Conflito femoro-acetabular - Revista de Medicina Desportiva

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Tema 1
Rev. Medicina Desportiva informa, 2012, 3 (2), pp. 11–13
Conflito femoro-acetabular
Dr. Pedro Marques1, Dr. António Figueiredo2
Assistente Hospitalar, 2Assistente Hospitalar Graduado. Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra –
CHUC, EPE; INTERCIR – Centro Cirúrgico de Coimbra
1
Resumo Abstract
O conflito femoro-acetabular é uma entidade clínica de conhecimento recente, sendo as
primeiras publicações de 2003. Trata-se de um conflito mecânico entre o fémur proximal
e o acetábulo. É a patologia da anca mais frequente do adulto jovem, afeta sobretudo
desportistas, em especial bailarinos, praticantes de artes marciais, hóquei em patins e
futebolistas, resultante da solicitação da flexão e rotação interna da anca. Descrevem-se
3 tipos de conflito: CAM, PINCER e MISTO, dependendo do local onde ocorre o conflito. A
radiologia clássica com incidências radiológicas específicas é normalmente suficiente para
o diagnóstico desta patologia. A TAC, a RM e a Artro-RM são também exames imagiológicos
usados. Existem três técnicas para a correção cirúrgica do conflito: artroscopia, luxação da
anca com osteotomia trocantérica e a técnica mini-invasiva anterior.
Femoroacetabular impingement was recently described and the fist papers describing it occurred in
2003. It is a mechanical impingement between de proximal femur and the acetabulum. It is the most
frequent pathology of the hip in young adults. It affects mainly athletes, especially ballet dancers,
martial arts fighters, hockey and football players, who flex and internally rotate the hip during
their activity. Femoroacetabular abutment is classified as pincer, cam impingement or combined.
Radiographic imaging of the hip is usually sufficient to make the diagnosis, but CT, MRI and MRI
arthrography can also be useful.There are mainly three surgical techniques to treat FAI: arthtroscopy, hip dislocation with trochanteric osteotomy and minimal-invasive anterior technique.
Palavras-chave Keywords
Dor na anca, conflito, femoro-acetabular
Hip pain, impingement, femoro-acetabular
Introdução
Para além da displasia da anca,
existem alterações ou variantes
morfológicas da anca capazes de
originar sofrimento e dano articular
a partir do fim da adolescência ou
do início da idade adulta. As práticas
desportivas que provocam solicitação exagerada da flexão e da rotação
interna da anca podem causar a
sintomatologia típica de conflito
femoro-acetabular (CFA).
O dano causado por estas anomalias morfológicas da anca está
na base de muitas artroses de anca,
consideradas até hoje idiopáticas.
Quando atempadamente identificadas e corrigidas, podem aliviar a
sintomatologia e acredita-se que a
artrose possa ser prevenida1,2.
Fatores de conflito, mecanismos
lesionais
As anomalias podem ocorrer a
nível femoral, acetabular ou serem
combinadas. No fémur a anomalia
situa-se na porção anterior da junção cabeça-colo e origina diminuição
da profundidade da concavidade que
a cabeça faz com o colo (Fig. 1, 7 e 8),
sendo esta última muito importante
para a flexão e rotação interna da
anca. As anomalias a nível acetabular são a retroversão do acetábulo,
a coxa profunda e a coxa protusa
(sendo esta última um grau mais
avançado de coxa profunda).
Estas anomalias causam sofrimento articular por um mecanismo
de conflito mecânico. Esse conflito
pode ser dos tipos “PINCER”, “CAM”
ou misto (Fig. 1). Esse conflito ocorre
essencialmente no quadrante
Normal
CAM
Pincer
Misto
Fig.1. Tipos de conflito femoro-acetabular
antero-superior da anca, durante
a flexão e a rotação interna, originando lesão secundária da cartilagem e do labrum3,4,5.
No tipo CAM, no movimento
de flexão, a porção anesférica
da cabeça penetra no quadrante
antero-superior do acetábulo e
exerce forças de cisalhamento de
fora para dentro, as quais se fazem
sentir primeiro na cartilagem e só
depois na junção da cartilagem
com o labrum. Por ação destas forças a cartilagem descola-se do osso
subcondral e o labrum descola-se
da cartilagem (Fig. 2). Esta lesão
pode estender-se em profundidade
e é, regra geral, irreversível. Estas
graves lesões condro-labrais estão
na base da rápida evolução para
artrose. Este é o tipo mais perigoso
de conflito e incide mais no indivíduo jovem do sexo masculino e
ativo.
Fig. 2. Conflito femoro-acetabular tipo
CAM, com lesão delaminação da cartilagem, imagem artroscópica
No tipo PINCER ocorre um contacto linear entre o rebordo acetabular e o colo do fémur. O labrum
Revista de Medicina Desportiva informa Março 2012 · 11
é apanhado no meio deste conflito,
sendo a primeira estrutura a ser
lesada. A lesão da cartilagem é mais
tardia e bem mais benigna que no
tipo CAM. O Pincer incide mais em
mulheres de meia-idade e tem uma
evolução mais lenta para artrose
que o CAM.
Clínica
Na maioria das vezes o paciente é
jovem e ativo e o conflito manifesta-se por dor na região inguinal.
Determinadas práticas desportivas,
tais como as artes marciais, o ballet
e o hóquei em patins, estão mais
associadas ao conflito.
O início pode ser insidioso ou estar
relacionado com um traumatismo,
que até pode ser insignificante. A
dor é exacerbada com a atividade
desportiva e com o sentar prolongado,
o que tem a ver com o facto de o conflito ocorrer em flexão e em rotação
interna. Em alguns casos a dor pode
ser sentida no joelho, o que pode
criar dificuldades no diagnóstico. As
mulheres com ancas profundas ou
protusas podem manifestar dor inguinal durante a prática do ato sexual.
Diversas situações clinicas podem
mimetizar o CFA: patologia lombar, sacro-ilíaca, sinovite da anca,
necrose avascular da cabeça do
fémur, displasia da anca, roturas
isoladas do labrum, tendinites do
músculo psoas, fragilidades de
parede abdominal (com ou sem
hérnia), tendinite dos adutores e
osteo-artropatia púbica.
Existem indivíduos com estas
anomalias morfológicas, mas assintomáticos, pelo que o diagnóstico
correto é essencial para o sucesso
Fig. 3 – Incidência pélvica AP perfeita. 1
– Doente em pé; 2 – Rotação interna 15º;
3 – Distância foco-filme: 120 cm; 4 – Raio
centrado na linha média a rasar o bordo
superior da sínfise púbica
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terapêutico. Por outro lado, podemos
encarar esta patologia como dinâmica, em que determinadas solicitações desportivas que impliquem
flexão máxima da anca podem
despertar a patologia até então
adormecida.
No exame físico verifica-se limitação das mobilidades da anca, nomeadamente da rotação interna. A dor
inguinal pode ser despertada ou
agravada pela rotação interna, flexão e adução do fémur, originando o
teste de conflito positivo3, 4.
Fig. 5 – Radiografia da bacia na
incidência antero-posterior
Imagiologia
Os fatores de conflito são de natureza óssea pelo que a radiologia
clássica é suficiente para objetivá-los. O importante é saber que incidências pedir, como fazê-las e saber
observá-las.
Os fatores de CFA são identificáveis na radiografia antero-posterior
da bacia, em carga6 (Fig. 3). A identificação da retroversão pode não ser
de fácil, dependendo o seu aparecimento da inclinação da bacia, logo
de fatores posturais, para alem dos
anatómicos. Os fatores de conflito femorais localizam-se na face
anterior do colo, na transição para
a cabeça, estando frequentemente
ocultos na radiografia da bacia na
incidência de face. Tal aconteceu no
caso de um ex-praticante de artes
marciais, atualmente sedentário, do
sexo masculino, de 35 anos de idade,
que referia dores na região inguinal
esquerda e apresentava diminuição
acentuada de rotação interna, teste
de conflito positivo e com sintomatologia despertada pela atividade
física. A radiografia da bacia não
apresentava alterações aparentes
(Fig. 5). Para melhor objetivar os
fatores de conflito de causa femoral
Fig. 4 – Incidência de Dunn
Fig. 6 – Rx na incidência de Dunn em
decúbito dorsal, evidência de conflito tipo
CAM, mais acentuado à esquerda
Fig. 7 – Rx na incidência de Dunn, pos-operatório, correção de conflito tipo
CAM à esquerda
é necessária a realização de uma
incidência de perfil do colo femoral
(Fig. 4, 5 e 7). Há várias formas de o
fazer e a nossa preferência vai para
a incidência de Dunn bilateral em
decúbito dorsal (Fig. 4, 6 e 7). Esta
é uma técnica pessoal dos autores, adaptada a partir das técnicas
originais de Dunn e de Lowenstein
(incidência de rã). Trata-se de uma
técnica de aquisição de imagem
fiável e de fácil aquisição. Permite
uma adequada visualização de
junção cabeça-colo e o facto de ser
bilateral permite a comparação das
duas ancas. A realização posterior
da radiografia da bacia na incidência de Dunn bilateral, em decúbito
dorsal, ao nosso ex-atleta permitiu
identificar a diminuição da normal
concavidade na junção cabeça-colo
anterior do fémur (setas vermelhas),
ausente à esquerda e diminuída à
direita (Fig. 7).
A TAC e a RM são usadas para
identificação de casos subtis de CFA
e de outras causas de dor. Para diagnóstico de lesões condrais e labrais
preferimos a ArtroRM.
Tratamento
Se o paciente for portador de fatores
de conflito, mas não tiver queixas, nada deverá ser feito. Se, pelo
contrário, apresentar queixas com a
atividade desportiva que o paciente
pretende manter, a solução é naturalmente cirúrgica.
diagnósticos incorretos, com tratamentos inadequados e até prejudiciais e, sobretudo, a perda de tempo.
A fisioterapia, numa tentativa de
ganho de mobilidade, agrava o
problema e está, por isso, contraindicada.
Existem fundamentalmente três
técnicas para a correção cirúrgica do
conflito:
A artroscopia apresenta-se como
a técnica menos invasiva, mas exige
muita experiência e destreza técnica
e, mesmo assim, não é fácil dada a
as particularidades anatómicas da
articulação da anca8.
A luxação cirúrgica, a técnica
original de correção do conflito, é a
mais agressiva, mas é a única capaz
de corrigir adequadamente alguns
tipos de conflito7.
A técnica mini-invasiva anterior
(Fig. 8 e 9), associada a intensificador de imagem e a artroscopia, tem
invasibilidade e reabilitação muito
semelhantes à artroscopia e permite
a correção da maioria dos CFA9,10,11.
O nosso paciente foi tratado por
técnica anterior mini-invasiva, assistida por artroscopia (Fig. 8). Precedeu-se a osteoplastia femoral (Fig. 9),
desbridamento da lesão cartilagínea
e re-inserção do labum.
Conclusão
Fig. 8 – Técnica mini-invasiva, assistida
por artroscopia
Fig. 9 – Técnica mini-invasiva, incisão
de 6 cm, exposição de cabeça femoral e
acetábulo por via anterior
Sendo o problema um conflito
mecânico, a solução é cirúrgica e
passa pela restituição da anatomia
(correção do fatores de conflito)
e tratamento das lesões condrais
e labrais associadas. Esta correção deve ser feita sem demora em
indivíduos sintomáticos, antes que
se estabeleçam lesões cartilagíneas
irreversíveis. A não identificação
do conflito leva muitas vezes a
Há um número significativo de indivíduos que apresentam fatores de
conflito, são, no entanto, sedentários
e, por isso, não apresentam sintomas: são tidos como portadores de
conflito. Para nós, a maior dificuldade na área do CFA não está na sua
identificação, nem sequer na sua
correção, mas sim em relacioná-la
com as queixas, isto é, em atribuir
as queixas clínicas aos fatores de
conflito. Isto exige um bom exame
clínico e imagiológico, com exclusão
de outras causas para a dor. Na realidade, tratando-se de uma patologia
muito específica, o tratamento do
doente com CFA deve ser efetuado
por profissionais com vasta experiência nesta área. A correção cirúrgica dos fatores de conflito numa
fase precoce permite a retoma da
atividade desportiva, muitas vezes
com melhores resultados.
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