível resistir à tentação de imaginar o que seria o Brasil de hoje se tais
medidas houvessem sido implementadas...
A migração européia, incentivada, sobretudo, para o cultivo do café no Estado
de São Paulo, também vai contribuir para a criação de uma oferta de trabalhadores
diferenciados dos nacionais, os quais não possuíam experiência operária importante
para a indústria nascente. Assim, a formação do mercado de trabalho urbano no Brasil
inicia-se já marcada por segmentações importantes de naturezas regional, formação
profissional, étnica, salarial, etc.
O período de desenvolvimento vivenciado pelo País no século vinte é muito
importante, porém incapaz de eliminar tais problemas. Sobretudo por não ter tido
deliberadamente um caráter integrador, por não ter conseguido implementar uma
universalização do ensino básico, eliminando o analfabetismo, por não ter realizado
uma reforma agrária ampla e, ainda, por ter submetido o País a uma permanente
dependência de recursos externos para o financiamento de seu desenvolvimento.
REVISTA PARANAENSE DE DESENVOLVIMENTO, Curitiba, n.106, p.7-28, jan./jul. 2004
13
Subdesenvolvimento Globalizado: a resultante das escolhas da política econômica brasileira dos anos noventa
Assim é que o Brasil passa da posição de um país essencialmente agrícola para
a de um país urbano com complexa e diversificada estrutura industrial em um período
relativamente curto, de aproximadamente quarenta anos. No pós-segunda guerra mundial,
o processo de industrialização, que antes era errático e muito susceptível ao desempenho
de suas exportações de produtos primários, ganha um contorno mais nítido, alicerçado
em um programa de substituição de importações sustentado pelo tripé formado pela
conjugação dos capitais estrangeiro, nacional e estatal.
Esta marca se encarrega de evidenciar o caráter da industrialização brasileira,
concentrada espacialmente, dependente tecnologicamente dos países centrais, com
forte presença de multinacionais, e com limitado desenvolvimento da produção de
bens de capital – mesmo sendo o país latino-americano no qual esta participação é a
mais significativa.
Desse modo, este período muda a face da sociedade e da economia brasileiras,
notabilizando-se por altas taxas de crescimento do PIB. Entre os anos 1950 e 1980, período
de consolidação da indústria, a dinâmica do mercado de trabalho foi comandada pelos
seguintes movimentos: 1) uma taxa de crescimento significativa do PIB, excedendo a taxa
de crescimento da população economicamente ativa e indicando uma expansão das
possibilidades de trabalho (tabela 1); e 2) um forte movimento migratório interno, exercendo,
por sua vez, uma pressão de demanda por trabalho nas cidades mais importantes.
TABELA 1 - TAXAS ANUAIS DE CRESCIMENTO DO PIB E DA POPULAÇÃO
ECONOMICAMENTE ATIVA - BRASIL - 1951/1980
PERÍODO
PRODUTO INTERNO
BRUTO (PIB)
1951/1960
1961/1970
1971/1980
7,7
6,2
8,6
POPULAÇÃO ECONOMICAMENTE
ATIVA (PEA)
1,1
4,5
3,9
FONTE: IBGE - Censo Demográfico
A análise mais detida desse período vai indicar que a participação da população
nos diferentes setores da atividade econômica altera-se fortemente. Na realidade, o
Brasil cumpre rigorosamente o proposto por Kuznets (1983): o desenvolvimento econômico
é acompanhado por mudanças populacionais e de produção setorial importantes.
Em 1950, por exemplo, a atividade agrícola ocupava aproximadamente 60% da população
economicamente ativa, enquanto em 1980 esta participação era de aproximadamente
30%. O setor secundário, composto pela construção civil e pela indústria de transformação,
ocupava, em 1950, 14,19% da PEA e, em 1980, 24,4%. O setor de serviços, por sua vez,
passa de uma participação relativa de 25,91% para 45,7%.
Essa mudança também se faz sentir na participação dos produtos setoriais.
Deste modo, em 1950, a participação relativa do produto agrícola no produto interno
líquido era de 15%, e em 1980 era de apenas 7%. Já o setor secundário, com uma
participação de 27,2% em 1950, passa para 39% em 1980. O setor terciário, por sua
vez, responsável que era por 57,07% do Produto Interno Líquido, tem sua participação
reduzida para 53%.
14
REVISTA PARANAENSE DE DESENVOLVIMENTO, Curitiba, n.106, p.7-28, jan./jun. 2004
Liana Maria da Frota Carleial
Como mostra a tabela 2, no período 1950-1980 foram criados mais de 26 milhões
de postos de trabalho. No entanto, fica evidente também a natureza urbano-terciária das
ocupações, uma vez que, em 1980, do total de ocupados, 24,4% estavam no setor
secundário, porém apenas 15,7% na indústria de transformação.
TABELA 2 - ALGUNS INDICADORES RELACIONADOS AO EMPREGO - BRASIL - 1950/1980
INDICADORES
A Total de Ocupados
B Total de Ocupados no Setor Secundário
C Total de Ocupados na Indústria de Transformação
D = C/B (%)
E = C/A (%)
F = B/A (%)
1950
17.117.362
2.427.364
1.608.309
66,3
9,4
14,2
1960
22.750.068
2.940.242
1.954.187
66,5
8,6
12,9
1970
29.557.224
5.295.417
3.241.861
61,2
11,0
17,9
1980
43.796.763
10.674.977
6.858.598
64,2
15,7
24,4
FONTE: IBGE - Censo Demográfico (extraído de Salm et al., 1987)
A reduzida participação da indústria na capacidade de absorção de força de
trabalho é uma evidência que qualifica o mercado de trabalho brasileiro e indica sérios
problemas de representação dos diferentes segmentos de classes. Como se sabe, nos
países desenvolvidos a participação da indústria na absorção da força de trabalho foi
muito mais significativa, com todas as suas implicações na constituição de uma sociedade
salarial (CASTEL, 1998) na qual o estatuto do trabalho é definido, respeitado e capaz de
gerar uma estrutura sólida entre “trabalho e proteção”, como nas sociedades européias.
No entanto, como seria esperado, a expansão da indústria foi acompanhada
pela expansão do assalariamento. Em 1950, apenas 50% da PEA apresentava a posição
de “empregados”; 29% estavam na condição de trabalhadores “por conta-própria”, 23%
na condição de “empregadores” e 5% identificados como “trabalhadores sem
remuneração”. Já em 1980, a condição de “empregados” abrigava 66% da PEA, levando
a uma redução dos trabalhadores por conta-própria para apenas 25%, como constatado
nos Censos Demográficos do IBGE (CACCIAMALLI, 1988).
É importante considerar, contudo, que, de acordo com Paiva8, citado por
Cacciamali (1988, p.109), a partir desta mesma base de dados, é possível identificar que,
ao longo do período 1950-1980, mesmo com o crescimento industrial, a participação da
PEA no setor informal da economia permanece em torno de 40%, configurando, assim,
uma marca estrutural do mercado de trabalho no Brasil.
Assim, no período 1950-1980, aquele de consolidação da indústria nacional e,
por conseguinte, da tendência de assalariamento e da criação de milhares de postos de
trabalho, a heterogeneidade desse mercado era visível.
Já na década de oitenta, no entanto, com o agravamento da crise da dívida
externa e do Estado produtor e empregador, os sucessivos “pacotes” para controlar a
inflação e a redução da taxa de investimento (no período 1974-1980 a taxa de investimento
8
-deobra no Brasil
PAIVA, P. de T. A. Cinqüenta anos de absorção de mão
mão-de-de-obra
Brasil: 1995-2000. Belo Horizonte:
UFMG/CEDEPLAR, 1984. p.13. (Texto para discussão).
REVISTA PARANAENSE DE DESENVOLVIMENTO, Curitiba, n.106, p.7-28, jan./jul. 2004
15
Subdesenvolvimento Globalizado: a resultante das escolhas da política econômica brasileira dos anos noventa
foi de 24% do PIB, e a partir de 1980 ela estacionou em torno de 16%), atinge-se
negativamente o mercado de trabalho, reduzindo o emprego formal, ampliando o número
de trabalhadores autônomos e dos empregados sem carteira assinada, e o próprio
desemprego aberto começa a ser visto como um problema. E foi neste quadro de profunda
heterogeneidade do mercado de trabalho e de frágil sociedade civil organizada que
foram associados os ajustes destinados a preparar a inserção competitiva do País numa
economia globalizada.
Fiori (2003, p.535) argumenta que o Brasil foi um dos poucos países
subdesenvolvidos que conseguiram percorrer quase todos os passos previstos para o processo
de industrialização retardatária, registrando uma das mais altas taxas de crescimento mundial.
No entanto, quando ocorreu a reversão neoliberal, acabou cumprindo uma agenda complexa
e rápida, com resultados decepcionantes do ângulo social e econômico.
Nesse sentido, a década de noventa, de uma certa maneira, marca um
descompasso na condução das possibilidades futuras do País. Apesar das dificuldades e
limites do modelo de crescimento baseado na substituição de importações, a dinâmica
do crescimento, até os anos 80, foi comandada, de forma decisiva, pela ação do Estado
e por seu esforço industrializante. A estrutura produtiva diversificou-se, com ênfase na
grande empresa estatal e privada, provocando grandes fluxos migratórios e um rápido
processo de urbanização do País.
Já na década de noventa do século passado, viveu-se a implementação de um
projeto neoliberal com as seguintes características: a) controle da inflação; b) abertura
comercial com o objetivo de ampliação da competitividade, privatização das grandes
empresas governamentais; c) desregulamentação financeira e dos mercados de trabalho;
e d) controle dos gastos públicos, com a redução do papel do Estado.
Esse Estado, até então norteador dos ciclos anteriores da economia brasileira,
vai praticamente desaparecer de cena, transformando o setor privado em agente principal
desse novo cenário. É assim que se privatizam as principais empresas públicas,
intensificam-se os procedimentos de “externalização” produtiva das grandes empresas
através da constituição de redes de subcontratação de pequenas e médias unidades
produtivas, as quais, sob o ponto de vista produtivo, conseguem consolidar e qualificar
umas poucas nos mercados, porém, sob a ótica do mercado de trabalho, intensificam a
precarização dos rendimentos e dos benefícios sociais.
Além disso, a utilização da âncora cambial, que sobrevalorizou a moeda nacional,
permitiu um forte movimento expansionista das importações, centrado em bens de capital
e intermediários, cujos resultados foram a ampliação dos componentes importados na
produção nacional e, ainda, a racionalização dos processos produtivos, ambas com efeitos
danosos sobre o emprego. De modo claro, a conjugação dos elementos acima referidos
permitiu um crescimento da produção industrial sem o crescimento do emprego, num
cenário de grande polêmica quanto ao comportamento da produtividade industrial.
A natureza das conseqüências desse processo será discutida a seguir.
16
REVISTA PARANAENSE DE DESENVOLVIMENTO, Curitiba, n.106, p.7-28, jan./jun. 2004
Liana Maria da Frota Carleial
3 SUBDESENVOLVIMENTO GLOBALIZADO: a resultante das
escolhas de política econômica dos anos noventa
Como vimos na seção anterior, o subdesenvolvimento é uma má formação estrutural
que tende a se manter, a se reproduzir e a se agravar, se não for devidamente enfrentado.
O nosso argumento é que, nos anos noventa, ocorreu uma escolha clara de política
econômica, qual seja: transferir para as empresas multinacionais (quer via privatização quer
via fusão e/ou aquisição de empresas brasileiras) o poder de decisão sobre o padrão de
produção, produtividade, inovação técnica, qualificação dos trabalhadores, enfim, sobre o
padrão de inserção produtiva da economia brasileira no mundo globalizado.
Como sabemos, e relembramos nos itens anteriores, a economia brasileira sempre
foi dependente de recursos e tecnologia externos. Entretanto, o papel das multinacionais
e do Investimento Direto Estrangeiro (IDE) se alterou significativamente. Entre os anos
1950-1970, o IDE auxiliou fortemente na formação de uma estrutura industrial
relativamente complexa e integrada; as multinacionais, quando aqui chegavam, eram
mais autônomas em relação à matriz, engajando-se mais intensivamente ao projeto
nacional de desenvolvimento. Enfim, as estratégias das firmas coincidiam com o modelo
de crescimento que aqui se implantava, ampliavam a capacidade produtiva local e
ampliavam o valor agregado do setor manufatureiro brasileiro. Adicionalmente, o mercado
de trabalho por elas gerado era também mais assemelhado ao padrão vigente no país de
origem. Contudo, de nenhum modo o abismo tecnológico que existia entre o Brasil e o
mundo desenvolvido foi reduzido, uma vez que a industrialização se fez mediante a
importação de tecnologias sem internalizar mecanismos de aprendizado.
Nos anos oitenta, a revolução microeletrônica invade e generaliza-se nos processos
produtivos do mundo desenvolvido ocupados pela reestruturação produtiva ali em curso.
Para o Brasil, a crise financeira do Estado e a crise da dívida adiam mudanças internas na
indústria e o IDE toma o rumo da chamada tríade – EUA, Europa e Ásia.
Já nos noventa, intensificado o processo de reestruturação produtiva no Brasil e
implementada a política econômica neoliberal, especialmente a de privatização e
desregulamentação, estão dadas as condições de retorno do IDE.9 Entretanto, o que mudou?
As condições da concorrência haviam se acirrado com a presença da firmarede,10 bem como pelos procedimentos de aquisição e fusão entre grupos e firmas.
Assim, o fluxo de IDE atraído para o Brasil naquela década não significou necessariamente
ampliação da capacidade produtiva do País e nem criação de capacidade tecnológica.
O que vimos foi uma significativa transferência de propriedade, quer via privatização das
empresas estatais quer via venda de empresas privadas. Em relação a esse último ponto,
a Sociedade Brasileira de Estudos de Empresas Transnacionais e da Globalização Econômica
Para o conceito de reestruturação produtiva e suas conseqüências, ver Carleial (2001a).
9
O significativo aumento da presença da firma-rede no cenário produtivo mundial pode ser entendido como o
próprio símbolo de um certo formato de divisão internacional do trabalho que se faz entre firmas mundiais localizadas em
diferentes partes do globo, porém atendendo ao plano de negócios da firma-sede; além disto, tal presença, vista como uma
tendência inelutável dessa fase do capitalismo, indica a dificuldade crescente dos países subdesenvolvidos. Para uma
excelente análise da firma-rede, ver Veltz (2001).
10
REVISTA PARANAENSE DE DESENVOLVIMENTO, Curitiba, n.106, p.7-28, jan./jul. 2004
17
Subdesenvolvimento Globalizado: a resultante das escolhas da política econômica brasileira dos anos noventa
(Sobeet), analisando os processos de fusões e aquisições no mundo, no período de 1990
a 2002, aponta que a posição vendedora do Brasil entre os países em desenvolvimento é
importante. Por exemplo, em 1996 o Brasil participa com 16% do volume de vendas
desse grupo, chegando a 33,5% em 1998, e retornando para uma posição mais tímida,
em 2000, mas ainda relevante, de 26,2%.11
Esse quadro ainda é fortemente realimentado pelo mercado cativo de patentes
detidas por poucos países, impedindo aos subdesenvolvidos de ter livre acesso a
tecnologias, equipamentos, aprendizados, a não ser mediante o pagamento de rendas
e royalties.12
Esse conjunto de fatos redunda numa divisão internacional do trabalho na
qual cabem aos países desenvolvidos as atividades de concepção e design e, portanto,
as atividades de desenvolvimento de processo e produto, cabendo aos subdesenvolvidos
as atividades de montagem. Um exemplo sempre citado e muito útil é o da indústria
automotiva. Essa indústria instalou-se no País nos anos 50, teve uma importância
central no desenvolvimento industrial brasileiro, praticamente moldou o movimento
sindical, constituiu uma importante cadeia produtiva, porém não escapou dos efeitos
da abertura comercial, desestruturou-se, e atualmente não é capaz de internalizar,
no País, atividades mais condizentes com o paradigma do conhecimento. O que falta
para que isto aconteça?
Como afirmou o ex-presidente do BNDES, prof. Carlos Lessa (2004), dos 500
grandes grupos multinacionais, 400 atuam hoje no Brasil. De forma simples, não é
exagero afirmar que a economia brasileira tornou-se prisioneira das decisões das
empresas estrangeiras.
De acordo com a Gazeta Mercantil (BALANÇO ANUAL, 2003), os vinte
maiores grupos internacionais, em 2002, são Telefônica, Embratel (MCI), Santander,
Telecom Itália, AABN Amro, Fiat, AES/Eletropaulo, Tractebel, Portugal Telecom, Arcelor
(Belgo-mineira), White Martins (Praxair), BankBoston, Whirpool (Brasmotor), Repsol
YPF, Bunge, Citicorp, Dow Chemical, Saint Gobain, Souza Cruz (BAT) e Alcoa. Ainda
de acordo com a mesma fonte, os vinte maiores grupos nacionais perderam posição
relativa em relação aos vinte grupos internacionais, uma vez que, no período de 1992
a 2001, sua receita operacional líquida cresceu 80%, enquanto a dos grupos
internacionais cresceu 200%.
Fica evidente que toda a estrutura produtiva está atravessada pela
internacionalização desde o agronegócio, passando pela automotiva, bancos, até as
grandes empresas de prestação de serviços essenciais.
No que se refere às privatizações, a presença do capital internacional é
significativa, como evidenciam os dados organizados pela Sobeet (gráfico 1).
11
Esses dados estão disponíveis no site <http://www.sobeet.org.br>; na organização dos dados citados acima a
Sobeet incluiu a Europa Central e Oriental no grupo de países em desenvolvimento.
Uma discussão interessante pode ser encontrada em Menino (2004).
12
18
REVISTA PARANAENSE DE DESENVOLVIMENTO, Curitiba, n.106, p.7-28, jan./jun. 2004
Liana Maria da Frota Carleial
GRÁFICO 1 - DISTRIBUIÇÃO DO VALOR TOTAL DAS PRIVATIZAÇÕES SEGUNDO A ORIGEM
DO CAPITAL - 1991-2002
Estados Unidos
16,60%
Capital nacional
51,39%
Espanha
14,41%
Portugal
5,57%
Itália
2,98%
Chile
1,19%
Outros países
7,85%
FONTE: Banco Central do Brasil
NOTA: Dados elaborados pela Sobeet.
Essas empresas atuando numa lógica de empresas mundiais trabalham
submetidas ao plano de negócios da empresa-mãe, estabelecendo relações de compra
e venda com suas empresas-irmãs no mundo sem qualquer compromisso mais imediato
com os interesses nacionais. As informações a seguir confirmam a presença do IDE
desde a agricultura, com grande penetração também em diferentes setores industriais,
com destaque para o automotivo; nos serviços, o grande destaque é o setor de
telecomunicações (tabela 3).
TABELA 3 - INVESTIMENTO DIRETO ESTRANGEIRO (IDE) NO BRASIL SEGUNDO SETOR DE DESTINO - 1995,
2000 E 2001-JUNHO 2004
31.12.1995
DISCRIMINAÇÃO
TOTAL
Agricultura, Pecuária e Extrativa Mineral
Indústria
Automotivo
Produtos químicos
Alimentos
Máquinas e equipamentos
Demais indústrias
Serviços
Telecomunicações
Serviços prestados a empresas
Intermediação financeira
Energia elétrica e gás
Comércio
Demais serviços
US$
milhões
41.696
925
27.907
4.838
5.331
2.828
2.354
12.556
12.864
399
4.952
1.638
2.886
2.988
31.12.2000
%
100,0
2,2
66,9
11,6
12,8
6,8
5,6
30,1
30,9
1,0
11,9
3,9
6,9
7,2
US$
milhões
103.015
2.401
34.726
6.351
6.043
4.619
3.324
14.389
65.888
18.762
11.019
10.671
7.116
10.240
8.080
2001-JUNHO 2004
%
100,0
2,3
33,7
6,2
5,9
4,5
3,2
14,0
64,0
18,2
10,7
10,4
6,9
9,9
7,8
US$
milhões
57.892
3.980
20.949
4.944
4.197
2.918
1.046
7.844
32.963
12.077
2.756
4.256
4.196
5.106
4.570
%
100,0
6,9
36,2
8,5
7,2
5,0
1,8
13,5
56,9
20,9
4,8
7,4
7,2
8,8
7,9
FONTE: Banco Central do Brasil
NOTA: Dados elaborados pela Sobeet.
REVISTA PARANAENSE DE DESENVOLVIMENTO, Curitiba, n.106, p.7-28, jan./jul. 2004
19
Subdesenvolvimento Globalizado: a resultante das escolhas da política econômica brasileira dos anos noventa
Nesse sentido, seria o caso de indagar se de fato o IDE exerce o papel esperado
no desenvolvimento econômico de um país. Certamente, o grau de desenvolvimento do
país receptor de recursos é a variável que pondera o sim, ou o não. Moreira (2003, p.122
e seguintes) argumenta que no caso brasileiro a resposta é não. E explica. As empresas
que se instalaram no País a partir da década de noventa são integradas a uma lógica
global, especializam-se em atividades de montagem e não contribuem na reconstituição
dos elementos que compõem a cadeia industrial; estão também engajadas numa lógica
de importação, acentuando os mecanismos de transferência interna de fundos e de lucros
em direção a outras firmas do mesmo grupo que exercem as funções principais, como a
pesquisa e o desenvolvimento. Além disso, a baixa atividade tecnológica local das
multinacionais é compensada por um aumento de comercialização tecnológica que resulta
numa forte saída de capital sob a forma de serviço tecnológico. Finalmente, o autor
ainda aponta os efeitos sobre o balanço de pagamentos. Considerando a análise
desenvolvida sobre a natureza desses investimentos, é bom lembrar ainda que há uma
pressão sobre as importações do País e um segundo impacto sobre a balança de serviços
decorrente do crescimento da remessa de lucros, dividendos, royalties, aluguéis de
equipamentos para o exterior.13
Deixando esse ponto mais claro, de acordo com o BNDES, entre 1989 e 2000 o
coeficiente de penetração, entendido como o percentual de conteúdo importado na
produção e no consumo locais na indústria brasileira, passou de 4,5% para 21,6%.
Desagregando por categoria de uso tem-se que entre os bens de consumo duráveis a
mudança foi de 7,8% para 44,8%; e entre os bens de capital a mudança é ainda mais
forte, tendo sido de 11,4% para 66,2%.
É necessário, porém, reconhecer que o Brasil tem procurado alterar o padrão
de seu comércio internacional, mas sem os resultados desejados. As informações mais
detalhadas sobre o desempenho do comércio exterior brasileiro revelam à exaustão a
fragilidade que domina o quadro exportador brasileiro. Negri (2005, p.8), utilizando a
metodologia da Unctad para a definição dos grupos de produtos, evidencia que a
pauta de exportações brasileiras ainda está muito distante do padrão mundial. A média
mundial de participação das commodities na pauta é de 13%, enquanto no caso brasileiro
é de 39%; já a média mundial de exportação de produtos de média intensidade
tecnológica (equipamentos mecânicos, automóveis e máquinas elétricas, etc.) é de
30%, e a brasileira é de 18%.
Analisando ainda o desempenho em valores, no período 2000-2003, do comércio
internacional brasileiro por intensidade tecnológica do item comercializado, constata-se
que as exportações de itens de alta intensidade tecnológica (produtos eletrônicos e
13
De acordo com o Banco Central do Brasil, no período de 1990 a 2003 apenas em 2003 o País obteve superávit
em transações correntes, graças ao excepcional resultado na balança comercial. Os saldos negativos de royalties e licenças
passam de R$ 75 bilhões, em 1990, para R$ 1.119 bilhões, em 2003, enquanto o de aluguel de equipamentos varia de
R$ 513 bilhões para R$ 2.312 bilhões no mesmo período. Mais significativo ainda é o envio de lucros e dividendos, cujo saldo
negativo passa de R$ 1.864,5 bilhões para R$ 5.640,4 bilhões na década.Ver <http://www. bc.gov.br>
20
REVISTA PARANAENSE DE DESENVOLVIMENTO, Curitiba, n.106, p.7-28, jan./jun. 2004
Liana Maria da Frota Carleial
informática, farmacêuticos e química fina, aviões, etc.) cresceram 15%, porém o
crescimento desses mesmos itens do lado das importações foi de significativos 35%.
Mesmo para os itens de média intensidade tecnológica o descompasso é grande, uma
vez que as exportações desses itens cresceram 18%, contra 29% das importações.
Como explicar isto, sem compreender a natureza da firma-rede que é o locus
efetivo da contemporânea divisão internacional do trabalho, a relevância do comércio
intra-firma, e ainda, o espaço subalterno que os países subdesenvolvidos ocupam quando
se trata de capacidade inovadora, produção do conhecimento e da possibilidade concreta
de conceber produtos?...
Na realidade é a natureza da inserção produtiva brasileira na qual as empresas
multinacionais que, ao mesmo tempo dominam o conhecimento e a expertise para produzir
os itens-chaves de sua produção em seus países de origem, importam os demais itens
intensivos em tecnologia de seus fornecedores mundiais, relegando ao parque produtivo
local o que chamamos de montagem de produtos, no seu sentido amplo.
Mas Negri (2005, p.30) continua a nos ajudar a compreender esse fenômeno
quando evidencia que, de fato, é a criação de processos produtivos novos e mais eficientes
que torna as firmas brasileiras capazes de exportar produtos intensivos em tecnologia,
como equipamentos eletrônicos, de comunicação, etc., e não a inovação de produtos.
Essa é mais uma constatação de que a inserção se faz em etapas mais simples dos
processos produtivos, o que se viabiliza pela importação das peças e componentes
tecnologicamente mais avançados.
Deste modo, a especificidade que vivemos atualmente reforça a nossa condição
de subdesenvolvimento, tão bem decifrada, originalmente, por Celso Furtado, porém
num patamar ainda mais grave.
Assim, no início do século XXI, o Brasil não construiu uma sociedade salarial à la
Castel, não universalizou direitos sociais, tem aproximadamente metade de sua força de
trabalho sem qualquer proteção social, mas possui uma estrutura produtiva razoavelmente
complexa, penetrada pelos avanços da microeletrônica, tem as grandes empresas
multinacionais integradas mundialmente, contudo para montar produtos. Talvez a figura
que possa retratar ironicamente o subdesenvolvimento globalizado seja o trabalhador
informal sem qualquer direito social, mas utilizando o telefone celular para agilizar os
seus contatos com prováveis ou efetivos clientes; ou, ainda, um desempregado sem
direito ao seguro-desemprego mas que usa a Internet para acessar o site de Agências de
Emprego ou até o das Delegacias e Secretarias do Trabalho espalhadas pelo País...
Na era do conhecimento, quando a separação entre ciência e tecnologia é
quase nula, a inovação tecnológica é permanente e invade o universo empresarial, as
empresas industriais e de serviços vencem a concorrência pela introdução continuada de
novos produtos diferenciados, as empresas brasileiras não podem responder apenas com
a oferta de trabalhadores com baixos salários e formação de preços mais baixos no
cenário mundial. Por outro lado, a exigência de centralidade da inovação resultante de
longos e contínuos processos de aprendizado das empresas mundiais também não pode
ser adotada sem mais... Esses são os componentes da areia movediça do
subdesenvolvimento globalizado.
REVISTA PARANAENSE DE DESENVOLVIMENTO, Curitiba, n.106, p.7-28, jan./jul. 2004
21
Subdesenvolvimento Globalizado: a resultante das escolhas da política econômica brasileira dos anos noventa
No entanto, a releitura de Celso Furtado, especialmente no clássico Desenvolvimento
e Subdesenvolvimento, lembra-nos que a condição de subdesenvolvimento é dada pela
conjunção de um lugar na divisão internacional do trabalho e de uma articulação dos
interesses internos. A meu juízo, isto significa que “há sempre o que ser feito” e, portanto,
o desenvolvimento também depende da política e não só da economia. Esta é, sem
dúvida, uma importante pista para o desenvolvimento de uma política industrial que
articule politicamente os interesses nacionais, lançando mão das vantagens decorrentes
do parque produtivo já instalado no País e da capacidade inovadora e exportadora das
empresas multinacionais.
É por isto que a criação de mecanismos que permitam potencializar as vantagens
das empresas multinacionais aqui sediadas e internalizar no País, por exemplo, mecanismos
mais consistentes de aprendizado, novas competências, ocupações mais qualificadas,
configura-se como uma possibilidade de reversão do subdesenvolvimento globalizado.
Entretanto, a via possível para se obter esse resultado precisa ser a negocial, a política,
uma vez que as razões de mercado apenas possuem o condão de acentuar o nosso
subdesenvolvimento.14
Assim, a compreensão da natureza do subdesenvolvimento globalizado
necessariamente precisa permear as decisões de política econômica, especialmente a
política industrial. É a incorporação dessa “nova”realidade que falta e precisa ser incorporada
na política do Estado brasileiro, numa estratégia de atuação de longo prazo. Infelizmente,
esse não é o entendimento do Governo Lula.
4 SUBDESENV
OL
VIMENTO GL
OBALIZADO 15 E A
SUBDESENVOL
OLVIMENTO
GLOBALIZADO
POLÍTIC A INDUSTRIAL DO GO
VERNO L
UL A
GOVERNO
LUL
O Brasil esteve por muitos anos sem uma política industrial, o que faz com que
uma proposta desse tipo seja muito bem-vinda. A política industrial é em si mesma o
reconhecimento da relevância da indústria para o desenvolvimento como difusora das
inovações e do conhecimento e, ainda, como geradora de emprego, renda e divisas.
De modo geral, as bases dessa política devem respeitar os seguintes aspectos:
i) a política industrial deve criar, coordenar e controlar instrumentos destinados a aumentar
a capacidade produtiva e comercial da indústria; ii) ela não deve colidir com a política
macroeconômica, do contrário tornar-se-ia completamente inócua; iii) precisa estar
ancorada numa sólida política científica; iv) deve reforçar as demais políticas implementadas
14
Aqui cabe indagar se o papel do Estado apenas como regulador, tal como tem sido a tônica do Governo Lula, é
capaz de enfrentar a gravidade do nosso subdesenvolvimento.
15
Conforme me referi anteriormente, Oliveira (2003, p.114-115), procurando decifrar o enigma do subdesenvolvimento
globalizado, argumenta que, diferentemente das fases anteriores de um subdesenvolvimento produzido pelo núcleo dinâmico
do sistema, nesta fase “o nexo externo não é mais filtrado ou mediado por nenhuma força interna, em que não há mais,
sequer, subordinação: há apenas ordenação”. Aponta aqui o fenômeno da desterritorialização do Estado e da política. Este é
um argumento muito forte. No entanto, o que discutimos nesta seção se coloca numa perspectiva de reintrodução da ação do
Estado nacional na direção do interesse nacional. Ou talvez, quem sabe, numa perspectiva de refundação do Estado.
22
REVISTA PARANAENSE DE DESENVOLVIMENTO, Curitiba, n.106, p.7-28, jan./jun. 2004
Liana Maria da Frota Carleial
pelo Governo; v) deve conhecer muito bem as fragilidades e potencialidades da economia
e sociedade do País; vi) precisa ter uma política implícita de emprego; e, finalmente, vii)
deve definir uma estratégia.
Tais aspectos apontados como a base de uma política industrial requereriam
uma análise detalhada. Não vamos aqui nos deter na insuficiência de instrumentos
imprescindíveis à sua execução, nem tampouco na ausência dos incentivos creditícios,
tarifários e fiscais necessários à sua implementação, ou ainda na armadilha
macroeconômica que impede tal implementação.16 No entanto, para os objetivos deste
artigo é relevante remarcar apenas o item v.17
O centro da nossa crítica é que o Governo Lula parece desconhecer a natureza
do subdesenvolvimento globalizado que vivemos. Nesse sentido, a proposta de política
industrial é basicamente de incentivo à produção nos moldes clássicos do passado. Na
realidade, a concepção da política assume a inserção da economia brasileira na economia
mundial mas não propõe uma estratégia compatível. A política tem como foco os setores
deficitários no comércio exterior: fármacos, softwares, bens de capital e semicondutores,
e nesse sentido procura integrar indústria, tecnologia e comércio exterior, embora se
restrinja a pensar a produção. No atual estágio da estrutura produtiva nacional, fortemente
penetrada pelo capital internacional, que é líder de importantes cadeias produtivas, é
ingênuo ou irresponsável pensar apenas em incentivar a produção. Como o País fará para
atrair as empresas desses setores? Será utilizada a mesma prática empregada para atrair
os investimentos do setor automotivo dos anos noventa? Ou seja, vamos agravar o nosso
subdesenvolvimento globalizado?
A política industrial, nesse contexto, precisa ir além da produção em si mesma,
precisa criar mecanismos que garantam a internalização no tecido produtivo brasileiro
das atividades de desenvolvimento de projeto e não apenas a adaptação de produto, que
tem sido a prática comum das empresas multinacionais aqui sediadas.
Nesse sentido, é importante que seja adensada a estrutura produtiva mas que
se promovam aprendizados, reforçando o desenvolvimento de competências e a estrutura
de emprego e, enfim, que se reduzam as possibilidades de saída do País dessas empresas.18
A implementação desse proposta exige necessariamente uma esfera ausente na concepção
da política industrial, que é a negocial. O setor automotivo brasileiro tem oferecido inúmeros
exemplos dessa especificidade.
Consideremos o exemplo do Estado do Paraná. Este estado abriga quatro plantas
montadoras – a New Holland e Volvo, instaladas na década de setenta, e Volks-Audi e
Renault-Nissan, instaladas na década de noventa, atraídas no bojo da Guerra Fiscal
entre estados federados. O Paraná, em 2003, produziu 10% da produção nacional dos
Ver Belluzzo e Carneiro (2004).
16
Merece também menção uma grande omissão da política industrial do Governo Lula: qual é a política científica
e tecnológica que ancora a política industrial? O que cabe às Universidades brasileiras nesse processo? Qual é o seu papel?
O que fazer com o conhecimento acumulado nessas Instituições?
17
Quem não se lembra da saída da Chrysler do Paraná, em junho de 2003?
18
REVISTA PARANAENSE DE DESENVOLVIMENTO, Curitiba, n.106, p.7-28, jan./jul. 2004
23
Subdesenvolvimento Globalizado: a resultante das escolhas da política econômica brasileira dos anos noventa
automóveis de passeio, 24% dos caminhões pesados, 34% das colheitadeiras e 23% dos
tratadores, de acordo com o IPARDES. As plantas aqui instaladas, especialmente as mais
recentes, fizeram-no num sistema de firma-rede, num formato de condomínio industrial,
trazendo consigo os seus fornecedores mais relevantes e reconhecidos mundialmente.
(CARLEIAL et al., 2001b).
O diagnóstico socioeconômico do Estado do Paraná, elaborado pelo IPARDES
(2003), e que constituiu a base para a atuação do Governo Requião, reconhecia que os
investimentos feitos no setor automotivo, na década de noventa, mediante um conjunto
significativo de incentivos, não havia gerado os resultados esperados em termos de emprego
e renda. Na realidade, mesmo reconhecendo a relevância da indústria para o Estado
haveria um espaço para ampliar os seus resultados.
Algumas pesquisas (CARLEIAL et al., 2001b; FARAH JÚNIOR, 2002) também
apontavam a baixíssima participação de fornecedores locais, o alto índice de importação
de peças, a inexistência de desenvolvimento de projetos locais e, portanto, os indicadores
de paranização divulgados pelas montadoras só se sustentam se aceitarmos que são
considerados nacionais as peças e componentes produzidos por fornecedores mundiais,
localizados no Paraná, independentemente de seu nível de componente importado.
Esse conjunto de informações ensejou uma ação concreta do Governo Requião.
Após praticamente dez meses de discussão interna ao Governo, em dezembro passado o
governador criou por Decreto o Conselho de Política Automotiva – CPA (PARANÁ, 2003).
O Conselho é composto pelo Governo, representado por alguns Secretários de Estado de
áreas afins, empresas montadoras e entidades de classe (FIEP, Sindimetal, Sindipeças,
CUT e Força Sindical e Dieese). Ele está estruturado em três esferas de atuação interligadas
e simultâneas: a negocial, a financeira e a de capacitação tecnológica, profissional e
geração de emprego coordenadas por uma Unidade Técnica de Gestão (UTG), podendo
ainda acionar Câmaras para encaminhar e solucionar questões propostas por qualquer
das partes envolvidas.
Uma das primeiras tarefas propostas pelo Governo ao CPA/PR, entretanto, é a
implementação do Programa de Paranização do Pólo Automotivo do Paraná, que tem o
seguinte objetivo: “Internalizar na economia paranaense os efeitos positivos decorrentes
do esforço social já despendido para atração dos investimentos automotivos, adensando
a base econômica, melhorando o padrão tecnológico das empresas locais e, sobretudo,
aumentando o emprego e a renda e aproveitando a base setorial para a inserção em
outros mercados. Visa, portanto, desenvolver e consolidar o arranjo produtivo automotivo
com vistas a uma maior inserção nos mercados nacional e internacional”.
Está então constituída uma esfera negocial, que, se bem conduzida, poderá
reverter em benefícios econômicos e sociais para o Paraná, especialmente com a
possibilidade de que empresas locais possam sediar e desenvolver projetos de interesse
das montadoras.
Certamente é muito cedo para avaliar os resultados desse empreendimento.
No entanto, é inegável que a estratégia é acertada. Enfim, é necessário negociar com as
multinacionais aqui já instaladas as decisões futuras que trarão conseqüências sobre a
estrutura industrial brasileira.
24
REVISTA PARANAENSE DE DESENVOLVIMENTO, Curitiba, n.106, p.7-28, jan./jun. 2004
Liana Maria da Frota Carleial
Finalmente, é importante considerar que essa estratégia implementada por um
governo estadual tem importância significativa, mas o enfrentamento do
subdesenvolvimento globalizado precisa ser feito no nível nacional e sob o comando do
governo federal.19 Na realidade, considerando que o BNDES tem um perfil fortemente
compromissado com o desenvolvimento, recursos significativos e ausência de grandes
projetos industriais, denúncia que fazia a antiga e faz a atual direção do Banco, há
certamente condições propícias para que se implemente um projeto nacional, ancorado
na esfera negocial entre empresas e Governo, para o enfrentamento e reversão do
subdesenvolvimento globalizado.20 Esse é um caminho para que sejam internalizadas, no
País, etapas da concepção e desenvolvimento de projetos em setores industriais relevantes
que propiciem o aprendizado tecnológico, criem ocupações mais qualificadas ao longo
da cadeia,21 reforçando, assim, a estrutura do emprego nacional e melhorando as
competências dos trabalhadores. Por este caminho o País conseguirá adensar sua estrutura
produtiva, redimensionar a participação do capital nacional em cadeias produtivas
importantes (bens de capital, linha branca, automotivo, eletroeletrônico), agregar
internamente maior valor aos produtos produzidos e, finalmente, alterar a sua pauta de
exportação na direção de produtos de maior valor agregado. Aí sim estaremos fazendo
Política Industrial!
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O subdesenvolvimento foi entendido por Celso Furtado como uma má formação
estrutural. Além disto, é uma condição específica engendrada pelo próprio desenvolvimento
capitalista no seu relacionamento com economias e sociedades em diferentes condições
econômica e social. O nó górdio da questão é dado pelo padrão de inserção internacional
de cada país ou região, podendo ou não ser realimentado. Contudo, a passagem do
subdesenvolvimento para a condição de desenvolvimento não se dá naturalmente. Exige
políticas, ação concreta, enfim, atuação concertada do Estado e de cada Governo.
O subdesenvolvimento brasileiro foi certamente marcado por sua posição de país
escravocrata, porém inserido na dinâmica de acumulação mundial. Esta pode ser entendida
como a primeira defasagem. A segunda foi definida por um processo de substituição de
importações relevante que possibilitou a construção de uma industrialização, contudo
19
No Governo Juscelino, tem-se como verdadeiro o fato de que ele chamava pessoalmente, em Palácio, alguns
empresários e entregava-lhes determinada missão. Os tempos mudaram e há instrumentos capazes de promover uma ação
negociada e eficaz!
20
Em entrevista concedida ao jornal Folha de S. Paulo, no dia 26.09.2004, o ex-presidente Carlos Lessa reclamava
da ausência de grandes projetos industriais entre as solicitações que o Banco recebia; já em 2005, no mesmo jornal, no dia
14.01.2005, o atual superintendente da área de Planejamento, Aluízio Asti, faz afirmativa semelhante, dizendo que as
expectativas de projetos industriais, principalmente de grandes projetos, não se materializaram. Nesse caso, já é sabido que
no ano de 2004, do total de recursos liberados, R$ 40 bilhões, apenas R$ 15,8 bilhões foram para a indústria, impondo uma
redução na participação relativa do setor de 2,0% em relação ao ano anterior!
21
No caso da automotiva, por exemplo, além de criar a ocupação de metalúrgico em 5 steps, criar também um
conjunto de atividades ligadas à concepção e desenvolvimento de projetos, absorvendo um número importante de engenheiros
disponíveis no País.
REVISTA PARANAENSE DE DESENVOLVIMENTO, Curitiba, n.106, p.7-28, jan./jul. 2004
25
Subdesenvolvimento Globalizado: a resultante das escolhas da política econômica brasileira dos anos noventa
tardia em relação aos países centrais; mesmo tendo internalizado a indústria e generalizado
o assalariamento, não conseguiu endogeneizar o progresso tecnológico, não criou
mecanismos internos de universalização da educação, de acesso à terra e aos direitos
sociais. Logo, o estatuto simples da força de trabalho, como diria Castel, não é instituído.
Esta é a terceira defasagem do nosso desenvolvimento.
A crise dos anos oitenta encontra um país industrializado, com uma estrutura
produtiva complexa e muito desigual socialmente. A crise das dívidas interna e externa e
a incapacidade do Estado brasileiro em continuar mantendo um padrão de financiamento
de longo prazo para o desenvolvimento em curso são os elementos da nova fase e que
irão permitir, quase sem reação, a quarta defasagem: o subdesenvolvimento globalizado.
Nesse sentido, os anos noventa redefinem o padrão do subdesenvolvimento brasileiro.
O processo de abertura comercial e de privatizações das empresas estatais brasileiras
atraiu um volume significativo de capital estrangeiro sem a correspondente ampliação da
capacidade produtiva e tecnológica, pois foi um processo mediado apenas pelo mercado,
sem qualquer ingerência governamental na preservação de cadeias produtivas ou na
construção de condições de aprendizado interno às empresas nacionais. Nesse sentido, o
País acabou por entregar nas mãos de empresas multinacionais as decisões relevantes
quanto à produção, introdução de progresso técnico, capacitação dos trabalhadores, etc.
Logo, o subdesenvolvimento globalizado é a resultante de uma decisão de
Governo, que ao implementar um conjunto de políticas acabou por transferir para a
grande empresa multinacional decisões importantes de produção, produtividade, padrão
tecnológico e de geração de empregos.22
Nesse sentido, fica evidente que a globalização não prescinde da ação dos
Estados Nacionais, ao contrário, depende desta ação para a implementação e mudanças
no cenário político institucional de cada país. Assim, não há qualquer conflito entre
Globalização ou Mundialização e Estado. E nem mesmo entre Mundialização e
Desenvolvimento.23 Os objetivos do desenvolvimento permanecem cada vez mais
importantes num cenário de crescente integração dos mercados. No entanto, a integração
necessita ser planejada, ou seja, precisa ser portadora de um dado projeto. De acordo
com os nossos argumentos apresentados ao longo deste artigo, a natureza do nosso
subdesenvolvimento, uma vez entendida, enseja uma ação imediata e concreta do Estado
brasileiro no sentido de “tirar partido” da estrutura produtiva instalada e dominada por
multinacionais em setores estratégicos e negociar, caso a caso, a decisão de internalizar
em empresas locais o desenvolvimento de projetos e, ainda, negociar, caso a caso, a
utilização da expertise brasileira (trabalhadores, universidades, institutos de pesquisa, etc.)
22
Como foi argumentado na introdução deste artigo, a macroeconomia em vigência limita qualquer projeto de
desenvolvimento; mesmo assim, é necessário entender melhor os efeitos da inserção brasileira na divisão internacional do
trabalho, a natureza do nosso subdesenvolvimento, e discutir as possibilidades alternativas.
23
Aqui cabe uma menção à interpretação de Oliveira (2003), anteriormente citada, quanto à desterritorialização do
Estado nessa fase do desenvolvimento capitalista globalizado. Se ele estiver certo, nossa proposta seria de reterritorialização
do Estado brasileiro no sentido de compromissá-lo com os interesses nacionais. Quem sabe, então, refundar o Estado
brasileiro.
26
REVISTA PARANAENSE DE DESENVOLVIMENTO, Curitiba, n.106, p.7-28, jan./jun. 2004
Liana Maria da Frota Carleial
para as atividades de concepção e design de peças que, por mais simples que sejam,
serão capazes de estimular o aprendizado e melhorar a capacitação tecnológica nacional.
Enfim, articular, negociar a reversão do subdesenvolvimento globalizado!
Dada a envergadura da iniciativa, o seu significado é o planejamento da inserção
nacional numa economia globalizada e, portanto, a constituição de um projeto nacional
de desenvolvimento.
REFERÊNCIAS
BALANÇO ANUAL: Gazeta Mercantil. São Paulo: Gazeta Mercantil, 1994 e 2003.
BALTAR, P.; PRONI, M. Sobre o regime de trabalho no Brasil: rotatividade da mão-de-obra,
emprego formal e estrutura salarial. In: OLIVEIRA, C. A. B. de; MATTOSO, J. E. L. (Org.). Crise e
trabalho no Brasil: modernidade ou volta ao passado? São Paulo: Scritta, 1996.
BELLUZZO, L. G.; CARNEIRO, R. Bloqueios ao crescimento. Política Econômica em Foco,
Campinas: UNICAMP/IE, n.3 jan./abr. 2004. p.1-9.
CACCIAMALI, M. C. Mudanças estruturais no produto e emprego no Brasil, 1950-80. São Paulo,
1988. Tese (Livre Docência) – USP.
CARLEIAL, L. Redes industriais de subcontratação. São Paulo: Hucitec, 2001a.
CARLEIAL, L. et al. Networks companies: brazilian automaking industry: general aspects of the
relationship with the suppliers, the logistical models and the coordination mechanisms.
In: CONGRESS ON PROXIMITY: NEW GROWTH AND TERRITORIES, 2001, Paris. Annals.
Paris: University of Paris South/Institute National de la Recherche Agronomique, 2001b.
CASTEL, R. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes, 1998.
CINTRA, M. A. M. Êxitos e limites da política macroeconômica brasileira entre 1999-2004.
Campinas: UNICAMP, 2005.
FARAH JÚNIOR, M. F. Uma proposta de estruturação da capacidade competitiva das pequenas
e médias empresas da metal-mecânica da RMC através da formação de um cluster. Florianópolis,
2002. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina.
FIORI, J. L. 2001: o Brasil no espaço. In: NOVAES, A. (Org.). A crise do estado-nação. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p.521-540.
FRANÇOIS, A. Le concept de développement: la fin d’un mythe. Trabalho apresentado nas
Premiéres Journées du Développement du GRES, Université Montesquieu-Bordeaux, 2004.
FURTADO, C. Desenvolvimento e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961.
FURTADO, C. A economia brasileira. Rio de Janeiro: A Noite, 1954.
FURTADO, C. A invenção do subdesenvolvimento. Revista de Economia Política, São Paulo:
Centro de Economia Política, v.15, n.2, abr./jun.1995.
IPARDES. Paraná: diagnóstico social e econômico. Curitiba, 2003.
KUZNETS, S. Crescimento econômico moderno: ritmo, estrutura e difusão. São Paulo: Abril
Cultural, 1983. (Os economistas)
LACOSTE, Y. Géographie du sous-développement. Paris: PUF, 1965.
REVISTA PARANAENSE DE DESENVOLVIMENTO, Curitiba, n.106, p.7-28, jan./jul. 2004
27
Subdesenvolvimento Globalizado: a resultante das escolhas da política econômica brasileira dos anos noventa
LAVINAS, L. Requalificando conceitos: quimera ou inovação. In: LAVINAS, L.; CARLEIAL, L. M.
da F.; NABUCO, M. R. (Org.). Reestruturação do espaço urbano e regional no Brasil. São Paulo:
Hucitec, 1993. p.11-18.
LESSA, Carlos. Nação e povo, na praça- entrevista. Carta Capital, São Paulo, v.11, n.306,
1 set. 2004. p.30-35.
MÉDA, D. Qu’est-ce la richesse? Paris: Aubier, 2000.
MENINO, S. E. Economia do conhecimento. In: COLÓQUIO LATINO-AMERICANO DE
ECONOMISTAS POLÍTICOS, 4., 2004, São Paulo. Anais. São Paulo: s.n., 2004. 1 CD-ROM.
MOREIRA, C. A. Uma reflexão sobre a dinâmica do investimento estrangeiro direto no
Brasil num contexto de liberalização comercial e de desregulamentação financeira. In: BRAGA,
E. (Org.). América Latina: transformações econômicas e políticas. Fortaleza: Ed. da UFC,
2003. p.112-133.
NEGRI, F. de. Conteúdo tecnológico do comércio exterior brasileiro: o papel das empresas
estrangeiras. Brasília: IPEA, 2005. (Texto para discussão, 1.074).
OLIVEIRA, F. A navegação venturosa: ensaios sobre Celso Furtado. São Paulo: Boitempo, 2003.
PARANÁ. Governo do Estado. Decreto n. 2.300, de 09 de dezembro de 2003.
SALM, C. et al. Estrutura e conjuntura do mercado de trabalho no Brasil. Rio de Janeiro: MTb:
UFRJ/IEI, 1987.
SEN, A. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
SICSÚ, J.; PAULA, L. F.; MICHEL, R. (Org.). Novo-desenvolvimentismo: um projeto nacional de
crescimento com eqüidade social. Rio de Janeiro: Ed. Manole: Fundação Konrad Adenauer, 2005.
VEIGA, J. E. A insustentável utopia do desenvolvimento. In: LAVINAS, L.; CARLEIAL, L. M. da F.;
NABUCO, M. R. (Org.). Reestruturação do espaço urbano e regional no Brasil. São Paulo:
Hucitec, 1993. p.149-170.
VELTZ, P. Le nouveau monde industriel. Paris: Gallimard, 2001.
28
REVISTA PARANAENSE DE DESENVOLVIMENTO, Curitiba, n.106, p.7-28, jan./jun. 2004
Download