debates Publicação destinada exclusivamente à classe médica PSIQUIATRIA HOJE Ano 2 . Nº6 . Nov/Dez de 2010 www.abp.org.br Redes Neurais e Psiquiatria Modelos e Metáforas Inspirados pela vida e motivados pela coragem, transformamos histórias. Shire, líder mundial na área de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, já chegou ao Brasil e em breve trará inovações para o tratamento do TDAH. Out/2010 Você faz parte dessa transformação. Serviço de atendimento ao consumidor 0800-7738880 www.shire.com.br Inspirados pela vida, motivados pela coragem. Editorial Opinião Debates Com esse número encerra-se o ciclo atual da Psiquiatria Hoje Debates. Na primeira década do século 21, o que mais se ouviu nas assembleias gerais de delegados da ABP foi a expressão ambivalente dos associados a respeito da Revista Brasileira de Psiquiatria - RBP. De um lado, os renovados elogios pelo grau de excelência atingido pelo órgão oficial da ABP e sua condição de liderança entre as publicações científicas sul-americanas. Na outra faixa, as repetidas reclamações sobre o fato de a ABP manter uma publicação em inglês que se dirige mais à pesquisa que a clínica. A RBP deve continuar na linha ascendente que hoje trilha, nas suas várias possibilidades que proporciona para publicação. Antônio Geraldo da Silva Editor Observava-se, então, um impasse de pronta solução. A diretoria da ABP viu-se entre dois fogos intensos: manter o nível da RBP e, ao mesmo tempo, satisfazer as demandas dos associados por uma publicação orientada para a prática clínica diária. O recurso dos suplementos da RBP, por monotemáticos, também não satisfazia a plenitude do desejado por nossos associados, apesar da sua excelência. Entre os compromissos assumidos por essa Diretoria consta o de prover a ABP com uma publicação ágil, informativa, atualizada e totalmente dedicada ao dia a dia do psiquiatra. Decidiu-se pelo mais óbvio e viável: transformar a PH Debates em uma revista científica. O formato anterior da PH Debates, com entrevistas, opiniões e relatos elaborados por convite, pode ser diluído nos vários meios de divulgação da ABP (Jornal Psiquiatra Hoje, ABP News, Clipping ABP e outros), sem que se perca o objetivo e a qualidade. Dessa forma, a partir do próximo número, sejam bem-vindos à ‘Debates em Psiquiatria’, publicação da ABP destinada aos associados e principalmente às suas contribuições. João Romildo Bueno Editor ‘Debates em Psiquiatria’ é uma revista clínica-científica que publicará artigos originais, revisões, atualizações, conferências clínicas, relato de casos clínicos e resenhas bibliográficas. Nas ‘Instruções aos Autores’, ficam definidas as exigências para aceitação de manuscrito, o mecanismo de revisão por pareceristas (peer review), as normas quanto ao formato do artigo e as regras para citações e referências bibliográfica. Acreditamos ter satisfeito as demandas dos associados, a quem cabe doravante manter o grau de excelência exigido e, acima de tudo, alimentar a ‘Debates em Psiquiatria’ com suas contribuições, sejam artigos, críticas ou sugestões. Com a palavra, os ASSOCIADOS. debate hoje | 3 Endereço: Av. Presidente Wilson, 164 - 9o andar CEP: 20030-020, Cidade: Rio de Janeiro - RJ e-mail: [email protected] Diretoria Executiva: Presidente Antônio Geraldo da Silva Vice-presidente Itiro Shirakawa 1º Secretário Luiz Illafont Coronel 2ª Secretária Maurício Leão 1º Tesoureiro João Romildo Bueno 2º Tesoureiro Alfredo Minervino Secretários Regionais: Norte: Paulo Leão - PA Nordeste: José Hamilton Maciel Silva Filho - SE Centro-Oeste: Salomão Rodrigues Filho - GO Sudeste: Marcos Alexandre Gebara Muraro - RJ Sul: Cláudio Meneghello Martins - RS Conselho Fiscal: Titulares: Emmanuel Fortes - AL Francisco Assumpção Júnior - SP Helio Lauar de Barros - MG Suplentes: Geder Ghros - SC Fausto Amarante - ES Sérgio Tamai - SP Editores Antônio Geraldo da Silva João Romildo Bueno Conselho Editorial Claudio Lyra Bastos Fernando Portela Câmara Guilherme Luiz Lopes Wazen Produção Editorial Assessora Comunicação www.assessoraonline.com.br Jornalista responsável: Carolina Fagnani, Redação: Gustavo Novo, Projeto gráfico: Angel Fragallo, Editoração e Capa: Bruno Grigoleto Impressão Milograph Gráfica e Editora Tiragem: 5.000 exemplares Publicidade ABP Endereço: Av. Presidente Wilson, 164 - 9o andar CEP: 20030-020, Cidade: Rio de Janeiro - RJ e-mail: [email protected] Simone Paes – 21 2199-7500 Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião da revista WEB índice Ano 2 . Nº6 . Nov/Dez de 2010 Capa [especial] Redes Neurais e Psiquiatria Modelos e Metáforas Artigo Claudio Lyra Bastos O Erro Diagnóstico na Prática Psiquiátrica pág.07 Artigo Fernando Portela Câmara Redes Neurais e Psiquiatria pág.16 A tecnologia permite, entre outros ganhos mais importantes para a medicina, que apreciemos imagens do corpo humano que se aproximam de verdadeiras obras de arte, pela beleza e harmonia. É o caso da imagem escolhida para a capa desta edição da revista Psiquiatria Hoje Debates, que ilustra o artigo de Fernando Portela Câmara sobre Redes Neurais. Um deleite à parte para a leitura que se segue. Artigo Guilherme Luiz Lopes Wazen Caos e Psiquiatria pág.26 debate hoje | 5 Claudio Lyra Bastos Instituto Fluminense de Saúde Mental, Universidade Federal Fluminense, Ministério Público do Rio de Janeiro Artigo O Erro Diagnóstico na Prática Psiquiátrica O Erro Diagnóstico na Prática Psiquiátrica Errare Humanum Est H á algum tempo, um velho amigo e colega médico pediu-me para ver a sua mãe, senhora de mais de noventa anos, para a qual haviam sido prescritos antidepressivos e ansiolíticos pelo geriatra. Ela era médica, extremamente inteligente e ativa, e agora se mostrava desanimada e recolhida. A entrevista logo mostrou que não havia perda cognitiva significativa nem inibição afetiva. Seu discurso era fluido, com discernimento e pragmatismo claros. O que transparecia era um esgotamento evidente da energia e da vitalidade. Disse, então, ao meu amigo que a sua mãe não estava de forma alguma deprimida, mas mostrava sinais de uma astenia com características orgânicas. Sugeri que se pesquisasse esta hipótese. Foi encaminhada então a um novo clínico, que fez diversas investigações e acabou por achar um tumor hepático, do qual ela infelizmente veio a falecer logo depois. Em outra ocasião, um outro colega me pediu para ver a sua tia, aparentemente vitimada por algum transtorno cognitivo. Quando fui visitá-la, observei que ela parecia alerta mas não me acompanhava com o olhar. Disse-lhe: “A sua tia não está fazendo um quadro demencial, ela está com alterações de atenção, provavelmente de origem metabólica.” Solicitei exames e logo verificamos uma hiponatremia, de natureza medicamentosa. Mais de uma vez recebi em consultório pessoas que me procuravam para tratar de uma suposta ansiedade, que o remédio não resolvia. Mais de uma vez tive que dizer: “A senhora não está ficando ansiosa, mas está com um quadro chamado acatisia, que provavelmente está sendo causado pelo próprio antidepressivo que lhe prescreveram. Aliás, não vejo razão alguma para que o tome.” Assim, não era a ansiedade que estava causando a inquietude, mas a inquietude que estava causando a ansiedade. O quadro inicial era apenas reativo, causado pelo isolamento e pela falta de atividades e objetivos. Distinguir bem os aspectos sensoperceptivos, cognitivos, afetivos e volitivos de cada quadro, relacionando-os, é essencial. Certa vez recebi um caso em que o paciente, já de certa idade, com um ar rígido e pouco expressivo, apresentava queixas somáticas diversas e relatava desânimo e insônia. Ele havia sido encaminhado por um clínico que já havia prescrito anteriormente um antidepressivo, a que o paciente atribuía expressiva melhora. Ao examiná-lo, percebi uma acentuada inibição psicomotora, muito desproporcional à profundidade de sua depressão. Após conversar com os familiares, tomei conhecimento de que ele escondia certos sintomas, como tremores, mantendo as mãos nos bolsos, e que seu estado de ânimo na verdade sempre fora aquele, fechado, pessimista e de pouca conversa. Acabei chegando ao diagnóstico de mal de Parkinson pelo exame psíquico, sem nem mesmo um exame neurológico sumário, avaliando a qualidade da sua depressão – reativa, na verdade – em contraste com a intensidade da sua sintomatologia psicomotora. O nexo entre a afetividade e a sua expressão psicomotora era a chave do problema. Poderia até haver sido um diagnóstico neurológico bastante óbvio, se ele não estivesse escondendo alguns sintomas. Devemos lembrar ainda que a melhora com o antidepressivo certamente não se devia aos seus efeitos terapêuticos, mas aos efeitos colaterais deste, a amitriptilina, um AD de ação fortemente anticolinérgica. Para o mal de Parkinson em fase inicial, tal ação pode ser bastante benéfica. Em outra ocasião, atendi uma paciente que me foi trazida após meses em tratamento psiquiátrico, em função de não falar “coisa com coisa”. Disse à família, após um exame simples e perfunctório: “Ela não está doida, está afásica.” Era um quadro típico de afasia de Wernicke, diagnosticada erroneamente como esquizofrenia. Casos assim não chegam a ser raridades; ao contrário, fazem parte da rotina dos consultórios. Grande parte das dificuldades na prática psiquiátrica se deve a erros diagnósticos e avaliações inadequadas. Bom, pode-se dizer, mas qual o problema? Afinal, todo mundo erra. Errare humanum est. A questão está na natureza do erro. Não sendo um clínico suficientemente capacitado, eu poderia, num caso de abdome agudo, confundir uma apendicite com um cisto de ovário ou uma colecistite. Ou, numa situação de dor na perna, tomar uma ciática por uma artrose. Mas eu sei do que se trata; apenas avaliei mal. E sei que, se chamar um especialista, ele dificilmente errará. Já em muitos casos psiquiátricos, como os que citei, isso não acontece. Os clínicos parecem não ter a menor ideia do problema, e muitos especialistas erram da mesma forma. Um outro exemplo, que chega a ter ares de um conto de Tchekov: assisti, certa vez, em um congresso de psiquiatria, a uma apresentação em que se discutia o caso de uma paciente em que altas doses de antidepressivos pareciam não obter os efeitos desejados, e diversas alternativas de combinações medicamentosas eram propostas. Desenhou-se um gráfico cartesiano das crises, debate hoje | 7 Artigo O Erro Diagnóstico na Prática Psiquiátrica o qual mostrava, a certa altura, um período de interrupção dos medicamentos e também do próprio problema. En passant, o autor disse que aquele intervalo saudável representava uma viagem turística que a paciente fizera – sozinha – às praias do nordeste. Ao retornar (para o marido e para o terapeuta), o transtorno de humor ressurgira imediatamente. Seria até cômico se não fosse trágico; se um caso clínico – beirando o ridículo – como este fosse uma questão de prova, qualquer estudante razoavelmente informado imediatamente contestaria o diagnóstico e o tratamento. No entanto, naquele auditório de congresso, a despropositada discussão sobre as combinações de medicamentos e os níveis plasmáticos de lítio prosseguiu calmamente, sem absolutamente nenhum questionamento. Em uma época em que a psicopatologia se viu relegada a um segundo plano, muitos estudantes de medicina aprenderam erroneamente que o diagnóstico psiquiátrico era feito por exclusão. Se não for nada aparentemente orgânico, deve ser algo psiquiátrico, e basta prescrever um desses novos antidepressivos cujas amostras grátis abarrotam as nossas gavetas. Os estudantes que se dedicam à psiquiatria usam outros métodos, não menos ineficazes: consultam tabelas e classificam os doentes pelo somatório de sintomas. Assim, um doente esquizofrênico é aquele que atende a tantos critérios para esquizofrenia. Recebo frequentemente no ambulatório pacientes já “diagnosticados” e muitas vezes já medicados apenas pelo fato de não haver sido encontrada nenhuma causa aparente para as suas queixas. Um trabalho publicado na revista “American Journal of Emergency Medicine” (Reeves & Kimble, 2000; 4: 390-393) revelava que, de 64 casos de emergências clínicas erroneamente internadas em unidades psiquiátricas, em todos eles (100%) houve falha no exame psíquico. O exame físico falho foi a segunda causa de erro, com 43,8%. Uma observação mais ampla revela que o problema de formação é mais genérico, e tem algo a ver com a burocratização e a massificação do ensino e da assistência em toda a medicina. As saladas de medicamentos que caracterizam a polifarmácia que vemos aplicada a torto e a direito por aí, com as mais variadas justificativas, não correspondem senão a essa ausência de direção no diagnóstico. O diagnóstico psiquiátrico vem sofrendo um claro processo de deterioração ao longo dos últimos anos, juntamente com o enorme espaço ocupado pelos manuais estatísticos, códigos, tabelas, escalas e protocolos. Este fenômeno parece ser mais específico na psiquiatria, já que nenhum clínico ou cirurgião se preocupa tanto com códigos de doenças, a não ser na hora de preencher atestados e apresentar faturas. Se os DSMs e os CIDs fossem apenas o que se propunham a ser, ou seja, sistemas classificatórios estritamente destinados a fins burocráticos e a facilitar a pesquisa quantitativa, proporcionando maior fidedignidade, até que seriam razoavelmente satisfatórios, apesar da pletora de itens. Não foi isso o que aconteceu, no entanto. Os DSMs III e IV foram rapidamente transformados em bíblias, elevados à categoria de verdadeiros manuais de psicopatologia, e deram origem a diversos textos do tipo “Psychiatry for Dummies”. Até livros infantis com um personagem chamado “Urso Bipolar” já existem. Apoiados na deterioração do papel do médico e na decadência do ensino, os manuais passaram a servir 10 | debate hoje aos propósitos políticos e econômicos do mundo globalizado e massificado que os criou. Como disse o grande pioneiro da neurologia inglesa do século XIX, John Hughlings Jackson, a clínica exige mais do que seguir protocolos ou computar listas de sintomas: “Alguém que tenha aprendido adequadamente os sintomas da hemorragia cerebral, da uremia etc. achará os problemas virados ao contrário quando chegar ao leito do doente. Os diversos tipos de casos parecem-se muito à beira do leito. A questão aí não é, por exemplo, ‘Dê-me os sintomas da hemorragia cerebral, da uremia, etc.’ ... A questão ao leito é ‘Aqui está um homem numa crise - o que há com ele?’ ... pois ao leito, um médico tem que ser original, tem que pensar por si mesmo.” Psiquiatria fenomenológica e cães medrosos Dizem, por vezes, alguns colegas psiquiatras que a psicopatologia não é mais ensinada, que ninguém mais descreve bem um caso clínico e que isso deve ser atribuído à pressa e à correria com que levamos as nossas vidas hoje em dia. Tabelas e códigos substituem belas peças de observação clínica e literatura psicopatológica. Esse lamento saudoso pelos bons tempos que não voltam mais embute uma ideia extremamente deletéria, além de falsa: a de que não há outra maneira, que é inevitável que checklists substituam a descrição fenomenológica, que seria quase um diletantismo intelectualizado e anacrônico. O propósito deste texto é frisar que não é assim, até mesmo porque não é esse o problema que nos aflige. Em nada nos interessam as vocações beletristas de nossos psiquiatras; pouco nos importa a qualidade literária dos seus exames psíquicos e menos ainda a qualidade filosófica de suas observações. O que queremos é estritamente a qualidade técnica dos seus diagnósticos, para que possam subsidiar estratégias terapêuticas racionais e coerentes. O problema com a qualidade técnica reside no fato de que esta não se adquire através de protocolos e cartilhas, assim como não decorre do estudo das Humanidades. Na verdade, até mesmo um simples tratador de animais pode mostrar mais qualidade fenomenológica em sua abordagem do que grande parte dos psiquiatras. Quando vemos na televisão um programa como “The Dog Whisperer” (O Encantador de Cães), em que César Millan desvenda e resolve os mais diversos problemas comportamentais dos cães e seus donos, desponta aos nossos olhos a absurda situação da psiquiatria atual. Ele entra na casa das pessoas e – antes de querer resolver o problema ou enquadrar o cão num diagnóstico – faz a observação do phainomenon em que se constitui a relação entre o cão e os donos da casa. Ele não traz soluções prontas, mas se coloca como uma antena que recebe e sintoniza todas as mensagens afetivas no ambiente. Procura ver toda a situação como o animal a vê: “Quem lidera esta alcateia? Qual o meu papel aqui?” Ao mesmo tempo, ele percebe como as pessoas da casa tratam o cão; geralmente a partir dos seus próprios desejos e conflitos, sem nada entender do que se passa entre o animal e a família. Claudio Lyra Bastos Instituto Fluminense de Saúde Mental, Universidade Federal Fluminense, Ministério Público do Rio de Janeiro “Veja, César, o meu cão é extremamente agressivo; olhe só como ele rosna e mostra os dentes.” “Não, minha senhora. O seu cão não é nada agressivo. O que ele se mostra mesmo é medroso. Ele fica apavorado com estranhos.” A prática de Millan torna evidente que nenhum modelo prévio dá conta da rede relacional que se forma em cada dupla cachorro-dono, que tem que ser compreendida fenomenologicamente, caso a caso e in loco. Em contraste, vemos muitos psiquiatras insistindo desesperadamente em preencher itens em tabelas e fazer listas de sintomas para verificar se atendem a tantos ou quantos critérios no CID ou DSM, independentemente de particularidades e circunstâncias, aprisionando suas mentes em cartilhas e catecismos. Nas minhas aulas, menciono sempre o Manual Merck de Veterinária, um livro de referência geral, para consulta rápida, onde estão descritos treze tipos diferentes de agressão nos cães, a saber: agressão por dominância, por medo, por comida, por dor, idiopática, maternal, entre animais, possessiva, por brincadeira, predatória, protetora, redirigida e territorial. Ou seja, os veterinários sabem que, para se estudar a agressividade do cão, é preciso primeiro compreender o seu sentido. Muitos dos nossos psiquiatras parecem achar que não. A formação de um psiquiatra – como a de qualquer outro médico – envolve pelo menos uma década, começando pelo mais difícil dos exames vestibulares, uma carga horária muito mais extensa que a de qualquer outro curso superior, internato, residência, especialização, trabalho intenso, responsabilidade pesada. No entanto vemos hoje em dia médicos sendo equiparados, quando não dirigidos, conduzidos e supervisionados por profissionais com uma formação muitíssimo menos significativa, quando não precária. Sem dúvida, existe algo errado com a nossa formação atual, ainda mais especialmente na psiquiatria. A abordagem fenomenológica em neurologia e psiquiatria A abordagem fenomenológica não é uma escola, nem uma corrente, nem uma teoria, nem um sistema explicativo, mas apenas uma atitude frente ao fenômeno humano. Assim, preparar os iniciantes para a compreensão do homem como um todo, privilegiando a abordagem clínica sobre todos os arcabouços teóricos pode ajudá-los a se tornarem bons psiquiatras sem que tenham antes que formar-se em literatura ou filosofia. É muito mais uma questão de atitude frente à clínica do que da formulação de frases bem feitas ou elegantes elucubrações metafísicas. Disse o psiquiatra francês Georges Lantéri-Laura que, se existe uma psiquiatria fenomenológica, esta não seria uma psiquiatria submetida à autoridade superior da fenomenologia, como numa revelação, já que a fenomenologia nada revela e não exerce qualquer autoridade. O que existe é uma atitude fenomenológica, que pode ser adotada em diversos domínios, tanto na filosofia, quanto na psiquiatria, na linguística, nas ciências econômicas etc. A psi- quiatria fenomenológica não consiste numa psiquiatria que procura aplicar ao seu domínio os resultados generais adquiridos por alguma ciência fenomenológica, mas numa psiquiatria edificada na atitude fenomenológica. Esta qualidade fenomenológica já se achava nos estudos de primatas como os de W. Köhler, com os chimpanzés, e mais tarde com os de Jane Goodall, que os acompanhou por 30 anos em Gombe, Tanzânia. Foi isso que permitiu a observação do insight cognitivo dos primatas e dos primórdios da formação de cultura nas sociedades animais complexas. De acordo com as constatações de P. Berner (1993), reduzir o método clínico a uma abordagem simplesmente semiológica elimina uma enorme quantidade de informação obtida através da atividade clínica perceptiva, ou seja, tudo aquilo que não é estritamente patológico na vida social e cultural do paciente é desprezado. Ressalta que já Falret, em 1864, havia destacado a importância da distinção entre sintomatologia superficial e profunda, e que Bleuler e Hoche frisaram que sintomas superficiais podem ter causas diversas e são, em conseqüência disto, altamente inespecíficos. Afirma Berner: “As classificações modernas acabaram por produzir detalhadas divisões na sintomatologia superficial, uma abordagem que Jaspers (1913) já havia denunciado que nos desviaria do caminho. ... Além disso, dado o limitado número e a falta de especificidade das terapias e formas de cuidar dos pacientes, dificilmente parece necessário apoiar-se em classificações baseadas em critérios operacionais. A abordagem tradicional, que consiste em esboçar exemplos típicos que destacam os pontos fundamentais e que determinam as atribuições de cada categoria, pode ser suficiente para a prática clínica.” No prefácio do livro Method in Madness, que trata dos aspectos cognitivos e neuropsicológicos de casos psiquiátricos, os autores dizem que, entre os seus propósitos, está o de “... trazer à vida a essência e o caráter da experiência e o comportamento do paciente, tantas vezes perdida nas “descrições acadêmicas” em terceira pessoa.” Assim, procuram descrever a “... a experiência do paciente real lutando para dar sentido às consequências da doença”. A reinclusão da consciência – e da intencionalidade (já que toda consciência é consciência de algo) – no pensamento científico é atualmente uma necessidade incontestável. Mas quando neurologistas como António Damásio (2000) propõem-se a fundamentar uma neurobiologia da consciência, baseiam-se sempre em casos específicos, não em escalas. Kurt Goldstein, Aleksandr Luria e Oliver Sacks descreveram seus casos clínicos neurológicos como Weltanschauungen particulares, como formas diferentes de sentir e viver, e não como meras deficiências sensoperceptivas, motoras ou integrativas. No seu próprio campo específico da neurologia, Goldstein (1942, p.69) já havia demonstrado, em seus estudos de pacientes com lesões cerebrais ocasionadas na guerra, que o comportamento do doente não se podia explicar nem pela soma de sintomas isolados nem pela constatação de um distúrbio básico original: “… muitos sintomas são expressões da alteração que o paciente como um todo sofre em função da doença e também expressão da personalidade alterada ao lidar com o problema e com as demandas que não pode mais satisfazer.” debate hoje | 11 Claudio Lyra Bastos Instituto Fluminense de Saúde Mental, Universidade Federal Fluminense, Ministério Público do Rio de Janeiro Artigo O Erro Diagnóstico na Prática Psiquiátrica Esta mesma forma fenomenológica de comprender as anormalidades neuropsicológicas e as alterações decorrentes das lesões cerebrais orientaram o trabalho de A. Luria, que em seu livro “The Mind of a Mnemonist”, uma obra-prima de estudo de caso clínico, observou: “Os conceitos básicos da psicologia clássica propõem uma precisa separação entre teorias sobre funções psíquicas específicas e teorias da estrutura da personalidade, sendo a implicação, aparentemente, que as características individuais da personalidade em pouco dependem da natureza dessas funções; que um indivíduo que demonstra notáveis peculiaridades de memória no laboratório pode não ser na vida diária diferente de qualquer outro. Mas é isto verdade? Será razoável pensar que a existência de uma memória figurativa extraordinariamente desenvolvida, de sinestesia, não teria qualquer efeito na estrutura da personalidade individual? Poderia uma pessoa que “vê” tudo; que não pode entender uma coisa a menos que uma impressão dela “escape” através de todos os seus órgãos dos sentidos; que precisa sentir um número de telefone na ponta de sua língua antes de poder lembrá-lo -- poderia ela desenvolver-se como as outras? Poder-se-ia dizer dele que as suas experiências de ir à escola, fazer amigos, escolher uma carreira foram muito semelhantes às das outras pessoas; mas o seu mundo interno, sua história de vida desenvolveram-se como as dos outros?” Concluindo Uma entrevista psiquiátrica nunca pode ser impessoal; envolve sempre um relacionamento, um contato interpessoal, sendo, portanto carregada de subjetividade. O que a experiência clínica demonstra diariamente é que o importante não é lutarmos contra essa subjetividade, mas aprendermos a usá-la bem, porque é o nosso principal instrumento de investigação. O diagnóstico psicopatológico fenomenológico é sempre global (holístico, como dizia o neurologista Kurt Goldstein), ou seja, envolve o total da personalidade e suas circunstâncias. Apesar de importante, a sintomatologia é secundária, uma vez que os mesmos quadros podem surgir com sintomas diferentes, enquanto quadros diferentes muitas vezes compartilham dos mesmos sintomas. Além disso, os sintomas secundários, em geral, destacam-se mais que os fundamentais. Por essa razão, é absolutamente necessária a compreensão das relações de sentido que faz o quadro clínico com a personalidade do paciente, assim como de seu meio familiar e cultural, para que se possa obter um diagnóstico psicopatológico realmente válido na clínica. De acordo com Parnas e Bovet, a epistemologia objetivista vem sofrendo uma crescente crítica de diversos campos científicos. Os modelos alternativos nos campos da neurociência (seleção neuronal), da inteligência artificial (conexionismo) e da psicologia do desenvolvimento (biodinâmica do desenvolvimento) convergem na compreensão dos organismos como sistemas auto-organizados. A distinção entre mente e corpo ou entre ambiente e organismo é uma questão de perspectiva observacional. Estes modelos das ciências empíricas são compatíveis com os princípios fundamentais da fenomenologia, com consequências para a pesquisa em psicopatologia, uma vez que os sintomas não podem ser vistos como manifestações desconectadas das disfunções cerebrais. Dizia Husserl que o naturalismo e o psicologismo empiricistas, 12 | debate hoje ao procurarem reduzir o psíquico – que é um fenômeno, não uma coisa – ao físico, eram enganos teóricos, por negarem a própria possibilidade de conhecimento (vemos isso nos debates atuais sobre a possibilidade de os computadores terem algum conhecimento real, uma verdadeira “inteligência artificial”). A consciência – que não é uma substância, mas uma atividade, que visa algo (intencionalidade) – ultrapassa o nível empírico, como condição a priori da possibilidade de conhecimento, transcendendo-o. Como esclarece Searle (1997), a subjetividade é fundamental para o conhecimento da mente como o seu fundamento ontológico, mas não epistêmico. Por essa razão, a objetividade científica não precisa ser substituída pelo “subjetivismo” do qual os cientificistas manifestam tanto pavor. A subjetividade está ontologicamente presente em todo o conhecimento. Tudo o que é observado na natureza precisa ter, por definição, algum aspecto subjetivo, que é deixado de lado na redução epistêmica, voltada para o estudo científico. Assim a luz pode ser reduzida (epistemicamente) a certa faixa de radiação eletromagnética, mas não deixa de ser percebida como luz pela consciência observante. Já essa própria consciência não pode ser ela mesma reduzida, sob a pena de não sobrar nada. Dentro do pragmatismo americano, essa linha de argumentação se opõe ao mecanicismo e guarda estreita relação com o pensamento fenomenológico, especialmente o de MerleauPonty. A entrevista é uma arte, mais do que uma técnica, no sentido em que exige do profissional um preparo para que possa ser usado como “instrumento” de si mesmo. Isso não significa que não possa ser ensinada e aprendida, mas sim que exige algo além do que é dado em aula ou do que se lê nos livros. É o elemento básico da prática clínica, que não deve ser vista como um complemento ao estudo teórico, mas como parte intrínseca dele mesmo. Contrariando a ordem lógica do processo pedagógico, na acumulação do conhecimento médico, são a patologia e terapêutica que nos ensinam sobre a normalidade fisiológica. Reiteramos que a abordagem fenomenológica não é uma corrente, já que não dispõe de nenhuma teoria sobre o funcionamento da mente, mas sim uma atitude, baseada na constatação de que o homem é essencialmente relacional e o único instrumento adequado para avaliar a sua intencionalidade é um outro ser humano. Assim, disposição do entrevistador deve ser eminentemente compreensiva e não determinista, buscando uma apreensão existencial das vivências do paciente em si mesmo, numa visão globalizante. Intencionalidade não se refere ao aspecto volitivo, mas significa que todo fenômeno mental tem um objeto. Toda consciência é consciência de algo. Este aspecto caracteriza os fenômenos mentais, por oposição aos fenômenos físicos. Assim, o mundo interno e o externo constituem um todo inseparável. Abordagens exclusivamente voltadas para o mundo interno (introspecção, interpretação) ou para o mundo externo (observação comportamental) são necessariamente falhas ou incompletas. O ser humano é uma criatura essencialmente relacional e, sob certo prisma, a psicopatologia pode ser vista como o estudo das formas disfuncionais de relação humana. Assim, o objetivo do exame é compreender que tipo de vínculos interpessoais o examinando estabelece em sua existência. O próprio entrevistador é o seu melhor instrumento de avaliação, e nada pode substituí-lo. Nin- Claudio Lyra Bastos Instituto Fluminense de Saúde Mental, Universidade Federal Fluminense, Ministério Público do Rio de Janeiro guém, por mais capacitado que seja, pode se propor a adivinhar o que se passa na mente de outra pessoa. Por outro lado, a observação psicopatológica não deve se assemelhar a uma investigação detetivesca. O que o observador pode, sim, é compreender de que forma a relação estabelecida com o entrevistado afeta os seus próprios sentimentos, a sua própria personalidade. Olhando para dentro, mais que para fora, torna-se possível vislumbrar algo do mundo vivencial do paciente. Um residente de psiquiatria, ao tentar aplicar rigorosamente uma escala de avaliação objetiva, percebendo que seu paciente frequentemente responde de forma diferente à mesma questão, feita novamente, pode tentar descobrir qual é a resposta “certa”. Mas se ele for curioso, pode também começar a testar o teste, e a se interrogar sobre a validade dele. Verá, então, que basta colocar a questão de outra maneira, usar outro tom de voz, e as respostas mudam. Se perguntar tudo de forma sempre igual, mecanicamente, com todos os pacientes, pode até haver certa uniformidade, mas qual o sentido dessas respostas? Este é o ponto-chave em que os problemas fundamentais da fenomenologia psiquiátrica começam a fazer sentido para o médico clínico, que atende gente todo o dia. Não é novidade que os sintomas secundários, mais superficiais, são os mais evidentes. Além disso, tudo aquilo que vai de encontro às normas sociais tende a ser valorizado no sentido patológico. Por razões como estas, a psicopatologia não é, nem jamais poderá ser, uma semiologia no sentido médico da palavra. Os sintomas só adquirem sentido quando contextualizados na personalidade. Deste modo, uma lista de mais três centenas de doenças psiquiátricas, como o DSM IV, não pode ter qualquer sentido clínico, pois está claramente confundindo as diferenças individuais e sociais com as manifestações clínicas em si mesmas, que, sendo limitantes, são também limitadas. Correlacionar tais listas de sintomas com supostas alterações de neurotransmissores – que nunca se sabe se são causa ou efeito – e um localizacionismo cerebral primário, esperando chegar assim às “verdadeiras causas” dos distúrbios psiquiátricos, é de uma ingenuidade que beira o ridículo. Nos exemplos colocados no início deste texto, fui chamado para avaliar pessoas idosas “deprimidas”, mas me vi frente a quadros de natureza obviamente orgânica, simplesmente porque os médicos que viram o caso anteriormente não sabiam diferenciar alterações do humor, da cognição ou do estado de consciência. De que adianta aplicar protocolos ou escalas se não se conhece o próprio objeto da medida? A psiquiatria é essencialmente prática, aristotélica. A teoria psiquiátrica é orientada para a aplicação e prática, numa eterna dialética do geral e do particular. Voltando a Parnas, a fenomenologia enfatiza o papel do corpo na constituição da intersubjetividade, ou seja, a apreensão do interior de outros estados mentais. Nós experimentamos similitude entre, por um lado, a nossa própria expressividade corporal como sendo associada com determinados estados cognitivos e emocionais, e, por outro lado, a expressividade corporal dos outros, como significando seus estados mentais internos. Este é um processo não inferencial que Merleau-Ponty chamou de “transferência do esquema corporal”, um entrelaçamento de motilidade (ação, execução e intenção), experiência, expressão e percepção, que surge muito cedo no desenvolvimento infantil. Assim, já em 1945, Merleau-Ponty não fugia à discussão no próprio nível psicofisiológico, aplicando a este uma perspectiva fenomenológica. Aliás, recentemente, foi o background fenomenológico do neurofisiologista Vittorio Gallese que ajudou o famoso cientista G. Rizzolatti e seus colegas da Universidade de Parma a descobrir os neurônios-espelho, uma ideia antevista por MerleauPonty. A sua atitude filosófica foi o elemento paradigmático que lhes permitiu entender como a percepção e a ação forma um processo unificado no cérebro (Iacoboni, 2009). Concluímos frisando que o problema com esta psiquiatria pretensamente “objetiva” de tabelas e protocolos não é o fato dela ser mecânica, seca ou literariamente empobrecida, mas sim o dela produzir doenças iatrogênicas, em função de ser falha, ineficaz e induzir ao erro, objetivamente falando. Dados objetivos simples como alterações da consciência e da atenção, não podem ser verificados “objetivamente”. O que se torna objetivo é o resultado, a conclusão, e não o processo em si. O objetivismo nada tem a ver com a objetividade, assim como a ciência nada tem a ver com o cientificismo. Referências: ! BERNER, P. The clinical approach in the search of causes : specificity or common sense? In: PICHOT, P. & REIN, W.The Clinical Approach in Psychiatry (L’Approche Clinique en Psychiatrie). Collection Les Empêcheurs de Penser en Rond. Le Plessis-Robinson, Synthélabo, 1993. ! DAMÁSIO, A. O Erro de Descartes: Emoção, Razão e Cérebro Humano (Descartes’ Error: Emotion, Reason and the Human Brain). 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Ele mostrou também que essas redes podiam se manter ativas mesmo que a fonte do estímulo seja removida, ao descobrir os neurônios internunciais (ou interneurônios), cuja função é a de retroalimentar a excitação em um circuito neural. Deste modo, a ideia seminal de Ramon y Cajal abriu caminho para o que hoje se confirmou: a aprendizagem é uma propriedade de redes neurais, um conjunto de neurônios seletivamente conectados e ativados em conjunto, cuja distribuição de sinapses forma um campo virtual de armazenamento de memória. Por exemplo, Yi Zuo e colaboradores (2009) mostraram que novas conexões entre neurônios começam a se formar logo após o aprendizado de uma nova tarefa. Os neurônios piramidais do córtex motor recebem sinais de outras regiões do cérebro envolvidas na memória motora e nos movimentos dos músculos através de espinhas dendríticas. Esses autores verificaram que o crescimento de novas espinhas dendríticas durante um novo aprendizado motor, era seguido pela eliminação seletiva de espinhas pré-existentes. Portanto, ocorre um processo de remodelagem por meio do qual as sinapses que se formam durante o aprendizado se consolidam, enquanto outras se perdem pela falta de uso. A aprendizagem motora tende a ser muito estável, por isso não esquecemos a andar de bicicleta após aprendermos. Claro está que o entendimento de como se formam memórias de longo prazo trará um grande progresso no tratamento de pacientes na recuperação habilidades motoras perdidas após acidentes ou um AVC. Donald O. Hebb resumiu seus trabalhos sobre a base neuronal da aprendizagem e a contribuição de autores anteriores em um memorável livro, ainda hoje bastante consultado (Hebb, 1949). Este livro foi e ainda é considerado, junto com A Origem das Espécies, de Darwin, como um dos dois mais importantes livros em Biologia. Hebb partiu da comprovação das observações de Lashley que, em 1929, concluiu que o substrato da memória e aprendizagem deveria estar amplamente distribuído no cérebro, e não localizado, como se pensava. Em seus estudos sobre a aprendizagem neuronal, Hebb chegou a conclusões importantes, organizadas em três postulados 16 | debate hoje neurobiológicos, que formam os princípios do conexionismo (resumidos na figura 1): 1 – Princípio de formação das conexões neurais. “Quando um axônio da célula A está próximo o bastante para excitar B, e repetidamente ou persistentemente a estimula, algum processo de crescimento ou alguma mudança metabólica ocorre em uma ou ambas as células, tal que a eficiência de A, como uma célula que excita B, aumenta” (Hebb, 1949). As Ciências Cognitivas e a Neurociência Computacional referem-se a este princípio como “regra de Hebb”, “sinapse de Hebb” ou “plasticidade sináptica”, que ficou demonstrado com a descoberta da potenciação de longo prazo (Bliss & Lømo, 1973) e do fenômeno kindling (Goddard et al, 1969; Goddard, 1980). A partir deste princípio, Trappenberg (2002) derivou um algoritmo de aprendizagem em que se ajustam os pesos das conexões em modelos de redes neurais artificiais (regra de Hebb), emulando a plasticidade sináptica (figura 2). 2 – Princípio das redes neurais. A base cerebral para as representações mentais são grupos de neurônios (cell-assembly) auto-organizados (redes neurais) que tendem a disparar ao mesmo tempo (ativação conjunta) devido à aprendizagem Hebbiana. O disparo de neurônios em uma rede pode persistir após o evento gatilho, e esta persistência é uma forma de memória. Alguns consideram esta proposta como a mais importante contribuição de Hebb. 3 – Principio da sequência de fase. “O pensamento é gerado pela ativação sequencial de conjuntos de redes neurais (cell assemblies)”. Nas palavas de Hebb (1949): “Toda estimulação particular, frequentemente repetida, levará a um lento desenvolvimento de uma rede neural (cell assembly), uma estrutura difusa que compreende células no córtex e diencéfalo (e talvez na ganglia basal do cérebro), capaz de atuar brevemente como um sistema fechado, favorecendo o disparo de outros sistemas semelhantes e comumente tendo uma facilitação motora específica. Uma série de tais eventos constitui uma “sequência de fase”, base do processo do pensamento. Cada ação de uma congregação deve ser despertada por uma congregação precedente, por um evento sensorial, ou – o que é mais comum – ambos. A facilitação de uma destas atividades para a próxima é o protótipo da ‘atenção’. A teoria é, evidentemente, uma forma de conexionismo… apesar dela não lidar com conexões diretas ente vias aferentes e eferentes, e não é uma psicologia estímulo-resposta (S-R), se R significar resposta muscular... A teoria não considera que apenas um neurônio ou via neural sejam essenciais para um hábito qualquer ou uma percepção”. Estes três postulados capturam os processos básicos sobre como o sistema nervoso organiza o comportamento. Posteriormente, esses Artigo Redes Neurais e Psiquiatria postulados foram verificados em muitos experimentos, por exemplo, nos experimentos de desenvolvimento da percepção (Hunt, 1979), privação sensorial (Zubek, 1969), auto-estimulação (Olds & Milner, 1954), imagens fixas na retina (Pritchard, Heron, & Hebb, 1960), modificação sináptica (Goddard, 1980), aprendizagem natural (McKelvie, 1987). A demonstração de que aprendizagem e memória é um mesmo fenômeno emergente de redes neurais, codificadas numa distribuição de sinapses que são ativadas conjuntamente quando parte desta rede é estimulada, deu origem a uma escola conexionista com importantes contribuições para as ciências cognitivas e psicopatologia. O termo conexionismo refere-se às conexões ou sinapses como o substrato da aprendizagem e memória, e também dos estados mentais. A célula neuronal não armazena símbolos como informações, eles estão fragmentados em bits de informação distribuídos nas sinapses (conexões) da rede, onde são simultaneamente processados em paralelo reconstruindo virtual e estatisticamente a memória. Em função disto, o conexionismo foi anteriormente conhecido como processamento paralelo distribuído. O conexionismo é um paradigma porque oferece uma solução para a eterna discussão entre os mentalistas, que defendem que o entendimento da mente não está ligado ao conhecimento do cérebro, e dos nervistas, que defendem ser a mente um produto da fisiologia cerebral. O conexionismo demonstra que os processos e estados mentais podem refletir uma propriedade emergente das conexões sinápticas, e que isto pode ser reproduzido em seus aspectos mais gerais em estruturas conectivas artificiais. Ideias pré-conexionistas já eram encontradas nos trabalhos do famoso neurologista John Hughlings Jackson, que em 1869 propôs que o cérebro funcionava como um sistema distribuído em diferentes níveis; William James (Princípios de Psicologia, 1878); Herbert Spencer (Princípios de Psicologia, 1872); e Sigmund Freud (Projeto para uma Psicologia Científica, 1893). Modelo conexionistas Tendo compreendido os princípios do conexionismo, podemos entender muitos fenômenos psicopatológicos a partir de modelos conexionistas e suas modificações. O paralelismo entre conexionismo, um modelo computacional, e organização celular do cérebro, envolve certo grau de realismo biológico, embora isto não seja necessário para aos modelos conexionistas. É precisamente este aspecto computacional que unifica, sob a linguagem conexionista, os campos da inteligência artificial, ciência cognitiva, psicologia, neurociências, filosofia da mente e psiquiatria. Os modelos conexionistas se desenvolveram a partir de redes neurais artificiais. Essas redes têm hoje larga aplicação em reconhecimento de padrões, classificações, regressões, etc. Elas são formadas por unidades elementares processadoras e conexões ajustáveis, que emulam neurônios e sinapses, respectivamente. Informações sobre essas redes e suas propriedades podem ser obtidas em Câmara (2004, 2005, 2006, 2009). Entretanto, as unidades de processamento e a forma das conexões podem variar de modelo a modelo, seja como neurônios e sinapses, seja como palavras e similaridades semânticas, porém o modelo mais comumente utilizado o das redes neurais artificiais, sendo bem menos usados os modelos baseados 18 | debate hoje em gramática recursiva. Um elemento importante nos modelos conexionistas de rede neural é o de ativação, um valor que cada unidade processadora possui e que representa a probabilidade dela gerar um “potencial de ação” ao receber um sinal de entrada, que é propagado para as demais unidades. O outro elemento importante são os pesos ou forças das conexões que são ajustados durante um aprendizado, repetindo a tarefa até realizarem com eficiência a função para a qual foram treinadas, por exemplo, reconhecimento de padrões. Estes ajustes são feitos à medida que o erro do resultado é conhecido, e assim sucessivamente até o desvio entre erro e acerto ser mínimo. Isto emula a plasticidade sináptica do sistema nervoso. As redes neurais aprendem pela experiência, ou seja, pela repetição, tentativa e erro. O termo conexionismo veio substituir a expressão processamento paralelo distribuído (PPD), que enfatizava a natureza paralela (isto é, em rede) do processamento neural e a natureza distribuída das representações neurais. O processamento em rede evoluiu do trabalho seminal de McCulloch e Pitts (1943), que mostraram que dois neurônios conectados podiam processar sentenças lógicas. O protótipo das primeiras redes neurais artificiais foi um simulador de retina formado por unidades denominadas “perceptrons”, mas este projeto foi inviabilizado quando se descobriu que os perceptrons eram incapazes de processar funções lógicas do tipo disjunção exclusiva. Contudo, o PDP Research Group, liderado por James L. McClelland e David E. Rumelhart, demonstrou que redes neurais contendo camadas intermediárias de neurônios entre as camadas de entrada e saída eram capazes de processar esta lógica e mais ainda um vasto conjunto de funções (McClelland et al, 1986; Rumelhart et al, 1986a). Este grupo estabeleceu o arcabouço matemático que permitiu aos pesquisadores operar modelos de PPD, e seu caráter inevitavelmente reducionista focaliza os processos cognitivos emergentes de disparos neurais e comunicação (sinapses) entre unidades neuronais. Um modelo alternativo ao PDP foi proposto na década de 1960 pelo linguista Sydney Lamb, que desenvolveu as chamadas redes relacionais para explicar a formação das representações simbólicas na linguagem. Redundância de redes neurais A distribuição da informação e o processamento em paralelo fazem com que a rede não perca informação mesmo que parte dela seja danificada. Isto explica porque perdemos muitos neurônios ao envelhecermos, mas não afetamos a capacidade cognitiva. No caso de perdas excessivas, há prejuízo da memória e habilidades adquiridas, mas o sistema pode recuperar boa parte do que perdeu mediante um novo treinamento não tão extenso quanto original. Isto nos mostra que nos casos iniciais de demência ou de prejuízo cognitivo por acidente ou AVC, o exercitamento da memória e das habilidades podem trazer resultados positivos. Como o cérebro humano, as redes neurais artificiais são muito adaptativas, revelando sua “plasticidade”. Isto pode ser compreendido a partir da seguinte experiência: uma rede de 10 neurônios é treinada para desempenhar uma determinada tarefa. Em seguida, Fernando Portela Câmara Prof. Associado da UFRJ, IMPPG | Coordenador do Depto de Informática da ABP e do Depto. de Neurociência Computacional da APERJ elimina-se um dos neurônios, restando nove na rede. Esta, agora, pode ou não experimentar um déficit funcional. Neste último caso a rede só precisará ser re-treinada e isto consome um tempo bem menor que o originalmente gasto para treiná-la. No exemplo de rede em questão, com dez unidades, esta recuperação é possível até o oitavo neurônio ser removido. Rede neural canônica Muitas redes podem ser conceitualizadas considerando cada unidade como uma hipótese (input) e cada conexão como um compromisso entre hipóteses (Rumelhart et al, 1986b). Uma variação da regra de Hebb estabelece que, se as características A e B ocorrem com frequência, então a conexão entre as duas será positiva; por outro lado, se A exclui B ou vice-versa, então a conexão será negativa (Figura 3). Quando esta rede passa a funcionar, ele refaz suas conexões atingindo um estado local ótimo, ou seja, a condição na qual a maior parte possível dos compromissos é satisfeita. Este estado constitui a memória da rede. Esta dinâmica pode ser visualizada como uma paisagem fluida em que morros aparecem e desaparecem à medida que os inputs vão sendo processados, até aparecer um pico máximo que representa o máximo de satisfação de compromisso (conectividade de hipóteses), que é o ajustamento da rede para aquele input (dizemos que o sistema escala o morro mais alto da paisagem). Isto prossegue para cada input e a paisagem final será definida por um conjunto de máximos na paisagem interpretativa. Os picos serão as melhores interpretações possíveis, a extensão dos vales ao redor de um pico é a probabilidade de achar este pico, e a altura do pico é o grau de compromisso da rede para este pico particular. Este modelo conceitual nos ajuda a compreender os constructos cognitivos conhecidos como “esquemas”, definidos como protótipos de abstrações desenvolvidos a partir de experiências passadas que guiam a organização de novas informações. Os esquemas permitem um rápido processamento de informação, mas também podem levar a equívocos típicos. Da mesma forma, uma rede neural treinada movimenta-se rapidamente para uma paisagem previamente adquirida, permitindo um rápido processamento da informação, porém isto pode resultar em certas distorções, isto é, alguns poucos inputs podem gerar ambiguidade na resposta, embora a maioria funcione precisamente e sem ambiguidade. Consideremos, por exemplo, uma mulher que sofreu abuso sexual na infância e desenvolveu um esquema de desconfiança diante de figuras de autoridade, ou em perceber situações neutras como ameaçadoras. O paralelismo com a rede neural nos dá um modelo de explicação de como esses vieses são construídos, sem ter de lidar com regras cognitivas complicadas. Os modelos convencionais de esquemas são “top-down”, isto é, pressupõem um mecanismo cognitivo que controla os diversos setores da vida consciente; já os modelos de redes neurais são “bottom-up”, isto é, os fenômenos emergem espontaneamente da interação entre as partes do sistema. O modelo de redes neurais possibilita incorporar informações biológicas do sistema nervoso que ajudam a racionalizar, por exemplo, o uso de esquemas terapêuticos e a lidar com situações típicas tais como os transtornos de personalidade de forma mais pragmática. Disfunções de redes e psicopatologia A sobrecarga de informação leva uma rede neural a exibir padrões de alucinações. Isto acontece quando reduzimos o tamanho de uma rede neural e sua capacidade de armazenamento simulando o processo de poda neuronal (Hoffman, 1992): a sobrecarga de memória causa distorções dos contornos de energia do sistema, tal que as gestalts antes configuradas passam a apresentar distorções, e o conteúdo de informação armazenada se altera e deforma. Isto se deve à formação de novo picos, que Hoffman (1992, 2001) denominou de “parasitas”, formados pela fusão de picos preexistentes na paisagem computacional, afetando os compromissos. Esses parasitas atraem quase todos os inputs que entram na rede e servem como modelo para as alucinações de vozes e outros sintomas maiores da esquizofrenia. Eles criam uma espécie de buraco negro que distorce o curso do pensamento, atraindo para si os inputs e, assim, distorcendo o processamento da informação que leva ao ato cognitivo. Outro processo importante nas redes que pode nos ajudar a entender certos aspectos da neuroquímica da aprendizagem é o do super-treinamento da rede. Durante a fase de aprendizagem de uma rede neural a generalização da ativação não deve ir até o fim, pois a rede não conseguiria distinguir os diferentes padrões, generalizado todos a um só resultado (dizemos que uma rede nesse estado está “super-treinada”). Este processo nos permite inferir sobre o processo da aprendizagem e memória cerebral. Já algum tempo sabe-se que a acetilcolina (Ac) participa deste processo. Este neurotransmissor é produzido por um pequeno número de células agrupadas no núcleo basal de Meynert, e daí ele se espalha por quase todo o cérebro através de finas fibras que alcançam o córtex. Na doença de Alzheimer, a acetilcolina cerebral diminui, o que aumenta a excitabilidade das vias glutamaérgicas. Sabemos que a Ac previne a avalanche de modificações sinápticas, e como ela diminui, a excitação cortical (vias glutamaérgicas) predomina e isto leva a duas consequências. A primeira é o aumento da excitabilidade (normalmente freada pela Ac), isto é, de ativação neuronal na presença de qualquer input. Deste modo, qualquer aprendizagem nova leva a mudanças desejadas e indesejadas nas sinapses, interferindo na eficiência da aprendizagem. A segunda decorre desta excitabilidade aumentada que é tóxica para os próprios neurônios glutamaérgicos, levando à sua destruição, especialmente na região do hipocampo, o principal foco das lesões no Alzheimer. Estes são alguns dos aspectos psicopatológicos que o modelo conexionista permite abordar de forma produtiva. Mais informações pode ser obtidas em Câmara (2005, 2006, 2009). Epílogo A mudança de um modelo predominantemente psicodinâmico para um modelo cognitivista de abordagem neurocomputacional, trouxe importantes avanços na compreensão e racionalização do tratamento de muitos transtornos mentais. Isto não significa reduzir a psicopatologia a computação paralela distribuída, mas em estabelecer marcos conceituais que facilitam descobertas e insights debate hoje | 19 Fernando Portela Câmara Prof. Associado da UFRJ, IMPPG | Coordenador do Depto de Informática da ABP e do Depto. de Neurociência Computacional da APERJ Artigo Redes Neurais e Psiquiatria importantes sobre processos e desenvolvimentos anormais da mente. A funcionalidade dos modelos conexionistas nos permite ainda inferir proveitosamente nas situações em que a experimentação apresenta aspectos éticos inaceitáveis ou expõe o paciente a riscos desnecessários. Portanto, o conexionismo, seja através de redes neurais artificiais, canônicas, recursivas ou probabilísticas, revitaliza a psicopatologia e faz avançar a psiquiatria. Figura 1 – (A) Ilustração da regra de Hebb. O neurônio A quando estimulado dispara o neurônio B e a repetição deste processo reforça a conexão entre eles criando uma via neural; (B) Ilustração de uma rede neural formada a partir de conexões preferenciais mediante a regra de Hebb. Em vermelho os neurônios que são ativados conjuntamente e que formam uma rede; (C) Ilustração de uma sequência de fases. Redes neurais se ativam seqüencialmente para gerar um ato psíquico e estão espalhadas por diversas regiões do cérebro. Referências: ! Bliss T, Lømo T. Long-lasting potentiation of synaptic transmission in the dentate area of the anaesthetized rabbit following stimulation of the perforant path. J Physiol 1973; 232: 331–56. ! Câmara, FP. 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A rede é representada como um espaço de interpretações que conecta hipóteses (ou argumentos) sobre o dados (inputs) do ambiente, e então conecta aquelas que se mostraram mais apropriadas (representadas por traços de ligação) à adaptação (ou resposta, output) no ambiente. O símbolo Wij representa o valor heurístico (“peso” ou “força sináptica”) da relação entre as hipóteses i e j. ANUNCIE NO JORNAL PSIQUIATRIA HOJE Psiquiatria Hoje "OP999***t ** Edição 6t 0VUVCSP/P WFNCSPF% F[F Agende-se NCSPEF 1VCMJDBÎÍP EFTUJO KONDA PROD UÇÕE S Confira a pro gramação dos da psiquiatri próximos eve a. | P. 16 ntos A Associação Brasileira de Psiquiatria ia oferece a empresas e instituições es diversas a oportunidade de publici-idade no Psiquiatria Hoje, jornal direecionado aos associados da ABP que e traz informações imprescindíveis sobre a especialidade. Aproxime-se de um público formador de opinião por meio da publicação de maior credibilidade do país na área da psiquiatria. Nova diretori Brasileira de a da Associação Psiquiatria é eleita BEBFYDMVTJWB Na Mídia NFOUFË ËDDMB MBTT TTFFN NÏÏEJ EJDDBB ABP defend e prensa. Confir os interesses da especia lidade na ima. | P. 03 O que espera r saúde no novo da governo Pesquisa com pr desassistência ova na saúde Emmanuel Fortes, vice-p residente do CFM e Dados do IBG membro do Conselho E confirmam Fiscal da AB dução de leit a reP, os em todo o em que avalia concede entrevista qu país. Enanto isso, o as perspectiv Minis o governo de as Dilma Rouse para defende tratar-se tério da Saúde ff fende a rev de resultado isão do planej e de- uma estratégia de em am que até ago ra tem adotad ento, pulação. Associ benefício da poação Brasile o tégias equivo ira cadas e distan estra- Psiquiatria reb ate os argum de tes dos e psiquiatras. aponta o ret entos | P. 10 rocesso. | P. 08 e 09 A nova direto ria da ABP se elege mi com 2/3 do s votos e se ssos assumido compromete com s na campan além da def uma defesa ha: esa intransig intransigente da psi ent psiquiatras quiatria. Já e da psiqu e dos no dia ma seguinte, o iatria, a ior participa presidente Antônio ção Geraldo da do s associados na gestão Silva deu iní Evento da instituiçã cio aos me trabalhos e o. Em e FE organizado pelo CFM, à tomada de nos de dois NAM dis AMB meses, avanço dências, pau provi- são tado pelos s já dos médicos, cutiu temas de interesse Em 2011, a Associaçã percebidos comproem o entre os qua div ersas áreas. cação do is a recertifi- prática a proposta de colocará em Confira. | P. título 04 e 05 me da ordem de especialista, o exa- dos associados com inicse aproximar Fórum Nacio Entidades M nal de édicas ABP integra discussão sobr e crack de atendime e os modelos de gestão nto em saúde. | P. 06 Representan tes da Associ ação Aspectos Mé dicos e Sociais participam do I Seminá rio Nacional pelo CFM, Relacionado sob e reforçam s ao Uso do a im Crack, organi re ABP esta políticas de bel combate e tra portância da inserção da especialid zado (Sociedade ece parceria com a SPPSM tamento da ade nas droga. | P. 07 Portuguesa de Psi e Saú Programe-se pa novembro de ra o próximo CBP: em 2011, no Rio de Janeiro Convidamos você para gar antir sua presen ça na XXIX edição do Co gresso Brasile niro de dade Maravilho Psiquiatria. A Cisa do para sediar já está se preparanum grande con “Vamos fazer gresso. uma programa ção para Internaciona lização ABP mais pe associado rto do iativas como o PEC Presen chegando a cial e o ABP Itinerante, tod talhes sobre o o Brasil. Confira deessas iniciati vas. | P. 14 participar dos quiatria congresso de Menta fícios diverso l), que irá gerar bene- com o mesmo valor de s da SPPSM s aos associad inscrição que os associados os, como da entidade Saiba mais. portuguesa. | P. 14 unir a pesqui sa básica à prá tica clínica diária. For mamos uma Comissão Científica (Co cien) capaz de as expectativ atender as de 6 mil partici tes”, adianta Antônio Gerald pano da Silva, presidente da ABP.| P. 16 Empresas de setores diversos interessadas em aliar sua imagem ao jornal Psiquiatria Hoje podem entrar em contato pelo e-mail [email protected] Artigo Caos e Psiquiatria Caos e Psiquiatria Necessidade de um novo modelo para o adoecimento mental P or volta de 1925, Ludwig von Bertalanffy, não satisfeito com a abordagem mecanicista da Biologia, propôs uma concepção organicista (“biologia organísmica”) com ênfase na consideração do organismo como um conjunto ou sistema. Os sistemas biológicos, sejam células, organismos ou populações, apresentam a característica comum de serem formados de muitas partes em contínua interação. É fundamental que essas partes trabalhem conjuntamente, de modo a produzirem comportamentos coerentes, mas esses comportamentos não são deduzidos dos comportamentos das partes do organismo. Em terminologia dinâmica, um organismo é um sistema não-linear, assim como a quase totalidade dos sistemas existentes. A dinâmica não linear dos sistemas complexos é o que John Gleick (1990) popularizou como o nome de Teoria do Caos, que estuda o comportamento aparentemente aleatório, ou seja, imprevisível e instável, de sistemas que, apesar disto, são determinísticos, isto é, regidos por leis físicas. As leis da física, em sua formulação tradicional, descrevem um mundo idealizado, reversível e estável, e não o mundo instável e evolutivo em que vivemos. Ilya Prigogine deixa claro em seu livro “O fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza” que “...esse ponto de vista força-nos a reconsiderar a validade das leis fundamentais, clássicas e quânticas. Em primeiro lugar, nossa recusa da banalização da irreversibilidade funda-se no fato de que, mesmo na física, a irreversibilidade não pode mais ser associada a um aumento da desordem. Longe do equilíbrio, o papel construtivo da irreversibilidade torna-se ainda mais impressionante... é graças aos processos irreversíveis associados à flecha do tempo que a natureza realiza suas estruturas mais delicadas e mais complexas. A vida só é possível longe do equilíbrio.” (Prigogine, 1996). Assim, a dinâmica da vida deixa seus rastros através do comportamento imprevisível, complexo, não linear, dentro dos limites do caos. O uso transdisciplinar da dinâmica não linear e da teoria da complexidade abriu uma nova perspectiva de análise em medicina. Uma das contribuições deste ramo novo da ciência à medicina foi o conceito de enfermidade dinâmica (Mackey e Milton, 1987; Goldberger, 1990, 1991). Esses e outros autores demonstraram objetivamente como a fisiologia de determinados processos pode se modificar dinamicamente levando a doenças graves (Pezard et al, 1996; Schiff et al., 1994; Yeragani et al., 2002; Paulus e Braff, 2002; Câmara, 2008). Também é possível estabelecer modelos razoáveis para doenças mentais, onde falta a demonstração de alterações materiais ou marcadores biológicos, e cuja complexidade fisiológica do cérebro não nos permite ainda obter um conhecimento suficiente para inferir sobre mecanismos. Entretanto, tais modelos nos permitem insights teóricos e práticos sobre origem e tratamento destas doenças (Câmara, 2008). 26 | debate hoje Os anos 1990 foram especialmente férteis para a psiquiatria, pois a incorporação de paradigmas da dinâmica não linear (Freeman, 1992; Mandell e Selz, 1992) modificou, de modo ainda não totalmente percebido pela maioria dos psiquiatras, o paradigma da fisiologia das sinapses para a fisiologia das vias implicadas nos sintomas, atual enfoque das pesquisas psicofarmacológicas (Câmara, 2008). Para entendermos melhor essa dinâmica, precisamos explicitar o conceito de sistema. É conhecido que os sistemas podem ser classificados em abertos, fechados e isolados, entendendo-se por sistema aberto aquele que troca matéria e energia com o meio ambiente através da fronteira que o delimita. Os sistemas abertos, como regra geral, são parte de sistemas maiores estando em íntimo contato com esse sistema maior. Fechado é o sistema que troca apenas energia, mantendo a matéria constante. Os sistemas fechados tipicamente também são parte de sistemas maiores, mas sem íntimo contato com estes. Por fim, isolado é o sistema que não troca nem matéria nem energia com o ambiente. Embora possam ser parte de sistemas maiores, eles não se comunicam com o exterior de modo algum. Também podemos falar em sistemas simples ou complexos, onde os sistemas simples seriam aqueles regidos por comportamento linear gerando, consequentemente, ordem de nível simples. Os sistemas complexos seriam aqueles regidos por comportamento não linear. A interação de sistemas complexos criaria o ambiente da Complexidade, cujo comportamento seria explicado pela Teoria do Caos. A maioria dos sistemas existentes na natureza é do tipo dinâmico (muda ao longo do tempo), com elevado componente determinístico de caráter não-linear e com dependência sensível das condições iniciais. Isto é Caos! O organismo humano, indubitavelmente, é um sistema com todas as características acima mencionadas. Embora essa mudança de paradigma venha mostrando sua emergência, grande parte das pesquisas em Psiquiatria ainda se prendem ao modelo reducionista e fragmentado, concentrado preferencialmente em uma abordagem linear na qual os fenômenos quase sempre são tratados de forma estática (análise em um determinado ponto, transversal) e os efeitos são considerados diretamente proporcionais à causa, sendo pouco valorizado o comportamento dinâmico e não linear. Assim, apenas reafirmamos a famosa Navalha de Occam, onde “as melhores teorias são as mais simples” ou “a natureza é econômica… sempre quando houver dois caminhos que levam à verdade, vale o mais simples.”. Mas, nas situações clínicas, encontramos uma assombrosa variabilidade nas condições finais, com sensível dependência da condição inicial. Assim, pequenas disfunções em órgãos isolados levam paulatinamente a certos graus de disfunção à distância que progressivamente vão se associando e, de acordo com variáveis dependentes ou não de cada indivíduo, culminam às vezes em situa- Guilherme Luiz Lopes Wazen Preceptor do ambulatório de Transtornos do Humor, Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica, Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (FAMERP). Membro do NUTECC (Núcleo Transdisciplinar para Estudo do Caos e da Complexidade) ções catastróficas como a morte. Isto explicaria porque os clínicos estão cada vez mais cientes da crescente onda de interesse a respeito da dinâmica não-linear. A psiquiatria ainda não conseguiu se desconectar da atomização e da causalidade linear do adoecer psíquico para o cérebro, mantendo sua posição como sistema fechado. Kendler nos alerta especificamente sobre esse ponto: “Transtornos psiquiátricos são, pela sua natureza, fenômenos complexos em diferentes níveis. Nós precisamos manter nossas cabeças abertas sobre a sua imensa complexidade e perceber, com humildade, que a sua plena compreensão irá requerer a integração rigorosa de múltiplas disciplinas e perspectivas” (Kendler KS, 2005). Podemos expandir nossa visão de dinâmica não linear dentro da psiquiatria para as mais diversas condições clínicas. Trago como exemplos a questão dos Transtornos do Humor em seu diagnóstico e curso clínico, assim como o comportamento cardíaco dos pacientes sob essa condição. Apesar da distinção dos quadros unipolares e bipolares pelo DSM-IV-TR e pela CID-10 em entidades distintas, a discussão entre os partidários de um e de outro modelo tem sido reativada, na medida em que o conceito do espectro bipolar vem se ampliando (Del-Porto et al, 2009). Assim como, no âmbito classificatório desta enfermidade, a busca pela sua etiopatogenia ainda é palco de grandes debates. Estudos têm demonstrado que a regulação do humor envolve a interação de múltiplos sistemas e que a maioria das drogas efetivas provavelmente não atua isoladamente sobre um sistema particular de neurotransmissão, mas modula o balanço funcional entre os diversos sistemas interagentes (Chen et al, 1999). Interações complexas entre sistemas neurais semiindependentes, funcionando harmonicamente, são necessárias para a manutenção do apetite, do sono, da estabilização do peso e do interesse na atividade sexual, funções neurovegetativas geralmente alteradas nos transtornos de humor (Davidson, 2002). Apesar deste enfoque dinâmico e complexo, a busca por uma explicação nas doenças médicas ainda é o da causa específica, estabelecidos a partir dos experimentos de Pasteur (teoria dos germes) e Virchow (teoria das lesões) no séc. XIX (Câmara, 2008). Usamos sistemas classificatórios baseados em condições lineares, mas já foi demonstrado que o aparecimento dos sintomas segue um padrão não linear (Pincus, 2003). Dessa forma, avaliar as flutuações do humor através das medidas não lineares nos leva a um salto qualitativo muito maior em relação a cada paciente que tratamos. Quem nunca se deparou com pacientes bipolares que ciclam o humor de forma “incompreensível”, mesmo sob o uso correto das medicações? E quando um de nossos pacientes responde clinicamente bem ao lítio, enquanto o outro, com o mesmo diagnóstico, ao ácido valpróico? Assim, o uso das ferramentas não lineares nos facilitaria desenhar de forma mais realista o padrão de funcionamento de cada paciente, assim como prever uma melhor resposta para a medicação “X” ou “Y”.(Kathendral et al, 2007; Pincus, 2003). Os defensores de uma mudança de paradigma para as futuras versões do DSM e da CID acreditam que a descoberta de marcadores biológicos e do funcionamento cerebral “seria apenas questão de tempo”. No entanto, há razões para ceticismo. Lesões no sistema nervoso central (ex. tumor) podem produzir os mais variados sintomas psiquiátricos. A doença de Huntington apresenta-se com sintomas psicóticos em alguns indivíduos, mas em sua grande maioria apenas com distúrbios do movimento e, eventualmente, quadro demencial. A complexidade do cérebro humano e as variações da relação de cada estrutura e função demonstram que a relação entre processos biológicos básicos e sinais e sintomas psiquiátricos vão muito além da causalidade linear. Somente uma abordagem longe desta simplicidade e que consiga expandir nossos conceitos etiológicos para modelos desordenados e irregulares é que poderá fornecer um caminho mais seguro para nossos diagnósticos (Kendler e First, 2010). Precisamos visualizar o adoecer psíquico de forma não linear, o sistema nervoso como um sistema aberto e complexo, totalmente dependente das condições iniciais. A teoria do Caos nos oferece isso. Sobre a questão da ciclicidade do humor, Kraepelin foi de encontro às definições de caos na classificação da doença maníaco-depressiva dizendo “Eu acho que estou convencido disso... esforços por uma classificação da doença terão que destrinchar a irregularidade desta própria. O tipo, a duração e os intervalos das crises para cada caso variam, de forma que sempre devemos considerar novas formas para cada caso.”; e mais adiante: “...nenhum limite definitivo pode ser traçado entre as formas rigorosamente periódicas e aquelas com um curso irregular. Com especial significado é o fato que a periodicidade existe em muitos casos em apenas um determinado momento do curso da doença... ”O paradigma predominante de organização conceitual dos fenômenos afetivos em termos de periodicidade não consegue captar este curso clínico flutuante e irregular. Novamente, o uso das ferramentas do caos mostram-se como ótimas opções para quantificar tal situação. (Woyshville et al, 1999) Inúmeras são as pesquisas integrando fatores psicossociais e biológicos no estudo da fisiopatologia dos transtornos do humor (Akiskal e McKinney, 1973). Recentemente tem se demonstrado que o estresse precoce pode levar a alterações do eixo Hipotálamo-Hipófise-Adrenal, sendo estas alterações primárias consideradas como fator de risco para a ocorrência de quadros depressivos na vida adulta (Mello et al, 2003). Eventos estressores podem levar a alterações da vida diária, consideradas como importantes pistas para a sincronização dos ritmos biológicos. A perda destas pistas pode alterar os ritmos sociais, consequentemente, os ritmos biológicos que, por sua vez, podem desencadear episódios afetivos em indivíduos vulneráveis (Meyer e Maier, 2006). Temos aqui um exemplo claro de flutuação do sistema, de característica probabilística e irreversível. A fenomenologia dos quadros do humor apresentam ainda como característica fundamental as relações entre características da personalidade e sintomas afetivos. A personalidade pode ser vista como resultado da interação entre experiências vitais, ambiente familiar e temperamento (Clonninger et al, 1998). Não obstante a essas pesquisas, diversas medidas psicofisiológicas mostram-se úteis como indicadores de um estado afetivo. Existe, de fato, evidências sugerindo o envolvimento do sistema nervoso autonômico nos transtornos do humor, e uma forma de computar o balanço autonômico é através da análise da variabilidade da frequência cardíaca (VFC) (Todder et al, 2005). Mas por que esta predileção pelo coração? A medida da VFC tem sido associada a uma variada gama de processos, incluindo a atenção e regulação afetiva, assim como o comportamento social (Thayer e Brosschot, 2005; Porges, 2007). Pesquisas prévias indicam que a exposição a estressores moderados, falta de previsibilidade ambiental e social em ratos levam a mudanças de comportamento, da frequência de batimento cardíaco basal e a distúrbios do ritmo cardíaco, reatividade cardiovascular exagerada a estressores novos e ao rompimento do equilíbrio autonômico (Porges, 2007). A função cardiovascular é determinada debate hoje | 27 Guilherme Luiz Lopes Wazen Preceptor do ambulatório de Transtornos do Humor, Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica, Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (FAMERP). Membro do NUTECC (Núcleo Transdisciplinar para Estudo do Caos e da Complexidade) Artigo Caos e Psiquiatria por vários fatores do sistema nervoso central e periférico, incluindo o equilíbrio das influências simpáticas e parassimpáticas, e estas funções do sistema nervoso autonômico podem variar entre as espécies (Grippo et al, 2007). Neste caso, observamos que o tônus autonômico auxilia o organismo a enfrentar o desafio de um ambiente em constante mutação. De uma perspectiva sistêmica, processos de inibição simpática ou parassimpática podem ser vistos como circuitos de feedback negativo que permitam a interrupção do comportamento em curso e redistribuição de recursos para outras tarefas. Quando os mecanismos de feedback negativo estão comprometidos, loops de feedback positivo podem se desenvolver como resultado do descontrole inibitório. Estes circuitos positivos podem ter consequências desastrosas, promovendo a hipervigilância, perseverança e ativação contínua deste sistema, limitando, assim, a disponibilidade de recursos para outros processos. Tal estado do organismo pode fornecer um substrato patogênico crônico de processos psicológicos e emocionais, com impacto negativo à saúde. Mais uma vez notamos o caráter flutuante, obrigando o sistema nervoso central a ajustar-se compensatoriamente. Estas zonas de flutuação podem distorcer, irreversivelmente, o funcionamento cerebral, aumentar sua vulnerabilidade para novas recorrências e limitar a resposta terapêutica. Através da observação do comportamento cardíaco por meio de métodos não lineares, já foi encontrada uma relação entre a presença do Transtorno Depressivo Maior e um aumento da atividade simpática como disfunção autonômica (Koschke et al, 2009) (Nashoni et al, 2004). Tal comportamento com diminuição da complexidade se assemelhou ao de pacientes cardíacos transplantados (Nahshoni et al, 2004). Mesmo usando-se somente técnicas lineares, em pacientes com Trantorno Depressivo Maior também foi demonstrado um decréscimo nos parâmetros da variabilidade da frequência cardíaca , sugerindo uma redução da atividade cardiovagal e/ou um aumento da atividade cardiovascular simpática (Angelink et al, 2002). Uma análise em pacientes eutímicos com Transtorno Bipolar do Humor também demonstrou uma diminuição significativa da variabilidade da frequência cardíaca, independentemente do tratamento farmacológico empregado (Cohen et al, 2003). Assim, o desbalanço autonômico, representado pela hiperatividade simpática dos circuitos neurais, que estão normalmente sob controle inibitório tônico vagal através do córtex pré-frontal, podem nos delinear por novos insights sobre os mecanismos fisiopatológicos dos transtornos do humor (Thayer e Brosschot, 2005). Apesar de alguns estudos de grande importância existentes na literatura, a grande maioria usou análises de caráter linear, com enfoque apenas nos episódios depressivos. Assim, estudos prospectivos de alterações cardiovasculares em pacientes tanto em mania quanto em depressão, ou seja, abordando ambos os modelos unipolares e bipolares, tornam-se de grande importância (Voss et al, 2006), principalmente quando avaliados por meio das medidas não lineares (Kemp et al, 2010). Reforçando o que foi dito, fica demonstrado que o organismo humano deve comportar-se como um sistema não-linear e, sendo assim, deve obedecer à teoria do Caos. Torna-se, portanto, de extrema importância avaliar a relação entre o comportamento cardíaco e as manifestações psicopatológicas dos transtornos do humor dentro do contexto não linear organísmico, elucidar o comportamento autonômico em pacientes com transtorno do humor. A busca por um “marcador biológico” sempre se mostrou tentadora, mas, na maioria das vezes, cega. Somente através de uma concepção sistêmica 30 | debate hoje não linear poderemos inferir sobre a dinâmica da patogênese dos transtornos mentais. Referências: ! Agelink, M.W., Boz, C., Ullrich, H., Andrich, J. Relationship between major depression and heart rate variability. Clinical consequences and implications for antidepressive treatment. Psychiatry Research. 2002; 113(1-2): 139-49. ! Akiskal HS, McKinney WT. Depressive disorders: toward a unifical hypothesis. Science. 1973; 182 (107): 20-9. ! Bertalanffy L. Teoria geral dos sistemas; fundamentos, desenvolvimentos e aplicações, Petrópolis: Editora Vozes, 2009. ! Câmara FP. Dinâmica não-linear e psiquiatria: a natureza dinâmica das doenças mentais. Rev Latinoam Psicopat Fund. 2008; 11: 105-118. ! Chen G, Hasanat KA, Bebchuck JM, Moore GJ, Glitz D, Manji HK. 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