O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA NAS ESCOLAS OFICIAIS Vera Lúcia Massoni Xavier da SILVA* RESUMO Há anos, trabalho com programas de educação continuada oferecidos a professores da rede oficial de ensino. Nesses encontros, mais especificamente, nas conversas sobre procedimentos de ensino ministrado, observei um descompasso entre a fala dos professores e a realidade de aprendizado dos alunos. Essa constatação advém das provas de vestibular, em que se verifica um péssimo domínio da modalidade escrita da língua, de uma faculdade de Catanduva e de dados publicados na mídia. Atualmente, ministro aulas de Prática de Ensino de Língua Portuguesa, o que tem possibilitado um acesso mais palpável ao que realmente vem sendo ensinado nas escolas públicas, por meio do relato de observação do Estágio Supervisionado realizado pelos alunos de graduação. É, portanto, a partir das observações anotadas por esses alunos que efetuo um levantamento do que se ensina nas escolas de Catanduva. De modo geral, a pesquisa, pautada nos pressupostos da Linguística Aplicada ao Ensino de Língua, tem-me revelado que, basicamente, as aulas são de gramática normativa, descontextualizadas, não se verificando o trabalho com as três competências: interativa, linguística e textual. A partir daí, estabeleço como proposta o ensino calcado em textos, a partir dos quais se pode observar a língua em uso nas diferentes situações comunicativas. PALAVRAS-CHAVE: Linguística Aplicada. Competências linguística, textual e discursiva. Introdução O trabalho com programas de educação continuada, propiciado pelo governo paulista, possibilitou-me a constatação de um descompasso entre o discurso dos professores participantes e os resultados do desempenho dos alunos nas provas oficiais realizadas pelo governo federal e pelo estadual. Desnecessário citar dados oficiais para a comprovação do péssimo desempenho dos alunos. Atemo-nos, entretanto, às publicações dos resultados das provas oficiais realizadas em 2005, Saresp, incluindo o Saeb, Sistema Nacional de Educação e Avaliação Básica, do governo federal, e em 2007, Saresp. Os estudantes avaliados cursavam as 1ª, 2ª, 4ª, 6ª e 8ª séries do ensino fundamental e a 3ª série do ensino médio em 2007. Os resultados das provas feitas pelos alunos recebem pontuações que vão de abaixo do básico (domínio insuficiente do conteúdo), básico (desenvolvimento parcial), adequado (domínio) e avançado (acima do requerido), e variam de acordo com a série em que o aluno está matriculado. Em português, o Saeb apontou que, em 2005, 82% dos estudantes da 8ª série do ensino fundamental da rede estadual de São Paulo apresentavam desempenho abaixo do esperado, enquanto 15% estavam em níveis adequados e outros 3% mostram conhecimentos além das expectativas (avançado). Em 2007, o Saresp apontou uma redução na quantidade de alunos que se encontram nos níveis abaixo do básico e básico (70%), e evolução nas faixas adequado (24%) e avançado (6%). Doutora em Linguística e Língua Portuguesa (FCL-UNESP-Araraquara). Docente do Centro Universitário de Araras “Dr. Edmundo Ulson” - UNAR. [email protected] * UNAR (ISSN 1982-4920), Araras (SP), v.3, n.2, p.2-14, 2009. SILVA, V.L.MX. O ensino de língua portuguesa nas escolas oficiais. 3 Embora observada uma ligeira elevação nos índices, tomando como base as provas de 2005 e 2007, pode-se afirmar que o percentual de 70% dos níveis abaixo do básico e básico ainda é sofrível, o que contribui para a colocação do Brasil em um escore que o afasta, e muito, dos países desenvolvidos e em desenvolvimento. O descompasso a que me referi, no início desse trabalho, está no fato de os professores afirmarem, categoricamente, desenvolver um ensino que suscite reflexão crítica; incentivar a leitura, a interpretação e a produção textual e, principalmente, enfocar o ensino de gramática contextualizado, desvinculando-se da metalinguagem. O ponto de partida As minhas inquietações a respeito do ensino de Língua Portuguesa intensificaram-se nas aulas de Prática de Ensino, cuja ênfase é dar a conhecer aos alunos os PCN’s (Parâmetros Curriculares Nacionais), procurando evidenciar como essas diretrizes podem ser colocadas em prática, por meio de estratégias diversificadas. O referido documento assinala que o objetivo do ensino de Língua Portuguesa é o de dotar o aluno de competências em relação à linguagem que lhes possibilitem resolver problemas da vida cotidiana, ter acesso aos bens culturais e alcançar a participação plena no mundo letrado. Para que esse objetivo geral se materialize, reza o referido documento que a organização do ensino deve propiciar capacidades de: • • • • • • expandir o uso da linguagem em instâncias privadas e utilizá-la com eficácia em instâncias públicas, sabendo assumir a palavra e produzir textos — tanto orais como escritos — coerentes, coesos, adequados a seus destinatários, aos objetivos a que se propõem e aos assuntos tratados; utilizar diferentes registros, inclusive os mais formais da variedade linguística valorizada socialmente, sabendo adequá-los às circunstâncias da situação comunicativa de que participam; conhecer e respeitar as diferentes variedades linguísticas do português falado; compreender os textos orais e escritos com os quais se defrontam em diferentes situações de participação social, interpretando-os corretamente e inferindo as intenções de quem os produz; valorizar a leitura como fonte de informação, via de acesso aos mundos criados pela literatura e possibilidade de fruição estética, sendo capazes de recorrer aos materiais escritos em função de diferentes objetivos; utilizar a linguagem como instrumento de aprendizagem, sabendo como proceder para ter acesso, compreender e fazer uso de informações contidas nos textos: identificar aspectos relevantes; organizar notas; elaborar roteiros; compor textos coerentes a partir de trechos oriundos de diferentes fontes; fazer resumos, índices, esquemas, etc.; UNAR (ISSN 1982-4920), Araras (SP), v.3, n.2, p.2-14, 2009. SILVA, V.L.MX. O ensino de língua portuguesa nas escolas oficiais. 4 • • • valer-se da linguagem para melhorar a qualidade de suas relações pessoais, sendo capazes de expressar seus sentimentos, experiências, idéias e opiniões, bem como de acolher, interpretar e considerar os dos outros, contrapondo-os quando necessário; usar os conhecimentos adquiridos por meio da prática de reflexão sobre a língua para expandirem as possibilidades de uso da linguagem e a capacidade de análise crítica; conhecer e analisar criticamente os usos da língua como veículo de valores e preconceitos de classe, credo, gênero ou etnia. Em síntese, ensinar Língua Portuguesa é dotar o aluno de diferentes possibilidades comunicativas, orais e escritas, adequadas às diferentes situações em que se encontra; dotar o aluno de habilidades de leitura de textos manifestados nas diferentes linguagens; dotar o aluno de capacidade de interpretação e de produção textual, considerando-se os diferentes gêneros; dotar o aluno de habilidades para entender que os textos são materializações de discursos e que esses não são autofundados, mas retomam outros. Para que essas competências sejam satisfatoriamente desenvolvidas, faz-se mister que o professor utilize, em suas aulas, desde uma receita de cozinha até um texto literário. Em 2006, fui convidada a participar das reuniões de professores de uma escola oficial, para refletir sobre os resultados do Saresp, que evidenciaram um péssimo desempenho dos alunos. O ponto mais gritante referia-se à produção textual, em que os alunos deveriam escrever um bilhete ao Chapeuzinho Vermelho, informando-lhe que não fosse à casa da Vovó pelo caminho da floresta, pois o Lobo Mau se encontrava ali. Apenas cinco alunos, de um total de quarenta, conseguiram realizar a proposta. Isso me chamou a atenção, embora já houvesse intuído o porquê desse fracasso. Ao serem questionados sobre a forma como ensinaram a produção do bilhete, os professores foram unânimes em afirmar que não o fizeram. Se o aluno não é exercitado a produzir textos, de acordo com os diferentes gêneros, é normal que não os produza. Assim, iniciamos nossos encontros trabalhando os gêneros, o que, sem dúvida, produziu efeitos satisfatórios, pois, na prova seguinte, o desempenho dos alunos foi bem melhor. Esse fato encorajoume a pesquisar outras escolas, utilizando-me do relato do Estágio Supervisionado de Observação, realizado pelos alunos do Curso de Letras. Esses alunos registravam, em um caderno de campo, as atividades ministradas pelos professores observados. Cabia-lhes selecionar uma ou duas aulas e expô-las para a classe, preservando-se sigilo absoluto em relação à escola e ao professor observado. Após essa exposição, os alunos deveriam confrontar o ensino efetivamente praticado e o ensino a ser ministrado, considerando-se os PCN’s, refletindo, questionando a didática das aulas observadas e propondo novas formas de se conceber a linguagem, a língua e o ensino. O que e como se ensina? De um total de vinte exposições pelos alunos, selecionei apenas cinco, sobre as quais efetuo relatos. Para preservar a identidade, denomino Prof. 1- 2ª e 3ª Séries do Ensino Médio; Prof. 2- 1ª e 2ª Séries do Ensino Médio; Prof. 3- 5ª, 6ª e 7ª Séries do Ensino UNAR (ISSN 1982-4920), Araras (SP), v.3, n.2, p.2-14, 2009. SILVA, V.L.MX. O ensino de língua portuguesa nas escolas oficiais. 5 Fundamental; Prof. 4- 8ª Série do Ensino Fundamental; Prof. 5- 1ª e 2ª Série do Ensino Médio. Professor 1 O professor 1, na 2ª série do Ensino Médio, iniciou sua aula com a correção dos exercícios, constando de perguntas sobre o livro Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco, passados na aula anterior. Na verdade, eram perguntas do tipo: “Tereza tem certa fragilidade, qual é?”, “Qual é o conceito de felicidade expresso no livro?”. As respostas eram dadas oralmente. Em seguida, o professor coloca na lousa um poema de Álvares de Azevedo, seguido de algumas questões. Na 3ª Série, o Prof. 1 inicia sua aula, explanando sobre a vida de Fernando Pessoa; comenta o uso da cor preta pelo poeta; apresenta os três heterônimos do poeta da seguinte maneira: - Alberto Caeiro- poesia da sensação; - Ricardo Reis- o sopro clássico; - Álvaro de Campos- energia futurista. Após essa etapa, solicita a leitura do poema “Autopsicografia”, de Fernando Pessoa, introduz questões, tais como: Por que o poema é chamado “autopsicografia”? Comentários Percebe-se pelos relatos acima que o objetivo do professor era o ensino de Literatura, porém o que se pode observar é que sua aula se resume à leitura do texto e interpretação das questões inseridas no livro didático. Chama-nos a atenção o fato de o referido professor introduzir um poema de autor romântico brasileiro e não fazer qualquer menção ao período literário ao qual pertence nem compará-lo ao Romantismo português. Para mim, a questão se torna mais grave quando o referido professor introduz Fernando Pessoa e seus heterônimos com a explicação colocada acima. Não seria mais prudente e eficiente, a partir de um poema ilustrativo de cada heterônimo, explicar as características e marcas manifestadas no texto? A contar com as questões de literatura introduzidas nos vestibulares, creio ser esse o melhor caminho. Confesso que com a explicação dada nem eu saberia ler um poema de Alberto Caeiro e identificar as marcas da “poesia de sensação”. Professor 2 Na 1ª Série do Ensino Médio, o professor introduz um texto sobre a boneca Barbie, especificamente sobre quem a fabrica e a quantidade que já foi lançada no mercado. Os exercícios para esse texto foram: “Sublinhe os substantivos do texto”; “classifique os substantivos: ‘boneca’, ‘Ruth’, ‘casa’”; “escreva substantivos derivados para ‘casa’, ‘fábrica’, ‘brinquedo’, ‘filho’”. Na 2ª Série do Ensino Médio, o Prof. 2 retomou a aula anterior, que versava sobre os elementos estruturais das formas verbais. Para tanto, colocou na lousa uma série de verbos: “cantamos”; “falou”, “dançaria”, “falará”, “vivemos”, “escrevi”, “mostrou”, UNAR (ISSN 1982-4920), Araras (SP), v.3, n.2, p.2-14, 2009. SILVA, V.L.MX. O ensino de língua portuguesa nas escolas oficiais. 6 “saberei”, “cantar”, e solicitou que os alunos indicassem os seus elementos estruturais, seguindo o modelo apresentado: Cantamos: radical - cant; vogal temática -a; tema -canta; desinência -amos. Quando questionado, o professor solicita aos alunos que consultem o ponto colocado na lousa na aula anterior. Em continuidade à aula, o professor coloca na lousa o tema “Locução Verbal” e, a partir de duas frases, grifa as locuções e dá a seguinte definição: Locução Verbal pode ser composta por mais de dois verbos, ligados ou não por preposição. Na locução Verbal o verbo principal (o último da locução) está sempre no infinitivo (terminação em r); no gerúndio (terminação em ando, endo, indo) e no particípio (terminação em ado e ido). Apenas o Verbo Auxiliar (o primeiro da locução) se flexiona em tempo, modo e pessoa. A definição de verbo principal dada pelo professor é: “verbo principal é aquele que, sozinho ou depois de outro verbo numa locução verbal, expressa a idéia principal da frase. Verbo auxiliar é aquele que não tem sentido próprio, mas auxilia uma das formas nominais, sendo só ele conjugado”. Após essa etapa, distribui revistas aos alunos e solicita que eles recortem um texto e sublinhem todas as locuções verbais. O exercício seguinte era: Seu texto possui locução verbal? Quais? Coloque todos os verbos sublinhados no seu caderno e complete com o que se pede: Verbos Infinitivos Conjugação Gerúndio Particípio era ser 2ª sendo sido Comentários Em relação ao texto selecionado pelo professor para a 1ª Série do Ensino Médio, ressaltamos tratar-se de um texto informativo, que deve ser explorado em sala de aula, porém salvaguardando-se o interesse dos alunos. Ora, a Barbie não faz parte do cotidiano desse elenco de alunos, daí o desinteresse relatado pelo observador. Mais grave, ainda, foi o tipo de exercício gramatical solicitado. Para a 2ª Série, o professor objetivou o trabalho com a estrutura mórfica dos verbos, por meio de exercícios totalmente descontextualizados, sem falar da classificação, no exemplo dado, de -amos, como desinência. Mais sério ainda são as definições de locução verbal e o tipo de exercício enfocado, pois em nenhum momento houve a cobrança, por exemplo, da diferença entre “estou cantando” e “tinha/ havia cantado”. Isso nos leva a afirmar que apenas a estrutura é enfocada, esquecendo-se da semântica das locuções. UNAR (ISSN 1982-4920), Araras (SP), v.3, n.2, p.2-14, 2009. SILVA, V.L.MX. O ensino de língua portuguesa nas escolas oficiais. 7 Professor 3 Na 5ª Série do Ensino Fundamental, o professor coloca na lousa o tema da aula, “Artigo” e, em seguida, a classificação: “artigos definidos e artigos indefinidos”. A partir da frase “O índio casou-se com Potira”, o professor escreve na lousa: “a palavra o acompanha o substantivo índio e se refere a um ser já conhecido, determinado, definido, por isso é chamado de artigo definido”. Em “Encontrei um índio perto da mata”, seguida de “a palavra um se refere a um ser não conhecido, indeterminado, indefinido. A palavra ‘um’ é artigo indefinido”. Em seguida dá uma série de frases e solicita que os alunos grifem e classifiquem os artigos. Na 6ª Série, o tema foi “Grau dos Adjetivos”, seguindo-se o mesmo esquema: coloca o ponto na lousa, em seguida dá frases para os alunos reconhecerem o grau dos adjetivos. Na 7ª Série, o professor coloca na lousa o texto “Trem de Ferro”, de Manuel Bandeira, solicitando que os alunos o copiem tal qual está na lousa. Em seguida, solicita que eles dividam o poema em estrofes e versos. Comentários O ensino de Língua Portuguesa ministrado pelo professor em questão está calcado na gramática, desvinculada do uso em situações concretas de comunicação, pois introduz frases jogadas, o que nos faz lembrar um quadro de Jô Soares, em “Viva o Gordo”. Nesse quadro, um jovem ia à procura de emprego e, na hora da entrevista, o chefe responsável pela seleção de pessoal perguntava-lhe: “O que você sabe fazer?”. A resposta era óbvia: “Eu sei sujeito, predicado, objeto direto, objeto indireto, etc.”. Ora, isso é um exemplo concreto de que o ensino era para a escola e não para a vida. Mais uma vez, observamos um ensino de mera metalinguagem e, em nenhum momento da aula, por exemplo, enfocou-se a diferença de uso dos artigos e sua importância, como se pode observar no exemplo extraído de uma situação de CPI da violação do painel de votação, em que um deputado perguntou a Arruda, o envolvido: “Quando a dona Regina lhe apresentou a lista, ela disse:‘Aqui está a lista’ ou ‘Aqui está uma lista?’”, além de não se mencionar a função textual dos artigos. Quando resolve abordar o texto, o professor o faz apenas com um fim específico: explicar estrofe e verso, desconsiderando toda a riqueza discursiva e estilística do poema: ritmo, paralelismo, onomatopéias, reprodução da oralidade, etc. Professor 4 Na 8ª Série do Ensino Fundamental, o professor propõe-se a ensinar tipologia textual. Para tanto, coloca na lousa o seguinte esquema: Narração – história − personagens, onde (lugar), quando (tempo), narrador: personagem e observador. Descrição − imagem. Dissertação − assunto. UNAR (ISSN 1982-4920), Araras (SP), v.3, n.2, p.2-14, 2009. SILVA, V.L.MX. O ensino de língua portuguesa nas escolas oficiais. 8 Na aula seguinte, o professor aborda a Estrutura das Palavras, colocando na lousa: 1- radical: estudo – estudar (variação) 2- desinências: a) nomes: bonitos − bonit= radical; o= desinência de gênero; s= desinência de número OBS: Esta palavra possui masculino e feminino. b) Classes − class= radical; e= vogal temática; s= desinência de número Obs.: Esta palavra tem apenas uma maneira (nem masculino, nem feminino) c) verbos: cantar -cant= radical; a= vogal temática; r= desinência de infinitivo Cantássemos -cant= radical; a= vogal temática; sse= desinência de modo e de tempo; mos= desinência de número e pessoa 3- Afixos: prefixos e sufixos Infeliz- in = prefixo; feliz= radical Felizmente -feliz= radica; mente= sufixo. Em seguida, o professor passa na lousa uma lista de palavras para que os alunos detectem a sua estrutura mórfica Comentários Embora se propondo a ensinar tipologia textual, o professor introduz conceitos, porém de forma equivocada, pois não aborda as categorias próprias a cada tipologia, não as explicita em textos nem solicita alguma produção dos alunos. Na verdade, esse é um retrato do fracasso dos alunos na produção textual. No ensino de gramática, mais uma vez, deparamos com o ponto na lousa e a lista de exercícios a serem feitos pelos alunos. Ressaltem-se, ainda, conceitos confusos, como, por exemplo, a palavra classe, em que o professor coloca a observação de que ela só tem uma forma: nem masculino, nem feminino. Ora, a palavra classe é feminina, e pode ser empregada no singular e no plural; a diferença, em comparação a bonito, é a de que naquela não ocorre flexão de gênero. Professor 5 Na 1ª Série do Ensino fundamental, o tema da aula foi “Figuras de Pensamento e Figuras de Palavras”. A professora coloca na lousa a definição de cada figura, acompanhada de exemplos. Em seguida, dá uma lista de frases para os alunos reconhecerem as figuras, o que continua na próxima aula, introduzindo também frases comparativas, para que os alunos construam metáforas. Na 2ª Série, o referido professor coloca na lousa o tema da aula: “Gênero e Sentido”. Para tanto, introduz uma série de substantivos, explicando que o sentido varia de acordo com o gênero. Em seguida propõe os seguintes exercícios: 1- Dê o feminino dos seguintes substantivos: Judeu; herói, barão, alemão, europeu. 2- Os substantivos abaixo são epicenos. Dê o feminino: aranha; canário; baleia. UNAR (ISSN 1982-4920), Araras (SP), v.3, n.2, p.2-14, 2009. SILVA, V.L.MX. O ensino de língua portuguesa nas escolas oficiais. 9 3- Relacione as apalavras ao seu significado: (1) o cabeça ( ) o vigário (2) a cabeça ( ) o chefe (3) o cura ( ) a parte do corpo Comentários É lamentável a forma como o professor ensina as figuras de palavras, pois não o faz a partir de textos. Acredito que, se trabalhasse o filme O carteiro e o poeta, isso seria um bom começo para introduzir os alunos na linguagem figurada, além, evidentemente, de se destacar todo o valor discursivo que há no filme, uma vez estar explícito o poder que a poesia tem de operar mudanças na sociedade. A partir das poesias de Neruda, o protagonista Mário, um humilde pescador, conscientiza-se da opressão e das injustiças sociais que ele e os pescadores da ilha sofrem e mobiliza a população da ilha a lutar e a reivindicar direitos e qualidade de vida. Quanto ao ensino de gênero, o que se observa é a mesma cantilena: ponto na lousa e frases para serem completadas. Como se deve ensinar Se o objetivo do ensino de Língua Portuguesa é o desenvolvimento de potencial crítico, a percepção de múltiplas possibilidades de expressão lingüística, a capacidade de leitura crítica dos diferentes gêneros textuais, a capacidade de leitura das diferentes linguagens, não se deve pensar um ensino calcado em memorização de regras gramaticais, mas um ensino que permita o desenvolvimento de competências e habilidades que possam ser empregadas nas diferentes situações de uso da língua na família, entre amigos, na escola e no mundo de trabalho. Para tanto, três competências devem ser privilegiadas: interativa, textual e gramatical. A partir das diretrizes fixadas nos PCN's, elaborei uma proposta de aula, enfocando as três competências citadas acima. Para o desenvolvimento da competência interativa, sugerimos um diálogo preliminar, em que alunos e professor interajam, com vistas à construção do conhecimento. Trata-se de um momento especial, em que situações apresentadas no texto podem ser levadas para o cotidiano do aluno ou vice-versa. Na competência textual, os questionamentos a serem feitos devem enfocar: “o que o texto diz?”, “Como o texto diz o que diz?” e “Por que o texto diz o que diz?”. Assim, acreditamos efetuar a leitura propriamente dita do texto. Além disso, para todo texto trabalhado há uma proposta de redação, que deverá ser corrigida pelo professor e comentada em sala de aula. Nos PCN’s encontra-se o objetivo do ensino de gramática: “O ensino de gramática não deve ser visto como um fim em si mesmo, mas como mecanismo para a mobilização de recursos úteis à implementação de outras competências, como a interativa e a textual”. Nessa perspectiva, as questões introduzidas privilegiam o uso da língua em situações do texto, a partir das quais o professor poderá extrapolá-las, criando outras condições de uso. UNAR (ISSN 1982-4920), Araras (SP), v.3, n.2, p.2-14, 2009. SILVA, V.L.MX. O ensino de língua portuguesa nas escolas oficiais. 10 É importante salientar que, em nenhum momento, afirmo não ser necessário o ensino de gramática, apenas enfoco que o modo como se deve ensinar é diferente. A arte de ser feliz Houve um tempo em que minha janela se abria sobre uma cidade que parecia ser feita de giz. Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco. Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto. Mas todas as manhãs vinha um pobre com um balde, e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas. Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse. E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz. Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor. Outras vezes encontro nuvens espessas. Avisto crianças que vão para a escola. Pardais que pulam pelo muro. Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais. Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar. Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega. Às vezes, um galo canta. Às vezes, um avião passa. Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino. E eu me sinto completamente feliz. Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim. Cecília Meireles Dialogando com o texto 1- O que é, para a autora, a arte de ser feliz? 2- Mesmo diante de coisas tristes, é possível ser feliz? 3- Você já deparou com alguma coisa do mundo real que o fizesse completamente feliz? 4- Para você, quando uma nuvem carregada pode ser sinal de felicidade? Quando pode ser sinal de tristeza? 5- Converse com seu colega e verifique, pelo menos, duas coisas do mundo que possam trazer alegria e tristeza. 6Compreendendo o texto 1234- O que você entende por “cidade feita de giz”? Na sua opinião, as ações do homem do texto são boas ou ruins? Por quê? O texto fala de várias ações do mundo cotidiano. Quais são elas? Por que crianças indo à escola pode ser motivo de felicidade? UNAR (ISSN 1982-4920), Araras (SP), v.3, n.2, p.2-14, 2009. SILVA, V.L.MX. O ensino de língua portuguesa nas escolas oficiais. 11 5- O que se entende por “pequenas felicidades”? 6- Escreva, agora, o que, para você, poderia ser uma grande felicidade. 7- Na sua opinião, é possível da sua janela encontrar a felicidade descrita pela autora? Se não fosse possível, como isso se daria? 8- Observe o fragmento abaixo e faça o que se pede: A complicada arte de ver Rubem Alves Colunista da Folha de S.Paulo [...] Ver é muito complicado. Isso é estranho porque os olhos, de todos os órgãos dos sentidos, são os de mais fácil compreensão científica. A sua física é idêntica à física óptica de uma máquina fotográfica: o objeto do lado de fora aparece refletido do lado de dentro. Mas existe algo na visão que não pertence à física. William Blake sabia disso e afirmou: “A árvore que o sábio vê não é a mesma árvore que o tolo vê”. Sei disso por experiência própria. Quando vejo os ipês floridos, sinto-me como Moisés diante da sarça ardente: ali está uma epifania do sagrado. Mas uma mulher que vivia perto da minha casa decretou a morte de um ipê que florescia à frente de sua casa porque ele sujava o chão, dava muito trabalho para a sua vassoura. Seus olhos não viam a beleza. Só viam o lixo. Adélia Prado disse: “Deus de vez em quando me tira a poesia. Olho para uma pedra e vejo uma pedra”. Drummond viu uma pedra e não viu uma pedra. A pedra que ele viu virou poema. Há muitas pessoas de visão perfeita que nada veem. “Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. Não basta abrir a janela para ver os campos e os rios”, escreveu Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa. O ato de ver não é coisa natural. Precisa ser aprendido. Nietzsche sabia disso e afirmou que a primeira tarefa da educação é ensinar a ver. O zen-budismo concorda, e toda a sua espiritualidade é uma busca da experiência chamada “satori”, a abertura do “terceiro olho”. Não sei se Cummings se inspirava no zen-budismo, mas o fato é que escreveu: “Agora os ouvidos dos meus ouvidos acordaram e agora os olhos dos meus olhos se abriram”. [...] a) b) c) d) Qual é a relação deste texto com “A arte de ser feliz”? O que, segundo o texto de Rubem Alves, é da visão, mas não pertence à física? Explique a diferença entre a visão do sábio e a visão do tolo. No texto, a vizinha que matou o ipê possui que tipo de visão? Justifique sua resposta com elementos do texto. e) O que significa “Agora os ouvidos dos meus ouvidos acordaram e agora os olhos dos meus olhos se abriram”? Trabalhando os usos da língua 1- O verbo haver presente nos versos 1 e 3 do poema pode ser substituído por outro verbo com o mesmo sentido. Qual é? 2- Imaginemos que esses versos fossem escritos assim: “houve tempos...” e “havia jardins”. Se substituíssemos o verbo haver pelo seu sinônimo equivalente, como seriam escritos esses versos? 3- Em “Minha janela se abria sobre uma cidade que parecia ser feita de giz”, o que está no lugar de que palavra? 4- Se não usássemos a palavra que como escreveríamos esse enunciado? 5- Retire do texto outros exemplos que caracterizam esse uso da palavra que. UNAR (ISSN 1982-4920), Araras (SP), v.3, n.2, p.2-14, 2009. SILVA, V.L.MX. O ensino de língua portuguesa nas escolas oficiais. 12 6- Leia o verso 6 e substitua a palavra e por outra, conservando o sentido do enunciado. 7- No verso “Não era uma rega: era uma espécie de aspersão”, retire os dois pontos e introduza uma palavra, sem alterar o sentido do verso. 8- Retire do texto expressões que indicam alternância de tempo. 9- Em “Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto/ Mas todas as manhãs vinha um pobre com um balde”, por qual palavra podemos trocar o mas? Que significado o mas produz no texto? 10- Em “para que o jardim não morresse” o que significa a expressão “para quê”? Produzindo textos 1- Certa manhã você abriu sua janela e não viu as coisas como elas realmente eram. Você as viu mais bonitas. Conte-nos o que você viu, como as coisas estavam e que sensação elas provocaram em você. 2- Você é o pobre que luta para o jardim não morrer. Conte-nos suas impressões. 3- Você é vizinho da mulher que mandou cortar o ipê florido. Escreva para ela, tentando impedi-la de executar esse ato. Considerações finais A pesquisa revelou-nos que o ensino ministrado concentra-se na gramática normativa. Em nossa proposta, a gramática pode ser entendida como formas disponíveis e adaptáveis às diferentes situações enunciativas. Ressalte-se que, a partir dessa concepção, encontra-se a visão de uma gramática reflexiva, uma vez que o aluno deve observar os recursos expressivos empregados pelo sujeito da enunciação e detectar os efeitos discursivizados no texto. Assim, ao trabalhar com orações, o professor deve conduzir o aluno a perceber que uma relação de oposição pode ser expressa com auxílio de conjunções diferentes, como, por exemplo, as coordenativas (mas, porém, todavia, contudo) e as subordinativas concessivas (embora, ainda que, mesmo que). Se, por um lado, conjunções diferentes estabelecem o mesmo tipo de relação, por outro, os efeitos discursivos são bem diferentes, pois empregando o mas, o sujeito produtor cria uma expectativa no ouvinte; como se constata no exemplo “Sua prova está ótima, mas não conseguiu a aprovação”. Diferentemente, no uso de embora há uma antecipação, conforme se depreende em “Embora sua prova estivesse ótima, não conseguiu a aprovação”. Os estudos da enunciação são fundamentais para que se perceba que uma mesma notícia, publicada em jornais diferentes, poderá não ser a mesma. Além disso, são valiosos para que se entenda que o sujeito produtor usa de diferentes estratégias para conseguir o efeito desejado, podendo explicitar-se, no enunciado, um “eu”, marca de subjetividade, ou mascarar-se, optando por um “ele”. Entretanto, mesmo no emprego da terceira pessoa, ou não-pessoa, conforme Benveniste (1996), é possível a detecção de marcas de subjetividade, assinaladas na escolha lexical, na posição da câmera fotográfica, nos mecanismos de delegação de vozes. Assim, no relato de um conflito entre sem-terra e polícia, é possível perceber de que lado o jornalista está, pois ele pode ceder mais voz para a polícia e menos para os sem-terra; poderá, ainda, desqualificar um ou outro lado dos envolvidos, dependendo de sua formação ideológica e discursiva. UNAR (ISSN 1982-4920), Araras (SP), v.3, n.2, p.2-14, 2009. SILVA, V.L.MX. O ensino de língua portuguesa nas escolas oficiais. 13 Além dos pontos assinalados acima, o que se pretende nos Parâmetros Curriculares é que se tome o texto como unidade de ensino-aprendizagem; o texto como unidade de comunicação, uma vez que não falamos por palavras ou frases, mas por meio de textos. Entretanto, para o seu estudo efetivo é preciso que se tenha uma teoria que embase e, para nós, ainda que de forma rudimentar, o professor deve ter conhecimento da teoria do discurso. É importante assinalar o que se deve entender por texto e deixar de vê-lo e concebê-lo como se fazia (ou ainda se faz) nas cartilhas, como uma sequência de frases escritas de acordo com os padrões da norma culta. É preciso entender texto como algo concreto, como manifestação de um conteúdo. Nesse sentido, o texto é um todo organizado de sentido, constituído por desde uma única palavra, “Pare”, por exemplo, até uma sequência que envolve inúmeras páginas. Entendendo texto como manifestação, deixamos de lado a idéia de que texto só pode ser verbal, escrito ou falado, e ampliamos a sua noção para a dança, a arquitetura, a música, a moda, a pintura, a publicidade, gestos; enfim, qualquer manifestação de conteúdo. Para nós, os conteúdos orientadores dos PCN’s para o ensino de Língua Portuguesa são excelentes, uma vez que visam a um aluno questionador, reflexivo, que fale e entenda as diferentes linguagens, porém apresentam-se, ainda, distantes de uma realidade de aplicação concreta, pois entendemos que os professores, em especial os que cursaram Licenciatura, não possuem embasamento teórico para a concretização das propostas. Nossa opinião é a de que primeiro os professores, sem exceção, deveriam ser conduzidos aos estudos das novas teorias e abordagens linguísticas e textuais, para que possam introduzir o aluno nos diferentes gêneros textuais: desde um bilhete, uma receita de cozinha até o texto literário, que deve ser privilegiado no ensino, pois entendemos ser nesse gênero que a Língua assume suas realizações mais profundas, materializando os valores estéticos, lexicais, sintáticos, semânticos e fônicos. ABSTRACT For years, I’ve worked with continuing education programs offered to teachers from official schools. In these meetings, more specifically in conversations about procedures of teaching, I’ve noticed a mismatch between the speech of teachers and the reality of learning. This finding comes from vestibular tests, where there is a bad use of the written language, from a college of Catanduva and from data published in the media. Currently, I minister classes of Practice of Portuguese Language Teaching, which has allowed me a more tangible access to what really is being taught in public schools, through the report of the Supervised Observation written by graduation students. Therefore, from notes taken by these students, I make a survey of what is taught in schools of Catanduva. Altogether, the research, based on the assumptions of Applied Linguistics in Language Teaching, has revealed that, basically, the lessons are of normative grammar, decontextualized, and that there isn’t work with the three skills: interactive, linguistic and textual. From that, I propose education based in texts, from which one can see language in use in different communicative situations. KEYWORDS: Applied Linguistics. Linguistic, textual and discursive skills. UNAR (ISSN 1982-4920), Araras (SP), v.3, n.2, p.2-14, 2009. SILVA, V.L.MX. O ensino de língua portuguesa nas escolas oficiais. 14 REFERÊNCIAS BAKHTIN, M. A estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992. BENVENISTE, E. Problemas de linguística geral. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: introdução aos parâmetros curriculares nacionais. Brasília: MEC/SEE, 1997. FIORIN, J.L. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 1996. LAURIA, M.P.P. Parâmetros curriculares nacionais + ensino médio: Orientações educacionais complementares aos PCN’s. Brasília, MEC/ SEMTEC, 2002. UNAR (ISSN 1982-4920), Araras (SP), v.3, n.2, p.2-14, 2009.