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FILOSOFIA PARA A VIDA E OUTRAS SITUAÇÕES PERIGOSAS
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JULES EVANS
FILOSOFIA PARA A VIDA E OUTRAS SITUAÇÕES PERIGOSAS
FILOSOFIA
PARA A VIDA E OUTRAS
SITUAÇÕES PERIGOSAS
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JULES EVANS
FILOSOFIA PARA A VIDA E OUTRAS SITUAÇÕES PERIGOSAS
JULES EVANS
FILOSOFIA
PARA A VIDA E OUTRAS
SITUAÇÕES PERIGOSAS
Tradução de MIGUEL COUTINHO
BERTRAND EDITORA
Lisboa 2013
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JULES EVANS
Título original: Philosophy for life and other dangerous situations
Autor: Jules Evans
© 2012, Jules Evans
First published in 2012 by Vermillion, an imprint of Ebury Publishing.
A Random House Group Company.
Todos os direitos para a publicação desta obra em língua portuguesa,
exceto Brasil, reservados por Bertrand Editora, Lda.
Rua Prof. Jorge da Silva Horta, 1
1500-499 Lisboa
Telefone: 217 626 000
Fax: 217 626 150
[email protected]
www.bertrandeditora.pt
Design da capa: Vera Braga
Imagem da capa: Shutterstock Images
Revisão: Obras em Curso, Lda.
Esta edição segue a grafia do Novo Acordo Ortográfico
da Língua Portuguesa
Pré-impressão: Banian Design
Execução gráfica: Bloco Gráfico, Lda.
Unidade Industrial da Maia
1ª Edição: fevereiro de 2013
Depósito Legal: 352670/12
ISBN: 978-972-25-2548-0
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FILOSOFIA PARA A VIDA E OUTRAS SITUAÇÕES PERIGOSAS
Í NDI CE
Prefácio: Bem-vindos à escola de Atenas ..................................... 11
1. Chamada da manhã: Sócrates e a arte
da filosofia do quotidiano ........................................................................ 15
SESSÃO DA MANHÃ: OS GUERREIROS DA VIRTUDE ...................
39
2. Epicteto e a arte de manter o controlo .............................................. 41
3. Musónio Rufo e a arte do trabalho de campo ....................
55
4. Séneca e a arte de gerir as expectativas ............................................ 75
ALMOÇO: BUFETE FILOSÓFICO......................................
95
5. Lição da hora do almoço: Epicuro
e a arte de saborear o momento ............................................................. 97
SESSÃO DO INÍCIO DA TARDE: MÍSTICOS E CÉTICOS.................
119
6. Heraclito e a arte da contemplação cósmica .................................. 121
7. Pitágoras e a arte da memorização
e do encantamento ..................................................................................... 138
8. Os céticos e a arte de cultivar a dúvida ............................................. 152
SESSÃO DO FINAL DA TARDE: POLÍTICA .........................................
171
9. Diógenes e a arte da anarquia .............................................................
10. Platão e a arte da justiça .....................................................................
11. Plutarco e a arte do heroísmo ..........................................................
12. Aristóteles e a arte do florescimento ..............................................
173
194
212
227
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Cerimónia de formatura: Sócrates
e a arte de morrer ..................................................................................... 248
EXTRACURRICULAR: APÊNDICES........................................................
263
1. Apêndice um: Será Sócrates demasiado
otimista quanto à razão humana? ........................................................... 265
2. Apêndice dois: A tradição socrática
e as tradições filosóficas não ocidentais ............................................... 269
3. Apêndice três: Sócrates e Dionísio ................................................... 274
Notas .............................................................................................................. 279
Leituras recomendadas ......................................................................... 297
Agradecimentos ........................................................................................ 313
FILOSOFIA PARA A VIDA E OUTRAS SITUAÇÕES PERIGOSAS
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«Quando chega o final do dia, volto a casa e dirijo-me ao escritório.
À entrada, dispo as roupas enlameadas e transpiradas do dia e visto
as roupas da corte. E é com estas vestimentas mais solenes que entro
nas “cortes” dos antigos, que me recebem. Então, saboreio o alimento
que é só meu e para o qual nasci. Nesses lugares, atrevo-me a dirigir-lhes a palavra para lhes perguntar quais os motivos dos seus atos e
eles, com a sua humanidade, respondem-me. E durante quatro horas
esqueço-me do mundo e das suas humilhações, não receio a pobreza,
não temo a morte (...)»
Nicolau Maquiavel1
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JULES EVANS
A Escola de Atenas, de Rafael
FILOSOFIA PARA A VIDA E OUTRAS SITUAÇÕES PERIGOSAS
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PREFÁCIO
BEM-VINDOS À ESCOLA DE ATENAS
O Papa Júlio II era um grande entusiasta das obras de beneficiação dos edifícios papais. Não contente com a contratação de Bramante para conceber a cúpula da Basílica de São Pedro ou de Miguel
Ângelo para pintar o teto da Capela Sistina, Sua Santidade contratou
também um jovem relativamente desconhecido chamado Rafael,
de 27 anos, natural de Urbino, para pintar uma série de frescos de
grandes dimensões nas paredes da sua biblioteca privada, no Palácio
Apostólico. Estes frescos viriam a representar as principais áreas do
saber presentes na biblioteca do Papa, nomeadamente a teologia, o
direito, a poesia e a filosofia. De entre estes, o fresco atualmente mais
admirado é o que veio a chamar-se A Escola de Atenas. Neste painel,
Rafael apresenta um grupo de filósofos da Antiguidade — sobretudo
filósofos gregos, mas também romanos, persas e do Médio Oriente
— imersos em conversas animadas. Os estudiosos não têm a certeza
absoluta de quem são os filósofos apresentados no painel; porém,
sabem que as duas figuras que conversam no centro são Platão e Aristóteles, pois transportam os seus livros. Têm quase a certeza de que o
filósofo que se vê escrevendo equações num plano mais aproximado,
à esquerda, é Pitágoras e que o filósofo melancólico que surge sentado
sozinho é Heraclito. A figura algo desleixada que se vê esparramada
sobre os degraus de mármore é, provavelmente, Diógenes, o Cínico.
Sócrates encontra-se num plano mais afastado, interrogando um belo
jovem, e o filósofo sorridente, com uma coroa de louros junto ao
canto esquerdo, talvez seja Epicuro. Mas o que é evidente é a grande heterogeneidade deste grupo de filósofos, cujos elementos que o
constituem apresentam ideias diversas e radicais, muitas das quais
ultrapassavam largamente os limites do dogma católico. Epicuro era
um materialista, Platão e Pitágoras acreditavam na reencarnação e
Heraclito defendia a existência de uma inteligência cósmica feita de
fogo. Não obstante, ei-los saindo juntos da parede da biblioteca do
Palácio Pontifício!
12
JULES EVANS
A Escola de Atenas é uma das minhas pinturas favoritas. Admiro
bastante o equilíbrio entre a ordem e a anarquia e as diferenças entre
as personagens apresentadas, mas também a unidade ideológica subjacente a este painel. Adoro a forma como Platão e Aristóteles surgem
imersos no seu debate, no centro do quadro, com as suas túnicas coloridas e largas, um apontando para o céu e o outro para o chão. Também adoro o ambiente urbano, o facto de não se perceber claramente
se as personagens se encontram dentro de um templo, num mercado
ou sob uma arcada de alguma cidade ideal, onde toda a gente pode
participar nestes diálogos e o quotidiano se encontra ligado ao divino. Quando olho para este fresco, pergunto-me como seria participar
naquelas conversas; como seria estudar na Escola de Atenas, ouvir os
grandes mestres e atrevermo-nos a dirigir-lhes a palavra. O que terão
eles a dizer ao nosso tempo?
Este livro é a minha escola de sonho, o meu currículo ideal, a
minha tentativa de mostrar como seria conseguir ingressar na Escola de Atenas. Para isso, reuni 12 dos mais proeminentes professores
da Antiguidade para nos ensinarem coisas que são amiúde esquecidas pela educação moderna, nomeadamente como controlarmos as
nossas emoções, como nos relacionarmos com a sociedade em que
estamos inseridos, enfim, como vivermos. Estes mestres ensinam-nos
a arte da autoajuda (Cícero afirmou que a filosofia nos ensina a ser
«doutores de nós mesmos»); porém, a autoajuda a que se referem é a
melhor que se pode conceber; aquela que não se foca estritamente no
indivíduo, mas, em vez disso, nos abre a mente e nos liga à sociedade, à ciência, à cultura e ao cosmos. O «curso» não é prescritivo, pois
os catedráticos não estão de acordo uns com os outros (na verdade,
alguns nem escondem o quanto os demais lhes desagradam) e o livro
não apresenta apenas uma filosofia, mas várias. No entanto, existe, tal
como no fresco de Rafael, uma certa unidade para lá da diversidade,
pois todos os mestres partilham do mesmo otimismo no que se refere
à racionalidade humana e à capacidade da filosofia para melhorar as
nossas vidas.
Durante a «chamada da manhã», Sócrates — o reitor da universidade — explicar-nos-á porque é que a filosofia nos pode ajudar e
pode falar ao nosso tempo. Seguir-se-ão as aulas diurnas, divididas em
quatro blocos: no bloco da manhã, os estoicos ensinar-nos-ão a sermos Guerreiros Virtuosos (este bloco tem esta denominação porque
muitos dos estoicos modernos que iremos conhecer são soldados); no
da hora do almoço, Epicuro ensinar-nos-á a arte de desfrutarmos do
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momento; no do início da tarde, na lição sobre a mística e o ceticismo,
analisaremos de que forma as nossas filosofias pessoais estão relacionadas com o que pensamos sobre o Universo e sobre a existência ou
a inexistência de Deus; no último bloco, subordinado ao tema da política, analisaremos a nossa relação com a sociedade e a influência da
filosofia antiga na política moderna antes de Sócrates dirigir a cerimónia da graduação com uma lição sobre a arte da partida. Caso isto vos
deixe com vontade de aprofundar os vossos conhecimentos, a minha
página na Internet propõe-vos diversas atividades extracurriculares,
fornecendo também entrevistas em vídeo e em texto com algumas
das personalidades presentes no livro, bem como um «mapa filosófico global», onde poderão encontrar tertúlias filosóficas perto de vós
(caso formem a vossa própria tertúlia, agradeço que me informem de
modo a eu poder acrescentá-la ao mapa). É claro que vos apresento
também obras maravilhosas escritas pelos próprios filósofos, a maior
parte das quais se encontram disponíveis no site.
Pretendo recriar a abertura e o ruído que se nota nesta obra de
Rafael, a mesma sensação de um debate de rua animado em que todos
podem participar. Atualmente, muitas são as pessoas que vão redescobrindo os grandes pensadores da Antiguidade e recorrendo às suas
filosofias para viverem vidas melhores, mais ricas e mais cheias de
significado. Voltamos a juntar-nos ao debate vibrante e ruidoso que
Rafael ilustrou de forma tão bela. «Atrevemo-nos» a falar com os filósofos da Antiguidade e eles, com a sua benevolência, respondem-nos.
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JULES EVANS
FILOSOFIA PARA A VIDA E OUTRAS SITUAÇÕES PERIGOSAS
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{1}
CHAMADA DA MANHÃ
SÓCRATES E A ARTE
DA FILOSOFIA DO QUOTIDIANO
— E... Huhum... Como se sente hoje? Sente-se... bem?
O embaraço era insuportável.
Isto passou-se em 1996, durante o meu primeiro ano na universidade. Os estudos corriam-me bem e os professores pareciam agradados como as minhas dissertações. Porém, as minhas emoções tinham subitamente mergulhado no caos. Sem qualquer sinal de alarme,
vi-me, de repente, tomado de ataques de pânico, alterações de humor,
depressão e ansiedade. Eu andava desfeito e não fazia ideia do motivo.
— Estou bem, professor, obrigado.
— Ainda bem.
Fora pedido ao diretor do meu departamento que tentasse saber o
que se passava comigo, porque, na minha incontinência emocional, acabei
por ultrapassar o meu limite de saldo a descoberto. O banco contactara
a universidade e o conselho diretivo tinha alertado o diretor do meu departamento, que era um perito respeitado em poesia anglo-saxónica, mas
não alguém que se sentisse propriamente à vontade em conversas francas.
— Não anda a meter-se no jogo, pois não? Nem em drogas?
Não era o caso. Contudo, tinha experimentado drogas quase desregradamente durante os meus últimos anos no ensino secundário.
Perguntei a mim mesmo se não teria sido isso que me tinha desnorteado. Eu vinha de uma família que me adorava e tinha sido suficientemente feliz até não muito tempo antes; no entanto, vira alguns amigos
meus «descarrilarem», tendo alguns deles acabado em hospitais psiquiátricos, e agora era a minha própria saúde mental que estava feita
num caco. Teriam as drogas danificado os nossos circuitos neurológicos, condenando-nos, então, a distúrbios emocionais para toda a vida?
Como haveria eu de saber?
— Não, agora já estou bem, professor, a sério. Desculpe-me pelo... o...
— Muito bem.
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JULES EVANS
Fez-se uma pausa.
— Estou a gostar muito de ler Sir Gawain e o Cavaleiro Verde —
arrisquei.
— É uma obra excelente, não é?
E foi com alívio que ambos fugimos da gruta tenebrosa das emoções e retornamos ao campo mais arejado dos assuntos impessoais e
académicos.
Tive uma educação primorosa e sinto-me muito grato por isso.
A minha licenciatura em literatura inglesa permitiu-me estudar obras
extraordinárias como a supracitada e apreciar a escrita literária. Sei que
tive muita sorte por ter tido essa oportunidade. Porém, esta licenciatura não me ensinou a compreender ou dominar as minhas emoções
nem a refletir sobre a finalidade da vida. Talvez isto fosse pedir demasiado aos meus exaustos professores (afinal, não eram terapeutas),
mas creio que as escolas e as universidades, bem como os cursos para
adultos, deveriam, de alguma forma, preparar as pessoas não só para as
suas carreiras, mas também para as situações — favoráveis ou adversas — da vida. Foi isto que os professores representados em A Escola
de Atenas proporcionaram, outrora, aos seus alunos: ensinaram-nos a
transformar as suas emoções, a lidar com a adversidade e a viver a vida
o melhor possível. Quem me dera ter podido desfrutar destes ensinamentos naqueles anos tão difíceis para mim. Em vez disso, a universidade pareceu-me mais uma fábrica: picávamos o ponto à entrada,
entregávamos as dissertações, picávamos o ponto à saída e, depois,
deixavam-nos entregues a nós próprios, como se já fôssemos adultos
feitos e plenamente responsáveis. A instituição parecia revelar pouca
preocupação com o nosso bem-estar ou com o desenvolvimento, no
sentido mais lato, do nosso carácter1. Também não se vislumbrava,
entre nós, grande esperança em que aquilo que andávamos a estudar
viesse realmente a ter uma aplicação prática na nossa vida e muito
menos em que esses conhecimentos nos permitissem transformar a
sociedade. A licenciatura era apenas a preparação para o mercado de
trabalho, essa grande fábrica em que nos preparávamos para entrar e
cujas regras não éramos capazes de mudar.
Os meus estudos académicos correram bem durante os três anos
letivos seguintes; porém, a minha vida emocional foi piorando cada
vez mais. As crises de pânico assolaram-me como terramotos, estilhaçando a capacidade que eu tinha de me compreender ou controlar.
Sentia que não podia falar do que se passava comigo, por isso fui-me
FILOSOFIA PARA A VIDA E OUTRAS SITUAÇÕES PERIGOSAS
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isolando cada vez mais na minha «concha», o que me levou a um ciclo
vicioso, pois o meu comportamento instável afastou os meus amigos
e atraiu críticas, o que reforçou a minha convicção de que o mundo
era um lugar hostil e injusto. Não fazia ideia do que se estava a passar
comigo e nada do que eu estudasse parecia ajudar-me muito neste
capítulo. Como poderiam a literatura e a filosofia ajudar-me? O meu
cérebro era uma máquina feita de nervos e químicos que eu tinha
avariado e já não havia nada que eu pudesse fazer para a consertar.
Após a universidade, eu teria de ligar, de alguma forma, aquela máquina avariada à grande maquinaria de aço do mercado e sobreviver.
Formei-me em 1999, com boas notas, e, para celebrar, sofri um esgotamento nervoso.
Em 2001, após cinco anos de pânico e confusão, foram-me diagnosticados stresse pós-traumático, fobia social e depressão. Através
das minhas próprias pesquisas, vim a descobrir que, ao que parecia,
estes distúrbios do foro emocional podiam ser tratados com recurso a uma coisa chamada Terapia Comportamental e Cognitiva. Neste
âmbito, descobri um grupo de apoio a pessoas que sofriam de fobia
social que recorria à TCC e se reunia semanalmente numa igreja perto
de mim, em Londres. Não dispúnhamos de um terapeuta especializado nessa área, mas seguíamos um curso de TCC que um elemento do
grupo tinha descarregado da Internet2. Íamos seguindo as instruções
que cada um tinha nas suas fotocópias, praticávamos os exercícios
e encorajávamo-nos mutuamente a melhorar. Aquilo até funcionou
para alguns de nós! No meu caso, deixei de ter ataques de pânico passado cerca de um mês e comecei a ganhar mais confiança na minha
capacidade para lidar com as minhas emoções violentas. Tem sido
uma longa viagem de volta à saúde. Isto não é como uma pessoa
atravessar uma fronteira e ficar logo boa! Na verdade, ainda estou a
melhorar.
Filosofia antiga, psicologia moderna
Quando me deparei com a TCC pela primeira vez, os conceitos e
as técnicas pareceram-me familiares. De facto, recordaram-me o pouco que eu conhecia da filosofia grega. Assim, em 2007, depois de
me tornar jornalista independente, comecei a investigar as origens da
TCC. Para isso, viajei até Nova Iorque com o objetivo de entrevistar
Albert Ellis, que descobrira a terapia cognitiva na década de 1950. Fui
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JULES EVANS
eu quem o entrevistou pela última vez, antes do seu falecimento, e escrevi o obituário que foi publicado no The Times. Também entrevistei
Aaron Beck, o outro fundador da TCC, bem como outros psicólogos
de renome que adotaram os métodos da terapia cognitiva ao longo
dos cinco anos seguintes3. Através destas entrevistas, vim a constatar
a influência direta da filosofia grega antiga na terapia cognitiva. Albert
Ellis disse-me, por exemplo, que uma frase do filósofo estoico Epicteto o marcara particularmente: «Não são as coisas que perturbam os
homens, mas a sua opinião sobre elas.» Esta frase inspirara em Ellis
o modelo ABC* das emoções, que é o elemento central da TCC: vivemos um evento (A), interpretamo-lo (B) e, por fim, sentimos uma
resposta emocional diretamente relacionada com a nossa interpretação (C) do evento catalisador. Na esteira dos estoicos, Ellis sugeriu
que podemos mudar as nossas emoções alterando as nossas opiniões
sobre os eventos. Da mesma forma, Aaron Beck disse-me que fora
inspirado pela leitura da República, de Platão e que também tinha sido
«influenciado pelos filósofos estoicos, que diziam que o que realmente
afetava as pessoas não era tanto os próprios acontecimentos, mas o
seu significado. Quando isto foi explicado por Ellis, tudo passou a
fazer sentido». Estes dois pioneiros — Ellis e Beck — pegaram nas
teorias e nas técnicas da filosofia grega clássica e colocaram-nas no
coração da psicoterapia ocidental.
De acordo com a TCC — e a filosofia socrática que a inspirou —, o
que me causou fobia social e depressão não foi a repressão dos instintos libidinosos, como poderia argumentar a psicanálise, nem eventuais
disfunções neurológicas que só poderiam ser corrigidas com recurso
a medicamentos, como argumentaria a psiquiatria. Foram as minhas
crenças que me causaram aqueles problemas. Eu tinha certas crenças
tóxicas e pensamentos habituais que me estavam a envenenar, como
por exemplo: «causei danos permanentes a mim próprio» ou «toda a
gente tem de me aprovar, caso contrário será a catástrofe!». Estas crenças tóxicas eram o epicentro do meu sofrimento emocional. Ora, as
minhas emoções seguiram as minhas crenças. O que fez com que me
sentisse extremamente ansioso em situações de convívio e deprimido
quando essas situações não corriam bem. As crenças manifestavam-se
*
Na sigla ABC, o «A» é a inicial da expressão «activating event» (evento catalisador);
o «B» é a inicial de «Belief» (crença — aquilo que acreditamos ser a verdade sobre o
evento catalisador); o «C» é a inicial de «Consequent emotion» (emoção consequente).
(N. do T.)
FILOSOFIA PARA A VIDA E OUTRAS SITUAÇÕES PERIGOSAS
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ao nível do subconsciente, pelo que não eram examinadas, mas acabei por conseguir examiná-las, trazendo-as à luz da razão, e por ser
capaz de perceber se faziam sentido. A partir de então, passei a poder
questionar-me sobre a minha necessidade imperiosa de agradar a toda
a gente. Seria isso um desejo realista? Comecei, então, a pensar que
talvez pudesse começar a gostar de mim próprio, mesmo que outros
não gostassem. Tudo isto parece bastante evidente agora, mas esta
autoanálise básica e o apoio do meu grupo de TCC permitiram-me
ir passando lentamente das minhas crenças originais — irracionais e
tóxicas — a crenças mais sensatas e racionais. E na linha do modelo
ABC de Ellis, as minhas emoções seguiram as minhas novas crenças.
Gradualmente, fui-me sentindo cada vez menos ansioso em situações
sociais e menos deprimido, começando a sentir-me cada vez mais
confiante, alegre e senhor da minha vida.
Sócrates e a filosofia do quotidiano
Aaron Beck chama a esta técnica de análise das nossas crenças
subconscientes o «método socrático», pois foi diretamente inspirada
por Sócrates, a maior figura da filosofia greco-romana clássica e reitor
da nossa «escola». Já havia quem se autodenominasse filósofo desde
pelo menos um século antes deste filósofo. Foi o caso, por exemplo,
de Tales de Mileto, Pitágoras e Heraclito. Contudo, destes outros filósofos, alguns concentravam-se na natureza material do Universo,
outros acabaram por desenvolver filosofias de vida assaz elitistas e
antidemocráticas. Mas Sócrates, que viveu entre os anos de 469 e 399
a.C., foi o primeiro filósofo a insistir em que a filosofia deveria abordar as preocupações quotidianas das pessoas comuns. Ele próprio era
de origem humilde — era filho de um pedreiro e de uma parteira, e o destino não o contemplou com riquezas, relações políticas ou a beleza física.
Porém, encantou completamente a sociedade do seu tempo, numa época
em que não faltavam personalidades brilhantes. Nunca escreveu qualquer
obra e não tinha uma filosofia, no sentido de um corpus de ideias coerente
que tivesse transmitido aos seus seguidores. Tal como sucedeu com Jesus
Cristo, as informações de que dispomos sobre ele chegaram-nos através dos relatos de outros, nomeadamente os dos seus discípulos Platão
e Xenofonte. Quando o Oráculo de Delfos o considerou a pessoa mais
sábia da Grécia, Sócrates sugeriu que tal se deveria apenas ao facto de
ele se ter apercebido do pouco que sabia. Não obstante, também estava
20
JULES EVANS
consciente do pouco que os demais sabiam, e o que tentou transmitir
aos seus conterrâneos atenienses — aquilo que considerou ser a sua
missão divina ensinar — foi o hábito de uma pessoa se questionar a
si própria. Disse considerar «um bem da mais elevada ordem» o facto
de se examinar a si mesmo e aos outros e de «passar os dias a discutir
este bem»4. Segundo Sócrates, em geral, as pessoas atravessam a vida
como sonâmbulas, nunca perguntando a si mesmas o que estão a fazer, nem por que motivo o fazem. Absorvem os valores e as crenças
dos seus antepassados — ou a sua cultura — e aceitam-nos sem os
questionarem. O problema é que, se absorverem crenças nocivas, ficarão doentes.
Sócrates insistiu na existência de uma forte relação entre a filosofia
de cada um (a forma como interpretamos o mundo; aquilo que acreditamos ser importante na vida) e a sua saúde física e mental. Portanto,
crenças diferentes levam a estados emocionais diversos — e ideologias
políticas diferentes também se manifestam sob formas diferentes de
desequilíbrios emocionais. Por exemplo, eu atribuía demasiado valor à
questão de os outros me aprovarem ou não (algo que Platão diz ser a
doença típica da democracia liberal) e esta filosofia levou-me à fobia
social. Através da TCC — e da filosofia clássica —, consegui trazer
as minhas crenças subconscientes à luz da consciência, examinei-as e
constatei que não faziam sentido. Consequentemente, mudei as minhas crenças e isso levou à melhoria da minha saúde física e emocional. De certa forma, eu colhia inconscientemente os meus valores da
sociedade em que me inseria. Porém, não podia culpar outras pessoas
ou a minha cultura por isto, pois todos os dias escolhia aceitar esses
princípios. Sócrates disse que é nossa responsabilidade «cuidarmos
das nossas almas», e é isto que a filosofia nos ensina. Trata-se da arte
da psicoterapia, que vem do vocábulo grego que significa «cuidar da
alma». Cabe-nos examinar as nossas almas e destrinçar os valores e
as crenças que são razoáveis dos que são prejudiciais. Neste sentido,
a filosofia é uma forma de medicina que podemos aplicar a nós próprios5.
Medicina para a alma
Marco Túlio Cícero, o estadista e filósofo romano do século I a.C.
escreveu: «Garanto-vos que existe uma arte médica para a alma. É a
filosofia, cuja ajuda não precisamos de buscar fora de nós mesmos,
FILOSOFIA PARA A VIDA E OUTRAS SITUAÇÕES PERIGOSAS
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ao contrário do que sucede com os males do corpo. Temos de nos
esforçar, com todos os nossos recursos e a nossa força, por sermos
capazes de nos curarmos a nós mesmos6.»Foi isto que Sócrates tentou
ensinar aos seus concidadãos, através da sua filosofia do quotidiano.
Encetava conversas com quem ia encontrando nas suas caminhadas
pela cidade (Atenas tinha uma reduzida densidade populacional, pelo
que a maior parte das pessoas se conheciam umas às outras) para descobrir em que é que cada pessoa acreditava, o que valorizava, o que
buscava na vida. Quando o levaram a julgamento por blasfémia, disse
aos seus conterrâneos atenienses: «A única coisa que faço ao caminhar
pela cidade é persuadir os novos e os velhos de entre vós a preocuparem-se mais com atingirem o melhor estado de alma possível do que
com o corpo ou a riqueza»7. De uma forma gentil, bem-humorada e
autocrítica, levava as pessoas a examinarem as suas filosofias de vida
e a trazê-las à luz da razão. As conversas com Sócrates constituíam
experiências quotidianas das mais comuns, porém mudavam completamente aqueles com quem o filósofo falava. Depois de falarem com
ele, as pessoas já não eram as mesmas. Numa palavra, «acordavam».
A TCC tenta recriar este «método socrático» e ensinar-nos a arte de nos
questionarmos. No decurso de uma sessão de TCC, a pessoa não se
limita a deitar-se num divã e debitar um monólogo sobre a sua infância.
Em vez disso, senta-se e dialoga com o terapeuta, que tenta ajudá-la a
descobrir as suas crenças subconscientes, a ver como estas moldam as
emoções do seu interlocutor, questionando-as em seguida para ajudar
o paciente a perceber se fazem sentido. A pessoa aprende a ser Sócrates consigo própria. Assim, quando uma emoção negativa a atinge,
pergunta a si mesma se está a reagir sabiamente àquela determinada
situação; se a sua reação é razoável; se poderia reagir de uma forma
mais inteligente; e esta capacidade socrática permanece consigo para
o resto da vida.
A mensagem otimista que se colhe do coração da filosofia socrática é que temos o poder de nos curarmos a nós próprios. Podemos
examinar as nossas crenças e mudá-las, e isto levará a que as nossas
emoções também se alterem. Temos este poder dentro de nós! Não
precisamos de nos ajoelhar perante padres, psicanalistas ou farmacêuticos para nos redimirmos! Michel de Montaigne, o grande ensaísta
do Renascimento foi quem melhor o disse, pois, segundo ele, «Sócrates prestou um grande serviço à natureza humana ao mostrar-lhe
o quanto podia fazer por si mesma. Somos todos mais ricos do que
pensamos, mas somos ensinados a pedir e a mendigar... [Porém] não
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JULES EVANS
precisamos de muitas doutrinas para vivermos bem, e Sócrates ensina-nos que este poder está em nós, como o descobrir e como o usar8.»
Montaigne tem razão: somos todos mais ricos do que pensamos! Contudo,
esquecemo-nos do poder que temos e mendigamo-lo fora de nós
mesmos.
Esperanças vãs?
Será isto sobrevalorizar a razão humana? Será que este poder
exige demasiado de nós? Alguns psicólogos e neurologistas modernos acrescentariam reticências ao otimismo de Sócrates e talvez o
considerassem um simples e pretensioso método de autoajuda. Em
primeiro lugar, perguntariam se é possível conhecermo-nos. Também
salientariam as muitas circunstâncias em que as nossas decisões parecem subconscientes e automatizadas; determinadas pelos nossos genes,
pela química neurológica, pelos nossos preconceitos cognitivos ou pela
situação em que nos encontramos. Assinalariam os limites da racionalidade humana e a fragilidade da nossa capacidade para questionarmos
as nossas reações emocionais. Alguns poriam em causa a noção de que
os humanos têm a capacidade de mudar os seus modos de pensar e de
agir habituais e diriam que estamos condenados a cair nos mesmos erros constantemente9. Na verdade, alguns cientistas questionariam até as
noções do livre-arbítrio e da consciência, que, segundo eles, são superstições místicas. Para estes cientistas, somos apenas seres materiais num
universo material e, tal como sucede com tudo o mais neste universo,
estamos sujeitos às leis da física. Segundo esta perspetiva, o mais provável é que quem nascer com uma forte predisposição para a depressão,
a fobia social ou qualquer outro tipo de problema emocional, venha,
infelizmente, a padecer desses problemas por toda a vida. Vistas as coisas por este prisma, a única esperança destas pessoas para ultrapassarem
este tipo de problemas bioquímicos assenta no recurso a químicos que
lhes devolvam o equilíbrio emocional. Trata-se de uma solução material
para um problema material. A consciência e a razão são totalmente excluídas desta equação.
Contudo, vão surgindo cada vez mais provas de que Sócrates tinha razão. Em primeiro lugar, existem provas — fornecidas pelas ciências da área da neurologia — que mostram que quando alteramos
a nossa opinião sobre determinada circunstância, as nossas emoções
relacionadas com essa situação também se alteram. Os cientistas da
FILOSOFIA PARA A VIDA E OUTRAS SITUAÇÕES PERIGOSAS
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área das ciências neurológicas chamam a este processo «reapreciação cognitiva» e atribuem a sua descoberta à filosofia grega clássica10.
A sua pesquisa sugere que temos algum controlo sobre a forma como
interpretamos o mundo, e isto dá-nos a capacidade de modularmos as
nossas reações emocionais.
Em segundo lugar, a TCC tem revelado, em diversos ensaios clínicos controlados e aleatórios, que as pessoas podem questionar e ultrapassar até perturbações emocionais profundas. Os investigadores
descobriram que um curso de TCC de 16 semanas ajuda 75 por cento
dos pacientes a recuperarem da fobia social, 65 por cento da PSPT*
e até 80 por cento do pânico (embora, no caso da POC**, a taxa de
recuperação se situe abaixo dos 50 por cento)11. Já no caso das depressões ligeiras ou moderadas, a TCC ajuda à recuperação de cerca de
60 por cento dos pacientes, o que equivale sensivelmente à percentagem
alcançada por um tratamento à base de antidepressivos, mas com a vantagem de apresentar uma taxa de recaídas muito inferior à dos medicamentos12. Estas provas sugerem que podemos aprender a ultrapassar formas de pensar e de sentir profundamente enraizadas em nós.
Daniel Kahneman, psicólogo galardoado com um prémio Nobel e
normalmente pessimista no que se refere à nossa capacidade de ultrapassarmos os nossos preconceitos cognitivos, mostra-se otimista
nesta questão. Certa vez, disse-me: «A TCC tem revelado claramente
que as nossas reações emocionais podem ser reaprendidas. Estamos
constantemente a adaptar-nos e a aprender.»13
A aprendizagem de novos hábitos
Os neurocientistas têm um termo para designar a notável capacidade de adaptação do cérebro humano: «plasticidade». Os gregos e
romanos da Antiguidade foram os primeiros campeões da plasticidade. No dizer do filósofo estoico Epicteto, «não há nada mais maleável
do que a psique humana»14. Compreenderam, então, o que nós só
agora começamos a perceber: quanto da parte moral do nosso carácter é constituído por hábitos manejáveis. Na verdade, a palavra «ética»
vem do grego ethos, que significa «hábito». Alguns psicólogos contemporâneos, como Daniel Kahneman, sugerem que os nossos cérebros
*
Perturbação de Stresse Pós-traumático. (N. do T.)
Perturbação Obsessivo-Compulsiva. (N. do T.)
**
24
JULES EVANS
contêm uma espécie de «processador dual», com um sistema de pensamento essencialmente automático e baseado em hábitos e um outro,
capaz de reflexões mais conscientes e racionais. O sistema reflexivo
e consciente é mais lento e consome mais energia do que o sistema
«automático», motivo por que o usamos muito menos.
Para nos fazer mudar, a filosofia tem de trabalhar com os dois «sistemas». E era isto mesmo que a filosofia grega clássica fazia, pois envolvia
um processo que se divide em duas partes: primeiro tornamos o habitual consciente, depois o consciente habitual. Por outras palavras, começamos por trazer as nossas crenças «automáticas» à luz da consciência,
recorrendo ao método socrático, para verificarmos se são racionais; depois, concentramo-nos na nossa nova visão filosófica e aplicamo-la até
que os seus princípios se transformem nos nossos novos hábitos subconscientes. A filosofia não é um mero processo de reflexão abstrata,
mas uma disciplina que tem de ser praticada. «As virtudes adquirem-se
pela prática», escreveu Aristóteles. Não podemos «refugiar-nos na teoria
como os pacientes que ouvem atentamente os seus médicos e, depois,
não fazem nada do que estes lhes dizem»15. A filosofia é um treino,
um conjunto de exercícios físicos e mentais diários que se vão tornando mais fáceis com a prática. Os filósofos gregos recorriam, amiúde, à
metáfora da ginástica, dizendo que tal como a repetição dos exercícios
físicos nos fortalece os músculos, também os nossos «músculos morais» são fortalecidos através da insistência em determinados exercícios.
Após o treino suficiente, acabamos por sentir a emoção certa em cada
situação e respondemos da forma mais adequada. A nossa filosofia torna-se, então, uma espécie de «segunda natureza» e atingimos aquilo a
que os estoicos chamavam de «um bom fluxo de vida»16.
Não é um processo fácil, pois a alteração da nossa forma de pensar
e sentir «programada» requer muita coragem e determinação, para além
de uma boa dose de humildade, pois ninguém gosta de admitir que a
sua forma de ver o mundo poderá estar errada. A verdade é que agarramo-nos às nossas crenças mesmo quando estas quase nos afogam... O
facto de a TCC resultar apenas para 60 a 70 por cento de pessoas com
distúrbios emocionais sugere que a capacidade socrática para nos conhecermos e mudarmos a nós próprios é apenas isso — uma capacidade.
Os gregos nunca afirmaram que as pessoas nasciam livres, conscientes e
perfeitamente racionais. Pelo contrário, diziam que, na verdade, os seres
humanos eram criaturas profundamente inconscientes* e instintivas que
*
No sentido que a psicologia atribui a este termo. (N. do T.)
FILOSOFIA PARA A VIDA E OUTRAS SITUAÇÕES PERIGOSAS
25
passavam pela vida como sonâmbulos. Porém, insistiam que a maior
parte de nós tinha a possibilidade de usar a razão para escolher caminhos mais sensatos na vida se se empenhasse a fundo na aplicação
da sua nova filosofia. A nossa capacidade de raciocinar com base
nos nossos hábitos emocionais pode ser determinada pela genética
e pelo meio ambiente; contudo, estou convicto de que dispomos
sempre de algum espaço de manobra; de alguma capacidade para alterarmos as nossas predisposições psicológicas. E, com a prática,
quase todos podemos tornar-nos um pouco mais sábios e felizes.
Esta capacidade limitada de nos conhecermos e mudarmos pode
significar a diferença entre uma vida profundamente infeliz e uma
vida vivida com alguma satisfação17.
Filosofias para a vida
A noção socrática de que a filosofia pode realmente mudar as pessoas e trazer-lhes felicidade tem vindo a ser ridicularizada desde há
séculos até por filósofos como David Hume, o pensador escocês do
século XVIII que rejeitou aparatosamente as capacidades terapêuticas
da filosofia. Hume, que talvez tenha pretendido revelar-se intencionalmente provocador, escreveu que, na sua maioria, os seres humanos
«encontram-se efetivamente excluídos de toda e qualquer pretensão
filosófica, e a tão apregoada medicina para a mente (...). O império da
filosofia estende-se apenas a alguns, e mesmo no que a estes se refere,
a influência desta disciplina é assaz ténue e limitada»18. Eu diria que
Ellis e Beck provaram que Hume estava errado, pois demonstraram
que, mesmo numa forma bastante simplificada e básica, a filosofia
pode ajudar milhões de pessoas comuns a viverem vidas mais felizes e
refletidas.
Não obstante, ao aplicarem a filosofia clássica num curso de TCC
com a duração de 16 semanas, os terapeutas da psicologia cognitiva
tiveram, inevitavelmente, de a abreviar e de lhe estreitar o âmbito, o
que levou a uma forma de autoajuda mais instrumental e resumida,
estreitamente focada na forma de pensar individual e ignorando os
fatores políticos, culturais e éticos. A filosofia clássica com que nos
depararemos mais adiante proporciona-nos ferramentas terapêuticas
úteis e rápidas, mas vão muito além disso, pois também nos apresentam críticas à sociedade e noções políticas sobre como esta deveria ser
gerida. Também nos apresentam diversas teorias sobre Deus, sobre
26
JULES EVANS
o significado da vida e sobre o nosso lugar no universo. No mundo
antigo, a autoajuda era uma área muito mais ambiciosa e lata do que
na atualidade. Relacionava o psicológico com o ético; o político
com o cósmico, e não apresentava curas rápidas, daquelas que são
praticadas durante um mês ou dois, até à chegada da tendência seguinte nesta área. Pelo contrário, mostrava às pessoas um modo de
vida perene, propondo-lhes algo que podiam praticar diariamente
durante anos para mudarem radicalmente o seu «eu» e talvez até a
sociedade. Atualmente, muitas são as pessoas que procuram uma
filosofia para a vida e que se voltaram para os filósofos da Antiguidade, em busca de uma linha mestra por que possam reger o
seu viver. Todas as personalidades que encontraremos nesta obra
viram a sua vida mudada pela filosofia clássica — e muitas diriam,
como eu, que esta lhes salvou a vida. São pessoas oriundas de todos
os quadrantes da vida: soldados, astronautas, eremitas, ilusionistas,
bandidos, donas de casa, políticos, anarquistas... Todas estas pessoas
descobriram que a filosofia resulta de facto, mesmo nas situações mais
delicadas e perigosas.
Filosofia do quotidiano
A noção da «filosofia como um modo de vida» está muito longe do modelo académico contemporâneo desta disciplina, em que os
estudantes aprendem uma teoria e, depois, são submetidos a exames
sobre essa mesma teoria. Tal como disse antes, para os gregos da
Antiguidade Clássica, a filosofia era um processo muito mais prático,
íntimo e comum. Ao estudarem filosofia, os estudantes tinham de
dar tudo de si e não apenas as suas faculdades intelectuais. Onde e
como poderia esse tipo de filosofia ser praticado hoje em dia? Uma
das respostas a esta questão tem sido devolver a filosofia à rua, onde
o próprio Sócrates costumava praticá-la. Em 1992, um jovem professor francês chamado Marc Sautet irritou os seus pares académicos ao
afirmar que a filosofia se tinha tornado demasiado institucional, divorciando-se das preocupações das pessoas comuns. Como alternativa, o jovem erudito fundou o Café Philosophique (tertúlia filosófica),
que se reunia no Café des Phares, em Paris, aos domingos de manhã.
Toda a gente era bem-vinda e podia votar no tópico a discutir em
cada sessão e participar num debate socrático alargado (aquele evento
chegava a reunir 200 pessoas, apinhadas no café). Graças à Internet, o
FILOSOFIA PARA A VIDA E OUTRAS SITUAÇÕES PERIGOSAS
27
movimento depressa se tornou global, e existem já cerca de 50 Cafés
Socráticos em todo o mundo19.
Outros movimentos filosóficos populares seguiram o exemplo
de Sautet. Em 2000, em Liverpool, três naturais desta cidade iniciaram um movimento a que deram o nome de Filosofia nos Pubs,
que se espalhou já a 30 bares disseminados por todo o Reino Unido,
sendo que 14 se concentram na área de Merseyside, o que faz da
famosa urbe portuária a capital incontestada da filosofia popular.
Rob Lewis, um dos fundadores do movimento, disse-me que tinha
frequentado um curso de filosofia enquanto estivera desempregado
e que esse curso originara uma reviravolta total na sua vida. «O estudo da filosofia ajudou-me a ultrapassar aquela sensação de alienação
por que todos passamos ocasionalmente», disse-me, «a qual é causada pelo facto de estarmos integrados numa sociedade que nos julga
constantemente com o objetivo de decidir que oportunidades na
vida merecemos.» Desde o início que a ideia fundamental subjacente
ao movimento Filosofia nos Pubs é trazer a filosofia para fora dos
meios meramente académicos — para fora daquilo a que Rob chama
de «aulas de tagarelice» — e dar a conhecer o seu poder às classes
operárias. Paul Doran, outros dos fundadores, disse-me: «Gostaria
que, daqui a uns dez anos, se tornasse banal uma pessoa entrar em
qualquer pub inglês e perguntar ao barman: “A que dias é que se reúne
o vosso clube filosófico?”»
Estes grupos de filosofia popular têm, muitas vezes, um espírito
ligeiramente antiacadémico. O filósofo popular Alain de Botton, por
exemplo, fundou uma instituição chamada Escola da Vida (School
of Life) em 2008, na tentativa de libertar a filosofia do rígido carácter institucional universitário. O filósofo suíço queixava-se de que a
filosofia académica já não ensinava as pessoas a viver: «Até a Oprah
Winfrey coloca questões mais pertinentes do que os próprios catedráticos de humanidades de Oxford!»20 (lá se foram as suas hipóteses
de ser convidado a ocupar alguma cátedra...). Concordo, em parte,
com este ponto de vista. Lembro-me de perguntar a um académico
especializado na corrente estoica se alguma vez aplicara o estoicismo
na sua vida privada. A sua resposta foi: «Não, credo! Graças a Deus
que a vida não me correu assim tão mal!» Dir-se-ia que via a filosofia
clássica como uma espécie de relíquia de museu empoeirada! Porém,
outros académicos não recusam de forma tão liminar a utilidade atual
da filosofia clássica. São filósofos como Pierre Hadot, A. A. Long,
Michael Sandel e Martha Nussbaum21. No grupo filosófico que ajudo
28
JULES EVANS
a coordenar — o Clube Filosófico de Londres (London Philosophy
Club) —, temos recebido muitos filósofos académicos que nos vêm
dispensando algum do seu tempo livre para partilharem, gratuitamente, os seus profundos conhecimentos connosco. A filosofia do quotidiano e a académica não são rivais; antes se complementam. Sem a
filosofia académica, a filosofia do quotidiano torna-se incoerente; sem
a filosofia do quotidiano, a filosofia académica torna-se irrelevante.
Novas comunidades filosóficas
A Escola da Vida, o movimento Filosofia nos Pubs e o Clube Filosófico de Londres não exigem aos seus membros que sigam determinada corrente filosófica ou uma ética específica na sua vida. Trata-se
de fóruns liberais, onde estranhos se encontram para discutirem várias
filosofias sem terem de perfilhar alguma em específico. Nesse sentido, são diferentes das academias filosóficas clássicas instituídas por
sucessores de Sócrates, como os cínicos, os platónicos, os estoicos
ou os epicuristas. Como veremos adiante, estas academias clássicas
assemelhavam-se mais a comunas ou seitas cujos membros se comprometiam com um estilo de vida alternativo e radical. Mas também
assistimos, atualmente, ao surgimento de novas comunidades filosóficas que se aproximam desse modelo clássico. Neste âmbito, conheceremos, por exemplo, os Novos Estoicos, um grupo contemporâneo
constituído por estoicos de todo o mundo; falaremos do Action for
Happiness, um movimento que visa a disseminação do hedonismo;
visitaremos uma comuna anarquista que vive nos passeios de Londres, como os cínicos da Antiguidade; cruzar-nos-emos com a Academia da Ciência Económica, uma comunidade platónica com cerca
de vinte mil seguidores; travaremos conhecimento com o Landmark
Forum, cujos coordenadores dizem ter formado mais de um milhão
de pessoas com a sua filosofia socrática de choque. Também iremos
a Las Vegas, onde assistiremos ao encontro dos Céticos, um movimento ligado à filosofia do quotidiano que conta com vários milhões
de membros. Algumas destas comunidades filosóficas são substitutas
ou rivais das religiões tradicionais. Mas é evidente que isto coloca um
desafio à reconstrução histórica, pois nenhuma corrente filosófica da
Antiguidade grega ou romana — todas iniciadas há dois milénios —
sobreviveu até aos dias de hoje, o que obriga os seus seguidores modernos a tornarem a juntar os fragmentos sobreviventes e a estabele-
FILOSOFIA PARA A VIDA E OUTRAS SITUAÇÕES PERIGOSAS
29
cerem novas «tradições». Além disto, trata-se também de um desafio a
nível organizacional: serão estas comunidades capazes de substituir as
religiões tradicionais sem se transformarem em cultos?
A política do bem-estar
A terapia filosófica da Antiguidade também continha uma vertente política importante. Como vimos, as nossas crenças podem
prejudicar-nos a saúde ou ajudar ao nosso desenvolvimento. Grande parte dessas crenças é-nos transmitida pela nossa cultura e pelos
nossos sistemas políticos e económicos, pelo que qualquer filósofo
principiante terá de decidir que relação adotar para com a sociedade
em que se encontra inserido. Os professores da nossa «faculdade»
apresentam-nos várias soluções. Os estoicos e os céticos, por exemplo, declararam a sua independência espiritual em relação aos valores
tóxicos transmitidos pela sua cultura, mas não tentaram doutrinar ou
mudar as outras pessoas. Na verdade, mostravam-se pessimistas no
que se referia ao interesse das pessoas comuns pela filosofia ou ao
seu desejo de mudar. Os epicuristas e pitagóricos, por seu turno, assumiram um pessimismo semelhante em relação à influência exercida
pela filosofia e afastaram-se da sociedade, reunindo-se em comunas
filosóficas. No entanto, alguns membros da nossa «faculdade» depositaram uma maior esperança na filosofia e pensaram que esta tinha
verdadeiramente o poder de transformar a sociedade. Na nossa última aula — sobre política —, examinaremos as visões de Diógenes,
Platão, Plutarco e Aristóteles nesta área e analisaremos a forma como
alguns dos nossos contemporâneos estão a tentar aplicar as visões
destes mestres na atualidade.
A noção de que a sociedade poderia ser submetida a uma só filosofia ou religião que buscasse a melhor vida possível para todos tem
encontrado uma forte resistência nas liberais sociedades ocidentais
desde que John Stuart Mill, filósofo do século XIX, afirmou que as
pessoas deviam ter a liberdade de «procurarem a sua própria felicidade à sua maneira»22. Os dois maiores defensores da filosofia liberal do pós-guerra — Sir Karl Popper e Sir Isaiah Berlin — também
nos alertaram para o facto de a fórmula única para uma vida feliz ser
uma «quimera metafórica»23. Nunca uma nação inteira poderá aceitar unanimemente um só modelo de felicidade. Portanto, qualquer
tentativa por parte de qualquer governo no sentido de impor uma
30
JULES EVANS
filosofia única aos seus cidadãos será sempre despótica e coerciva. Os
governos, insistia Berlin, devem proteger a «liberdade negativa» dos
seus cidadãos — impedir ingerências nas suas vidas — e deixar que
sejam os próprios a procurarem a sua «liberdade positiva», ou seja, o
seu modelo de realização pessoal e espiritual.
O ultraliberalismo
Ao longo dos derradeiros anos do século xx e dos primeiros do
século XXI, tem vindo a aumentar, no seio dos intelectuais e dos governantes, a sensação de que o pluralismo e o relativismo moral já
foram longe demais e de que o individualismo neoliberal nos reduziu,
nos desligou dos outros e nos privou do sentido do bem comum. A
noção aristotélica e platónica de que os governos deveriam encorajar
o desenvolvimento espiritual dos seus cidadãos voltou a ser incorporada na corrente de pensamento dominante nos países ocidentais. De
facto, acabou por se tornar esmagadoramente consensual na atualidade24. O que terá levado os governantes a acreditarem, de repente, que
os governos podem tornar as pessoas mais felizes? Em grande parte,
isto deve-se ao sucesso da terapia cognitiva. Ao que parecia, Aaron
Beck e Albert Ellis tinham provado cientificamente que era possível
ensinar as pessoas a ultrapassarem os seus problemas comportamentais e emocionais. Mais tarde, no final dos anos 90, Martin Seligman,
discípulo de Aaron Beck na Universidade da Pensilvânia, sugeriu que
a psicologia deveria ajudar as pessoas não só a ultrapassarem os seus
problemas emocionais, mas também a desenvolverem-se e a viverem a
vida o melhor possível. Seligman chamou à sua nova área «Psicologia
Positiva». Assim como Beck e Ellis se inspiraram na filosofia grega
clássica, também Seligman e os seus colegas exploraram os conceitos
e as técnicas das filosofias clássicas ocidental e oriental. Em seguida,
testaram-nos na prática para verem quais eram realmente eficazes.
«Aristóteles nunca pôde beneficiar de uma escala de sete pontos»25, chegou a gracejar Christopher Peterson, o «diretor de virtudes» da Psicologia Positiva. Com esta síntese da filosofia clássica
com a psicologia moderna, Seligman esperavam instaurar uma «ciência do desenvolvimento pessoal» objetiva e, em seguida, introduzir esta ciência no seio da política ocidental. «Imagine», disse Seligman, «que os governos e as grandes empresas de todo o mundo
ensinavam aos seus cidadãos e empregados a ciência do bem-estar,
FILOSOFIA PARA A VIDA E OUTRAS SITUAÇÕES PERIGOSAS
31
tal como a família Médicis transmitiu a filosofia platónica à Florença
renascentista26. Não seria extraordinário?»
Este novo movimento, a que Seligman deu o nome de «política do
bem-estar», tem obtido bastante apoio dos universos político e financeiro. No Reino Unido, por exemplo, o governo aceitou despender mais
de mil milhões de libras na formação de 6000 novos especialistas em
terapia cognitiva com o objetivo de colocar a TCC ao alcance da nação. Na sequência disto, a maior parte das crianças que estudam em
escolas britânicas têm uma nova disciplina curricular chamada Social and
Emotional Aspects of Learning (aspetos socioafetivos da aprendizagem),
que lhes ensina a desenvolver a inteligência emocional e inclui técnicas
colhidas da TCC. Nos Estados Unidos, todos os soldados do exército
frequentam um curso de «pensamento resiliente», concebido por Martin Seligman e a sua equipa e lançado no final de 2010, num esforço para
reduzir a incidência do stresse pós-traumático e do suicídio entre os
militares. Como veremos adiante, no cerne deste programa estão as técnicas cognitivas da TCC e da filosofia clássica. Na Europa, o presidente
do Conselho Europeu, Herman Van Rompuy, em dezembro de 2011,
enviou a cerca de duzentos líderes mundiais um livro sobre filosofia positiva, pedindo-lhes que passassem a considerar o bem-estar como o seu
principal objetivo político para 2012. Por outro lado, governos de todo
o mundo, como os da França, da Bélgica, do Butão, da Finlândia, da
Áustria, de Taiwan, do Reino Unido e da Alemanha, têm vindo a medir,
ao longo dos últimos anos, os «níveis de bem-estar» das suas populações e sugerem que o objetivo principal de todos os governos deveria
ser o desenvolvimento dos seus cidadãos, como defendia Aristóteles.
O perigo de uma política do bem-estar intolerante
Concordo com muitos aspetos deste movimento, sobretudo com
o arrojo do governo britânico ao tornar os cuidados relacionados com
a saúde mental mais abrangentes em termos populacionais. Eu próprio
beneficiei bastante com a TCC, e se alguns dos milhões de pessoas beneficiadas com esta terapia se dedicarem a explorar as suas raízes filosóficas,
melhor. Tendo sido criado durante os anos estéreis do neoliberalismo,
também me sinto entusiasmado com o facto de os ideais gregos relacionados com o desenvolvimento pessoal e o bem-estar terem voltado
à escola, ao local de trabalho e ao coração da política. Porém, a escala
e a velocidade a que o movimento se está a expandir às questões de
32
JULES EVANS
ordem pública fazem-me sentir desconfortável, pois a nova política
do bem-estar facilmente poderá tornar-se intolerante e coerciva se
os cientistas e os governantes se lembrarem de argumentar que já
«testaram» determinado modelo e que, portanto, não há necessidade de obter o consentimento das populações ou de promover qualquer debate político. O perigo é que se passe demasiado depressa dos
factos das provas empíricas às obrigatoriedades da ética e da política, o
que nos levaria a um dogma rígido e intolerante quanto à forma como
as pessoas teriam de viver, sentir e pensar.
Este perigo tornou-se-me particularmente evidente na obra The Moral Landscape, do neurocientista Sam Harris. Nesta sua obra, Harris defende que o único fundamento razoável da ética é a preocupação com
o bem-estar de todas as criaturas sencientes. Este autor afirma que a
ciência pode revelar-nos factos sobre o bem-estar e que, portanto, só ela
nos pode indicar o que é o bem-estar. A sua obra causou grande indignação entre padres e filósofos; contudo, a minha preocupação não tem
a ver com o facto de Harris sublinhar que a ciência pode e deve orientar
o debate moral. Os gregos da Antiguidade concordariam plenamente
com este ponto de vista, pois as suas filosofias combinavam, como veremos adiante, a biologia, a psicologia e a física com a ética e a política.
Qualquer código de ética fidedigno deveria tentar conciliar-se com as
provas científicas disponíveis sobre a nossa natureza e com a natureza
do Universo. Se a ciência nos disser, por exemplo, que os humanos
são incapazes de conhecer ou alterar os seus pensamentos ou emoções,
teremos de repensar a ética socrática. Mas se, por outro lado, as provas
científicas da TCC sugerirem que nos é possível servirmo-nos da razão
para mudarmos os nossos pensamentos e emoções, a ética socrática
será válida. Harris tem razão até este ponto.
Porém, em seguida, dá um salto arrojado para a filosofia política: se a ciência nos pode revelar factos precisos sobre a moral
e o bem-estar humanos, então também deverá orientar a política
nacional e internacional. Deveríamos usá-la na conceção de melhores instituições políticas, legais e sociais e para estabelecermos um
quadro moral universal, em que a moral e os costumes de todos os
indivíduos e de todas as sociedades possam ser avaliados, medidos e
julgados. Harris anseia pelo dia em que um comité científico internacional velará por nós e nos proporcionará linhas mestras precisas
e claras que permitirão aferir da moralidade dos nossos atos. Esta
perspetiva recorda-me o poder outrora outorgado ao Vaticano, em
que um comité de peritos em teologia, guiado pela «ciência moral» de
FILOSOFIA PARA A VIDA E OUTRAS SITUAÇÕES PERIGOSAS
33
Aristóteles e de São Tomás de Aquino, vigiava a cristandade e julgava a moralidade dos seus líderes. Recorrendo a exemplos de tempos
mais recentes, a visão de Harris recorda-me igualmente o positivismo,
esse estranho culto filosófico inventado por Auguste Comte, no século XIX. Comte insistia que tinha, finalmente, amalgamado a filosofia
clássica e a teologia católica numa ciência exata e que bastava aos governos transmitirem o poder a um comité científico27. Não obstante,
John Stuart Mill, um dos primeiros entusiastas do positivismo, veio a
aperceber-se do perigo desta ideologia. Segundo Mill, se o positivismo se tornasse uma realidade, levaria a «um despotismo da sociedade
sobre o indivíduo que ultrapassaria todos os ideais políticos dos mais
despóticos dos filósofos da Antiguidade Clássica»28.
No entanto, a visão positivista de Harris já se vai tornando realidade. No final de 2010, o primeiro-ministro britânico David Cameron
ordenou ao Instituto Nacional de Estatística do seu país que definisse
os parâmetros e avaliasse o bem-estar da nação (o presente mais envenenado que se pode imaginar!)29.
O INE britânico criou, então, um «comité de peritos» que rapidamente produziu uma definição oficial para o conceito de bem-estar.
Este comité era inteiramente constituído por economistas e sociólogos,
não fazendo dele parte um só filósofo, artista ou religioso. Não houve,
portanto, um debate verdadeiramente democrático sobre como se deveria definir o bem-estar, para além umas apresentações itinerantes, um
pouco por todo o país, levadas a cabo por quadros do INE britânico.
Estes funcionários do instituto afirmaram, nos seus relatórios, que,
para sua surpresa, muitas pessoas que assistiram às palestras manifestaram que a religião pesava na sua noção de bem-estar30. Mas é
evidente que Deus não tinha sido incluído na fórmula científica do
INE britânico para o bem-estar. Como é que a ciência poderia medir
o quanto alguém se sentia próximo de Deus? Os críticos desta iniciativa dizem que o serviço de estatísticas apenas toma em consideração os sentimentos positivos, o que constitui uma definição utilitária
ou epicurista do bem-estar. Contudo, o INE britânico insiste em que
também tem considerado o bem-estar «eudemonístico» (esta palavra
provém do vocábulo grego clássico eudaimonia, que segundo Aristóteles, Platão e os Estoicos significava «felicidade virtuosa»). O instituto
afirma que os questionários avaliam o eudemonismo de cada pessoa
ao perguntar-lhe que valor atribuiria à sua vida numa escala de um a
dez. A pergunta é, por si própria, surreal. Talvez a resposta nos forneça uma noção muito elementar de como cada pessoa avalia o seu
34
JULES EVANS
próprio desenvolvimento pessoal, mas não nos dá qualquer indicação da sua efetiva qualidade de vida, de como trata os outros ou, em
termos mais abrangentes, do impacto e do valor efetivo da sua vida.
Estaremos realmente convencidos de que um breve questionário nos
permite medir a virtude, a significância, o impacto e o valor cósmico
da vida de uma pessoa para, depois, lhe atribuirmos um número e a
classificarmos de acordo com um sistema global de hierarquia moral?
Isso atribuiria aos estaticistas capacidades que, normalmente, apenas
são atribuídas às divindades omniscientes31! Nas palavras de Aristóteles, «é próprio do homem instruído procurar a precisão em cada classe
de coisas apenas na medida em que a natureza dos objetos de análise
o permite»32.
A democratização da política do bem-estar
Qualquer filosofia relacionada com o bem-estar envolve valores,
crenças e juízos de valor sobre questões tão profundas como: «Porque
estamos neste mundo?»; «Deus existe?»; «O que significa o desenvolvimento pessoal?» ou «Como deveríamos organizar a sociedade?». A pesquisa empírica pode revelar-nos dados interessantes sobre estas questões, mas também temos de exercitar a nossa ética pragmática, aquilo a
que os gregos chamavam de phronesis. Sócrates sublinhou que a prática
da reflexão sobre estas questões — sozinhos ou com outras pessoas
— e a escolha das nossas respostas fazem, per si, parte do conceito de
bem-estar. Os governos não deviam negar este processo aos povos,
forçando-os a adaptarem-se a um modelo de bem-estar preconcebido por «peritos», pois isso priva-os da sua autonomia e da sua capacidade de raciocinar e escolher elementos que, na minha opinião,
desempenham um papel importante no desenvolvimento humano33.
E os cientistas do bem-estar não deveriam esconder as suas próprias
convicções morais atrás da objetividade científica. Pelo contrário, as
diferentes abordagens éticas ao bem-estar deviam ser reveladas e exploradas, para que as pessoas pudessem tomar as suas próprias decisões. Temos de encontrar o equilíbrio adequado entre a noção grega
de «bem-estar» e uma política pluralista e liberal que respeite o direito
das pessoas a questionarem-na e a escolherem como querem viver.
De outra forma, a política do bem-estar depressa se tornará invasiva,
intolerante, burocrática e profundamente odiada. Podemos levar as
pessoas ao poço da filosofia, mas não as podemos obrigar a pensar.
FILOSOFIA PARA A VIDA E OUTRAS SITUAÇÕES PERIGOSAS
35
As quatro etapas da tradição socrática
O que tenho tentado demonstrar nesta obra é que Sócrates e os
seus descendentes não conceberam uma definição de «bem-estar»,
mas várias. Todas as abordagens que conheceremos na nossa «universidade» são ramificações daquilo a que chamo a «tradição socrática».
E todas elas seguem as seguintes três etapas socráticas:
1) Enquanto humanos, temos a capacidade de nos conhecermos a
nós próprios e podemos recorrer à faculdade da razão para examinarmos as nossas crenças e valores subconscientes.
2) Como seres humanos, podemos mudar-nos, pois temos a possibilidade de recorrer à razão para mudarmos as nossas crenças. Isto
causará uma mudança nas nossas emoções, pois as nossas emoções
seguem a nossa forma de pensar.
3) Na qualidade de seres humanos, podemos criar, de forma consciente, novas formas de pensar, de sentir e de agir.
Estas três etapas constituem o essencial dos ensinamentos da
TCC. Existe uma base factual sólida para estas três etapas e o que ensinam não é tanto valores morais específicos, mas mais «capacidades
discursivas». Portanto, não vejo qualquer problema em os governos
transmitirem estas competências às pessoas nas escolas, nas universidades, nas instituições de saúde mental, nas forças armadas ou em
qualquer outro lado.
Contudo, todas as correntes filosóficas que abordaremos adiante
apresentam também uma quarta etapa:
4) Se fizermos da nossa filosofia um modo de vida, poderemos viver
vidas espiritualmente mais prósperas.
É aqui que as coisas se tornam um pouco mais complicadas, pois
isto implica que tentemos definir o que significa exatamente uma vida
«espiritualmente mais próspera». É aqui que entram os valores, a ética e o pensamento prático. As primeiras três etapas ensinam-nos a
orientar a nossa mente, mas a quarta diz-nos para onde a direcionar.
E todos os filósofos da nossa faculdade a incluem nas suas correntes
filosóficas, embora com objetivos diferentes. Apresentam diferentes
36
JULES EVANS
conceitos do que é uma «sociedade boa» e têm diferentes pontos de
vista sobre o objetivo da vida: alguns acreditam que o objetivo último
é a comunhão com Deus, enquanto outros duvidam da própria existência de Deus ou da Sua relevância na vida dos humanos. Estes filósofos têm muitas coisas em comum (todos concordam no que se refere às primeiras três etapas), mas discordam profundamente quanto
à quarta etapa. Portanto, talvez a filosofia clássica nos possa fornecer
algumas noções e técnicas comuns a todas as correntes no que se refere às noções e técnicas para se alcançar o bem-estar; talvez até possa
constituir um ponto de encontro entre crentes e não crentes, entre
as ciências e as humanidades, mas haverá sempre alguma discordância. Não me parece que algum dos filósofos que vamos conhecer seja
perfeito, nem se pode esperar que algum deles reúna um consenso
absoluto. O reino do Butão, nos Himalaias, é muitas vezes visto como
o exemplo de que é possível um país inteiro adotar uma só filosofia
do bem-estar. Porém, o Butão é um país minúsculo, governado por
um rei, maioritariamente rural e com uma cultura homogénea e uma
população semianalfabeta e mais reduzida do que a de Birmingham.
Estas circunstâncias levam a que o governo do Butão tenha muito
maior facilidade em impor uma filosofia comum do bem (o budismo)
do que o governo de qualquer estado liberal, multicultural, secular
e de dimensões consideráveis. Por todos estes motivos, nem os governos nem as grandes empresas devem tentar impor um modelo de
bem-estar aos seus cidadãos ou membros, mas mostrar-lhes diferentes abordagens à noção de uma vida bem vivida, deixando que cada
um decida, depois, por si próprio.
Três perguntas para cada corrente filosófica
Preparei três perguntas para os seguidores de cada corrente filosófica que iremos conhecer:
1) Que técnicas de autoajuda poderemos colher da vossa filosofia para usarmos no nosso quotidiano?
2) É possível elegermos a vossa filosofia como um modo de
vida?
E, por fim:
3) A vossa filosofia pode constituir a base de uma comunidade
ou até de toda uma sociedade?
Para a abordagem a cada corrente filosófica, baseei-me em entrevistas
FILOSOFIA PARA A VIDA E OUTRAS SITUAÇÕES PERIGOSAS
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com pessoas que têm usado os ideais de cada uma para ultrapassarem
problemas graves e melhorarem as suas vidas. Na maioria dos casos, sabem que as técnicas que utilizam provêm da filosofia clássica, e, em muitos casos, os entrevistados adotaram conscientemente alguma das antigas
escolas e tentam fazer dos respetivos ensinamentos o seu modo de vida.
Todas as pessoas entrevistadas vivem a filosofia e praticam-na de uma
forma muito mais séria do que eu próprio. Faço questão de sublinhar, desde já, que, apesar de a filosofia me ter ajudado muito, não me
considero um filósofo, mas essencialmente um jornalista movido pela
curiosidade sobre a forma como as pessoas aplicam estas noções antigas à vida moderna. Dito isto, é o momento de «ouvirmos» Séneca:
«Não há tempo a perder! Fostes eleito para serdes o conselheiro dos
descontentes! Prometestes ajuda aos náufragos, aos reclusos, aos doentes, aos necessitados, àqueles que têm os pescoços sob o machado!
O que vos distrai? O que andais a fazer?34» Tem razão, Séneca, está na
altura de darmos início às nossas aulas. E a nossa sessão da manhã
começa no Deserto da Arábia, onde Rhonda Cornum está prestes a
sofrer uma aterragem bastante violenta.
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