Arq Bras Cardiol volume 74, (nº 5), 2000 cols. RelatoAtik de eCaso Agenesia da valva aortica associada a hepoplasia do coração esquerdo Agenesia da Valva Aórtica Associada a Hipoplasia do Coração Esquerdo Edmar Atik, Luiz Alberto Benvenuti, Tamara Cortez Martins, Miguel Barbero-Marcial São Paulo, SP É relatado o 12o caso na literatura de ausência da valva aórtica, em associação à hipoplasia do coração esquerdo. Os aspectos clínicos e hemodinâmicos assemelhamse àqueles encontrados nesta síndrome, exceto pelo maior desenvolvimento da aorta ascendente, assim como da cavidade ventricular esquerda, em decorrência da insuficiência valvar aórtica. Um remendo de pericárdio foi inserido no anel aórtico, a fim de excluir o ventrículo esquerdo da circulação, além do insucesso da técnica de Norwood. A agenesia da valva aórtica, sempre em associação a outros defeitos e ao contrário da ausência da valva pulmonar 1, é mais rara e apenas 11 desses casos são relatados na literatura 2-10. A hipoplasia do coração esquerdo esteve presente em oito deles 4-8,10, a estenose do anel aórtico em um 9 e, em outros dois de dupla via de saída de ventrículo direito 2,3, um dos quais apresentava anatomia cardíaca complexa com polisplenia 3. Outros defeitos cardíacos são também descritos, como drenagem anômala total das veias pulmonares 8, estenose de veias pulmonares 8, estenose subaórtica por implantação anômala de cordas da valva mitral 4, além de fibroelastose endocárdica de ventrículo esquerdo 4,5,8,10. Relatamos mais um caso de ausência da valva aórtica associada à hipoplasia do coração esquerdo, mas com a aorta ascendente e cavidade ventricular esquerda bem desenvolvidas, devido à insuficiência aórtica acentuada. Ambos os diagnósticos foram estabelecidos em vida e à necropsia. Relato do Caso Neonato do sexo masculino, nasceu com 4.190g de peso, produto de gestação e de parto normais. Obteve alta no segundo dia mas discreta cianose e taquipnéia foram responsáveis pela internação em nosso serviço com 22 dias de vida. Nessa ocasião, apresentava pulsos finos nas quatro extremidades, que se tornaram mais cheios com a administração de prostaglandina E 1, endovenosa na dose de Instituto do Coração do Hospital das Clínicas - FMUSP Correspondência: Edmar Atik – Incor – Av. Dr. Enéas C. Aguiar, 44 – 05403-000 São Paulo, SP Recebido para publicação em 1/12/99 Aceito em 26/1/00 0,01µg/kg/min. Com essa medicação, chamou a atenção o desaparecimento da cianose, os pulsos mais amplos nos membros inferiores, assim como a boa condição clínica. Seu peso corporal era 4.270g, a freqüência cardíaca 150bpm e a pressão arterial de 111x69 mmHg nos membros superiores e de 88x43 mmHg nos inferiores. A saturação de oxigênio era de 98% em repouso e de 85% com o choro. Os achados cardíacos mais expressivos eram impulsões sistólicas na borda esternal esquerda, ruídos cardíacos acentuados, estalido proto-sistólico em todo o precórdio e um sopro sistólico-diastólico de moderada intensidade ao longo da borda esternal esquerda. Os pulmões eram limpos à ausculta e o fígado era palpado a 3cm abaixo da borda costal direita. O eletrocardiograma revelou ritmo sinusal, eixos de P a +60o, de QRS a +150o, e de T a +90o. Sobrecarga ventricular indeterminada era evidente desde que complexos rS estivessem presentes de V1 a V6. Radiografia de tórax mostrou aumento moderado da área cardíaca e da trama vascular pulmonar. Análise laboratorial do sangue revelou: Hb: 14,7 g%, Hct: 44%, CKMB: 18U, uréia: 29, creatinina: 0,6mg. Ecocardiografia e estudo hemodinâmico (fig. 1) caracterizaram a anomalia como ausência de conexão atrioventricular esquerda com concordância ventrículo-arterial. Era nítido o importante fluxo reverso de sangue desde as artérias pulmonares aumentadas até a aorta ascendente e subseqüentemente à cavidade ventricular esquerda através de acentuada insuficiência da valva aórtica. Átrio esquerdo pequeno recebia todas as veias pulmonares e drenava no átrio direito através de duas comunicações interatriais, que mediam 5 e 2mm de diâmetro. O ventrículo esquerdo era de pequenas dimensões mas bem formado e a aorta ascendente media 8mm de diâmetro. Valva aórtica rudimentar era evidente no anel aórtico. As pressões medidas ao cateterismo cardíaco eram: AD: 8, AE: 20, VD: 70/8, VE: 70/8, Ao: 70/30-43mmHg. A operação de Norwood, com anastomose término-lateral entre o tronco pulmonar e a aorta ascendente, foi realizada com 29 dias de vida com parada circulatória extracorpórea a 20oC. O achado anatômico marcante, por aortotomia lateral, foi a ausência de qualquer tecido valvar aórtico abaixo dos seios aórticos, exceto por um tecido embrionário achatado de 1mm de extensão, localizado no anel posterior aórtico. A aorta ascendente media 8mm de diâmetro, e o tron431 Atik e cols. Agenesia da valva aortica associada a hepoplasia do coração esquerdo Arq Bras Cardiol volume 74, (nº 5), 2000 Fig. 2 - Vista macroscópica do coração. A) vista lateral direita dos grandes vasos. É nítida a aorta ascendente (Ao), anastomosada à artéria pulmonar (PA). Verifica-se a anastomose de Blalock-Taussig (BT), a artéria pulmonar distalmente fechada cirurgicamente (DPA), e a projeção retroaórtica da aurícula esquerda (LA). B) Vista interna da aorta ascendente. O orifício aórtico está fechado por um remendo cirúrgico (seta), e há grande comunicação entre a aorta e a artéria pulmonar (asterisco). C) Ventrículo esquerdo apresenta discreta hipoplasia e fibroelastose endocárdica (LV). O ventrículo direito é dilatado e hipertrofiado (RV). Fig. 1 - Achados angiográficos correlacionam-se adequadamente com os ecocardiográficos no estabelecimento diagnóstico da agenesia da valva aórtica e da síndrome de hipoplasia do coração esquerdo. A ausência da conexão atrioventricular esquerda e o átrio esquerdo (LA) pequeno são nítidos em (a) e (f). A cavidade dilatada do ventrículo direito (RV) em (b,g), recebe todo o retorno venoso, tanto o sistêmico como o pulmonar através a comunicação interatrial (a), com conexão ventrículo-arterial concordante (b,d,g,i). As artérias pulmonares (PA) dilatadas são responsáveis pela manutenção da circulação sistêmica incluindo o enchimento da aorta ascendente (AAo) e das artérias coronárias por curso retrógrado através de canal arterial (b,c). Insuficiência aórtica foi claramente demonstrada em (e,j) com o ventrículo esquerdo (LV) enchendo-se a partir da injeção da aorta ascendente. O ventrículo esquerdo, com aspecto trabecular (d), e a aorta ascendente são reduzidos em tamanho, mas bem formados. Válvula aórtica rudimentar é vista na parede posterior direita do anel aórtico (h). Ao- aorta ascendente; Dao- aorta descendente; RA átrio direito. 432 co pulmonar e o canal arterial apresentavam-se com tamanho três vezes maior. À operação, o ventrículo esquerdo foi desconectado da circulação sistêmica por um remendo de pericárdio colocado onde deveriam existir as válvulas aórticas. Anastomose modificada de Blalock-Taussig, com goretex de 4mm à direita, assim como a ampliação do diâmetro da comunicação interatrial completaram a operação. Síndrome de baixo débito cardíaco e hipóxia (pO2: 35 e saturação arterial de 75%) foram responsáveis pela morte, 6 horas após o término da operação. A necropsia mostrou a ausência de conexão atrioventricular à esquerda e átrio esquerdo pequeno e hipertrófico. A aurícula esquerda era anômala com forma bífida e com projeção retroaórtica. A aorta ascendente era bem desenvolvida e media 8mm externamente. O tronco pulmonar estava fechado e anastomosado à aorta ascendente e ao arco aórtico. Anastomose sintética de Blalock-Taussig entre as artérias subclávia e pulmonar direitas estava pérvia (fig. Arq Bras Cardiol volume 74, (nº 5), 2000 Atik e cols. Agenesia da valva aortica associada a hepoplasia do coração esquerdo 2A). O anel da valva aórtica media 4mm, sem vestígios valvulares e o orifício aórtico estava fechado por um remendo de pericárdio (fig. 2B). O canal arterial foi ligado e havia discreta coartação da aorta pré-ductal. A valva da fossa oval foi cirurgicamente removida e resultou em uma comunicação interatrial de 12mm. O ventrículo esquerdo era discretamente hipoplásico e exibia fibroelastose endocárdica (fig. 2C). As cavidades direitas eram dilatadas e hipertrofiadas. As artérias coronárias eram normais. O exame histológico mostrava múltiplas áreas de infarto do miocárdio recente em ambos os ventrículos, além de hipertensão venosa pulmonar com hipertrofia da parede arterial e muscularização periférica e necrose tubular aguda dos rins. Discussão Agenesia de valvas cardíacas é mais encontrada no lado direito do coração, principalmente no sítio pulmonar 1. Valva mitral, com agenesia parcial, é raramente descrita e em relação à ausência da valva aórtica, apenas 11 encontramse na literatura 2-10. Geralmente, a agenesia valvar cardíaca, do ponto de vista anatômico, é representada por válvulas hipoplásicas, rudimentares e não funcionantes, o que origina dinamicamente aumento pronunciado das estruturas cardíacas e vasculares. Assim, na ausência da valva aórtica, e como decorrência da insuficiência desta valva, tornam-se aspectos anatômicos marcantes o desenvolvimento maior da aorta ascendente e do ventrículo esquerdo, mesmo em presença da hipoplasia do coração esquerdo. Estes achados foram demonstrados principalmente por Cabrera e col.6 , Harada e cols.10, Niwa e cols.5, Lin e cols.8 e em nosso caso, nos quais incidentalmente atresia da valva atrioventricular esquerda esteve presente em todos. O ventrículo esquerdo era hipoplásico nos outros sete casos relatados com agenesia da valva aórtica 2-4,7-9, incluindo dois com dupla via de saída de ventrículo direito 2,3. No entanto, a insufi- ciência aórtica era de repercussão tal que contribuiu para a morte precoce, nos primeiros oito dias de vida, em 10 dos casos relatados 2-9. Apesar do desenvolvimento adequado do ventrículo esquerdo e da aorta ascendente, provocado nitidamente pela insuficiência aórtica, no caso por nós relatado, o quadro clínico era similar ao encontrado em neonatos com hipoplasia do coração esquerdo, no qual o sangue para a circulação coronária deriva de fluxo retrógrado proveniente da árvore arterial pulmonar e do canal arterial. Os estudos angiográfico e ecocardiográfico foram de grande valia na confirmação do diagnóstico da insuficiência aórtica, suspeitada clinicamente pelo nítido sopro sístolo-diastólico. A técnica de Norwood foi neste caso facilitada em vista do maior desenvolvimento da aorta ascendente. Desde que o ventrículo esquerdo parecia não contribuir na manutenção do débito sistêmico, pois recebia sangue retrogradamente a partir do canal arterial, decidiu-se exclui-lo da circulação, posicionando um remendo de pericárdio no anel aórtico. Assim, torna-se este o segundo caso relatado de agenesia da valva aórtica a sofrer uma intervenção cirúrgica. No entanto, a evolução não foi favorável devido à ocorrência de infarto do miocárdio durante a operação pela parada anóxica. O único sobrevivente, descrito por Harada e cols.10, submeteu-se à técnica de Norwood. É de interesse notar que todos os casos relatados na literatura são do sexo masculino, o que sugere fatores relacionados ao cromossoma X, como já havia sido enfatizado previamente 8. Agradecimentos À Dra. Vera D. Aiello pela avaliação anatomopatológica, à Dra. Andressa M. Soares pela análise ecocardiográfica, ao Dr. Luis Kajita pelo diagnóstico angiográfico e ao Dr. Munir Ebaid pela discussão clínica. Referências 1. 2. 3. 4. 5. Kirklin JW, Barratt-Boyes BG. Tetralogy of Fallot with absent pulmonary valve. In: Kirklin JW, Barratt-Boyes BG: Cardiac Surgery. 2nd ed. Churchill Livingstone: New York, 1993: 973-5. Towes WH, Lortscher RH, Kelminson LL. Double outlet right ventricle with absent aortic valve. Chest 1975; 68: 381-2. Bierman FZ, Yeh MN, Swersky S, Martin E, Wigger JH, Fox H. Absence of the aortic valve: Antenatal and postnatal two-dimensional and Doppler echocardiographic features. J Am Coll Cardiol 1984; 3: 833-7. Rossi MB, Ho SY, Tasker RC. Absent aortic valve leaflets. 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